O ESTUDO DA SOCIEDADE E AS REPRESENTAÇÕES DOS SUJEITOS: SUBSÍDIOS TEÓRICOS PARA A INVESTIGAÇÃO EM EDUCAÇÃO1 Dirnei Bonow2 - IFSUL/Campus Pelotas Resumo: Este artigo desenvolve uma discussão teórica sobre a investigação das representações na pesquisa social. Oriundo de um embasamento elaborado para subsidiar uma pesquisa das representações de estudantes sobre as suas trajetórias escolares, procura fundamentar as possibilidades da respectiva opção de investigação tendo como ponto de partida as teorias clássicas da sociologia, a forma como entenderam a relação entre indivíduo e sociedade e as possíveis semelhanças e diferenças entre estas tradições. Após, enfatiza alguns caminhos teóricos produzidos pelos autores contemporâneos para renovar a teoria social, as quais privilegiam o diálogo entre as diferentes escolas criadas a partir dos pensadores clássicos e as suas maneiras de interpretar a relação entre os fatores objetivos e subjetivos. Por fim, discute-se o uso da noção de representações em Stuart Hall, o qual reconhece a continuidade dos temas salientados pelas teorias clássicas das Ciências Sociais, mas as analisa em contraste com outros caminhos explicativos contemporâneos que ressaltam a análise dos significados construídos socialmente. Palavras-chave:Representações; Sociologia da Educação; Teoria social. Quando se reflete sobre os contextos sociais e as escolhas dos sujeitos, tanto no âmbito mais amplo dos sistemas sociais como no caso mais específico de uma instituição social como a escola, está em questão não só um problema epistemológico que acompanha desde sempre a construção de uma interpretação racional do comportamento social, mas também um problema político que é primordial para se pensar a reprodução e a transformação das relações sociais, que é o entendimento da relação entre indivíduo e sociedade. A autonomia do indivíduo perante a imposição de um sistema social e os limites deste para orientar a ação dos sujeitos estão no cerne, implícita ou explicitamente, de todas as análises sobre as relações sociais. Toda organização social humana, onde os indivíduos estão não só aglomerados mas unidos pelo partilhamento de uma visão de mundo, controla o comportamento das pessoas a partir de normas que conformam padrões culturais. No entanto, os indivíduos não podem ser entendidos como meros reprodutores de uma lógica pré-existente, como receptores e transmissores automatizados de uma tradição. Apesar e por causa da internalização dos 1 Este artigo é uma versão modificada de um capítulo da minha dissertação de mestrado em Educação. Professor de Sociologia do Instituto Federal Sul-rio-grandense, Campus Pelotas. Especialista em Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrada PROEJA (CEFET/UFPEL).Mestre em Educação (FAE/UFPEL), Doutorando em Educação (FAE/UFPEL), da linha de Currículo, Profissionalização e Trabalho Docente, orientado pelo professor Dr. Mauro Augusto Burkert Del Pino. 2 ditames sociais, os indivíduos agem com relativa autonomia, já que convivem sob determinadas circunstâncias sociais que permitem tanto uma consciência comum sobre os sentidos das ações como a previsibilidade destas. Isso não significa uma harmonia estável, mas sempre negociada, pois existem contradições, desvios e diferenças sociais que marcam indivíduos e grupos e, conseqüentemente, diversidade nos padrões culturais e nas representações, principalmente no caso das sociedades industrializadas. São as diferenças entre indivíduos, grupos, classes, ou ainda, de gênero, etnia, idade, etc., que produzem e são produzidos por representações diferenciadas, construídas a partir do contraste com um sistema classificatório partilhado, as quais geram os antagonismos e conflitos que motivam as mudanças sociais. Essas questões tanto podem ser analisadas a partir de uma tradição sociológica que privilegia o entendimento dos fatores que mantém a integração social como a partir de uma perspectiva cujo foco de interpretação é o antagonismo3. Embora, as visões de conhecimento e investigação dos três grandes referenciais da Sociologia sejam diferentes e em alguns casos até antagônicas 4, não é novidade a tentativa de se analisar as relações sociais a partir da utilização complementar das teorias e conceitos de Émile Durkheim, Max Weber e Karl Marx. Apesar das diferenças de concepção científica, metodológica e de compreensão da relação indivíduo-sociedade – que não são apenas questões técnicas, pois envolvem o entendimento da relação entre investigação e ação política – não é novidade considerar possível o diálogo entre eles na