A Imortalidade – Milan Kundera

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Início de uma tetralogia – A Imortalidade (1990), A Lentidão (1995),
A Identidade (1998), A Ignorância (2000) -, o sexto romance de
Milan Kundera emerge do gesto casual de uma mulher a seu
instrutor de natação, gesto que cria uma personagem no espírito do
escritor chamado Kundera. Tal como a Emma de Flaubert ou a Anna
de Tolstoi, a Agnès de Kundera torna-se objeto de indefinida
nostalgia. A partir dela nasce um romance que explora os grandes
temas da existência e a busca da imortalidade. Não a da alma, mas a
imortalidade de quem, pela vida ou pela arte, aspire a deixar de si
um sinal imperecível.
PrimeiraParte
Orosto
Asenhorapoderiatersessenta,sessentaecincoanos.Euaolhavade
minhaespreguiçadeira,recostadodiantedapiscinadeumclubede
ginásticanoúltimoandardeumprédiomodernodeondeseviaParis
inteiraatravésdeimensasjanelasenvidraçadas.Esperavaoprofessor
Avenariuscomquemmeencontroalidevezemquandoparadiscutir
umascoisaseoutras.MasoprofessorAvenariusnãochegava,eeuolhava
asenhora;só,napiscina,imersaatéacintura,elaolhavaojovemprofessor
denataçãoque,deroupão,empéumpoucoacimadeondeelaestava,
dava-lheumaaula.Obedecendoasuasordens,elaapoiou-senabordada
piscinaparainspirareexpirarprofundamente.Fezissoseriamente,com
zelo,eeracomosedasprofundezasdaságuasseelevasseavozdeuma
velhalocomotivaavapor(essavozidílica,hojeesquecida,sóposso
transmitiraosquenãoaconheceram,comparandoàrespiraçãodeuma
senhoradeidadequeinspiraeexpiranabordadeumapiscina).Olhava-a
fascinado.Seuarcômicopungentemecativava(essearcômico,o
professordenataçãotambémpercebia,poisoscantosdeseuslábios
pareciamtremeratodahora),masalguémfaloucomigoedesviouminha
atenção.Poucodepois,quandoquisvoltaraobservá-la,aaulahavia
terminado.Elafoiembora,demaio,andandoaolongodapiscinaequando
játinhaultrapassadooprofessordenataçãoaproximadamenteunsquatro
oucincometros,virouacabeçaparaele,sorriu,efezumgestocomamão.
Meucoraçãoapertou-se.Essesorriso,essegesto,eramdeumamulherde
vinteanos!Suamãotinhagiradonoarcomumalevezaencantadora.Como
se,brincando,elajogasseparaseuamanteumbalãocolorido.Essesorriso
eessegestoeramcheiosdeencanto,enquantoqueorostoeocorponãoo
erammais.
Eraoencantodeumgestosufocadononão-encantodocorpo.Masa
mulher,mesmoquesoubessequenãoeramaisbonita,esqueceuisso
naquelemomento.
Porumacertapartedenósmesmos,vivemostodosalémdotempo.
Talvezsótomemosconsciênciadenossaidadeemcertosmomentos
excepcionais,sendo,namaiorpartedotempo,unssem-idade.Emtodo
caso,nomomentoemquesevirou,sorriuefezumgestocomamãoparao
professordenatação(quenãofoicapazdeseconterecaiuna
gargalhada),elanãotomavaconhecimentodesuaidade.Graçasaeste
gesto,noespaçodeumsegundo,umaessênciadeseuencanto,quenão
dependiadotempo,revelava-seemeencantava.Fiqueiestranhamente
comovido.EonomeAgnèssurgiuemmeuespírito.Agnès.
Nuncaconheciumamulhercomessenome.
Estounacama,mergulhadonadoçuradeumtorpor.Àsseishoras,
depoisdoprimeiroelevedespertar,estendoamãoparaopequenorádio
colocadopertodomeutravesseiro,eapertoobotão.Ouçoasnotíciasda
manhã,maldistinguindoaspalavras,edurmodenovo,durmotantoqueas
frasesqueescutotransformam-seemsonhos.Éafasemaisbeladosono,o
maisdeliciosomomentododia:graçasaorádio,saboreiomeuseternos
despertaresecochilos,esseembalosoberboentreavigíliaeosono,esse
movimentoqueporsisómetiraodesgostodeternascido.Seráquesonho
ouestourealmentenaópera,diantededoisatoresvestidosdecavalheiros
quefalamcomentonaçõesacentuadasevariadasaprevisãodotempo?
Porqueseráquenãofazemissocomoamor?
Depoiscompreendoquesetratadelocutores,nãofalammais,masse
interrompemumaooutrobrincando.
—Odiaseráquente,tórrido,haverátempestade,dizoprimeiro,queo
outrointerrompe,fazendograça:
—Nãoépossível!Oprimeirorespondenomesmotom:
—Massim,Bernardo.Sintomuito,masnãoháescolha.Umpoucode
coragem!Bernardocainagargalhadaedeclara:
—Eisocastigodenossospecados.Eoprimeiro:
—Porque,Bernardo,tenhodesofrerpelosseuspecados?Então
Bernardoriaindamais,paradeixarclaroparaosouvintesdequepecado
setrata,eeuocompreendo:existeapenasumacoisaquetodosdesejamos:
queomundointeironosconsideregrandespecadores!Quenossosvícios
sejamcomparadosaostemporais,àstempestades,aosfuracões!Aoabrir
hojeoguarda-chuvaemcimadacabeça,quecadafrancêspensecom
invejanorisoequívocodeBernardo.Giroobotãoesperandodormir
novamenteemcompanhiadeimagensmaisinteressantes.Naestaçãoao
lado,umavozdemulheranunciaqueodiaseráquente,tórrido,
tempestuoso,ealegro-medeverquenaFrançatemostantasestaçõesde
rádio,equetodas,nomesmomomento,falamamesmacoisa.Ofeliz
casamentodauniformidadecomaliberdade,oqueéqueahumanidade
poderiadesejardemelhor?PortantovoltoàestaçãoondeBernardose
gabavadeseuspecados;masemseulugar,umavozdehomementoaum
hinoaoúltimomodelodafábricaRenault,giroaindaobotão,umcorode
mulheresenalteceasliquidaçõesdecasacosdepele,voltoparaBernardo,
atempodeouvirosúltimoscompassosdohinoàRenault,depoisopróprio
Bernardoretomaapalavra.
Imitandoamelodiaquehaviaterminado,nosinformacomumavoz
cantantequeacabavadeaparecerumabiografiadeHemingway,a
centésimavigésimasétima,masessarealmentemuitoimportante,porque
demonstraque,emtodasuavida,Hemingwaynãodisseumasópalavra
verdadeira.Aumentouonúmerodeseusferimentosdeguerra,fingiuser
umgrandesedutorquandoficouprovadoqueemagostode1944edepois
apartirdejulhode1959,eleestavacompletamenteimpotente.
—Nãoépossível,disseavozrisonhadooutro,eBernardoresponde
brincando:
—Maséverdade...,evoltamostodosparaopalcodaópera,até
Hemingway,oimpotente,vaiconosco,depoisumavozmuitograveevoca
umprocessoquenodecorrerdasúltimassemanasemocionoutodaa
França:duranteumaoperaçãosemimportância,umaanestesiamalfeita
provocouamortedeumdoente.Emconsequênciadisso,aorganização
encarregadadedefenderos
"consumidores",assimelanoschamaatodos,propõefilmarnofuturo
todasasintervençõescirúrgicaseguardarosfilmesemarquivos.Esse
seriaoúnicomeio,segundoaorganização"paraadefesados
consumidores",paragarantiraumfrancêsmortopelobisturi,queseria
devidamentevingadopelajustiça.Depoisdurmonovamente.
Quandoacordei,eramquaseoitoemeia;imagineiAgnès.Comoeu,ela
estádeitadanumagrandecama.Ametadedireitadacamaestávazia.
Queméomarido?Aparentementealguémquesaicedonosábado.Epor
issoqueelaestásóeosciladeliciosamenteentreodespertareosonho.
Depoislevanta-se.Emfrentedela,numsuportecomprido,estáuma
televisão.Jogasuacamisola,quecobreatelacomoumcortinadobranco.
Pelaprimeiravezavejonua,Agnès,aheroínademeuromance.Elaestáde
pé,ébonita,nãopossotirarosolhosdela.Finalmente,comosetivesse
sentidomeuolhar,somenoquartovizinhoeseveste.
QueméAgnès?
AssimcomoEvasaiudeumacosteladeAdão,assimcomoVênus
nasceudaespuma,Agnèssurgiudeumgestodeumasenhora
sexagenária,quevinabordadapiscina,dandoadeusaseuprofessorde
natação,ecujostraçosjáseapagamnaminhamemória.Seugesto
despertouemmimumaimensa,umaincompreensívelnostalgia,eessa
nostalgiagerouopersonagemaquemdeionomedeAgnès.
Masohomemnãosedefine,eumpersonagemderomancemenos
ainda,comoumserúnicoeinimitável?Comoentãoépossívelqueogesto
observadonumapessoaA,essegestoqueformavacomelaumtodo,quea
caracterizava,quecriavaseuencantosingular,sejaaomesmotempoa
essênciadeumapessoaBedetodaminhafantasiasobreela?Issoconvida
aumareflexão:Senossoplanetaviupassaroitentabilhõesdeseres
humanos,époucoprovávelquecadaumdelestenhaseupróprio
repertóriodegestos.
Matematicamente,éimpensável.Ninguémduvidaquenãohajano
mundoincomparavelmentemenosgestosdoqueindivíduos.Issonosleva
aumaconclusãochocante:umgestoémaisindividualdoqueum
indivíduo.Paradizerissoemformadeprovérbio:muitaspessoas,poucos
gestos.
Faleinoprimeirocapítuloarespeitodasenhorademaio,que,"no
espaçodeumsegundo,umaessênciadeseuencanto,quenãodependiado
tempo,revelava-se,emeencantava".Éoqueeupensava,masestava
enganado.Ogestonãorevelouabsolutamenteumaessênciadasenhora,ou
melhor,deveríamosdizerqueasenhoramerevelouoencantodeum
gesto.Poisnãopodemosconsiderarumgestonemcomoapropriedadede
umindivíduo,nemcomosuacriação(ninguémtendocondiçõesdecriar
umgestopróprio,inteiramenteoriginalepertencentesóasi),nemmesmo
comoseuinstrumento;ocontrárioéverdadeiro:sãoosgestosquese
servemdenós;somosseusinstrumentos,suasmarionetes,suas
encarnações.
Agnès,tendoterminadodesevestir,apressou-seemsair.Nasaídado
quarto,parouuminstanteparaescutar.Umvagoruídonoquartovizinho
indicavaquesuafilhaacabaradeacordar.Comoparaevitarumencontro,
apertouopassoeapressou-seemdeixaroapartamento.Noelevador,
apertouobotãodotérreo.Emvezdeandar,oelevadortremeu
convulsivamente,comoumhomemcomadoençadeSãoGuido.Nãoeraa
primeiravezqueoshumoresdamáquinaasurpreendiam.Orasubia
quandoelaqueriadescer,orarecusava-seaabriraportaeamantinha
prisioneiraumameiahora.Comosequisesseentabularumaconversa,
comosequisessecomunicar-lhealgumacoisadeurgentecomseusmeios
decepcionantesdeanimalmudo.Pordiversasvezesjásequeixaraà
porteira;masesta,jáqueoelevadorcomportava-secorretamentecomos
outroslocatários,nãovianaquestãoentreAgnèseelesenãoumproblema
particular,enãolhedavaamenoratenção.Agnèstevequesairedescera
pé.Assimqueelaodeixou,oelevadoracalmou-seeporsuavezdesceu.
Sábadoeraodiamaiscansativo.Paul,seumarido,saíaantesdassete
horas,ealmoçavacomumamigo,enquantoelaaproveitavaodialivrepara
resolverumaquantidadedeobrigaçõesmaispenosasqueseutrabalhono
escritório:iraocorreio,aguentarumameiahoradefila,fazerascompras
nosupermercado,brigarcomavendedora,perdertempodiantedacaixa,
telefonarparaobombeiro,suplicar-lheparapassarnumahora
determinadaparaevitardeesperá-loodiainteiro.Entredois
compromissos,esforçava-seemencontrarummomentoparaasauna,
ondenuncatinhatempodeirduranteasemana,epassavaofimdatarde
manejandooaspiradoreopanodepó,porqueafaxineira,quevinhana
sexta-feira,negligenciavaseutrabalhocadavezmais.
Masessesábadoeradiferentedosoutros:eraoquintoaniversárioda
mortedeseupai.Umacenavoltava-lheaoespírito:seupaiestásentado,
inclina-sesobreummontedefotografiasrasgadas,eairmãdeAgnèsgrita:
—Porquevocêestárasgandoasfotosdemamãe?Agnèsdefendeseu
pai,asduasirmãsbrigam,tomadasporumasúbitaraiva.
Elaentrouemseucarroestacionadoemfrentedecasa.
Umelevadorlevou-aaoúltimoandardeumedifíciomoderno,ondeo
clubeseinstalaracomsaladeginástica,piscina,pequenolagocomondas,
sauna,evistasobreParis.Novestiário,osalto-falantesespalhavammúsica
derock.Dezanosantes,quandoAgnèsseinscrevera,ossócioseram
poucoseoambientecalmo.Depois,deumanoparaooutro,oclube
melhorou:haviacadavezmaisvidro,maisluzes,plantasartificiais,altofalantes,música,cadavezmaisfrequentadores,cujonúmeroaindadobrou
nodiaemqueserefletiramnosimensosespelhosqueadireçãodecidiu
instalaremtodasasparedesdasaladeginástica.
Agnèsabriuseuarmárioecomeçouadespir-se.Duasmulheres
conversavampertodela.Comumavozlentaedocedecontralto,umase
queixavadeummaridoquedeixavatudoespalhadopelochão:seuslivros,
suasmeias,atéseucachimboeseusfósforos.Aoutra,umasoprano,tinha
umacadênciaduasvezesmaisrápida;amaneirafrancesadesubiruma
oitavanofimdafraselembravaocacarejoindignadodeumagalinha:
—Essaagora,vocêmedecepciona!Medápena!Nãoépossível!Ele
nãopodefazerisso!Nãoépossível!Vocêestánasuacasa!Temseus
direitos!Aoutra,comoquedivididaentreumaamigaemquemreconhecia
autoridadeeummaridoaquemamava,explicavamelancolicamente:
—Oquevocêquer.Eleéassim.Elesemprefoiassim.Sempredeixou
ascoisasespalhadaspelochão.
—Poisbem,queeleparecomisso!Vocêestáemsuacasa!Tem
direitos!
Eununcapoderiasuportarisso!
Agnèsnãoparticipavanessegênerodeconversa;nuncafalavamalde
Paul,mesmosabendoqueissoadistanciavaumpoucodasoutras
mulheres.Elavirouacabeçaemdireçãoàvozaguda:eraumamoçamuito
jovem,comcabelosclaroseumrostodeanjo.
—Ah,não,demodoalgum!Vocêtemseudireito!Nãoabaixeacabeça!,
continuouoanjo,eAgnèspercebeuquesuaspalavraseram
acompanhadasporcurtoserápidosmovimentosdecabeçadadireitapara
aesquerdaedaesquerdaparaadireita,enquantoosombroseas
sobrancelhaslevantavamcomoqueparademonstrarumespanto
indignadocomaideiaquesepudessedesconhecerosdireitoshumanosde
suaamiga.Agnèsconheciaessegesto:suafilhaBrigitebalançavaacabeça
exatamentedomesmomodo.
Umavezdespida,fechouoarmárioàchaveeentroupelaportade
vaivémnumasalaladrilhada,ondedeumladoestavamasduchas;do
outro,aportaenvidraçadadasauna.Eraláqueestavamasmulheres,
apertadasladoaladoembancosdemadeira.Algumasusavamumacapa
deplásticoespecial,queformavaemtornodocorpo(oudeumapartedele,
especialmentebarrigaenádegas)umaespéciedeembalagemhermética
queprovocaumaintensatranspiraçãoeaesperançadeemagrecimento.
Agnèssubiuparaomaisaltodosbancosaindadisponíveis.Apoiou-se
naparedeefechouosolhos.Abarulheiradamúsicanãochegavaatéali,
masasvozesmisturadasdasmulheres,quefalavamtodasaomesmo
tempo,ressoavamtãofortequantoela.Umajovemdesconhecidaentrou,e
desdeasoleiracomeçouacomandarasoutras:fezapertaraindamaisas
fileirasparaabrirespaçojuntoaocalor,depoisinclinou-separaapanharo
baldeeentornou-osobreofogareiro.
Comumchiado,ovaporfervendofoiemdireçãoaoteto,eumamulher
sentadaaoladodeAgnèsprotegeuorostocomasduasmãos,fazendouma
caretadedor.
Adesconhecidapercebeuissoedeclarou:
—Gostoqueovaporferva,issoprovaqueestamosnumasauna!
Plantou-seentredoiscorposnus,ecomeçouafalarsobreoprogramade
televisãodavésperaondeseapresentaraumcélebrebiólogoqueacabara
depublicarsuasmemórias.
—Eleestavamaravilhoso,disseela.Umaoutraaprovou:
—Émesmo!Etãomodesto!Adesconhecidacontinuou:
—Modesto?Vocênãocompreendeuqueessehomeméincrivelmente
orgulhoso,masoorgulhodelemeagrada!Adoroaspessoas
orgulhosas!Evirou-separaAgnès.
—Poracasovocêoachoumodesto?
Agnèsdissequenãotinhaassistidoaoprograma:comoseessa
respostaimplicassenumadiscordânciasecreta,adesconhecidarepetiu
comfirmeza,olhandoAgnèsnosolhos:
—Nãosuportoamodéstia!Osmodestossãounshipócritas!
Agnèslevantouosombros,eajovemdesconhecidacontinuou.
—Numasauna,éprecisoquehajacalor.Querotranspiraraos
borbotões.
Masdepois,éprecisoumaduchafria.Adoroasduchasfrias!Eunão
entendoaspessoasque,depoisdasauna,tomamduchasquentes.Emcasa
sótomoduchasfrias.Tenhohorroraduchasquentes.
Nãodemorouasufocar,tantoque,depoisdeterrepetidooquanto
detestavaamodéstia,levantou-seedesapareceu.
Nasuainfância,duranteumdospasseiosquefaziacomseupai,Agnès
lheperguntaraseeleacreditavaemDeus.Elerespondeu:
—AcreditonocomputadordoCriador.Arespostaeratãoestranhaque
acriançaaguardara.Computadornãoeraaúnicapalavraestranha,
Criadortambémera.PoisopainãofalavanuncadeDeus,massempredo
CriadorcomosequisesselimitaraimportânciadeDeusunicamenteàsua
performancecomoengenheiro.OcomputadordoCriador:mascomoum
homempoderiacomunicar-secomumaparelho?Elaentãoperguntouao
paiseelecostumavarezar.Eledisse:
—TantoquantocostumorezarparaEdisonquandoumalâmpada
queima.
EAgnèspensa:oCriadorcolocounocomputadorumdisquetecomum
programadetalhado,edepoisfoiembora.Quedepoisdecriaromundo,
Deusotenhadeixadoàmercêdehomensabandonados,e,aosedirigira
Ele,caemnumvaziosemeco,estaideianãoénova.Massever
abandonadopeloDeusdenossosantepassadoséumacoisa,eumaoutraé
serabandonadopeloinventordivinodocomputadorcósmico.Emseulugar
ficaumprogramaquesedesenrolaimplacavelmenteemsuaausência,sem
quesepossamudaroquequerqueseja.
Programarocomputador;issonãoquerdizerqueofuturoseja
planejadoemdetalhes,nemque"láemcima"tudoestejaescrito.Por
exemplo,oprogramanãoestipulavaqueem1815ocorresseabatalhade
Waterloo,nemqueosfrancesesaperdessem,masapenasqueohomemé
pornaturezaagressivo,queaguerralheéconsubstanciai,equeo
progressotécnicoatornarácadavezmaisatroz.Dopontodevistado
Criador,todoorestoésemimportância,simplesjogodevariaçõesede
permutasnumprogramageralquenadatemavercomumaantecipação
proféticadofuturo,masdeterminaapenasolimitedaspossibilidades;
entreesseslimitesdeixatodoopoderaoacaso.
Ohomeméumprojetodoqualpode-sedizeramesmacoisa.Nenhuma
Agnès,nenhumPaulfoiplanejadonumcomputador,masapenasum
protótipo:oserhumano,tiradoemmiríadesdeexemplaresquesão
simplesderivadosdomodeloprimitivo,quenãotemnenhumaessência
individual.Nãomaisessênciaindividualdoquetemumcarrosaídoda
fábricaRenault.Aessênciadocarrotemdeserprocuradaalémdesse
carro,nosarquivosdoconstrutor.Apenasumnúmerodesériedistingue
umcarrodooutro.Numexemplarhumano,onúmeroéorosto,esse
conjuntodetraçosacidentaleúnico.Nemocaráter,nemaalma,nem
aquiloquechamamosoeusedistinguemnesseconjunto.Esserosto
apenasnumeraumexemplar.
Agnèslembra-sedadesconhecidaqueacabaradeproclamarasua
raivadasduchasquentes.Elatinhavindorevelaratodasasmulheres
presentes1)quegostavadetranspirar,2)adoravaosorgulhosos,3)
desprezavaosmodestos,4)adoravaasduchasfrias,5)detestavaas
duchasquentes.Emcincotraçoseladesenharaseuauto-retrato,emcinco
pontosdefiniraseueueoofereceraatodoomundo.Eelanãoooferecera
modestamente(afinaldecontasdeclararaseudesprezopelosmodestos),
masàmaneiradeumamilitante.Empregaraverbosapaixonados,adoro,
desprezo,detesto,comoqueparasemostrarprontaadefenderpassoa
passooscincotraçosdeseuretrato,oscincopontosdesuadefinição.
Porqueessapaixão,perguntou-seAgnès,epensou:umavez
despachadosparaomundotalqualsomos,primeirotemosquenos
identificarcomessejogodedados,comesseacidenteorganizadopelo
computadordivino:deixardenosespantarmosprecisamentequeisso
(essacoisaquenosconfrontanoespelho)sejanossoeu.Senão
estivéssemosconvencidosdequenossorostoexpressanossoeu,senão
tivéssemosailusãoprimeiraefundamental,nãoteríamospodidocontinuar
aviver,oupelomenoslevaravidaasério.Enãoseriaaindasuficientenos
identificarmoscomnósmesmos,precisaríamosdeumaidentificação
apaixonadacomavidaecomamorte.Poiségraçasaessaúnicacondição
quenãoaparecemosanossosprópriosolhoscomoumasimplesvariante
doprotótipohumano,mascomoseresdotadosdeumaessênciaprópriae
intransferível.Eisporqueajovemdesconhecidasentiunecessidadenão
apenasdedesenharseuretrato,masaomesmotempoderevelaratodo
mundoqueesseretratoencerravaalgumacoisadeinteiramenteúnicae
insubstituívelpelaqualvaliaapenalutaremesmodaravida.
Depoisdepassarquinzeminutosnocalordaestufa,Agnèslevantou-se
efoimergulharnapiscinadeáguagelada.Emseguida,foiparaasalade
repousoedeitou-seentreasoutrasmulheresque,ali,tambémnão
paravamdefalar.
Umaperguntapassava-lhepelacabeça:depoisdamorte,queexistência
ocomputadorprogramara?
Doiscasossãopossíveis.SeocomputadordoCriadortemcomoúnico
campodeaçãoonossoplaneta,eseédele,eapenasdeleque
dependemos,nãopodemosesperardepoisdamortesenãoumavariação
daquiloqueconhecemosduranteavida;encontraremosapenaspaisagens
semelhantes,ecriaturassemelhantes.Ficaremossozinhosounuma
multidão?Ah!Asolidãoétãopoucoprovável,navidaelajáérara,entãoo
quedizerdepoisdamorte!Hátãomaismortosdoquevivos!Namelhor
hipóteseaexistênciadepoisdamorteparecerácomoqueAgnèsestá
vivendonasaladerepouso:portodooladoelaouviráumincessante
falatóriodemulheres.Aeternidadecomoumfalatórioinfinito:paraser
francapoderiaseimaginarpior,masmesmoaideiadeterdeouviressas
vozesdemulhersempre,semtrégua,eeternamente,éparaAgnèsuma
razãosuficienteparaagarrar-sefuriosamenteàvida,eretardaramorteo
máximopossível.
Masumaoutraeventualidadeseapresenta:acimadocomputador
terrestre,háoutrosquelhesãohierarquicamentesuperiores.Nessecaso,
aexistênciadepoisdamortenecessariamentenãodeveriaparecercomo
quejávivemos,eohomempoderiamorrercomumaesperançavagamais
justificada.Agnèsvê,então,umacenaquenessesúltimostemposocupa
suaimaginação:emcasa,elaePaulrecebemavisitadeumdesconhecido.
Simpático,afável,senta-senumapoltronaemfrenteaeleseentabulauma
conversa.Paul,encantadocomessevisitanteestranhamenteamável,
mostra-seafável,falante,amistoso,edecidebuscarumálbumondeestão
colocadososretratosdefamília.Ovisitanteofolheia,mascertasfotoso
deixamperplexo.Porexemplo,diantedaquerepresentaAgnèseBrigite
aopédatorreEiffel,elepergunta:
—Quemé?
—Vocênãoaestáreconhecendo?ÉAgnès!Eaquiénossafilha,
Brigite!
—Eusei,disseavisita;estoufalandodessaestrutura.Paulolhapara
elecomespanto:
—MaséatorreEiffel!
—Ah!bom,disseavisita,entãoessaéafamosatorre!Falanotomde
umhomemaquemvocêmostraoretratodeseuavôequedeclara:
—Entãoeleéoavôdequemtantoouvifalar!Estouencantadodevê-lo
finalmente!
Paulficadesconcertado,Agnèsnemtanto.Elasabequeméesse
homem.
Sabeporqueeleveio,equeperguntasvaifazeraeles.Éexatamente
porissoqueelasesenteumpouconervosa.Elagostariadeconseguirficar
asóscomele,masnãosabecomofazê-lo.
Hácincoanos,seupaimorrera,háseisanosperderaamãe.Naépoca,
opaijáestavadoente,etodosesperavamqueelemorresse.Amãe,ao
contrário,estavacheiadesaúdeedisposição,aparentementedestinadaa
umalongaefelizviuvez;demodoqueopaisentiraumcertodesgosto
quando,inesperadamente,elamorreraemseulugar.Comoseeletemesse
areprovaçãodaspessoas.Aspessoaseramafamíliadamãe.Afamíliado
paiestavaespalhadapelomundointeiro,ecomexceçãodeumaprima
distantequemoravanaAlemanha,Agnèsnãoconhecianinguém.Dolado
materno,aocontrário,todososparentesmoravamnamesmacidade:
irmãos,irmãs,primos,primaseumainfinidadedesobrinhosesobrinhas.
Oavômaterno,modestoagricultorrural,souberasacrificar-sepelosfilhos
quetinhamestudadoefeitobonscasamentos.
Semdúvida,nosprimeirostempos,amãeeraapaixonadapelopai:o
quenãoénadaespantoso,jáqueeraumhomembonito,ecomtrintaanos
jáexerciaafunção,entãoaindarespeitável,deprofessoruniversitário.Ela
nãosealegravaapenasdeterummaridodignodeinveja,alegrava-se
aindamaisemoferecê-locomopresenteàsuafamília,àqualestavaligada
pelaantigatradiçãodesolidariedaderural.Mascomoopaierapouco
sociável,egeralmentetaciturno(semqueninguémsoubesseseeleera
tímidoouseeracarregadoparalongepelosseuspensamentos,emoutras
palavras,seseusilêncioeramarcademodéstiaoudeindiferença),a
oferendamaternalforneceuàfamíliamaisproblemadoquefelicidade.
Àmedidaqueavidapassavaeocasalenvelhecia,amãeprendia-se
cadavezmaisaseusparentes:entreoutrasrazões,porqueopaificava
eternamentefechadoemseuescritório,enquantoqueelasentiauma
necessidadeincontroláveldefalarepassavahorasaotelefonecomsua
irmã,seusirmãos,suasprimasousuassobrinhas,comasquais
compartilhavacadavezmaisosproblemas.Agoraquesuamãemorrera,
Agnèsviasuavidacomoumcírculo:depoisquedeixaraseumeio,lançousecorajosamentenummundocompletamentediferente,depoisvoltou
paraseupontodepartida:moravacomseupaieasduasfilhasnumacasa
comjardimonde,váriasvezesporano(noNatal,nosaniversários),
convidavaafamíliaparagrandesfestas;suaintençãoeramoraralicom
suairmãesuasobrinhaquandoocorresseamortedopai(morte
prognosticadahámuitotempo,queproporcionavaaointeressadoa
atenciosasolicitudecomquesecercaaquelesquevãodeixaruma
herança).
Masamãemorreraeopaisobrevivera.Quinzediasdepoisdoenterro,
quandoAgnèsesuairmã,Laura,foramvê-lo,elasoencontraramsentado
diantedamesadasala,inclinadosobreummontedefotografiasrasgadas.
Lauraarrancou-asgritando:
—Porquevocêestárasgandoasfotosdemamãe?
Agnès,porsuavez,inclinou-sesobreodesastre:não,nãoeramapenas
asfotosdemamãe,eram,sobretudo,asfotosdopai;masemalgumasela
apareciaaseulado,eemoutraselaestavasó.Surpreendidoporsuas
filhas,opaicalou-se,semumapalavradeexplicação.
—Paredegritar,falouAgnèsentreosdentes,masLauracontinuou.O
pailevantou-se,foiparaoquartovizinhoeasduasirmãsbrigaramcomo
nunca.Nodiaseguinte,LaurapartiuparaParis,eAgnèscontinuouem
casa.Opai,então,confidenciou-lhequeencontraraumpequeno
apartamentonocentrodacidadeequeresolveravenderacasa.Foiuma
novasurpresa:poisaosolhosdetodomundo,opaieraumdesastradoque
tinhadeixadointeiramentecomamãeasrédeasdosnegócios.Acreditavasequeeleeraincapazdeviversemela,nãosomenteporqueelenãotinha
nenhumsensoprático,masporque,poroutrolado,elenuncasabiaoque
queria;poismesmoasuavontadeelepareciatercedidoàmãehámuito
tempo.Masquandodecidiumudar-se,subitamente,semhesitar,depoisde
algunsdiasdeviuvez,Agnèscompreendeuqueelerealizavaaquiloque
planejarahámuitotempo,equesabiamuitobemoquequeria.Eraainda
maisinteressanteporqueelenãopoderiaprever,elatambémnão,quea
mãemorreriaemprimeirolugar;setiveraaideiadecomprarum
apartamentonacidadevelha,era,portanto,menosumprojetodoqueum
sonho.Viveracomamãeemsuacasa,passearacomelanojardim,
acolherasuasirmãsesuassobrinhas,fingiraescutá-las,masduranteesse
tempo,naimaginação,eleviverasóemseuapartamentodesolteiro;depois
damortedamãe,nãofizerasenãomudar-separaondehámuitotempojá
moravaemespírito.
Pelaprimeiravez,eleapareceuparaAgnèscomoummistério.Porque
rasgarasfotos?Porquesonharacomumpequenoapartamentoportanto
tempo?
Eporquenãoforafielaodesejodamãe,quedesejavaversuairmãe
suasobrinhainstaladasnacasa?Issoteriasidomaisprático:elasteriamse
ocupadodelemelhordoqueaenfermeiracujosserviços,umdia,ele
contrataria.Quandoelaperguntou-lheporquequeriamudar-se,sua
respostafoimuitosimples:
—Oquevocêquerqueumhomemsozinhofaçanumacasatão
grande?
Elanemsugeriu-lhequeconvidasseairmãeasobrinha,tãoevidente
ficouqueelenãoqueriaisso.Agnèsimaginouqueseupaitambémfechava
umcírculo.
Amãe:dafamíliaàfamília,passandopelocasamento.Opai:passando
pelocasamentodasolidãoàsolidão.
Osprimeirossintomasdesuagravedoençaapareceramalgunsanos
antesdamortedamãe.Agnèstiraraquinzediasdefériasparapassar
sozinhacomele...
Massuaexpectativanãoserealizou,porqueamãenuncaosdeixoua
sós.Umdia,oscolegasdauniversidadevieramvisitaropai.Fizeram-lhe
todaespéciedeperguntas,maserasempreamãequerespondia.Agnès
nãoaguentoumais:
—Porfavor!Deixepapaifalar!Amãeficouzangada:
—Vocênãoestávendoqueeleestádoente!
Quandonofimdessesquinzediasopaisesentiuligeiramentemelhor,
Agnèsfezdoispasseioscomele.Masnoterceiro,amãefoidenovocom
eles.
Amãemorreraháumanoquandooestadodesaúdedopaiagravou-se
subitamente.Agnèsfoivê-lo,passoutrêsdiascomele,noquartodiaele
morreu.
Essestrêsdiasforamosúnicosqueelapôdepassarnacompanhiadele
nascondiçõesqueelasempredesejara.Pensouqueeleshaviamseamado
semteremtidotempodeseconhecer,porfaltadeocasiõesdese
encontraremasós.Sóentreoitoedozeanoselapôdeficarsozinhacomele
muitasvezes,porqueamãetinhadeseocupardapequenaLaura;faziam,
então,longospasseiosnanatureza,eelerespondiasuasinúmeras
perguntas.Foiaíqueelelhefalousobreocomputadordivino,esobreuma
porçãodeoutrascoisas.Dessasconversas,sólheficaramfragmentos,
semelhantesacacosdelouçaquebrada,que,chegandoàidadeadulta,ela
esforçava-seporcolarnovamente.
Amortepôsfimàsuaeternasolidãoadois.Noenterro,todaafamília
damãevoltouaencontrar-se.Mascomoamãenãoestavamaislá,
ninguémtentoutransformarolutoembanquetefúnebre,eoenterro
dispersou-serapidamente.
Aliás,osparenteshaviaminterpretadoavendadacasaeamudançado
paiparaumapartamentocomoumamaneiradenãorecebervisitas.
Sabendodopreçodacasa,elesnãopensavamsenãonaherançarecebida
pelasduasfilhas.Masotabeliãoinformou-lhesquetodoodinheiroque
estavanobancodestinava-seaumasociedadedematemáticos,daqualo
paiforaco-fundador.Eletomou-seaindamaisdistantedoqueeraquando
vivo.Comose,comessetestamento,elelhespedisseofavordeesquecê-lo.
Depois,umdia,Agnèsconstatouquesuacontanobancosuíçotinha
sidocreditadacomumaquantiabastanteconsiderável.Elacompreendeu
tudo.Estehomemaparentementetãodestituídodesensoprático,agira
commuitaastúcia.
Dezanosantes,quandoumprimeiroalertacolocarasuavidaemrisco
equeelavierapassarquinzediascomele,eleaobrigaraaabriruma
contanaSuíça.
Poucoantesdesuamorte,elecolocaranelaquasetodososseussaldos
bancários,guardandoorestoparaossábios.Seeletivessedesignado
abertamenteAgnèscomosuaherdeira,teriaferidoinutilmentesuaoutra
filha;setivessetransferidosecretamentetodoseudinheiroparaaconta
deAgnès,semdestinarumaquantiasimbólicaparaosmatemáticos,teria
suscitadoacuriosidadeindiscretadetodomundo.
Primeiramente,elaachouquedeviadividircomLaura.Comoelaera
oitoanosmaisvelha,Agnèsnãopodiasedesfazerdeumsentimento
protetoremrelaçãoasuairmã.Mas,finalmente,nãolhedissenada.Não
poravareza,masportemordetrairseupai.Comessepresente,
certamenteeletinhadesejadodizer-lhealgumacoisa,fazer-lheumsinal,
darumconselho,queelenãotiveratempodedaremvidaequeela
deveria,noentanto,guardarcomoumsegredoquesópertenciaaeles
dois.
Elaestacionouocarro,desceuedirigiu-separaagrandeavenida.
Sentia-secansadaemorriadefome,ecomoétristealmoçarsozinhaem
restaurante,suaintençãoeracomeralgumacoisabemdepressanum
bistrôqualquer.
Antigamenteobairroeracheiodeacolhedorastavernasbretãs,onde
sepodiacomeràvontadepanquecascomcaldadecidra.Umdia,as
tavernasdesapareceramparadarlugaraessasmodernaslanchonetesàs
quaisdamosotristenomedefastfood.Tentandoporumasóvezsuperar
suaaversão,dirigiu-seaumadessaslanchonetes.Atravésdovidroviaos
clientesinclinadossobreatoalhagordurosadepapel.Seuolhardeteve-se
sobreumamoçadepelemuitopálidaelábiosdeumvermelhovivo.Assim
queacabouoalmoço,amoçaempurrouocopodecoca-colavazioeenfiou
odedoindicadornofundodaboca;ficoumexendocomodedoalidurante
muitotempo,revirandoosolhos.Namesavizinha,umhomem
escarrapachadonacadeiraolhavafixamentearua,escancarandoaboca.
Seubocejonãotinhacomeçonemfim,eraobocejoinfinitodamelodia
wagneriana:abocafechava-se,masnãointeiramente,elaabria-semaise
mais,enquantoaomesmotempoosolhostambémseabriamefechavam.
Outrosclientesbocejavam,exibindoseusdentesesuaspontes,suas
coroasesuaspróteses,eninguémnuncapunhaamãoemfrenteàboca.
Entreasmesaspasseavaumacriançaderouparosa,segurandoseu
ursinhoporumapata,eelatambémestavacomabocaaberta;evia-se
bemque,aoinvésdebocejar,emitiagritos,batendodevezemquandocom
oursinhonaspessoas.Comoasmesasficavamladoalado,mesmoatrásdo
vidropercebia-sequecadapessoadeviaestarengolindo,juntocomseus
pedaçosdecarne,oseflúviosquenessemêsdejunhoemanavamda
transpiraçãodosvizinhos.AondadefeiúraatingiuAgnèsnorosto,afeiúra
visual,olfativa,gustativa(Agnèsimaginavaogostodohambúrguer
inundadodecoca-colaadocicada),atalpontoquedesviouosolhose
decidiumatarafomeemoutrolugar.
Acalçadaformigavadegenteeandava-secomdificuldade.Diantedela,
duaslongassilhuetasnórdicascomrostospálidos,cabelosamarelos,
abriamcaminhonamultidão:umhomemeumamulher,dominandocom
suascabeçasamassamovediçadefranceseseárabes.Umeoutrotraziam
nascostasumamochilarosa,enabarriga,numsuporte,umacriança.Logo
desapareceram,substituídosporumamulhervestidacomcalçalargaque
paravanojoelho,segundoamodadoano.Seutraseiro,comessaroupa,
pareciaaindamaioremaispróximodochão;ostornozelos,nusebrancos,
pareciamumvasorústicoenfeitadocomumrelevodevarizesazulacinzentadas,enroladascomoumnódepequenasserpentes.Agnès
pensou:essamulherpoderiaterencontradovinteoutrasmaneirasde
vestir-separatornarseutraseiromenosmonstruosoedissimularsuas
varizes.Porquenãoofaz?Nãoapenasaspessoasnãoprocurammaisficar
bonitasquandoestãonomeiodasoutras,masnemmesmoevitamser
feias!
Elapensou:umdia,quandoainvasãodefeiúratornar-seinteiramente
insuportável,compraránofloristaumsóraminhodemiosótis,pequeno
cauleencimadoporumaflorminiatura,sairácomelenarua,segurando-o
emfrenteaorosto,oolharfixadoneleafimdenadaver,anãoseresse
belopontoazul,últimaimagemquequerconservardeummundoqueela
deixoudeamar.Irá,destaforma,pelasruasdeParis,aspessoaslogo
saberãoreconhecê-la,ascriançascorrerãoatrás,zombarãodela,jogarão
coisaseParisinteirairáapelidá-la:adoidadomiosótis...
Continuouseucaminho:oouvidodireitoregistravaaalgazarrada
música,asbatidasritmadasdebateria,provenientesdaslojas,dossalões
decabeleireiro,dosrestaurantes;enquantooouvidoesquerdocaptavaos
barulhosdochão:oronronaruniformedoscarros,oroncodeumônibus
quearrancava.Depoisobarulhopenetrantedeumamotoaatingiu.Ela
nãopôdedeixardeprocurarcomosolhosoquelhecausavaessador
física:umamoçadejeans,delongoscabelosflutuandoaovento,mantinhaseempertigadanaselacomoatrásdeumamáquinadeescrever;
desprovidodesilencioso,omotorfaziaumaalgazarraatroz.
