Quem são os informantes? Algumas reflexões sobre técnicas antropológicas e jornalísticas para obtenção de informações1 Silvia Garcia Nogueira UEPB/Paraíba/Brasil Resumo A pesquisa de campo a ser realizada pelo antropólogo sempre demanda tomadas de decisões práticas estratégicas e planejamentos adotados previamente com o objetivo de que tudo dê certo. A entrada no campo, em geral, é marcada por uma combinação de otimismo inicial e ansiedade frente ao desconhecido. Constitui-se ainda como o momento em que o domínio das teorias, o conhecimentos metodológico e a fé na ciência muitas vezes leva o antropólogo a acreditar que é dotado de uma habilidade técnica não compartilhada pelos nativos sobre os quais tecerá comentários analíticos e etnográficos. Ao longo do trabalho de pesquisa, não raramente, ele se comporta como sendo “aquele” que está fazendo a observação-participante, realizando entrevistas formais e informais e utilizando outros recursos para captação de dados e posterior análise. Diante disso, este trabalho pretende tecer uma reflexão sobre os posicionamentos e dificuldades do antropólogo no campo, em especial quando este é composto por “nativos” que utilizam - senão as mesmas - ao menos semelhantes técnicas para obtenção de dados: os profissionais da imprensa. Palavras-chave: antropólogos e jornalistas; pesquisa de campo; etnografia dos meios de comunicação **** 1 Trabalho apresentado na 27ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de agosto de 2010, Belém,Pará, Brasil. - É melhor nós irmos para o estúdio de gravação, que a qualidade da gravação fica melhor. - Tá bom. [no estúdio] Tô gravando. - [com voz impostada] Eu sou (nome) e hoje é dia (data). [Desligando o gravador] Vamos ver se a gravação ficou boa.[ouvindo a gravação]. Está ótima. Vamos continuar. O diálogo acima poderia ter sido travado entre um repórter e sua fonte, em uma situação de entrevista cotidiana. No entanto, ele ocorreu durante uma pesquisa de campo realizada em Ilhéus, no Sul da Bahia, em 2002, envolvendo um radialista e eu, antropóloga que realizava entrevistas gravadas sobre trajetórias de vida dos radialistas atuantes no município, dentro de uma investigação sobre o universo radiofônico local. Longe de ser um acontecimento episódico, ao longo do processo de realização das cerca de 60 entrevistas, cena semelhante se repetiu várias vezes. Os informantes preocupavam-se com a qualidade da gravação, com a impostação de suas vozes, com a clareza das frases, com a inteligibilidade do que diziam e alguns pediam que certas passagens de seus relatos fossem consideradas em off (ou seja, não fossem publicizadas, tratadas como sigilosas). No desenrolar das entrevistas, ao lado de minhas perguntas, figuravam indagações deles sobre minha trajetória, minha vida e minha opinião sobre os mais diversos assuntos, proferidas em tons às vezes formais às vezes não. Nesses encontros, claro, em geral, procurava retornar a meus propósitos iniciais de ouvi-los e tentar compreender suas interpretações de si e do mundo que o cercavam, além de aprofundar algum fato ocorrido pouco compreendido por mim somente com a observação. Mas isso ocorria somente em parte das entrevistas. Ao longo de várias delas, conseguia perceber a inversão de papéis quando eu respondia como se fosse a informante e os entrevistados como se fossem os interessados em me conhecer. Na verdade, atuei realmente como informante - preocupada com o que eu iria dizer, com o que iriam achar, com o meu tom de voz - e eles pareciam mesmo estar interessados no que eu tinha a dizer, formulando perguntas encadeadas e aprofundando alguns assuntos sobre os quais tinham mais interesse. Eu simplesmente me deixava levar, respondendo às perguntas e comentários nativos. Confesso que várias vezes nos instantes mesmos em que as entrevistas se desenrolavam, deixei-me capturar por meus interlocutores: fui seduzida por tons de vozes2, por perguntas bem formuladas e tinha a preocupação de responder algo que não desagradasse a eles. Ao reler anos depois meu diário de campo - no qual depois de algumas dessas situações registrei a sensação recorrente que qualifiquei na época como estranha -, a experiência em Ilhéus me levou a refletir sobre as técnicas de coleta de dados junto a jornalistas3 e radialistas, ao longo de mais de uma década de estudo antropológico sobre os meios de comunicação de massa, particularmente com abordagem etnográfica, e alguns anos de experiência como jornalista. Esse passeio intelectual me estimulou a pensar sobre as especificidades metodológicas de se realizar pesquisas junto a grupos que possuem técnicas profissionais semelhantes - no caso, jornalistas/radialistas e antropólogos -, embora os objetivos norteadores dessas práticas sejam bem diversas. Diante disso, este trabalho corresponde a uma tentativa inicial de reflexão sobre os pontos de convergência entre o ofício de jornalista/radialista e o de antropólogo, a partir do domínio de algumas técnicas utilizadas para a obtenção de informações, e alguns efeitos dessa interseção sobre a pesquisa etnográfica do campo jornalístico/radiofônico. Para isso, além das minhas próprias vivências, três textos serão adotados como referências principais: o artigo “Reflexões sobre como fazer trabalho de campo”4, do antropólogo Carlos Rodrigues Brandão (2007); o livro A Arte de Entrevistar Bem, da jornalista Thaís Oyama (2009); e a comunicação da jornalista e antropóloga Isabel Travancas, “Jornalistas e antropólogos – semelhanças e distinções da prática profissional” (2002). A escolha dos dois primeiros autores se baseia na percepção de que ambos expressam interpretações nativas compartilhadas por cada um dos campos a respeito de como antropólogos e jornalistas em formação devem proceder no desempenho de suas 2 Para uma análise mais completa sobre a importância das vozes (tons, timbres, dicção, etc.) no universo radiofônico ver Nogueira (2005, capítulo 5). 