pesquisa das relações sociais. É claro que a referência a esses autores, e a outros que são considerados clássicos, acompanha o desenvolvimento da pesquisa social, no entanto, muitas vezes o debate se restringe ao interior 3 Benno Sander (1984) identifica estas duas possibilidades de investigação sociológica aplicadas à educação como sociologia do consenso e sociologia do conflito. Embora os autores e correntes possam ser identificados por uma ênfase no indivíduo ou na sociedade, no macro ou no micro, no material ou no simbólico, ou por outros balizamentos, estes são sempre relativos. Por exemplo, Collins (2009), classifica tanto Marx como Weber na tradição do conflito. Além disso, o autor diferencia na obra de Durkheim a vertente funcionalista das análises associadas ao estudo dos rituais e da produção da solidariedade. Sobre essa segunda, priorizada nas investigações antropológicas, eis a sua visão: “Essa linha de análise fez muitos avanços recentemente, incluindo a aplicação feita por Erving Goffman aos rituais da vida cotidiana. Outros sociólogos utilizaram essa perspectiva para a análise das classes sociais, destacando o fundamento cultural da estratificação, construindo assim, uma ponte entre a tradição durkheimiana e a tradição do conflito” (p.10). Essas ambigüidades e paradoxos muitas vezes não são captados por classificações generalizantes e reducionistas, de forma que um autor como Durkheim, identificado a partir da sua ênfase na macroestrutura, pode ser importante para uma análise de nível micro como a de Goffman. 4 Durkheim adaptou a concepção positivista ao estudo da sociedade enfatizando a importância do pesquisador evitar as pré-noções e defendendo o princípio, hoje arcaico, da neutralidade científica. Weber, ao criticar as diretrizes positivistas, formulou um entendimento da influência dos valores no processo de pesquisa, já que compreendia que estes são determinantes na definição do tema e do problema, mas devem ser evitados na análise dos dados. Além disso, criticava as teorias totalizantes e, nesse sentido, propôs a noção de tipo-ideal como modelo de compreensão da realidade. Marx não se preocupou com questões metodológicas, embora suas teorias sejam indispensáveis para se discutir a relação entre conhecimento e poder e teoria e ação política. das respectivas escolas sociológicas criadas a partir desses fundadores do pensamento social científico. Anthony Giddens e Jonathan Turner (1999, p. 11) na introdução de uma obra que apresenta o panorama da teoria social contemporânea, assim se manifestam: “Devemos salientar também que a aparente efervescência de versões rivais na teoria social esconde muito mais consistência e muito mais integração entre pontos de vista antagônicos do que à primeira vista parecem”. Assim, apesar de alguns considerarem impossível tal empreendimento e reafirmarem as diferenças filosóficas que justificam a existência de diferentes escolas de pensamento sociológico – além de justificarem o sectarismo nas produções acadêmicas – outros se propõem a construir análises permeadas pelo confronto entre os pensadores clássicos. Sobre essa forma de abordagem da teoria clássica, eis é a visão de Octávio Ianni (1990, p.99) Aliás, cabe reconhecer que há diálogos, implícitos e explícitos, entre representantes de diferentes paradigmas. Indicam problemas metodológicos merecedores de atenção. Permitiriam ilações. Ao analisar a divisão do trabalho social como um processo relativo ao conjunto da sociedade, compreendendo aspectos sociais, econômicos, políticos e culturais, Durkheim leva a noção de anomia bastante próxima à de alienação, formulada por Marx. O próprio conceito durkheimiano de divisão do trabalho, por suas especificidades e abrangências, lida com problemas que também haviam atraído a atenção de Marx, quando se referia às dimensões singulares, particulares e gerais desse processo social abrangente, de alcance histórico. Também Weber e Marx encontram-se algumas vezes. Todavia, não podemos desconsiderar as diferenças entre os autores, como também analisar as disputas acadêmicas independentemente das disputas mais amplas do cenário cultural, político e econômico de consolidação e expansão do capitalismo. É perante o desenvolvimento desse modo de vida, que se tornou hegemônico no planeta, que se desenvolveu a idéia de um pensamento social científico e se expandem as Ciências Sociais. No contexto das profundas transformações provocadas pela Revolução Industrial e pelas revoluções burguesas, há um divisor de águas no ponto de partida para a interpretação das relações sociais no sistema capitalista5, pois, diante destas extraordinárias mudanças, alguns enfatizaram mais o estudo da coesão social, outros os conflitos gerados por estas. Pelas diferenças que existem entre as Ciências Sociais e as Ciências Naturais, embora ambas sejam uma produção social e histórica, é primordial que se considere, na pesquisa social, a influência que as circunstâncias sociais têm sobre os temas e as abordagens que são privilegiados em diferentes contextos. 