1 Sonoridades Juvenis na Metrópole: os Diferentes Caminhos do Movimento Hiphop na Cidade de São Paulo1. José Carlos Gomes da Silva Resumo Abordo nesse artigo diferentes momentos do movimento hip-hop na cidade de São Paulo. Analiso as íntimas relações desse fenômeno com os processos de segregação urbana. Discuto inicialmente o surgimento do break no centro urbano, em meados dos anos 80. Constato que os temas e sonoridades presentes nas músicas desse período expressam aspectos da centralidade da vida pública na metrópole. Nas décadas seguintes ocorreu o deslocamento do hip-hop em direção aos bairros periféricos. Analiso nesse contexto as relações entre o rap e uma nova modalidade de segregação urbana, marcada pelo recolhimento das elites em enclaves fortificados e a transformação dos bairros periféricos em “zonas de guerra”, controladas por micro-poderes locais e violência policial. Os rappers assumem nesse instante a posição de cronistas de uma realidade urbana violenta, segregada e silenciada. Mapeio ainda as novas produções culturais centradas nos saraus, instâncias que agregam músicos de rap, mas também poetas e escritores marginais. As fronteiras entre esses grupos são cada vez mais tênues, muitos artistas possuem, inclusive, a dupla filiação. O que os unifica é a reação, o protesto contra a violência e a segregação urbana. PALAVRAS-CHAVE: juventude, música, segregação urbana. Focalizo nesse artigo diferentes práticas e representações sociais elaboradas por jovens filiados ao movimento hip-hop na cidade de São Paulo. Reconstruo a trajetória desse movimento ao qual o rap se filia e analiso as relações entre o fazer musical e as novas modalidades de segregação urbana. Acrescento à análise dados e informações sobre os saraus, um novo espaço de produção cultural juvenil, que reúne música e literatura. A nossa principal hipótese é que existem continuidades entre o movimento hip-hop e a literatura marginal veiculada nos saraus. Admitimos que nas duas modalidades de intervenção cultural os jovens registram suas concepções, explicitam a forma como apreendem, experimentam e reagem à segregação urbana. O rap surgiu como uma novidade no cenário musical brasileiro no início dos anos 90. O discurso voco-sonoro que o caracteriza promoveu rupturas no campo da música popular até então dominado pelos adultos. Pela primeira vez as sonoridades, as vozes contendo inflexões próprias e gírias, peculiares aos jovens situados nos subúrbios e periferias urbanas, tornaram-se audíveis. Porém o sistema FM de rádio praticamente 1 Este texto apresenta apenas pequenas modificações em relação ao que foi publicado originalmente na revista Vibrant 8 de julho 2011, “Sounds of Youth in the Metropolis: the different routes of the hip-hop movement in the city of São Paulo”. http://www.vibrant.org.br/issues/v8n1/sounds-of-youth-in-themetropolis-the-different-routes-of-the-hip-hop-movement-in-the-city-of-sao-paulojose-carlos-gomes-dasilva/. Os novos dados derivam da pesquisa O Capão Redondo nas vozes dos Adultos e Jovens: lutas políticas, práticas culturais e segregação urbana na cidade de São Paulo, que conta com o fomento da FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – 2011-2013. 2 ignorou o rap, apenas poucos programas comandados por DJs vinculados aos bailes blacks o acolheu. A difusão da nova proposta musical foi garantida por um sistema paralelo, integrado por pequenas gravadoras, rádios comunitárias, shows em casas noturnas e eventos ao ar livre. Na década de 90 a juventude também despontou como uma novidade para os cientistas sociais, pois os estudos desenvolvidos na área da antropologia urbana nos anos 1970/80 não haviam contemplado os segmentos juvenis, embora estes estivessem presentes no cenário urbano. Os bailes organizados pelas equipes de som, Chic Show, Zimbabwe e Black Mad, os shows das bandas punk da região do ABC não foram, à época, etnografados. As pesquisas desenvolvidas por Caldeira (1984), Sader (1988), Niemeyer (1985), Zaluar (1983), sobre as classes populares, revelaram de fato aspectos importantes sobre a organização política, o cotidiano dos trabalhadores e a precariedade da infraestrutura urbana, mas nesses registros identificamos apenas o ponto de vista dos adultos. Somente a partir de meados dos anos 80/90 o lazer e as produções musicais dos jovens tornaram-se objeto de investigação no campo das Ciências Sociais. Coube à Antropologia o passo inicial (Caiafa, 1985; Vianna, 1988; Costa, 1993). As análises que apresentamos inscrevem-se nessa tradição de estudos urbanos, mais atenta às produções culturais dos jovens. Tomamos como material de reflexão dados obtidos em duas pesquisas. A primeira foi desenvolvida durante o doutorado na UNICAMP (1998) 2. A segunda encontra-se em fase inicial, trata-se de um estudo sobre o bairro Capão Redondo3, em que parte das investigações é dedicada aos saraus literários, uma prática cultural juvenil que tem filiações no movimento hip-hop. A pesquisa sobre o rap revelou-nos um aspecto específico do fazer musical dos jovens. Diferentemente dos músicos consagrados, que apenas esporadicamente tomavam a cidade como motivação poética, conforme constatamos em Saudosa Maloca (Adoniram Barbosa) e Sampa (Caetano Veloso), os rappers vinculam continuamente as composições às experiências pessoais na metrópole. Não se trata, neste caso, de “arte contemplativa”, fruto de um estado momentâneo de inspiração, mas de uma “estética de 2 Para uma análise da discografia produzida pelos rappers ver Silva (1998). O projeto O Capão Redondo nas vozes dos adultos e jovens: lutas políticas, produções culturais e segregação urbana na cidade de São Paulo (1978-2012) está sendo desenvolvido com o apoio da FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. O suporte fornecido por essa instituição é de fundamental importância para o alcance dos nossos objetivos. Propomo-nos desta feita analisar no bairro Capão Redondo, práticas e representações sociais desenvolvidas pelo segmento adulto e juvenil nos últimos 25 anos. 3 3 profundo envolvimento corporal e participante, em relação tanto ao conteúdo como à forma” (Shusterman, 1998: 63). A música que produzem somente pode ser compreendida a partir dessa condição, pois o fazer musical não se constitui enquanto experimento artístico, relacionado exclusivamente com os atos da composição e execução. A prática musical integra uma experiência mais ampla que envolve a forma como os jovens experimentam, interpretam e atuam no mundo. O termo nativo para essa postura é atitude. Portanto, o fazer musical no hip-hop não se reduz ao experimento artístico estrito. Os atos de composição e execução musical mobilizam experiências sociais concretas. As observações que estamos desenvolvendo nos saraus da Vila Fundão e Cooperifa4 confirmam que existem nexos entre este fenômeno e as práticas peculiares ao movimento hip-hop. A apresentação de uma música, a composição de um poema durante um sarau, a performance de um dançarino de break, a exibição de um vídeodocumentário, têm como finalidade instaurar redes de sociabilidades, reforçar solidariedades e compartilhar significados relativos à experiência social. Ir a um sarau não é se colocar como expectador, mas na condição de partícipe. É essa dimensão ativa, conforme veremos, que conecta os saraus ao movimento hip-hop. Acompanharemos nesse artigo a trajetória do movimento hip-hop em São Paulo desde sua emergência no centro urbano, em meados dos anos 80, à sua inscrição na periferia, em meados dos anos 90. Durante esse período um novo padrão de segregação socioespacial tornou-se hegemônico na metrópole. O processo de erguimento de muros e a fortificação da cidade resultaram no fim do modelo centro-periferia (Caldeira, 2000). O esvaziamento da vida cultural no centro urbano foi uma das consequências mais imediatas. O desenvolvimento do movimento hip-hop apresenta íntimas relações com o surgimento dessa nova modalidade de segregação urbana5. O deslocamento do hip-hop 4 Os saraus representam uma nova modalidade de intervenção cultural dos jovens nos bairros periféricos. Existe na periferia da Zona Sul de São Paulo três importantes saraus, o Sarau do Binho, o Sarau da Cooperifa e o Sarau Vila Fundão. As reuniões acontecem semanalmente. O Sarau do Binho realiza-se na segunda-feira, o da Cooperifa, na quarta-feira e o da Vila Fundão às quintas-feiras. Os saraus surgiram embrionariamente, os eventos se resumiam numa reunião de poetas em pequenos bares. Estes espaços, marcados pelo estigma da marginalidade foram, porém, resignificados. Os encontros tomaram vulto e hoje atraem diferentes expressões artísticas. Grupos de teatro, músicos, escritores, artistas plásticos são uma constante nas sessões. A produção literária juvenil ganhou impulso. Formou-se na última década um grupo expressivo de jovens escritores identificados com a literatura marginal, conforme a intitulam. As fronteiras entre a música rap e a literatura marginal tornaram-se cada vez mais tênues. Muitos escritores e poetas mantêm, inclusive, a dupla filiação. 