Antropologia, Educação e Cidadania Claudia William Fonseca* 1. O processo dialógico Hoje em dia, fala-se muito em “diálogos”. Geralmente, estamos de acordo sobre a necessidade de um “método dialógico” para o processo de aprendizagem. A fim de promover a participação política e a democracia, reconhecemos a necessidade de estabelecer um diálogo entre os diferentes grupos da sociedade civil. Mas será que já pensamos nas implicações do lema? Inicialmente, para termos um diálogo, é preciso termos comunicação entre dois pólos positivos, uma forma de troca ou de descoberta mútua. No ensino tradicional – livresco - não há diálogo. O aluno é visto, na melhor das hipóteses, como uma folha branca, pronta para absorver os ensinamentos escolares. Contudo, em muitos casos, o aluno começa a menos zero, pois é diagnosticado principalmente em termos de carências e faltas. Aliás, é sintomático que a ciência pedagógica possui inúmeros instrumentos para localizar as lacunas na formação do aluno e procurar a sua originalidade, especialmente a do tipo que extrapola o conhecimento clássico, o que requer instrumentos de uma sofisticação infinitamente maior. Quadro 1 Formato clássico do processo educativo + → - Um caminho de mão única entre quem possui o conhecimento e quem carece do conhecimento. * Mestre em Artes pela Universidade de Kansas, USA, na área de Antropologia, Doutora em Sociologia na Escola de Altos Estudos da Universidade de Paris, especialista em Antropologia Social pela UNESCO, professora de Antropologia Social do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação da UFRGS. Assim, para participar de um diálogo a pessoa precisa tanto escutar quanto falar, precisa se interessar pelo seu interlocutor precisa acreditar que este tem algo para lhe ensinar. Se esse processo de assim “positivar” a imagem do outro já é difícil, em se tratando da relação adulto/criança é mais problemática ainda, quando - como em tantas escolas brasileiras- o adulto é da classe média e a criança dos grupos populares. Muitas vezes, o professor nem se dá conta do caráter essencialmente negativo da imagem que ela projeta dos alunos “carentes”. Com a melhor das intenções, ele procura “resgatar a humanidade” da criança, localiza o aluno com “potencial” e procura reformá-lo, separando seu destino do de sua família (“desestruturada”) e de seus vizinhos... Quadro 2 “Resgatando a humanidade” do aluno negando sua identidade de grupo Professor + Aluno → família criança grupo social Não estamos negando o bom senso dos objetivos educacionais básicos. Estamos de acordo que é desejável desenvolver nos alunos certas habilidades do mundo escrito e que os alunos têm potencial para adquirir essas habilidades. Entretanto, é uma linha tênue que separa o ensinar do disciplinar. Uma coisa é pegar crianças isoladas e inculcar nelas os bons modos, crenças e valores da sociedade dominante e é outra coisa dialogar com sujeitos históricos que têm uma vasta bagagem cultural. Portanto, participar de uma troca de experiências e conhecimentos significa provocar transformações tanto no professor quanto no aluno. Para tanto, é necessário encarar as crianças enquanto integrantes de grupos sociais historicamente constituídos. Não se trata de cair num romantismo retrógrado, idealizando o modo de vida destes grupos como algo mais “natural”, “autêntico” ou “espontâneo”, etc. Antes, trata-se de reconhecer valores familiares e sociais particulares, gerados por pessoas inteligentes a partir de sua experiência de vida. O “plus” da equação (veja quadro 3) não representa mais a idéia de algo moralmente superior. Representa a idéia de algo moralmente superior, a ser preservado e transmitido a toda humanidade. Ainda, representa a idéia de um determinado sistema de pensamento cultural a ser investigado e compreendido. O professor, ao reconhecer “lógicas alternativas” razoavelmente bem adaptadas a um determinado contexto, inicia o árduo trabalho de colocar em perspectiva sua própria lógica (também fruto da experiência de vida de uma determinada classe histórica). Assim, a partir daí, pode começar o diálogo. Quadro 3 O início do processo dialógico Professor e aluno enquanto sujeitos históricos Professor Família Indivíduo + + + Aluno ↔ + + Família + Indivíduo Grupo social Grupo social O professor passa a considerar seus próprios valores como fruto de uma dinâmica familiar, da vivência de um determinado grupo social. 2. Construção e desconstrução no método antropológico Na cabeça de muita gente, a antropologia ainda é sinônimo do pensamento evolucionista do século dezenove. Assim como as demais ciências sociais é verdade que a nossa disciplina começou no mundo da Europa colonialista onde os teóricos pensavam em termos de povos “primitivos” e povos “civilizados”. Faziam de seu mundo o centro do universo, o topo moral do processo evolucionário e classificavam o resto da humanidade em função de quem estava mais perto ou mais longe deles. Certos pensadores, menos à vontade com as implicações deste tipo de raciocínio, abraçaram uma espécie de “etnocentrismo às avessas”. Retornaram de Rosseau a idéia de que tribos “primitivas” são moralmente superiores, mais “naturais” ou “espontâneas” do que nós. De certa forma, estavam mantendo a lógica evolucionista, simplesmente trocando os elementos dentro dela. Os critérios