5 Apesar da amplitude das análises de Durkheim, Weber e Marx transcender a sociedade capitalista, e buscarem, de diferentes formas, teorias e conceitos que podem, em alguns casos, se aplicar a outros contextos históricos e sociedades. Assim, enfatizar a ordem ou o dissenso na investigação social ou, noutro sentido, a autonomia do indivíduo ou o condicionamento social, são, por exemplo, dilemas que acompanham a trajetória de tal área de investigação. Também na interpretação dos clássicos, essas são algumas das questões que ainda estão presentes no debate sob o legado desses autores e a primazia de um ou outro lado, ou mesmo, de uma posição intermediária (de reciprocidade) no entendimento destas dualidades. Debate que revela como a construção do pensamento destes baluartes, embora possa indicar genericamente a ênfase num dos pólos acima citados, demonstram também as ambigüidades e contradições que aparecem na trajetória de construção das análises destes pensadores. Assim, embora possa não haver uma coerência incontestável nas elaborações de Durkheim, Weber e Marx, a interpretação das suas idéias revelam ênfases diferentes no entendimento da relação entre indivíduo e sociedade. Nesse sentido, Durkheim é identificado por ressaltar a imposição da sociedade, mediante as normas, para fixar um código moral nos indivíduos e garantir os laços necessários à coesão social. Desde que, em Durkheim as regularidades sociais – normas – devem ser consideradas como a base da ordem social, e visto que a Sociologia só pode dar explicações referindo-se a elas, então é evidente que toda explicação será dada mais em termos de toda a sociedade, que da ação individual (BADCOCK,1976, p. 28). No entanto, o que interessa neste trabalho é a sua concepção de representações. No prefácio à segunda edição da obra As Regras do Método Sociológico, Durkheim (1990, XVIII) responde a uma das críticas que lhe foram dirigidas: “Embora dizendo e repetindo, expressamente e por todos os modos, que a vida social era toda feita de representações, fomos acusados de eliminar da sociologia o elemento mental”. É nos seus estudos antropológicos que a noção de representações coletivas vai ser mais utilizada. Ao caracterizar o campo de investigação da Sociologia em contraposição ao da Psicologia, o autor diferencia as representações individuais das representações coletivas e demonstra que o simbolismo coletivo é o princípio fundante da realidade social. Portanto, os conceitos e categorias são fenômenos sociais que não podem ser reduzidos às sensações individuais, nem mesmo à média destas. São uma realidade independente que constituem a sociedade e a sua forma de pensamento, sua maneira de interpretar, de classificar o mundo. A investigação da sociedade significa então investigar seu mundo empírico, que são as categorias presentes nas representações coletivas. Sobre esse aspecto do pensamento de Durkheim, segundo Pinheiro Filho (2004, p.09): “Mais importante é salientar que, nessa tentativa, abre espaço para pensar o plano simbólico não como reflexo, mas como instituinte da realidade social”. Para Durkheim, as representações coletivas são meios de conhecimento do mundo e de comunicação entre os indivíduos e, por ser um produto social, conforme se acentuam os elos sociais surgem novas representações. Elas manifestam “o modo pelo qual o grupo se concebe a si mesmo em suas relações com os objetos que o afetam.” (DURKHEIM,1990, XXVI). A concepção de representações coletivas em Durkheim não pode ser pensada sem a referência à noção de fato social. “Estamos, pois, diante de uma ordem de fatos que apresenta caracteres muito especiais: consistem em maneiras de agir, de pensar e de sentir exteriores ao indivíduo, dotadas de um poder de coerção em virtude do qual se lhe impõem.” (DURKHEIM, 1990, p.03). Portanto, na sua concepção as representações coletivas são entendidas tanto como o modo de pensar quanto o que é pensado e são coletivas porque são produzidas socialmente e porque o seu objeto é a sociedade. (LUKES, 2007, p.19). Comentando essa vertente do pensamento de Durkheim, presente nos seus estudos das