5 As contribuições da Antropologia Urbana se somam nesse artigo às reflexões desenvolvidas no campo da Antropologia da Música (Merriam, 1964; Seeger, 1977; Oliveira Pinto, 2001). Nessa subárea do conhecimento as produções musicais são concebidas como sistemas organizados de sons. As músicas 4 em direção à periferia, as narrativas sobre esta mesma realidade, a elaboração de novas práticas culturais, como os saraus, relacionam-se diretamente com as novas condições de vida enfrentadas pelos jovens na cidade. O Movimento Hip-hop em São Paulo As nossas análises iniciam-se, mais especificamente, em meados dos anos 1980, momento este em que localizamos as primeiras informações sobre a presença de elementos da cultura hip-hop no Brasil6. Por essa época o centro urbano paulistano ainda mantinha uma intensa vida pública. A Praça da República, o Vale do Anhangabaú e a Praça da Sé apresentavam-se como palcos de importantes atos políticos, muitos deles decisivos para a consolidação da democracia no país. Grandes lojas de departamento como Mesbla e Mappim emergiam como símbolos de uma cultura de consumo em expansão. A mistura das classes sociais e a diversidade de sujeitos que perambulavam pelas ruas asseguravam ao espaço urbano uma vida pública mais democrática7, apesar de a sociedade encontrar-se sob a égide do autoritarismo. A cultura urbana possibilitava, assim, um sopro de vida. Músicos populares, mímicos, repentistas, vendedores ambulantes, protestos políticos, shows musicais, convergiam para o fortalecimento de um espaço urbano plural. Foi, portanto, nesse cenário que o movimento hip-hop fez a aparição. Diferentemente do pequeno ciclo de “jovens bem informados” identificados por Vianna (1988) no Rio de Janeiro8, no contexto paulistano o grupo era expressivo. A juventude responsável pela organização do novo fenômeno provocava estranhamentos, pois era elaboradas pelos diferentes grupos sociais são interpretadas como sistemas de representação que se referem à forma como as sociedades se organizam. O rap é aqui analisado a partir desses referenciais teóricos e o contexto em que nos movemos é o das transformações urbanas verificadas nas últimas décadas na cidade de São Paulo. 6 O movimento hip-hop surgiu no contexto norte-americano dos anos 70. Desde as origens o princípio norteador foi contrapor-se à violência das ruas imposta pelas gangues. Foi nesse universo que os elementos básicos do movimento se estruturaram. O break (a dança de rua), o grafite (expressão visual) e o rap (a expressão sonora) surgiram de forma articulada no Bronx novaiorquino em resposta à ausência de alternativas para os jovens afetados pelas transformações neoliberais iniciadas nos governos ReaganBush. Segundo Tricia Rose (1994), os jovens negros, caribenhos e homeless, foram os segmentos mais diretamente atingidos. 7 As discussões sobre a importância de uma intensa vida pública como experimento fundamental para a democratização dos espaços urbanos encontram-se nos estudos de Jacobs (2000), Caldeira (2000) e Sennett (1988). 8 Para a compreensão do hip-hop no Rio de Janeiro, no mesmo período, há, portanto, o estudo pioneiro Hermano Vianna A alusão aos pequenos grupos, tanto de break quanto de rap que se reuniam no Crepúsculo de Cubatão confirma que de fato em meados dos anos 80 o hip-hop era minoritário entre os cariocas. 5 portadora de símbolos visuais e sonoros incomuns. A maioria vinha dos bairros periféricos, reunia-se em geral ao meio-dia, no intervalo do almoço. Jovens office-boys, auxiliares de escritório, vendedores de lojas, estudantes, atuavam como artistas e platéia. O break foi o primeiro elemento da cultura hip-hop a ganhar visibilidade. Tornara-se prática frequente em ruas como a Dom José Gaspar e Barão de Itapetininga. Os integrantes das chamadas Gangues de Break compartilhavam uma série de afinidades. Além das origens nos bairros periféricos, tinham como referências culturais a black music, mais especificamente os pioneiros do rap norte-americano: Africa Bambaataa e Soul Sonic Force, Malcolm Maclaren, Kurts Blow, Run DMC, Sugar Hill Gang, Boogie Boys, Break Machine, Grandmaster Flash and the Furious Five. O som provinha do box, o imenso rádiogravador portátil. Nos anos de 1980 o movimento hip-hop encontrava-se limitado ao break. A organização coletiva característica dos jovens nesse período era a gangue. Nesse momento podia-se deparar com as gangues9 realizando performances nas esquinas da Rua 24 de Maio com a Dom José de Barros e em frente ao Teatro Municipal. Em setembro de 1984 a revista Break, especializada no gênero, registrou, não com certa surpresa, a presença do fenômeno. Foram apenas duas publicações, mas elas permanecem, até hoje, como relíquias entre os integrantes do movimento. As revistas detalhavam a história da dança, indicavam os passos mais característicos e discorriam sobre o desenvolvimento do break no Brasil. A descrição da performance da Funk Cia, principal gangue de break, é um dos poucos relatos que dispomos sobre a forma como os jovens apropriavam-se dos espaços centrais da cidade. Centro de São Paulo, meio dia. Uma multidão está em volta de uma turma de jovens que contorcem incrivelmente todas as partes do corpo, ao som da bateria eletrônica que sai de um gravador portátil. Uma onda elétrica parece estar passando pelos dançarinos. De repente eles param e começam a “quebrar” seus corpos com uma precisão mecânica impressionante. A platéia está adorando. O som de Malcolm Maclaren substitui o de Herbie Hancock no gravador. A Funk Cia está agora andando para trás, como que puxada por uma força misteriosa. Chegou a hora de cada um deles fazer o seu solo, acrobático e perigoso. É ai que cada dançarino mostra o que tem de melhor, girando de ponta cabeça, de costas, dando saltos mortais e tudo mais. Depois um último passo todos juntos e finalmente eles param, em total imobilidade. A performance acabou. A platéia está extasiada e retribui com aplausos e dinheiro. A pequena multidão sabe que acabou de assistir a uma arte de rua altamente desenvolvida, criada por jovens 9 O termo gang possui no contexto norte-americano sentido oposto ao de crew. No conceito de gang estão presentes os princípios de rivalidade, hierarquia e violência, enquanto na concepção de crew e posse se valoriza a cooperação e a solidariedade entre os grupos. Por isso os jovens que estavam em transição para o movimento hip-hop abandonaram o termo gang e adotaram o termo crew (Toop 1991: 14). Em São Paulo os breakers da São Bento reconheciam as implicações negativas do termo gangue, mas a despeito dos estereótipos, o ressignificaram, transformando-o em categoria identitária. Porém, entre os rappers paulistanos, o termo posse prevaleceu com o sentido original. 