pelos quais julgavam o que era “natural” e “espontâneo”, isto é, os valores que glorificavam a imagem do “bom selvagem”, eram, casualmente, todos tirados do mundo da aristocracia européia. A imagem do “bom selvagem” nada mais era do que uma projeção daquele sistema de valores, talhada para confirmar os (pré) conceitos daquela cultura. Todo o trabalho das últimas décadas tem sido no sentido de desconstruir a visão “etnocêntrica” do mundo para escapar aos ardis tanto do preconceito racista como do romantismo rousseauniano. Agora tentamos freiar a nossa ânsia de julgar e hierarquizar, para primeiro compreender o comportamento dos outros. Fala-se muito em “alteridade”, procura-se captar a “lógica do outro” - um processo que não é tão óbvio quanto poderia parecer à primeira vista. Isso por que implica no esforço de sair de nosso próprio sistema simbólico - que nos acompanha como o ar que respiramos- para tentar penetrar no sistema do “outro”. Implica em reconhecer que nosso sistema de pensamento –científico, moral, intelectual - longe de ser a suprasúmula do desenvolvimento humano é um sistema entre outros. O conceito de cultura, tal como é empregado pela grande maioria de antropólogos contemporâneos, representa uma negação do pensamento evolucionista novecentista. A única coisa que é inerente ao ser humano, e que todos os povos têm em comum, é a fabricação de um universo simbólico, um sistema cultural que atribui significados aos elementos da existência e que dota a vida de um sentido. No entanto, o conteúdo específico destes significados assume um número quase infinito de formas. Em todos os grupos sociais, por exemplo, existem práticas que parecem com aquilo que chamamos “casamento”. Entretanto, se não levarmos em conta a configuração de valores que circunda estas práticas em cada contexto, não compreenderemos grande coisa. Entre os Todas da Índia, marido e mulher nunca chegam a morar juntos, a esposa mora com seus próprios irmãos, gerando filhos com uma série de amantes oficiais. Em outro grupo, agora da África Oriental, achamos uma espécie de casamento entre duas mulheres – rito acionado para assegurar a descendência da linhagem quando a herdeira principal é uma mulher estéril. Em ainda outro, nós vemos mulheres oficialmente casadas com meninos de dez a quinze anos mais jovens, que elas ajudam a criar antes de assumir a vida conjugal.1 Em outras palavras, os antropólogos acham inúmeros exemplos e ainda em sociedades relativamente complexas, que contradizem tudo que imaginamos, em nossa cultura, como sendo o comportamento “natural”. Muitas vezes, quando faço uma conferência, sinto que a platéia está esperando que eu, o antropólogo, venha dar a última palavra sobre o que é verdadeiramente “natural” ao ser humano: casamento monogâmico ou promiscuidade sexual, ganância ou generosidade, a mentalidade autoritária ou democrática, racionalismo ou magia...? Querem uma definição clara da “essência” humana para assim decretar todos os outros comportamentos e valores como alienantes “obstáculos” ao progresso, etc. Eu, como a maioria dos antropólogos hoje, não usaria a noção “natural”. No seu lugar, falaria de “normal” e ainda com grande cautela. Desta forma, é um “normal” definido segundo as normas postuladas pelo grupo social e não pela “natureza”. Em um lugar, a comunidade pode considerar “normal” as mulheres casadas terem amantes, em outro, tal comportamento pode chocar de tal forma que provoca a desagregação do grupo. É justamente essa variabilidade de formas culturais que impede o pesquisador de chegar a conclusões apressadas sobre qualquer grupo social e que o obriga a olhar, observar, para chegar a entender o que naquele lugar específico é normal. No ensino da antropologia, gostamos de dizer que o estudante não deve levar idéias pré-concebidas para a pesquisa de campo. Certamente ele tem a obrigação familiarizar-se com as teorias científicas pertinentes ao problema e à comunidade que quer estudar. O pesquisador não vai para o campo de cabeça 1 O artigo clássico que relativiza essas noções é: LEVY-STRAUSS, Claude. 1956. “A família”. In Homem, cultura e sociedade. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura. vazia, esperando ser “iluminado pelos fatos”, mas deve estar sempre consciente de que o material “científico” não fornece mais do que conjecturas hipotéticas, isto é, hipóteses que quase por definição, se modificam com cada confronto à realidade. É por isso que seria difícil para eu comunicar a vocês quaisquer “regras” sobre valores e comportamentos em famílias de grupos populares. A partir das minhas experiências em bairros periféricos de Porto Alegre, montei diversas hipóteses: que a unidade significativa de organização social é a família extensa; que essa família extensa prioriza laços consangüíneos antes do que a relação conjugal; e que a circulação de crianças entre diferentes mães de criação faz, historicamente, parte da dinâmica familiar destes grupos.2 Enquanto hipóteses são idéias válidas, mas jamais poderíamos pressupor que mecanicamente às pessoas com as quais vocês estão lidando. se apliquem Muitas teorias deveriam constar, entre outras, no repertório de “explicações possíveis”, eventualmente úteis para esclarecer o comportamento familiar em determinados grupos. Contudo, este corpus teórico não pode jamais eximir o agente social da responsabilidade de “descobrir” ele mesmo a realidade, complexa, heterogênea e cambiante, em que está atuando. É neste sentido, que a contribuição da antropologia para este debate vem mais de seu método do que de seu estoque de conhecimentos. O famoso “estranhamento” do método antropológico, herdado das nossas andanças em lugares exóticos, nada mais é do que esta desconfiança diante de receitas fixas, esta sensação de que diante de cada experiência é necessário construir uma nova análise. 