sociedades primitivas, Collins (2009, p.195) entende que: “É nesse aspecto que há um cruzamento entre o nível micro e o nível macro, vistos a partir da perspectiva da macroestrutura”. As reflexões metodológicas de Max Weber sobre a investigação social são fundamentais para o desenvolvimento posterior desta área de pesquisa. Sem a desconsideração das condições históricas mas questionando as premissas positivistas, construiu a noção de sociologia compreensiva, cuja intenção é investigar os sentidos atribuídos pelos indivíduos às suas escolhas, ou seja, a interpretação do sentido da ação social. A influência do seu pensamento pode ser notada, por exemplo, na citação a seguir, de autores que são referência na pesquisa qualitativa: “[...] investigadores que fazem esse tipo de abordagem estão interessados no modo como diferentes pessoas dão sentido às suas vidas” (BOGDAN E BIKLEN, 1994, p.50). Weber dialoga também com o marxismo, que tinha uma influência destacada no período em que viveu, principalmente nos movimentos políticos dos trabalhadores. Na sua obra A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (2004) sugere uma compreensão que enfatiza a importância dos aspectos culturais na constituição do tipo de comportamento adequado ao desenvolvimento desta forma de relação econômica. Ao ressaltar o papel autônomo das idéias, não as entendendo como um mero reflexo, confronta o economicismo presente nas análises marxistas e, portanto, critica a noção de determinação da superestrutura pela base econômica. Assim, a noção de ação social é indispensável na construção da possibilidade de se interpretar a interação humana a partir dos significados das condutas individuais. A comparação entre os textos de juventude e os últimos trabalhos de Marx, para se determinar se há uma primazia da determinação econômica ou dos sujeitos no desenrolar da história, é um caso típico de problematização das questões aqui sugeridas. O caminho desenvolvido por Marx para analisar o vínculo entre a consciência e a vida produtiva, organizada historicamente de diferentes maneiras, é o “da estrutura econômica da sociedade, a base real, sobre a qual se ergue uma superestrutura legal e política e à qual correspondem formas determinadas de consciência social” (MARX, 2008, p.45). Essa é uma das questões polêmicas do pensamento de Marx, a partir da qual se desenvolve o debate sobre o determinismo social que estaria presente nas suas teorias, como se houvesse o entendimento de que a base econômica determinaria a consciência. Contudo, também podemos identificar na sua obra, momentos onde esta questão é relativizada, como, por exemplo, numa obra anterior à citada acima e escrita com Engels, A Ideologia Alemã. Ao explicarem a sua concepção de história escreveram: “[...] as circunstâncias fazem os homens, assim como os homens fazem as circunstâncias”. (MARX, 2007, p.43). No entanto, quando pensamos na questão da subjetividade é importante discutir a noção de ideologia em Marx, como representações que ocultam a dominação de classe. Podemos entender então que existem conhecimentos que se restringem à ideologia, ou seja, a reproduzir as idéias dominantes e a manter uma estrutura social injusta, e outros que revelariam estas contradições ao relacionar os aspectos subjetivos e objetivos. Esta concepção de ideologia, como ocultação da realidade, em oposição a um conhecimento que revela esta realidade é problemática. Marx não estaria então opondo ciência e ideologia, contraditoriamente a sua concepção de conhecimento? Apesar dos limites deste texto não permitirem um aprofundamento sobre o tema, faço algumas observações sobre a complexidade do problema, utilizando como referência Michael Löwy (1998). Para este autor marxista a noção de ideologia como ocultação, desenvolvida na Ideologia Alemã, não é a melhor forma de compreensão do pensamento de Marx. Para ele o melhor é recorrer ao18 Brumário de Luís Bonaparte no qual a ideologia aparece como uma visão de mundo vinculada à situação de classe. Mas, é a partir de O Capital, que Löwy tira suas principais conclusões. Para ele o que caracteriza o conhecimento científico na visão marxista é a busca da verdade, e isto pode ser comum a cientistas de qualquer classe social. O que importa, segundo ele, é revelar a influência da classe social nas interpretações das relações sociais, e isto Marx faz com muita clareza na sua obra, expondo a sua perspectiva de entendimento e superação das relações capitalistas. Porém, Löwy, como Marx, parece compreender que a ciência orientada pelo ponto de vista do proletariado6 