6 da periferia (Break, set.1984: 7). O surgimento do break relaciona-se com um conjunto de conflitos que marcou os bairros negros norte-americanos, especialmente abalados pela violência urbana do final dos anos 70. Por essa época as gangues assumiram papel central na expansão do tráfico de drogas e os jovens passaram a ser incorporados às suas fileiras. O movimento hiphop foi interpretado nesse contexto como uma reação positiva da juventude negra e caribenha às ações das gangues. Segundo Rose (1994) a estratégia consistiu em contrapor a arte à violência. O símbolo desta nova atitude entre os norte-americanos foi Afrika Bambaataa, fundador da posse Zulu Nation, até hoje uma referência para os breakers e rappers brasileiros. O desenvolvimento do break em nosso meio não se deu de forma endógena, os vínculos e intercâmbios com o contexto norte-americano estão em suas origens, por isso tais menções são necessárias. De posse do box10 os breakers paulistanos organizavam a roda. O elemento característico da música break é o break beat, a batida funk fornecida pela bateria eletrônica, cortada por efeitos sonoros cibernéticos dos sintetizadores. A audição nos remete a um universo futurista, complementado pelos movimentos e performances robotizadas dos b-boys 11. Mesmo nos dias atuais a música preferida nas rodas de break ainda são aquelas gravadas pela primeira geração do hip-hop norte-americano. As sonoridades sustentadas pela bateria eletrônica fornecem a base em torno da qual os breakers celebram a dança12. Em meados dos anos 80, mais especificamente no intervalo do almoço, as ruas do centro urbano passaram a ser tomadas pelos breakers. Os b-boys vinham de diferentes pontos da periferia paulistana. A maioria aproveitava a pausa para dar vazão à expressão artística. A gente vinha com o box (o gravador) na rua e botava prá quebrar (...) Dançávamos na rua Marconi, em frente ao Teatro Municipal e na esquina da Dom José de Barros com a 24 de Maio. Durante a apresentação, explicava ao público do que se tratava. E aos poucos a coisa começou a ter repercussão favorável, até que começaram a surgir convites para shows, festas, academias de dança e outras propostas. ( Nelson Triunfo, Break Dance, set., 1984) Mas, (...) nem tudo era glória e alegria. De vez em quando, Funk e Cia. tinha problemas com a lei. 10 O termo box é utilizado pelos breakers para designar o aparelho de som que reproduz as fitas cassetes em que as músicas eram regravadas para execução nas ruas. 11 Dançarinos de break. No contexto norte-americano o termo designava aos jovens negros e latinos que dançavam o break, os breaking boys. No Brasil utiliza exclusivamente os termos b-boy e b-girl respectivamente para os rapazes e garotas adeptos do break. 12 Após este período, dominado pelas experiências com a eletrônica, as “bases musicais” para o break praticamente desapareceram. Este tem sido mais um motivo para os b-boys continuarem fiéis aos pioneiros: Booggie Boys, Kurtis Blow, o próprio Afrika Bambaataa. As novas bases procuram preservar as quebras rítmicas, os break beats, que sustentam os movimentos da dança. 7 Policiais falavam para [eles pararem de dançar] eles mandavam “circular” e acabava indo parar na delegacia. O argumento dos policiais era que eles atraiam muita gente na rua e isso facilitaria os furtos (Nelson Triunfo, Caros Amigos nº 3 1998: 29). Os depoimentos confirmam que a performance dos breakers não se legitimava sem enfrentamentos. Os conflitos se verificavam especialmente com os comerciantes. Os lojistas recorriam à ação do policiamento, alegando que a brakedance prejudicava o comércio, atraía pessoas que consideravam perigosas, “trombadinhas”, “moradores de rua”, por exemplo, porém, mesmo nos chamados bailes blacks, os dançarinos encontravam dificuldades. Algumas equipes de som consideravam que a dança e as roupas esportivas utilizadas pelos b-boys destoavam da estética black, por isso, tentavam coibi-las. Os bailes blacks atraiam os breakers porque as músicas tocadas pelos DJs, tanto nos bailes funks observados por Vianna (1988), quanto nos bailes blacks paulistanos, eram as mesmas utilizadas pelas rodas de dançarinos que se formavam nas ruas. O repertório incluía clássicos da primeira geração de rappers norteamericanos, a chamada old school. A contradição residia nos quesitos dança, indumentária, local das performances, conforme observou Andrade. O baile foi o incentivador para o aparecimento do break – dança dos guetos entre os jovens pobres brasileiros, mas o seu aperfeiçoamento se deu nas ruas e a seguir com a formação das gangues, estas passaram a ser possivelmente um empecilho ou uma concorrente aos atrativos dos bailes. Por exemplo, os jovens breakers vestiam roupas pouco ou nada apropriadas para o chique dos ‘bailes blacks’, que, naquela época, exigiam roupa esporte-chique aos “convidados”; os brakers, por sua vez, vestiam roupas adequadas para dançar [nas ruas]: agasalho e tênis. A outra questão é que o espetáculo das gangues roubava o espetáculo dos shows nos bailes (Andrade, 1996: 30). Entre os anos 1982 e 1985 a breakdance transformou-se em moda e ganhou outros seguimentos da sociedade. Através da veiculação de filmes, como Flash Dance e de videoclipes produzidos para Michael Jackson, o gênero invadiu as academias da classe média, alcançou o mercado fonográfico, o rádio e os programas de televisão. Durante este período de modismo o break chegou a ser apresentado, inclusive, em frente a uma loja do Shopping Center Iguatemi, como forma de atrair fregueses. Os jovens do Black Juniors foram, neste momento, responsáveis pelo primeiro registro fonográfico de um grupo de black music13 juvenil no país (Black Juniors, RGE, 1984). Esse processo 13 A categoria black music é utilizada no Brasil para identificar diferentes gerações de músicos negros que traduziram para as sonoridades locais uma tradição de música popular afro-americana que se situa na continuidade entre a soul music e o funk . Conforme observou Sheryl Keys (1996) estas são as matrizes sonoras mais próximas do rap. Na categoria black music incluem-se artistas brasileiros que se reconhecem nas tradições musicais afro-americanas. Assim se classifica é classificada uma geração diferenciada de músicos: Tony Tornado, Jorge Benjor, Tim Maia, Cassiano, Hildon, Carlos Dafé, Banda 8 somente seria retomado de forma mais intensa a partir de 1989, quando os rappers despertaram o interesse da indústria fonográfica oriunda das equipes de bailes. Porém, uma vez passado o modismo e com a persistência dos conflitos na região central, a Estação São Bento do Metrô foi negociada junto ao poder público como um espaço de atuação para as gangues de break. Eventualmente algumas performances pontuais ainda seriam realizadas nas ruas centrais, mas a conquista de um espaço próprio apresentava-se como promissor para os jovens que desejavam se aprimorar na dança. A Estação São Bento era um local coberto, fato que permitia o desenvolvimento das performances independentemente das chuvas. Encontrava-se também distanciado do controle policial e dos conflitos do centro urbano, por isso tornou-se, em pouco tempo, o território por excelência dos breakers. A São Bento já existia desde 1983/84, então, quando chegou em 87/88 a São Bento já era uma referência porque a moda, a onda do break já tinha passado e a São Bento ficou como santuário desse movimento que tava surgindo. E todo mundo ia prá lá prá dançar break. (Clodoaldo – grupo de rap Resumo do Jazz). Novas gangues foram surgindo em meio aos grupos mais experientes. Entre as mais significativas encontravam-se a Back Spin, a Crazy Crew, a Nação Zulu, a Street Warriors. Apesar de se especializarem na atividade de dançarinos, alguns grupos de break chegaram a desenvolver experimentos musicais e a gravar canções próprias. Neste universo incluem-se o próprio Black Juniors e o Eletric Boogies, principais expressões musicais do break em nosso meio14. Porém, para a maioria dos jovens, o fazer musical tinha como espaço o universo das ruas. Neste caso a base sonora era improvisada através do beat box15 ou marcada nos próprios latões de lixo do Metrô, uma prática que se tornou símbolo de uma geração. Esses saberes musicais foram inclusive utilizados para diferenciar os integrantes da primeira geração do movimento hip-hop daqueles que Black Rio, Sandra de Sá, Lady Zu. Os rappers brasileiros têm particular admiração pela black music. Pude constatar que esse repertório é referência na construção das bases musicais, mais que isso, a convite de Mano Brow, o cantor Hildon fez um show em 2010, no aniversário do Sarau da Vila Fundão, foi surpreende o entusiasmo demonstrado pelos jovens, que cantaram canções cujo sucesso se verificara há no mínimo três décadas. 