Agnèslembrou-sedadesconhecidaquetrêshorasantesentrarana
saunaeque,paraapresentarseu"eu",paraimpô-loaosoutros,anunciara
ruidosamentenasoleiradaportaquedetestavaasduchasquentesea
modéstia.Agnèspensou:amoçadecabelospretosobedeceuaumimpulso
semelhanteaotirarosilenciosodesuamoto.Nãoeraamáquinaquefazia
barulho,erao"eu"damoçadecabelospretos;essamoça,paraserouvida,
paraocuparopensamentodosoutros,tinhaacrescentadoàsuaalmaum
barulhentocanodedescarga.Aovervoaroslongoscabelosdessaalma
barulhenta,Agnèscompreendeuqueeladesejavaintensamenteamorte
damotociclista.Seoônibusativesseesmagado,seelativesseficado
ensanguentadanoasfalto,Agnèsnãoteriasentidonemhorrornempena,
apenassatisfação.
Derepente,assustadacomesseódio,pensou:omundoatingiuuma
fronteira,quandoeleaultrapassar,tudopodevirarloucura:aspessoas
andarãopelasruassegurandoummiosótis,ouentãoatirarãounsnos
outrosnafrentedetodos.Ebastarámuitopoucacoisa,umagotad'água
faráocopotransbordar:porexemplo,umcarro,umhomem,ouumdecibel
amaisnarua.Existeumafronteiraquantitativaanãoserultrapassada;
masessafronteiranãoévigiadaporninguém,etalvezatémesmoninguém
saibadesuaexistência.
Nacalçadahaviacadavezmaisgente,eninguémlhecedialugar,de
modoquedesceuparaarua,continuandoseucaminhoentreabeiradada
calçadaeofluxodoscarros.Hámuitotempofizeraaexperiência:nuncaas
pessoaslheabriamcaminho.Sentiaissocomoumaespéciedemaldição
quemuitasvezesesforçava-seporquebrar:juntandocoragem,esforçavaseparanãosairdeumalinhareta,afimdeobrigarapessoaemfrentea
desviar-se,massempreerravaogolpe.Nessaprovadeforçacotidiana,
banal,erasempreelaaperdedora.Umdia,umacriançadeseteanostinha
aparecidoemfrenteaela;elatinhatentadonãoceder,masfinalmentenão
pôderesistirpormedodeesbarrarnacriança.
Voltou-lheumalembrança:comunsdozeanosdeidade,tinhaido
passearcomospaispelamontanha.Nomeiodeumgrandecaminho,na
floresta,apareceramdiantedelesdoisgarotosdovilarejo:umdeles
seguravanamãoumbastãoparacomelebarrar-lhesapassagem;
—Éumcaminhoparticular!Umcaminhocompedágio!Gritouele,
empurrandolevementeabarrigadopaicomobastão.
Semdúvidaeraapenasumabrincadeiradecriançaebastariater
afastadoogaroto.Ouentãoseriaumamaneirademendigareteria
bastadotirarumfrancodobolso.Masopaideumeia-voltaepreferiu
tomarumoutrocaminho.Paradizeraverdade,erasemimportância,eles
caminhavamsemdireção;noentanto,amãelevouamalaquestãoenão
pôdedeixardedizer:
—Elerecuamesmodiantedegarotosdedozeanos!
NahoraAgnèstambémsentiu-seumpoucodecepcionadacomo
comportamentodeseupai.
Umanovaofensivadebarulhointerrompeuessalembrança;homens
comcapacetes,armadosdebritadeiras,inclinavam-seemarcosobreo
asfalto.Deumaalturaindeterminada,comosecaíssedocéu,umafugade
Bachtocadaaopianosoou,derepente,comforçanomeiodessa
barulheira.Aparentemente,umlocatáriodoúltimoandarabriraajanelae
colocaraseuaparelhonovolumemáximo,paraqueabelezaseverade
Bachressoassecomoumaadvertênciadirigidaaomundoensandecido.
MasafugadeBachnãoerasuficientepararesistiraosbritadoresnemaos
carros,aocontrário,foramoscarroseosbritadoresqueseapropriaram
dafugadeBach,integrando-aàsuaprópriafuga;Agnèspôsamãonos
ouvidosedestamaneiracontinuouseucaminho.
Umtranseunte,queianadireçãooposta,lançou-lhe,então,umolhar
furiosobatendocomsuamãonatesta,oquenalinguagemdosgestosde
todosospaísessignificaparaooutroqueeleélouco,malucooupobrede
espírito.Agnèscaptouesseolhar,essaraiva,esentiu-seinvadidaporuma
cóleraincontrolável.
Parou.Queriaavançarnohomem.Queriacobri-lodepancadas.Mas
nãopodia:ohomemjáforacarregadopelamultidão,eAgnèslevouum
empurrão,poiseraimpossívelpararmaisdetrêssegundosnacalçada.
Continuouseucaminhosemconseguirtiraressehomemdacabeça:
quandoummesmoruídoosenvolveu,elejulgounecessáriofazê-la
entenderqueelanãotinhanenhumarazão,talvezmesmonenhumdireito,
detaparosouvidos.
Estehomemtinhachamadoatençãoparaseugesto.Eraaigualdade
personificadainfligindo-lheumaculpa,nãoadmitindoqueumindivíduose
recusasseasuportaroquetodosdeveriamsuportar.Eraaigualdadeem
pessoaquelheproibiradeficaremdesacordocomomundoemquetodos
vivemos.
Seudesejodematarestehomemnãoeraumasimplesreação
passageira.
Mesmodepoisdoprimeiromomentodefúria,essedesejonãoa
deixava;juntava-seaeleapenasoespantodesercapazdeumatalraiva.A
imagemdohomembatendonatestaflutuavaemsuasentranhascomoum
peixequelentamenteapodreciaequeelanãopodiavomitar.
Seupaivoltou-lheaoespírito.Depoisquerecuaradiantededois
garotosdedozeanos,muitasvezeselaoimaginavanaseguintesituação:
eleestáabordodeumnavioqueafunda;éevidentequeosbotesde
salvamentonãopoderãoacolhertodomundo,demodoquenotombadilho
oatropeloéfrenético.Opaicomeçaacorrercomosoutros,mas
descobrindoocorpo-a-corpodospassageirosprestesasepisotearematéa
morte,erecebendoumtremendosocodeumasenhoraporqueestáno
caminhodela,derepentepára,coloca-seaolado,eporfim,ficaapenas
observandoosbotessuperlotadosque,nomeiodeclamoresedeinjúrias,
descemlentamentesobreasondasdescontroladas.
Quenomedaraessaatitudedopai?Covardia?Não.Oscovardestêm
medodemorrer,eparasobreviversabemlutarcorajosamente.Nobreza?
Semdúvida,seeletivesseagidoporconsideraçãocomseupróximo.Mas
Agnèsnãoacreditavanumatalmotivação.Então,doquesetratava?Ela
nãosabia.Umaúnicacoisaparecia-lhecerta:numbarcoqueafundae
ondeéprecisolutarparasubirnosbotes,opaiestariacondenadopor
antecipação.
É,issoeracerto.Aquestãoqueelasecolocaéaseguinte:seupaiteria
odiadoaspessoasdonaviocomoelaacabaradeodiaramotociclistaeo
homemquezombaradelaporqueelataparaosouvidos?Não,Agnèsnão
chegaaimaginarqueseupaipudesseodiar.Aarmadilhadoódioéqueele
nosprendemuitointimamenteaoadversário.Eisaobscenidadedaguerra:
aintimidadedosanguemutuamentederramado,aproximidadelascivade
doissoldados,que,olhosnosolhos,transpassam-sereciprocamente.Agnès
temcerteza:éprecisamenteessaintimidadequerepugnaseupai:o
atropelonobarcooencheriadeumatalrepulsaqueeleprefeririamorrer
afogado.Ocontatofísicocompessoasquesebatem,sepisoteiamese
matamumasàsoutrasparecia-lhebempiordoqueumamortesolitáriana
purezadaságuas.
Alembrançadopaicomeçavaalibertá-ladoódioqueacabarade
invadi-la.Poucoapouco,aimagemenvenenadadohomembatendocoma
mãonatestadesapareciadeseuespírito,ondebruscamentesurgiuesta
frase:nãopossomaisodiá-los,porquenadameuneaeles;nãotemosnada
emcomum.
SeAgnèsnãoéalemã,éporqueHitlerperdeuaguerra.Pelaprimeira
veznahistória,nãosedeixouaovencidonenhuma,nenhumaglória:nem
mesmoadolorosaglóriadonaufrágio.Ovencedornãosecontentouem
vencer,decidiujulgarovencido,ejulgoutodaanação;porissonessa
épocafalaralemãoeseralemãonãotinhasidofácil.
OsavósmaternosdeAgnèstinhamsidoproprietáriosdeumafazenda
nafronteiradaszonasfrancesaealemãdaSuíça;tantoquefalavam
fluentementeasduaslínguas,sebemqueadministrativamenteessazona
pertencesseàSuíçafrancesa.Osavóspaternoseramalemães
estabelecidosnaHungria.Opai,antigoestudanteemParis,tinhaumbom
conhecimentodefrancês;noentanto,quandocasou-se,oalemãotornou-se
naturalmentealínguadocasal.Masdepoisdaguerra,amãelembrou-se
dalínguaoficialdeseuspais:Agnèsfoimandadaparaumliceufrancês.O
pai,comoalemão,sósepermitia,portanto,umprazer:recitarparasua
filhamaisvelhaosversosdeGoethenooriginal.
Eisopoemaalemãomaiscélebredetodosostempos,aquelequetoda
criançaalemãdeveaprenderdecor:
Sobretodososcumes
Éosilêncio,
Nacopadetodasasárvores
Vocêsente
Apenasumsuspiro
Ospassarinhossecalamnafloresta.
Tenhapaciência,logo
Vocêdescansarátambém.
Aideiadopoemaémuitosimples:aflorestaadormece,vocêtambém
adormecerá.Avocaçãodapoesianãoénosdeslumbrarcomumaideia
surpreendente;massimfazercomqueuminstantedosersetorne
inesquecíveledignodeumainsustentávelnostalgia.
Natraduçãotudoseperde,sóseperceberáabelezadopoemalendo-o
emalemão:
uberallenGipfeln
IstRuh,
InallenWipfeln
Spurestdu
KaumeinenHauch;
DieVògeleinschweigenimWalde.
Wartenur,balde
Ruhestduauch.
Todosessesversostêmumnúmerodesílabasdiferentes,ostroqueus,
osiambos,osdáctilossealternam,osextoversoéestranhamentemais
longoqueosoutros;eapesardopoemasercompostoporduasquadras,a
primeirafrasegramaticalterminaassimetricamentenoquintoverso,
criandoumamelodiaquenãoexisteemnenhumaoutraparteanãoser
nessesóeúnicopoema,tãosublimequantoperfeitamentecomum.
OpaioaprenderadesdeasuainfâncianaHungria,quando
frequentavaaescolaprimáriaalemã,eAgnèstinhaamesmaidadequando
elefezcomqueelaoescutassepelaprimeiravez.Elesorecitavamemseus
passeios,acentuandoexageradamentetodasassílabastônicas,eandando
noritmodopoema.Acomplexidadedamétricanãotornandoacoisafácil,o
sucessosósecompletavanosdoisúltimosversos:war-tenur-bal-deru-hestdu-auch.Elesgritavamtãoforteaúltimapalavraqueelaeraouvida
noraiodeumquilômetro.
Opairecitaraopoemapelaúltimavez,doisoutrêsdiasantesdesua
morte.PrimeiroAgnèsacreditouquedestaformaelevoltavaàsua
infância,àsualínguamaterna;depoispensou,quandoeleaolharadireto
nosolhos,íntimaeeloquentemente,queelequeriaqueelarecordassea
felicidadedeseuspasseiosdeoutrora;só,nofinal,elacompreendeuqueo
poemafalavadamorte:seupaiquerialhedizerqueiamorrerequesabia
disso.Nuncalheocorreraantesaideiadequeessesversosinocentes,bons
paraoscolegiais,pudessemtertalsignificado.Seupaiestavadeitado,a
testacobertadesuor;elatomou-lheamão,e,retendoaslágrimas,repetiu
docementecomele:wartenur,balderuhestduauch.Logodescansarás
também.Eelasedeucontadequereconheciaavozdamortedopai:erao
silênciodospássarosadormecidosnostoposdasárvores.
Osilêncio,realmente,espalhou-sedepoisdamorte,encheuaalmade
Agnès,eerabelo;tornareiadizê-lo:eraosilênciodospássaros
adormecidosnostoposdasárvores.Enestesilêncio,comoumacornetade
caçanofundodafloresta,ressoavacadavezmaisnitidamenteaúltima
mensagemdopai,àmedidaqueotempopassava.Oqueelequereriadizer
comoseupresente?Quefosselivre.Paravivercomoquisesseviver,para
irondequisesseir.Elenuncaousaraisso.Porissoderatodososmeiosà
suafilhaparaqueelaousasse,ela.
Desdeseucasamento,Agnèsrenunciaraàsalegriasdasolidão:cada
diapassavaoitohorasnumescritórioemcompanhiadedoiscolegas;
depoisvoltavaparacasa,paraseuapartamentodequatropeças.Mas
nenhumadaspeçaslhepertencia:haviaumagrandesala,umquartode
dormir,umquartoparaBrigite,eopequenoescritóriodePaul.Quandoela
sequeixava,Paulpropunhaqueconsiderasseasalacomoseuquarto,e
prometia(comumasinceridadeinsuspeita)quenemelenemBrigite
viriamincomodá-la.Mascomoelaficariaàvontadenumasalamobiliada
comumagrandemesaeoitocadeirasfrequentadasapenaspelasvisitas
quevinhamànoite?
TalvezagorapossamoscompreendermelhorporqueAgnèssesentira
tãofeliz,essamanhã,nasuacamaquePaulacabaradedeixar,eporque
emseguidaatravessaraocorredorsemfazerbarulho,commedode
chamaraatençãodeBrigite.Atésentiacertaafeiçãopeloelevador
inconstante,jáquelheproporcionavaalgunsmomentosdesolidão.Mesmo
seucarrolhedavaumpoucodefelicidade,porquealininguémlhefalava,
ninguémaolhava.Sim,issoeraoprincipal,ninguémaolhava.Asolidão:
doceausênciadeolhares.Umdia,seusdoiscolegasficaramdoentese
duranteduassemanastrabalhousozinhanoescritório.Ànoite,constatou
comgrandeespantoquenãosentiaquasenenhumcansaço.Issoafez
compreenderqueosolhareseramfardosinsuportáveis,beijosde
vampiros;queforaoestiletedosolharesquegravaraasrugasemseu
rosto.
Essamanhã,acordando,ouviranorádioque,duranteumaintervenção
cirúrgicasemimportância,umanegligênciadosanestesistasocasionaraa
mortedeumajovempaciente.Emconsequênciadisso,trêsmédicos
estavamsendoindiciadoseumaorganizaçãodedefesadosconsumidores
propuseraque,nofuturo,todasasoperaçõesfossemfilmadas,eosfilmes
arquivados.Parecequetodosaplaudiramessainiciativa.Milharesde
olharesnostranspassamcadadia,masissonãoésuficiente:éprecisoalém
dissoumolharinstitucional,quenãonosdeixaráumsegundo,quenos
observaránomédico,narua,sobreamesadecirurgia,nafloresta,no
fundodacama;aimagemdenossavidaseráconservadaintegralmenteem
arquivosparaserusadaaqualquermomentoemcasodelitígio,ouquando
acuriosidadepúblicaoexigir.
NovamentesentiuumagrandesaudadedaSuíça.Depoisdamortedo
pai,iaàSuíçaduasoutrêsvezesporano.PauleBrigite,comumsorriso
indulgente,referiam-seaissocomoumanecessidadehigiênicosentimental:elaiavarrerasfolhasmortasdecimadotúmulodopai,ia
respiraroarpuropelagrandejanelaabertadeumhotelalpino.Eles
estavamenganados:aSuíça,ondenenhumamanteaesperava,eraaúnica
graveesistemáticainfidelidadedequesesentiaculpadaemrelaçãoaeles.
ASuíça:ocantodospássarosnotopodasárvores.
Agnèssonhavaficarláumdiaenuncamaisvoltar.Chegavamesmoa
visitarosapartamentosàvendaouporalugar;chegouatéafazero
rascunhodeumacartaanunciandoàfilhaeaomaridoque,apesarde
continuaraamá-los,queriaagoraviversó.Sópediaaelesquedetempos
emtemposmandassemnotíciasparaqueelativessecertezadequenada
demaulhesacontecera.Eraissoprecisamentequetinhadificuldadeem
expressareexplicar:suanecessidadedesabercomoestavam,aomesmo
tempoquenãodesejavavê-losnemviveremcompanhiadeles.
Éclaro,evidentemente,queissoeramsonhos.Comoumamulher
sensatapodeabandonarumcasamentofeliz?Apesardisso,umavoz
longínquaesedutoraperturbavasuapazmatrimonial:eraavozda
solidão.Fechavaosolhoseouviaaolonge,naprofundezadasflorestas,o
somdeumacometadecaça.Haviacaminhosnessasflorestas,eemum
delesestavaseupai;elelhesorria;eleachamava.
Sentadanumapoltrona,nasala,AgnèsesperavaPaul.Diantedeles
haviaaperspectivadeumcansativo"jantarfora".Comonãotinhacomido
nadaduranteodia,sentia-seumpoucofraca,epermitia-seummomento
dedescontraçãofolheandoumarevistavolumosa.Muitocansadaparaler
psartigos,contentava-seemolharasfotografias,numerosasecoloridas.
Naspáginascentrais,haviaumagrandereportagemconsagradaauma
catástrofeocorridaduranteumaexibiçãoaeronáutica.Umaviãoem
chamascaírasobreamultidãodeespectadores.Asfotografiaseram
imensas,cadaumaocupavaumapáginadupla;viam-sepessoas
aterrorizadas,correndoemtodasasdireções,asroupasqueimadas,apele
torrada,ocorpocercadodechamas;Agnèsnãoconseguiadesviaroolhare
pensavanaalegriafrenéticadofotógrafoqueviraderepente,enquantose
aborreciacomumespetáculosoporífero,afelicidadecair-lhedocéusoba
formadeumaviãoemchamas.
Virandoapágina,viupessoasnuasnumapraiaeumgrandetítulo:as
fotosdefériasquenuncaserãovistasnoálbumdeBuckingham,seguidode
umtextocurtoqueterminavacomestafrase:"...eofotógrafoestavalá:os
amigosdaprincesaassustamnovamenteacrônica".Umfotógrafoestavalá.
Emtodolugarestáumfotógrafo.Umfotógrafoescondidoatrásdeum
arbusto.Umfotógrafodisfarçadoemmendigoaleijado.Emtodolugar
existeumolho.Emtodolugarexisteumaobjetiva.
Agnèslembrou-sequeoutrora,emsuainfância,ficavafascinadacoma
ideiadequeDeusaviaeaviasemtréguas.Foientão,semdúvida,que
sentiupelaprimeiravezessavolúpia,esseestranhoprazerqueoshomens
sentememservistos,vistosacontragosto,vistosemseusmomentosde
intimidade,vistosevioladospeloolhar.Suamãe,queerareligiosa,dizialhe:"Deusestávendovocê",esperandofazê-laperderohábitodementir,
deroerasunhas,edecolocarosdedosnonariz,masaconteceujustoo
contrário;eraprecisamentequandoelaseentregavaaessesmaushábitos,
ounosmomentosdevergonha,queAgnèsimaginavaDeusemostrava-lhe
oqueestavafazendo.
PensounairmãdarainhadaInglaterra,imaginandoquenaquelahora
oolhodeDeusforasubstituídopeloaparelhodefotografia.Oolhodeum
sóerasubstituídopelosolhosdetodos.Avidatransformara-senumaúnica
evastaorgiasexualnaqualtodomundoparticipa.Todomundopodever,
numapraiatropical,aprincesadaInglaterrafestejarnuaoseu
aniversário.Aparentemente,oaparelhofotográficosóseinteressapor
pessoascélebres,masbastaqueumaviãoseespatifepertodevocê,que
saiamchamasdesuacamisa,paraquevocêsetornecélebreeincluídona
orgiageralquenadatemavercomoprazer,masanunciasolenemente
queninguémpodeseesconderemlugarnenhumequecadaumestáà
mercêdetodos.
Umdiaemquemarcaraumencontrocomumhomem,nomomentoem
queobeijavanohalldeumgrandehotel,umtipodejeanseblusãode
courosurgiu,inesperadamente,comcincosacolasatiracolo;agachado,
colouoolhonamáquina.Agitandoamão,tentoufazê-locompreendersua
recusaemserfotografada,masotipo,depoisdebalbuciaralgumas
palavraseminglês,começouarireasaltarparatodososladoscomouma
pulga,apertandoodisparadordamáquinasemparar.Episódio
insignificante:comonaquelediahaviaumcongressonohotel,haviam
alugadooserviçodeumfotógrafoparaqueossábios,vindosdomundo
inteiro,pudessemcomprarsuasfotografiasdelembrançanodiaseguinte.
MasAgnèsnãosuportavaaideiadequepudessesubsistiremalgumlugar
umatestemunhadoseuencontrocomoamigo:nodiaseguinte,voltouao
hotelparacomprartodasasfotos(queamostravamaoladodohomem
comumamãolevantadadiantedorosto)epediutambémosnegativos,
masesses,jáclassificadosnosarquivosdaempresa,estavaminacessíveis.
Apesardaausênciadetodoperigo,elanãopodiaselivrardeumacerta
angústiacomaideiadequeumsegundodesuavida,emvezdese
converteremnadacomotodososoutrossegundos,seriaarrancadodo
cursodotempoeseumacasoimbecilviesseexigilo,umdiairiaressuscitar
comoummortomalenterrado.
Pegouumaoutrarevista,essamuitomaisvoltadaparaapolíticaea
cultura.Nãohaviacatástrofes,nãohaviaprincesasnuasabeira-mar,mas
rostos,rostos,rostosemtodaparte.Mesmonasegundaseçãodarevista,
consagradaaoscomentáriossobrelivros,osartigoseramtodos
acompanhadosdeumafotografiadoautoremquestão.Osautoressendo
geralmentedesconhecidos,podiajustificar-seafotocomoinformaçãoútil,
mascomojustificarcincofotografiasdopresidentedaRepública,dequem
todomundoconheciadecoronarizeoqueixo?Oscronistastambém
tinhamsuasfotoscomvinheta,esemanaapóssemanacertamenteela
seriarepetidanomesmolugar.Nareportagemsobreastronomia,viam-se
ossorrisosampliadosdosastrônomos;erostosemtodososencartes
publicitários,rostoselogiavammóveis,máquinasdeescreveroucenouras.
Denovopercorreuarevistadaprimeiraàúltimapáginafazendoocálculo:
setentaeduasfotosrepresentandoumsórosto;quarentaeumacomo
rostoeocorpo;noventarostosevinteetrêsfotosdegrupos;esóonze
fotografiasondeoshomensdesempenhavamumpapelinsignificanteou
nulo.Nototalhaviaduzentosevinteetrêsrostosnarevista.
Depois,quandoPaulchegouemcasa,Agnèscontou-lhesobreseus
cálculos.
—Sim,concordouele.Quantomaisohomemtorna-seindiferenteà
política,aosinteressesdooutro,maiseleficaobcecadoporseupróprio
rosto.Éoindividualismodenossostempos.
Oindividualismo?Ondeestáoindividualismoquandoacâmerafilma
vocênomomentodesuaagonia?Aocontrário,estáclaroqueoindivíduo
nãosepertencemais,queécompletamenteapropriedadedosoutros.
Lembro-medequenaminhainfância,quandoqueriamfotografaralguém,
semprepediamlicença.Mesmoamim,osadultosperguntavam:diga,
menina,podemostirarseuretrato?Depois,umdianinguémperguntou
maisnada.Odireitodacâmerafoicolocadoacimadetodososdireitos,e
dessediaemdiantetudomudou,rigorosamentetudo.
Pegouarevistaedisse:
—Quandovocêcolocaladoaladoafotodedoisrostosdiferentes,fica
espantadocomtudoqueosdiferencia.Masquandotemdiantedesi
duzentosevinteetrêsrostos,compreende,derepente,quenãovêsenão
numerosasvariantesdeumsórosto,equenenhumindivíduojamais
existiu.
—Agnès,dissePaulesuavozsubitamentetornou-segrave,seurosto
nãoseparececomnenhumoutro.
Agnèsnãonotouotomdesuavozesorriu.
—Nãosorria.Estoufalandosério.Quandoamamosalguém,amamos
seurosto,eassimotornamostotalmentediferentedosoutros.
—Seidisso.Vocêmeconhecepelomeurosto,meconhececomorosto,
enuncameconheceudeoutromodo.Assimnãopodeter-lheocorridoa
ideiadequemeurostonãofosseeu.
Paulrespondeucomasolicitudepacientedeumvelhomédico:
—Comovocêpodepretendernãoserseurosto?Oqueexisteatrásdo
seurosto?
—Imaginequevocêtenhavividonummundoemquenãoexistissem
espelhos.Vocêteriasonhadocomseurosto,oteriaimaginadocomo
umaespéciedereflexoexteriordaquiloqueseencontraemvocê.Edepois,
suponhaquecomquarentaanostenhamlheestendidoumespelho.
Imagineseuespanto.Teriavistoumrostototalmenteestranho.E
compreenderianitidamenteaquiloquerecusaaadmitir:seurostonãoé
você.
—Agnès,dissePaullevantando-se.Estavabempróximodela.Nosolhos
dePaulviaoamor;enostraçosdePaul,suasogra.Parecia-secomela,
comoasogra,semdúvida,parecia-secomopai,queporsuavezseparecia
comalguém.
Aprimeiravezemqueviraessamulher,Agnèssesentiramuito
perturbadacomasuasemelhançafísicacomofilho.Maistarde,quando
fizeraamorcomPaul,umaespéciedecrueldadetrouxe-lhedevoltaessa
semelhança,apontodeparecer-lheemalgunsmomentosquehaviauma
senhoradeidadedeitadasobreela,orostodeformadopeloprazer.Mashá
muitotempoPaulesqueceraquelevavaemseurostoodecalquedesua
mãe,certodequeseurostoeraseuedenenhumaoutrapessoa.
—Nossonome,também,vemporacaso,prosseguiuela,semque
saibamosquandoapareceunomundo,nemcomoumnosso
desconhecidoantepassadooconseguiu.Nãocompreendemos
absolutamenteestenome,nãoconhecemossuahistória,emesmoassimo
usamoscomgrandefidelidade,nosconfundimoscomele,gostamosdele,
somosridiculamenteorgulhososdele,comoseotivéssemosinventadonum
lancedegenialinspiração.Quantoaorosto,éamesmacoisa.Lembro-me,
issodeveteracontecidonofimdeminhainfância:detantomeolharno
espelho,acabeichegandoàconclusãodequeoqueeuviaeraeu.Tenho
umavagalembrançadessaépoca,masseiquedescobrirmeueudeveter
sidoinebriante.Maistarde,porém,chegaomomentoemquenosolhamos
noespelhoedizemos:seráquesoueumesmo?Eporquê?Porquedevo
sersolidáriocomissoai?Quemeimportaesserosto?Eapartirdaítudo
começaadesmontar.Tudocomeçaadesmontar.
—Oquecomeçaadesmontar?PerguntouPaul.Oquehácomvocê,
Agnès?Oqueandaacontecendocomvocêultimamente?
Elaoencaroue,novamente,baixouacabeça.Permanentemente,
parecia-secomamãe.Pareciacadavezmais.Maisemaisparecia-secoma
velhasenhoraqueerasuamãe.
Paultomou-anosbraços,forçando-aalevantar-se.Foisóquandoela
levantouosolhosqueeleosviucheiosdelágrimas.
Eleapertou-aemseusbraços.ElacompreendeuquePaulaamava
profundamenteeissoinundou-adeumasensaçãodepena.Eleaamavae
issolhedavatristeza,eleaamavaeelatinhavontadedechorar.
—Temosdesair,estánahoradenosvestirmos,disseelaescapulindo
deseuabraço.Correuparaobanheiro.
EstouescrevendosobreAgnès,imaginando-a,deixo-adescansarnum
bancodesauna,perambularporParis,folhearrevistas,discutircomseu
marido,masaquiloquefezcomquetudocomeçasse,ogestodasenhora
cumprimentandooprofessordenatação,nabeiradapiscina,ficoucomo
queesquecido.SeráqueAgnèsnãofazmaisessegestoparaninguém?
Não.Mesmoqueissopareçaestranho,parece-mequehámuitotempoela
nãoofaz.Outroraquandoaindaeramuitojovem,sim,elaofazia.
Eranotempoemqueelaaindamoravanacidade,naqual,aofundo,
desenhavam-seoscumesdosAlpes.Garotadedezesseisanos,foraao
cinemacomumcolegadeclasse.Quandoasluzesseapagaram,ele
segurousuamão.
Logosuaspalmascomeçaramatranspirar,masogarotonãoousava
maislargaressamãotãocorajosamenteconquistada,porquedessemodo
teriadereconhecerquetranspiravaequetinhavergonhadisso.Portanto
tiveramsuasmãosencharcadasemquenteumidadeduranteumahorae
meiaesóassepararamquandoaluzvoltouaacender.
Paraprolongaroencontro,elealevoudepoispelasruelasdacidade
antiga,atéumvelhoconventoqueadominavaecujoclaustroatraíauma
multidãodeturistas.Aparentementepremeditaratudocomcuidado,pois,
numpassorelativamentedecididolevou-aporumcorredordeserto,sobo
pretextobastantebobodemostrar-lheumquadro.Chegaramaofimdo
corredorsemencontraromenorsinaldequadro,masapenasumaporta
pintadademarromemqueestavamescritasasletrasW.C.Semnotara
porta,ogarotoparou.Agnèssabiamuitobemqueseucolegapoucose
interessavaporquadrosequeapenasprocuravaumlugarescondidopara
lhedarumbeijo.Coitado,nãotinhaencontradonadamelhordoqueesse
becosemsaídapertodosbanheiros!Elaescapuliue,paraevitarqueele
achassequeelazombavadele,mostroucomodedoainscrição.Apesardo
desespero,eletambémriu.Comessasduasletrascomopanodefundo,
era-lheimpossívelinclinar-separabeijá-la(aindamaisquesetratavade
umprimeirobeijo,pordefiniçãoinesquecível)enãolherestavamaisnada
anãoservoltarparaasruascomoamargosentimentodecapitulação.
Andavamsemdizerumapalavra,eAgnèsestavaaborrecida:porque
elenãoatinhasimplesmentebeijadonomeiodarua?Porquetinha
preferidolevá-laaumcorredorsuspeito,emdireçãoabanheirosonde
geraçõessucessivasdevelhosmonges,feiosefedorentos,esvaziaramsuas
entranhas?Oconstrangimentodogarotoaenvaideciacomosinalde
confusãoamorosa,masairritavamaisaindacomoprovadesua
imaturidade:saircomumgarotodamesmaidadedava-lheaimpressãode
desqualificar-se;apenasosmaisvelhosaatraíam.Talvezporqueelao
traíssementalmente,mesmoreconhecendoqueoamava,umvago
sentimentodejustiçalevou-aaajudá-lo,adar-lheesperança,elibertá-lo
deseuconstrangimentopueril.Seelenãoencontravacoragem,elairia
encontrar.
EleaacompanhouatéemcasaeAgnèsimaginouquechegandolá,
diantedapequenagradedojardim,elaoabraçariafurtivamenteparadarlheumbeijo,deixando-opetrificadodesurpresa.Masnoúltimomomentoa
vontadepassouquandoelaviuqueogarotonãoapenasestavacomacara
fechada,masmostrava-sedistanteemesmohostil.Elesapertaram-seas
mãos,eelasubiupelaaleiaentredoiscanteirosemdireçãoàportada
casa.Sentiapesarsobreelaoolhardeseucolega,queaobservavaimóvel.
Maisumavezsentiupenadele,umapenadeirmãmaior,eentãofezuma
coisacujaideianãolheteriaocorridoumsegundoantes.Semdeter-se,
virouacabeçaparaele,sorriu,eagitoualegrementeseubraçonoar,com
levezaegraça,comoselançasseparaocéuumbalãocolorido.
Esseinstanteemque,derepente,semnenhumapremeditação,
eleganteerapidamente,Agnèslevantouamão,esseinstanteé
maravilhoso.Numafraçãodesegundo,edesdeaprimeiravez,comopôde
elaencontrarummovimentodecorpoedebraçotãoperfeito,tãobem
acabadoquantoumaobradearte?
Nessaépoca,umasenhoradeunsquarentaanos,secretáriana
faculdade,regularmenteiaverseupaiparaentregar-lhediversospapéise
trazeroutroscomsuaassinatura.Sebemqueomotivofosseinsignificante,
essasvisitaseramseguidasporumaestranhatensão(amãeficava
taciturna)queintrigavamuitoAgnès.Elaprecipitava-separaajanelapara
espiardiscretamenteasecretáriaassimqueelasepreparavaparair
embora.Umdiaemqueelasedirigiuparaapequenagradedojardim
(destaformadescendoocaminhoqueAgnèsdeveriamaistardesubirsob
oolhardeseuinfelizamigo),asecretáriavirou-se,sorriu,elançouamão
paraoarnummovimentosúbito,rápidoeleve.Foiinesquecível:aaleiade
areiabrilhavacomoumjatodouradosobosraiosdosol,e,decadaladoda
pequenagradefloresciamdoisarbustosdejasmim.Ogestodesdobrara-se
naverticalcomoparaindicaraessepedaçodeterradouradoadireçãode
seuvôo,tantoqueosarbustosbrancosjásetransformavamemasas.
Agnèsnãopodiaverseupai,mascompreendeucomogestodamulher
queeleestavanaportadacasaeaseguiacomosolhos.
Essegestoeratãoinesperado,tãobelo,queficounamemóriadeAgnès
comoumtraçodeluz;eleaconvidavaparaalgumaviagemdistante,e
despertavanelaumdesejoindeterminadoeimenso.Quandoveioo
momentoemqueelatevenecessidadedeexpressaralgumacoisa
importanteaseuamigo,ogestoreviveunelaparadizeremseulugar
aquiloqueelanãosouberadizer.
Nãoseidurantequantotempoelarecorreuaestegesto(ou,mais
exatamente,quantotempoestegestorecorreuaela);atéodia,sem
dúvida,emqueelaconstatouquesuairmã,oitoanosmaismoça,lançavaa
mãonoarparadespedir-sedeumcolega.Aoverseuprópriogesto
executadoporsuairmãmenorquedesdesuamaistenrainfânciaatinha
admiradoeimitadoemtudo,sentiuumcertomal-estar:ogestoadulto
combinavamalcomumameninadeonzeanos.Mas,sobretudo,ficou
perturbadapelofatodessegestoficaràdisposiçãodetodomundoenão
serabsolutamentepropriedadesua;comose,aofazê-lo,elasetornasse
culpadadeumroubooudeumacontravenção.Desdeentão,começounão
apenasaevitaressegesto(nãoénadafácildesabituar-sedosgestosque
moramconosco),masadesconfiardetodososgestos.Esforçava-sepor
fazerapenasaquelesquesãoindispensáveis(balançaracabeçaparadizer
"sim"ou"não",mostrarumobjetoaquemnãooestávendo)equenão
pretendemnenhumaoriginalidadenocomportamentofísico.Assim,ogesto
queafascinaraquandoviraasecretáriaafastar-senaaleiadourada(e
quetambémmeseduzira,quandoviasenhorademaiodaradeusaseu
professordenatação),adormeceudentrodela.
Noentanto,umdia,despertou.Foiantesdamortedamãe,quandofoi
passarquinzediasàcabeceiradopaidoente.Despedindo-senoúltimodia,
sabiaquenãopoderiarevê-lopormuitotempo.Amãenãoestavaeopai
quisacompanhá-laatéarua,ondeestavaseucarro.Elaproibiu-ode
passardaportadacasaefoisozinhaemdireçãoàpequenagradedo
jardim,sobreaareiadouradaentreosdoiscanteiros.Ficoucoma
gargantaapertadaeumimensodesejodedizeraseupaialgumacoisade
belo,queaspalavrasnãopodemdizer;esubitamente,semsabercomo
issoaconteceu,elavirouacabeçaecomumsorrisolançouamãona
vertical,rápida,elevemente,comoparadizerqueaindatinhamumalonga
vidadiantedelesequeseveriammuitasvezes.Uminstantedepois
lembrou-sedasecretáriaquevinteecincoanosantes,nomesmolugar,do
mesmomodo,mandouumrecadoaseupai.Agnèsficoucomovidae
perturbada.
Comosedeumahoraparaoutra,numsósegundo,duasépocas
distantestivessemseencontrado,comosetivessemsereencontradonum
sógestoduasmulheresdiferentes.Passou-lhepeloespíritoaideiadeque
elastalvezfossemasúnicasqueeletinhaamado.
Depoisdojantar,nosalãoondetodosestavaminstaladosempoltronas,
copodeconhaqueouxicrinhadecafénamão,corajosamenteoprimeiro
convidadolevantou-se,e,comumsorriso,inclinou-sediantedadonada
casa.Aessesinalquequiseraminterpretarcomoumaordem,osoutros
tambémpularamdesuaspoltronas.PauleAgnèstambém,eforampegar
seucarro.Pauldirigia,enquantoAgnèscontemplavaaincessanteagitação
dosveículos,opiscardasluzesetodooinútilburburinhodeumanoite
urbanaquenãoconheceodescanso.Então,maisumavezsentiuuma
estranhaefortesensaçãoqueainvadiacadavezmais.frequentemente:ela
nãotemnadaemcomumcomessascriaturasdeduaspernas,acabeça
acimadopescoço,abocanorosto.
Antigamente,suapolítica,suaciência,suasinvençõesatinhamcativado,
eelaimaginara,umdia,representarumpequenopapelemsuagrande
aventura,atéodiaemquenasceunelaasensaçãodenãoserumadelas.
Essasensaçãoeraestranha,elasedefendiadelasabendoqueeraabsurda
eimoral,masacabouseconvencendodequenãosepodecomandaros
sentimentos:elanãopodianemseatormentarcomsuasguerras,nem
alegrar-secomsuasfestas,porqueestavaimpregnadapelacertezadeque
tudoissonãoeraproblemaseu.
Issoquerdizerqueelatemumcoraçãoseco?Não,issonãotemnadaa
vercomocoração.Aliás,semdúvida,ninguémdavamaisdinheiroaos
mendigosdoqueela.Nãopodepassarindiferenteaoladodeleseeles
dirigem-seaelacomoseosoubessem,percebendoimediatamenteede
longe,entrecentenasdetranseuntes,aquelaqueosvêequeosescuta—
sim,éverdade,masdevoacrescentar:suagenerosidadeemrelaçãoaos
mendigostinhatambémumfundonegativo:Agnèslhesdáesmolanão
porquefaçampartedogêneromasporquesãoestranhosaele,porquesão
excluídosdelee,provavelmente,comoela,nãosejamsolidárioscomele.
Anão-solidariedadecomogênerohumano:sim,éisso.Eumaúnica
coisapodiatirá-ladesseafastamento:oamorconcretoporumhomem
concreto.Seelarealmenteamassealguém,odestinodosoutrosdeixariade
lheserindiferente,umavezqueobem-amadodependeriadessedestino,
fariapartedele;eela,apartirdaí,nãopoderiamaisterasensaçãodeque
osofrimentodaspessoas,suasguerrasesuasfériasnãosãoproblemas
dela.
Essaúltimaideiaassustou-a.Seriaverdadequeelanãogostavade
ninguém?EPaul?
Tornoualembrar-sedecomoeleseaproximoudelaumpoucoantes,
quandoestavamsaindoparaojantar,quandotomou-aemseusbraços.É,
algumacoisaestavaerrada:háalgumtempoperseguia-aaideiadeque
seuamorporPaulrepousavaapenassobreumavontade:sobreavontade
deamá-lo;sobreavontadedeterumcasamentofeliz.Seessavontade
diminuísseuminstante,oamorvoariacomoumpassarinhoqueencontra
suagaiolaaberta.
Éumahoradamanhã,AgnèsePaulestãosedespindo.Setivessemde
descreverodespirumdooutro,eosgestosqueadotam,ficariambem
atrapalhados.Hámuitotempoquejánãoseolhammais.Oaparelhoda
memóriaestádesligadoenãoregistramaisnadadaquiloqueantecedeseu
deitarnacamadecasal.
Acamadecasal:oaltardocasamento;equemdizaltartambémdiz
sacrifício.Éláquesesacrificammutuamente:todosdoistêmdificuldadede
dormirearespiraçãodeumacordaooutro;cadaumdelesdirige-separa
abeiradadacama,deixandonomeioumgrandevazio;umfingedormir,
naesperançadepermitirqueooutrodurma,paraquepossaadormecer
virandoerevirando-sesemmedodeincomodá-lo.Infelizmente,ooutro
nãopoderáaproveitarisso,estandotambémocupado(porrazões
idênticas)emsimularosono,evitandomexer-se.