é uma forma de conhecimento superior e revolucionária. Após dizer que não há a ideologia de um lado e a ciência do outro, o autor diz o seguinte: Por outro lado, há uma ruptura, um corte, introduzido pela ciência nova, que representa o ponto de vista da nova classe (o proletariado), que é a crítica da economia política de Marx representando um nível superior de conhecimento científico (LÖWY, 1998, p.104). Assim, se é aceitável que as posições e opções de classe estejam imbricadas na investigação da sociedade, considerar atualmente a concepção salientada por Löwy, da possibilidade de um conhecimento mais elevado do que outro porque orientado pela perspectiva do proletariado, não é menos problemático que a concepção de ideologia como ocultação, principalmente com as contribuições pós-modernas de crítica às metanarrativas (SILVA, 1993)7. Embora, Marx possa ser interpretado a partir das influências iluministas, positivistas e evolucionistas que aparecem de forma subliminar nas suas investigações (por exemplo, o estatuto superior da razão e da ciência e a noção de desenvolvimento histórico), a sua concepção de conhecimento é profundamente crítica, e estabelece as bases para o posterior desenvolvimento da sociologia do conhecimento e para a desconstrução da visão positivista de neutralidade, já que relaciona a consciência com as contradições sociais. Além disso, a subjetividade não pode ser pensada no âmbito das relações de produção capitalistas sem a perspectiva do entendimento da propriedade privada dos meios de produção, e, portanto, da relação das representações com as classes sociais, por mais que esta noção tenha sido relativizada. Sobre a relação entre os aspectos subjetivos e objetivos do pensamento de Marx, Bourdieu (1983, p.21) entende da seguinte forma: Marx extraiu de seu modelo a verdade subjetiva do mundo social, à qual ele contrapôs a verdade objetiva do mundo enquanto relação de forças. Ora, se o mundo social fosse reduzido à sua verdade de relação de forças, se ele não fosse, numa certa medida, reconhecido como legítimo, as coisas não andariam. A representação subjetiva do mundo social como legítimo faz parte da verdade completa deste mundo. A comparação das abordagens clássicas das Ciências Sociais, especialmente as constituídas na estruturação da Sociologia como conhecimento científico, nos permite perceber que relação entre indivíduo e sociedade foi, e ainda é, a base sobre a qual se edificam 6 Esta concepção é aprofundada em Löwy(1987). No entanto, Eagleton (1999) enfatiza que para Marx o real sempre escapa ao pensamento, pois na sua concepção dialética e histórica o real é dinâmico, aberto e interativo. Não cabe para Marx, segundo o autor, conceber um sistema de idéias que dê conta da totalidade do real, embora, as próprias idéias de Marx posteriormente tenham sido interpretadas e reorganizadas desta maneira. 7 as discussões teóricas e metodológicas que procuram embasar a validade dessas investigações no campo da Ciência. Diversas outras questões estão presentes na origem e no desenvolvimento deste debate, mas essa relação pode ser considerada como um balizamento fundante, que perpassa as diferentes escolas de análise social e permite a comparação entre estas, indicando tanto semelhanças e diferenças que são importantes para se entender os dilemas e as contribuições destes teóricos, como também as continuidades e rupturas da pesquisa social. Tanto a Sociologia que foi desenvolvida posteriormente, mas principalmente a Antropologia, com a valorização do trabalho de campo, e a Fenomenologia, com o interesse pelo cotidiano e pela subjetividade, vão desenvolver metodologias qualitativas. Ao comparar a Sociologia com a Antropologia na sua clássica tese de doutoramento Os Parceiros do Rio Bonito, Antônio Cândido (1979, p.19), que combina as duas disciplinas na sua análise, escreve o seguinte: O sociólogo, porém, que a pretexto de buscar o geral fareja por toda parte o humano, no que tem de próprio a cada lugar, em cada momento, não pode satisfazer-se neste nível. Desce então ao pormenor, buscando na sua riqueza e singularidade um corretivo à visão pelas médias, daí o apego ao qualitativo, cujo estudo sistemático foi empreendido sobretudo pelos especialistas das sociedades primitivas. Algumas tentativas foram feitas no sentido de aproximar estas duas formas de investigação social, entre elas as importantes referências na pesquisa qualitativa que são a abordagem micro-sociológica da chamada Escola de Chicago, o interacionismo simbólico, e também a Etnometologia8. Não vou discutir o percurso dessas