3 Os jornalistas foram tema de investigação durante uma pesquisa realizada no mestrado, que resultou na dissertação intitulada A construção das notícias em dois jornais cariocas: uma abordagem etnográfica, no Museu Nacional, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, defendida em 1998. 4 Na verdade, o artigo publicado na revista Sociedade e Cultura v. 10, n. 1, jan/jun, 2007, p. 11-27, é uma transcrição de uma entrevista gravada com o autor por Niuvenius Paoli, cujo objetivo seria transmitir a professores e alunos da Universidade Federal de Minas Gerais práticas de campo. Ela ocorreu no início da década de 1980, com Roberto Lima observa no artigo ao apresentar a transcrição editada. principais atividades profissionais no que se referem à coleta de dados – a pesquisa de campo, no primeiro caso, e a entrevista, no segundo. No caso de Travancas, por se constituir já uma reflexão sobre essa aproximação entre o fazer jornalístico e o fazer antropológico. Este trabalho, portanto, divide-se em três partes. A primeira traz experiências etnográficas pessoais a partir de pesquisa realizada junto a jornalistas e radialistas. A segunda parte procura apresentar superficialmente algumas técnicas e atitudes semelhantes a antropólogos e jornalistas no que se refere à coleta de dados. Finalmente, na terceira parte procura-se dialogar com o trabalho de Travancas, focalizando uma reflexão metodológica sobre o encontro entre o campo jornalístico/radiofônico e o antropológico. Antes, durante e depois: técnicas e atitudes para coleta de dados Antes de entrar no campo ou realizar uma entrevista, antropólogos e jornalistas compartilham o que pode ser entendido como um “dever de casa”, ou seja, um procedimento obrigatório para que seu trabalho tenha boa qualidade (científica ou jornalística): conhecer e ter lido obras e documentos que versem sobre o objeto de investigação, dominar teorias e técnicas úteis à captação e análise de informações, conhecer o máximo possível sobre o “outro” (nativos e fontes, e o universo social no qual estão inseridos) de quem se extrairá dados. Em poucas palavras, é indispensável a realização de uma pesquisa anterior sobre quem ou o que se pretende conhecer. A esse respeito, tanto Brandão quanto Oyama, didaticamente apresentam seus próprios passos iniciais. Brandão (2007:23) relata que quando chega numa comunidade, procura, “em primeiro lugar, chegar com algum conhecimento prévio”. Oyama diz que antes de fazer uma entrevista, “seja ela de informação ou de perfil”, mergulha na leitura da maior quantidade possível de material publicado sobre e pelo entrevistado. “No caso da entrevista-perfil, aquela em que o foco está no entrevistado e não no assunto do qual ele trata, gosto também de conversar antes com seus amigos e inimigos” (Oyama 2007:15). Isso porque, como analisa a jornalista, a entrevista bem-sucedida é resultado de um conjunto de fatores que, “desgraçadamente, independe do repórter”. Mas, entre as “variáveis que determinam o destino de uma entrevista, a única que é de exclusivo domínio do repórter, excetuando-se, evidentemente o seu talento, é a pesquisa” (2009:13). E nisso também se assemelha às incertezas do ofício antropológico: quando se entra em um campo pela primeira vez, nunca se sabe como ele será, não existem resultados esperados nem hipóteses a serem confirmadas. Também não é possível prever de que forma observadores e observados, analistas e nativos, irão interagir, nem em que bases. Particularmente no que se refere à situação de entrevista, e o tipo de interação social entre os agentes, Brandão e Oyama classificam em seus trabalhos os diferentes tipos de entrevistas ou de entrevistados, trazendo informações pessoais sobre como se comportam quando entrevistam alguém. O antropólogo aponta três tipos de entrevistados: 1) entrevistado de dado (pobre de experiência, ou fechado, de quem se extrai poucos dados; 2) o informante que dá material crítico, sujeito que fala, que explica, que interpreta fatos e conta história de vida; 3) o informante especialista, que produz dados populares com precisão, entende profundamente da coisa e fala como um especialista (Brandão 2007: 20-21). Do ponto de vista do procedimento da entrevista em si, faz perguntas coladas no que o informante dizia, utilizando categorias das pessoas, e ainda perguntas com um roteiro pré-definido - mas mesmo nesses casos diz respeitar o entrevistado e suas categorias. Sua preocupação é com a resposta de espelho, em que ele vai responder para o analista aquilo que ele quer dizer, porque é aquilo que o analista quer ouvir (:26). A jornalista qualifica os tipos de entrevista pelos objetivos a elas relacionados. Citando Nilson Lage (2006), para quem existem nesse sentido, quatro categorias de entrevistas (ritual, temática, testemunhal e em profundidade5), Oyama (2009:8) prefere resumir a dois tipos principais:1) a de informação e 2) a de perfil (mostrar quem é o entrevistado). A relação com o entrevistado no ato da entrevista também se aproxima do relato de Brandão: as questões relativas às entrevistas são mais “tópicos e lembretes” (:16) do que um conjunto fechado de perguntas precisas, para não afetar a “naturalidade” existente entre observador e observado. 