Nãoconseguirdormireproibir-sedesemexer:acamadecasal.
Agnèsdeitou-sedecostaseimagenspassamporsuacabeça:este
homemamáveledesconhecido,quesabetudosobreelesmasnãosabeo
queéatorreEiffel,chegounacasadeles.Agnèsdariaqualquercoisapara
umaconversaasóscomele,maseleescolheudepropósitoomomento
quandoosdoisestivessememcasa.Agnèsdavatratosàbolaparainventar
umadesculpaquepudesseafastarPaul.Estavamostrêssentadosem
poltronasàvoltadeumamesabaixa,diantedetrêsxícarasdecafé,ePaul
conversavaparadistrairavisita.Agnèssópensavanomomentoemqueo
homemcomeçariaaexplicarasrazõesdesuavisita.Essasrazões,elaas
conhecia.Massóela,enãoPaul.Afinal,avisitainterrompeuaconversa
paraentrardecheionoassunto:
—Achoquevocêssabemdeondevenho.
—Sim,respondeuAgnès.Elasabequeelevemdeumoutroplaneta,
umplanetamuitodistantequeocupaumaimportanteposiçãonouniverso.
Elogoacrescentacomumsorrisotímido:
—Láémelhor?
Avisitacontenta-seemlevantarosombros:
—Ora,Agnès,vocêsabemuitobemondevive.Agnèsdiz:
—Podeserquesejanecessárioqueamorteexista.Maselanão
poderiaserinventadadeoutramaneira?Érealmentenecessáriodeixar
atrásdesirestosmortaisquetemosdeenterrarouqueimar?Tudoissoé
abominável!
—ÉbemsabidoqueaTerraéumaabominação,respondeavisita.
—Outracoisa,retomaAgnès,mesmoqueminhaperguntalhepareça
boba.Osquevivemlá,ondevocêestá,têmrostos?
—Não.Orostosóexisteaquiondevocêsestão.
—Eosqueestãolá,comosediferenciamunsdosoutros?
—Lá,porassimdizer,cadauméasuaprópriaobra.Cadauminventaseasimesmointeiramente.Édifícilexplicar.Vocêsnãopoderiam
compreender.
Masumdiacompreenderão.Poisvimparadizer-lhesquenuma
próximavidavocêsnãovoltarãoàTerra.
Claro,Agnèsjásabiaoqueavisitaialhedizerenãopodiase
surpreender.
MasPaulestavapasmo.Olhouavisita,olhouAgnès,quesópôde
perguntar:
—EPaul?
—PaultambémnãovoltaráàTerra,respondeuavisita.Foiissoque
vimanunciar-lhes.Nósprevenimossempreaquelesqueescolhemos.
Tenhoumaúnicaperguntaafazer:—Nessapróximavida,vocêsquerem
ficarjuntos,ounãoqueremmaisseencontrar?
Agnèsesperavaessapergunta.Porissoqueiraterficadosozinhacomo
visitante.DiantedePaul,sabequeéincapazderesponder:"Nãoquero
maisvivercomele."Elanãopoderesponderissoemsuapresença,nemele
emfrentedela,mesmoquesejaprovávelqueeletambémgostassede
viversuaoutravidadiferentementee,porconsequência,semAgnès.Pois,
dizeremvozalta,napresençaumdooutro:"Numapróximavidanão
queremosmaisficarjuntos,nãoqueremosmaisnosencontrar",
equivaleriaadizer:"Nenhumamorexisteentrenós,nemnuncaexistiu."
Eisoqueelesnãopodemdizeremvozalta,porquetodasuavidaem
comum(vinteanosjádevidaemcomum)repousasobreailusãodoamor,
umailusãoquetodosdoiscultivamemantêmcomsolicitude.Elatambém
sabeeimaginaacena,quandochegaaessaperguntadavisita,queirá
semprecapitularequeapesardesuaaspiração,eapesardeseudesejo,
acabarárespondendo:
—Sim,claro.Queroquefiquemosjuntos,mesmonumaoutravida.
Hoje,noentanto,pelaprimeiraveztemcertezadeencontrarcoragem,
mesmonapresençadePaul,paradizeroquequer,oqueelarealmente
querdofundodocoração;estácertadeencontrarcoragemmesmocomo
riscodeverdesmoronartudoaquiloqueexisteentreeles.Elaouveaseu
ladoumarespiraçãoprofunda.Pauladormeceu.Comoumabobina
colocadanumaparelhodeprojeçãoeladesenrolamaisumaveztodaa
cena:dialogacomovisitante,Paulpasmo,olha-os,eovisitantepergunta:
—Numapróximavidavocêsqueremcontinuarjuntosounãoquerem
seencontrar?
(Écurioso:sebemquedisponhadetodasasinformaçõesarespeito
deles,apsicologiaterrestrecontinuaincompreensívelparaele,anoçãodo
amordesconhecida;portantonãopodesuspeitardasdificuldadesemque
oscolocacomsuaperguntadiretaeprática,formuladacomamelhordas
intenções.)Agnèsreúnetodasassuasforçaserespondecomavozfirme:
—Preferimosnãonosencontrarmais.
Eécomoseelabatesseaportadiantedailusãodoamor.
SegundaParte
Aimortalidade
13desetembrode1811.Jáhátrêssemanas,ajovemrecém-casada
Betina,nascidaemBrentano,moracomseumarido,opoetaAchimvon
Arnim,emcasadocasalGoethe,emWeimar.Betinatemvinteeseisanos;
Arnim,trinta;Cristiana,amulherdeGoethe,quarentaenove;Goethetem
sessentaedoisanosenemumdente.Arnimamasuajovemmulher,
Cristianaamaseuvelhosenhor,eBetina,mesmodepoisdecasada,não
páradeflertarcomGoethe.Nessedia,GoetheficaemcasaeCristiana
acompanhaojovemcasalaumaexposição(organizadapeloamigoda
família,oconselheiroáulicoMayer)emqueestãoexpostosquadros
elogiadosporGoethe.MadameCristiananãocompreendeosquadrosmas
guardoutãobemoqueGoethediziadeles,quesemdificuldadefezpassar
comosuasasopiniõesdeseumarido.Arnimouveavozpossantede
CristianaevêosóculoscolocadossobreonarizdeBetina.ComoBetina
franzeonariz(àmaneiradoscoelhos),osóculosestremecem.EArnim
sabebemoqueissoquerdizer:Betinaestáirritadaapontodeestar
furiosa.Pressentindoatempestade,foidiscretamenteparaasalavizinha.
Malsaíra,BetinainterrompeCristiana:não,elanãoestádeacordo!Na
verdade,essesquadrossãoimpossíveis!
Cristianatambémestáirritada,eissoporduasrazões:porumlado,
apesardecasadaegrávida,ajovemaristocrataflertacomGoethesem
nenhumpudor,poroutro,ocontradiz.Oqueelaespera?Ocuparo
primeirolugarentreosadeptosdeGoetheeaomesmotempooprimeiro
lugarentreseusopositores?
Cristianaestáalteradaporcadaumadessasrazõesseparadamente,
mastambémpelasduasjuntas,jáqueumaexcluiaoutrapelalógica.Assim
declaraemvozaltaqueéimpossívelqualificardeimpossíveisquadrostão
notáveis.
AoqueBetinaretruca:nãoapenaséperfeitamentepossívelqualificálosdeimpossíveis,masaindaéprecisodeclará-losridículos!Sim,ridículos,
eelaenumeraargumentosobreargumentoemapoioàsuaafirmação.
Cristianaescutaeconstataquenãocompreendeabsolutamentenada
doqueessamoçalhefala.QuantomaisBetinaseexalta,maisusapalavras
queaprendeucomosamigosdesuaidade,jovensquefrequentaramas
universidades,eCristianabemsabequeelaasempregaprecisamente
porquesão
incompreensíveis.Elaolhaparaonarizondetrememosóculos,epensa
queessesóculoseessaspalavrasincompreensíveiscombinam
perfeitamente.OsóculosnonarizdeBetinamerecematenção!Ninguém
ignoraqueGoethecondenavaousodeóculosempúblicocomosinalde
maugosto,comoextravagância.SeBetinaosusaassimmesmo,emplena
Weimar,éparamostrar,cominsolênciaeporprovocação,suainclusãona
novageração,essaqueprecisamentedistingue-sepelasconvicções
românticasepelousodeóculos.
Quandoalguém,comorgulhoeostentação,proclamasuafiliaçãoànova
geração,sabemosbemoqueelequerdizer:querdizerqueaindaestará
vivoquandoosoutros(nocasodeBetina,GoetheeCristiana)estarão
mortoseenterrados.
Betinafala,exalta-secadavezmais,ederepenteamãodeCristiana
voanoar.Noúltimomomentoelapercebequenãoénadaeducadodarum
tapanumaconvidada.Refreiaseugesto,esuamãoapenasroçaatestade
Betina.Osóculoscaemnochãoesequebramemmilpedaços.Emvolta
deles,constrangidas,aspessoasviram-separaolhar,estateladas;dasala
vizinhaapareceopobreArnimque,nãoencontrandonadamaisinteligente
afazer,abaixa-separajuntarospedaços,comosequisessecolá-los.
Durantemuitashoras,todomundoesperacomansiedadeoveredicto
deGoethe.Quandosouberdetudo,dequemtomarápartido?
GoethetomapartidoporCristianaefechadefinitivamentesuaportaao
jovemcasal.
Quandoumcoposequebra,issotrazsorte.Quandoumespelhose
quebra,podemosesperarseteanosdeinfelicidade.Equandoosóculos
voamempedaços?Éaguerra.Betinaproclamaemtodosossalõesde
Weimarque"asalsichonaenlouqueceuedeu-lheumamordida",afrase
corredebocaembocaeWeimarinteirariàslágrimas.Essafraseimortal
aindaecoaemnossosouvidos.
Aimortalidade.Goethenãotinhamedodessapalavra.EmseulivroMa
vie,quetemocélebresubtítuloDichtungundWahrheit,Poesiaeverdade,
elefalasobreacortinaque,rapazdedezenoveanos,contemplava
avidamentenonovoteatrodeLeipzig.Sobreofundodacortinaestavam
representados(citoGoethe)derTempeldesRuhmes,oTemplodaGlória,e
diantedeletodososgrandesdramaturgosdetodosostempos.Nomeio
deles,semdaratençãoaosoutros,"umhomemvestindoumaroupaleve
dirigia-sediretamenteaoTemplo;estavadecostasenadatinhade
extraordinário.EraShakespeareque,semprecursores,indiferenteaos
grandesmodelos,caminhavasozinhoaoencontrodaimortalidade".
ÉclaroqueaimortalidademencionadaporGoethenadatemavercom
aimortalidadedaalma.Trata-sedeumaoutraimortalidade,profana,para
aquelesquepermanecemdepoisdemortosnamemóriadaposteridade.
Qualquerpessoapodeesperarporessaimortalidade,maioroumenor,
maisoumenoslonga,edesdeaadolescênciapensanisso.Quandoeuera
menino,aosdomingosiapassearnumacidadedaMorávia,onde,dizia-se,o
prefeitoguardavaemsuasalaumcaixãodedefuntoaberto,dentro,do
qual,nosmomentosdeeuforiaouquandosentia-seexcepcionalmente
satisfeitoconsigomesmo,deitava-seimaginandoseuenterro.Nuncaviveu
nadadetãobeloquantoessesmomentosdesonhonofundodeumcaixão:
viviasuaimortalidade.
Diantedaimortalidadeaspessoasnãosãoiguais.Éprecisodistinguir
apequenaimortalidade,recordaçãodeumhomemnoespíritodaquelesque
oconheceram(aimortalidadecomquesonhavaoprefeitodacidadeda
Morávia),eagrandeimortalidade,recordaçãodeumhomemnoespírito
daquelesquenãooconheceram.Existemcarreirasque,porprincípio,
confrontamumhomemcomagrandeimortalidade,incerta,éverdade,até
improvável,masincontestavelmentepossível:sãoascarreirasdeartistae
dehomemdeEstado.
DetodososhomensdeEstadoeuropeusdenossotempo,semdúvida
FrançoisMitterrandéaquelequedeumaiorlugaràimortalidadeemseus
pensamentos.Lembro-medainesquecívelcerimôniaorganizadaem1981
depoisdesuaeleiçãoàpresidência.NapraçadoPantheonestavareunida
umamultidãoentusiasta,daqualelesedistanciou:subiuagrandeescada
(exatamentecomoShakespearedirigindo-seaoTemplodaGlória,comona
cortinadescritaporGoethe),comtrêsrosasnamão.Depois,
desaparecendoaosolhosdopúblico,absortonosseuspensamentos,
postou-sesozinhoentreostúmulosdesessentaequatromortosilustres,
nãosendoseguidonessasolidãosenãoporumcâmera,umaequipede
cineastasealgunsmilhõesdefrancesesque,sobodilúviodaNonade
Beethoven,olhavamfixosatelevisão.Colocouasrosassucessivamentenos
túmulosdostrêsmortosquetinhaescolhidoentretodos.Comoum
agrimensor,plantouessastrêsrosascomotrêsestacasnoimensocanteiro
deobrasdaeternidade,paradestaformadelimitarotriângulonomeiodo
qualergueriaseupalácio.
ValéryGiscardd'Estaing,seupredecessornapresidência,em1974
convidouosgarisparaseuprimeirocafédamanhãnopaláciodos
CamposElísios.Essegestoeradeumburguêssensível,preocupadoemser
amadopelaspessoassimpleseemfazê-lasacharqueeraumdeles.
Mitterrandnãoeratãoingênuoapontodequererseparecercomosgaris
(nenhumpresidentepodepretenderisso);queriaparecercomosmortos,
oquedemonstraumasabedoriamaior,poisamorteeaimortalidade
formamumaduplainseparável,aquelecujorostoseconfundecomorosto
dosmortoséumimortalvivo.
OpresidenteamericanoJimmyCartersempremefoisimpático,masfoi
quaseamoroquesentiporeleaovê-lo,nateladatelevisão,protegidopor
umagasalho,seguidoporumgrupodecolaboradores,treinadorese
seguranças;derepenteosuorinundousuatesta,seurostocontraiu-se,
seuscolaboradoresinclinaram-sesobreele,carregando-onocolo:uma
pequenacrisecardíaca.
Ojoggingdeveriaforneceraopresidenteaocasiãodemostraraopovo
suaeternajuventude;cinegrafistasforamconvidadosparaissoenãoera
culpadelessetiveramquenosmostrar,emlugardeumatleta
transbordantedesaúde,umhomemenvelhecidoeazarento.
Ohomemdesejaaimortalidade,eumdiaacâmeranosmostrasua
bocadeformadaporumatristecareta,únicacoisaquenosrestarádelee
quesetransformaránaparáboladetodasuavida;eleentrarána
imortalidadeditarisível.
TychoBrahéeraumgrandeastrônomo,mashojenãolembramosmais
nadadele,salvoporessecélebrejantarnacorteimperialdePragaemque
elerefreoupudicamentesuavontadedeiraobanheiro,atéquesuabexiga
explodiueele,mártirdavergonhaedaurina,foiprontamentejuntar-se
aosimortaisrisíveis.
Juntou-seaelescomomaistardeCristianaGoethetransformadapara
sempreemsalsichonalouca.Nãoconheçonomundoromancistaqueme
sejamaiscarodoqueRobertMusil.Elemorreuumamanhãlevantando
halteres.Agoraquandovoulevantá-los,antestomomeupulsocom
angústiaetenhomedodemorrer,poismorrercomumhalteresnamão,
comomeuqueridoautor,fariademimumimitadortãoinacreditável,tão
frenético,tãofanático,queaimortalidaderisívelmeestariaimediatamente
garantida.
ImaginemosquenaépocadoimperadorRodolfoexistissemascâmeras
(essasqueimortalizaramCarter)equetivessemfilmadoojantarnacorte
emqueTychoenroscava-seemsuacadeira,empalidecia,cruzavaas
pernas,reviravaobrancodosolhos.Seeletivessepodidosaberqueestava
sendoobservadoporalgunsmilhõesdeespectadores,seusofrimentoteria
sidodezvezesmaioreorisoressoariaaindamaisfortenoscorredoresde
suaimortalidade.Opovo,queprocuradesesperadamenterazõespara
ficaralegre,certamenteexigiriaquesepassasseemcadaréveillonofilme
sobreoilustreastrônomoquetiveravergonhadefazerpipi.
Essaimagemsuscitaemmimumapergunta:naépocadascâmeras,
seráqueaimortalidademudoudecaracterística?Nãohesitoem
responder:nofundo,não;poisaobjetivafotográfica,antesdeser
inventada,jáexistiacomosuaprópriaessênciaimaterializada.Semque
nenhumaobjetivarealestivessedirigidasobreelas,aspessoasjáse
comportavamcomosefossemfotografadas.Jamaisumbandodefotógrafos
correuatrásdeGoethe,mascorriamassombrasdosfotógrafosprojetadas
sobreelevindasdaprofundezadofuturo.Foiassim,porexemplo,durante
seucélebreencontrocomNapoleão.Noaugedesuacarreira,oImperador
dosfrancesestinhareunidoemErfurttodososchefesdeEstadoeuropeus
afimdeinteirá-losdadivisãodepoderentreelepróprioeoImperador
dasRússias.
Nesseparticular,Napoleãoerabemfrancês:algumascentenasde
milharesdemortosnãobastavamparasatisfazê-lodesejava,alémdisso,a
admiraçãodosescritores.Perguntouaseuconselheiroculturalquaiseram
asmaisaltasautoridadesespirituaisdaAlemanhacontemporânea;o
conselheiromencionou,emprimeirolugar,umcertosenhorGoethe.
Goethe!Napoleãobateunatesta:OautordosSofrimentosdojovem
Werther!DuranteacampanhadoEgito,umdiaconstataraqueseusoficiais
estavammergulhadosnesselivro.Comoeletambémoconhecia,foitomado
defúria.Censurouviolentamenteosoficiaisporleremfrivolidades
sentimentaiseproibiu-osdeumavezportodasdeabrirumromance.
Qualquerromance.Quelessemlivrosdehistória,muitomaisúteis!Mas
nessaocasião,contentedesaberquemeraGoethe,decidiuconvidá-lo.Fez
issocommaisprazeraindaporque,segundoseuconselheiro,Goetheera
famososobretudocomodramaturgo.Aocontráriodosromances,oteatro
erafavorecidoporNapoleãoporquelembrava-lheasbatalhas.Porserele
mesmoumgrandeautordebatalhas,tantoquantoumdiretordecena
inigualável,emseuforoíntimoestavaconvencidodeseromaiorpoeta
trágicodetodosostempos,maiorqueSófocles,maiorqueShakespeare.
Oconselheiroculturaleraumhomemcompetente,quenoentanto
muitasvezesseconfundia.ÉverdadequeGoetheseocupavamuitodo
teatro,massuaglórianãoerapropriamentedesuaspeças.Semdúvidao
conselheirodeNapoleãooconfundiacomSchiller!Afinaldecontas,como
SchillereramuitoligadoaGoethe,nãoeratãoincongruenteassimfazer
dosdoisamigosumsópoeta;talvezmesmooconselheiroagissecompleno
conhecimentodecausa,numlouvávelempenhopedagógico,criandopara
Napoleão,comosíntesedoclassicismoalemão,apessoadeumFriedrich
WolfgangSchilloethe.
QuandoGoethe(semdesconfiarqueeraSchilloethe)recebeuoconvite,
compreendeuimediatamentequedeviaaceitar.Chegavaaossessenta
anos.Amorteaproximava-seecomelaaimortalidade(poisamorteea
imortalidade,comojádisse,formamumaduplaindivisível,maisbelaque
MarxeEngels,queRomeueJulieta,queLaureleHardy)eGoethenão
podialevarnabrincadeiraoconvitedeumimortal.Apesardemuito
ocupadocomsuaTeoriadascores,queeleconsideravacomoomáximode
suaobra,deixouseumanuscritoepartiuparaErfurt,ondeem2de
outubrode1808deu-seoencontroinesquecívelentreumpoetaimortale
umimortalestrategista.
Acompanhadopelassombrasagitadasdosfotógrafos,guiado
peloajudante-de-ordensdeNapoleão,Goethesobeagrandeescada,epor
umaoutraescadaeoutroscorredores,dirige-seaumagrandesalano
fundodaqualNapoleão,sentadoàmesa,tomaseucafédamanhã.Em
tornodeleformigavamhomensuniformizadosqueentregam-lherelatórios
eoestrategistalhesrespondesemparardemastigar.Algunsinstantes
passamatéqueoajudante-de-ordensousemostrarGoethe,que
permaneceimóvel,àdistância.Napoleãolevantaosolhos,deslizaamão
direitasobseudólmã,apalmacontraoestômago.Éumgestoquetemo
hábitodefazerquandoestácercadoporfotógrafos.Apressando-seem
engolir(porquenãoébomserfotografadocomorostodeformadopela
mastigação,hajavistaamaldadedosfotógrafosqueadoramessegênero
defotografias),eleproferiuemvozaltaparaquetodospudessemouvir:
—Eisumhomem!
Éexatamenteoquesechama,hoje,naFrança,uma"pequenafrase".Os
políticospronunciamlongosdiscursosrepetindo,semnenhum
constrangimento,sempreamesmacoisa,sabendoquedequalquer
maneiraopúblicoconheceráapenasalgumaspalavrascitadaspelos
jornalistas;parafacilitar-lhesatarefa,paramanipulá-losumpouco,eles
inseremnessesdiscursoscadavezmaisidênticosumaouduasfrasesque
nuncahaviamdito;istoétãoinesperado,tãoespantoso,que
instantaneamenteapequenafrasetorna-secélebre.Hoje,aartepolítica
nãoconsisteemgerirapólis(essasegeraporsimesma,segundoalógica
deseumecanismoobscuroeincontrolável),maseminventarpequenas
frasespelasquaisohomempolíticoserávistoecompreendido,votadonas
sondagens,eleitoounãoeleito.Goetheaindanãoconheceanoçãode
"pequenafrase"mas,comonósjásabemosdisso,ascoisasestãoláemsua
essênciaantesdeseremmaterialmenterealizadas.edenominadas.Goethe
compreendequeNapoleãoacabadeproferirumapequenafrasesoberba;
"pequenafrase"queseráútilaambos.Encantado,aproxima-sedamesa.
Pensemoquequiseremdaimortalidadedospoetas,osestrategistas
sãoaindamaisimortais:éportantojustoqueNapoleãointerrogueGoethe
enãoocontrário.
—Queidadeosenhortem?Perguntaele.
—Sessentaanos,respondeGoethe.
—Osenhorestábem-dispostoparasuaidade,dizNapoleãocom
respeito(eletemvinteanosmenos),eGoetheempertiga-se.Aoscinquenta
anoselejáerabemgordo,enãoligavaparaseuqueixoduplo.Mascomo
correrdosanos,conheceuomedodamorte,enamesmahoraomedode
entrarnaimortalidadecomumahorrívelbarriga.Porissodecidiu
emagrecerelogovoltouaserumhomemesbelto,cujaaparência,semser
bela,podeaomenosevocaralembrançadeumabelezapassada.
—Osenhorécasado?PerguntaNapoleãocomsincerointeresse.
—Sim,respondeGoethe,inclinando-seligeiramente.
—Etemfilhos?
—Umfilho.
Nisso,umgeneralaproxima-sedeNapoleãoparacomunicar-lheuma
notíciaimportante.Napoleãocomeçaapensar.Retirasuamãodedebaixo
dodólmã,pegaumpedaçodecarnecomogarfo,leva-oatéaboca(acena
nãoémaisfotografada)erespondemastigando.Sónofimdeummomento
voltaalembrar-sedeGoethe.Comuminteressesinceropergunta-lhe:
—Osenhorécasado?
—Sim,respondeGoetheinclinando-seligeiramente.
—Etemfilhos?
—Umfilho.
—EoseuCarlosAugusto?DizNapoleãoinesperadamentedisparando
sobreGoetheonomedosoberanodeWeimarqueevidentementeelenão
aprecia.
Goethenãoquerfalarmaldeseupríncipe,masnãoquerendotambém
contradizerumimortal,eleretrucacomumahabilidadeinteiramente
diplomáticaqueCarlosAugustofezmuitopelasciênciasepelasartes.A
alusãoàsartesofereceaoimortalestrategistaaocasiãodelevantar-seda
mesa,detornaracolocaramãosobodólmã,deavançaralgunspassosem
direçãoaopoeta,ededesenvolverdiantedelesuasideiassobreoteatro.
Imediatamenteoinvisívelbandodefotógrafosagita-se,osaparelhos
crepitam,eoestrategistaqueseafastacomopoetaparaumdiálogoínfimo
temquelevantaravozparapoderserouvidonasala.PropgéaGoethe
escreverumapeçasobreaconferênciadeErfurt,poiseladeverágarantir,
enfim,àhumanidade,afelicidadeeapaz.
—Oteatro,acrescentaeleemvozalta,deveriatornar-seaescolado
povo!
(Eisasegundapequenafrase,quemereceriaserdivulgadapela
televisãologonodiaseguinte.)
—Eseriaoportuno,continuouelemaissuavemente,dedicarapeçaao
CzarAlexandre.(PoisédelequetrataaconferênciadeErfurt!Édeleque
Napoleãoquersefazerumaliado!)DepoisinfligeaSchilloetheuma
pequenaliçãodeliteratura,masinterrompidoporumdosseusajudantesde-ordensperdeofio.Naesperançadeencontrá-lo,repetemaisduas
vezes,semlógicanemconvicção,queoteatroéaescoladopovo,depois
(pronto!Atéqueenfim!
Tornouaencontrarofio!)elechega&MortedeCésar,deVoltaire.Belo
exemplo,segundoele,deumpoetaqueperdeuaocasiãodetornar-seo
educadordopovo.Suatragédiadeveriatermostradoumgrande
estrategistatrabalhandopelobem-estardogênerohumano,masimpedido
porumamorteprematuraderealizarseusnobrespropósitos.
Asúltimaspalavrasressoarammelancolicamente,eoestrategistaolha
opoetadiretamentenosolhos.—Eisumgrandeassuntoparaosenhor!
Massãointerrompidosdenovo,osgeneraisentramnasala.Napoleão
tirasuamãodedebaixododólmã,sentaemsuamesa,pegaumpedaçode
carnecomseugarfoecomeçaamastigarescutandoosrelatórios.As
sombrasdosfotógrafosdesapareceram.Goetheolhaemtorno,páraem
frentedosquadros.Depois,aproximando-sedoajudante-de-ordensqueo
acompanhara,perguntaseaaudiênciaterminara.Oajudante-de-ordens
dizsim,ogarfodeNapoleãolevanta-seeGoethevaiembora.
BetinaerafilhadeMaximilianeLaRoche,amulherporquemGoethe
foraapaixonadoaosvinteetrêsanos.Abstraindo-sedealgunscastos
beijos,eraumamorimaterial,puramentesentimental,quetiveratão
poucasconsequênciasqueamãedeMaximilianetinha,emtempo
oportuno,casadosuafilhacomoricocomercianteitalianoBrentano;
quandoesteviuqueojovempoetatinhaintençãodecontinuaroflertecom
suamulher,expulsou-odesuacasacomaproibiçãodetornaracolocaros
pésali.Maximilianetevedozefilhos(seuinfernalmachoitalianoprocriou
vinteaotodo!),entreelesumachamadaElizabeth;eraBetina.
Betinasentira-seatraídaporGoethedesdeamaistenrainfância.Não
apenasporqueaosolhosdetodaaAlemanhaeleestavaacaminhodo
TemplodaGlória,mastambémporquesouberadahistóriadeamorde
Goetheporsuamãe.
Interessou-seapaixonadamenteporesseantigoamor,tãofascinante
quantodistante(meuDeus,remontavaatrezeanosantesdonascimento
deBetina!)epoucoapoucoocorreu-lheaideiadequeelatinhadireitos
secretossobreograndepoeta,dequem,nosentidometafórico(quemmais
doqueumpoetadeverialevarasérioasmetáforas?)elaseconsiderava
filha.
Oshomens,comosabemos,têmumatendêncialastimávelafugirdas
obrigaçõespaternas,anãopagaraspensõesalimentícias,anegara
paternidade.
Recusam-seacompreenderqueacriançaéaessênciadetodoamor,
mesmosenãoérealmenteconcebidaepostanomundo.Naálgebra
amorosa,ofilhoéosinaldeumasomamágicadedoisseres.Mesmo
amandoumamulhersemtocá-la,umhomemdevecontarcoma
possibilidadedequeseuamorsejafecundoequeofrutosóapareçatreze
anosdepoisdoúltimoencontrodosnamorados.Eramaisoumenosissoo
queBetinadeviaterpensadoantesdeousariraoencontrodeGoethe,em
Weimar.Eranaprimaverade1807.Elatinhavinteedoisanos(querdizer,
amesmaidadequeelequandocortejavasuamãe),esentia-sesempre
criança.Essasensaçãomisteriosamenteaprotegia,comoseainfância
fosseseuescudo.
Abrigar-secomoescudodainfânciaeraodisfarcedetodasuavida.
Seudisfarce,mastambémsuanatureza,porquedesdecriançabrincavade
criança.
EstavasempreumpoucoapaixonadaporClemensBrentano,seuirmão
maisvelho,esentava-secomalegrianoseucolo.Então(tinhanaépoca
quatorzeanos)jáestavanamesmasituaçãodesaborearacondiçãotrês
vezesambíguadecriança,deirmãedemulhersedentadeamor.É
possívelexpulsarumacriançadeseucolo?NemGoetheseriacapazde
fazê-lo.
Elasentou-senoseucolonomesmodiaemqueseencontrarampela
primeiravez,em1807,sepelomenosdermoscréditoaoqueelamesma
contoumaistarde:primeiroinstalou-senosofáemfrenteaGoethe;com
momentâneatristezaelefalavasobreaduquesaAméliaquemorrera
poucosdiasantes.Betinadissequenãosouberadenada."Como!
Espantou-seGoethe,avidadeWeimarnãolheinteressa?"EBetina:"Nada
meinteressaanãoserosenhor."Sorrindoparaamoça,Goethe
pronunciouestafrasefatal:"Vocêéumacriançaencantadora."Assimque
ouviuapalavra"criança"Betinasentiutodoseumedodesaparecer:"Não
possocontinuarnestesofá",disseelaficandodepé."Fiqueàvontade",
disseGoethe,eBetina,precipitando-se,sentou-seemseucolo.Eladeveter
sentidoumatalsensaçãodeconforto,aconchegadanele,quelogo
adormeceu.
Édifícilafirmarsetudosepassoudessemodo,ouseBetinanos
engana,masseelanosengana,melhorainda:assimpodemos
compreenderqueimagemelaqueriaoferecerdesimesmaequalerao
seumétodoparaabordaroshomens:àmaneiradeumacriança,tinhasido
deumaimpertinentesinceridade(aodeclararqueamortedaduquesa
era-lheindiferente,aoacharincômodoosofáondediversaspessoasantes
delatinhamsesentado,sentindo-sehonradas);comoumacriança,atirousenopescoçodeGoethe,sentou-seemseusjoelhoseparaculminar:à
maneiradeumacriança,dormiunocolodele.
Nadaémaisvantajosodoqueadotarumcomportamentoinfantil:ainda
inocenteeinexperiente,acriançapodesepermitiroquequer;nãotendo
aindaentradonomundodaforma,elanãoéforçadaaobservarasregras
deboaconduta;podeexpressarseussentimentossemsepreocuparcom
asconveniências.AspessoasqueserecusavamaveracriançaemBetina
achavamqueelaerameiomaluca(umdia,movidaapenaspelosentimento
dealegria,tinhadançadonoquarto,caíraeabriraatestanabeiradade
umamesa),mal-educada(nasala,preferiasempresentarnochão)e,
sobretudo,irremediavelmenteafetada.Emcompensação,aquelesque
aceitavamvê-lacomoumaeternacriançaficavamencantadoscomsua
espontaneidadeinteiramentenatural.
Goetheficoucomovidocomacriança.Comolembrançadesuaprópria
juventude,ofereceu-lheumbeloanel.E,namesmanoite,anotou
laconicamenteemseucaderno:MamselBrentano.
Quantasvezesessesamantescélebres,GoetheeBetina,se
encontraram?
Elaveiovê-lonooutonodomesmoanode1807epassoudezdiasem
Weimar.
Depoissóoreviuapóstrêsanos,duranteumacurtavisitadetrêsdias
aTeplitz,umaestaçãodeáguasdaBoêmiaqueGoethefrequentava,fato
queelaignorava.
UmanomaistardeocorreuavisitafatalaWeimarquando,duas
semanasapóssuachegada,seusóculosespatifaram-senochão.
Equantasvezesficaramrealmenteasós,num"tête-à-tête"?Três,
quatrovezes,nãomaisdoqueisso.Quantomenosseviam,maisse
escreviam,ouantes,paraserpreciso:elalheescrevia.Dirigiu-lhe
cinquentaeduaslongascartas,emqueotratavadevocêesófalavade
amor.Masapesardaavalanchedepalavras,nadarealmenteaconteceue
podemosnosperguntarporqueahistóriadeamordosdoisficoutão
célebre.
Eisaresposta:elaficoucélebredestaformaporquedesdeocomeço
tratava-sedeoutracoisaenãodeamor.
Goethenãodemorouadescobrir.Preocupou-se,pelaprimeiravez,
quandoBetinacontou-lheque,muitoantesdesuasvisitasaWeimar,ficara
íntimadesuamãeque,comoela,moravaemFrankfurt.Quissabertudo
sobreele,eavelhasenhora,envaidecidaeencantada,passoudiasinteiros
contando-lhesuaslembranças.Betinaesperavaqueaamizadedamãelhe
abrisserapidamenteacasadeGoethe,assimcomotambémseucoração.
Nãofoimuitofeliznessecálculo.Goetheachavaligeiramentecômicaa
adoraçãoquelhedevotavasuamãe(nuncaiavê-laemFrankfurt)e,na
aliançadeumafilhaextravagantecomumamãeingênua,farejavaperigo.
QuandoBetinacontavaashistóriasdavelhasenhora,imaginoqueele
tivessesentimentosconfusos.Aprincípio,claro,ficavaenvaidecidocomo
interessequelhedevotavaamoça.Suasconversasdespertavamnelemil
lembrançasesquecidasqueoencantavam.Elelogodescobriuhistóriasque
nãopoderiamteracontecido,ouqueomostravamsobumaspectotão
ridículoquenãodeviamteracontecido.
Alémdisso,todasuainfância,todasuajuventudetomavamnosrelatos
deBetinaumacoroumesmoumsentidoquelhedesagradavam.Nãoque
Betinaquisesseutilizarcontraelesuaslembrançasdeinfância;mastodo
mundo(nãoapenasGoethe)achairritantequesuavidasejacontada
segundoumaoutrainterpretaçãoquenãoasua.TantoqueGoethe
experimentouumasensaçãodeameaça:essamoçaquecirculavaentreos
intelectuaisjovensdomovimentoromântico(Goethenãotinhaamenor
simpatiaporeles)eraameaçadoramenteambiciosaetomava-se(comuma
naturalidadequebeiravaodespudor)porumafuturaescritora.Umdia,
aliás,elalhedissesemrodeios:queriaescreverumlivroapartirdas
recordaçõesdasuamãe.Umlivrosobreele,sobreGoethe!Nesseinstante,
atrásdosprotestosdeamor,eleenxergouaagressividadedessapenae
começouaseprecaver.
Maspelofatodeestaremguarda,proibia-sedeserdesagradável.Era
perigosademaisparaqueelepudessepermitir-sefazerdelaumainimiga;
melhorseriamantê-laconstantementesobumamávelcontrole,sem
exagerartambémaamabilidade,poisomenorgestopoderiaser
interpretadocomoumindíciodeumaconivênciaamorosa(aosolhosde
Betina,mesmoumespirropoderiapassarporumadeclaraçãodeamor),
poderiamultiplicaraindapordezasaudáciasdamoça.
Umdiaelaescreveu-lhe:"Nãoqueimeminhascartas,nãoasrasgue;
issopoderiaserruimparavocê,porqueoamorqueexpressonelasestá
ligadoavocê,firmemente,solidamente,demaneiraviva.Masnãoas
mostreaninguém.
Guarde-asescondidascomoumabelezasecreta."Elecomeçouasorrir
comcondescendência,porvê-latãoseguradasbelezasdesuascartas,mas
emseguidaficouintrigadocomafrase:"Nãoasmostreaninguém!"Por
queessaproibição?
Comoseeletivessevontadedemostrá-lasaalguém!Peloimperativo
nãomostre,Betinarevelavaumdesejosecretodemostrar.
Compreendendoqueascartasqueelelhedirigiadetemposemtempos
poderiamteroutrosleitores,via-senasituaçãodeumacusadoadvertido
pelojuiz:apartirdeagoratudoquevocêdisserpoderáserutilizado
contravocê.
Portantoesforçou-seemtraçarentreaafabilidadeeacircunspecção
umcaminhointermediário:emrespostaàssuascartascheiasdeêxtase
enviavabilhetesaomesmotempoamistososecontidos;aseutratamento
devocê,durantemuitotempoopôsosenhora;seseencontravamna
mesmacidade,eletestemunhava-lheumacordialidadeinteiramente
paternal,convidava-aparasuacasa,masdepreferêncianapresençade
outraspessoas.
Então,dequesetratava?
Betinaescreveu-lheumacarta:"Tenhoafirmeefortevontadedeamáloeternamente".Leiacomatençãoessafraseaparentementebanal.Bem
maisdoqueapalavra"amar"importamaspalavras"eternamente"e
"vontade".
Nãoireiprolongarmaisessesuspense.Nãosetratavadeamor.
Tratava-sedeimortalidade.
Em1810,duranteostrêsdiasemqueoacasoosreuniuemTeplitz,ela
confiouaGoethequeembrevesecasariacomopoetaAchimvonArnim.
Provavelmentedisseissoumpoucoembaraçada,commedoqueele
considerasseessecompromissomatrimonialcomoumatraiçãoaesse
amordeclaradocomtantoêxtase.Suainsuficienteexperiênciacomos
homensnãolhepermitiapreverasecretaalegriaquetalnotíciapoderia
proporcionaraGoethe.
AssimqueBetinapartiu,escreveuumacartaparaCristianaemquese
podialerestafrasecheiadealegria:"MUArnimistswohlge-wiss."Com
Arnimétranquilo.Namesmacartaelealegrava-sedeverBetina
"realmentemaisbonitaemaisagradáveldoqueantes",eadivinha-sepor
queelaparecia-lheassim:Goetheestavacertodequeaexistênciadeum
maridooporiadaíemdianteaoabrigodasextravagânciasqueatéentãoo
haviamimpedidodeapreciarosencantosdeBetinacomserenidadeebom
humor.
Paracompreenderbemasituaçãoéprecisonãoesquecerum
componentefundamental:Goetheforadesdesuaprimeirajuventudeum
homemmulherengo,portantoeraassimquarentaanosdepoisquando
conheceuBetina;durantetodoessetempoaperfeiçoara-seneleum
mecanismodegestosereflexossedutoresqueaomenorimpulsose
punhamemmovimento.Atéentão,nãosemesforço,éprecisoquesediga,
eraforçadoempresençadeBetinaamanteressemecanismoimóvel.Mas
quandocompreendeuque"comArnimétranquilo"pensoucomalívioque
daíemdianteaprudêncianãoeramaisnecessária.
Ànoite,elaveioencontrá-loemseuquarto,comosemprecomum
trejeitoinfantil.Contandoinconveniênciasencantadoras,elasentou-seno
chãoemfrenteàpoltronaemqueGoetheseinstalara.Comoeleestavade
excelentehumor("comArnimétranquilo"!)inclinou-sesobreelapara
acariciar-lheorostocomoseacariciaumacriança.Nesseinstanteacriança
parouseufalatórioeolhouparaelecomolhoscheiosdeexigênciase
desejosinteiramentefemininos.
Segurando-lheasmãos,obrigou-aalevantar-se.Fixemosbemacena:
elecontinuavasentado,elaestavapertodele,enovãodajanelaosolse
punha.
Olhavam-senosolhos,amáquinadeseduzirestavaemmovimentoe
Goethenãofazianadaparadesligá-la.Comumavozumpoucomaisbaixa
doqueemoutrasocasiõesesemdespregarosolhosdela,pediu-lheque
desnudasseosseios.Elanãodissenada,nãofeznada;enrubesceu.Ele
levantou-sedapoltronaedesabotoouseuvestidonaalturadopeito.
Imóvel,elacontinuavacomseusolhosnosolhosdele,eovermelhodopôrdo-solmisturava-senasuapelecomoruborqueacobriadatestaatéo
estômago.Elecolocouamãosobreseuseio:"Alguémjamaistocouseu
seio?"Perguntouele."Não",respondeuela."Eétãoestranhoquevocême
toque..."eelanãodesviavaosolhosdosseusuminstante.Amãosempre
sobreseuseio,eletambémaolhava,dentrodosolhos,eprofundamente,
longamente,comavidezobservavaopudordeumamoçaaquemninguém
jamaistocaraoseio.