correntes de interpretação social, no entanto, vou utilizar como referência dois autores que dialogaram com estas linhas e elaboraram propostas de tratar indivíduo e sociedade sem que um dos pólos se sobreponha a outro, que são Pierre Bourdieu e Anthony Giddens. Suas análises dialogam, de formas diferentes, com a tradição sociológica e com as correntes contemporâneas de interpretação social, buscando fundamentar uma síntese que articule ação e estrutura, objetivismo e subjetivismo9. Para isso, Bourdieu desenvolveu a noção de habitus, que são “as disposições adquiridas, as maneiras duráveis de ser ou de fazer encarnadas no corpo” (1983, p.24) as quais garantem as regras práticas para a ação. São esquemas de percepção, de pensamento e 8 Para uma discussão sobre a construção da perspectiva de investigação qualitativa Goldenberg (1997). Apesar de suas críticas às teorias de Bourdieu e Giddens, Domingues (2001, p.69) indica o papel destacado deles em comparação com outros autores contemporâneos, por terem articulado mudança e ação, ordem e reprodução social: “Dificilmente se consegue abarcar todas as facetas da vida social. É um grande mérito de ambos os autores haverem se lançado à empresa de sintetizar tantas correntes, as quais, estas sim, com freqüência eram redutivas e descuravam de aspectos essenciais da vida social”. 9 de ação adquiridos mediante aprendizagem (implícita ou explícita) que funcionam como um “gerador de estratégias que podem ser objetivamente afins aos interesses objetivos de seus autores sem terem sido expressamente concebidos para este fim” (Id, p.94). Na ação, tanto quanto se perpetua esta memória, há a possibilidade de criatividade por parte dos atores. A partir da noção de campo e de capital, o autor enfatiza as relações de poder e o investimento na acumulação de diferentes capitais conforme o campo no qual se disputa. Além disso, Bourdieu é uma indispensável referência nos estudos sobre educação e sobre desigualdade, a partir das noções de capital social e de capital cultural. Embora proponha uma sociologia relacional, uma ciência das práticas que evite o mecanicismo, algumas críticas apontam uma suposta ênfase na estrutura, de forma que na sua análise as relações se dariam mais entre posições de poder do que entre atores. Assim, apesar da sua proposta de abordar dialeticamente ação e estrutura, alguns entendem que Bourdieu privilegiou a segunda. Por exemplo, ao comentar dois destes críticos, Haecht (2008, p.48) conclui que: “Nada, porém, na teoria de Bourdieu, para esses dois autores, deixa subsistir uma esfera de autonomia, excluindo à definição de habitus qualquer recriação de um espaço para a liberdade e a responsabilidade”. A autora, no entanto, diz que essas críticas se dirigem genericamente mais ao tipo de abordagem da Sociologia, que de alguma forma atingem a pretensão de uma liberdade transcendente presente na concepção do sujeito filosófico (HAECHT, 2008). No entanto, as palavras de Bourdieu, ao justificar por que não usou o termo hábito, esclarecem algumas questões: O hábito é considerado espontaneamente como repetitivo, mecânico, automático, antes reprodutivo do que produtivo. Ora, eu queria insistir na idéia de que o habitus é algo que possui uma enorme potência geradora. Para resumir, o habitus é um produto dos condicionamentos que tende a reproduzir a lógica objetiva dos condicionamentos mas introduzindo neles uma transformação: é uma espécie de máquina transformadora que faz com que nós ‘reproduzamos’ as condições sociais de nossa própria produção, mas de uma maneira relativamente imprevisível, de uma maneira tal que não se pode passar simplesmente e mecanicamente do conhecimento das condições de produção ao conhecimento dos produtos.(BOURDIEU, 1983, p.105). A teoria da estruturação formulada por Giddens é uma tentativa de síntese que visa superar os pólos de análise e valorizar tanto as capacidades reflexivas dos sujeitos como o condicionamento destes pela estrutura, a qual garante os parâmetros e instrumentos para a ação. Esse autor elaborou uma noção que é importante para a discussão da produção de conhecimento nas Ciências Sociais, que é denominada de “dupla hermenêutica”. Essas pesquisas reinterpretam, a partir de suas teorias, um universo simbólico que já está constituído pelos atores sociais, ou seja, se trata de uma característica peculiar das Ciências Sociais que precisam lidar com a interpretação da interpretação dos sujeitos. Outro importante conceito deste autor para analisar as relações sociais na modernidade é o de “reflexividade”, que utiliza para