3. A cidadania: um campo desafiador de investigação Agora voltemos a nossa atenção para os grupos populares aqui no Brasil. Vivemos em econômicas uma e sociedade políticas de classes ultrapassam os onde as limites desigualdades da imaginação. sociais, Essas desigualdades são responsáveis pela situação de “apartação” reinante, na qual, muitas vezes, “rico” e “pobre” só se encontram em situações de faxina ou assalto. Por um lado condomínios de luxo, rodeados de grades de ferro, por outro, favelas que se estendem até os quatro horizontes, levando a justaposição, 2 Ver vídeo etnográfico “Ciranda, cirandinha: Histórias de circulação de crianças em grupos populares”, Laboratório de Antropologia Social, PPG em Antropologia Social, UFRGS. na mesma sociedade, de modos de vida radicalmente diferentes um do outro. É responsabilidade de todo cidadão zelar pela erradicação desta desigualdade, resultado de estruturas políticas e econômicas perversas. As diferenças culturais que existem no Brasil são, sem dúvida nenhuma, em parte ligadas a esta desigualdade, mas são ligadas enquanto conseqüência e não causa. Ao mesmo tempo em que obramos para mudar a situação ao nível estrutural, devemos, na medida do possível, tentar compreender a lógica dos sistemas simbólicos que surgiram em função do atual contexto, mas essa compreensão não pode se dar num processo autoritário. Esta só pode se dar através de um processo dialógico em que, eventualmente, as próprias categorias do “observador” se transformem em função do contato intersubjetivo. Podemos tomar a noção de cidadania como exemplo. Existem definições claras sobre o que é a cidadania- definições inscritas nos livros políticos e nas cláusulas da Constituição. Montamos todo um sistema institucional para corresponder a esta noção e ficamos frustados quando constatamos a relutância entre integrantes das classes trabalhadoras de exercer os direitos que lhes foram outorgados. Muito dos esforços dos educadores é no sentido de estimular ou reforçar, entre seus alunos, as “atitudes adequadas à democracia moderna”. No entanto, a indignação diante da injustiça social e a boa vontade não bastam para viabilizar a transformação da sociedade que almejamos. Há um perigo que esta indignação saia pela culatra, levando a uma visão esterotipada da realidade e barrando o caminho para uma compreensão aprofundada da visão dos sujeitos. Na história recente, temos diversos exemplos deste tipo de erro. A denúncia tende a pintar os grupos populares de vítimas ou de santos. Considerados durante os anos setenta como “atrasados”, estes grupos foram alvo de inúmeras campanhas educativas promovidas para superar sua "mentalidade tradicional". No final dos anos setenta, veio à tona uma nova filosofia pedagógica “libertadora”, calcada na experiência de vida dos alunos. Porém, as sutilezas dialógicas da teoria original foram se perdendo com as tentativas sucessivas. Muitas campanhas educativas simplesmente substituíram o antigo rótulo “ignorante” pelo novo “alienado”, deixando, neste caso, a “conscientização” a repetir os mesmos erros do processo autoritário que a precedeu. Enquanto os educadores continuarem colocando a culpa pela pobreza nas “mentalidades” (atrasadas ou alienadas) dos grupos trabalhadores, o processo educativo seguirá os moldes tradicionais- a mão única- de um “plus” para “menos”. Pelo contrário, o reconhecimento das causas estruturais da pobreza abre o caminho para um processo dialógico entre diversos grupos e para a ação, eventualmente em conjunto, que transformará a sociedade. Para o novo lema “cidadania” ter efeito, terá que representar mais do que uma modificação de retórica, terá que ser acompanhado por cada educador, por cada segmento social. Aqui, não é questão de negar a validade dos direitos fundamentais da cidadania. Certamente, todo indivíduo deve possuir conhecimentos sobre o sistema partidário, o funcionamento básico das instituições políticas, etc. No entanto, o Brasil representa um contexto histórico particular em que pode haver outras formas de participação política, formas populares, por exemplo, que não previstas pelos legisladores. Há, por exemplo, uma mobilização significativa da coletividade em torno de clubes de futebol, escolas de samba e até mesmo em terreiros de religião. Num registro um pouco diferente, os arrastões e os saques de supermercados também poderiam ser interpretados como reivindicação pelos direitos fundamentais de cidadania. O problema que se coloca é como modificar o aparato institucional do país para que ele se torne mais sensível a estas formas de participação. Ou, a um nível mais modesto, como professor, na sala de aula, ou em confronto com pais de alunos, pode ser sensível a formas diferentes de expressão que levem ao “pleno exercício de cidadania”.