EisaproximadamenteacenacomofoianotadapelaprópriaBetina,
cenaque,provavelmente,nãotevenenhumasequência;nahistóriadeles,
maisretóricadoqueerótica,elabrilhacomoumaúnicaeesplêndidajóia
deexcitaçãosexual.
Mesmoquandologodepoissedistanciaramumdooutro,guardaramo
vestígiodessemomentoencantado.Nacartaseguinteaoencontro,Goethe
chamou-a"allerliebste",amaisqueridadetodas.Portanto,elenão
esqueceraaessênciadesseencontroe,desdeaprimeiracartaenviadaem
seguida,paracontar-lhequecomeçaraaescreversuasMemórias,Poesiae
Verdade,elepediaqueelaoajudasse:suamãenãoestavamaisneste
mundo,ninguémmaisselembravadeseusanosdejuventude.Mas
durantemuitotempoBetinafizeracompanhiaàvelhasenhora:elaéquem
deveriatranscreveroquelheforacontado,eraelaquemdeveriaenviar
issoaGoethe.
SeráquenãosabiaqueBetinapretendiapublicarumlivrosobrea
infânciadeGoethe?Quejáestavamesmoementendimentoscomum
editor?Claroqueelesabia!Apostoqueelefezessepedidonãoporuma
exigênciareal,masparaimpossibilitá-ladepublicarqualquercoisasobre
ele.Fragilizadapelosortilégiodoúltimoencontro,commedotambémde
queseucasamentocomArnimaafastassedeGoethe,elacedeu.Ele
conseguiudesarmá-lacomosedesarmaumabomba.
Depois,emsetembrode1811,BetinaveioaWeimaracompanhadade
seujovemmarido,dequemestavagrávida.Nadadámaisalegriadoque
encontrar-seumamulher,atéentãoperigosa,masque,desarmada,não
provocamaisnenhummedo.Ora,Betina,emboragrávida,emboracasada,
emboraimpedidadeescreverseulivro,nãoseconsideravadesarmadae
nãopretendiaabsolutamentecessarocombate.Quemecompreendam
bem;nãoocombatepeloamor,maspelaimortalidade.
QueGoethetenhapensadonaimortalidade,suaidadepermitiatal
suposição.MasseráqueumamulhertãomoçaquantoBetina,etãopouco
conhecida,teriatidoomesmopensamento?Evidentemente.Sonha-secom
aimortalidadedesdeainfância.Alémdisso,Betinapertenciaàgeraçãodos
Românticos,deslumbradospelamortedesdeodiadonascimento.Novalis
nãochegouaostrintaanosdeidade,masapesardesuajuventude,nada,
provavelmente,oinspiroumaisdoqueamorte,amortefeiticeira,amorte
transmutadanaembriaguezdapoesia.Todosviviamnatranscendência,no
superar-seasi,asmãosestendidasparaoinfinito,paraofinaldesuas
vidas,emesmoparaoalém,emdireçãoàimensidãodonão-ser.Comojá
disse,ondequerqueestejaamorte,aimortalidade,suacompanheira,está
comela,eosRomânticosatratamcomdespudoradaintimidade,assim
comoBetinatratavaGoethe.
Essesanos,entre1807e1811,foramosmaisbelosdesuavida.Em
Viena,em1810,fezumavisitainesperadaaBeethoven.Assimconheceuos
doisalemãesmaisimortaisdetodos,nãoapenasobelopoetamastambém
ofeiocompositor,eflertoucomosdois.Essaduplaimortalidadea
embriagava.Goethejáestavavelho(naépoca,umsexagenárioera
consideradoumvelho)emagnificamentemaduroparaamorte;maltendo
quarentaanosnessaépoca,Beethovensemsabê-loestavacincoanosmais
próximodotúmulodoqueGoethe.Betinaaninhava-seentreelescomoum
anjinhodelicadoentreduasenormescolunasnegras.Eramaravilhosoea
bocadesdentadadeGoethenãoaincomodavaabsolutamente.Ao
contrário,quantomaisvelhoeleera,maisaatraía,porquequantomaisse
aproximavadamorte,maiseleseaproximavadaimortalidade.Sóum
Goethemortoestariaemcondiçõesdetomá-lafirmementepelamãoe
conduzi-laparaoTemplodaGlória.Quantomaiseleseaproximavada
morte,menoselapretendiarenunciaraele.
Porissonessefatalmêsdesetembrode1811,sebemquecasadae
grávida,fazia-semaisdoquenuncadecriança,falavaaltoeforte,sentavasenochão,namesa,nabeiradadacômoda,nolustre,subianasárvores,
deslocava-sedançando,cantavaquandoosoutrosconversavam
gravemente,expressava-secomgravidadequandoosoutroscantavam,e
procuravacustasseoquecustasseaoportunidadedeumtête-à-têtecom
Goethe.Noentanto,nodecorrerdessasduassemanassóconseguiuficara
sóscomeleumavez.Segundocontam,oencontroocorreumaisoumenos
assim:
Eranoite,estavamsentadospertodajanelanoquartodeGoethe.Ela
começouafalardaalma,depoisdasestrelas.Goethelevantouosolhosem
direçãoaocéuemostrou-lheumgrandeastro.MasBetinaeramíopeenão
vianada.Eleestendeu-lheumtelescópio:"Vocêtemsorte,olhaláMercúrio.
Nesteoutonopodemosvê-lomuitobem."MasBetinasonhavacomas
estrelasdosapaixonados,nãocomasestrelasdosastrônomos:colocandoo
olhonotelescópio,ela,depropósito,nãoviunadaedeclarouqueaslentes
estavammuitofracas.Pacientemente,Goethefoibuscarumtelescópiomais
possante.Maisumavezpôsoolhoneleemaisumavezdissequenãovia
nada.OqueincitouGoetheafalar-lhedeMercúrio,deMarte,dosplanetas,
doSoledaVia-láctea.Faloulongamente,equandoterminou,Betina,
pedindoqueeleadesculpasse,voltouparaoquarto.Algunsdiasmais
tarde,naexposição,elaproclamouqueosquadroseramimpossíveis,e
Cristiana,comoúnicaresposta,fezvoarporterraseusóculos.
Estediadosóculosquebrados,umdia13desetembro,foivividopor
Betinacomoumagrandederrota.Primeiramentereagiucom
agressividade,proclamandoportodaWeimarquetinhasidomordidapor
umasalsichaenlouquecida,masnãodemorouaperceberque,mostrandoseassimressentida,arriscava-seanãovermaisGoethe,reduzindodesta
formaseugrandeamorpeloimortalaumepisódiobanalfadadoao
esquecimento.Assim,elaobrigouobomArnimaescreverumacartapara
Goethepedindoqueperdoassesuamulher.Acartaficousemresposta.O
casaldeixouWeimar,ondeestevenovamenteemjaneirode1812.Goethe
nãoosrecebeu.Em1816,CristianamorreueBetina,algumtempodepois,
mandouaGoetheumalongacartacheiadehumildade.
Goethenãoreagiu.Em1821,portantodezanosdepoisdoseuúltimo
encontro,elachegouaWeimar,fez-seanunciaraGoethe,querecebia
convidadosnaquelanoiteenãopôdeimpedi-ladeentrar.Maselenãolhe
disseumasópalavra.Emdezembrodomesmoano,elaaindaescreveu-lhe.
Nãorecebeunenhumaresposta.
Em1823,osconselheirosmunicipaisdeFrankfurttomaramadecisão
deerguerummonumentoemhonradeGoethe,eoencomendaramaum
escultorchamadoRauch.QuandoBetinaviuoesboço,queadesagradou,
nãotevedúvidasdequeodestinooferecia-lheumaoportunidadequenão
podiaperder.
Emboranãosoubessedesenhar,botoumãosàobraedesenhouseu
próprioprojetodeestátua:Goetheestavasentadonaposturadeumherói
antigo:emumadasmãosseguravaumalira;entreseusjoelhosuma
pequenameninaquedeveriarepresentarPsique;oscabelosdopoeta
pareciamchamas.ElamandouodesenhoparaGoetheeaconteceuumfato
inteiramentesurpreendente:emseuolhoapareceuumalágrima!Foi
assimquedepoisdetrezeanos(estávamosemjulhode1924,eletinha
setentaecincoanos;ela,trintaenove)elerecebeu-aemcasae,embora
umpoucocontrafeito,fezcomqueelacompreendessequetudoestava
perdoado,queaeradosilênciodesdenhosoestavasuperada.
Parece-mequeduranteestafasedosacontecimentososdois
protagonistashaviamchegadoaumacompreensãofriamentelúcidadas
coisas:todososdoissabiamdoquesetratavaecadaumdelessabiaqueo
outrotambémsabia.Aodesenharomonumento,Betinamostroupela
primeiravez,semambiguidade,aquiloquedesdeocomeçoestavaemjogo:
aimortalidade.Sempronunciá-la,elatocounessapalavracomosetoca
umacordaqueressoadoceelongamente.
Goetheouviuisso.Primeiroficouingenuamenteenvaidecido,mas
poucoapouco(depoisdeenxugarsualágrima)compreendeuo
verdadeiroemenoslisonjeirosentidodamensagem:elalhefaziasaber
queoantigojogocontinuava;queelanãosedavaporvencida,queseria
elaquemcortariasuamortalha,aquelacomqueeleseriaexpostoà
posteridade;elalheavisavaqueelenãopoderiaabsolutamenteimpedi-la,
esobretudonuncapormeiodeumsilêncioamuado.
Maisumavezpensouoquejásabiahámuitotempo:eraperigosaeera
melhortomarcuidadocomela.
BetinasabiaqueGoethesabia.Issoficaevidentenoencontrodooutono
domesmoano,oprimeirodepoisdesuareconciliação;elamesmaocontou
numacartaenviadaàsuasobrinha:assimqueaacolheu,escreveBetina,
"Goethemostrou-seprimeirorabugento,depoisdissemepalavras
carinhosasparareconquistarminhasimpatia".
ComonãocompreenderGoethe!Aovê-la,percebeuintensamente
oquantoelaoirritavaeficoucomraivadeterinterrompidoessemagnífico
silênciodetrezeanos.Começouumabrigaparadescarregarnelatodasas
reclamaçõesquenuncatinhaexpressado.Maslogocontrolou-se:porque
sersincero?Porquedizer-lheoquepensava?Apenasimportavaasua
decisão:neutralizá-la,pacificá-la,mantê-lasobcontrole.
Sobdiversospretextos,contaBetina,Goetheinterrompeuoencontro
delespelomenosseisvezesparairàsalavizinhaonde,escondido,bebia
vinho,comopôdedepoisperceberpeloseuhálito.Elaacaboupor
perguntar-lhe,comarbrincalhão,porquebebiaescondido,eGoethe
aborreceu-se.
MaisdoqueGoethebebendovinhoescondido,éBetinaquemeparece
interessante:elanãosecomportoucomovocêoueu,queteríamos
observadoGoethecombomhumor,mascalando-nosdiscretae
respeitosamente.Dizer-lheoqueosoutrosteriammantidoemsilêncio
("Seuhálitocheiraaálcool!Porquevocêbebeu?Porquebebe
escondido?")erasuamaneiradeextorquirdeGoetheumapartedesua
intimidade,deficarcorpo-a-corpocomele.Nessaagressividadeda
indiscriçãoqueemnomedesuaespontaneidadeinfantilsempre
reivindicara,GoethelogoreconheceuaBetinaque,trezeanosantes,
decidiranuncamaisrever.Semdizerumapalavraelelevantou-se,pegou
umalâmpadaparadizerqueoencontroterminaraequeeleiria
acompanharavisitapelocorredorescuroatéaporta.
Então,contaBetinanoprosseguimentodesuacarta,paraimpedi-lode
sair,elaajoelhou-senasoleira,emfrenteaoquarto,edisselhe:"Querover
sepossomantê-lopresoesevocêéumespíritodoBem,ouumespíritodo
Mal,comooratodeFausto;beijoeabençôoasoleiradessaportaquecada
diaéatravessadapeloespíritomaiseminentequetambémémeumelhor
amigo."O
quefezGoethe?Segundoacartacitada,declarou:"Parasair,nãovou
pisoteá-la,nemvocênemseuamor;essemeémuitocaro;quantoaseu
espírito,voudeslizaremtornodele(erealmentecontornava
cuidadosamenteocorpoajoelhadodeBetina),poisvocêémuitoardilosae
émelhorviverempazcomvocê."
Essafrase,colocadapelaprópriaBetinanabocadeGoethe,parece-me
resumirtudoaquiloque,duranteesseencontroelelhedissesemdizer:
Sei,Betina,queseuesboçodaestátuafoiumardilgenial.Naminha
senilidadedeploráveldeixei-mecomoverpelaschamascomquevocê
comparameuscabelos(ah,meuspobrescabelosralos),masnãodemoreia
compreender:vocênãoquismemostrarumdesenhomasapistolaque
temnamãoparaatirarnasprofundezasdaminhaimortalidade.Não,não
conseguidesarmá-la.Noentantonãoqueroaguerra.Queroapaz.Nada
maisdoqueapaz.Prudentementevoucontorná-lasemtocá-la,nãovou
abraçá-la,nãovoubeijá-la.Emprimeirolugar,nãotenhoamenorvontade.
Depois,seiquetudoqueeufizervocêtransformaráemmuniçãoparasua
pistola.
Doisanosdepois,BetinavoltouaWeimar;elaviuGoethequasetodos
osdias(nessaépocaeletinhasetentaeseteanos)enofimdesuaestada,
aotentarintroduzir-senacortedeCarlosAugusto,cometeuumadas
impertinênciasencantadorasdequeconheciaosegredo.Aconteceu,então,
umfatoinesperado:Goetheexplodiu."Essamoscainsuportável(diese
leidigeBremse)queminhamãemelegou,escreveueleaCarlosAugusto,
nosincomodahámuitotempo.Elaconservaumpequenojogoquearigor
poderiaagradaremsuamocidade,aconversadelaécheiaderouxinóise
elagorjeiacomoumcanário.SeVossaAltezapermitir,vouproibirno
futuro,comafirmezadeumtio,todasassuasimpertinências.Docontrário,
VossaAltezanuncaficarálivredesuasinconveniências."
Seisanosmaistarde,elasefezanunciarmaisumavezemcasadele.
MasGoetherecusou-seavê-laeacomparaçãodeBetinacomumamosca
ficousendosuaúltimapalavranessahistória.
Coisacuriosa:depoisdeterrecebidoodesenhodomonumento,ele
adotaracomoregramanterapazcomelaaqualquerpreço.Sebemque
alérgicoatéasuapresença,eletudofizera(porissoelasentiucheirode
álcoolemseuhálito)parapassaranoite"numaboarelação"comela.Como
elepoderiadeixarirporáguaabaixotodososseusesforços?Eleque
tomavatantocuidadodenãopartirrumoàimortalidadecomacamisa
amassada,comoelepôdeescreveressaspalavrashorríveis,mosca
insuportável,essaspalavrasqueseriamcensuradasaindacemanos
depois,trezentosanosdepois,equandomaisninguémlerianemFausto
nemOssofrimentosdojovemWerther!
Éprecisocompreenderoquadrantedavida:
Atéumcertomomento,amortepermaneceumfatodistantedemais
paraquenosocupemosdela.Elaénão-vista,nãoévisível.Eaprimeira
fasedavida,amaisfeliz.
Depois,subitamente,nosdeparamoscomanossaprópriamortediante
denóseéimpossívelafastá-ladenossocampovisual.Elaestáconosco.E
comoaimortalidadeégrudadaàmortecomoHardyaLaurel,podemos
dizerqueaimortalidade,elatambémestáconosco.Maldescobrimossua
presença,começamos,febrilmente,acuidardela.Nóslheencomendamos
umsmoking,compramosumagravata,commedoqueternoegravata
sejamescolhidosporoutrapessoa,emalescolhidos.Foinummomento
comoessequeGoethedecidiuescreversuasMemórias,suacélebrePoesia
everdade,econvidouparasuacasaodevotadoEckermann(porcuriosa
coincidênciaissopassou-senessemesmoanode1823quandoBetinafezo
desenhodaestátua)paraqueelepudesseescreversuasConversascom
Goethe,essebeloretratorealizadosobaamávelfiscalizaçãodoretratado.
Depoisdessasegundafasedesuavida,ondeohomemnãopode
afastaramortedosolhos,vemumaterceira,amaiscurtaeamaissecreta,
daqualpoucosesabe,edaqualnãosefala.Suasforçasdeclinameum
serenocansaçoseapossadohomem.Cansaço:pontosilenciosoqueconduz
doriodavidaaoriodamorte.Amorteestátãopróximaquenoscansamos
devê-la.Comoantes,elaénão-vistaenão-visível.Não-vistacomoos
objetosmuitofamiliares,muitoconhecidos.Ohomemcansadoolhapela
janelaafolhagemdasárvoresdasquaismentalmentepronunciaonome:
castanheira,álamo,bordo.Essaspalavrassãobelascomoopróprioser.O
álamoégrandeepareceumatletalevantandoosbraçosparaocéu.Ou
pareceumaaltachamapetrificada.Oálamo,oh,oálamo.
Aimortalidadeéumailusãoderrisória,umapalavravazia,umsoprode
vento,queseperseguecomumarededepegarborboletas,sea
compararmoscomabelezadoálamo,queovelhocansadovêpelajanela.A
imortalidade,ovelhocansadonãopensanelaabsolutamente.
Oqueelefará,ovelhocansadoolhandooálamo,quandoderepente
surgeumamulherquequerdançaremtornodamesa,ajoelhar-sena
soleiradaportaeconversarcoisassofisticadas?Comosentimentode
inefávelalegriaeumabruscaretomadadevigor,eleachamaráleidige
Bremse,moscainsuportável.
PensonesseinstanteemqueGoetheescreveu:moscainsuportável.
Pensonoprazerquesentiuepensoque,numlampejodelucidez,
compreendeu:nuncaagiracomoqueriateragido.Elesupunha-seo
gerentedesuaimortalidadeeessaresponsabilidadefizeracomque
perdessetodaanaturalidade.Tiveramedodasextravagâncias,sentindo
porelasaomesmotempomuitaatração,esecometeraalgumas,tentara
depoisatenuá-lasparanãoafastar-sedessamoderaçãosorridenteque
algumasvezesoidentificaracomabeleza.
Aspalavras"moscainsuportável"nãoestavamdeacordonemcomsua
obra,nemcomsuavida,nemcomsuaimortalidade.Essaspalavraserama
liberdadepura.Sópodeescreveressaspalavrasumhomemque,tendo
chegadoàterceirafasedavida,deixoudegerenciarsuaimortalidadee
nãoaconsideramaisumacoisaséria.Érarochegaratéesselimite
extremo,masaquelequeoatingesabequealieemnenhumoutrolugar
encontra-seaverdadeiraliberdade.
EssasideiasatravessaramoespíritodeGoethe,maselelogoas
esqueceuporqueeraumvelhocansado,esuamemóriaestavafalhando.
Recordemos:foidisfarçadaemcriançaqueelaveiovê-loaprimeira
vez.
Vinteecincoanosmaistarde,emmarçode1832,quandosoubeda
gravedoençadeGoethe,foiumacriançaqueelalogoenviouàsuacasa:
seufilhoSigmund.
EssetímidogarotodedezoitoanospassouseisdiasemWeimar,
seguindoasinstruçõesdesuamãe,semsabernadadoquesetratava.Mas
Goethesabia:elaomandouparapertodelecomoumembaixador
encarregadodefazê-locompreender,porsuasimplespresença,quea
morterondavaatrásdaportaequedaliemdianteBetinatomariacontada
imortalidadedeGoethe.
DepoisamorteabriuaportaenodiavinteeseisdemarçoGoethe
morreudepoisdeumasemanadelutaeBetina,algunsdiasmaistarde,
escreveuumacartaaoexecutortestamentáriodeGoethe,ochanceler
Muller:"Naverdade,amortedeGoetheprovocou-meumaimpressão
profunda,inapagável,masnãoumaimpressãodetristeza;nãoposso
expressarcompalavrasaverdadeexata,mascreioaproximar-meo
máximoaodizerquefoiumaimpressãodeglória."
SublinhemosbemessaprecisãodeBetina:nãodetristezamasde
glória.
Poucodepois,elapediuaomesmochancelerMullerparamandar-lhe
todasascartasqueescreveraaGoethe.Relendo-as,teveumadecepção:
todaessahistóriapareciaumrascunho,claro,deumaobra-prima,no
entantonadaalémdeumrascunhoe,alémdisso,imperfeito.Erapreciso
começaratrabalhar.Otrabalhoduroutrêsanos:corrigiu,reescreveu,
completou.Seestavadescontentecomsuasprópriascartas,asdeGoethe
pareciam-lheaindamaisdecepcionantes.
Aorelê-las,sentia-seferidaporseulaconismo,porsuareserva,atépor
suaimpertinência.Comoserealmenteeleatomasseporumacriança,
redigiamuitasvezessuascartassobaformadeamáveisliçõesdestinadas
aumaestudante.
Assimsendo,elatevequemudarotom:"minhacaraamiga"tornou-se
"meucoraçãoquerido",ascensurasqueelelhedirigiraforamadoçadas
poracréscimoselogios,eoutrosacréscimosderamaentenderopapelde
inspiradoraemusaqueBetinasouberarepresentarjuntoaopoeta
fascinado.
Demaneiraaindamaisradical,elareescreveusuasprópriascaretas.
Não,elanãomudouotom,otomestavacerto.Masmudou,porexemplo,as
datas(parafazerdesaparecernomeiodesuacorrespondênciaoslongos
intervalosqueteriamdesmentidoaconstânciadesuapaixão),eliminou
muitaspassagensinconvenientes(aquela,porexemplo,emqueimplorava
aGoethequenãomostrassesuascartasaninguém),acrescentououtras
explicações,tornoumaisdramáticasassituaçõesdescritas,deumais
profundidadeàssuasopiniõessobrepolíticaouarte,notadamentequando
músicaeBeethovenestavamemquestão.
Acabouolivroem1835epublicou-osobotítuloGoethesBriefwechsel
miteinemKinde."CorrespondênciadeGoethecomumacriança."Ninguém
colocouemdúvidaaautenticidadedascartasaté1929,datanaquala
correspondênciaoriginalfoidescobertaepublicada.
Ah!Porqueelanãoteriaqueimadoascartasatempo?
Coloque-seemseulugar:nãoéfácilqueimardocumentosíntimosque
lhesãocaros;écomosevocêreconhecessequenãotemmaistempo,que
vaimorreramanhã;assimvocêadiaeternamenteesseatodedestruiçãoe
umdiaétardedemais.
Contamoscomaimortalidade,eesquecemosdecontarcomamorte.
Graçasàdistânciaqueofimdenossoséculonospermite,talvez
possamosousardizer:opersonagemGoetheestáexatamentenomeioda
históriaeuropeia.
Goethe:osoberbopontomediano,ocentro.Nãoocentro,ponto
pusilânimequedetestaosextremos,masocentrosólidoquesustentaos
doisextremosnumnotávelequilíbrioqueaEuropanuncamaisconhecerá.
EmsuajuventudeGoetheestudaaindaalquimia,mastorna-semaistarde
umpioneirodaciênciamoderna;eleéomaiordosalemães,sendoao
mesmotempoantipatriotaeeuropeu;cosmopolita,noentantonãodeixa
nuncaasuaprovíncia,suaminúsculaWeimar;éumhomemdanaturezae
aomesmotempoumhomemdaHistória.Noamor,étãolibertinoquanto
romântico.Eaindaisso:
Lembremo-nosdeAgnèsnoelevadoragitadoporsacudidelas,como
quetomadopeladoençadeSãoGuido.Mesmosendoespecialistaem
cibernética,elanãopodiaentenderoquesepassavanacabeçatécnica
dessamáquina,queparaelaeratãoestranhaeopacaquantoos
mecanismosdetodososobjetosqueencontravatodososdias,desdeo
pequenocomputadorcolocadoaoladodotelefoneatéolava-louça.
Goethe,aocontrário,viveuessemomentodahistória,curtoeúnico,em
queoníveltécnicojápermitiaumcertoconforto,masemqueohomem
cultoaindapodiacompreendertodososutensíliosqueocercavam.Goethe
sabiacomoqueecomosuacasatinhasidoconstruída,porqueuma
lâmpadaaóleoiluminava,conheciaomecanismodeseutelescópio;sem
dúvidanãoousavaefetuaroperaçõescirúrgicas,masporterassistidoa
algumas,podiadialogarcomoconhecedorcomomédicoqueotratava.O
mundodosobjetostécnicoseraparaeleinteligíveletransparente.Essefoi
ograndemomentogoethianonomeiodahistóriadaEuropa,ominutoque
deixaráumacicatriznostálgicanocoraçãodohomemaprisionadono
elevadorqueseagitaequedança.
AobradeBeethovencomeçaondeterminaograndemomentode
Goethe.
Poucoapoucoomundoperdesuatransparênciaetorna-seopaco,
ininteligível,precipita-senodesconhecido,enquantoohomemtraídopelo
mundorefugia-seemseuforoíntimo,emsuanostalgia,emseussonhos,
emsuarevolta,e,aturdidocomavozdolorosaqueemergededentrodele,
nãosabemaisouvirasvozesqueointerpelamdefora.ParaGoethe,ogrito
interiorerauminsuportávelclamor.
Detestavaobarulho,ésabido.Nãosuportavanemmesmoolatidode
umcãonofundodeumjardimdistante.Diz-sequenãogostavademúsica.
Éfalso.Nãogostavadeorquestras.AdoravaBach,queaindapensavaa
músicacomosonoridadetransparentedevozesindependentesedistintas.
MasnassinfoniasdeBeethoven,asvozesparticularesdosinstrumentos
fundiam-senumaopacidadesonoradegritosedechoros.Goethenão
suportavaosurrosdaorquestra,tantoquantonãosuportavaosruidosos
soluçosdaalma.OsamigosdeBetinatinhampercebidoarepulsanosolhos
dodivinoGoethequeosobservavatapandoosouvidos.Nãopodiam
perdoá-loeoatacavamcomouminimigodaalma,darevoltaedo
sentimento.
IrmãdopoetaBrentano,mulherdopoetaArnim,adoradorade
Beethoven,Betina,membrodafamíliaRomântica,eraamigadeGoethe.Eis
suaexcelenteposição:elaeraasoberanadedoisreinados.
Seulivroapresentava-secomoumamagníficahomenagemaGoethe.
Todasassuascartasnãoeramsenãoumcantodeamordedicadoaele.
Queseja,mascomotodomundosabiaqueMadameGoethejogaranochão
osóculosdeBetina,equeGoethe,então,porumasalsichaenlouquecida,
traíravergonhosamenteacriançaapaixonada,esselivroeraaomesmo
tempo(emuitomais)umaliçãodeamorimpostaaopoetaquediantede
umgrandesentimentocomportou-secomoumcovardevaidosoe
sacrificouapaixãoporumamiserávelpazmatrimonial.OlivrodeBetina
era,aomesmotempo,umahomenagemeumabofetada.
NomesmoanoemqueGoethemorreu,numacartaendereçadaa
seuamigo,ocondeHermannvonPuckler-Muskau,elacontouoquetinha
acontecidonumdiadeverão,vinteanosantes.Segundoconsta,soubera
dissopelopróprioBeethoven.Em1812(portanto,umanodepoisdoano
negrodosóculosquebrados),estetinhavindopassaralgunsdiasem
TeplitzondeencontraraGoethepelaprimeiravez.Fizeramumpasseio
juntos.Enquantoiamporumaaleia,derepenteapareceudiantedelesa
imperatrizacompanhadaporsuafamíliaesuacorte.Aoperceberocortejo
edeixandodeescutaroqueBeethovenlhedizia,Goetheparou,afastou-se
etirouoseuchapéu.Beethoven,porsuavez,enterrouoseunacabeça,
franziuasgrossassobrancelhasquecrescerammaisalgunscentímetrose
dirigiu-se,semafrouxaropasso,deencontroaosaristocratas;forameles
quepararam,queodeixarampassar,queocumprimentaram.Sóvirou-se
depoisparaesperarGoethe.Eentãodisselheoquepensavadeseu
comportamentoservil.Repreendeu-ocomoaumacriança.
Essacenarealmenteaconteceu?Beethovenainventou?Inteiramente?
Ouapenasexagerouumpouco?OufoiBetinaqueaexagerou?Ouque
forjou-ainteiramente?Nuncaninguémsaberá.Masécertoqueao
escreversuacartaaHermannvonPuckler,elacompreendeubemovalor
inestimáveldessaanedota,aúnicaquepoderiarevelarosentidomais
profundodahistóriadeamorentreelaeGoethe.Todavia,comotorná-la
conhecida?Emsuacarta,elaperguntaaHermannvonPuckler:"Ahistória
lheagrada?KannstDusiebraucherí!"Vocêpodeutilizá-la?Comovon
Pucklernãotivesseintençãodeutilizá-la,ela,aprincípio,alimentaoprojeto
deeditartodaacorrespondênciaquemantiveracomoconde,depois
acabouencontrando,delonge,amelhorsolução:em1839,narevista
Athenãum,elapublicaacartaemqueopróprioBeethovencontaessa
história!Ooriginaldessacartadatadade1812nuncafoiencontrado.
ExisteapenasacópiaescritapelamãodeBetina.Muitosdetalhes
80
(porexemplo,adataexatadacarta)indicamqueBeethovenjamaisa
escreveu,oupelomenosnuncaaescreveucomoBetinaarecopiou.Mas
poucoimportaquesetratedeumfalsooudeumsemifalso,aanedota
tornou-secélebreeagradouatodomundo.Derepente,tudoficouclaro:se
Goethepreferiuumasalsichaaumgrandeamor,nãofoiporacaso:
enquantoBeethovenéumhomemrevoltadoquepassanafrente,como
chapéuenterradonacabeça,asmãosatrásdascostas,ele,Goethe,éum
homemservilquefazreverênciaspeloscantosdeumaaleia.
Tendoestudadomúsica,chegandomesmoacomporalgumaspeças,
Betinaestavaàalturadecompreenderoquehaviadenovoedebelo
namúsicadeBeethoven.Portanto,pergunto:amúsicadeBeethoven
cativou-aporsuaqualidade,porsuasnotas?Ouseriapeloque
representava,oumelhordizendo,porsuanebulosaligaçãocomasatitudes
eideiasqueBetinaesuageraçãocompartilhavam?Contasfeitas,oamor
pelaarte,issoexisteejamaisexistiu?
Nãoéumailusão?QuandoLenineproclamouqueacimadetudoamava
aAppassion-ata,deBeethoven,oquerealmenteamava?Oqueeleouvia?A
música?Ouummajestosoclamorquelembrava-lheosmovimentos
pompososdesuaalmarepletadesangue,defraternidade,de
enforcamentos,dejustiçaedoabsoluto?Eleouviaamúsicaou
simplesmentedeixavaqueelaotransportasseaumdevaneioquenada
tinhaemcomumnemcomaartenemcomabeleza?Masretornemosa
Betina:elafoiatraídapeloBeethovenmúsico,oupelograndeBeethoven
anti-Goethe?Elaamavaamúsicadeumamordiscreto,comoessequenos
prendeaumametáforamágica,àaliançadeduascoressobreumquadro?
Oudessapaixãoconquistadoraquenosfazaderiraumpartidopolítico?
Sejaláoquefor(enuncasaberemosoqueera),Betinaenviouaomundoa
imagemdeumBeethovenindoemfrente,ochapéuenterradonacabeça,e
essaimagemcontinuousozinhasuacaminhadaatravésdosséculos.
Em1927,cemanosdepoisdamortedeBeethoven,umarevistaalemã,
DieliterarischeWelt,pediuaoscompositoresmaisimportantesque
dissessemoqueBeethovenrepresentavanaopiniãodeles.Aredação
jamaispôdeimaginarumatalexecuçãopóstumadohomemcomochapéu
enterradonacabeça:Auric,membrodoGrupodosSeis,fezuma
proclamaçãoemnomedetodososseusamigos:Beethovenera-lhesatal
pontoindiferentequenãomerecianemmesmosercontestado.Queeleum
diapudesseserredescoberto,reabilitado,comoaconteceucemanosantes
comBach?Inadmissível!Ridículo!Janacektambémconfirmouqueaobra
deBeethovennuncaoencantara.ERavelresumiu:nãogostavade
Beethoven,porquesuaglórianãorepousavasobresuamúsica,
obviamenteimperfeita,massobreummitoliterárioorigináriodesua
biografia.
Ummitoliterário.Nocaso,elerepousasobredoischapéus:
umprofundamenteenterradonacabeça,atéasenormessobrancelhas;o
outro,namãodeumhomemqueseinclinaprofundamente.Osmágicos
gostamdemanipularchapéus.Gostamqueobjetosdesapareçamneles,ou
delestirampombosquevoamparaoteto.Betinatiroudochapéude
Goetheosfeiospássarosdeseuservilismo;enochapéudeBeethoven
(certamentesemquerer)elafezdesaparecertodasuamúsica.Ela
reservouparaGoetheodestinodeTychoBrahéedeCarter:uma
imortalidaderisível.Masaimortalidaderisívelnosespreitaatodos;para
Ravel,Beethovenindoemfrentecomseuchapéuenterradoatéas
sobrancelhaseramuitomaisrisíveldoqueGoethequeseinclinava
profundamente.
Consequentemente,mesmoseforpossívelmoldaraimortalidade,
moldá-laantecipadamente,manipulá-la,elanuncaacontecerácomofoi
planejada.OchapéudeBeethoventornou-seimortal.Nesseaspecto,o
planofoibem-sucedido.Masosignificadoqueteriaochapéuimortal,
ninguémpoderiaprever.
"Sabe,Johann,disseHemingway,eutambémnãoescapodesuas
eternasacusações.Emvezdelermeuslivros,escrevemlivrossobremim.
Parecequeeunãogostavademinhasmulheres.Quenãomeocupei
suficientementedemeufilho.Quequebreiacaradeumcrítico.Quefui
poucosincero.Quefuiorgulhoso.Quefuimacho.Quemevanglorieide
duzentosetrintaferimentosdeguerraquandotiveapenasduzentoseseis.
Quememasturbei.Quefuimauparaminhamãe.
—Oquevocêqueréaimortalidade,disseGoethe.Aimortalidadeéum
eternoprocesso.
—Seéumeternoprocesso,seriaprecisoumjuizdeverdade!Enão
umaprofessoradointeriorcomumavaranamão.
—Umavaraerguidaporumaprofessoradeinterior,eisoeterno
processo!
Oquemaisvocêimaginou,Ernest?
—Nãoimagineinada.Esperavaapenasquedepoisdamorteviveria
umpoucotranquilo.
—Vocêfeztudoparatornar-seimortal.
—Bobagem.Apenasescrevialivros.
—Exatamente!exclamouGoethe.
—Quemeuslivrossejamimortais,nãotenhonadacontra.Escrevi-os
demaneiratalquenãosepodemudarumapalavraneles.Tudofizpara
queresistamàsintempéries.Mascomohomem,comoErnestHemingway
estoupoucoligandoparaaimortalidade!
—Compreendo,Ernest.Masvocêdeveriatersidomaisprudente
quandovivo.Agora,nãohámuitacoisaafazer.
—Maisprudente?Éumaalusãoàsvantagensquecontava?Sim,na
minhamocidadeeraumgalo,gostavadememostrar.Regalava-mecomas
históriasquecontavamameurespeito.Mascreia-me,pormaisvaidoso
quefosse,nãoeraummonstroenãosonhavaabsolutamentecoma
imortalidade!Nodiaemquecompreendiqueerajustamenteelaqueme
espreitava,entreiempânico.Cemvezesimploreiàspessoasquenãose
metessemnaminhavida.Masquantomaisimplorava,piorera.Instalei-me
emCubaparaescapardelas.QuandomederamoprêmioNobel,recuseimeairaEstocolmo.Estavapoucoligandoparaaimortalidade,edirei
aindamais:odiaemqueconstateiqueelameabraçava,ohorrorquesenti
foipiordoqueohorrordamorte.Ohomempodepôrfimàsuavida,mas
nãopodepôrfimàsuaimortalidade.Nahoraemquevocêembarcanela,
nãopodemaisdescer,mesmoquequeimeosmioloscomoeu,você
continuaàbordocomoseusuicídio,eéhorrível,Johann,éhorrível.Estava
morto,deitadonotombadilho,eemtornoviaminhasquatromulheres
agachadas,escrevendotudoquesabiamdemim,eatrásdelasestavameu
filhoquetambémescrevia,eGertrudeStein,avelhafeiticeiraestavalá,e
escrevia,etodosmeusamigosestavamláecontavamtodasasintrigas,
todasascalúniasquetinhamouvidoameurespeito,eumacentenade
jornalistassecomprimiamatrásdeles,microfonesligados,eemtodasas
universidadesdaAméricaumexércitodeprofessoresclassificavamtudo
isso,analisavam,desenvolviam,fabricandomilharesdeartigosecentenas
delivros."
HemingwaytremiaeGoethetomou-lheamão."Acalme-se,Ernest.
Acalme-se,meuamigo.Euocompreendo.Oquevocêestámecontando
mefazlembrarumsonho.Foimeuúltimosonho,depoisdissonuncamais
sonheiouentãoeramsonhosconfusosqueeunãopodiadistinguirda
realidade.Imagineumapequenasaladeteatrodemarionetes.Estouatrás
dopalco,movimentoosbonecoseeumesmorecitootexto.Éuma
representaçãodeFausto.DomeuFausto.Apropósito,vocêsabiaqueem
nenhumaparteoFaustoétãobonitoquantonoteatrodemarionetes?Por
issoestavacontentequenãohouvesseatoresequepudesserecitar,eu
mesmo,osversosquenessediaressoavammaisbelosdoquenunca.
Depois,derepente,olheiparaasalaeviqueestavavazia.Fiquei
desconcertado.Ondeestãoosespectadores?MeuFaustoétãocansativoa
pontodetodosteremidoembora?Eunãomerecianemumavaia?
Encabulado,olheiaomeuredorefiqueiestupefato:esperavavê-losna
sala,eestavamtodosatrásdopalco!Osolhosarregaladosobservavam-me
comcuriosidade.Nomomentoquenossosolharesseencontraram,
começaramaaplaudir.Compreendiqueoespetáculoqueelesqueriam
assistir,nãoeramasmarionetes,maseupróprio.
NãooFausto,masGoethe!Fuitomadodehorror,muitosemelhantea
essequevocêacabademencionar.Sentiqueelesqueriamqueeudissesse
qualquercoisa,maseunãoeracapaz.Agargantaapertada,largueios
bonecosnopalcoiluminado,queninguémolhara.Tenteiconservaruma
serenidadedigna,semumapalavradirigi-meatéocabideparaapanhar
meuchapéu,coloquei-onacabeça,esemdaramenoratençãoatodos
essescuriosos,saíefuiparacasa.
Esforçava-meemnãoolharnemparaadireitanemparaaesquerda,
sobretudo,emnãoolharparatrás,porquesabiaqueelesestavamnomeu
rastro.Evirandoachave,abriapesadaportadaminhacasa,batendo-a,
depressa,atrásdemim.
Acendiolampiãoaóleo,esegurando-ocomminhamãotrêmula,dirigimeparameuescritórioparaesqueceresseepisódioexaminandominha
coleçãodeminerais.Masmaltinhacolocadoolampiãoemcimadamesa,
meuolharfoiatraídoparaajanela:viseusrostosapertadosunscontraos
outros.Ecompreendiquenuncameverialivredeles,nunca,nuncamais.
Pelosgrandesolhoscomquemefixavam,dei-mecontadequeolampião
iluminavameurosto.Apaguei-o,mesmosabendoqueeraumerro:
perceberiamapartirdaíquemeescondiadeles,quetinhamedo,ficariam
aindamaisexaltados.Ecomoomedojáeramaiordoquearazão,corri
paraomeuquarto,puxeiolençoldacamaparacobrirminhacabeçaeme
posteinumcantodoquarto,bemcoladonaparede..."
HemingwayeGoetheafastam-senoscaminhosdoalémevocês
meperguntamdeondetireiessaideiadejuntarexatamenteessesdois.
Poder-se-iaimaginarduplamaissurpreendente?Elesnãotêmnadaem
comum!Edaí?Comquem,segundovocês,Goethegostariadepassaro
temponoalém?ComHerder?