5 Entrevista ritual seria quase uma formalidade, breve e “feita em pé”; temática é aquela em que o entrevistado fala sobre algo que supostamente domina; testemunhal é aquela em que o entrevistado fala sobre algo que participou ou assistiu; e em profundidade corresponde aquela em que o foco esta no entrevistado, em sua atividade ou sua personalidade (Oyama 2009:8). Outro passo importante para um bom trabalho de campo ou uma boa entrevista depende do modo como se chega. Brandão relata que costuma “passar algum tempo de ‘contaminação’ com o local”, não entra diretamente em relação de pesquisa, e que procura “espreitar” o contexto a partir do que ele chama de primeiro nível, o “sentir”. Mas o que se sente? “Como é que o lugar é, como é que as pessoas são, como é que eu me deixo envolver” (:13-14). Sob certos aspectos, e guardada as devidas proporções em relação ao fator tempo para antropólogos e jornalistas/radialistas6, Oyama também aponta para a importância de se quebrar o gelo, aquele momento anterior à entrevista propriamente dita: para a autora, uma entrevista deve ser uma conversa, e esta para começar, “exige um mínimo de cordialidade, simpatia e palavras jogadas fora”(:24). Outro elemento fundamental para as relações que se estabelecem entre aqueles de quem se extrai informações e os que as coletam é a empatia. Como lembra Favret-Sadah (2005), existem duas acepções para o termo: uma que supõe a distância, a partir da experimentação indireta de sensações, percepções e pensamentos do outro; a segunda relacionada à instantaneidade da comunicação que, na fusão com o outro, lhe permite conhecer por mecanismos de identificação os afetos de outrem. Tanto jornalistas quanto antropólogos estão de acordo que “as conversas” – para usar o termo de Oyama – tornam-se mais interessantes e proveitosas quando há empatia, pois a partir dela fica mais fácil o estabelecimento de uma relação de confiança e credibilidade entre nativos e antropólogos (condição fundamental para a realização da pesquisa), repórteres e fontes. Durante a coleta de um depoimento, seja para obter informações gerais, traçar perfil ou tecer trajetória de vida, um instrumento de coleta de dados em especial gera reflexão prévia sobre seu uso: o gravador. Gravar ou não uma entrevista ou um depoimento provoca debate acadêmico-profissional entre jornalistas7 e antropólogos. Os principais problemas detectados relacionam-se à inibição e ao cuidado excessivo do entrevistado com o que vai 6 Em geral, as atividades de jornalistas e radialistas lidam diferentemente com o fator tempo. Para Travancas (2002), o antropólogo “não corre atrás do tempo como o jornalista”, já que não sofre a pressão de um dead line (prazo final para se executar um trabalho) tão apertado (ver também Pereira 1998 sobre o tempo no jornalismo), já que o trabalho de campo não se resume a “algumas horas de conversa com os entrevistados”. Como a autora nos lembra, há o “tempo da partida e o da volta, da pesquisa e da escrita, e entre eles há o tempo da reflexão” . 7 No caso dos radialistas em particular a gravação é um item indispensável no exercício profissional. dizer, podendo levar ao efeito espelho de que fala Brandão. Diante da possibilidade de registro formal do que se conta, a falta de espontaneidade do informante quase sempre é o risco a ser enfrentado. Além disso, como lembra Oyama, ainda podem ocorrer problemas técnicos: a não gravação ou a gravação com baixa qualidade sonora por problemas técnicos das mais diversas naturezas (bateria fraca, ruído exterior, defeito mecânico, etc.). Por outro lado, do ponto de vista positivo, a fala do entrevistado é preservada tal como é, o entrevistador pode se concentrar mais na entrevista ou coleta de depoimento, e como ficou registrado, pode voltar à gravação sempre que quiser, podendo corrigir sua própria performance (Oyama 2009:19). Além da prática de se ouvir que é compartilhada – o que “me mostra falhas”, segundo Brandão (2007:22) -, a gravação possibilita a preservação da “riqueza” do discurso para o antropólogo (:21). Com exceção de uma reportagem investigativa, no caso de jornalistas, ambos os profissionais avisam sobre a utilização do gravador e tendem a respeitar, por uma questão ética, um pedido de off-record (não identificação da fonte ou supressão de algum trecho). Uma alternativa ou mesmo um instrumento tão ou mais importante que o gravador é o bloco de anotações do jornalista e o diário de campo do antropólogo8. Brandão, assim como quase todos os antropólogos, procura anotar o que observa no campo, de modo descritivo inicialmente – “descrever a banalidade do cotidiano” (2007:15) – e, depois, de modo mais articulado, conforme sua compreensão de “determinadas organizações e relações” vá aumentando. Paralelamente ao registro de uma descrição densa – para utilizar o termo clássico de Geertz (1989) -, registra-se ainda impressões, sentimentos e digressões do pesquisador9. No jornalismo, não raramente mesmo aqueles que gravam suas entrevistas costumam ainda registrar as informações em bloco de anotações. Em geral, ao contrário do diário de campo do antropólogo, os dados anotados tendem a ser codificados e sucintos, pela pressa e pelo fato de que, depois daquelas anotações serem publicadas sob forma de matérias, entrevistas ou o que for, tendem a perder seu sentido. 