14 O disco de Nelson Triunfo e a Funk Cia Se Liga Meu (TNT, 1990), é um tanto ambíguo. Apesar de a trajetória pessoal do artista vincular-se à breakdance, no disco, a estética break fica restrita à capa, pois as músicas já registram influências do rap. 15 Reprodução da pulsação da bateria eletrônica e do som do baixo sintetizado pelas cordas vocais de um MC. Através dessa técnica são elaborados os break-beats como suporte do canto-falado. Na ausência de uma base musical os rappers utilizam essa referência. O beat box supre a ausência da bateria eletrônica que sempre foi muito dispendiosa. Possibilita também a improvisação no contexto das ruas, mas são poucos os rappers que dominam essa arte. 9 viriam posteriormente. Quando você ouvir por aí, eu já bati na lata, foi porque [a pessoa] passou pela São Bento (Markão – grupo de rap DMN). Na São Bento o espaço era claramente dividido entre as gangues. Cada grupo exercia o controle simbólico do território, formando-se as respectivas rodas em torno do box. Quando alguma diferença precisava ser resolvida promoviam-se os rachas, rivalizando-se em disputas, sempre através da dança. Entretanto o conflito que deveria ter solução no plano da arte, por vezes transformava-se em conflito real, mas obviamente, não era este o motivo central pelo qual os breakers se reuniam, ao contrário, a expressão artística normalmente prevalecia. Comecei a frequentar lá e vi que tinha aquele lance de cada um por si. Cada gang tinha seu espaço, tinha muito racha, muita porrada e muita potencialidade para todos. Então foi onde comecei a trocar idéias com a rapaziada, pois pintavam matérias para se fazer e era ruim porque ninguém se falava. Ai fiquei sabendo que os caras mais radicais eram da gang da qual eu fazia parte, da Back Spin. Fizemos uma reunião, afim de nos juntarmos para melhorar as coisas. Aos poucos foi se criando um respeito. Primeiro Nação Zulu começou a conversar com a Back Spin, depois a Crazy Crew e por final a Street Warriors. Foi onde começou a dar para fazer festas na rua e assim pintou mais mídia e o esquema de gravar pela Eldorado. E o legal é que nessa época ninguém conhecia rap, e quando tinha um show nosso, todas as gangues iam para dar uma força. Isso foi muito importante, foi um conhecimento, foi uma histórica. (DJ Hum, Revista Pode Crê nº 3, 1994: 18-19). No final dos anos 80 já se encontravam na São Bento jovens como Thaide, MC Jack, e o grupo Balanço Negro, que eram originalmente dançarinos de break, foi nesse momento que identificamos um processo mais intenso de transição para o rap. Bad Boy, por exemplo, atuava como breaker, mas também como grafiteiro e cantor de rap. Outros jovens iriam permanecer exclusivamente como grafiteiros, como por exemplo, os Gêmeos. Enfim, o espaço da São Bento, no final dos anos 1980, já não era mais apenas breaker em sua acepção. Com o passar dos anos novas tendências foram se firmando. Surgiriam os adeptos no movimento hip-hop que não dançavam break, só queriam cantar rap ou só sabiam cantar rap. Eram originalmente rappers. Não eram breakers que viraram rappers, que se tornaram grafiteiros ou viraram DJs, como DJ Hum, que dançava break e começou a tocar. Eram rappers que queriam ter um espaço para se desenvolver também. (Clodoaldo – grupo de rap Resumo do Jazz). No final dos anos 1980 a Estação São Bento já havia, portanto, se consolidado 10 como um espaço em transição para primeira geração do rap paulistano. Devido à presença histórica dos breakers, o local chegou a ser formalmente reconhecido pelo poder público como “espaço breaker da cidade”16. A forte identificação com o break não impediu o surgimento de cisões no grupo original. Jovens que desejavam desenvolver os demais elementos do hip-hop, mais especialmente o rap, ou que tinham dificuldades de inserção no grupo, buscaram, a partir do final dos anos 80, novas alternativas. Inicialmente uma parte se deslocou para o Clube do Rap, sob o patrocínio da Chic Show17. Os depoimentos confirmam que essa experiência foi importante para o desenvolvimento artístico dos primeiros rappers, pois lhes permitiria divulgar as produções musicais e “ter uma vivência de palco”. Mas a arte das ruas prosseguiria ainda de forma mais efetiva na Praça Roosevelt18. A presença dos breakers na Estação São Bento do Metrô deu origem ao primeiro disco de rap claramente identificado com o universo musical das ruas. As questões da vida urbana foram reelaboradas musicalmente e tornaram-se predominantes no repertório do disco Hip-hop Cultura de Rua (Eldorado, 1988). A produção reúniria contribuições dos pioneiros do rap como Thaide e DJ Hum, MC Jack, O Credo e Código 13. Na época a canção Corpo Fechado de Thaide e DJ Hum foi veiculada pelas rádios FMs e a dupla chegou a participar de programas de televisão. O disco Hip-hop Cultura de Rua vendeu aproximadamente 60.000 cópias (Caros Amigos, 1998: 10), projetando o hip-hop em espaços inesperados. O conteúdo dos discos que surgiram no período, Hip-hop Cultura de Rua (Coletânea, 1988), Código 13/MC Jack (Código 13 e MC Jack, 1989) e Hip Rap Hop (Região Abissal, 1988) registram, especialmente, experiências cotidianas familiares ao centro da cidade. A única exceção neste momento foi a música Homens da Lei (Thaide e DJ Hum) que focalizava a violência policial no âmbito da periferia. Temas como drogas e racismo foram também tratados nas primeiras gravações, mas de forma irônica ou satírica como em Centro da Cidade e Cidade Maldita (MC Jack), Sistemão, Que Zica Zé e O Gueto (Região Abissal). A vida diária no centro urbano e seus personagens aparecem o principal foco dos músicos. Tratava-se de um universo peculiar aos jovens que trabalhavam como office-boys ou que pertenciam a uma gangue de break. A letra 16 Refiro-me a uma autorização do Metrô para os breakers ocuparem o espaço da Estação. Equipe de baile pioneira na organização dos bailes blacks, os registros das atividades datam do início dos anos 70. 18 Abordo em detalhes esse momento na tese de doutorado (Silva, 1998). Para os propósitos desse artigo me limito aos registros sumários das experiências desenvolvidas nesse novo local e posteriormente na periferia. 