ComHõlderlin?ComBetina?ComEckermann?Lembrem-sedeAgnèse
desuarepulsaemimaginarquedepoisdesuamorteteriaqueouvir,para
sempre,aquelasmesmasvozesdemulherquesempreouvianasauna.Ela
nãoqueriatornaraencontrar-senemcomPaulnemcomBrigite!Então,
porqueGoethedeveriadesejarapresençapóstumadeHerder?Ouso
mesmodizerquenãotinhanenhumavontadedereverSchiller.Claro,ele
nuncateriareconhecidoissoquandovivo,porqueseriaumtristesaldonão
tertidoemvidanenhumgrandeamigo.CertamenteSchillereraseuamigo
maisquerido.Porémomaisqueridoquerdizermaisqueridodoquetodos
osoutros,que,falandofrancamentenãoeramassimtãoqueridos.Eram
seuscontemporâneos,eelenãoostinhaescolhido.NemmesmoSchillerele
tinhaescolhido.Quandoumdiatevequeserenderàevidênciadeque
durantetodaasuavidaosteriaemtornodesi,aangústiaapertou-lheo
coração.Quefazer?Tinhaqueseresignar.Masporqueiriadesejar
frequentá-losdepoisdesuamorte?
Foi,portanto,porumamorpuramentedesinteressadoqueimaginei
oferecer-lhecomocompanheiroalguémquefossecapazdecativá-lo(se
vocêsjáesqueceram,lembro-lhesqueGoethe,quandovivo,eramuito
interessadopelaAmérica),alguémquenãolhelembrasseaquelecírculo
deRomânticosderostopálido,quenofimdesuavidaapossaram-seda
Alemanha.
"Sabe,Johann,disseHemingway,paramiméumagrandesorteestar
emsuacompanhia.Diantedevocê,aspessoastrememderespeito,de
modoqueminhasmulhereseatémesmoavelhaGertrudeSteinsomem
assimquelhevêem."Emseguida,elecomeçouarir:"Anãoserqueseja
porcausadasuaroupainacreditável."
ParatornarcompreensíveisessaspalavrasdeHemingway,tenhoque
explicarqueosimortaissãoautorizadosaescolher,paraseuspasseiosno
além,oaspectofísicoquepreferementreaquelesquetiveramemvida.E
Goetheescolheraoaspectoíntimodeseusúltimosanos;ninguémanãoser
aquelesquelheerampróximosoviramassim:paraprotegerseusolhos
queardiam,usavanatestaumaviseiraverdeetransparente,amarradana
testaporumbarbante;usavachinelosnospése,commedodofrio,
enrolava-senumenormexalecolorido.
Aoouvirfalardesuaroupainacreditável,riudealegriacomose
Hemingwaytivesselhefeitoumgrandeelogio.Depoisinclinou-separaele
edisseameiavoz:"FoiporcausadeBetinaquemevestiassim.Ondequer
queváelafaladeseugrandeamorpormim.Portantoqueroqueas
pessoasvejamoobjetodesseamor!Assimqueelamevêdelonge,foge.Sei
quesapateiaderaivaaomeverperambularporaquicomesteaspecto:
semdentes,semcabeloecomesseobjetogrotescoemcimadosolhos."
TerceiraParte
Aluta
Asirmãs
Aestaçãoderádioqueescutopertenceaogoverno,portantonão
transmiteanúnciosdepublicidade,masalternanotícias,comentários,e
músicaspopularesmaisrecentes.Comoaestaçãoaoladoéparticular,os
anúnciossubstituemamúsica,masparecetantocomasmúsicaspopulares
maisrecentes,quenuncaseiqualestaçãoescuto,eaindaficosabendo
menosporqueadormeçoetornoaadormeceratodoinstante.Mergulhado
numtorpor,aprendoquedepoisqueaguerraterminouhaviadoismilhões
demortosnasestradasdaEuropa,amédiaanualnaFrançasendodedez
milmortosetrezentosmilferidos,umexércitointeirodesempernas,sem
braços,semorelhas,semolhos.Indignadocomesteterrívelbalanço,o
deputadoBertrandBertrand(essenomeébonitocomoumaberceuse)
propôsaadoçãodeumaexcelenteprovidência,mastendosidovencido
pelosono,justonessemomento,sósoubeumameiahoradepois,quando
repetiramamesmanotícia:odeputadoBertrandBertrand,cujonomeé
bonitocomoumaberceuse,propôs,naAssembleia,umprojetoproibindo
qualqueranúnciodecerveja.Issoprovocouumaenormetempestadena
Assembleia,numerososdeputadosopuseram-seao\projeto,apoiadospor
representantesdorádioedatelevisãoque|perderiammuitodinheiro
comessaproibição.Emseguida,ouçoavozdopróprioBertrand:falado
combatecontraamorte,dalutapelavida...Apalavra"luta",repetidacinco
vezesduranteseubrevediscurso,lembrou-meminhavelhapátria,Praga,
bandeirasvermelhas,cartazes,lutapelafelicidade,lutapelajustiça,luta
pelofuturo,lutapelapaz;lutapelapazatéadestruiçãodetodosportodos,
semdeixaracrescentarasabedoriadopovotcheco.
Masjáadormeceranovamente(umdocesonoquemeinvadecadavez
quepronunciamonomedeBertrandBertrand)e,quandoacordei,foipara
ouvirumfientáriosobrejardinagem;ajustoobotãonaestaçãovizinha.Ali,
aquestãododeputadoBertrandBertrandeaproibiçãodequalquer
núnciosobrecerveja.Asrelaçõeslógicasforamaparecendopoucoaco:as
pessoassematamnocarrocomonumcampodebatalha,masnão
podemosproibirosautomóveis,quesãooorgulhodohomemmoderno;
umacertaporcentagemdecatástrofeséatribuídaàbebedeirademaus
motoristas,masnãopodemosproibirovinho,glóriaimemorialdaFrança;
umapartedabebedeirapúblicadeve-seàcerveja,masacervejatambém
nãopodeserproibida,jáquehaveriaviolaçãodostratadosinternacionais
sobrealiberdadedosmercados;umacertaporcentagemdebebedoresde
cervejaéincentivadaabeberinfluenciadapelascampanhaspublicitárias,
oque,enfim,revelaocalcanhar-de-aquilesdoinimigo:vejaondeocorajoso
deputadodecidiubrigar!VivaBertrandBertrand,digocomigomesmo,mas
comoessenomeprovocaemmimoefeitodeumaberceuse,logoadormeço,
atéomomentoemqueouçoumavozbastanteconhecida,umasedutora
vozaveludada,sim,éBernardo,olocutor,ecomonãohánovidadesanão
serasdotráfego,eleconta:estanoite,umajovemsentou-senaestradade
costasparaosautomóveis.Trêscarros,umdepoisdooutro,desviaramno
últimomomentoeforamachatar-senasarjeta,houvemortoseferidos.Não
conseguindooquequeria,asuicidafoiemborasemdeixarrastro,esó
soubemosdesuaexistênciapelosdepoimentosconvergentesdosferidos.
Essanotíciaassustou-meatalpontoquenãopudemaisdormir.Sóme
restavalevantar,tomarmeucafédamanhãesentar-medianteda
máquinadeescrever.Masdurantemuitotemponãoconseguime
concentrar,tinhadiantedosolhosessajovemenroscadanomeiodarua,a
cabeçaentreosjoelhos,eouçoosgritosquesaemdavala.Tenhoque
afastaressaimagemàforçaparapodercontinuarmeuromanceque,se
vocêtemboamemória,começounabeiradeumapiscina,quando,
esperandopeloprofessorAvenarius,viumadesconhecidacumprimentar
seuprofessordenatação.
RevimosessegestoquandoAgnèsdespediu-sedeseutímidocolegade
classe.
Repetiu-otodasasvezesqueacompanhavaumamigoatéacercado
jardim.ApequenaLauraescondia-seatrásdeumarbustoeesperavao
retornodesuairmã;queriaverobeijoqueiamtrocar,depoisseguir
Agnèsquandoelavoltassesozinhaatéaportadecasa.Esperavaque
Agnèsvoltasseeacenassecomobraço.
Paraamenina,nessemovimentoestavamagicamenteincluídaa
vaporosaideiadoamordoqualelanadasabia,eque,paraela,ficaria
ligadaparasempreàideiadeumaencantadoraecarinhosairmãmais
velha.
QuandoAgnèssurpreendeuLauraimitandoessegestopara
cumprimentarseusamiguinhos,achoudesagradáveledecidiu,desde
então,comosabemos,despedir-sedesuasamigassemdemonstrações.
Essabrevehistóriadeumgestonospermitediscerniromecanismoque
determinavaorelacionamentoentreasduasirmãs:acaçulaimitavaamais
velha,estendiaasmãosparaela,masestaescapava-lhesemprenoúltimo
momento.
Depoisdepassarnovestibular,Agnèsfoicontinuarseusestudosem
Paris.
Lauraficouressentidacomelaporesseabandonodaspaisagensque
juntastinhamamado.Masdepoisdoseuvestibular,tambémmatriculou-se
paraestudaremParis.Agnèsdedicou-seàmatemática.Quandoterminou
seusestudostodospreviram-lheumabrilhantecarreiracientífica,masem
vezdecontinuarsuaspesquisas,Agnèscasou-secomPauleaceitouum
empregobanal,apesardebemremunerado,massemnenhuma
perspectivadeglória.Lauraficoudesolada,edecidiu,quandoentroupara
oConservatório,paracompensaroinsucessodesuairmã,ficarcélebreem
seulugar.
UmdiaAgnèsapresentou-lhePaul.Naqueleinstantedoencontro,
Lauraouviualguéminvisíveldizer-lhe:"Eisumhomem!Overdadeiro.O
único.Nãoexisteoutronomundo."Quemeraointerlocutorinvisível?
TalvezaprópriaAgnès?Sim.Eraelaquemostravaocaminhoàsuairmã
caçula,aomesmotempoqueobarrava.MuitogentiscomLaura,Agnèse
Paulcuidavamdelacomtantasolicitudequeemcasadeles,emParis,
sentia-secomoantesemsuacidadenatal.
Ficando,destaforma,noambientefamiliar,desfrutavaumafelicidade
quenãoeraisentadeumacertamelancolia:ohomemquepoderiaamar,
aomesmotempoeraoúnicoquelheeraproibido.Quandocompartilhava
davidadocasal,osmomentosdefelicidadealternavam-secomcrisesde
tristeza.Calava-se,oolharperdidonoo;Agnès,então,segurando-lheas
mãos,dizia:"Oquevocêtem,Laura?Oquevocêtem,minhairmãzinha?"Às
vezes,namesmaaçãoecomamesmaemoçãoeraPaulquetomava-lheas
mãos,etodostrêsmergulhavamnumbanhovoluptuosofeitode
sentimentosconfusos:fraternoseamorosos,tolerantesesensuais.Depois
casou-se.Brigite,afilhadeAgnès,estavacomdezanoseLauradecidiu
oferecer-lheumpequenoprimoouumapequenaprima.
Pediuaseumaridoqueaengravidasse,oqueeleexecutouem
dificuldade,masoresultadofoiaflitivo:Laurateveumabortoeosmédicos
preveniramquedaíemdiantenãopoderiaterfilhosanãoserquese
submetesseagravesintervençõescirúrgicas.
Osóculosescuros
QuandoAgnèsaindaestavanocolégio,apaixonou-seporóculos
escuros.
Elaosusavamaisparaparecerbonitaeenigmáticadoquepara
protegerosolhosdosol.Osóculostornaram-sesuamania:assimcomo
certoshomenstêmumarmáriocheiodegravatas,assimcomocertas
mulheresenchemdeanéissuascaixasdejóias,Agnèscolecionavaóculos
escuros.
QuantoaLaura,começouausaróculosescurosnodiaseguinteaoseu
aborto.Naépoca,elaosusavaquasequeconstantemente,desculpando-se
comasamigas:"Nãosezanguem,ochoromedesfigurou,nãoposso
aparecersemeles."
Daíemdianteosóculosescurossignificaramolutoparaela.Nãoos
usavaparaesconderochoro,masparaquesoubessemquechorava.Os
óculostornaram-seosubstitutodaslágrimas,tendosobreaslágrimas
verdadeirasavantagemdenãoenfearaspálpebras,denãotorná-las
vermelhaseinchadas,edeafavorecermais.
AítambémfoiAgnèsqueinspirouaLauraogostopelosóculosescuros.
Masahistóriadosóculostambémmostraquearelaçãoentreasduas
irmãsnãopoderiaseresumiràimitaçãodamaisvelhapelamaismoça.Ela
aimitava,sim,masaomesmotempoacorrigia:davaaosóculosescurosum
conteúdomaisprofundo,umsentidomaisgrave,forçandoporassimdizer
osóculosescurosdeAgnèsaenrubescerporsuafrivolidade.Quando
Lauraapareciacomseusóculosescuros,issosempresignificavaque
sofria,eAgnèssentiaquedeviatirarosseus,pormodéstiaepor
delicadeza.
Ahistóriadosóculosrevelaaindaumacoisa:Agnèsapareciacomouma
favorecidadaFortuna,Lauracomosuaenjeitada.Todasduasacabaram
acreditandoquenãoeramiguaisemfacedodestino,oquetalvezafetasse
AgnèsmaisaindadoqueaLaura."Minhairmãzinhaéapaixonadapormim
eelanãotemsorte."FoiporissoqueelaficoucontenteemacolherLaura
emPariseapresentou-lhePaulpedindo-lhequeatratassecomafeto;por
issoquedescobriuparaLauraumpequenoapartamentoagradávelna
vizinhançaeaconvidavaparasuacasatodasasvezesquedesconfiavaque
elaestavatriste.Masesforçava-seemvão,continuavasendosempreela
queaFortunafavoreciainjustamente,eLauraaenjeitadadaFortuna.
Lauratinhaumgrandetalentomusical,tocavapianomuitobem,no
entanto,teimosamente,decidiuestudarcantonoConservatório."Quando
tocopiano,estouemfrentedeumobjetoestranhoehostil,amúsicanão
mepertence,pertenceaoinstrumentopretonaminhafrente.Aocontrário,
quandocanto,meucorpotransforma-seemórgãoeeumetornomúsica."
Nãofoiculpasuase,infelizmente,tinhaumavozmuitofracaquea
conduziuaofracasso:nãotornou-sesolistaeduranteorestodesuavida
suasambiçõesmusicaisreduziram-seaumcorodeamadores,ondeia
duasvezesporsemanaparaensaiaralgunsconcertosanuais.
Seucasamento,emqueinvestiratodasuaboa-vontade,desmoronou
tambémnofimdeseisanos.Éverdadequeseumaridomuitoricoteveque
deixar-lheumbeloapartamentoeumapensãoalimentíciaconsiderável,o
quelhepermitiucomprarumalojaondevendiapelescomumahabilidade
quesurpreendeuatodos;masessesucessoeramuitoterra-a-terrapara
repararainjustiçasofridaemnívelbemmaiselevado:espirituale
sentimental.
Divorciada,mudavadeamantesetinhaumareputaçãodeamante
apaixonadaefingiacarregarseusamorescomoumacruz."Tivemuitos
homensemminhavida",diziamuitasvezesnumtomgraveemelancólico,
comoparasequeixardodestino.
—Invejovocê,respondeuAgnès,eLaura,emsinaldetristeza,colocou
seusóculosescuros.
AadmiraçãoquesentiunainfânciaaoverAgnèscumprimentarsuas
amigasnagradedojardimnuncaadeixara,enodiaemquecompreendeu
quesuairmãrenunciavaaqualquercarreiracientíficanãopôdeesconder
suadecepção.
—Oqueéquevocêmecensura?DisseAgnèsparasedefender.Você,
emvezdecantarnaÓpera,vendepeles,eeu,emvezdeviajardeum
congressoparaoutroocupoumlugaragradavelmenteinsignificantenuma
empresadeinformática.
—Maseufizoquepudeparapodercantarenquantovocêrenunciou
propositadamenteàssuasambições.Eufuivencida.Vocêentregou-se.
—Eporqueeudeveriaterfeitocarreira?
—Agnès!Sótemosumavida!Éprecisoassumi-la!Afinaldecontas
devemosdeixaralgumacoisaatrásdenós!
—Deixaralgumacoisaatrásdenós?RepetiuAgnèsnumtom
espantadoecético.
Laurademonstrouumadiscordânciaquasedolorosa:
—Agnès,vocêénegativa!
Muitasvezesdirigiaessareprovaçãoàsuairmã,masmentalmente.
Nuncaaexpressaraemvozaltaanãoseremduasoutrêsocasiões.A
últimavezfoidepoisdamortedesuamãe,quandoviraopairasgaras
fotos.Oqueopaifaziaerainaceitável:destruíaumapartedavida,desua
vidacomumcommamãe;rasgavaimagens,rasgavalembrançasquenão
eramapenassuas,maspertenciamatodaafamíliaeprincipalmenteàs
filhas;nãotinhaodireitodeagirassim.Elacomeçouagritarcomele,e
Agnèstomouadefesadopai.Quandoficaramsozinhas,pelaprimeiravez
navidabrigaram,apaixonadaeraivosamente.
—Vocêénegativa!Vocêénegativa!GritouLaura;depois,chorandode
raivaelacolocouseusóculosescurosefoiembora.
Ocorpo
Quandojáestavammuitovelhos,océlebrepintorSalvadorDaliesua
mulherGaladomesticaramumcoelhoquedepoisviveucomelessem
deixá-losuminstante:gostavammuitodele.Umdia,quandodeveriam
partirparaumalongaviagem,discutiramatétardedanoiteoqueiriam
fazercomocoelho.Eradifícillevá-lo,masnãomenosdifícilconfiá-loa
alguém,porqueocoelhotinhamedodoshomens.NodiaseguinteGala
preparouoalmoçoeDalideleitou-se,atéomomentoemquecompreendeu
quecomiaumensopadodecoelho.
Levantou-sedamesaecorreuparaobanheiroparavomitarnapiaseu
pequenoanimalquerido,fielcompanheirodeseusdiasdevelhice.Gala,ao
contrário,estavacontentequeseuamadotivessepenetradoemsuas
entranhas,tivesse-asacariciadolentamente,tornando-seocorpodesua
dona.Elanãoconheciarelaçãomaisabsolutadeamordoqueaingestãodo
seramado.Comparadoaessafusãodoscorpos,oatodeamorfísico
parecia-lheumpruridoirrisório.
LauraeracomoGala.AgnèseracomoDali.Elaamavaumaquantidade
depessoas,homensemulheres,masseumestranhocontratodeamizade
aobrigasseacuidardeseusnarizeseaassoá-losregularmente,teria
preferidoviversemamigos.Conhecendoasidiossincrasiasdesuairmã,
Lauraarepreendia:
—Oquesignificaasimpatiaquevocêsenteporalguém?Dessa
simpatia,comovocêpodeexcluirocorpo?Semseucorpo,ohomem
continuaumhomem?
E,LauraeracomoGala:perfeitamenteidentificadacomseucorpo,
perfeitamenteinstaladanele.Eocorponãoeraapenasaquiloquesepodia
vernumespelho:apartemaispreciosaencontrava-senointerior.
Reservavatambémumlugarespecial,emseuvocabulário,aosnomesdos
órgãosinternos.Paraexpressarodesesperoemqueseuamantea
mergulharanavéspera,eladizia:
—Tenhovomitadodesdequeelepartiu.
Apesardasfrequentesalusõesaovômito,Agnèsnãotinhacertezase
elajamaisvomitara.Ovômitonãoeraasuaverdade,masasuapoesia:a
metáfora,aimagemlíricadadecepçãoedodesgosto.
Umdia,quandoforamfazercomprasnumabutiquedelingerie,Agnès
viuLauraacariciarumsutiãqueavendedoralhemostrava.Nesses
momentoséqueelacompreendiatudooqueaseparavadesuairmã:para
Agnès,osutiãfaziapartedosobjetosdestinadosacompensaruma
carênciafísica,comoporexemplooscurativos,aspróteses,osóculos,os
coletesqueosdoentesdasvértebrascervicaistêmdeusar.Osutiãtem
comofunçãosustentarumacoisamaispesadadoqueoprevisto,cujopeso
foimalcalculado,equemaistardeéprecisoescorarumpoucocomosão
escoradascompilastrasecontrafortesavarandadeumaconstrução
malfeita.Emoutraspalavras:osutiãrevelaoaspectotécnicodocorpo
feminino.
AgnèsinvejavaPaulporelepoderviversemestareternamente
conscientedoseucorpo.Eleinspira,expira,seupulmãotrabalhacomo
umgrandefoleautomático,eéassimqueelesenteseucorpo:esquecendooalegremente.Mesmoquetenhaproblemasfísicos,nuncafaladeles,não
pormodéstia,masporumdesejovaidosodeelegância,porqueuma
doençanãoésenãoumaimperfeiçãoqueoenvergonha.Duranteanos,
sofreudeumaúlceranoestômago,masAgnèssósoubenodiaemque
umaambulânciaolevouaohospitalacometidodeumaterrívelcrise,
justamentedepoisdeumadramáticadefesaoraldiantedotribunal.Essa
vaidadepoderiasermotivoderiso,masemvezdissoAgnèsficava
comovida,equaseoinvejava.
SebemquePaulprovavelmentesejamaisvaidosodoqueamédia,
pensavaAgnès,seucomportamentorevelaadiferençaentreascondições
femininaemasculina:amulherlevamuitomaistempodiscutindosuas
preocupaçõesfísicas;elanãoconheceoesquecimentoinconsequentedo
corpo.
Issocomeçapelochoquedasprimeirasperdasdesangue;derepenteo
corposurgeeelasevêdiantedelecomoummecânicoencarregadode,
sozinho,tomarcontadeumapequenafábrica:todososmesestemdeusar
tampões,engolircomprimidos,ajustarosutiã,aprontar-separaproduzir.
Agnèsolhavacominvejaoshomensvelhos;tinhaaimpressãoqueeles
envelheciamdeoutramaneira:ocorpodeseupaitransformava-se
imperceptivelmentenasuaprópriasombra,desmaterializava-se,ficando
aquiembaixoapenasumaalmadisplicentementeencarnada.Aocontrário,
quantomaisocorpofemininotorna-seinútil,maiselesetornacorpo:
pesadoevolumoso;pareceumafábricavelhadestinadaàdemolição,mas
aoladodaqualoeudeumamulheréobrigadoaficaratéofimcoma
funçãodeguardiã.
OquepoderiamudararelaçãodeAgnèscomseucorpo?Nada,anão
seromomentodaexcitação.Aexcitação:redençãofugitivadocorpo.
MastambémsobreessepontoLauranãoestariadeacordo.Omomento
daredenção?Comoassim,momento?ParaLaura,ocorpoerasexualdesde
oinício,apriori,sempreeinteiramente,poressência.Amaralguémpara
elasignificava:levar-lheseucorpo,entregá-lodiantedele,seucorpotal
qualé,tantonoexteriorquantonointerior,mesmocomotempoque,doce
elentamente,odeteriora.
ParaAgnèsocorponãoerasexual.Elesósetornavaassimemraros
momentos,quandoaexcitaçãoprojetavasobreeleumaluzirreal,artificial,
queotornavabeloedesejável.Eisporque,mesmoseninguém
percebesse,Agnèseradominadapeloamorfísicoepresaaele,porque
semeleamisériadocorponãoterianenhumasaídadeemergênciaetudo
estariaperdido.Aofazeramorelaconservavaosolhosabertosese
houvesseumespelhopertoelaseobservava:seucorpoparecia-lhe,então,
inundadodeluz.
Masolharseucorpoinundadodeluzéumjogopérfido.Umdiaque
Agnèsestavacomseuamante,duranteoamorelapercebeunoespelho
certosdefeitosdeseucorpoquenãohavianotadoemseuencontro
anterior(elessóseviamumaouduasvezesporanonumgrandee
anônimohotelparisiense)efoiimpossívelparaeladesviaroolhar:nãoviu
maisoamante,nãoviumaisoscorposcopulando,viuapenaso
envelhecimentoquecomeçavaacorroê-la.
Imediatamenteaexcitaçãodesapareceudoquarto.Agnèsfechouos
olhoseacelerouosmovimentosdoamorparaimpediroparceirode
adivinharseuspensamentos:acabavadedecidirqueseriaseuúltimo
encontro.Sentia-sefracaedesejavaoleitomatrimonialemcujacabeceira
umapequenalâmpadaficavasempreapagada;elaodesejavacomouma
consolação,comoumportodeobscuridade.
Aadiçãoeasubtração
Emnossomundo,emqueaparecemcadadiamaisemaisfisionomias
queseparecemcadavezmais,nãoétarefafácilparaohomemquerer
confirmaraoriginalidadedoseueueconseguirconvencer-sedesua
inimitávelunicidade.Hádoismétodosparacultivaraunicidadedoeu:o
métodoaditivoeométodosubtrativo.Agnèssubtraideseueutudoqueé
exterioreemprestado,para,destaforma,aproximar-sedesuaessência
pura(correndooriscodechegarazerocomessassubtraçõessucessivas).
OmétododeLauraéexatamenteinverso:paratornarseueumaisvisível,
maisfácildeserapreendido,paradar-lhemaisconsistência,ela
acrescenta-lhesemcessarnovosatributos,aosquaistentaseidentificar
(correndooriscodeperderaessênciadoeusobessesatributos
adicionados).
Tomemosoexemplodesuagata.Depoisdoseudivórcio,Lauraviu-se
sónumgrandeapartamentoesentiu-setriste.Quisdividirsuasolidãonem
quefossecomumpequenoanimal.Suaprimeiraideiafoiarranjarum
cachorro,maslogocompreendeuqueumcachorroexigiriacuidadosque
elanãoestavaemcondiçõesdeoferecer.Porissoarranjouumagata.Era
umagrandegata,belaemá.Detantovivercomela,efalardelacomseus
amigos,atribuiuaessagata,escolhidamaisporacasoesemgrande
convicção(poisafinalaprincípioquiseraumcachorro!),umaimportância
cadavezmaior:emtodososlugareselogiavaseusméritosobrigandotodos
aadmirá-la.Vianelaabelaindependência,oorgulho,adesenvoltura,
charmepermanente(bemdiferentedocharmehumanoquesealterna
semprecommomentosdeinépciaedefaltadegraça);viaummodeloem
suagata;evia-senela.
NãointeressaabsolutamentesaberseemseucaráterLauraseparece
ounãocomagata,oimportanteéqueelaadotou-acomosuamarcaea
gatatornou-seumdosatributosdeseueu.Muitosdeseusamantestendo
desaídamostradosuairritaçãodiantedesseanimalegocêntricoe
malévolo,quesemnenhumarazãocuspiaedavaunhadas,tornou-seo
testedopoderdeLauraquepareciadizeracadaum:vocêmeterá,mastal
qualsourealmente,querdizer,comminhagata.
Agataéaimagemdesuaalma,eoamantedeviaaceitarprimeirosua
alma,sedepoisquisessepossuirseucorpo.
Ométodoaditivoéinteiramenteagradávelseacrescentamosaoeuum
cachorro,umagata,umassadodeporco,oamordooceanoouasduchas
frias.Ascoisastornam-semenosidílicassedecidimosacrescentaraoeua
paixãopelocomunismo,pelapátria,porMussolini,pelaIgrejaCatólica,pelo
ateísmo,pelofascismooupeloanti-fascismo.Nosdoiscasos,ométodo
continuaexatamenteomesmo:aquelequedefendeinsistentementea
superioridadedosgatossobreosoutrosanimaisfaz,emessência,amesma
coisaqueaquelequeproclamaMussolinioúnicosalvadordaItália:ele
apregoaumatributodoseueueempenha-setotalmenteparaqueesse
atributo(umgatoouMussolini)sejareconhecidoeamadoportodosqueo
cercam.
Esseéoestranhoparadoxodequesãovítimastodosaquelesque
recorremaométodoaditivoparacultivarseueu:esforçam-seemadicionar
paracriarumeuinimitavelmenteúnico,mastornando-seaomesmotempo
ospropagandistasdessesatributosadicionados,fazemtudoparaqueo
maiornúmerodepessoassepareçamcomeles;eentãoaunicidadedeseu
eu(tãotrabalhosamenteconquistada)logodesaparece.
Podemos,então,nosperguntarporqueumhomemqueamaumagata
(ouumMussolini)nãosecontentacomseuamor,mas,alémdisso,quer
impô-loaosoutros.Tentemosresponderlembrando-nosdaquelajovemda
saunaque,comcombatividade,afirmavasuapredileçãopelasduchasfrias.
Dessamaneira,deumatacadaconseguiusediferençardametadedo
gênerohumano,queprefereasduchasquentes.Oazaréqueaoutra
metadedahumanidadeparecia-seaindamaiscomela.Ah!comoétriste!
Muitaspessoas,poucasideias,ecomofazerparanosdiferençarmosuns
dosoutros?Ajovemdesconhecidanãoconheciasenãoummeiopara
superaradesvantagemdesuasemelhançacomasinumeráveismultidões
deadeptosdaduchafria:eraprecisolançarbruscamentesuaafirmação
("adoroasduchasfrias!")desdeaentradadasauna,comtodasuaenergia
paraqueosmilhõesdeoutrasmulheresquegostamdeduchafria
parecessemderepentemíserasimitadoras.Emoutraspalavras:se
queremosqueoamor(inocentementeinsignificante)dasduchastorne-se
umatributodenossoeu,éprecisoqueomundointeiroconheçanossa
intençãodelutarmosporesseamor.
AquelequefazdeumapaixãoporMussoliniumatributodeseueu,
torna-semilitantepolítico;oqueexaltaosgatos,amúsicaoumóveis
antigospresenteiaseusamigos.
SuponhamosquevocêtemumamigoquegostadeSchumannedetesta
Schubert,enquantovocêadoraSchuberteSchumannoaborrece.Que
discovocêdariadepresentedeaniversárioaseuamigo?Schumannque
eleadora,ouSchubertquevocêadora?Schubert,éclaro.Dandode
presenteSchumann,vocêteriaadesagradávelimpressãodeserinsincero,
depresentearseuamigocomumaespéciedesubornoparaagradar-lhe,
comaideiaquasemesquinhadeconquistá-lo.Afinaldecontas,quando
vocêpresenteiaéporamor,paraoferecerumapartedevocê,umpedaço
doseucoração!Assimsendo,vocêdariaAInacabadadeSchubertaseu
amigoque,depoisquevocêsaísse,colocarialuvas,cuspirianodisco,e
segurando-oentredoisdedos,ojogarianolixo.
Numintervalodealgunsanos,Laurapresenteousuairmãeseu
cunhadocomumaparelhodejantar,umacompoteira,umalâmpada,uma
cadeiradebalanço,cincoouseiscinzeiros,umatoalhademesae
sobretudoumpianoquedoisrobustosrapazesumdiatrouxeram
inesperadamente,perguntandoondedeveriamcolocá-lo.Lauraestava
radiante:
—Queriadar-lhesumpresentequeosobrigasseapensaremmim,
mesmoqueeunãoestejacomvocês.
Depoisdeseudivórcio,LauraiaparaacasadeAgnèssempreque
tinhaummomentolivre.Ocupava-sedeBrigitecomosefossesuaprópria
filha,esecomprouumpianoparaairmãeraparaqueasobrinha
aprendesseatocá-lo.Ora,Brigitedetestavapiano.CommedoqueLaura
ficassesentida,Agnèssuplicouàfilhaquefizesseumesforçoeque
mostrassealgumaafeiçãoàsteclasbrancasepretas.Brigitedefendia-se:
—Entãoéparadarprazeravocêquedevoaprenderatocar?
Assimahistórianãoacaboubemepassadosalgunsmesesopianoera
apenasumobjetodecorativo,ou.melhordizendo,inoportuno;lembrança
melancólicadeumprojetoabortado;umgrandecorpobranco(sim,opiano
erabranco)queninguémqueria.
Narealidade,Agnèsnãogostavanemdopianonemdoaparelhode
jantarnemdacadeiradebalanço.Nãoquefossemdemaugosto,mas
tinhamumquêdeexcêntricoquenãocorrespondianemànaturezade
Agnèsnemàssuaspreferências.Sentiunãosomenteumsinceroprazer,
mastambémumalívioegoístaquandoumdia(háseisanosninguém
puseraamãonopiano)Lauracontou-lhe,muitoalegre,queseapaixonara
porBernardo,ojovemamigodePaul.Umamulherqueestánocomeçode
umgrandeamor,pensouAgnès,teriamaisoquefazerdoquepresentear
suairmãeocupar-sedaeducaçãodasobrinha.
Amulhermaisvelhadoqueohomem,ohomemmais
moçodoqueamulher
"Eisumanotíciaextraordinária",dissePaulquandoLaurafalou-lhe
sobreseuamor,econvidouasduasirmãsparajantar.Comoparaeleera
umagrandealegriaverqueduaspessoasqueamavatambémseamavam,
pediuduasgarrafasdeumvinhomuitocaro.
—VocêvaiserelacionarcomumadasmelhoresfamíliasdaFrança,
explicouaLaura.SabequeméopaideBernardo?
Lauradisse:
—Claro!Umdeputado!EPaul:
—Vocênãosabedenada!OdeputadoBertrandBertrandéfilhodo
deputadoArthurBertrand.Muitoorgulhosodoseusobrenome,Arthur
Bertrandquisqueseufilhoofizessemaiscélebreainda.Depoisdepensar
longamentequenomelhedar,teveaideiagenialdebatizá-loBertrand.Um
nomeassimdobradonuncapoderiadeixarninguémindiferente,ninguém
poderiaesquecê-lo!BastariadizerapenasBertrandBertrandparaque
essenomeressoassecomoumaovação,comoumviva:Bertrand!
Bertrand!Bertrand!Bertrand!Bertrand!Bertrand!
Erepetindoessaspalavras,Paullevantavaocopocomoparalevantar
umbrindeesoletraronomedeumchefeaduladopelasmultidões.Depois
tomouumgole:
—Essevinhoéextraordinário!Econtinuou:Cadaumdenósé
misteriosamenteinfluenciadopeloseunome,eBertrandBertrand,que
ouviumuitasvezespordiaarepetiçãorítmicadoseu,sentiu-seesmagado
durantetodasuavidasobaglóriaimagináriadessasquatrosílabas
sonoras.Nodiaemquefoireprovadonovestibular,encarouofatomuito
piordoqueseuscolegas.Comoseseunomedobradoautomaticamente
multiplicassepordoisseusensoderesponsabilidade.Suaproverbial
modéstiapermitiria,certamente,quesuportasseavergonhaqueseabatia
sobreele;masnãopodiaseadaptaràvergonhaqueseabaterasobreseu
nome.Comvinteanosfezaseunomeapromessasolenedeconsagrarsua
vidaacombaterpelobem.Masnãodemorouaconstatarqueédifícil
distinguiraquiloqueébomdaquiloqueémau.Porexemplo,seupaivotou
pelosacordosdeMunique,comamaioriadosdeputados.Elequeriasalvar
apazporqueapazéincontestavelmenteumbem.Mas,maistarde,elefoi
censuradoporter,destaforma,abertoocaminhodaguerra,queé
incontestavelmenteummal.Querendoevitaroserrosdopai,ofilhofixouseemalgumascertezaselementares.Jamaispronunciou-sesobreos
palestinos,sobreIsrael,sobrearevoluçãodeOutubro,sobreCastro,nem
mesmosobreoterrorismo,sabendoqueoassassinatoapartirdeuma
fronteirasecretatorna-seumatodeheroísmoequeessafronteirasempre
seriaindiscernívelparaele.TomaapaixonadamentepartidocontraHitler,
contraonazismo,contraascâmarasdegásenessesentidolamentao
desaparecimentodeHitlernosescombrosdaChancelaria,porqueapartir
dessediaobemeomalpassaramaserinsuportavelmenterelativos.Tudo
issolevou-oadevotar-seaobemsobseuaspectomaisimediato,aindanão
deformadopelapolítica.Adotoucomodivisa"beméavida".Dessemodoa
lutacontraoaborto,contraaeutanásia,contraosuicídiotornou-seameta
desuaexistência.
Lauraprotestourindo:Segundovocêéumdébilmental!
—Estávendo,dissePaulaAgnès,elajáestádefendendoafamíliado
amante.Issomerecetodososelogios,domesmomodoqueestevinho,cuja
escolhavocêdeveriaaplaudir.Duranteumrecenteprogramasobrea
eutanásia,BertrandBertranddeixou-sefilmarnacabeceiradeumdoente
paralisado,comalínguaamputada,cego,sofrendodorespermanentes.
Estavaaoladodacama,inclinadosobreodoente,eacâmeraomostrava
insuflandoneleaesperançadediasmelhores.Nomomentoemque
pronunciavaapalavra"esperança"pelaterceiravez,odoente,
bruscamenteexcitado,soltouumgritolongoeaterradorsemelhanteao
gritodeumanimal,cavalo,touro,elefanteouostrêsjuntos,eBertrand
Bertrandtevemedo:nãoconseguiamaisfalar,tentavaapenasguardaro
sorriso,àscustasdeumesforçosobre-humanoeacâmerafilmou
longamenteessesorrisopetrificadodeumdeputadotremendodemedo,e
aoladodele,namesmatomada,orostodeummoribundourrando.Mas
nãoeraissoqueeuqueriadizer.Oquequeriacontaréqueaoescolhero
nomedeseufilho,erraraogolpe.Suaprimeiraintençãoerabatizá-lo
Bertrand,maslogofoiobrigadoaadmitirqueseriagrotesco,doisBertrand
Bertrandnestemundo,porqueaspessoasnuncairiamsabersesetratava
deduasoudequatropessoas.Noentanto,nãoqueriadesistirpor
completoàfelicidadedeouvirnonomedeseurebentooecodeseu
próprionome,efoiassimquelheocorreuaideiadebatizarseufilhode
Bernardo.Ora,BernardoBertrand,issonãosoacomoumaovaçãooucomo
vivas,mascomoumbalbuciar,oumelhordizendo,comoumdesses
exercíciosfonéticosqueosatoreseapresentadoresderádiousampara
aprenderafalardepressa,semseenganar.Comodizia,osnomesque
usamosnosteleguiammisteriosamente,eodeBernardoodestinavadesde
oberçoa,umdia,falarnorádio.
SePaulfalavatodasessasbobagens,eraporquenãoousavaexpressar
emvozalta,diantedacunhada,opensamentoqueoobcecava:osoitoanos
dediferençaentreLauraeojovemBernardo,essesoitoanoso
encantavam!Paulrealmenteguardavaalembrançafascinantedeuma
mulherquinzeanosmaisvelhaqueconheceraintimamentequandoele
própriotinhavinteecincoanos.
Queriafalarnisso,gostariadeexplicaraLauraquetodohomemdeve
viverumamorporumamulhermaisvelha,equenenhumoutroamor
deixaumalembrançamelhor."Umamulhermaisvelha"tevevontadede
clamarlevantandoumavezmaisseucopo,"éumaametistanavidadeum
homem!"Masrenunciouaessegestoimprudenteecontentou-seem
evocaremsilênciosuaamantedeoutrora,quelhederaaschavesdeseu
apartamentoondepodiaseinstalarquandoquisesseefazeroque
quisesse,arranjoaindamaiscômodo,umavezquePaulestavaemmaus
termoscomseupaiequeriamoraromenospossívelemcasadele.Elanão
eraabsolutamentepossessivacomsuasnoites;vinhaencontrar-secomela
quandoestavalivre,masnãotinhaquedarexplicaçõesquandonãotinha
tempodevê-la.Elanãooforçavanuncaasairemsuacompanhiae
comportava-se,quandoosdoiseramvistosemsociedade,comouma
parenteamorosaprontaafazertudopelosobrinhoencantador.Quando
elesecasou,ofereceu-lheumpresentesuntuosoquesempreficousendo
umenigmaparaAgnès.
MasaindaeramenospossíveldizeraLaura:estoucontentedeque
meuamigoestejaapaixonadoporumamulhermaisvelha,quevaiserpara
elecomoumatiaqueadoraseuadorávelsobrinho.Foimenospossível
aindaquandoLauraretomouapalavra:
—Omaravilhosoéquequandoestounacompanhiadelesinto-me
remoçardezanos.Graçasaele,risqueidaminhavidadezouquinzeanos
penosos,tenhoaimpressãodequefoiontemquechegueidaSuíçaeo
conheci.
EssaconfissãoimpediuquePaulevocasseemvozaltasuaametista;
logoguardousuaslembrançasparasimesmoecontentou-seemsaborear
ovinho,semouvirmaisoqueLauradizia.Sómaistarde,pararetomara
conversa,perguntou:OqueBernardocontouavocêsobreseupai?
—Nada,respondeuLaura.Possoasseguraravocêqueseupainãofoi
assuntodenossasconversas.Seiqueelespertencemaumagrandefamília.
Masvocêsabemuitobemoquepensodasgrandesfamílias.
—Evocênãoestácuriosaemsaberaindamais?
—Não,disseLaura,comumrisoalegre.
—Poisdeveriaestar.BertrandBertrandéoprincipalproblemade
BernardoBertrand.
—Claroquenão!ExclamouLaura,convencidadeserelamesmao
principalproblemadeBernardo.SabiaqueovelhoBertranddestinava
Bernardoaumacarreirapolítica?—PerguntouPaul.
—Não,—respondeuLauralevantandoosombros.