8 Embora aqui estejamos tecendo comparações superficiais entre o bloco de anotações do jornalistas e o diários de campo de antropólogos, acredita-se que o diário de campo na Antropologia e na produção de etnografias possui para a Antropologia importância simbólica e metodológica mais central do que a posição que o bloco de anotações ocupa no campo jornalístico. 9 Exatamente por funcionar também como um diário íntimo, quando seu conteúdo se torna público por algum motivo, em geral a aura científica construída em torno do antropólogo sofre impactos, tal como o clássico diário de Malinowski. Oyama (2009:20-21) vê as seguintes utilidades do uso do bloco: 1) funciona como backup caso o gravador de algum problema e ajuda a “rememorar a conversa”; 2) o lado interno da capa pode ser utilizado para anotar as perguntas ao entrevistados longe de seus olhares; 3) serve para registrar os raciocínios não finalizados pelo entrevistado e eventualmente retornar a esses pontos; 4) funciona como roteiro para edição da entrevista; 5) pode sinalizar mensagens para o entrevistado. O momento final, que fecha o ciclo do trabalho antropológico ou jornalístico, é o da edição 10 na escrita. Nela, escolhe-se o que descartar e o que reter, o modo de encadear as informações coletadas, a organização final do texto, e insere-se outros dados pertinentes e interpretações sobre o todo. Para isso utiliza-se tanto teorias (no caso antropológico), quanto dados provenientes de outras fontes. Quando se tratam de entrevistas e depoimentos gravados, jornalistas e antropólogos tendem a proceder do mesmo modo: ao fazerem a transcrição da fita, tendem a já organizar os conteúdos por blocos de assunto, para facilitar o trabalho na escrita do texto. Sobre a escrita em si – tema amplamente discutido por teóricos da Comunicação e da Antropologia -, como bem resumido por Travancas (2002)11, a principal discussão ocorre em torno da objetividade ou subjetividade do texto. E nisso a intenção da distância entre os dois campos é particularmente desejável pelos antropólogos, para os quais, como observa a autora, o textos jornalístico é superficial e descartável, de consumo imediato. Apesar disso, é interessante notar um ponto de interseção para além de tais discursos de diferenciação. O bom texto jornalístico para os próprios jornalistas é aquele no qual existe de algum modo um componente subjetivo que o particulariza dos demais – uma percepção, um olhar e eventualmente até a revelação pessoal dos sentimentos do repórter que participou do acontecimento no instante em que este se desenrolava. Para os antropólogos, o bom texto é aquele que exatamente por explicitar ao máximo a 10 Embora antropólogos não utilizem o termo, na verdade é isso o que se faz no momento da escrita da etnografia. No caso dos radialistas, também são realizadas edições sonoras, ou seja, seleciona-se o que irá ao ar e o que será descartado. 11 Alem da própria autora, em trabalho anterior (2005) teço um panorama sobre essa discussão, particularmente em relação ao campo jornalístico. Geertz (1989), Rorty (1991), Cardoso (1986), Velho (1978) são alguns dos muitos que discutiram essa questão no que se refere à Antropologia. subjetividade que a experiência da observação-participante no campo pressupõe12 - e, portanto, revelar o ponto de vista adotado para tecer a análise, incluindo-se como parte -, consegue alcançar o nível de objetividade científica desejada, podendo ser utilizado para se pensar teoricamente outros contextos culturais semelhantes. Etnografando jornalistas e radialistas Talvez uma das frases que mais li e ouvi repetidamente em textos e aulas expositivas de Antropologia nas graduações em Comunicação Social e Ciências Sociais, sobre a tarefa do antropólogo, tenha sido: “transformar o exótico em familiar e o familiar em exótico”, de Roberto Da Matta (1974). Paralelamente, durante a faculdade de jornalismo, íamos recebendo treinamento para perceber ou o que era extraordinário ou o que era muito comum, compartilhado. Foi com esses pressupostos profissionais que me lancei pela primeira vez na pesquisa etnográfica junto a jornalistas de duas grandes redações de jornais do Rio de Janeiro, durante o mestrado. Tratava-se da minha primeira experiência como antropóloga, uma identidade que ia sendo construída aos poucos, já que até aquele momento eu ainda me via como jornalista. Durante o Doutorado, já antropóloga, parti para Ilhéus, no Sul da Bahia, para fazer uma etnografia sobre os meios de comunicação locais. O foco final da tese recaiu sobre o universo radiofônico e seus múltiplos significados. Comparando os campos, tomando como referência a técnica da observaçãoparticipante, pode-se dizer que no primeiro fui mais observadora e no segundo mais participante. A familiaridade apontada por Da Matta e discutida por Velho (1981), entre outros autores, esteve presente sempre: ora eu