17 11 da música Centro da cidade é exemplar. Centro da Cidade MC Jack (...) Centenas de pessoas procurando um emprego Se elas não acharem continua o pesadelo Hare Krishna pregando o seu ponto de vista Crente sua bíblia falando de uma vida Shows eu vejo em plena praça pública Tem também no centro a Praça da República Punk, dark, roqueiro e função Centro da cidade é um grande coração Vejo tudo isso e fico sem dizer Mas aqui estou de volta para agradecer Centro da cidade a você eu devo muito Vejo tudo isso e fico sem dizer, Mas aqui estou de volta para agradecer Faz parte da minha vida não esqueço um só segundo Jack é meu nome e você vai lembrar São Paulo não te troco por qualquer lugar As razões para a cisão do movimento hip-hop no âmbito da Estação São Bento e a consequente formação de um novo agrupamento na Praça Roosevelt, aparecem em diferentes entrevistas. Constatamos que uma das consequências da ruptura neste momento de transição foi a perda da centralidade do dança e o fortalecimento da prática musical. Assim como ocorrera no contexto norte-americano o rap iria adquirir maior visibilidade na cidade de São Paulo. Por vezes os entrevistados mencionam, como motivos da separação, a condição secundária experimentada por alguns jovens na Estação São Bento. Ora referem-se à dificuldade de aceitação dos grupos que chegaram posteriormente. Noutros casos, citam a necessidade de desenvolvimentos artísticos mais centrados na música. A ruptura promovida por JR Blow com os breakers também aparece como aspecto importante19. De qualquer forma trata-se de um momento fundamental na história do movimento hip-hop, pois desde então um segmento mais identificado com o rap, decidiu-se pelo espaço da Praça Roosevelt, enquanto outro, mais fiel à dança, no caso os breakers, permaneceu na Estação São Bento. O grupo que migrou para a Praça Roosevelt produziu em curto tempo experiências sonoras que confeririam identidade própria ao rap paulistano20. Entre os 19 JR Blow é visto como um dos principais lideranças do período, tendo contribuído para a inserção do movimento hip-hop nos espaços undergrounds da cidade. Faleceu em razão de um acidente. MT Bronx prestou-lhe uma homenagem no disco de estréia. Nas músicas fica patenteada a importância do músico para os jovens da Roosevelt (LP Nova Era, MT Bronx, 1992). 20 O Disco Consciência Black II (Zimbabwe, 1992), reflete as tendências que se tornariam hegemônicas no rap a partir dos anos 90. 12 jovens que se deslocaram para o novo espaço encontramos lideranças como o próprio JR Blow do grupo Stylo Selvagem, Bad Boy, Lady Rap, DMN, MT Bronx, Personalidade Negra, Doctor MC’s, Racionais MC’s e MRN21. O principal produto musical desse novo momento foi o disco Consciência Black I (1989), logo seguido de Consciência Black II (1992). Percebe-se também nesse instante importantes nas escolhas das sonoridades. As influências da segunda geração do rap norte-americano, representadas pelos grupos Public Enemy, Eric B. e Rakim, NWA, adquirem centralidade. Seguindo essa tendência os rappers nacionais deixam de lado os problemas cotidianos do centro urbano e os temas relacionados com a questão etnicorracial e a violência urbana na periferia ganham destaque. A base musical se adensa e os timbres graves, registrados pelo baixo e a bateria eletrônica, passam a simbolizar a gravidade dos temas abordados. As colagens de sonoridades urbanas, sirenes, tiros, vozes, favorecidas pelo emprego do sampler, integram-se à nova textura. Os Racionais MC’s assumem, neste momento, a liderança entre os jovens adeptos do movimento hip-hop, preparando-se para o sucesso que seria alcançado em nível nacional na década de 1990. O disco dos Racionais MC’s, Raio X do Brasil (1993), revelou a força do novo gênero. Os primeiros hits, Fim de Semana no Parque, Homem na Estrada, Mano na Porta do Bar, instauraram a nova timbragem sonora e o novo discurso político. O rap se tornou o elemento artístico dominante do hip-hop. Os shows passaram a privilegiar, segundo os termos nativos, a mensagem a ser levada para os manos. O grafite tornouse o elemento decorativo dos palcos e a dança break fixou a expressão coreográfica. Grupos de rap como Thaide e DJ Hum e Racionais MC’ mantiveram os b-boys nessa nova condição e na plateia a atitude verificada passou a ser de atenção às mensagens. Foi a época em que se começou a caracterizar que rapper não podia aparecer contente em apresentações. As pessoas faziam questão de subir no palco, falar um monte e fazer cara feia e não admitir piadinha, numa linha hardcore mesmo (Markão – grupo de rap DMN). Você começou a ver grupos de rap muito mais com livro embaixo do braço que com um disco ou revista sobre música. Quer dizer, acho que foi uma fase importante e 21 Em meio à experiência da São Bento, o movimento hip-hop contou no período com o apoio de um movimento de característica mais difusas, o Movimento Hip-hop Organizado (MH2O), uma iniciativa do produtor musical Milton Sales, empresário e disque-jóquei. Desta experiência resultaram manifestações em parques da cidade. A primeira, realizada em março de 1989, no Parque do Ibirapuera, foi simbolicamente tomada como marco fundador do movimento (Andrade, 1996). Seguiram-se eventos no Parque da Aclimação e no Parque do Carmo. 13 necessária politicamente (...) em compensação a gente discute até hoje o empobrecimento musical (Clodoaldo – grupo de rap Resumo do Jazz). O rap contou neste instante com o suporte das pequenas gravadoras, criadas pelas equipes de baile, Chic Show, Kaskatas, Zimbabwe, Black Mad. No início de 1990 os grupos de rap passariam também a se apresentar nos bailes promovidos por algumas destas equipes de som. Os shows ao vivo tornar-se-iam frequentes. A produção de discos consolidava-se, neste caso, como uma extensão das atividades desenvolvidas pelas empresas promotoras dos bailes blacks. Algumas delas criaram, para tal finalidade, selos independentes, responsáveis pela gravação, produção e distribuição dos discos. A decisão inicial de gravar músicos de rap não foi, porém, tranquila. As primeiras gravações dos Racionais MC’s pela Zimbabwe (Coletânea Black I, 1989) foram marcadas pelos sentimentos de identificação, que uniam empresários e músicos, mas também pela tensão sobre os resultados. A frase atribuída a William, empresário negro, proprietário da Zimbabwe, é ilustrativa. DJ Cri, produtor das faixas na coletânea, lembra como se fosse hoje: “Nesse dia em que o Milton [empresário dos Racionais] levou a fita demo, a gente também levou ao escritório do William, em Santana, o tape deck e o cabo para ouvir. Ele achou pesadíssimo. Falou que ia ser difícil trabalhar aquilo. Mas William gravou. Colocou nas últimas faixas dos dois lados do LP, mas gravou. Ele [explicou] porque resolveu arriscar “Senti a obrigação, porque eles passavam nas letras coisas que eu vivi na infância” (Caros Amigos, 1998: 10). A produção fonográfica contou a partir deste momento com a estrutura organizacional originada dos bailes blacks. Raros foram os discos patrocinados pela grande indústria fonográfica. A atividade gerenciada em moldes empresariais visava, obviamente, a realização do lucro, mas havia identificação entre os empresários e os músicos em função das origens comuns, porém essa relação manteve-se sempre como fonte de conflitos. Até hoje os rappers questionam a forma como os contratos do período foram firmados, o monopólio exercido sobre os grupos, os problemas relacionados com a divulgação e a falta de investimentos. As posses Em 1990 foi fundada na Zona Sul a posse Conceitos de Rua, símbolo de um novo momento da reorganização das experiências musicais no âmbito do movimento hip-hop. 14 A partir desse momento os coletivos de juvenis situados nos bairros periféricos passaram a interagir com os grupos que haviam se deslocado parar a Praça Roosevelt 22. Um novo redirecionamento da cultura de rua estava se iniciando. A posse Conceitos de Rua surgiu a partir da iniciativa de jovens moradores dos bairros Capão Redondo, Vale das Virtudes e Jardim Helga. Lentamente outras posses foram organizadas. Na Zona Norte formou-se a Força Ativa, que através do DJ Paul, também mantinha contatos com a turma da Roosevelt. Em Cidade Tiradentes, na Zona Leste, organizou-se a Aliança Negra, liderada por Frenilson, também um frequentador da Roosevelt. A irradiação do movimento hip-hop em direção à periferia tinha como modelo de ação as experiências desenvolvidas pelo Sindicato Negro, organização criada pelos rappers na Roosevelt. A breve existência do Sindicato deveu-se a cisões internas, mas as maiores dificuldades, segundo os entrevistados, radicaram no controle ostensivo da polícia. O policiamento ignorava as propostas dos jovens e, preconceituosamente, passou a interpretá-los como uma gangue23. As ações desenvolvidas entre os rappers que se encontravam na Praça Roosevelt entre 1991-1994 e o Geledés – Instituto da Mulher Negra foram também importantes para os destinos do movimento hip-hop. O Geledés decidiu acolher os rappers no intuito de combater as perseguições policiais que os vitimava. A notícia do assassinato de um integrante do movimento hip-hop pela polícia numa estação do Metrô acelerou o encontro. O Projeto Rappers foi a base da articulação. A proposta previa a incorporação dos jovens em oficinas temáticas organizadas nos seguintes eixos: sexualidade, questão racial e música. O vídeo SOS Racismo e a revista Pode Crê se constituíram nos principais produtos desta união. O periódico circulou entre os anos 1993/1994, especializando-se na divulgação do movimento hip-hop. Após o esvaziamento das atividades na Praça Roosevelt e das experiências no âmbito do Geledés, as posses situadas na periferia se firmaram como principais pontos de apoio para a prática musical dos rappers. 