—Nessafamília,herda-seumacarreirapolíticacomoseherdauma
fazenda.BertrandBertrandestavacertoqueseufilhoumdiadisputaria,
nolugardele,ummandatodedeputado.MasBernardo,comvinteanos,
ouviuestanotícianorádio:"CatástrofeaéreasobreoAtlântico.Centoeseis
passageirosdesapareceram,entreelessetecriançasequatrojornalistas."
Quenessescasosascriançassejammencionadascomoumacategoria
especialdahumanidade,nãonossurpreendemaishámuitotempo.Mas
dessavez,quandoaapresentadoraacrescentouàscriançastambémos
jornalistas,foiparaeleumraiodeluz.
Compreendendoqueohomempolíticoéhojeumpersonagemrisível,
decidiuserjornalista.Oacasoquisquenessaépocaeudirigisseum
seminárionaFaculdadedeDireitoqueelefrequentava.Foiláqueele
consumouatraiçãoaseupai.Bernardocontou-lheisso?
—Éclaro!—respondeuLaura.—Eleadoravocê.
Umnegroentrounasala,carregandoumcestodeflores.Laurafezum
sinalcomamão.OnegromostroufantásticosdentesbrancoseLaura,
tirandodocestoumbuquêdecincocravosmeiomurchos,estendeu-oa
Paul:
—Todaminhafelicidadedevoavocê.
Paulenfiouamãonocestoeapanhouumoutrobuquêdecravos.
—Nãoéamim,masavocêquefestejamoshoje.Disseeleoferecendolheasflores.
—É,hojeéafestadeLaura,disseAgnèstirandodocestoumterceiro
buquêdecravos.
Lauratinhaosolhosúmidos.
—Sinto-metãobemcomvocês,sinto-metãobemcomvocês,e
levantou-se.Apertavaosdoisbuquêscontraopeito,imóvelaoladodo
negroquesepostavacomoumrei.Todososnegrosparecemreis.Esteera
comoOtelo,antesdeficarcomciúmesdeDesdemona,eLauraeracomo
umaDesdemonaapaixonadaporseurei.Paulsabiaoqueiriaacontecer.
QuandoLauraestavabêbada,semprecomeçavaacantar.Lentamente,das
profundezasdoseucorpoumdesejodecantosubiuparasuagarganta,tão
intensamente,quemuitaspessoasquejantavamnorestaurantevirarama
cabeçacomcuriosidade.
—Laura,sussurrouPaul,nesterestaurantepodeserquenão
apreciemseuMahler!
Comumbuquêapertadoemcadaseio,Lauraachavaqueestavanum
palcodeópera.Parecia-lhesentirsobosdedosovolumedastetas
inchadasdenotas.Mas,paraela,osdesejosdePauleramsempreordens.
Obedeceuecontentou-seemsuspirar:
—Gostariatantodefazerqualquercoisa...
Entãoonegro,guiadopeloinstintosutildosreis,apanhounofundodo
cestoosdoisúltimosbuquêsdecravosamassadose,comumgesto
sublime,estendeu-osaLaura.
—Agnès,disseLaura,queridaAgnès,semvocêeununcateriavindo
paraParis,semvocênuncateriaconhecidoPaul,semPaulnuncateria
conhecidoBernardo,ecolocouseusquatrobuquêsnamesadiantedesua
irmã.
Odécimoprimeiromandamento
Antigamente,aglóriajornalísticapôdeencontrarseusímbolono
famosonomedeErnestHemingway.Todasuaobra,assimcomoseuestilo
sóbrioeconciso,temorigemnasreportagensqueoHemingwaymuito
jovemmandavaaosjornaisdeKansasCity.Serjornalistasignificava,então,
aproximar-semaisdoquequalqueroutrodavidareal,escavarseus
recantosescondidos,mergulharasmãosaliesujá-las.Hemingway
orgulhava-sedeterescritolivrosquesãoaomesmotempotãoterra-aterraecolocadostãoaltonofirmamentodaarte.
QuandoBernardopensanapalavra"jornalista"(títuloquehoje,na
França,englobatambémaspessoasdorádio,datelevisãoeosfotógrafos
daimprensa),nãoéemHemingwayqueelepensa,eogêneroliteráriono
qualeledesejadestacar-senãoéareportagem.Sonhamaisemescrever
emalgumarevistadedestaque,editoriaisquefariamtremertodosos
colegasdeseupai.Ouentãoentrevistas.Aliás,qualéojornalistamais
marcantedosúltimostempos?NãoéumHemingwaycontandosuas
experiênciasvividasnastrincheiras,nemumespecialistanasputasde
Praga,comoEgonErwinKisch,nemumOrwellqueviveuumanointeiro
comosmiseráveisdeParis,masOrianaFallaci,quepublicouentre1969e
1972,narevistaitalianaEuropeo,umasériedeentrevistascomospolíticos
maiscélebresdaépoca.Essasentrevistaserammaisdoqueentrevistas;
eramduelos.Antesdepodercompreenderquelutavamcomarmas
desiguais—porqueeraelaquepodiafazerasperguntas,nãoeles—os
políticostodo-poderososrolavamK.O.noestradodoringue.
Essesdueloseramumsinaldostempos:asituaçãomudara.Os
jornalistascompreenderamquequestionarnãoeraapenasométodode
trabalhodorepórterdesempenhandohumildementeumaentrevistacom
seucadernodenotasnamão,massimumamaneiradeexerceropoder.O
jornalistanãoéaquelequefazasperguntas,masaquelequedetémo
direitosagradodefazê-las,edefazê-lasaqualquerpessoa,sobre
qualquerassunto.Mastodosnósnãotemosessedireito?
Todaperguntanãoseriaumapassareladecompreensãolançadade
homemahomem?Talvez.Explico,portanto,minhaafirmação:opoderdo
jornalistanãosefundamentasobreodireitodefazerumapergunta,mas
sobreodireitodeexigirumaresposta.
Observe,porfavor,queMoisésnãocolocou"Nãomentiras"entreos
dezmandamentosdeDeus.Nãofoiporacaso!Poisaquelequediz"Não
minta"deveterditoantes"Responda!",quandoDeusnãodeuaninguémo
direitodeexigirdooutroumaresposta."Nãominta,digaaverdade"são
ordensqueumhomemnãodeveriadirigiraumoutrohomemenquanto
eleoconsiderecomoseuigual.
ApenasDeustalvezpudessefazê-lo,maselenãotemnenhumarazão
deagirassim,jáquesabetudoequenãotemnenhumanecessidadede
nossasrespostas.
Entreoquecomandaeoquedeveobedecer,adesigualdadenãoétão
radicalcomoadesigualdadeentreoquetemodireitodeexigiruma
respostaeoquetemodeverderesponder.Porissoodireitodeexigir
umarespostanuncafoiconcedido,anãoserexcepcionalmente.Por
exemplo,aojuizqueinstruiumaquestãocriminal.Nodecorrerdenosso
século,osEstadoscomunistasefascistasseoutorgaramessedireito,nãoa
títuloexcepcional,maspermanente.Osquevoltavamaessespaísessabiam
queaqualquermomentopodiamobrigá-losaresponder:oquehaviam
feitonavéspera?Oqueelespensavamemseuíntimo?
SobreoqueconversavamcomA?MantinhamrelaçõesíntimascomB?
Foijustamenteesseimperativosacramentado,"nãominta!digaa
verdade!",essedécimoprimeiromandamentoacujaforçanãosouberam
resistir,queostransformounumcortejodepobressujeitosinfantilizados.
Entretanto,devezemquandoapareciaumCrecusando-se
obstinadamenteadizersobreoqueconversavacomA;paraexpressarsua
revolta(àsvezeseraaúnicarevoltapossível!)disseumamentiraemvez
deumaverdade.Masapolíciasabiaemandouinstalarmicrofonesemcasa
dele.Elanãofoimovidapornenhummotivocondenável,maspelosimples
desejodeaprenderumaverdadequeomentirosoCescondia.
Simplesmentemantinhaseusagradodireitodeexigirumaresposta.
Numpaísdemocrático,qualquercidadãobotariaalínguadeforapara
qualquerpolicialqueousasselheperguntardoqueconversavacomAese
tinharelaçõesíntimascomB.Noentanto,aquitambémopodersoberano
dodécimoprimeiromandamentoéexercido.Afinaldecontas,épreciso
queummandamentosejaexercido,numséculoondeoDecálogoestá
praticamenteesquecido!Todaaestruturamoraldenossaépocatemcomo
baseodécimoprimeiromandamento,eojornalistacompreendeumuito
bemquecaberiaaeleassegurarsuagestão;assimoquerumasecreta
determinaçãodaHistória,queconferehojeemdiaaojornalistaumpoder
comoqualnenhumHemingway,nenhumOrwelljamaisousousonhar.
Issoficouclarocomoáguademinanodiaemqueosjornalistas
americanosCarlBernsteineBobWoodwarddesmascararamcomsuas
perguntasasmanobrascondenáveisdopresidenteNixondurantea
campanhaeleitoral,destaformaconstrangendoohomemmaispoderoso
doplaneta,primeiroamentirpublicamente,depoisaadmitirpublicamente
quementira,eenfimadeixaraCasaBrancacabisbaixo.Assim,nosso
aplausofoiunânimeporquejustiçaforafeita.Paultambémaplaudiu,
porquenesseepisódiopreviaumagrandemudançahistórica,o
ultrapassardeumlimiar,omomentoinesquecíveldeumareconstrução:
surgiaumanovaforçaque,sozinha,seriacapazdedestronaroantigo
profissionaldopoderqueatéentãoforaopolítico.Destroná-lonãosópelas
armasoupelaintriga,maspelasimplesforçadoquestionamento.
"Digaaverdade!",exigeojornalista,eclaro,podemosnosperguntar:
qualoconteúdodapalavra"verdade"quepossadarorigemàinstituição
dodécimoprimeiromandamento?Afimdeevitarqualquermal-entendido,
sublinhemosquenãosetratanemdaverdadedeDeus,quecustouaJan
Husafogueira,nemaverdadecientíficaquemaistardecustouaGiordano
Brunoamesmamorte.Averdadequeodécimoprimeiromandamento
exigenãodizrespeitonemàfénemaopensamento,éaverdadenoestágio
ontológicomaisbaixo,averdadepuramentepositivistadascoisas:oqueC
fezontem;oquepensarealmentenoíntimodesimesmo;doquefala
quandoencontraA;esetemrelaçõesíntimascomB.Noentanto,apesarde
situadonoestágioontológicomaisbaixo,éaverdadedanossaépocaeela
encerraamesmaforçaexplosivaqueencerravaemoutrostemposa
verdadedeJanHusedeGiordanoBruno."Vocêtemrelaçõesíntimascom
B?"perguntaojornalista.Crespondecomumamentira,afirmandonunca
terconhecidoB.Masojornalistaridisfarçadamenteporquehámuito
tempoorepórterdeseujornalfotografousecretamenteBinteiramente
nuanosbraçosdeC,esódependedeletornarpúblicooescândalo,
acrescentandoalémdomaisasafirmaçõesdomentirosoCquetãocovarde
quantoafrontosamentecontinuaanegarqueconheçaB.
Estamosemplenacampanhaeleitoral,ohomempolíticoentranum
helicóptero,dohelicópteropassaparaumcarro,agita-se,transpira,engole
seucafécorrendo,gritanosmicrofones,fazdiscursosdeduashoras,mas
finalmenteseráumWoodwardouumBernsteinquedecidiráqualentreas
cinquentamilfrasespronunciadasvaiaparecernosjornaiseserácitada
norádio.Daíodesejoquetemohomempolíticodefalarpessoalmenteno
rádioenatelevisão,masentãoéprecisoaintermediaçãodeumaOriana
Fallaci,quedetémocomandodoprogramaequefazasperguntas.Para
tirarproveitodobrevemomentoemquetodaanaçãopodevê-lo,ohomem
políticogostariadedizerimediatamenteaquiloquerealmenteé
importanteparaele,masWoodwardiráinterrogá-losobreassuntosque
nãolheinteressarãoabsolutamente,esobreosquaispreferirianãofalar.
Destaformaencontrar-se-ánasituaçãoclássicadoestudanteinterrogado
noquadro-negro,queirárecorreraumvelhotruque:fingindoresponder
àpergunta,recorrerá,naverdade,afrasespreparadasemcasaparao
programa.Masseessetruquepôdeenganaroprofessoralgumasvezes,
nãoiráenganarBernsteinqueoperseguirásempiedade:"Osenhornão
respondeuàminhapergunta!"
Quemhojeemdiagostariadefazerumacarreirapolítica?Quem
gostariadeserinterrogadoavidatodanoquadro-negro?Certamentenão
ofilhododeputadoBertrandBertrand.
Aimagologia
Ohomempolíticodependedojornalista.Masdequemdependemos
jornalistas?Daquelesqueospagam.Equemospagasãoasagênciasde
publicidadequecompramparaseusanúnciosespaçosnosjornais,ou
temponorádio.Àprimeiravista,poderíamospensarqueelasirãose
dirigir,semhesitar,atodososjornaiscujagrandecirculaçãopode
promoveravendadeumproduto.
Maséumaideiaingênua.Avendadoprodutotemmenosimportância
doquesepensa.Bastaconsideraroquesepassanospaísescomunistas:
afinaldecontas,nãosepoderiaafirmarquemilharesdecartazesde
LeninecoladosemtodapartepelocaminhopossamtornarLeninemais
querido.Asagênciasdepublicidadedopartidocomunista(asfamosas
seçõesdeagitaçãoepropaganda)hámuitotempoesqueceramasua
finalidadeprática(tornaramadoosistemacomunista)etornaram-seseu
própriofim:criarumalinguagem,fórmulas,umaestética(oschefesdessas
agênciasforam,outrora,osmestresabsolutosdaarteemseupaís),um
estilodevidaparticularqueemseguidadesenvolveram,lançaram,e
impuseramaospobrespovos.
Vocêspoderiamobjetarquepublicidadeepropagandanãotêmligação
entresi,estandoumaaserviçodomercadoeaoutraaserviçoda
ideologia?Nãoestãocompreendendonada.Hámaisoumenoscemanos,
naRússia,osmarxistasperseguidosformarampequenoscírculos
clandestinosemqueseestudavaemconjuntooManifestodeMarx;
simplificaramoconteúdodessaideologiaparadifundi-laemoutros
círculoscujosmembros,simplificandoporsuavezessasimplificaçãodo
simples,atransmitiramepropagaramatéomomentoemqueomarxismo,
conhecidoepoderosoemtodoplaneta,viu-sereduzidoaumacoleçãode
seisousetesloganstãoprecariamenteligadosentresi,quedificilmente
podemosconsiderá-locomoideologia.EcomotudoqueficoudeMarxnão
formamaisnenhumsistemalógicodeideias,masapenasumasequênciade
imagenseemblemassugestivos(ooperárioquesorrisegurandoseu
martelo,obrancoestendendoamãoaoamareloeaonegro,apombada
pazvoando,etc),podemosjustificadamentefalardeumatransformação
progressiva,geraleplanetáriadaideologiaemimagologia.
Imagologia!Emprimeirolugar,quemforjouestemagistralneologismo?
Pauloueu?Nãoimporta.Oquecontaéquefinalmenteexisteuma
palavraquepermitereunirnumsótetofenômenoscomdenominaçõestão
diferentes:agênciaspublicitárias;conselheirosemcomunicaçãodos
homensdeEstado;desenhistasqueprojetamalinhadeumnovocarroou
doequipamentodeumasaladeginástica;criadoresdamodaegrandes
costureiros;cabeleireiros;estrelasdoshow-businessditandoasnormasda
belezafísica,ondeseinspiramtodososramosdaimagologia.
Osimagólogosexistiam,bementendido,antesdacriaçãodaspoderosas
instituiçõesqueconhecemoshoje.MesmoHitlertinhaseuimagólogo
pessoalque,plantadodiantedoFuhrer,mostrava-lhepacientementeos
gestosquedeveriafazernopalanqueparaprovocaroentusiasmonas
multidões.Masseesseimagólogo,duranteumaentrevistaconcedidaa
algumjornalista,tivessedescritoaosalemãesumFuhrerincapazdemover
asmãosadequadamente,nãoteriasobrevividomaisdoquemeiodiaa
tamanhaindiscrição.Hoje,oimagólogonãodissimulamaisseutrabalho,
muitopelocontrário,adorafalarnele,frequentementeemvezdeeem
lugardeseuhomemdeEstado;adoraexplicarpublicamentetudoque
tentouensinaraseucliente,osmaushábitosquefê-loperder,as
instruçõesquelhedeu,ossloganseasfórmulasqueadotaránofuturo,a
cordagravataqueusará.Tantoorgulhonãodevenossurpreender:nos
últimosdecênios,aimagologiaalcançouumavitóriahistóricasobrea
ideologia.
Todasasideologiasforamderrotadas:seusdogmasacabaramsendo
desmascaradoscomoilusõeseaspessoasdeixaramdelevá-lasasério.Por
exemplo,oscomunistasacreditaramqueaevoluçãodocapitalismoiria
empobrecercadavezmaisoproletariado:umdia,aodescobrirquetodos
ostrabalhadoresdaEuropaiamdecarroparaotrabalho,tiveramvontade
degritarquetinhamsidoenganadospelarealidade.Arealidadeeramais
fortedoqueaideologia.Eéprecisamentenessesentidoqueaimagologiaa
ultrapassou:aimagologiaémaisfortedoquearealidade,que,aliás,há
muitotempodeixouderepresentarparaohomemoquerepresentava
paraaminhaavóquevivianumacidadedaMoráviaesabiatudopor
experiência:comosepreparaumpão,comoseconstróiumacasa,comose
mataumporcoecomosefazcomeleumacarnedefumada,comose
confeccionamosedredons,oqueosenhorpárocopensavadomundoeo
quepensavatambémosenhorprofessor;encontrandocadadiatodosos
habitantesdacidade,sabiaquantosassassinatostinhamsidocometidosna
regiãonosúltimosdezanos;mantinhaporassimdizerarealidadesobseu
controlepessoal,demodoqueninguémpoderiafazê-laacreditarquea
agriculturadaMoráviaprosperavasenãohouvesseoquecomeremcasa.
EmParis,meuvizinhodeandarpassaamaiorpartedeseutemposentado
emseuescritóriodiantedeumoutroempregado,depoisvoltaparacasa,
ligaatelevisãoparasaberoqueacontecenomundo,equandoo
apresentador,comentandoaúltimasondageminformaqueparaamaioria
dosfrancesesaFrançaéacampeãdaEuropaemmatériadesegurança(li,
recentemente,essasondagem),loucodealegria,abreumagarrafade
champanhaenuncasaberáquenomesmodia,namesmaruaemque
mora,foramcometidostrêsassaltosedoisassassinatos.
Assondagensdeopiniãosãooinstrumentodecisivodopoder
imagológico,sãoelasquelhepermitemviveremperfeitaharmoniacomo
povo.
Oimagólogobombardeiaaspessoascomperguntas:Comosecomporta
aeconomiafrancesa?ExisteracismonaFrança?Oracismoéumacoisaboa
oumá?Qualéomaiorescritordetodosostempos?AHungriaficana
EuropaounaPolinésia?DetodososhomensdeEstadodomundo,qualéo
maissexy!Comoarealidade,hoje,éumcontinentequepoucovisitamos,e
quejustificadamentenãoamamos,asondagemtornou-seumaespéciede
realidadesuperior;ou,emoutraspalavras,tornou-seaverdade.A
sondagemdeopiniãoéumparlamentoemsessãopermanente,quetem
comomissãoproduziraverdade,digamosqueatémesmoaverdademais
democráticaquejamaisconhecemos.Comonuncaentraráemcontradição
comoparlamentodaverdade,opoderdosimagólogosviverásempre
dentrodaverdade,emesmoqueeusoubessequetudoqueéhumanoé
perecível,nãopoderiaimaginarqueforçaconseguiriaquebraressepoder.
Apropósitodarelaçãoentreideologiaeimagologia,acrescentoainda
isso:asideologiaseramcomoimensasrodas,rodandonosbastidorese
desencadeandoasguerras,asrevoluções,asreformas.Asrodas
imagológicastambémgiram,massuarotaçãonãotemnenhumefeitosobre
aHistória.Asideologiasseguerreavam,cadaumaeracapazdeenvolver
todaumaépocacomseupensamento.Aimagologiaorganizaporsimesma
aalternânciapacíficadeseussistemasnoritmoalegredasestações.Como
diriaPaul:asideologiaspertencemàHistória,oreinodaimagologia
começaali,ondeaHistóriatermina.
Apalavramudança,tãocaraànossaEuropa,tomouumnovosentido:
nãosignificamaisumanovafasenumaevoluçãocontínua(nosentidode
umViço,deumHegeloudeumMarx),masodeslocamentodeumlado
paraoutro,doladoesquerdoparaoladodireito,doladodireitoparatrás,
detrásparaoladoesquerdo(nosentidodosgrandescostureiros
inventandoocortedapróximaestação).NoclubequeAgnèsfrequenta,se
osimagólogosdecidiramcolocarnasparedesimensosespelhos,nãofoi
parapermitiraosginastasacompanharmelhorseusexercícios,mas
porqueoespelho,naquelemomento,eraumnúmerovitoriosonaroleta
imagológica.Setodomundodecide,nomomentoemqueescrevoestas
linhas,queéprecisoconsiderarofilósofoMartinHeideggercomoum
mistificadoreumcanalha,nãoéporqueseupensamentotenhasido
superadoporoutrosfilósofos;massimporquenaroletaimagológicaele
tornou-se,nomomento,umnúmeroperdedor,umantiideal.Osimagólogos
criamsistemasdeideaisedeantiideais,sistemasquenãodurarãomuito,e
emquecadaumserálogosubstituídoporoutro,masqueinfluenciam
nossoscomportamentos,nossasopiniõespolíticas,nossosgostosestéticos,
ascoresdostapetesdasala,assimcomoaescolhadoslivros,comtanta
forçaquantoosantigossistemasdosideólogos.
Depoisdessasobservações,possovoltaraocomeçodeminhas
reflexões.
Ohomempolíticodependedojornalista.Eosjornalistasdependemde
quem?
Dosimagólogos.Oimagólogoexigedojornalistaqueseujornal(ousua
cadeiadetelevisão,ousuaestaçãoderádio)respondaaoespíritodo
sistemaimagológicodeumdeterminadomomento.Eisoqueosimagólogos
verificamdetemposemtempos,quandodecidemdarounãoseuapoioa
umjornal.Umdia,examinaramocasodeumaestaçãoderádioonde
BernardoeraredatoreondePaulfazia,todosossábados,umacrônica
intitulada"Odireitoealei".
Prometeramofereceràestaçãomuitoscontratospublicitárioselançar
umagrandecampanha,comcartazesemtodaParis,masimpondo
condiçõesàsquaisodiretordosprogramas,conhecidopeloapelidode
Grizzly,nãopodiadeixardesesubmeter:poucoapoucocomeçoua
diminuirtodososcomentários,paranãoaborreceroouvintecomlongas
reflexões,deixouqueinterrompessemafaladosredatorescomperguntas
deoutrosredatores,transformando,destaforma,omonólogoemconversa;
multiplicouosintervalosmusicais,atémesmoaopontodeconservar
muitasvezesamúsicadefundoatrásdesuaspalavras,recomendoua
todososseuscolaboradoresquedessematudoquediziamnomicrofone
umalevedescontração,jovemeinconsequente,aquelamesmaque
enfeitoumeussonhosdemanhãcedofazendodameteorologiauma
espéciedeópera-bufa.
Preocupadoemaparecersempreaseussubordinadoscomoumurso
todopoderoso,fezoquepôdeparaconservartodososseuscolaboradores
noposto.
Cedeuapenasnumponto.Oprogramaintitulado"Odireitoealei"era
consideradopelosimagólogoscomotãodesinteressantequeeles
recusaram-seadiscuti-lo,contentando-se,quandoalguémomencionava,
emexplodirnumagargalhadaquemostravaseusdentesmuitobrancos.
Depoisdeterlhesprometidocancelaressacrônica,Grizzlyficou
envergonhadodetercedido.SuavergonhaaindaeramaiorporquePaul
eraseuamigo.
Obrilhantealiadodeseuscoveiros
OdiretordosprogramastinhaosobrenomedeGrizzlyenempoderia
teroutro:eraatarracado,lento,bonachão,mastodossabiamque,quando
enfurecido,suapesadapatapodiabater.Osimagólogos,descaradosa
pontodepretenderensinar-lheoofício,levavamaoextremoasua
paciênciadeurso.Estavanacantinadaemissora,sentadoàmesa,e
explicavaaalgunscolaboradores:
—Essesimpostoresdapublicidadeparecemmarcianos.Nãose
comportamcomopessoasnormais.Quandofazemasobservaçõesmais
desagradáveis,suasfisionomiasresplandecemdecontentamento.Não
utilizammaisdoqueunssessentavocábuloseseexpressamporfrases
curtasnãocontendomaisdoquequatropalavras.Suafala,pontuadade
doisoutrêstermostécnicosincompreensíveis,enuncianomáximoumaou
duasideias,vertiginosamenteprimárias.Essepessoalnãotemvergonha
desercomoé,nãotemomenorcomplexodeinferioridade.Eisaíaprova
deseupoder.
Maisoumenosnessemomento,Paulapareceunacantina.Aopercebêlo,opequenogrupoficouaindamaiscontrafeitopelofatodePaulparecer
estardeexcelentehumor.Pediuumaxícaradecafénobalcãoefoijuntarseaseuscompanheiros.
NapresençadePaul,Grizzlysentiu-seconstrangido.Estavaaborrecido
consigomesmopornãotê-loapoiado,epornemtertidoacoragemde
contarissoaele.Submergidoporumanovaondaderaivadosimagólogos,
prosseguiu:
—Parasatisfazeraessescretinos,possoatétransformaraprevisão
meteorológicaemdiálogodepalhaços,masmeincomodaouvirBernardo
anunciarlogoemseguidaamortedecentenasdepessoasnumacatástrofe
aérea.
Estouprontoasacrificarminhavidaparaqueumfrancêssedivirta,
masasnotíciasnãosãopalhaçadas.
Todospareciamconcordar,excetoPaul.Quandoumjovemprovocador
riu,eleinterveio:
—Grizzly!Osimagólogostêmrazão!Vocêconfundeasnotíciascomas
ocorrênciasnoturnas.
Grizzlylembrou-sedacrônicadePaul,àsvezesespirituosa,mas
sempreexcessivamentesutilerecheadadepalavrasdesconhecidas,cujo
significadoaredaçãoiaemsegredoprocurardepoisnodicionário.
Preferindoevitaresseassuntonomomento,elerespondeureunindotoda
suadignidade:
—Sempreleveimuitoasérioojornalismoenãotenhoaintençãode
mudardeopinião.
Paulprosseguiu:
—Ouvirasnotíciaséomesmoquefumarumcigarroquedepois
jogamosfora.
—Achodifíciladmitirisso.
—Masvocêéumfumanteinveterado!Porqueacharuimqueas
notíciassepareçamcomoscigarros?DizPaulrindo.Seoscigarrossão
nocivos,asnotíciassãoinofensivaseproporcionamavocêumaagradável
diversãoantesdeumdiadetrabalho.
—AguerraentreoIrãeoIraqueéumdivertimento?Perguntou
Grizzly,eumapontadeaborrecimentomisturou-seàpenaquesentiade
Paul.
—Acatástrofeferroviáriadehoje,todaessacarnificina,vocêachaisso
engraçado?
—Vocêcometeumerrocorriqueirovendonamorteumatragédia,
dissePaul,quedecididamenteestavaemgrandeforma.
—Confesso,dizGrizzlycomvozglacial,quesemprevinamorteuma
tragédia.
—Aíestáoerro,dizPaul.Umacatástrofeferroviáriaéhorrívelpara
quemestánotrem,ousabequeseufilhoestáládentro.Masnas
informaçõespelorádio,osentidodamorteéomesmoquenosromances
deAgathaChristieque,semdúvida,éamaiormágicadetodosostempos,
porquesoubetransformaramorteemdivertimento,enãosomenteuma
morte,masdezenasdemortes,centenasdemortes,mortesemcadeia,
perpetradasparanossagrandealegrianoscamposdeexterminaçãodos
seusromances.Aushwitzestáesquecida,masosfornoscrematóriosdos
romancesdeAgathaenviameternamentesuafumaçaemdireçãoao
firmamento,esóumhomemmuitoinocentepoderiaafirmarqueéa
fumaçadatragédia.
Grizzlylembrou-sedeque,comparadoxoscomoesse,Paul,durante
muitotempo,influenciaratodaaequipe,que,soboolharmaléficodos
imagólogos,davafracoapoioaochefe,secretamentepersuadidadequeele
estavaforademoda.Censurando-seportercedido,Grizzlyaomesmo
temposabiaquenãotinhaoutraescolha.
Essescompromissosobrigatórioscomoespíritodaépocatêmqualquer
coisadebanal,afinaldecontas,deinevitável,anãoserquesequeira
convocaraumagrevegeraltodososqueencararamnossoséculocom
repugnância.MasnocasodePaul,nãosepodiafalardecompromisso
obrigatório.Eleesforçava-seemofereceraseuséculosuainteligênciae
seusbrilhantesparadoxoscomplenoconhecimentodecausa,esegundo
Grizzly,comexcessodezelo.Aindacommaisfrieza,Grizzlyentão
respondeu:
—EutambémleioAgathaChristie!Quandoestoucansado,quando
queromergulharnainfânciaporuminstante.Masseavidainteirase
tornaumabrincadeiradecrianças,omundoacabarámorrendosobas
risadinhasegritariasinfantis.
Pauldisse:
—PrefiromorrersobgritariasinfantisdoqueescutandoaMarcha
fúnebredeChopin.Eacrescentooseguinte:Todomalvemdessamarcha
fúnebrequeéaglorificaçãodamorte.Sehouvessemenosmarchas
fúnebres,talvezsemorressemenos.Compreendaoquequerodizer:o
respeitoqueatragédiainspiraémaisperigosoqueadespreocupaçãodas
gritariasinfantis.Qualéaeternacondiçãodastragédias?Aexistênciade
ideaisquetêmmaiorvalorqueavidahumana.Equaléacondiçãodas
guerras?Amesmacoisa.Vocêéobrigadoamorrer,porquepareceque
existequalquercoisasuperioràsuavida.Aguerrasópodeexistirno
mundodatragédia;desdeoprincípiodesuahistória,ohomemnão
conheceusenãoomundotrágicoenãoécapazdesairdisso.Aidadeda
tragédiasópodeacabarporumarevoltadafrivolidade.Aspessoassó
conhecem,daNonadeBeethoven,osquatrocompassosdohinoàalegria
queacompanhamoanúnciodosperfumesBella.Issonãomeescandaliza.A
tragédiaserábanidadomundocomoumavelhacabotina,quecomamão
sobreocoraçãorecitacomvozrouca.Afrivolidadeéumadietaradical
paraemagrecer.Ascoisasperderão90%deseusentidoesetornarão
leves.Nessaatmosferararefeita,ofanatismodesaparecerá.Aguerra
tornar-se-áimpossível.
—Estoufelizemsaberque,afinal,vocêencontrouumamaneirade
acabarcomasguerras,dizGrizzly.
—Vocêimaginaajuventudefrancesaprontaacombaterpelapátria?
NaEuropa,aguerratornou-seimpensável.Nãopoliticamente,mas
antropologicamenteimpensável.NaEuropa,aspessoasnãosãomais
capazesdeguerrear.
Nãovámedizerquedoishomensemdesacordoprofundopodemse
amar;sãocontosdacarochinha.Talvezpudessemseamarseguardassem
paraelesprópriossuasopiniões,nãofalandosobreissoanãoseremtom
debrincadeiraparadiminuiraimportânciadelas(foiassimquePaule
Grizzlyconversaramatéagora).Masdepoisqueabrigaestourou,foitarde
demais.Nãoqueacreditassemtantonasopiniõesquedefendiam,masnão
suportavamnãoterrazão.Olheosdois.Alémdetudo,essabriganãovai
mudarnadadenada,nãochegaráanenhumaconclusão,nãomudaráa
marchadosacontecimentos,écompletamenteestéril,inútil,limitadaao
perímetrodessacantinaeàsuaatmosferafétida,comaqualdesaparecerá
quandoasfaxineirasabriremasjanelas.Noentanto,vejaaconcentração
dopequenogrupodeouvintes,apertadosemvoltadamesa!Todos
escutamemsilêncio,atéesquecendodetomarocafé.Eosdoisadversários
seagarramaessaminúsculaopiniãopública,quevaidesignarouumou
outrocomoodetentordaverdade:paracadaumdeles,serdesignado
comoaquelequenãoadetémequivaleaumadesonra.Ouaperderum
pedaçodoseueu.Narealidade,poucoimportaaelesaopiniãoque
defendem.Mascomofizeramdissoumatributodoseueu,cadaataquea
essaopiniãoéumaaguilhoadaemsuascarnes.
Emalgumlugarnasprofundezasdesuaalma,Grizzlysentiasatisfação
comaideiadequePaulnãofariamaiscomentáriossofisticadosna
emissora;suavoz,cheiadeumorgulhodeurso,fazia-semaisbaixa,mais
glacial.Paul,aocontrário,falavamaisaltoeasideiasquelhepassavam
pelacabeçaeramcadavezmaisarrebatadaseprovocadoras.
—Agrandecultura,dizele,éfilhadessaperversãoeuropeiaque
chamamosdeHistória;querodizerqueestamaniadeestarsemprena
frente,deconsiderarasgeraçõesseguintescomoumacorridade
revezamentoondecadaumchegaantesdeseuantecessorparaser
ultrapassadoporseusucessor.Semessacorridaderevezamento,que
chamamosdeHistória,nãohaveriaaarteeuropeia,nemoquea
caracteriza:odesejodeoriginalidade,odesejodemudança.Robespierre,
Napoleão,Beethoven,Stalin,Picassotambémsãocorredoresde
revezamento,todoscorremnomesmoestádio.
—VocêachamesmoquesepodecompararBeethovenaStalin?—
perguntouGrizzlycomcarregadaironia.
—Evidentemente,mesmoseissolhechoca.Aguerraeaculturasãoos
doispólosdaEuropa,seucéueseuinferno,suaglóriaesuavergonha,mas
nãopodemserdesassociadas.Quandoumaacabar,aoutratambém
acabará,desaparecerãojuntas.OfatodenãohavermaisguerranaEuropa
hácinquentaanosestámisteriosamenteligadoaofatodequehácinquenta
anosnãoconhecemosnenhumPicasso.
creds—Voulhedizerumacoisa,Paul,disseGrizzlycominquietante
lentidão,epodia-sedizerqueialevantarsuapesadapataparaaplicarum
golpe:seagrandeculturaestáperdida,vocêtambémestá,eessassuas
ideiasparadoxaisjuntocomvocê,porqueoparadoxocomotaltemcomo
baseagrandeculturaenãoasgritariasinfantis.Vocêmefazpensar
nessesjovensqueantigamenteaderiamaosmovimentosnazistasou
comunistas,nãocomaintençãodepraticaromalnemporarrivismo,mas
porexcessodeinteligência.Nadanarealidadeexigemaisesforçodo
pensamentodoqueaargumentaçãonecessáriaparajustificaronãopensamento.Pudeconstatarissopessoalmente,depoisdaguerra,quando
osintelectuaiseartistasentraramcomobezerrosparaopartido
comunista,quedepois,comomaiorprazer,liquidou-ossistematicamente.
Vocêfazexatamenteamesmacoisa.Vocêéobrilhantealiadodeseus
próprioscoveiros.
Oburrototal
DorádiocolocadoentresuascabeçasvinhaavozfamiliardeBernardo,
entrevistandoumatorcujofilmedeveriaestrearbrevemente.Suavoz
estridentetirou-osdeseutorpor.
—Vimfalarsobremeufilme,nãosobremeufilho.
—Nãotenhamedo,chegaráavezdele,diziaavozdeBernardo.Masa
atualidadetemassuasexigências.Correoboatodequeosenhorteveum
papelimportantenoescândalodeseufilho.
—Quandomeconvidouparaseuprograma,garantiu-mequeeleseria
sobreofilme.Portantofalaremosdofilme,enãodaminhavidaparticular.
—Osenhoréumhomempúblico,estoulhefazendoperguntasque
interessamaosnossosouvintes.Estouapenascumprindomeudever.
—Respondereiaqualquerperguntasobreofilme.
—Comoquiser.Masnossosouvintesficarãosurpresosqueosenhorse
recusearesponder.
Agnèssaiudacama.Nofimdeunsbonsquinzeminutos,quandoia
paraotrabalho,Paul,porsuavez,levantou-se,vestiu-se,edesceupara
buscaracorrespondêncianaportaria.AssinadaporGrizzlyumadascartas
anunciava-lhecomgrandesrodeios,misturandodesculpascomumhumor
amargoaquiloquejásabemos:arádiodispensavaosserviçosdePaul.
Releuacartaquatrovezes.Depois,comumgestodeindiferençafoi
paraseuescritório.Massentia-sepoucoàvontade,incapazdeconcentrarse,esópensavanacarta.Paraeleeraumgolpetãoduroassim?Doponto
devistaprático,absolutamente.Masestavamagoado.Todasuavida
esforçara-separafugirdomundodosjuristas:estavafelizcoordenando
umseminárionauniversidade,eestavafelizfalandonarádio.Nãoquea
profissãodeadvogadolhedesagradasse:aocontrário,gostavados
acusados,tentavacompreenderocrimequehaviamcometidoedar-lhe
sentido;"Nãosouumadvogado,massimumpoetadadefesa!",diziaele
brincando;ecolocava-seconscientementedetodoocoraçãoaoladodos
fora-da-lei,considerando-se(nãosemumacertavaidade)comoum
traidor,umquinta-coluna,umguerrilheirocaridosonummundodeleis
desumanas,comentadasemgrossoslivrosquecarregavasemprenas
mãoscomaligeirarepugnânciadeumconhecedordesiludido.Também
desejavamantercontatoshumanosforadoslimitesdoPaláciodeJustiça,
ligar-seaosestudantes,aosescritores,aosjornalistas,paraconservara
certeza(enãoapenasailusão)depertenceraessafamília.Eramuito
ligadoaelesenãoaceitaradebomgradoqueacartadeGrizzlyo
mandassedevoltaparaseuescritórioeparaotribunal.
Haviaoutromotivoparasentir-sedeprimido.QuandoGrizzlychamou-o
navésperadealiadodeseuspróprioscoveiros,Paulnãoviranissosenão
umaelegantemaldade,semnenhumconteúdoconcreto.Apalavracoveiros
nãolhediziagrandecoisa.Équeaindanãosabianadasobreesses
coveiros.Masagoraquejáreceberaacarta,rendia-seàevidência:os
coveirosexistiammesmo,jáohaviamindicadoeoesperavam.
Subitamentecompreendeuqueaspessoasoviamdemaneiradiversa
daqueeleprópriosevia,nãodamaneiraqueeleimaginavaservisto.De
todososcolaboradoresdaestação,eraoúnicoquedeveriasair,apesarde
Grizzly(nãotinhaamenordúvida)tê-lodefendidodamelhormaneira
possível.Emqueirritaratodosessespublicitários?Aliás,seriaingênuo
acharqueessaspessoasseriamasúnicasaconsiderá-loinaceitável.
Muitasoutrasdeveriamteramesmaopinião.Oquetinhaacontecidocom
suaimagem?Tinhaacontecidoalgumacoisa,elenãosabiadizeroquee
nuncairiasaber.Poiséassim,ealeivaleparatodomundo:nunca
sabemosporqueeemqueaborrecemososoutros,emquelhessomos
antipáticos,emquelhesparecemosridículos;nossaprópriaimagemépara
nósomaiormistério.
Paulsabiaque,odiainteiro,nãopensariaemmaisnada;tirandoo
telefonedogancho,convidouBernardoparaalmoçarfora.
Sentaram-seumemfrenteaooutro;Paulmorriadevontadedefalarda
carta,mascomoerabem-educadosuasprimeiraspalavrasforamde
delicadeza:'
'Escuteivocêdemanhãcedo.Vocêcercouaqueleatorcomosefosse
umcoelho."
—Éverdade,disseBernardo.Talveztenhaexagerado.Masestavade
umhumorexecrável.Ontemrecebiumavisitaquenuncavouesquecer.
Umdesconhecidoveiomever.Maisaltoumpalmodoqueeu,ostentando
umabarrigaenorme.Apresentando-se,sorriuparamimcomumar
terrivelmenteamável."Tenhoahonradeentregar-lheestediploma",
dissemeeleenfiandoentremeusdedosumtubodecartolina.Pediu-me
cominsistênciaqueoabrissediantedele.Dentrohaviaumdiploma.Em
cores.Numaboacaligrafia.Ainscriçãodizia:BernardoBertrandé
promovidoaburrototal.
—Oquê?dissePaulcaindonagargalhada,maslogocontrolou-seao
verdiantedeleumrostograveesérioemquenãohaviaomenortraçode
divertimento.