simplesmente observava acontecimentos que não me eram completamente estranhos (as técnicas de entrevistas, redação, os ciclos das atividades nas redações marcados pelo tempo), ora desempenhava um papel que já havia desempenhado antes como jornalista (apurar algum dado, escrever algum texto, entrevistar por telefone, atender uma fonte ou uma fã, no caso do rádio) e ora era solicitada no campo como uma especialista ou uma companheira de trabalho (tecendo opiniões sobre um 12 Sem necessariamente resultar na etnografia do próprio antropólogo, numa autobiografia em que ele aparece mais que o grupo estudado. programa de televisão no ar, participando de um debate como uma estudiosa dos meios de comunicação, ajudando a produzir programas de rádio). Minha apresentação ao dar início à pesquisa variou. Nas redações de jornal no Rio, me apresentei como estudante de antropologia que estava fazendo pesquisa sobre o cotidiano da produção de notícias. Somente no meio do trabalho de campo revelei que era jornalista, apesar do conhecimento do fato por alguns que eu conhecia previamente e que trabalhavam em editorias diferentes das que acompanhei de perto - a editoria Geral, em um jornal, e a Nacional, em outro, lembrando que uma redação era composta por cerca de 100 profissionais e a outra por cerca de 300 pessoas. No caso de Ilhéus, me apresentei como alguém que estava fazendo pesquisa sobre os meios de comunicação locais, e meus interlocutores logo deduziram que eu era da área de comunicação13. Não neguei, e vários dos nossos diálogos iniciais variaram em torno da posição que eles achavam que eu ocupava naquele universo: como uma pessoa de dentro e como alguém de fora, mas não tão de fora assim. Em ambos os contextos, procurei fazer um pouco diferente do que em geral se recomenda. No caso das redações cariocas, antes de entrar no campo, procurei me distanciar do objeto de pesquisa. Ele me era muito familiar. A estratégia adotada para a construção de um mínimo de distanciamento ocorreu principalmente pela não leitura de bibliografia sobre o tema. Como as regras, os pressupostos e os valores profissionais de algum modo ainda estavam interiorizados pela minha atuação como repórter - no período que antecedeu os cinco meses de trabalho de campo - optei por ter o mínimo de contato com o assunto, investindo mais tempo em textos gerais e teóricos de antropologia. No caso da etnografia realizada em Ilhéus, como as atividades no rádio me eram menos familiares, minhas leituras se voltaram mais para conhecer a história da região, da cultura do cacau e seus significados sociais do que para os meios de comunicação, embora eu já o tivesse feito na ocasião da volta do campo nas redações de jornais. Sobre rádio, na época, conhecia apenas o que me foi ensinado na cadeira de Radiojornalismo. Em ambos os casos, minha opção metodológica sempre foi me deixar contaminar (tomando emprestado o termo de Brandão) no período inicial e confesso que durante quase 13 Com o passar do tempo expliquei que a pesquisa tinha um enfoque diferente do da Comunicação, e que não estava ali para julgar o trabalho deles – o que alguns profissionais pensavam no início de nossas interações. toda a pesquisa. Foi essa contaminação que me permitiu também ser afetada (agora para usar o termo de Favret-Sadah), particularmente durante a pesquisa entre os radialistas. Nas redações de jornal, em um primeiro momento, pela própria dinâmica local, eu observava muito – passava mais de dez horas fechada nas redações durante 5 ou 6 dias da semana -, reparando nos ritmos, nos comportamentos e eventualmente falando com alguém que em alguns raros momentos tinha disponibilidade para conversar. Duas vivências no campo exemplares, entretanto, quebraram o gelo (o termo agora foi emprestado de Oyama) e me fizeram lembrar da “tarefa antropológica” relativa ao familiar e ao exótico, e de como às vezes fica muito difícil perceber o que é familiar e o que é exótico, o que significa ser afetada e perder o “controle” nesse sentido. Uma delas ocorreu no dia das eleições em um dos jornais, o maior, no qual toda a redação estava voltada para a cobertura desse acontecimento: repórteres haviam sido deslocados de outras editorias para acompanhar candidatos, apurações e outras pautas. Na Nacional, que englobava a editoria de Política, o ritmo era frenético. Repórteres saiam e chegavam às redações o tempo todo, a cada apuração ou incidente iniciava-se novo enfoque e deslocamento para acompanhar o ocorrido, entrevistas foram feitas por telefone e assim foi o dia inteiro até o primeiro fechamento14. O segundo, terceiro e o quarto (em geral vai até o segundo) foram mais tranqüilos, correspondendo principalmente a atualizações de dados de resultados eleitorais. O último terminou cerca de 4 horas da manhã. Durante esse dia, e já mais próxima do próprio grupo, que a essa altura sabia que eu havia sido jornalista, no momento das atividades mais intensas de apuração das notícias, ofereci minha ajuda para uma repórter na redação, menos por interesse na pesquisa em si do que pelo compartilhamento da angústia do deadline que se aproximava. Ela nem chegou a me responder verbalmente: me passou o telefone avisando que eu estava entrevistando Denise Frossard, juíza na época com fama de durona e que havia proferido discursos na imprensa sobre a Lei Seca (que