diferenciar o conhecimento que os atores têm das práticas sociais na modernidade em comparação com a tradição nas culturas pré-modernas: A reflexividade da vida social moderna consiste no fato de que as práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz de informação renovada sobre estas próprias práticas, alterando assim constitutivamente seu caráter (GIDDENS, 1991, p.45). Essa concepção da “reflexividade” das práticas sociais na modernidade é entendida como uma “monitoração reflexiva da ação” (Giddens, 1991, p.43) e se caracteriza por um constante e acentuado processo de revisão da convenção que é fundamental para a compreensão da dinâmica da produção de conhecimentos e significados e, portanto, das representações. Nesse sentido, toda a vida social na modernidade está sob constante dúvida, de forma que esta incerteza afeta os papéis sociais e as trajetórias individuais. Comparando a noção de individualização em Giddens e Ulrich Beck, e criticando seu viés racionalista, Domingues (2002) considera que ela é importante para perceber que, embora, as desigualdades ainda sejam fundamentais para se entender a sociedade de risco, estas são mais singularizadas e contingentes. Nesse processo de constante incerteza e de relativização das determinações que caracteriza a modernidade, exerce papel destacado a influência do conhecimento científico que, mediante os peritos, gera cada vez mais instabilidade sobre os assuntos da vida cotidiana, ao contrário da certeza da conduta definida pela tradição. A teoria da estruturação é baseada nesse autoconhecimento que permite um fluxo contínuo de mudança. Além disso, Giddens divide a consciência em “prática” e “discursiva”, contudo não a relaciona com um conhecimento racional e transparente do sujeito quanto a si mesmo e a sua ação. Embora, alguns pontos das teorizações de Bourdieu e Giddens possam aproximar-se do viés pós-estruturalista, não faz parte das análises destes autores o tema da subjetividade coletiva, pois permanecem presos ao pensamento social moderno e à dialética entre indivíduo e sociedade (DOMINGUES, 2001). Como referência para discutir algumas diferenças entre estas abordagens, quanto ao estudo das representações, vou utilizar as reflexões de Stuart Hall. Vinculado à corrente dos estudos culturais, Hall procura fundamentar a sua análise das identidades sociais e das representações num arcabouço teórico heterogêneo, que não desconsidera o percurso desta discussão em diferentes disciplinas do pensamento moderno e que incorpora os questionamentos das abordagens pós-modernas. Vou indicar alguns dos pontos da análise de Hall que podem ser importantes para se pensar as representações e o seu papel no mundo contemporâneo10. Embora reconheça a importância dos diferentes conceitos de cultura, o autor baseia a sua discussão na denominada “virada cultural”, movimento interdisciplinar que ocorreu nas Ciências Sociais e Humanas e que ressaltou o caráter central da cultura para entender todas as esferas da vida social. Ao contrário do que alguns proclamam este movimento de interpretação do papel da cultura nas sociedades contemporâneas não significou, segundo Hall, uma ruptura radical com a tradição de investigação social. Segundo o autor, este movimento intelectual pode ser inclusive avaliado como uma retomada de certos temas da Sociologia clássica. Para demonstrar isso, Hall cita algumas das contribuições em Durkheim, Weber e Marx e de escolas sociológicas mais recentes. Sempre existiram tradições, mesmo na sociologia dominante dos anos 1950 e 1960, que privilegiaram questões de significado: tais como, o interacionismo simbólico, os estudos dos desvios, o interesse da ciência social americana pelos ‘valores e atitudes’, o legado de Weber, a tradição etnográfica, muito influenciada pelas técnicas antropológicas e assim por diante (HALL, 1997, p.30). Esse autor ressalta que toda prática social produz sentidos e, apesar dos sistemas classificatórios partilhados em cada cultura, estes não estão completamente fixados já que estão em constante jogo de significação, e, portanto, de poder. A cultura é constitutiva porque tanto organiza como regula a convivência social, e isto ocorre mediante a linguagem (entendida num sentido amplo), que é o meio de produção de sentidos. Assim, a cultura nessa concepção – como em outros autores aqui citados – não é reflexo da estrutura econômica e, por ser constitutiva, é cada vez mais um terreno de lutas simbólicas e de mudanças históricas. Ainda mais no contexto da globalização, do consumo de massa e da popularização dos bens culturais