22 Segundo Carlos, um dos organizadores da posse Conceitos de Rua, o encontro com o Sindicato Negro foi marcado pela surpresa em função do desconhecimento que reinava entre ambas as posses. Um “racha” entre breakers, entretanto, foi suficiente para que o respeito mútuo se estabelecesse. 23 Os integrantes do Sindicato Negro utilizavam o símbolo da posse em jaquetas e camisetas, mas os policiais interpretaram esses elementos como identificadores de pertença a uma gangue. Sabemos que a gangue, enquanto organização hierárquica composta por líder e um séquito fiel de seguidores, conforme a descrição clássica de Whyte (2005) inexiste entre os jovens brasileiros. Mesmo as quadrilhas entre nós são pouco estruturadas (Zaluar, 2003), o conceito de gangue de fato não se aplica ao hip-hop. Porém o termo gangue continua sendo empregado pelos policiais paulistanos como rótulo desabonador. Recentemente o símbolo 1 da SUL – Capão-SP, criado pelo escritor Férrez, mereceu de um policial a seguinte definição “trata-se de uma nova gangue de criminosos que atua na Zona Sul”. 15 A partir de 1991 o espaço da Roosevelt começou a perder o sentido original. A morte acidental de JR Blow em 1990, o interesse de alguns grupos voltados para o mercado fonográfico, o Projeto Rappers Geledés, que atraiu alguns jovens, foram utilizados como explicações para o esvaziamento. Paralelamente à desmobilização da Roosevelt, em 1991, as posses situadas nas regiões periféricas passaram a revitalizar o movimento hip-hop. Os grupos de rap emergentes encontraram abrigo nesses novos locais e, desde então, as ações se tornaram descentralizadas e as temáticas locais passaram a influenciar diretamente a produção musical. As músicas gravadas pelo grupo de rap Racionais MC’s tornaram-se a partir desse momento exemplares da compreensão que os jovens da periferia elaboravam sobre a realidade urbana. O sucesso obtido junto às camadas populares certamente se relaciona com uma proposta musical esteticamente diferenciada, porém, os membros dos Racionais se firmariam também como legítimos intérpretes dos problemas sociais que atingiam o conjunto dos jovens. A frase apoiados por mais de 50 mil manos citada em Sobrevivendo no inferno, no encarte do disco, refere-se a essa dimensão política, menos visível. Nos shows, entre uma e outra música, Mano Brown se dirigia aos fãs e elaborava um discurso improvisado, marcado por críticas ácidas ao sistema. A expressão autoconhecimento que amiúde empregavam aparecia como síntese do saber nativo valorizado pelos integrantes do movimento hip-hop. Foi neste contexto que proliferaram também as chamadas rádios comunitárias, comprometidas com a veiculação da música, mas também de informações consideradas autênticas.Tais saberes produzidos localmente ainda permanecem, segundo a visão dos jovens, em oposição às informações veiculadas pela grande mídia, consideradas falsas, conforme constatamos recentemente nos saraus literários. Os rappers se colocam a partir de meados dos anos 1990 na condição de cronistas da periferia, ou seja, como porta-vozes de uma realidade silenciada pela grande imprensa e ignorada pelos poderes públicos. O tipo de registro que os jovens filiados ao movimento hip-hop e, atualmente, os frequentadores dos saraus literários elaboram sobre a vida urbana, em poemas e narrativas, é sempre de natureza pessoal, biográfica. Especialmente a música se apresentou desde então como linguagem simbólica em sentido amplo, não sendo passível de compreensão se reduzida apenas às estruturas sonoras. Os códigos sonoros das ruas, gírias, buzinas, armas de fogo, conversas, aparecem fundidas às “bases” musicais. A aproximação dos rappers com a comunidade de fala em que desejam ser 16 compreendidos aparece como aspecto essencial. Na desobediência à norma culta os músicos revelam as intenções de um discurso infrator, não protocolar. Trata-se de um fenômeno que radicaliza uma característica peculiar à música popular, isto é, o conflito com os padrões normativos propostos pelo fazer musical escolar. O falar das ruas, mas na linguagem das ruas, os dramas sociais vividos pelos músicos, pelas pessoas comuns, se exprimem nas letras das canções. As tensões entre os elementos da música artística ocidental, que privilegia a escrita, e a música tradicional, centrada na oralidade, de fato se fazem presentes na sonoridade de diferentes gêneros musicais populares24, samba, blues, tango, reggae, mas o rap, que se inscreve nesse contexto radicaliza as contradições peculiares ao universo da música popular, pois os músicos reivindicam, mesmo após o sucesso, a filiação aos espaços socialmente excluídos. Os rappers paulistanos enfatizam, por isso mesmo, as expressões locais características do falar cotidiano dos becos, favelas e vielas em que pretendem ser ouvidos. A frase de Mano Brown repetida em muitos shows é exemplar: sucesso prá mim é cantar na favela no Carandiru, nos presídios. As citações aos bairros pobres, nas letras, compartilham desse mesmo sentimento de pertença ao universo dos marginalizados. Nesse caso, a mensagem somente pode ser singular, por isso, os rappers recusam-se a cantar as canções de outros grupos, mesmo daqueles já famosos. As crianças da periferia cantam, por exemplo, as músicas dos Racionais MC’s, até mesmo em salas de aula, mas jamais um grupo de rap, mesmo iniciante, ousaria fazê-lo. A chamada atitude cover é vista como incompatível com a filosofia do hip-hop, pois, de acordo com os valores dominantes, a razão maior para um indivíduo se integrar ao movimento é ser capaz de levar uma mensagem para os manos e esta precisa ser autoral. Como no fazer musical a experiência subjetiva é essencial, aqueles que não possuem uma história de vida inscrita na localidade, experimentam dificuldades em se legitimar. Os rappers entendem que não merecem crédito aqueles que abordam temas que não vivenciaram25. Um exemplo revelador da posição assumida pelos rappers enquanto cronistas do cotidiano é a música Pânico na Zona Sul (Racionais MC’s, 1990). O texto é uma narrativa realista sobre as atrocidades praticadas nas chamadas “zonas de guerra”. Os 24 A propósito desse aspecto marcante da música popular apóio-me nas discussões de Menezes Bastos (1996). 25 Tricia Rose (1994) discute este problema no contexto norte-americano a partir de experiência do rapper Vanilla Ice, jovem branco de classe média que encontra dificuldades em ser aceito como integrante do movimento hip-hop. Condição semelhante foi vivida, no plano nacional, pelo rapper carioca Gabriel O Pensador. 