proibia a venda de bebidas alcoólicas durante o dia das eleições). A repórter me passou dois pontos - escritos em uma folha do bloco de anotações - que ela queria que eu abordasse para que pudesse completar a matéria sobre a Lei Seca. Claro que, além desses pontos, fiz outras perguntas. Depois disso, auxiliei ainda em mais 14 Fechamento é o termo nativo que indica que o processo de produção na redação terminou, e que o conteúdo não pode mais ser modificado, pois o passo seguinte é a impressão do jornal. Para mais informações ver Pereira (1998). tarefas e, no final de tudo, lá pelas 4h30 do dia seguinte, fui convidada para tomar um chope com a galera num bar de encontro de jornalistas no Leblon (zona sul do Rio de Janeiro). Outro episódio, registrado como menos agradável do que esse, foi o dia em que tomaram de minhas mãos em uma reunião de editoria o meu diário de campo. Eu participava dessa reunião e, ingenuamente, anotava as informações que considerava relevante. Em um momento tenso da reunião, fiz o que sempre fazia: escrevi o que estava acontecendo. O editor, que acabara de falar, notou meu registro e muito rapidamente quando me dei conta o diário estava sendo lido para os presentes, em especial um trecho que continha uma frase de um dos presentes. O comentário de um deles foi: “ela escreve até palavrões”. Cabe esclarecer que este fato ocorreu antes do anterior. E que rendeu a fama na redação de espiã – que foi como alguns me chamavam -, até esse status se modificar definitivamente com a participação no episódio anterior do chope com a galera. Ambas as experiências interpretadas com olhares atuais deixaram claro para mim que minhas habilidades como jornalista ajudaram no primeiro caso relatado, fazendo com que me aproximasse do grupo, por ter sido naquele instante considerada um deles. Diferentemente, no segundo, meus condicionamentos jornalísticos fizeram com que eu os tratasse como fontes de informações, tal como numa cobertura da imprensa comum, como se tivesse cobrindo a reunião. E nesse caso, involuntariamente, fiz com que eles se sentissem na posição de fontes e de observados, e não como agentes da observação. Penso que parte desses resultados junto ao grupo pode ser explicada pelo domínio de um savoir-faire de técnicas comuns a antropólogos e jornalistas: realização de entrevistas, importância da clareza e precisão da comunicação, a anotação e o registro em um bloco ou um diário, a empatia entre os interlocutores. Por trás delas, a avidez pelo conhecimento da vida alheia e a transmissão dela para um público (massivo ou científico), a adoção de uma posição de distanciamento e objetividade um tanto superior construída a partir da percepção de quem é que relata e analisa o que vê e vivencia, a consciência dos significados da diferença do papel de observador em relação ao de observado, o pleno conhecimento das possibilidades de uso de depoimentos gravados e paralelamente as possibilidades de um processo judicial por alguém que se sinta prejudicado. A experiência junto a radialistas15 teve em comum com os jornalistas a adoção inicial de contaminação, sentir antes o lugar, as pessoas e aceitar o lugar que me destinavam: primeiro de estudiosa especialista no campo da comunicação, depois como alguém que entendia o ofício mesmo não dominando as técnicas específicas do rádio, e finalmente como alguém da casa (como passei a ser apresentada e tratada) que passara por um processo de aprendizado (chegaram a me oferecer emprego, o que gerou um mal estar entre alguns profissionais e eu, o que obviamente me levou a deixar claro que minha intenção em Ilhéus era pesquisar e não trabalhar). Para discutir o tema deste trabalho, ao contrário da pesquisa nas redações em que escolhi dois casos exemplares para analisar, nas rádios foi o cotidiano, aqueles acontecimentos banais e repetitivos que me levam a refletir sobre técnicas e atitudes compartilhadas por jornalistas e antropólogos. Particularmente ao longo do meu primeiro trabalho de campo, em que o ponto de contato entre eu e os profissionais das rádios eram os meios de comunicação – eles porque trabalhavam em um, e eu porque era estudiosa do assunto -, os temas da neutralidade, da (im)parcialidade e da objetividade sempre eram levantados por eles. Todos diziam que esses eram elementos importantes no exercício profissional, que buscavam isso, mas que a realidade era bem diferente. Alguns achavam que esses pressupostos profissionais só aconteciam nas capitais, outros que nem nas capitais. Chamava a atenção, porém, que eles tenham imaginado que essa era uma questão importante para mim, dando a impressão que eu estaria avaliando seus desempenhos em função desses quesitos16. Por outro lado, essa também parecia ser uma questão importante para eles, mesmo que esses ideais profissionais não fossem reconhecidos como presentes no cotidiano de suas atividades. Desse modo, a fala do ouvinte no ar sendo colocada sob a classificação de “opinião” em contraposição à fala do locutor como “apresentação do caso” ou a transmissão de diversas versões de um acontecimento são alguns desses procedimentos estratégicos adotados. 