1 A REPRESENTAÇÃO SOCIAL DO ASSISTENTE SOCIAL Tânia Maria Bigossi do Prado* RESUMO As representações existentes no âmbito do senso comum acerca da profissão de assistente social foram construídas ao longo do processo histórico da prática da assistência — que, desde a Antigüidade, esteve ligada à noção de caridade — e, também, a partir da história da própria profissão, visto que as primeiras assistentes sociais eram, em geral, moças abastadas e religiosas. Esse tipo de representação, explícito na fala de um usuário do Serviço Social: “A assistente social é uma moça boazinha que o governo paga pra tê dó dos pobres”, pode significar um entrave no processo emancipatório. Palavra chaves: Assistente social, representação social. ABSTRACT The existing representations in the scope of the common sense concerning the profession of Social work have been constructed along the historical process of the assistance practical - that, since the Seniority, has been the charity notion - and, also, from the history background of this certain profession, since the first social works workers were seen, in general, as supplied and religious young women. This type of representation, explicit in speechs of an user of the Social Service work: "the social assistant is a nice young woman that the government pays to have peedy of the poor, can result in an impediment to the emanicipation process. Keywords: Social Work, social representation. 1 INTRODUÇÃO Este trabalho tem como objetivo entender a construção da representação social do Assistente Social a partir do processo histórico da assistência e da profissão e de contribuir para o entendimento do impacto dessa representação na possibilidade de emancipação dos usuários das políticas sociais. Trata-se de uma pesquisa exploratória, elaborada a partir de bibliografias acerca da Teoria da Representação Social e da história do Serviço Social no mundo e no Brasil. 2 TEORIA DA REPRESENTAÇÃO SOCIAL A princípio, é importante ressaltar que o debate acerca da teoria da representação social travado por diversos autores da sociologia e da psicologia social não é * Mestranda em Política Social pela Universidade federal do Espírito Santo. São Luís – MA, 23 a 26 de agosto 2005 2 objetivo nesse momento. Ficaremos com a definição de Jodelet (2001. p. 22), que define representação social como: [...] uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, com o objetivo prático, e que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social. Igualmente designada como saber de senso comum ou ainda saber ingênuo, natural, esta forma de conhecimento é diferenciada, entre outras do conhecimento científico[...]. O propósito da representação social é transformar algo não conhecido (o novo) em conhecido, por meio de dois processos, de acordo com Moscovici (apud SÁ,1995) a objetivação e a ancoragem. Objetivar, segundo o autor citado, “é descobrir a qualidade icônica de uma idéia ou ser imprecisos, reproduzir um conceito ou uma imagem” , isto é, tornar concreto um conceito abstrato, A ancoragem, por sua vez, que segundo Leite (2002, p. 117), [...]graças a ela, novas informações enraizam-se no conjunto de saberes estabelecidos a respeito de objetos já conhecidos. Esse processo de inserção cognitiva faz-se por meio de assimilação, de associação, na medida em que o novo objeto “toma” características daqueles que já estavam presentes na rede de significados preexistentes[...]. Embora o processo de objetivação e ancoragem sejam inverso, visto que o primeiro materializa uma abstração e o segundo atribui um significado a um objeto, ambos têm em comum operarem características do sujeito que representa, desta forma a posição social, as relações sociais em que estão inseridos, a forma como encaram o mundo são relevantes na representação, nesse sentido, afirma Leite (2002, p. 122), [...]uma representação social não representa apenas um objeto socialmente importante, não se refere de modo exclusivo a aspectos da realidade que têm relevância para a vida dos sujeitos que produzem essa representação. Além disso, ela representa também esses sujeitos, manifestando aquilo que eles são, exprimindo o seu ser social[...]. 