17 problemas da violência urbana, hoje registrados pelos institutos de pesquisa, e que apontam os jovens como principais vítimas dos homicídios foram interpretados em linguagem musical. A aliança entre “justiceiros” e policiais corruptos atuando enquanto forças paramilitares, o tema da delinqüência, como justificativa ideológica para o extermínio dos jovens, fenômenos que retornaram neste final de 2012 ao centro do debate público, logo após a morte do DJ Lah do grupo Conexão do Morro em uma chacina praticada por policiais, vêm sendo denunciadas desde longa data. O título do LP Holocausto Urbano (1992) não poderia ter sido, portanto, mais expressivo. A música Pânico na Zona Sul apareceu como uma primeira síntese das atrocidades que insistem em permanecer sob o silêncio e indiferença da sociedade. Pânico na Zona Sul (Mano Brown) Então, quando o dia escurece, só quem é de lá sabe o que acontece. Ao que me parece prevalece a ignorância, e nós... Estamos sós. Ninguém quer ouvir a nossa voz. Cheia de razões, os calibres em punho, dificilmente um testemunho vai aparecer E pode crer, a verdade se omite, pois quem garante o meu dia seguinte? Justiceiros são chamados, por eles mesmos, matam, humilham e dão...Tiros a esmo. E a polícia não demonstra, sequer vontade, de resolver ou apurar a verdade. Pois simplesmente é... conveniente. Porque ajudariam se nos julgam delinqüentes? As ocorrências prosseguem sem problema nenhum. Continua-se o pânico na Zona Sul. Sabemos que o rap é uma expressão musical característica do atual momento de internacionalização da cultura, mas fica evidente também que este gênero adquiriu em nosso meio características específicas. Nos limites da localidade a música se apresenta como um discurso em defesa da vida. Através de estratégias distintas os jovens têm procurado evitar que as identidades individuais daqueles que foram mortos sejam apagadas ou diluídas no conjunto frio das estatísticas. Por isso, frequentemente, vemos Mano Brown se autorreferir em shows, ou nos encartes dos CDs, por meio da expressão aqui quem fala é mais um sobrevivente, porque é esta a sensação que se tem na periferia paulistana após a ultrapassagem do período crítico entre os 15 e 24 anos. Mas a periferia é também vista positivamente, como um símbolo de identidade. Sabemos que em São Paulo, a experiência local engajada, materializou-se por meio das posses. Trata-se neste caso de uma organização autônoma orientada para o desenvolvimento dos elementos característicos do movimento hip-hop e intervenção 18 política no plano mais imediato. Integrados por rappers, breakers e grafiteiros, estes coletivos se tornaram fundamentais para o aprendizado artístico. Antes de se aventurarem nos eventos públicos, os jovens apresentavam suas músicas no circuito intimista das posses, ou seja, as veiculavam entre os manos. Exatamente por valorizar a filiação dos indivíduos ao grupo, os pesquisadores do movimento hip-hop concluíram que as posses ou crews constituíram-se como respostas aos processos sociais desagregadores, postos em prática pelas novas condições da vida urbana. A identidade no hip-hop está profundamente enraizada no específico e na experiência local, no apego a um grupo local ou família alternativa. As crews são uma espécie de família forjada a partir de um vínculo intercultural que, a exemplo da formação das gangues, promovem isolamento e apoio em um ambiente complexo e funcionam como base para os novos movimentos sociais (Rose 1997: 34) A ideia de pertença à comunidade e à posse está presente nas músicas e nos encartes dos discos. As imagens sobre a periferia surgem nestes registros de forma imponente. A parte da cidade objeto de admiração em som ou imagem é aquela que está ao alcance do olhar e do sentir. O que importa na metrópole, nestes casos, são as redes de relações tecidas no plano mais próximo. A metrópole não é apreendida, portanto, enquanto totalidade abstrata. A música Fórmula Mágica da Paz é, nesse sentido exemplar, pois expressa as ambigüidades que marcam a vida urbana no âmbito da localidade. Fórmula Mágica da paz (Mano Brown) Essa porra é um campo minado. Quantas vezes eu pensei em me jogar daqui, mas, aí, minha área é tudo o que eu tenho. A minha vida é aqui e eu não consigo sair. É muito fácil fugir, mas eu não vou. Não vou trair quem eu fui quem eu sou. Eu gosto de onde eu vou e de onde eu vim, ensinamento da favela foi muito bom pra mim. Cada lugar um lugar, cada lugar uma lei, cada lei uma razão e eu sempre respeitei, em qualquer jurisdição, qualquer área. Jardim Santo Eduardo, Grajaú, Missionária, Funchal, Pedreira e tal, Joaniza. Eu tento adivinhar o que você mais precisa. Levantar sua goma ou comprar uns pano, um advogado pra tirar seu mano. No dia da visita você diz que eu vou mandar cigarro pros maluco lá no X. Então, como eu tava dizendo, sangue bom, isso não é sermão, ouve aí: tenho o dom. Eu sei como é que é, é foda parceiro, Hee, a maldade na cabeça o dia inteiro. Nada de roupa, nada de carro, sem emprego, não tem IBOPE, não tem rolê, sem dinheiro. (...) É embaçado ou não é? Ninguém é mais que ninguém, absolutamente, aqui quem fala é mais um sobrevivente. 19 A frase de abertura apresenta o bairro periférico como uma espécie de campo minado. O desejo em abandonar o local é citado como possibilidade, mas este ato é, no entanto, recusado em função do sentimento de pertença. Deixar a comunidade implicaria em renunciar às origens, por isso, a expressão: não vou trair quem eu fui quem eu sou. Permanecer na comunidade significa, porém, estar atento às leis que vigoram em cada bairro. A concepção de que estes espaços encontram-se controlados por micro-poderes é o que os singulariza: cada lugar um lugar, cada lugar uma lei, cada lei uma razão... e eu sempre respeitei. Sabemos que o novo padrão de segregação urbana que passou a vigorar em São Paulo a partir de meados dos anos 80 reflete a orientação defensiva das elites em relação aos espaços públicos. O erguimento dos muros e a construção de enclaves fortificados, investimentos em monitoramentos eletrônicos, reclusão em condomínios fechados, passaram a integrar um conjunto de ações que utilizam como justificativa o aumento da violência. O esvaziamento dos espaços públicos tem sido uma consequência de tais investimentos de uma arquitetura defensiva. O ideal de moradia, trabalho e lazer intramuros, atingiu também a periferia. Vigilância e atitudes de monitoramento se fixaram também nas “zonas de guerra”, situadas, por vezes, ao lado dos enclaves fortificados (Caldeira, 2000). Ao deslocarmos por bairros desconhecidos, situados nas regiões periféricas, experimentamos enquanto pesquisadores esse estado de permanente observação. “Do Lado de Cá”: os Saraus Os saraus literários radicalizaram o conceito de posse enquanto espaço privilegiado do fazer artístico. Também aprofundam o princípio de pertença à periferia. Atualmente na Zona Sul paulistana, mais precisamente na Subprefeitura do Campo Limpo, região que engloba os bairros do Capão Redondo, Jardim Ângela, Jardim São Luis e Campo Limpo existem três importantes saraus: a Cooperifa, o Vila Fundão e o Sarau do Binho. O sarau pode ser definido como um espaço da comunidade que reúne semanalmente artistas locais. Em uma mesma sessão podemos nos deparar com expressões multivariadas como recitais de poemas, próprios ou de autores consagrados 20 pela literatura brasileira, apresentação de músicos de rap, reggae, rock, crônicas do cotidiano, pequenas peças de teatro, mesas temáticas sobre violência, mídia, hip-hop. Especialmente a literatura juvenil tomou impulso nessas instâncias. O termo literatura marginal tem sido empregado como expressão nativa para qualificar as práticas literárias que têm lugar nos saraus. Jovens escritores como Férrez, Claudia Canto, Marcos Lopes, Sacolinha, Sérgio Vaz, cujo público leitor ultrapassa os limites da localidade, frequentemente se fazem presentes. Na Vila Fundão pesquisamos um sarau importante, embora jovem. O bairro é uma região de assentamento popular, uma favela, que dispõe de infraestrutura urbana mínima. A Vila Fundão situa-se no alto de um morro, ostentando um traçado de ruas tortuosas que se precipita em declive. Os moradores convivem com a dualidade do preconceito e a afirmação da identidade local. A participação de militantes do movimento hip-hop e escritores filiados à literatura marginal se efetiva enquanto síntese da fórmula que orientou a constituição das posses. Os jovens reúnem-se semanalmente para a troca de mensagens, produção artística e reflexões sobre questões sociais que dizem respeito ao dia-a-dia. O Sarau