15 Ao todo, o trabalho de campo durou cerca de um ano, dividido em dois momentos nos anos de 2000 e 2002. Era recorrente a pergunta que me faziam a respeito da qualidade do trabalho deles, comparando-se com o de radialistas no Rio de Janeiro. Em resposta, sempre procurei deixar claro que não estava realizando nenhuma comparação, e que não acreditava nem imparcialidade nem em neutralidade da imprensa em lugar nenhum. Posicionando-me abertamente, declarei com sinceridade achar que quanto mais explícitas fossem as posições adotadas pelos veículos de comunicação, mais honestas seriam as atividades desenvolvidas para atingir os públicos consumidores de informações. 16 Esse procedimento não era muito diferente do que os antropólogos fazem de ouvir os vários lados e diversas interpretações dos fatos. Em minha pesquisa, fiz isso o tempo inteiro colocando em diálogo as várias visões de radialistas das cinco emissoras locais pesquisadas. Conscientes desse processo também necessário à minha investigação em si, me consultavam sobre a opinião dos colegas, mas me respeitavam por alegar o off-record17 a que todos tinham direito – desrespeitar essa regra antropológica (o anonimato dos informantes) e jornalística (o direito ao sigilo quando pedido) significaria ferir um valor ético básico e fundamental. Ao longo do tempo, fui deixando de ser ouvida como especialista e passei a desempenhar várias atividades, em especial em uma das emissoras AM. Passei a pagar contas, abrir a emissora quando a secretária responsável por isso precisava faltar ao trabalho (ela era responsável pela chave), atendia ouvintes e participava de programas no ar, falando diretamente no microfone ou dentro do estúdio quando um locutor se referia a mim e minhas opiniões nos bastidores, ajudava a produzir programas dando palpites. Particularmente sempre que eu falava no ar – sendo vista mais como participante – ou que realizava uma gravação sobre trajetórias de vida de radialistas – sendo vista, portanto, como pesquisadora -, os radialistas (em especial os locutores) me davam dicas sobre minha comunicação oral: que eu deveria falar mais devagar, tomar cuidado com o “s”, que um bom exercício seria ler com um lápis entre os dentes para melhorar minha dicção. Especificamente antes das gravações dos depoimentos, eles tendiam a escolher os lugares mais silenciosos para não afetar a qualidade do som, testavam ou indicavam que eu fizesse um teste antes com o gravador, impostavam suas vozes (e esperavam que eu fizesse o mesmo) e, tanto quanto eu, faziam perguntas e respondiam. Do mesmo modo como no dia das eleições durante o campo no Rio de Janeiro, eu simplesmente me deixava levar. As ações deles e minhas próprias faziam sentido para mim, tanto como jornalista quanto como antropóloga. Sendo afetada ou talvez reafetada – já que revivi em situações diversas e com outras pessoas algo que já me era bastante familiar como profissional, mas que no processo de construção de minha identificação como 17 Embora no repertório antropológico o termo não seja esse, já que o anonimato é praxe na pesquisa antropológica para que as vidas das pessoas sejam preservadas, eu utilizava a categoria nativa por compreender que eles entenderiam que o que estava em jogo entre observadora e observados era uma relação de confiança semelhante ao que pode ser estabelecido entre jornalistas/radialistas e suas fontes. antropóloga andava adormecido em algum lugar. Ou seja, voltei a fazer parte e a sentir que pertencia ao universo social jornalístico, compartilhando vários de seus elementos (valores, preocupações, domínio de técnicas, comportamentos), sem deixar, contudo, de sentir que apesar disso também era antropóloga, já que estava diante de técnicas e formas de jogar o jogo da interação social parcialmente comuns. Jornalistas e Antropólogos Peirano (1992:12), ao refletir sobre o papel da etnografia no campo antropológico, chama a atenção para o fato de que o diálogo das teorias dos antropólogos com as teorias nativas ocorrem “no antropólogo”. Para ela, “o processo de descoberta antropológica” é um “‘diálogo’, não entre indivíduos – pesquisador e nativos – mas, sim, entre a teoria acumulada da disciplina e o confronto com uma realidade que traz novos desafios para ser entendida e interpretada; um exercício de ‘estranhamento’ existencial e teórico”. Quando, no entanto, esse diálogo ocorre, sim, entre indivíduos reais tanto quanto entre “teoria acumulada da disciplina” e “o confronto com uma realidade”, algumas das categorias clássicas da Antropologia tornam-se menos delineadas: quem observa pode transformar-se no observado, quem detém (ou acredita que detém) o controle sobre os dados (o etnógrafo) pode ser manipulado pelo objeto (nativos) e responde-se a determinadas situações não como se fosse um nativo a partir da empatia, mas naqueles momentos sendo um, ou ao menos sentindo-se um deles, ou sendo percebido como um de casa. Uma das explicações, compartilhada com Travancas (2002), é que embora jornalistas e antropólogos sejam profissionais com objetivos, métodos e visões de mundo distintas18, é possível “reuni-los na categoria mais ampla de mediadores”19. E como tal, 18 Creio que no caso de antropólogos jornalistas ou jornalistas antropólogos essa distinção seja menos marcada do ponto de vista da percepção de si em sua relação com um outro que é diferente mas ao mesmo tempo muito familiar. 