3 A REPRESENTAÇÃO SOCIAL DO ASSISTENTE SOCIAL Duas frases são repetidas no espaço do Serviço Social, uma de um usuário das políticas sociais: “A assistente social é uma moça boazinha que o governo pra te dó dos pobres”, e a outra de um funcionário da Secretaria de Estado: “As assistentes sociais são prolixas, usam cinta-liga e colar de pérolas”. São Luís – MA, 23 a 26 de agosto 2005 3 A primeira observação que me ocorre é que ambos utilizaram a objetivação e a ancoragem, porém como não compartilham a mesma posição social e visão de mundo, cada um fez sua representação e que em nada coincidem entre si. O primeiro se apóia na caridade, na filantropia, no paternalismo do Estado e o segundo adota o critério da produtividade no trabalho visto que é funcionário do Estado, associa a profissão com atitudes e objetos (meia, colar) não adequados à praticidade e à produtividade. A história da prática da assistência pode clarear essas representações e também a da construção da identidade do profissional da assistência social, nesse sentido é importante um retrocesso no tempo. Desde a antiguidade a prática da assistência social esteve ligada à noção de caridade. No velho Egito, na Grécia, na Itália, na Índia, enfim nos mais diferentes pontos do mundo antigo a assistência era reservada às confrarias. Entre os judeus, essas práticas, em especial a de visitas domiciliares, eram também usuais, destinando-se principalmente às viúvas, órfãos, idosos e enfermos (MARTINELLI, 1996). Com o advento do Cristianismo, a assistência ampliou sua base, fundamentando-se também na justiça social e enfatizando a dimensão espiritual. Com a organização da Igreja Católica, essa tarefa foi delegada aos membros leigos da Igreja. Suas ações se ampliaram, passando a envolver elaboração de inquéritos sociais, além de visitas domiciliares para a constatação das necessidades dos solicitantes da ajuda(MARTINELLI, 1996). A organização da prática da assistência, como expressão da caridade cristã, além de ter integrado o temário de vários Concílios, foi objeto de preocupação de muitos teólogos e membros destacados da Igreja, como São Paulo, São Domingos, Santo Agostinho, Santo Ambrósio, São Francisco, São Bernardo e São Bento, dentre outros (MARTINELLI, 1996). A Igreja Católica foi distanciando-se dos pobres a aliando-se a burguesia e suas propostas de ação assistencial só aprofundava cada vez mais o fosso entre os poderosos e os indigentes. E uma série de acusações de ganância da Igreja abriu as portas para a Reforma Religiosa, da qual a Igreja saiu dividida em dois campos: o catolicismo e o protestantismo que tem em Martim Lutero e seu criador (MARTINELLI, 1996). O protestantismo proclama a supremacia da fé em relação à caridade e segundo esses ensinamentos o cumprimento dos princípios da fé era responsabilidades de cada pessoa e a organização da prática da caridade é de responsabilidade do Estado e não da Igreja. São Luís – MA, 23 a 26 de agosto 2005 4 Desta forma a assistência, neste período, configura-se de diversas maneiras, variando de país para país de acordo com o grau de influência do Protestantismo ou do Catolicismo. Em 1869, face à emergência de movimentos dos trabalhadores é criada na Inglaterra, a partir de uma aliança do Estado da Igreja e da burguesia, a COS-Sociedade de Organização da Caridade. A função desta sociedade é de controlar as múltiplas expressões da “questão social” que nasce da contradição capital x trabalho. A vertiginosa pauperização ameaça a ordem estabelecida pela sociedade capitalista emergente e requer ações de contenção (MARTINELLI, 1996). A ênfase das ações era voltada para a saúde, higiene, educação e reforma moral da classe subordinada, agora transformada em classe trabalhadora em potencial. Essa sociedade ultrapassou as fronteiras do continente europeu e em 1907 os registros já apontavam para a existência de 180 sedes nos Estados Unidos. Em 1893, a sede inglesa ofereceu o primeiro Curso de Formação de Visitadores Voluntários, em Londres. A intenção destas visitas era conhecer “in loco” as condições de moradia e de saúde da classe trabalhadora e de socializar o modo capitalista de pensar (MARTINELLI, 1996). O agravamento da “questão social”, no século XIX, criou uma demanda de