da Vila Fundão compartilha com o Sarau do Binho e a Cooperifa a posição de nó de uma rede difusa de artistas que promovem intervenções culturais. Refazem dessa forma a tese de que do outro lado dos muros subsiste apenas as “zonas de guerra”, marcadas por chacinas, homicídios, violências de toda ordem, que justificam o erguimento dos muros, a hegemonia da arquitetura defensiva e a ação violenta da polícia. A produção artística dos saraus revela a outra face da periferia. A música está presente na programação semanal do bar que abriga o evento. As atividades são recortadas em função dos estilos musicais. Durante as quintas-feiras, predomina a música afro-americana, o reggae e o rap, às sextas-feiras o espaço é consagrado à MPB (Música Popular Brasileira), aos sábados reúnem-se os grupos de pagode da região e aos domingos tem lugar uma roda de samba. Os saraus tornaram-se uma referência cultural importante para uma região que, especialmente nos anos de 1990, foi classificada como a mais violenta da América Latina. Os elevados índices de homicídios que vitimavam especialmente os jovens deram origem à Caminhada pela Vida e pela Paz, um importante movimento social organizado pelas associações locais em parceria com a Igreja Católica. Em 2010 foi realizada no feriado de Finados a 15ª Caminhada. Os rappers foram os pioneiros na denúncia da violência na região. O padre Jaime Crowe, um irlandês que chegou ao local 21 no auge dos movimentos sociais reivindicativos, materializou a idéia do protesto por meio da Caminhada, em 1995. A indignação do pároco contra o fato de realizar missas de 7º dia para tantos jovens foi o que deu origem ao evento. Os ecos do protesto contra o racismo e a violência urbana prosseguem nas letras de música, nos poemas, nas telas improvisadas de cinema, na literatura marginal. A produção artística se diversificou. Estamos, no momento, distanciados do ideal proposto pelas posses, que se organizavam, segundo Rose (1994), como uma espécie de família alternativa, pois nelas os jovens encontravam apoio e solidariedade. Talvez esse modelo não mais se aplique aos saraus, mas há um fio condutor unindo as duas práticas, isto é, o sentimento de pertença à periferia. Quando ouvi pela primeira vez a expressão do lado de cá confesso que demorei um pouco a entender. Atualmente o termo designa o sítio da Vila Fundão (www.doladodeca.com.br). A referência não poderia ser mais expressiva, ela demarca em linguagem nativa a segregação socioespacial à qual os jovens negros e pobres encontram-se submetidos. Exprime também a fronteira espacial-simbólica que separa os segmentos incluídos, àqueles que se situam do outro lado do Rio Pinheiros, da Ponte da Capela do Socorro, Ponte da Av. João Dias, Ponte da Eusébio Matoso, daqueles que vivem do lado de cá, os segregados. O rapper Mano Brown foi quem iniciou a reflexão sobre a segregação urbana na música rap. Atualmente ele continua como um frequentador assíduo da Vila Fundão. Nas palavras de Fernandinho, organizador do sarau, ele se apresenta apenas como mais um sobrevivente a frequentar o local. E é assim que o vemos se comportar, com total discrição, sem o glamour do pop star. A tradição antropológica nos permite afirmar que a música é nesses contextos um marcador identitário, um importante sinal diacrítico. O par identidade/diferença é constitutivo dessa reflexão (Cohen 1974; Cunha 1984; Barth, 1997). Podemos argumentar que nesses espaços urbanos, edificados sob a lógica da segregação, a música tem permitido aos jovens recriar nas “zonas de guerra”, afirmando um sentimento de pertença. Do ponto de vista político, como bem observou Caldeira (2000), a violência que se abateu sobre o país após a redemocratização, revela o caráter disjuntivo da nossa incipiente democracia, ou seja, no momento em que conquistamos o direito ao pleno exercício da cidadania, em que as vozes da periferia podem ser ouvidas, edificamos espaços segregados, elaboramos ritos de suspeição ante os desiguais e diferentes, matamos as experiências de vida pública, a heterogeneidade e a diversidade, passamos a privilegiar apenas o convívio entre iguais, a residir em recintos monitorados e vigiados. 22 Mas a conclusão nativa procede, porque, do outro lado dos muros, nas “zonas de guerra”, existem reações e a gente tenta usar a música prá provocar as pessoas a discutir os assuntos, palavras finais de Mano Brown. Referências Bibliográficas ANDRADE, Elaine N. Movimento Negro Juvenil: um Estudo de Caso sobre JovensRrappers de São Bernardo do Campo. Dissertação de Mestrado, São Paulo, USP,1996. BARTH, Fredrik. “Os Grupos Étnicos e suas Fronteiras”. In: POUTIGNAT, P. & STREIFF-FENART, J. Teorias da Etnicidade. São Paulo, Ed. UNESP, 1998, pp. 187-227. CAIAFA, Janice. Movimento Punk na Cidade: a Invasão dos Bandos Sub. Rio de Janeiro, Zahar, 1985. COSTA, Márcia R. ‘OS’. Carecas de subúrbio. Caminhos de um Nomadismo Moderno. Petrópolis: Vozes, 1993. CALDEIRA, Teresa Pires do R. A Política dos Outros. O Cotidiano dos Moradores da Periferia e o que Pensam do Poder e dos Poderosos. São Paulo: Brasiliense, 1984. CALDEIRA, Teresa Pires do R. Cidade de Muros. Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34-EDUSP, 2000. COHEN, Abner. Costom and Politics in Urban Africa: a Study of Hausa Migrants in Yoruba Towns. London, Routledge & Keagan, Paul, 1974. CUNHA, Manuela C. Negros, Estrangeiros. Os Escravos Libertos e sua Volta à África. São Paulo, Brasiliense, 1985. JACOBS, Jane. Morte e Vida de Grandes Cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000. KEYES, Cheryl L. “At the Crossroads: Rap Music and its African nexus”. Etnomusicology, n. 40(2): 222-248, 1996. OLIVEIRA PINTO, Tiago. “Som e Música. Questões de uma Antropologia Sonora”. Revista de Antropologia, São Paulo, n. 44(1): 221-286, 2001. MENEZES BASTOS, Rafael. “A ‘origem do samba’ como Invenção do Brasil. Por que as Canções têm Música”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 31: 156-177, 1996. MERRIAM, Alan P. The Anthropology of Music. Evaston: Nortwestern University Press, 1964. NIEMEYER, Ana Maria de. Lugar da Pobreza: Moradia e Controle de Espaço na Favela de São Paulo, 1972-1977. Tese de Doutorado, São Paulo, Universidade de São Paulo, 1985. ROSE, Tricia. Black Noise. Rap Music and Black Culture in Contemporary America. London: University Press of New England Hanover & London, 1994. ROSE, Tricia. “Um estilo que ninguém segura: política, estilo e a cidade pós-industrial no hip-hop”. In: HERSCHMAN, M.(org.). Abalando os Anos 90. Funk e Hip-hop. Globalização, Violência e Estilo Cultural. Rio de Janeiro, Rocco. pp. 192-212, 1997. SADER, Eder. Quando Novos Personagens Entram em Cena. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988. SEEGER, Anthony. Por que os Índios Suya Cantam para suas Irmãs?” In: VELHO, G. 23 (org.), Arte e Sociedade. Ensaios de Sociologia da Arte. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1977, pp. 39-63. SENNETT, Richard. O Declínio do Homem Público. As Tiranias da Intimidade. São Paulo, Companhia das Letras, 1988. SHUSTERMAN, Richard. Vivendo a Arte. O Pensamento Pragmatista e a Estética Popular. São Paulo, Editora 34, 1998. SILVA, José Carlos G. Rap na Cidade de São Paulo: Música, Etnicidade e Experiência Urbana. Tese de Doutorado, Campinas, Universidade de Campinas, 1998. VIANNA, Hermano. O Mundo Funk Carioca. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed. 1988. TOOP, David. Rap Attack(2). African Rap to Global Hip-hop. London: Serpent’s Tail, 1991. WHYTE, William F. Sociedade de Esquina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2005. ZALUAR, Alba. Máquina e a Revolta. Tese de Doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo, 1983. ZALUAR, Alba. “Gangues, galeras e quadrilhas: globalização, juventude e violência”. In: VIANNA, H. (org.), Galeras cariocas. Territórios de Conflitos e Encontros culturais. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003, pp.17-57.