19 A autora (:2)diz ainda: “Entendo aqui mediação como fenômeno sociocultural, como afirma G. Velho (2001:9), o qual, a partir da interação entre os indivíduos, produz e possibilita a troca e a comunicação. Jornalistas e antropólogos estão o tempo todo vivenciando em suas práticas profissionais o papel de mediadores, na medida em que a vida em sociedade se dá através das diferenças, e estes dois profissionais estão intermediando relações entre diversos grupos e categorias sociais. Eles podem ser vistos como elo entre distintos universos de significação. A diferença, conceito fundamental e definidor para a antropologia, tem também um papel importante na construção da notícia, se pudermos associar a novidade a um fato original ou incomum”. compartilham algumas técnicas, pressupostos e comportamentos semelhantes. A comparação entre as orientações elencadas por Brandão e Oyama para os iniciantes no Jornalismo e na Antropologia assim o mostram. Como Travancas observa com agudeza perspicaz, para poder transitar por distintas esferas, jornalistas e antropólogos precisam “desenvolver um sentimento de familiaridade com todos os locais e acontecimentos”, precisam se contaminar ou quebrar o gelo, como dizem Brandão e Oyama. Para Travancas, essa desenvoltura possui relação direta com o fato de que “a sociedade tem relevância”. Além das diferenças apontadas pela autora, o tempo possui significados simbólicos distintos no Jornalismo e na Antropologia: o jornalismo se define por uma relação bastante estreita com o tempo, e é ele que ajuda a definir o que é notícia (e possui valor) e o que é velho (e deve ser descartado). A Antropologia, por sua vez, busca a “permanência”, a “solidez que o saber científico propicia” (:10). O texto em si e a presença/ausência da subjetividade/objetividade na escrita jornalística e antropológica também seriam pontos de distanciamento, embora ela acredite um tenha muito a aprender com o outro. E nesse sentido, Travancas, nas “Conclusões” de seu artigo, citando Robert Park (um dos fundadores da Escola de Chicago), lembra que para ele, “que nunca negou seu passado como jornalista”, o sociólogo, o cientista social, era um tipo de “super repórter” (:11). Em minha experiência particular etnografando os meios de comunicação e os profissionais da imprensa, penso que fui afetada ou reafetada várias vezes. Algumas das conseqüências (ou sinais) disso tornaram-se evidentes no campo e mesmo depois dele. No caso da pesquisa nos jornais, a perda da noção de tempo por ficar diariamente, por um longo período, sob a luz artificial das redações hermeticamente fechadas sem comunicação com o exterior, onde a marcação do tempo ocorre pelo ritmo das atividades jornalísticas (reuniões, momentos de saída para apuração na rua, retornos da rua para elaboração de matérias, edição, fechamentos). E, em Ilhéus, na pesquisa sobre rádios e radialistas, o aguçamento de uma sensibilidade auditiva para sons e tons de vozes, paralelamente ao desenvolvimento do gosto musical sui generis em sintonia com referenciais das emissoras locais, em especial AM, sem contar os exercícios para melhorar minha dicção. Deixando-me levar pela espontaneidade de grande parte das interações sociais vivenciadas no campo (mas com os devidos distanciamentos posteriores na volta deles), tenho certeza que aquela sensação registrada em meu caderno de campo como estranha, de que falava no começo deste trabalho, foi fruto da aproximação mais do que da distinção presente no diálogo entre a metodologia antropológica e a jornalística. Isso significa que antropólogos e jornalistas compartilham algumas técnicas e pressupostos inerentes às próprias profissões. Entre as técnicas comuns estão a pesquisa documental; a contextualização; as anotações em bloco ou diário; a realização de entrevistas; e a produção de dados para um público dentro de parâmetros de clareza e precisão. Entre os pressupostos de conduta profissional, deixar o outro à vontade para obter informações, buscando constantemente por elas; possuir curiosidade pela diferença e consciência do papel de mediação; e ter clareza sobre a presença dos processos de manipulação de impressões – no sentido de Goffman (1975) – que envolvem observadores e observados. Esse diálogo acontece tanto na dimensão externa da própria pesquisa, sob os olhares do etnógrafo, quanto na interna do pesquisador, – que percebe os mecanismos de identificação pela familiaridade que as técnicas comuns a nativos e analistas produzem. É justamente na combinação dessas duas dimensões que reside a dificuldade para o antropólogo que faz pesquisa entre seus iguais (ou ao menos muito semelhantes): como apresentar uma perspectiva teórica que faça sentido para os nativos (e que pode ser prejudicada pelos valores da objetividade e distanciamento científicos), uma interpretação analítica que não embarque sem cuidados nas representações e nos discursos nativos (o que pode ocorrer se nos esquecemos do objetivo primeiro que é pesquisar e não só viver o cotidiano do campo) satisfazendo as exigências científicas e, ainda assim, enxergar um pouco mais além. Referências BRANDÃO, Carlos Rodrigues. “Reflexões sobre como fazer trabalho de campo”. Sociedade e Cultura, v. 10, n.1, jan/jun, 2007. p. 11-27. DA MATTA, Roberto. “O ofício do etnólogo ou como ter ‘anthropological blues’”. Publicações do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, 1974. FAVRET-SAADA, Jeanne. “Ser afetado”. 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