qualificação dos agentes para o exercício profissional, daí a criação da primeira Escola de Filantropia Aplicada em Nova Iorque e logo após na Europa. A criação destas Escolas foi o marco importante para a sistematização do ensino do Serviço Social, bem como para seu processo de profissionalização e institucionalização (MARTINELLI, 1996). A concepção dominante na sociedade burguesa era de que os problemas sociais estavam associados a problemas de caráter, desta maneira o serviço social era “uma ação dotada de força reintegradora, um instrumento de reforma de caráter”. (MARTINELLI,1996). Garantir a reprodução das relações sociais de produção capitalista era um objetivo fundamental para a burguesia. Aos assistentes sociais era delegado um papel de grande importância, uma vez que representavam o Estado perante a população e sua identidade era aquela atribuída pela sociedade burguesa constituída: uma estratégia de controle social e de difusão do modo de pensar capitalista(MARTINELLI,1996; IAMAMOTO,1998 ). No Brasil as instituições de caridade surgem em São Paulo na década de 20, a reboque do processo da industrialização, como um movimento laico no interior da Ação Social Católica. Em 1932 foi criado em São Paulo o CEAS - Centro de Estudos e Ação Social, tendo sido promovido o Curso Intensivo de Formação Social para Moças. O objetivo central do CEAS era promover a formação de seus membros pelo estudo da doutrina social da Igreja e fundamentar sua ação nessa formação doutrinária e no conhecimento São Luís – MA, 23 a 26 de agosto 2005 5 aprofundado dos problemas sociais. As bases interventivas são pautadas na visão de que a sociedade é harmônica e os “desviados” têm de ser reajustados a esta ordem (IAMAMOTO, 1998, p. 165-186). Interessante ressaltar a presença feminina na profissão, conforme Tese apresentada no Congresso em 1933 em São Paulo: [...] Não somente é justificável a ação feminina social como ainda é indispensável [...] não tem a mulher, na sociedade a missão de educar? Imaginem a restauração da família sem a cooperação da mulher: a remodelação da mentalidade, de hábitos e de costumes que irão depois influir na economia e nas leis do país, tem de ser, toda ela, trabalho da mulher, em qualquer classe da sociedade[...]. (IAMAMOTO, 1998, p. 172). Da década de 30 até o século XXI o Serviço Social passou por um reordenamento no arcabouço teórico-metodológico, principalmente a partir de 1970 com o Movimento de Reconceituação na América Latina e em 1980 com a apropriação da teoria critico-dialética da realidade, pautada numa visão de homem protagonista de sua história e da percepção da realidade enquanto totalidade, numa expressão marxista (IAMAMOTO, 1998). O Serviço Social é uma ciência humana aplicada com grande produção científica. A profissão se insere na divisão social e técnica do trabalho, e é regulamenta por Lei, por um Código de Ética Profissional, com um Projeto Ético-Político muito bem delineado. No entanto, embora haja um reconhecimento profissional em algumas instâncias, a representação no senso comum do profissional ainda apresenta vestígios de épocas remotas. Quando o senso comum aponta a “moça boazinha” e “a cinta-liga e colar de pérolas” na verdade está ancorado (no conhecido) nas moças de classe abastada, católicas, caridosas e piedosas que faziam o trabalho assistencialista e que, de certa forma, foram substituídas por profissionais da assistência social. Segundo Jovchelovitch (1995, p. 78 apud LEITE, 2002, p.116) “não há possibilidade para a construção simbólica fora de uma rede de significados já constituídos. É sobre e dentro dessa rede que se dão os trabalhos do sujeito de re-criar o que já está lá.” Continuando a análise da fala do usuário das políticas de assistência: “Assistente social é uma moça boazinha que o governo paga para ter dó dos pobres” , destacando a palavra “moça” nos reportamos a questão de gênero da profissão. Uma característica marcante do início da profissão que persiste até hoje é a feminilização da profissão, este fato denuncia uma representação da mulher como dotada das qualidades subjetivas – protetora, cuidadora, mãe - necessárias à prática da assistência (ou seria do São Luís – MA, 23 a 26 de agosto 2005 6 assistencialismo?). Isto fica muito claro na figura da “primeira-dama” que geralmente assume a Secretaria de Ação Social Estadual e Municipal. Na frase “dó dos pobres” evidencia-se que o pobre se identifica como digno de pena, com a marca da inferioridade e receptor das benesses do Estado, longe de se pensar como um cidadão de direitos e de perceber as expressões da “questão social” na qual está imerso como conseqüência da contradição do modo de produção capitalista. Assim se identifica por que assim é representado. 