—É,repetiuBernardocomumavozsinistra,fuipromovidoaburro
total.
—Masquempromoveuvocê?Haviaonomedeumaorganização?
—Não,háapenasumaassinaturailegível.
Bernardorepetiumuitasvezesoquelhetinhaacontecido,antesde
acrescentar:
—Comeceinãoacreditandonosmeusolhos.Tinhaaimpressãode
estarsendovítimadeumatentado,queriagritarechamarapolícia.Depois
compreendiquenãopodiafazernada.Otiposorriaemeestendiaamão:
"Possofelicitá-lo?"dissemeele,eestavatãoconfusoqueapertei-lheamão.
—Apertouamãodele?Agradeceu-lhesinceramente?dissePaul
reprimindoorisocomdificuldade.
—Quandocompreendiquenãopodiamandarapolíciaprenderaquele
sujeito,quismostrarmeusangue-frioeagircomosetudofosse
perfeitamentenormalecomosenadativessemeofendido.
—Ématemático,dissePaul:quandoseépromovidoaburro,agimos
comoumburro.
—Quehorror,disseBernardo.
—Evocênãosabequemera?Noentantoeleseapresentou!
—Estavatãonervosoquelogoesquecionomedele.Paulnão
conseguiamaissecontrolar;caiunagargalhada.
—É,seiquevocêvaidizerqueéumabrincadeira,éclaroquevocêtem
razão,éumabrincadeira,continuouBernardo.Masnãohánadaafazer.
Desdeentãonãoconsigopensaremoutracoisa.
PaultinhaparadoderircompreendendoqueBernardodiziaa
verdade:semdúvidanenhuma,nãopensavaemmaisnadadesdea
véspera.ComoPaulteriareagidorecebendosemelhantediploma?
ExatamentecomoBernardo.
Quandovocêéqualificadodeburrototal,significaquepelomenosuma
pessoavêvocêcomostraçosdeumburroequefazquestãodequevocê
saibadisso.Sóissojáédesagradável.Eéinteiramentepossívelquea
iniciativatenhasidotomadanãoapenasporumaúnicapessoa,maspor
umadezenadepessoas.Étambémpossívelqueessaspessoaspreparem
umoutrogolpe,como,porexemplo,colocarumanúncionosjornais,detal
modoquenoLeMondedodiaseguinte,nosanúnciosdosfunerais,dos
casamentosedasdistinçõeshonoríficas,todospossamficarsabendoque
Bernardofoipromovidoaburrototal.
Bernardoconfidenciou-lhedepois(ePaulnãosabiasedeviarirdo
amigoouchorarporele)quedesdequereceberaodiploma,eleo
mostravaatodosqueencontrava.Nãoqueriaficarsozinhonasua
humilhação,tentavaenglobarnelaosoutros,explicandoatodomundoque
nãoeraoúnicovisado.
—Sesetratasseapenasdemim,teriammeentregadoodiplomaem
casa.
Masmeentregaramnarádio!Éumataqueaosjornalistas!Umataque
contratodosnós!
Paulcortavaacarnenoprato,bebericavaseuvinhoepensava:eisdois
bonsamigos:umsechamaburrototal,ooutroéobrilhantealiadodeseus
coveiros.Ecompreendeu(oquetornavaseuamigomaismoçoaindamais
querido)queemespíritonãoochamariamaisBernardo,massemprede
burrototal:nãopormaldade,masporqueumtítulotãobonitoé
irresistível,todosaquelesaquemBernardomostraraodiploma,emseu
abatimentoirracional,certamenteiriamchamá-losempreassim.
PensoutambémqueGrizzlytinhasidomuitoafetuosoaoqualificá-lode
brilhantealiadodeseuscoveirosnodecorrerdeumasimplesconversade
mesa.
Afinaldecontas,poderiaterlhedadoumdiplomaeissoteriasidobem
pior.Foiassim,graçasaoproblemadeseuamigo,quePaulquase
esqueceuseuprópriosofrimentoequandoBernardolhedisse:"Parece
quevocêtambémteveumaborrecimento".Eleafastouaquestão:
"Bobagens,"eBernardoconcordou:"vilogoquevocêestavaacimadisso.
Vocêtemmilcoisasmaisinteressantesafazer."
QuandoBernardolevou-oatéseucarro,Pauldisselhecommuita
melancolia:
—Grizzlyestáerradoeosimagólogostêmrazão.Ohomemnãoénada
alémdesuaimagem.Osfilósofospodemnosexplicarqueaopiniãodo
mundocontapoucoequesócontaaquiloquesomos.Masosfilósofosnão
compreendemnada.Enquantovivermosentreoshomens,seremosaquilo
queossereshumanosachamquesomos.Passamosporpatifesou
espertalhõesquandonofundonosperguntamossempararcomoosoutros
nosenxergam,quandonosesforçamosporpareceromaissimpáticosque
podemos.Masentremeueueodooutro,seráqueexisteumcontato
direto,semosolhoscomointermediários?Épossívelpensaroamorsema
buscaangustiadadesuaprópriaimagemnopensamentodapessoa
amada?Quandooqueooutropensadenósnãotemmaisimportância,é
porquedeixamosdeamá-lo.
—Vocêtemrazão,disseBernardocomumavozbaixa.
—Éumailusãoingênuaacharquenossaimageméumasimples
aparência,atrásdaqualseesconderiaaverdadeirasubstânciado
nossoeu,independentedoolhardomundo.Comumcinismoradical,osimagólogosprovamqueocontrárioéverdadeiro:nossoeuéumasimples
aparência,inatingível,indescritível,confusa,enquantoqueaúnica
realidade,fácildemaisdeapreenderededescrever,énossaimagemnos
olhosdosoutros.Epior,vocênãotemocomandosobreisso.Vocêprimeiro
tentapintá-lavocêmesmo,depoispelomenosconservarumainfluência
sobreela,controlá-la,masemvão:bastaumafórmulamaldosapara
transformá-laparasemprenumalamentávelcaricatura.
Pararampertodocarro;Paulviuemfrentedeleumrostoaindamais
ansiosoepálido.Suaintençãotinhasidoreconfortaroamigo,masagora
constatavaquesuaconversaoabatera.Sentiuremorso:foipensandoemsi
mesmo,noseuprópriocaso,queeletinhasedeixadolevarporessas
reflexões.
Masomalestavafeito.
Aodespedir-se,Bernardodissecomumconstrangimentoquecomoveu
Paul:
—Porfavor,nãofalenissocomLaura.NãofalenemcomAgnès.Deulheumapertodemãofirmeeamistoso:
—Podeconfiaremmim.
Devoltaaseuescritório,começouatrabalhar.Seuencontrocom
Bernardoestranhamenteoconsolaraeelesesentiamelhordoquede
manhã.Nofimdatarde,foiencontrarAgnèsemcasa.Aolhefalardacarta
deGrizzly,nãodeixoudeacrescentarqueoproblemaerasem
importância.Tentourirenquantofalava,masAgnèspercebeuqueentreas
palavraseoriso,Paulcomeçavaatossir.Conheciaessatosse.Quando
tinhaumaborrecimentoPaulsempresabiasecontrolar;aúnicacoisaque
otraíaeraessatosseinsistente,daqualnãosedavaconta.
—Elesquiseramtornaroprogramamaisengraçadoemaisjovem,
disseAgnès.Seucomentáriopretendiaserirônicoemrelaçãoaosque
tinhamcanceladooprogramadePaul.Depoisacariciou-lheoscabelos.Mas
nuncadeveriaterfeitoisso.NosolhosdeAgnès,Paulviasuaimagem:ade
umhomemhumilhadoquetinhamresolvidonãoacharmaisnemjovem
nemengraçado.
Ágata
Cadaumdenósdesejatransgredirasconvenções,ostabuseróticos,e
entrarcomembriagueznoreinodoProibido.Masnosfaltatantaaudácia...
Arranjarumaamantemaisvelha,umamantemaismoço,eisoque
podíamosrecomendarcomoomeiodetransgressãomaisfácil,mais
acessívelatodos.PelaprimeiravezLauratinhaumamantemaismoçodo
queela,Bernardotinha,pelaprimeiravez,umaamantemaisvelhadoque
ele,etodosdoisviviamessaprimeiraexperiênciacomoumpecado
excitante.
QuandoLauraasseguravaaPaulqueBernardoafaziarejuvenescer
dezanos,falavaaverdade:umaondadeenergiaainvadia.Masissonão
queriadizerqueelasesentiamaismoçadoqueele.Aocontrário,
saboreavacomumdeleite,atéentãodesconhecido,aideiadeterum
amantemaismoço,umamantequeseachavamaisfracoequeficavatenso
aopensarquesuaamanteexperimentadairiacompará-loaseus
antecessores.Noerotismoécomonadança:umdosparceirossemprese
encarregadeconduzirooutro.PelaprimeiravezLauraconduziaohomem,
econduzirparaelaeratãoexcitantequantoserconduzidoparaBernardo.
Oqueamulhermaisvelhaofereceaohomemmaismoçoéantesde
tudoacertezadequeseuamorsedesenvolverálongedequalquerrisco
matrimonial,pois,afinaldecontas,ninguémimaginaqueumhomemque
temumfuturobeloepromissorvásecasarcomumamulheroitoanos
maisvelha.ÉporissoqueBernardotinhaparaLauraomesmoolharque
Pauloutrorativeraparaamulherquesetornousuaametista:supunha
quesuaamanteestivessedispostaadesaparecerumdiadiantedeuma
mulhermaismoçaqueelepudesseapresentaraseuspaissemqueestes
sesentissemconstrangidos.ConfiandonasabedoriamaternaldeLaura,
achavaqueelaseriacapazdesermadrinhadeseucasamentoefingir
perfeitamenteparaajovemnoivanuncatersido(oumesmoaindaser)
amantedeBernardo.
Suafelicidadefoicompletadurantedoisanos.DepoisBernardofoi
promovidoaburrototaletornou-setaciturno.Lauraignoravatudosobreo
diploma(Paulcumpriraoprometido)enãotendoohábitodeinterrogar
Bernardosobreseutrabalhotambémnãosabianadasobreseusoutros
problemasprofissionais(comosabemos,umadesgraçanuncavem
sozinha);portantointerpretavaseumutismocomoprovadequenãoa
amavamais.Jámuitasvezestinhareparadoqueissoacontecia:elenão
sabiaoqueelatinhaacabadodefalar;estavacertadequenesses
momentosestavacomoutramulhernacabeça.Ah,emamoréprecisotão
poucoparaquefiquemosdesesperados!
Veioumdiaàcasadelamergulhadoempensamentossombrios.Ela
desapareceudasalaparatrocarderoupaeeleficousozinhonasalaem
companhiadagrandegata.Nãosentiaporelanenhumasimpatiaespecial,
massabiaqueaosolhosdadonaobichoerasagrado.Sentadonuma
poltrona,entregava-se,portanto,aseuspensamentossombrios
estendendomaquinalmenteamãoemdireçãoàgata,porqueseachavana
obrigaçãodeacariciá-la.Masagatacomeçouarosnaremordeu-lheamão.
Estamordida,somando-seatodaumasériedefracassosehumilhações
suportadasnasúltimassemanas,encheu-oderaivae,pulandodacadeira,
ameaçouagatacomopunhofechado.Elacorreuparaumcantoearqueou
ascostasemitindoterríveismiados.
Depoisvirou-seeviuLaura.Depénaporta,elacertamenteobservara
todaacena.
—Não,disseela,agatanãodeveserpunida.Estavaperfeitamenteno
direitodela.
Bernardoolhou-acomespanto.Amordidaestavadoendoeesperava
queaamante,senãosealiasseaelecontraagata,pelomenosdesseprova
deumsensomínimodejustiça.Sentiavontadededarumpontapétão
violentonagata,queelaficassecoladanaparede.Foiprecisoumagrande
esforçoparaconseguirdominar-se.
Lauracontinuou,articulandocadapalavra:
—Quandoéacariciada,elaexigequenãosefiquedistraído.Eu
tambémnãosuportoquesefiquecomigocomopensamentonoutracoisa.
Algunsmomentosantes,aoversuagatareagirtãoviolentamenteà
atitudedistraídadeBernardo,sentiu-se,derepente,solidáriacomo
animal.HásemanasBernardocomportava-seemrelaçãoaelacomoem
relaçãoàgata:acariciava-a,masseuspensamentosestavamlonge;fingia
estaremsuacompanhia,masnãoaescutava.
Quandoviuagatamorderseuamante,teveaimpressãodequeseu
outroeu,oeusimbólicoemísticoqueeraparaelaseuanimal,queria,
destemodo,encorajá-la,mostrar-lheacondutaaseguir,servirdeexemplo.
Hámomentos,pensouela,emqueéprecisomostrarasgarras;decidiuque
naquelamesmanoite,norestauranteemquedeveriamjantarasós,
finalmenteencontrariaacoragemnecessáriaparaagir.
Direiclaramente,adiantandoosacontecimentos:édifícilimaginar
bobagemmaiordoqueasuadecisão.Aquiloqueelaqueriaera
inteiramentecontrárioaseusinteresses.ÉprecisoacentuarqueBernardo,
desdequeaconhecerahádoisanos,estavafelizemsuacompanhia,talvez
atémaisfelizdoqueLauraimaginava.Elaeraparaeleumaevasão,um
refúgiolongedavidaqueseupai,oeufônicoBertrandBertrand,preparoulhedesdeainfância.Enfim,podiaviverumaliberdade,comodesejava,ter
umcantosecretoondenenhummembrodesuafamíliavinhaintroduzir
suacabeçacuriosa,umcantoondesuavidacorriaseguindooutroshábitos:
adoravaosmodosboêmiosdeLaura,opianoquedevezemquando
tocava,osconcertosaqueiacomela,seusestadosdeespíritoesuas
excentricidades.Emsuacompanhia,sentia-selongedaspessoasricase
enfadonhasquefrequentavamacasadeseupai.Masafelicidadedeles
tinhaumacondição:deviampermanecersolteiros.Secasassem,tudo
mudariasubitamente:auniãodelesficariaimediatamenteexpostaatodas
asinterferênciasdafamíliadeBernardo;oamordelesperderia,desta
forma,nãoapenasseucharme,mastambémsuaprópriarazãodeser.E
Lauranãopoderiaexercertodopoderqueexerciaatéentãosobre
Bernardo.
Comoelapodiatomarumadecisãotãoestúpida,tãocontráriaaseus
interesses?Conheceriatãopoucooseuamante?Compreenderiatãomal?
É,porestranhoquepareça,elaoconheciamal,enãoocompreendia.
FicavamesmoorgulhosaemnãoseinteressarporBernardo,mas
apenasporseuamor.Nuncaointerrogavasobreseupai.Nãosabianada
sobresuafamília.
Quandoelelhefalavadesimesmo,elasecaceteavaostensivamentee
logomanifestavasuarecusaemdesperdiçarumtempopreciosoque
poderiadedicaraBernardo.Maisestranhoainda:duranteassemanas
sombriasdodiploma,emqueelenãoabriaabocaanãoserpara
desculpar-sedeestarcomproblemas,elasemprerepetia:
—É,osproblemas,seioqueéisso.Massemnuncafazer-lheaseguinte
pergunta,amaissimplesdetodas:
—Queproblemasvocêtem?Objetivamente,oqueestáacontecendo?
Fale,digaoquelhepreocupa!
Écurioso:eraloucaporBernardoe,aomesmotempo,nãose
interessavaporele.Diriaaté:eraloucaporBernardoeporessamesma
razãonãoseinteressavaporele.Selhecensurássemossuafaltade
interesseeaacusássemosdenãoconhecerseuamante,elanãonos
compreenderia.PoisLauranãosabiaoquesignificaconheceralguém.Era
comoumavirgemquetemeficargrávidaaotrocarmuitosbeijoscomseu
amante!HámuitotempopensavaemBernardoquasesemparar.
Imaginavaseucorpo,seurosto,tinhaaimpressãodeestarconstantemente
comele,deestarimpregnadadele.Porissoachavaqueoconheciadecor,
comoninguémoconheceraantes.Osentimentodoamornosenganaa
todosporumailusãodecompreensão.
Depoisdessesesclarecimentos,talvezpossamos,enfim,acreditarque
eladeclarou-lhenasobremesa(paradesculpá-lapoderiaesclarecerque
tinhamtomadoumagarrafadevinhoedoisconhaques,masestoucertode
queelateriaditoamesmacoisaseestivessesóbria):
—Bernardo,casecomigo!
Ogestodeprotestocontraosatentadosaosdireitosdo
homem
Brigitesaiudeseucursodealemãofirmementedecididaanãovoltar
maisali.Porumlado,alínguadeGoetheparecia-lhedestituídadetoda
utilidadeprática(foisuamãequelhetinhaimpostoesseaprendizado),por
outroladosentia-seemprofundodesacordocomoalemão.Essalínguaa
irritavapeloseuilogismo.Destavezadosefoiexcessiva:apreposiçãoohne
(sem)regiaoacusativo,apreposiçãomit(com)regiaodativo.Porquê?Na
verdadeasduaspreposiçõessignificamosaspectosnegativoepositivoda
mesmarelação,demodoquedeveriamgeraramesmadeclinação.Brigite
fizeraessaobservaçãoaseuprofessor,umjovemalemãoqueficou
embaraçadocomessaobjeçãoequesesentiralogoculpado.Essehomem
simpáticoesutilsofriaporpertenceraumpovoquetinhasidogovernado
porHitler.Prontoaculparsuapátriaportodasastaras,concordou
imediatamentequenenhumarazãoválidajustificavaduasdeclinações
diferentescomaspreposiçõesmiteohne.
—Seiquenãoélógico,maséumusoqueficouestabelecidoatravés
dosséculos,disseelecomosequisessedespertarapenadajovem
francesaemrelaçãoaumalínguacondenadapelahistória.
—Estoucontentequevocêreconheçaisso.Nãoélógico.Ora,uma
línguadeveserlógica,disseBrigite.
Ojovemalemãoconcordou:
—Pena;nãotivemosumDescartes.Éumaloucuraimperdoávelde
nossahistória.AAlemanhanãotematradiçãoquevocêstêmderazãoede
clareza,elaécheiadebrumasmetafísicas.AAlemanhaéamúsica
wagneriana,etodossabemosquemeraomaioradmiradordeWagner:
Hitler!
NãoseimportandonemcomHitlernemcomWagner,Brigitecontinuou
seuraciocínio:
—Umacriançapodeaprenderumalínguailógica,porqueumacriança
nãoédotadaderazão.Masumestrangeiroadultonuncapoderáaprendêla.Ameuver,éporissoqueoalemãonãoéumalínguadecomunicação
universal.
—Vocêtemtodarazão,disseoalemão,eacrescentouameiavoz:veja
comoeraabsurdaavontadealemãdedominaromundo.
Satisfeitaconsigomesma,BrigiteentrounocarroefoiparaoFauchon
comprarumagarrafadevinho.Emvãoprocurouumlugarpara
estacionar:filasdecarrosalinhavam-senascalçadas,pára-choques
encostadosempára-choques,numaextensãodeumquilômetro;depoisde
darvoltasdurantequinzeminutos,foiinvadidaporumespantoindignado
comessafaltadevagas:subiunacalçadaedesligouomotor.Depois
dirigiu-seapéparaaloja.Delongepercebeuquealgoestranhoacontecia.
Aproximando-se,compreendeu:Ointerioreavizinhançadacélebreloja,
ondetudocustadezvezesmaiscarodoqueemqualqueroutrolugar,tanto
queaclientelaédepessoasquetêmmaisprazerempagardoqueem
comer,estavamocupadosporumacentenadepessoasmodestamente
vestidas,degrevistas;eraumamanifestaçãocuriosa:nãotinhamvindo
quebrarnada,nemfazerameaças,nemgritarslogans;tinhamvindo
simplesmenteembaraçarosricaçoseestragar-lhesoprazerdobomvinho
edocaviar.Naverdade,tantoosvendedoresquantooscompradores
subitamentesorriamcomtimidezepareciamtãoincapazesdevender
quantodecomprar.
Brigiteabriucaminhoatravésdamultidãoeentrou.Nãotinhaantipatia
pelosgrevistasetambémnãotinhanadacontraasmulheresusando
casacosdepele.Emvozaltapediuumagarrafadebordeaux.Sua
determinaçãosurpreendeuavendedoraefezcomqueesta
compreendessequeosmanifestantes,cujapresençanãoeranada
ameaçadora,nãodeveriamimpedirqueelaservisseajovemfreguesa.
Brigitepagouagarrafaevoltouparaocarro,diantedoqualestavamdois
policiais,canetanamão.
Começouarepreendê-los,eassimqueelesexplicaramqueocarro
estavamalestacionadosobreacalçada,elamostrou-lhesoscarros
estacionadosemfilaunsatrásdosoutros:—Vocêspodemmedizeronde
iriaestacionar?—Disseela.—Sepermitemqueaspessoascomprem
automóveis,deviamgarantir-lhesumlugarondecolocá-los,não?Épreciso
serlógico!
Contoissotudosópeloseguintedetalhe:repreendendoospoliciais,
Brigitelembrou-sedosgrevistasemfrentedalojaesentiuporelesuma
bruscaegrandesimpatia:sentia-seunidaaelesnummesmocombate.Isso
deu-lhecoragemefaloumaisalto;osguardas(tãoembaraçadosquantoas
mulherescomcasacosdepelediantedosgrevistas)podiamapenasrepetir
idiotamente,semamenorconvicção,aspalavras"proibido","nãoé
permitido","disciplina","ordem"eacabaramdeixandoqueelapartisse
semmultá-la.
Duranteessainvestida,Brigiteacompanhousuareclamaçãocom
rápidosecurtosmovimentosdecabeça,levantandoaomesmotempoos
ombroseassobrancelhas.Quando,devoltaacasa,contouoincidentea
seupai,suacabeçafezexatamenteomesmomovimento.Jáencontramos
essegesto:expressaumespantoindignadodiantedaquelesque
pretendemnegarnossosdireitosmaiselementares.Logo,chamemosesse
gesto:ogestodeprotestocontraosatentadosaodireitodohomem.
Anoçãodosdireitosdohomemdatadedoisséculosmassóatingiuo
apogeudesuaglórianasegundametadedosanossetentadenossoséculo.
Nestaépoca,AlexandreSoljenitsynefoibanidodaRússia,suapessoa
extraordinária,debarba,ecomumpardealgemas,hipnotizouos
intelectuaisocidentaisemfaltadegrandesdestinos.Graçasaele,com
cinquentaanosdeatraso,acabaramporreconheceraexistênciade
camposdeconcentraçãonaRússiacomunista;mesmooshomens
avançadosadmitiramsubitamentequeaprisionaraspessoaspeloque
pensavamnãoerajusto.Eparajustificarsuanovaatitude,encontraram
umexcelenteargumento:oscomunistasrussosestavamatentosaos
direitosdohomem,solenementeproclamadospelaprópriaRevolução
Francesa!
Portanto,graçasaSoljenitsyne,aexpressão"direitosdohomem"
reencontrouseulugarnovocabulárioatual;nãoconheçoumpolíticoque
nãoinvoquedezvezespordia"alutapelosdireitosdohomem"ou"os
direitosdohomemdesprezadospornós".MascomonoOcidentenãose
vivesobaameaçadoscamposdeconcentração,comopodemosfalarou
escreverqualquercoisa,àmedidaquealutapelosdireitosdohomem
ganhavapopularidade,perdiatodoconteúdoconcreto,paratornar-se
finalmenteaatitudecomumdetodosarespeitodetudo,umaespéciede
energiatransformandotodososdesejosemdireitos.Omundo
transformou-seemdireitodohomemetudotransformou-seemdireito:o
desejodoamornodireitoaoamor,odesejodorepousonodireitoao
repouso,odesejodaamizadenodireitoàamizade,odesejodedirigir
depressademais,nodireitodedirigirdepressademais,odesejoda
felicidadenodireitoàfelicidade,odesejodepublicarumlivronodireitode
publicarumlivro,odesejodegritarnasruasdenoitenodireitodegritar
nasruasdenoite.Osgrevistastêmodireitodeocuparalojadeluxo,as
mulherescomcasacosdepeletêmodireitodecomprarcaviar,Brigitetem
odireitodeestacionarseucarrosobreacalçada,etodos,grevistas,
mulherescomcasacosdepele,Brigite,pertencemaomesmoexércitode
militantesdosdireitosdohomem.
SentadonumapoltronaemfrentedeBrigite,Paul,comamor,olhava-a
balançaracabeçadaesquerdaparaadireita.Elesabiaqueafilhagostava
deleeissoparaeleeramaisimportantedoqueagradarasuamulher.Pois
osolhoscheiosdeadmiraçãodafilhadavam-lheoqueAgnèsnãopodialhe
dar:aprovadequeelenãoestavaafastadodajuventude,queaindafazia
partedosjovens.
ApenasduashorashaviampassadodesdequeAgnès,comovidacom
suatosse,havia-lheacariciadooscabelos.Aessacaríciahumilhante,como
elepreferiaobalançardecabeçadeBrigite!Apresençadesuafilhaagia
nelecomoumacumuladordeenergia,deondeeletiravasuaforça.
Serabsolutamentemoderno
Ah!EssecaroPaulquequeriaprovocarGrizzlyeirritá-lo,fazendoum
riscosobreaHistória,sobreBeethoven,sobrePicasse.Nomeuespírito
confunde-secomJaromil,opersonagemdeumromancecujaredação
termineiexatamentehávinteanos,umexemplardoqualserádeixado
numbistrôdeMontparaasse,paraserentregueaoprofessorAvenarius.
EstamosemPragaem1948;Jaromil,comaidadededezoitoanos,está
mortalmenteapaixonadopelapoesiamoderna,porDesnos,Éluard,Breton,
VitezslavNezval;aexemplodelescriouparasimesmoumslogancoma
fraseescritaporRimbaudemUmatemporadanoinferno:"éprecisoser
absolutamentemoderno".Ora,oqueemPragarevelou-sederepente
inteiramentemodernofoiarevoluçãosocialista,queimediatae
brutalmentecondenouàmorteaartemodernapelaqualJaromilestava
mortalmenteapaixonado.Então,meuherói,diantedealgunsamigosnão
menosapaixonadospelaartemoderna,renegousarcasticamentetudoque
amava(tudoqueamavarealmenteedetodocoração)paranãotrairo
grandemandamentode"serinteiramentemoderno".Emsuanegação,
colocoutodaraiva,todapaixãodeumadolescentedesejosodeentrarna
vidaadultaporumatobrutal;eseusamigos,aovercomqueobstinação
negavatudoquelheeramaiscaro,tudoaquiloporquetinhavividoe
queriaviver,aovê-lonegarPicassoeDali,BretoneRimbaud,aoverque
osnegavaemnomedeLenineedoExércitoVermelho(quenaquele
momentorepresentavaomáximodamodernidade),seusamigosficaram
comagargantaapertada,primeiroestupefatos,depoisenojadose
finalmentehorrorizados.Oespetáculodesseadolescentequeaderiaàquilo
quesedeclaravamoderno,equeaderianãoporcovardia(parafavorecer
suacarreira)masporcoragem,comoumhomemquesacrificacomdor
aquiloqueama,sim,esseespetáculotinhaalgumacoisadehorrível
(prenunciandoohorrordoterroriminente,ohorrordasprisõesedos
enforcamentos).Talvezalguémtenhadito,então,observando-o:"Jaromilé
oaliadodeseuspróprioscoveiros."
Claro,JaromilePaulnãoseparecemabsolutamente.Seuúnicoponto
emcomuméjustamenteaconvicçãoapaixonadadeque"éprecisoser
absolutamentemoderno"."Absolutamentemoderno"éumanoçãocujo
conteúdoémutáveleinatingível.Em1872,certamenteRimbaudnão
pensavaversobessaspalavrasmilhõesdebustosdeLenineedeStalin;
imaginavaaindamenososfilmespublicitários,asfotoscoloridaseorosto
extasiadodeumcantorderock.Maspoucoimporta,poisser
absolutamentemodernosignifica:nuncaquestionaroconteúdodo
moderno,colocar-seaseuserviçocomoseestáaserviçodoabsoluto,isto
é,semterdúvidas.
AssimcomoJaromil,Paulsabiaqueamodernidadedeamanhãdifere
dadehojeequepeloimperativoeternodomodernoéprecisosabertrair
seuconteúdoprovisório,domesmomodoquepelosloganrimbaudianoé
precisosabertrairosversosdeRimbaud.EmParisde1968,aoadotaruma
terminologiabemmaisradicalaindadoqueJaromilnaPragade1948,os
estudantesrecusaramomundotalqualeleé,omundosuperficialdo
conforto,docomércio,dapublicidade,omundodaestúpidaculturade
massasquerecheiaacabeçadaspessoascommelodramas,omundodas
convenções,omundodopai.Nessaépoca,Paulhaviapassadoalgunsdias
nasbarricadasesuavozecoaratãoresolutamentequantoavozdeJaromil
vinteanosantes;nadapoderiafazê-lorecuar;apoiadonobraçoquelhe
ofereciaarevoltaestudantil,distanciava-sedomundodospais,para
finalmentetornar-se,aostrintaecincoanos,umadulto.
Depoisotempopassou,suafilhacresceuesesentiuavontadeno
mundocomoeleé,nomundodatelevisão,dorock,dapublicidade,da
culturademassasedeseusmelodramas,nomundodoscantores,dos
carros,damoda,dasmerceariasdeluxoedosindustriaiselegantes
elevadosàcategoriadeestrelas.
Capazdedefenderdecididamentesuasposiçõescontraosprofessores,
contraospoliciais,contraosprefeitoseosministros,Paulnãosabia
defender-seabsolutamentedesuafilha,quegostavadesentar-seemseus
joelhosenãoseapressavademodoalgumemdeixaromundodopai,
comoelefizeraoutrora,paraentrarnaidadeadulta.Aocontrário,ela
queriaficaromaiortempopossívelsobomesmotetodeseutolerante
papai,que(quasequeenternecido)permitiaquetodosossábadosela
dormissecomseunamoradoaoladodoquartodospais.
Quesignificaserabsolutamentemodernoquandonãoseémaisjovem
equandosetemumafilhainteiramentediferentedaquiloqueéramosna
suaidade?
Paulencontrouarespostasemdificuldade:nestecaso,ser
absolutamentemodernosignificaidentificar-seinteiramentecomsuafilha.
ImaginoPaul,emcompanhiadeAgnèsoudeBrigite,sentadoàmesado
jantar.Brigite,sentadameiodeladonacadeira,mastigaenquantoolhaa
televisão.Nenhumdostrêsdizumapalavraporqueatelevisãoestáalta.
PaulcontinuapensandonafunestaobservaçãodeGrizzly,queoqualificou
comoaliadodeseuspróprioscoveiros.DepoisarisadadeBrigite
interrompeuocursodeseuspensamentos:natelaestápassandoum
anúncio:umacriançanua,compoucomenosdeumano,selevantadeseu
penicoarrastandoatrásdelaorolodepapelhigiênicocujabrancurase
estendecomoacaudamajestosadeumvestidodenoiva.Ora,PaullembrasedeterconstatadorecentementequeBrigitejamaisleraumpoemade
Rimbaud.Considerandoaquepontoelemesmo,naidadedeBrigite,amara
Rimbaud,comrazãoelepoderiajulgá-lacomoseuprópriocoveiro.
Sentecertamelancoliaquandoouvearisadaabertadesuafilha,que
ignoraograndepoetaesedeleitacominépciastelevisionadas.Depois
perguntaasimesmo:narealidade,porqueeleamoutantoRimbaud?
Comochegouaesseamor?Foienfeitiçadoporseuspoemas?Não.Naquela
épocaRimbaudconfundia-seemseuespíritocomTrotsky,comBreton,
comMao,comCastro,paraformarumaúnicaamálgamarevolucionária.O
queeleconheceuprimeirodeRimbaudfoiosloganrepisadoportodo
mundo:mudaravida.(Comose,paraformulartalbanalidade,
precisássemosdeumpoetagenial...)Semdúvida,Pauldepoisleuosversos
deRimbaud;sabiaalgunsdecoreamava-os.Masnuncaleutodosos
poemas:sótinhagostadodaquelesquetinhamsidomencionadosporsua
turma,queporsuavezosmencionaragraçasàrecomendaçãodeoutra
turma.
Portanto,Rimbaudnãofoiseuamorestéticoeépossívelqueelenunca
tenhaconhecidoumamorestético.Enrolou-senabandeiradeRimbaud
comonosenrolamossobumabandeira,comoaderimosaumpartido
político,comosetorceporumclubedefutebol.Naverdade,oquelhe
tinhamacrescentadoosversosdeRimbaud?Nadamaisdoqueoorgulho
deserumdosqueamavamosversosdeRimbaud.
PaulvoltavasempreàsuarecenteconversacomGrizzly:é,ele
exagerava,deixava-selevarpelosparadoxos,provocavaGrizzlyetodosos
outros,masafinaldecontasnãodiziaaverdade?AquiloqueGrizzlychama
comtodorespeito"acultura"nãoénossaquimera,algodebeloede
precioso,claro,masquenosimportamuitomenosdoqueousamos
admitir?
Algunsdiasantes,PauldesenvolveracomBrigite,esforçando-sepor
retomarosmesmostermos,asreflexõesquetrocaracomGrizzly.Queria
conhecerasreaçõesdesuafilha.Nãoapenaselanãoseescandalizoupelas
fórmulasprovocantes,masdispôs-seairmuitoalém.Eraissoquecontava
paraPaul.Poisestavacadavezmaisligadoàsuafilhae,háalgunsanos
perguntavasuaopiniãosobretodososproblemasqueenfrentava.Talvez,
aprincípio,otenhafeitoporumapreocupaçãopedagógica,paraforçá-laa
seinteressarporcoisassérias,maspoucodepoisospapéisseinverteram
sub-repticiamente:nãopareciamaisumprofessorestimulandocomsuas
perguntasumalunotímido,massimumhomempoucosegurodesique
consultaumavidente.
Nãoseexigedeumavidentequepossuaumagrandesabedoria(Paul
nãotinhailusõessobreostalentoseosconhecimentosdesuafilha),mas
queelaestejaligadaporfiosinvisíveisaumreservatóriodesabedoria
independentedela.
QuandoBrigiteexpunhasuasopiniões,nãoasatribuíaàoriginalidade
pessoaldesuafilha,masàgrandesabedoriacoletivadosjovens,quese
expressavaporsuaboca;assimaescutavacomumaconfiançasempre
crescente.
Agnèslevantara-sedamesaejuntavaospratosparalevá-losàcozinha,
Brigitetinhaviradosuacadeiraparaafrentedatelevisão,ePaul
continuavanamesasozinho.Pensavanumjogodesalãoqueseuspais
jogavam.Dezpessoasrodamemtornodedezcadeiras,ecomumsinal
todasdevemsesentar.Cadacadeiratrazumainscrição.Sobreaquelhe
cabepodemosler:Brilhantealiadodeseuscoveiros.Elesabequeojogo
terminouequevaificarsentadoparasemprenessacadeira.
Oquefazer?Nada.Aliás,porqueumhomemnãoseriaaliadodeseus
coveiros?Deverialutarcomelesaossocos?Paraquecuspissemnoseu
caixão?
MaisumavezouviuorisodeBrigiteeumaoutradefiniçãologolheveio
aoespírito,maisparadoxalemaisradical.Agradou-lheapontodefazê-lo
esquecersuatristeza.Eisessadefinição:serabsolutamentemodernoéser
aliadodeseuspróprioscoveiros.
Servitimadesuaglória
DizeraBernardo"casecomigo!"era,emqualquercircunstância,um
erro;dizê-lodepoisdeletersidopromovidoaburrototal,eraumerrotão
grandequantoaalturadoMont-Blanc.Poiséprecisolevaremcontauma
circunstânciaque,àprimeiravista,podeparecerinteiramenteimprovável,
mascujalembrançaénecessáriasequisermoscompreenderBernardo:
comexceçãodeumarubéolaemcriança,elenuncatinhaficadodoente,a
únicamortequeviradepertoforaadogalgodeseupaiealémdealgumas
másnotasnosexames,nãotinhaconhecidoofracasso;tinhavividona
certezadeser,pornatureza,destinadoàfelicidadeesimpáticoatodo
mundo.Suapromoçãoàcategoriadeburrofoioprimeirogolpedodestino
queoatingiu.
Aconteceu,então,umaestranhacoincidência.Osimagólogos,namesma
época,lançaramumavastacampanhapublicitáriapelaestaçãoderádiode
Bernardo,detalmodoqueafotografiacoloridadaequipederedação
espalhou-sesobregrandescartazescoladosportodapartenaFrança:
estavamtodossobumfundodecéuazul,comcamisabranca,mangas
arregaçadasebocaaberta:estavamrindo.AopassearporParis,Bernardo,
primeiro,sentiu-seinebriadodeorgulho.Mas,nofimdeumasemanaou
duasdeglóriaimaculada,oogroventripotenteveioentregar-lhe,sorrindo,
umtubodecartolina.Seissotivesseacontecidoantes,quandooretrato
gigantenãoseoferecesseaomundointeiro,Bernardotalveztivesse
suportadomelhorochoque.Masaglóriadafotoveiodaràvergonhado
diplomaumaespéciederessonância;elaaamplificou.
LernoLeMondequeumdesconhecido,umcertoBernardoBertrand,
foipromovidoaburrototaléumacoisa,outraésaberdapromoçãodeum
homemcujafotografiaseespalhasobretodososmuros.Aglória
acrescentaatudoquenosaconteceumecocemvezesmaior.Nãoénada
agradávelpassearpelomundocarregandoatrásdesiumeco.Derepente
Bernardocompreendeusuavulnerabilidaderecenteepensouqueaglória
era,exatamente,oqueelejamaisambicionara.Éevidente,elesempre
desejouosucesso,masosucessoeaglóriasãocoisasdiferentes.Aglória
significaqueumdeterminadonúmerodepessoasoconhecemsemque
vocêosconheça;elesachamque,noqueconcerneàsuapessoatudoé
permitido,queremsabertudosobrevocê,ecomportam-secomosevocê
fossepropriedadedeles.Atores,cantores,políticossentemumaespéciede
volúpiaoferecendo-sedessamaneiraaosoutros.Masessavolúpia,
Bernardonãoadesejava.Recentemente,entrevistandoumatorcujofilho
estiverametidonumcasoescabroso,deleitou-sevendocomoaglóriadesse
homemtornara-seseucalcanhar-de-aquiles,seupontofraco,suatara,a
cabeleiraporondeagarrá-lo,sacudi-losemsoltá-lomais.Bernardoqueria
seraquelequefaziaasperguntas,enãoaquelequeéobrigadoa
responder.Ora,aglóriapertenceaoqueresponde,nãoaoqueinterroga.O
homemquerespondeéiluminadopelosrefletores.Ohomemquepergunta
éfilmadodecostas.ÉNixonenãoWoodwardqueapareceemplenaluz.
Bernardonãodesejaaglóriadaqueleparaquemsãodirigidosos
refletores,masopoderdaquelequeficanapenumbra.Desejaaforçade
umcaçadorquemataumtigre,nãoaglóriadotigreadmiradoporaqueles
queseservirãodelecomotapete.
Porémaglórianãopertencesóàspessoascélebres.Cadapessoa
conheceaomenosumavezsuapequenaglóriaeaomenosporum
momentosenteomesmoqueGretaGarbo,Nixonouumtigreesfolado.A
bocaabertadeBernardoriaemtodasasparedesdacidadeeelesentia-se
amarradonopelourinho:todomundoovia,oexaminava,ojulgava.Quando
Lauralhediz:"Bernardocasecomigo!",eleaimaginaaseuladono
pelourinho.Subitamente(issonuncaaconteceraantes),elapareceu-lhe
velha,desagradavelmenteextravaganteeligeiramenteridícula.
Tudoissoeraaindamaisidiotaporquenuncaprecisaradelacomo
agora.
Oamormaissaudávelaindaeraparaeleoamordeumamulhermais
velha,comacondiçãodequeesseamorsetornasseaindamaissecretoe
queessamulhermostrasseaindamaissabedoriaediscrição.Seemvezde
estupidamenteter-lhepedidoparacasar,Laurativessedecididofazer
desseamorumluxuosocasteloafastadodavidapública,elanãoprecisaria
termedodeperderBernardo.Masvendoafotogiganteemcadacantode
rua,Laurarelacionouissocomanovaatitudedeseuamante,comseus
silêncios,comseuardistraído,econcluiusemhesitaçãoqueosucesso
colocaraemseucaminhoumaoutramulherqueocupavatodosseus
pensamentos.ComoLauranãoqueriaentregar-sesemlutar,passouao
ataque.