via indústria cultural. Ao apresentar a trajetória intelectual de Stuart Hall, Escosteguy assim se manifesta sobre a importância das representações no mundo contemporâneo: Admitindo que se vive num turbilhão de sentidos, onde vige uma multiplicidade infinita de códigos, discursos e leituras que produz novas formas de autoconsciência e reflexividade, reafirma que a representação, em tal situação, de forma alguma se exauriu, mas se tornou um processo muito mais problemático (2003, p.65). Para Hall, isso é entendido a partir do que ele chama de “circuito da cultura”, que é o processo de produção e de circulação de significados por meio da linguagem, no qual as 10 Esta explanação se baseia nas seguintes referências, Hall (1997; 1997a;1997b;1997c) à exceção de quando for citada outra. representações ocupam um papel destacado. O referido autor identifica três formas de se conceber a interpretação das representações: mimética, na qual as representações são um espelho da realidade, intencional na qual as representações são reduzidas à intenção do autor e a construcionista, na qual o sentido é construído através da linguagem, que é o enfoque desenvolvido por Hall. Essa abordagem abarca as contribuições da semiótica, especialmente de Ferdinand de Saussure e Roland Barthes, e do entendimento do papel do discurso na teorização de Michel Foucault. A primeira se preocupa em como a linguagem produz significado através da representação, com o estudo dos signos (significante e significado), ou seja, com o que se chama de “poética”. A segunda referência se preocupa com os efeitos das “formações discursivas”, que mediante “regimes de verdade” regulam o corpo em determinados contextos históricos. Nesta abordagem, a definição de discurso é mais ampla que a de linguagem e enfatiza a historicização das relações de poder, ou seja, analisa o que se denomina de “política”. O autor demonstra, assim, que a partir do enfoque construcionista os significados devem ser entendidos no seu permanente jogo de interpretações. Não há um sentido único, completamente fixado ou transparente, pois ele varia conforme o contexto, a comunidade, o grupo. O sentido está permanentemente submetido a contestações e negociações, a partir da sobreposição de diversas formações discursivas. Além disso, a produção e a interpretação de significados não se restringem a um aspecto instrumental. Envolvem experiências emotivas de formação e de desconstrução de identidades, de estabelecimento de padrões de normalidade e de diferença e, de inclusão e de exclusão. Considerações Finais Considerando o processo de constituição da possibilidade de uma investigação científica da sociedade e algumas alternativas mais recentes de teoria social, espero ter apontado algumas das questões teóricas e metodológicas que envolvem a discussão sobre a investigação das representações dos sujeitos e do que isto significa no âmbito da pesquisa social. As semelhanças e diferenças entre as teorias clássicas da Sociologia, a interpretação da relação entre indivíduo e sociedade e a ênfase na importância do campo simbólico são questões que estiveram presentes, de forma diversa, na construção destas tradições teóricas e no debate sobre a pesquisa social. As teorias contemporâneas que procuram retomar este debate e aperfeiçoar o arcabouço metodológico das Ciências Sociais retomam as questões que envolvem a investigação dos significados, contribuindo assim para fundamentar a pesquisa social sob novas perspectivas. Destaca-se neste sentido, o trabalho de Stuart Hall e a maneira como procura identificar as continuidades e rupturas entre as tradições teóricas e as suas propostas de revisão. A pesquisa educacional encontra neste debate a origem e os fundamentos das teorias e métodos que estruturam a pesquisa social e, portanto, fundamentos para investigar os seus temas, considerando as concepções de entendimento da relação indivíduo-sociedade e as diferentes ênfases concedidas ao universo simbólico e às representações dos sujeitos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BADCOCK, C.R. Lévi-Strauss: Estruturalismo e Teoria Sociológica. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1976. BOGDAN, Roberto C.; BIKLEN, Sari Knopp. Investigação qualitativa em educação. Porto: Porto Editora, 1994. BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. CANDIDO, Antônio. Os parceiros do Rio Bonito. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1979. COLLINS, Randall. Quatro Tradições Sociológicas. Rio de Janeiro: Vozes, 2009. 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