4 CONCLUSÃO O resultado da pesquisa fornece subsídios para concluir que a representação no senso comum do Assistente Social (Representação Social) foi construída ao longo do processo histórico da prática da assistência - que desde a antiguidade esteve ligada a noção de caridade - e também a partir da história da própria profissão, visto que as primeiras assistentes sociais eram moças abastadas e religiosas. Ressalta-se que toda identidade é sempre historicamente um derivado da vivência humana em sociedade. O assistente Social cada vez mais é chamado à formulação, implantação e implementação das políticas sociais. Para o êxito nessa tarefa é necessário que o profissional, além da apreensão teórica e política específica, tenha clareza de como está representado pelos diferentes atores sociais, principalmente pelos usuários dessas políticas, que em geral são os mais pobres. Isso porque a representação antecede a ação organizando e orientando as condutas, portanto todo esforço deve ser empreendido no sentido de explicitar ao usuário que sua condição é de sujeito de direito numa situação social construída historicamente e não simplesmente como beneficiários ou depositários de benesses previstas em leis. A partir desse entendimento haverá a possibilidade de uma reformatação da representação social do assistente social e conseqüentemente uma potencialização do caráter emancipatório dessas políticas. Explicando melhor: a possibilidade de emancipação dos usuários das políticas sociais se dá a partir do momento que estes substituem a noção de caridade da assistência pela noção de direitos e conseqüentemente percebem o Assistente Social, como um trabalhador e não como um protetor caridoso e piedoso. Além do que essa compreensão contribui para a superação dos instrumentos e técnicas concebidas na racionalidade burguesa para soluções imediatas, no sentido de uma compreensão mais ampla das conseqüências que no nível mediato as ações profissionais produzem. São Luís – MA, 23 a 26 de agosto 2005 7 REFERÊNCIAS IAMAMOTO, Marilda Vilela. Relações Sociais e Serviço Social no Brasil. São Paulo: Cortez, 1998. JODELET, Denise. Representações sociais: um conceito em expansão. In: _____.(org.) As representações sociais. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2001. Primeira Parte, Capítulo 1, p. 1744. ________. A alteridade como produto e processo psicossocial. In: ARRUDA, Angela (Org.) Representando a alteridade. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 47-67. LEITE, Izildo Corrêa. Desconhecimento, piedade e distância: representações da miséria e dos miseráveis em segmentos sociais não atingidos pela pobreza. 2002. Tese (Doutorado em Sociologia) - Faculdade de Ciências e Letras -Campus de Araraquara, Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Araraquara – SP, 2002. MARTINELLI, Maria Lucia. Serviço Social: Identidade e Alienação. São Paulo: Cortez, 1996. SÁ, Celso Pereira de. Representações sociais: o conceito e o estado atual da teoria. In: SPINK, Mary Jane Paris (Org.). O conhecimento no cotidiano: representações sociais na perspectiva da psicologia social. São Paulo: Brasiliense, 1995. SARTI, Cynthia Andersen, A família como espelho: um estudo sobre a moral dos pobres. São Paulo: Autores Associados, 1996. TELLES, Vera da Silva. Pobreza e cidadania: dilemas do Brasil contemporâneo. Caderno CRH. Salvador, n. 19, 8-21, jul./dez. 1993. VALLADARES, Lícia. Cem anos pensando a pobreza (urbana) no Brasil. In: BOSCHI, Renato R. (Org.) Corporativismo e desigualdade: a construção do espaço público no Brasil. Rio de Janeiro:IUERJ; São Paulo: Vértice, 1991. ______. 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