VocêcompreendeagoraporqueBernardorecuou.Quandoumataca,o
outrorecua,éaregra.Esserecuo,comotodossabem,éamanobrade
guerramaisdifícil.Bernardoexecutou-acomaprecisãodeum
matemático:enquantorecentementepassavaquatronoitesporsemanaem
casadeLaura,limitou-seaduas;quandoantessaíacomelatodososfins
desemana,passouaconsagrar-lhesomenteumdomingoemcadadoise
preparou-separanovasrestrições.Faziaomesmoqueopilotodeuma
naveespacialque,reentrandonaatmosfera,precisafrearbruscamente.
Assimsendo,freava,comprudênciaedeterminação,enquantosua
graciosaematernalamantedesapareciasobseuolhar.Emseulugar
estavaumamulherbriguenta,desprovidatantodesabedoriaquantode
maturidadeedesagradavelmenteativa.
UmdiaGrizzlylhedisse:—Conhecisuanoiva.
Bernardoficouvermelhodevergonha.Grizzlycontinuou:—Elafalou-
medeumabrigadevocês.Éumamulhersimpática.Sejagentilcomela.
Bernardoficoubrancoderaiva.SabendoqueGrizzlydavacomalíngua
nosdentes,tinhacertezadequetodaaemissoraagorasabiaonomede
suaamante.Umaligaçãocomumamulhermaisvelhaparecera-lheaté
entãoumaencantadoraperversão,quaseumaaudácia;masnomomento
compreendiaqueseuscolegasnãoveriamnissosenãoaconfirmaçãode
suaburrice.
—Porquevocêfoiqueixar-seaestranhos?
—Aestranhos?Doquevocêestáfalando?
—DeGrizzly.
—Penseiquefosseseuamigo!
—Mesmosendomeuamigo,paraquecontaraelenossavidaíntima?
Elarespondeutristemente:—Nãoescondomeuamorporvocê.É
precisoqueeumecale?Seráquevocêtemvergonhademim?
Bernardonãorespondeunada.Sim,tinhavergonhadela.Tinha
vergonhadela,mesmosendofelizemsuacompanhia.Massóerafelizem
suacompanhianosmomentosemqueesqueciaquetinhavergonhadela.
ALUTA
Abordodanavecósmicadoamor,Laurasuportavamuitomala
desaceleração.
—Oqueéquevocêtem?Porfavor,meexplique.
—Nada.Nãotenhonada.
—Vocêmudou.
—Precisoficarsozinho.
—Aconteceualgumacoisa?
—Estoupreocupado.
—Seestápreocupado,éumarazãoamaisparanãoficarsozinho.
Quandotemosproblemaséqueprecisamosdosoutros.
Umasexta-feira,elefoiparasuacasadecamposemconvidá-la.No
entanto,nosábadoeladesembarcounacasadele.Sabiaquenãodeveria
agirassim,mashámuitotempotinhaohábitodefazeroquenãodeviae
ficavaatéorgulhosadisso,poiseraporissoqueoshomensaadmiravame
Bernardomaisdoquequalqueroutro.Asvezes,nomeiodeumconcerto
oudeumespetáculoqueadesagradava,levantava-seemsinaldeprotesto
eiaemboraostensivamenteecombastanteruído,sobosolhares
reprovadoresdosvizinhosestarrecidos.Umdia,Bernardopediuàfilhado
porteiroparaentregaraLaura,emsualoja,umacartaqueelaesperava
comimpaciência;transportadapelaalegria,apanhounumaprateleiraum
gorrodepele,quecustavapelomenosdoismilfrancos,edeu-oaessa
adolescentededezesseisanos.Umaoutravezfoipassardoisdiascom
Bernardoabeira-mar,numacasaalugada;parapuni-lodealgumacoisa
quejánãolembromais,passouatardetodabrincandocomummeninode
dozeanos,filhodeumpescadorvizinhodeles,comoseatétivesse
esquecidodaexistênciadoamante.OespantosoéqueBernardomesmo
sentindo-semagoado,acabouvendonocomportamentodelaumasedutora
espontaneidade(poressegaroto,quaseesqueciomundointeiro!)aliadaa
umafeminilidadedesconcertante(elanãoficaramaternalmente
enternecidaporumacriança?),etodaaraivadesapareceunodiaseguinte,
quandoelaesqueceuofilhodopescadorparaocupar-sedele.Soboolhar
apaixonadoeadmirativodeBernardo,suasideiascaprichosas
desabrochavamcomexuberância,pode-sedizerquefloresciamcomo
rosas;seusatosincongruentes,suaspalavrasirrefletidasapareciamem
Lauracomoamarcadesuaoriginalidade,comoagraçadeseueu,eela
ficavacontente.
QuandoBernardocomeçoualheescapar,suaextravagâncianão
desapareceumaslogoperdeuseucaráteralegreenatural.Nodiaemque
decidiuiràcasadelesemserconvidada,elasabiaquedessavezissonão
provocarianenhumaadmiraçãoeentroucomumaansiedadequefezcom
queoatrevimentodoseucomportamentohápoucoinocente,eaté
encantador,setornasseagressivoecrispado.Elapercebiaissoenão
perdoavaBernardodeprivá-ladoprazerqueaindarecentementesentia
emserelamesma,prazerquesubitamenterevelou-sefrágil,semraízese
inteiramentedependentedeBernardo,deseuamoredesuaadmiração.
Masissosóincentivou-aaindamaisaagircomexcentricidade,insensatez,
eaestimularsuamaldade;queriaprovocarumaexplosão,comavagae
secretaesperançadequedepoisdatempestadeasnuvenssedissipariam
equetudovoltariaasercomoantes.
—Aquiestou,disseelarindo,esperoqueissolhedeixecontente.
—Sim,issomedeixacontente.Masestouaquiparatrabalhar.
—Nãovouatrapalharseutrabalho.Nãolhepeçonada.Sóqueroestar
comvocê.Algumavezjáatrapalheiseutrabalho?
Elenãorespondeu.
—Afinaldecontas,jáfuiparaforacomvocêmuitasvezesquandovocê
tinhaqueprepararseusprogramas.Jálheatrapalheialgumavez?
Elenãorespondeu.
—Atrapalheivocê?
Nãotinhajeito.Tinhaqueresponder:—Não,vocênuncame
atrapalhou.
—Eporqueatrapalhoagora?
—Vocênãomeatrapalha.
—Nãominta!Tratedesecomportarcomohomemetenhaaomenosa
coragemdemedizerqueeuoaborreçoterrivelmente,chegandosemser
convidada.Detestooscovardes.Preferiaquevocêmemandassedarofora.
Digaisso!
Semgraça,elelevantouosombros.
—Porquevocêécovarde?
Novamenteelelevantouosombros.
—Nãolevanteosombros!
Tevevontadedelevantá-lospelaterceiravez,masnãoofez.
—Oqueéquevocêtem?Porfavor,explique.
—Nãotenhonada.
—Vocêmudou.
—Laura!Tenhopreocupações!—Dizele,levantandoavoz.
—Eutambémtenhopreocupações!—Respondeela,levantando
tambémavoz.
Elesabiaquesecomportavacomoumidiota,comoumgaroto
repreendidoporsuamamãe,eadetestava.Quedeviafazer?Sabiaser
gentilcomasmulheres,divertido,talvezatésedutor,masnãosabia
destratá-las,ninguémlheensinaraisso,aocontrário,todosmeteramna
suacabeçaquecomelasnuncasepodiasermau.Comodevesecomportar
umhomemcomumamulherquecheganacasadelesemserconvidada?
Qualauniversidadeondepodemosaprenderessetipodecoisa?
Desistindoderesponder-lhe,passouparaasalaaolado,deitounosofá
eapanhouumlivroqualquer.Eraumromancepolicialemediçãodebolso.
Deitadodecostas,seguravaolivroabertoemcimadopeito;fingiaque
lia.
Passadoumminuto,elaentrouesentou-seemfrentedele.Depois,
olhandoafotografiacoloridaqueenfeitavaacapadolivro,perguntou:
—Comovocêpodelerumacoisadessas?Surpreso,virouacabeça
paraela.
—Essacapa!—DizLaura.
Elecontinuavasemcompreender.
—Comovocêpodeficarolhandoparaumacapadetãomaugosto?Se
vocêinsisteemleresselivronaminhapresença,faça-meofavorde
arrancaracapa.
Bernardonãorespondeunada,arrancouacapa,entregou-lhee
continuoualer.
Lauratinhavontadedegritar.Eladeviaselevantar,pensou,irembora
enuncamaistornaravê-lo.Ouentão,deviaafastarolivroalguns
centímetrosecuspir-lhenacara.Masnãotevecoragemdefazernemuma
coisanemoutra.
Preferiujogar-sesobreele(olivrocaiunotapete)e,cobrindo-ode
beijosfuriosos,deslizouasmãossobreseucorpotodo.
Bernardonãosentiaamenorvontadedefazeramor.Masseousou
recusaradiscussão,nãosabiarecusaraoapeloerótico.Noquealiásse
pareciacomtodososhomensdetodasasépocas.Quehomemousaria
dizer:"Tireaspatas!"aumamulherqueamorosamenteescorregaamão
entresuaspernas?EisaícomoomesmoBernardoquecomsoberano
desprezoacabaradearrancaracapadeumlivroparaentregá-laàamante
humilhada,reagiusubitamenteaseutoqueebeijou-adesabotoandoa
calça.
Maselatambémnãotinhavontadedefazeramor.Oquea
impulsionaraemdireçãoaeleforaodesesperodenãosaberoquefazer,e
anecessidadedefazerqualquercoisa.Suascaríciasimpacientese
apaixonadasexpressavamodesejocegodeumaação,odesejomudode
umapalavra.Quandocomeçaramaseamar,elaesforçou-seemfazeressa
uniãomaisselvagemdoquenunca,tãograndiosacomoumincêndio.Mas
comofazê-loduranteumcoitosilencioso(poissempreseamavamem
silêncio,anãoseralgumaspalavraslíricasmurmuradasquasesem
fôlego)?Sim,comofazê-lo?Commovimentosrápidosevigorosos?
Aumentandootomdossuspiros?Mudandoposições?Comonão
conhecesseoutrosmeios,utilizouessestrês.Principalmente,epor
iniciativaprópria,mudavadeposiçãoatodomomento:oraficavade
quatro,orasentava-seacocoradasobreele,orainventavaposições
radicalmentenovaseextremamentedifíceis,queelesjamaishaviam
tentado.
Bernardointerpretouessaperformancefísicacomoimprevista,como
umdesafioqueelenãopodiadeixarderessaltar.Voltouàsuaantiga
ansiedadedejovemquetemiapoderemsubestimarseutalentoesua
maturidadeerótica.EssaansiedadedevolviaaLauraopoderqueelahavia
perdidoháalgumtempoesobreoqualorelacionamentodelesfora
outrorafundamentado:opoderdeumamulhermaisvelhaqueseu
parceiro.NovamenteteveadesagradávelimpressãodequeLauraera
maisexperiente,quesabiaoqueelenãosabia,quepodiacompará-loaos
outrosejulgá-lo.Assim,elecaprichavaemefetuarosmovimentos
requisitadose,aomenorsinaldeLaurademonstrandoquequeriaficarde
outrojeito,reagiacomdocilidadeeprontamentecomoumsoldadoem
exercício.Essaginásticaamorosaexigiatantaaplicaçãoqueelenãotinha
nemmesmotempoparaseperguntarseestavaexcitadoounão,nemse
sentiaalgumacoisaquepudessesechamarvolúpia.
Elanãosepreocupavamaisnemcomoprazernemcomaexcitação.
Nãovoulhelargar,diziaparasimesma,nãovoumedeixarrejeitar,lutarei
paraficarcomvocê.Seusexo,então,movendo-separacimaeparabaixo,
transformou-seemumamáquinadeguerraqueelamovimentavaedirigia.
Essaarmaeraaúltima,pensavaela,aúnicaquelherestava,maseratodopoderosa.Aoritmodeseusmovimentos,elarepetiaparasimesma,como
umostinatodevioloncelonumtrechodemúsica:eulutarei,eulutarei,eu
lutarei,eelaacreditavanasuavitória.
Bastaabrirumdicionário.Lutarsignificaoporasuavontadeàvontade
dooutro,afimdemachucá-lo,botá-lodejoelhos,eventualmentematá-lo.
"Avidaéumaluta",eisumaexpressãoque,pronunciadapelaprimeira
vez,deveserproferidacomumsuspiromelancólicoeresignado.Nosso
séculodeotimismoedemassacresconseguiutransformaressahorrível
fraseemumaalegrecantilena.
Talvezvocêdigaque,seàsvezeséhorrívellutarcontraalguém,lutar
poralgumacoisaénobreebelo.Semdúvida,ébelotrabalharafavorda
felicidade(doamor,dajustiça,etc),massevocêgostadedesignaresse
esforçopelapalavraluta,estáimplícitonessenobreesforçoosecreto
desejodederrubaralguémporterra.Alutapornãopodeserdissociada
dalutacontrae,durantealuta,oslutadoressempreesquecema
preposiçãoporembenefíciodapreposiçãocontra.
OsexodeLauramovia-sepossantementeparacimaeparabaixo.
Lauralutava.Elaamavaelutava.LutavaporBernardo.Mascontraquem?
Contraaquelequeabraçava,edepoisafastavaparaobrigá-loamudarde
posição.Essaperformanceexaustivasobreosofáesobreotapetequeos
faziatranspirarequeosdeixavasemarpareciaapantomimadeumaluta
implacável:elaatacavaeelesedefendia,eladavaasordenseeleobedecia.
OprofessorAvenarius
OprofessorAvenariusdesciaaAvenidadoMaine,contornouaGare
Montparnasseedecidiu,comonãoestavacompressa,atravessaras
GaleriesLafayette.Nodepartamentodesenhoras,viu-senomeiodos
manequins,vestidosnaúltimamoda,queoobservavamdetodososlados.
Avenariusgostavadessacompanhia.Sentiaumaatraçãoespecialporessas
mulheresqueseimobilizavamnumaloucagesticulaçãoecujaboca
escancaradaexpressavanãooriso(oslábiosnãoestavamabertos)maso
espanto.NaimaginaçãodoprofessorAvenarius,todasessasmulheres
petrificadasacabavamdeperceberasoberbaereçãodeseumembro,que
nãoeraapenasgigantesco,masdistinguia-sedospêniscomunspela
cabeçadediabocomchifresquelheenfeitavamaextremidade.Aolado
daquelasquedemonstravamumespantocheiodeadmiração,outras
arredondavamseuslábiosvermelhoscomoeudegalinha,entreosquais
umalínguapoderiaapareceraqualquermomentoparaconvidar
Avenariusparaumbeijosensual.Edepoishaviaumaterceiracategoriade
mulheres,aquelascujoslábiosdesenhavamumsorrisosonhador.Seus
olhossemicerradosnãodeixavamamenordúvida:acabavamdesaborear
longaesilenciosamenteavolúpiadocoito.
Aesplêndidasexualidadedessesmanequins,cujoaspectoparecia
irradiadoporumafontedeenergianuclear,nãoencontravaecoem
ninguém:aspessoascirculavamentreasmercadorias,cansadas,abatidas,
apáticas,rabugentas,ecompletamenteindiferentesaosexo;sóoprofessor
Avenariusficavacontentequandopassavaporali,convencidodeestar
comandandoumagigantescasuruba.
Pena,ascoisasmaisbelasacabam:oprofessorAvenariussaiuda
grandeloja,eparaevitarofluxodecarrosnaavenida,dirigiu-separaa
escadaquelevavaaossubterrâneosdometrô.Familiarizadocomolugar,
nãoficousurpresocomoespetáculo.Nocorredorinstalava-sesemprea
mesmaequipe.Doismendigoscurtiamsuaressaca,semlargaragarrafa
devinho;umdelesàsvezesinterpelavaostranseuntesparapedircom
indolência,exibindoumsorrisotocante,umacontribuiçãoparaumanova
garrafa.Umrapazsentadonochão,encostadonaparede,escondiaorosto
entreasmãos;diantedeleumainscriçãoagizdiziaqueacabavadesairda
prisão,nãoconseguiaencontrarempregoetinhafome.Finalmente,depé
pertodaparede(emfrenteaohomemquesaíradaprisão),estavaum
músicocansado;aseuspésestavamcolocadosdeumladoumchapéucom
algumasmoedasnofundo;dooutrolado,umtrompete.
Alinãohavianadadeanormal,apenasumdetalheforadocomum
chamouaatençãodoprofessorAvenarius.Exatamenteameiocaminho
entreohomemsaídodaprisãoeosdoismendigosbêbados,nãopertoda
parede,masnomeiodocorredor,estavaumamulhermaisparabonita,
quenãopassavadosquarentaanos;seguravanamãoumalatavermelha
depediresmolas,queestendiaaostranseuntescomumsorrisoradiante
defeminilidade;nalata,podia-selerumainscrição:ajudeosleprosos.Pela
elegânciadesuasroupas,contrastavacomoambiente,eseuentusiasmo
clareavacomoumalanternaapenumbradocorredor.
Eraevidentequesuapresençaaborreciaosmendigos,habituadosa
passaraliseudiadetrabalho,eotrompetecolocadoaospésdomúsico
expressavacomeloquênciaacapitulaçãodiantedeumaconcorrência
desleal.
Cadavezqueamulhercaptavaumolhar,articulavacomnitidez,mas
comvozquaseinaudívelparaforçarostranseuntesaleremseuslábios:
"Osleprosos!"
OprofessorAvenariustambémapressava-separadecifraressas
palavrasemsuaboca,masamulheraovê-lopronunciousóo"le"edeixou
o"prosos"emsuspenso,porqueoreconheceu.Avenarius,porsuavez,a
reconheceusempoderentendersuapresençanesselugar.Subiuaescada
correndoesaiudooutroladodaavenida.
Alichegandocompreendeuquetomaraemvãooscorredores
subterrâneospoisocaminhoestavabloqueado:doLaCoupoleàRuede
Rennesumamultidãodemanifestantesavançavasobretodaalargurada
calçada.Comotodostinhamorostoescuro,oprofessorAvenariusachou
queeraumprotestodeárabescontraoracismo.Semdarimportânciaa
eles,percorreualgumasdezenasdemetroseempurrouaportadeum
bistrô;odonolhedisse:—OsenhorKunderaestáatrasado.Aquiestáo
livroqueeledeixouparadistraí-loenquantoesperaeentregou-lhemeu
livroAvidaestáemoutrolugar,naediçãobarataquesechamaFólio.
OprofessorAvenariuscolocouolivronobolsosemlhedaramenor
atençãoporquenesseprecisomomentoamulherdalatavermelhavoltouà
suacabeçaedesejourevê-la.
—Voltodaquiapouco,disseelesaindo.
Pelasinscriçõesnasbandeirolas,acaboucompreendendoquenão
eramárabesquedesfilavam,masturcos,equenãoprotestavamcontrao
racismofrancês,mascontraabulgarizaçãodeumaminoriaturcana
Bulgária.Osmanifestanteslevantavamopunhocomumgestoumtanto
cansado,porqueaindiferençasemlimitesdosparisiensesperambulando
pelascalçadaslevara-osàbeiradodesespero.Masquandoviramoventre
magníficoeameaçadordeumhomemqueandavanacalçadanamesma
direçãoequelevantavaopunhoegritavacomeles:
—Abaixoosrussos!—Abaixoosbúlgaros!Sentiram-se
poderosamenterevigoradoseosslogansressoaramaindamaisaltona
avenida.
Naentradadometrô,pertodaescadaquesubiraalgunsminutosantes,
Avenariusviuduasfeiosasocupadasemdistribuirfolhetos.Parasaber
maissobrealutaantibúlgara,perguntouaumadelas:—Asenhoraé
turca?
—Deusmelivre!Respondeuamulhercomoseeleativesseacusado
dealgumacoisaabominável.
—Nãotemosnadacomessamanifestação!Estamosaquiparalutar
contraoracismo!
Avenariuspegouumfolhetodecadaumaesubitamentedeparou-se
comosorrisodeumrapazdisplicentementeapoiadonagradedometrô.
Eletambémestendiaumfolheto,comaralegrementeprovocador.
—Écontraoquê?—PerguntouoprofessorAvenarius?
—Pelaliberdadedopovokanak.
PortantooprofessorAvenariusdesceuparaosubsolocomtrês
folhetos;desdeaentradaconstatouqueaatmosferadascatacumbastinha
mudado;ocansaçoeotédiotinhamdesaparecido,estavaacontecendo
algumacoisa:Avenariusouviuosomalegredotrompete,aplausos,risos.
Depoisviuacenatoda:amulherdalatavermelhacontinuavalá,mas
cercadapelosdoismendigos:oprimeiroseguravasuamãoesquerdaque
estavalivre,osegundoseguravaligeiramenteobraçoqueseguravaalata.
Oqueseguravaamãodavapequenospassosdedança,trêsparafrente,
trêsparatrás.Oqueseguravaocotovelo,estendiaparaostranseunteso
chapéudomúsico,gritando:"Paraosleprosos!ParaaÁfrica!"eomúsico
aoladodelesopravaotrompete,sopravaatéperderofôlego,soprava
comonunca;umajuntamentoseformava,aspessoasriamdivertidas,
jogandomoedasnofundodochapéu,atémesmonotas,enquantoos
mendigosagradeciam:"Ah,comoaFrançaégenerosa!Obrigada!Obrigada
pelosleprososquesemaFrançamorreriamcomopobresanimais!Ah,
comoaFrançaégenerosa!"
Amulhernãosabiaoquefazer;oratentavaafastar-se,oraosaplausos
aestimulavamadarpequenospassosdedançaparafrenteeparatrás.
Chegouomomentoemqueomendigoquisrodaremdireçãoaela,para
dançarcorpoacorpo.Sentiuumfortecheirodeálcooledefendeu-se
desajeitadamente,omedoeaangústiaestampadosnorosto.
Ohomemquesaíradaprisãolevantou-sederepenteecomeçoua
gesticular,comoparaavisarosmendigosdeumperigoiminente.Doistiras
seaproximavam.Aoavistá-los,oprofessorAvenariustambémentrouna
dança:deixavaseuventreenormeoscilardaesquerdaparaadireita,
lançavaosbraçosparafrente,umaum,semidobrados,sorriaparaos
ladoseespalhavaemtornodesiumaindizívelatmosferade
despreocupaçãoedepaz.Quandoostiraschegarampertodeles,dirigiu
umsorrisodeconivênciaàmulherdalatavermelhaecomeçouabateras
mãosnoritmodotrompeteedeseuspassos.Comoolharmorno,ostiras
viraram-separaeleecontinuaramsuaronda.
Encantadocomumtalsucesso,Avenariusredobrouoempenhoecom
umalevezaimprevisívelgirounolugar,inclinou-separafrenteeparatrás,
jogavaapernaparaoaltoimitandocomasmãosogestodeumadançarina
decancã.
Issologodeuumaideiaaumdosmendigosqueseguravaamulher
pelocotovelo,abaixou-seelevantouabarradesuasaia.Elaquisse
defendermasnãoconseguiaafastaroolhardohomembarrigudoquea
olhavacomumsorrisoencorajador;quandoelatentoudevolver-lheo
sorriso,omendigolevantouasaiaatéacintura,mostrandosuaspernas
nuaseacalcinhaverde(combinandomuitobemcomasaiarosa).
Novamenteelatentoudefender-se,masestavareduzidaàimpotência:em
umadasmãosseguravaalatavermelha(sebemqueninguémtivesse
colocadoalinemumtostão,elaaseguravafirmementecomosesuahonra,
osentidodesuavida,suaalmatalvez,estivessemencerradosalidentro),a
outramãoestavaimobilizadapelomendigo.Setivessemlheamarradoos
braçosparaestuprá-la,suasituaçãonãoseriapior.Omendigolevantavaa
saiabemalto,gritando:"Pelosleprosos!PelaÁfrica!",elágrimasde
humilhaçãocorriampeloseurosto.Noentanto,recusando-seaparecer
humilhada(umahumilhaçãoconfessadaéumahumilhaçãoemdobro),
esforçou-seemsorrircomosetudoestivesseacontecendocomoseu
consentimentoenointeressedaÁfrica;chegouatéajogarparaoaltouma
perna,bonitaapesardeumpoucocurta.
Umterrívelmaucheiroatingiuentãosuasnarinas:ohálitodomendigo
fediatantoquantosuasroupasque,usadasdiaenoiteduranteanos,
acabaramincrustando-senasuapele(seelefossevítimadeumacidente,
todaumaequipecirurgiateriaquerasparseustraposduranteumahora
antesdecolocá-lonumamesadeoperação);elanãoaguentavamais,num
últimoesforçoconseguiulivrar-sedoseuabraço,e,apertandoalatacontra
opeito,correuparaoprofessorAvenarius.Eleabriuosbraçoseabraçoua.Apertadacontraele,tremiaesoluçava.Eleacalmou-arapidamente,
tomou-apelamão,elevou-aparaforadometrô.
Ocorpo
—Laura,vocêestáemagrecendo,Agnèsdissecomarpreocupado
quandoalmoçavacomsuairmãnumrestaurante.
—Estouperdendooapetite.Vomitotudo,respondeuLauratomando
umgoledaáguamineralqueelapediraemvezdovinhohabitual.Éforte
demais,acrescentouela.
—Aáguamineral?
—Éprecisoqueeujunteumpoucodeáguacomum.
—Laura!...Agnèstevevontadedeprotestar,mascontentou-seem
dizer:Nãoseatormenteassim.
—Estátudoperdido,Agnès.
—Masoquemudouentrevocês?
—Tudo.Noentanto,fazemosamorcomonuncaantes.Comodois
loucos.
—Entãooquemudou,sevocêsfazemamorcomodoisloucos?
—Sãoosúnicosmomentosquandotenhocertezaqueeleestácomigo.
Quandoparamosdefazeramor,seuspensamentosvoamparalonge.
Poderíamosfazeramorcemvezesmais,seriainútil.Porquefazeramornão
representagrandecoisa.Nãoéissoqueimporta.Oimportanteéqueele
penseemmim.Tivemuitoshomensemminhavida,nenhumsabemais
nadasobremim,eunãoseimaisnadasobreelesemepergunto:porque
viviseninguémvaiguardaromenortraçodemim?Querestarádaminha
vida?Nada,Agnès,nada!Masestesdoisúltimosanosfiqueirealmentefeliz
quandosoubequeBernardopensavaemmim,queeumoravanacabeça
dele,quevivianele.Porqueaverdadeiravidaparamiméisso:Vivernos
pensamentosdooutro.Semisso,souumamorta,apesardeviva.
—Masquandovocêestásozinhaemcasaouvindodiscos,seuMahler
nãolhedáumaespéciedepequenafelicidadeelementar,pelaqualvalea
penaviver?
Issonãolhebasta?
—Agnès,vocêestádizendobobagensesabedisso.Mahlernão
representanadaparamim,absolutamentenada,seestousozinha.Mahler
sómedáprazerseestoucomBernardo,ouseseiqueeleestápensando
emmim.Quandoelenãoestáali,nãotenhoforçasnemparafazerminha
cama.Nãotenhonemvontadedetomarbanho,nemdetrocarminharoupa
debaixo.
—Laura!SeuBernardonãoéoúniconomundo!
—É,sim,respondeuLaura.Porquevocêquerqueeumeiluda?
Bernardoéaminhaúltimachance.Nãotenhomaisnemvintenemtrinta
anos.DepoisdeBernardo,éodeserto.
Tomouumgoledaáguamineralerepetiu:
—Estaáguamineralémuitoforte.
Depoischamouogarçomparapedirumagarrafadeágua.
—Daquiaummês,elevaipassarquinzediasnaMartinica,prosseguiu.
Jáestivelácomeleduasvezes.Dessavez,jámeavisouquevaisozinho.
Durantedoisdiasnãopudecomernada.Masseioquevoufazer.
AgarrafadeáguaapareceunamesaeLaura,soboolharatônitodo
garçom,virou-adentrodocopodeáguamineral;depoisrepetiu:Sim,jásei
oquevoufazer.
Calou-secomosequisesse,comessesilêncio,provocarsuairmãa
interrogá-la.Agnèsentendeuedepropósitonãofeznenhumapergunta.
Mascomoosilêncioseprolongava,rendeu-se:
—Oqueéquevocêvaifazer?
Laurarespondeuquenasúltimassemanasconsultarapelomenos
cincomédicospedindoacadaumreceitasdebarbitúricos.
DepoisqueLauracompletousuasqueixasusuaiscomalusõesao
suicídio,Agnèssentiu-secansadaeabatida.Jámuitasvezescontradissera
suairmãcomargumentosracionaisousentimentais;reafirmava-lheseu
amor(vocênãopodefazerissocomigo!),semomenorresultado:Laura
voltavaafalardesuicídio,comosenãotivesseescutadonada.
—IreiparaaMartinicaumasemanaantesdele,continuou.Tenhouma
chave.Acasaestávazia.Dareiumjeitoparaquemeencontrelá.Epara
quejamaispossameesquecer.
SabendoqueLauraeracapazdecometeratosdespropositados,Agnès
tevemedoquandoouviuafrase:"dareiumjeitoparaquemeencontrelá":
elaimaginavaocorpodeLauraimóvelnomeiodasaladacasatropicale
essaimagem,deu-secontacommedo,eraperfeitamentepossível,
concebível,identificava-secomLaura.
Amaralguém,paraLaura,significavadar-lhedepresenteseucorpo:
entregá-lo,comomandaraentregaràsuairmãopianobranco;depositá-lo
nomeiodeseuapartamento:eis-meaqui,eismeuscinquentaesetequilos,
eisminhacarneemeusossos,sãoparavocêeéemsuacasaqueosdeixo.
Essaoferendaeraparaelaumgestoerótico,porqueemsuaopiniãoo
corponãoerasexualsomentenosmomentosexcepcionaisdaexcitação,
mas,comodisse,desdeoprincípio,apriori,constanteeinteiramente,na
superfíciecomonointerior,duranteosono,acordado,emesmodepoisda
morte.
ParaAgnès,oerotismolimitava-seaoinstantedaexcitaçãoquandoo
corpotornava-sedesejávelebelo.Sóesseinstantejustificavaeresgatavao
corpo;umavezextintaessaluzartificial,ocorpovoltavaaserum
mecanismosujoqueelaeraobrigadaamanteremforma.PorissoAgnès
nuncapoderiadizer:"dareiumjeitoparaqueelemeencontrelá."Ela
ficariahorrorizadacomaideiadequeohomemamadoavissecomoum
simplescorpoprivadodesexo,desprovidodequalquerencanto,orosto
convulso,numaatitudequeelanãopoderiamaiscontrolar.Sentiria
vergonha.Opudorimpediriaqueelasetornassecadáverporvontade
própria.
MasAgnèssabiaquesuairmãeradiferente:exporseucorposemvida
nasaladeumamante,essaideiaeraconsequênciadorelacionamentode
Lauracomocorpoedesuamaneiradeamar.PorissoAgnèstevemedo.
Inclinando-sesobreamesa,segurouamãodairmã.
—Entenda-me,disseLauraameia-voz.VocêtemPaul.Omelhor
homemquevocêpossadesejar.EutenhoBernardo.AssimqueBernardo
medeixar,nãotenhomaisnadaenãotereimaisninguém.Evocêsabeque
nãomecontentocompouco!Nãovouolharparaamisériadaminha
própriavida.Tenhominhavidaemaltaconta.Queroqueavidamedê
tudo,ouentãovou-meembora.Vocêmeentende.Vocêéminhairmã.
Houveummomentodesilêncio,Agnèstentandoconfusamente
formularumaresposta.Estavacansada.Omesmodiálogorepetia-se
semanaapóssemanaetudoqueAgnèspodiadizernãosurtianenhum
efeito.Derepente,nessemomentodecansaçoeimpotênciaressoaram
palavrascompletamenteinacreditáveis:—OvelhoBertrandBertrand
provocounovamenteumatempestadenaAssembleiacontraaondade
suicídios!EleéoproprietáriodacasanaMartinica.Imaginesóoprazer
quevoulhedar!—DizLauracaindonagargalhada.
Sebemquenervosaeforçada,essarisadafoiparaAgnèsumaaliada
inesperada.Começouarirtambém,eorisodasduaslogoperdeutudoo
quehaviadetenso,subitamentetornou-seumrisoverdadeiro,umrisode
alívio,asduasirmãsriamàslágrimas,sabendobemqueseamavameque
Lauranãosesuicidaria.Asduasfalavamaomesmotempo,semse
largaremasmãos,eoqueelasdiziamerampalavrasdeamoratrásdas
quaistranspareciaumacasanumjardimnaSuíçaeumacenodemão
lançadoparaoaltocomoumabolacolorida,comoumconviteparaviajar,
comoapromessadeumfuturoindizível,promessanãocumpridamascujo
ecocontinuavaparaelasigualmentecativante.
Quandoomomentodevertigempassou,Agnèsdisse:
—Laura,éprecisonãofazeridiotices.Nenhumhomemmereceque
vocêsofraporele.Penseemmim.Pensequeamovocê.
ELauradiz:
—Noentanto,gostariadefazeralgumacoisa,gostariatantodefazer
algumacoisa.Algumacoisa?Algumacoisa?
Lauraolhouairmãnofundodosolhoslevantandoosombros,como
queadmitindoqueoconteúdoda"coisa"aindanãolhepareciaclaro.
Depoisdeixoucairumpoucoacabeça,seurostocobriu-sedeumvago
sorrisomelancólico,tocoucomapontadosdedososulcodopeitoe,
repetindo"algumacoisa",jogouosbraçosparaafrente.
Agnèsficoualiviada:semdúvidanãopodiaimaginarnadadeconcreto
sobreessa"coisa",masogestodeLauranãodeixavanenhumadúvida:a
"coisa"
visavaasalturassublimes,nãopodiaternadaemcomumcomum
cadáverestendidonosoalhodeumasalatropical.
Algumashorasmaistarde,LaurafoiàAssociaçãoFrança-África,
presididapelopaideBernardo,eofereceu-secomovoluntáriaparapedir
esmolasparaosleprososnarua.
Ogestododesejodeimortalidade
OprimeiroamordeBetinafoiseuirmãoClemens,futurograndepoeta
romântico;depois,comosabemos,ficouapaixonadaporGoethe,adorou
Beethoven,amouseumaridoAchimvonArnim,tambémgrandepoeta,
depoisapaixonou-sepelocondeHermannvonPuckler-Muskauque,sem
serumgrandepoeta,escreveulivros(aliás,foiaelequeeladedicoua
CorrespondênciadeGoethecomumacriança),depoisporvoltados
cinquentaanos,alimentouumsentimentoerótico-maternalpordois
homensmoços,PhilippNathusiuseJuliusDõringque,semescreverlivros,
trocaramcartascomela(correspondênciaqueemparteelapublicou),
admiravaKarlMarxeumdia,quandoestavavisitandoanoivadele,Jenny,
forçou-oquealevasseparaumlongopasseionoturno(Marxnãotinhaa
menorvontadedepassear,preferiaacompanhiadeJennyàdeBetina;no
entantoatémesmoohomemcapazdeviraromundopeloavessoera
incapazderesistiràmulherquetinhatratadoGoethede"você"),teveuma
quedaporFranzLiszt,masmuitorápida,poislogosedeclarou
desinteressadaporcausadointeresseexclusivodeLisztporsuaprópria
glória,tentouapaixonadamenteajudaropintorKarlBlecheratingidopor
umadoençamental(desprezavaamulherdelecomoantesdesprezara
MadameGoethe),travouumacorrespondênciacomCarlosAlexandre,
herdeirodotronodeSaxe-Weimar,escreveuparaoreidaPrússia,
FredericoGuilherme,Olivrodorei,emqueexplicavaosdeveresdeumrei
paracomseussúditos,depoisdestepublicouOlivrodospobres,noqual
descreveaterrívelmisériadopovo,dirigiu-semaisumavezaoreipara
pedir-lheparalibertarWilhelmFriedrichSchloeffel,acusadodefomentar
umcomplôcomunista,poucodepoisinterveiojuntodeleemfavorde
LudwikMieroslawski,umdosdirigentesdarevoluçãopolonesa,que
esperavasuaexecuçãonumaprisãoprussiana.Oúltimohomemque
adorou,elanuncaencontrou:foiSandorPetõfi,opoetahúngaroque
morreuaosvinteeseisanosnasfileirasdoexércitorebeldede1848.
Assimfezomundointeiroconhecernãoapenasumgrandepoeta(elao
chamavaSonnengott,"deusdosol"),mascomeletambémsuapátria,cuja
existência,naépoca,aEuropaquaseignorava.Senoslembrarmosdeque
osintelectuaishúngarossedenominaram"círculoPetofi"quando,em
1956,serevoltaramcontraoImpériorussoaodeslancharemoprimeiro
grandemovimentoanti-stalinista,constatamosqueporseusamoresBetina
seapresentanovastocampodahistóriaeuropeia,desdeoséculoXVIIIaté
ametadedoséculopresente.CorajosaedecididaBetina:afadada
História,suasacerdotisa.Edigosacerdotisacommuitajustiça,porquea
Históriaeraparaela(todosseusamigosempregavamamesmametáfora)
"aencarnaçãodeDeus".
Àsvezesseusamigoscensuravam-napornãopensarnafamíliacomo
devia,nemnasuasituaçãomaterial,desacrificar-sedemaispelosoutros.
—Oquevocêsdizemnãomeinteressa.Nãosouumacontadora!É
assimquesou!Elarespondiacomapontadosdedossobreopeito,
exatamenteentreosseios.Inclinavaacabeçaligeiramenteparatráse,com
umsorriso,lançava,bruscamentemascomelegância,osbraçospara
frente.Nocomeçodomovimentoasfalangespermaneciamunidas;os
braçossóseseparavamnofimdogestoeaspalmasdasmãosabriam-se
completamente.
Não,vocêsnãoestãoenganados.Laurafezomesmogestonocapítulo
precedente,quandodeclarouquererfazer"algumacoisa".Recordemosa
situação:QuandoAgnèsdisse:—Laura,nãofaçabobagens.Nenhum
homemmerecequevocêsofraporele.Penseemmim,pensequeaamo,
Laurarespondeu:—Noentantoqueriafazeralgumacoisa,queriatanto
fazeralgumacoisa.
Aodizerisso,pensavaconfusamenteemdormircomoutrohomem.A
ideiatinhalheocorridomuitasvezesenãoeraabsolutamenteumaideia
contraditóriacomseudesejodesuicídio.Eramduasreaçõesextremas,mas
perfeitamentelegítimasnumamulherhumilhada.Seuvagosonhode
infidelidadefoibrutalmenteinterrompidopelaincômodaintervençãode
Agnès,quequeriaesclarecerascoisas:
—Algumacoisa?Oquê?Quecoisa?
Compreendendoqueficariaridículoevocarainfidelidadelogodepois
dosuicídio,Lauraficouencabuladaecontentou-seemrepetirmaisuma
vez"algumacoisa".EcomooolhardeAgnèsexigisseumarespostamais
precisa,elaesforçou-sepelomenosemdar,comumgesto,umcerto
sentidoaessaexpressãotãoimprecisa:colocouasmãossobreopeito,
depoislançou-asparafrente.
Comoocorreu-lheaideiadefazeressegesto?Difícildizer.Nuncao
tinhafeitoantes.Umdesconhecidodevetê-losopradocomosesopraaum
artistaotextoqueeleesqueceu.Apesardenãoexpressarnadade
concreto,ogestodavaaentenderque"fazeralgumacoisa"significa
sacrificar-se,oferecer-seaomundo,mandarsuaalmaparaoazuldo
infinito,comoumapombabranca.
Algunsminutosantes,oprojetodeirparaometrôcomumalatade
esmolascertamentelheseriaestranho,enacertaLauranãooteria
imaginadosenãotivessecolocadoosdedosnosseioselançadoseus
braçosparafrente.Estegestopareciadotadodeumavontadeprópria:ele
comandavaeelaseguia.
OsgestosdeLauraedeBetinasãoidênticosecertamenteexisteuma
ligaçãoentreodesejodeLauradeajudarosnegrosnospaísesdistantese
osesforçosdeBetinaparasalvaropolonêscondenadoàmorte.No
entanto,acomparaçãoparecesemsentido.NãosaberiaimaginarBetina
vonArnimpedindoesmolanometrôcomumalata.Betinanãotinhao
menortalentoparaasobrasdecaridade.Nãoeraumaricadesocupada
que,paraencherseusdias,organizassecoletasparaospobres.Tratava
duramenteosempregados,apontodeprovocarrepreensõesdeseu
marido("osempregadostambémtêmalma",lembrou-lheelenumacarta).
Oqueaincitavaaagirnãoeraapaixãopelacaridade,masodesejode
entraremcontatodiretoepessoalcomDeus,queacreditavaestar
encarnadonaHistória.Todososseusamoresporhomenscélebres(os
outrosnãoainteressavam)nãoeramsenãoumtrampolimdoqualse
deixavacaircomtodopesodeseucorpoparaserimpulsionadadepois
paramuitoalto,atéofirmamentoondeDeushabitavaencarnadona
História.
Etudoissoéverdade.Masatenção!Lauratambémnãosepareciacom
assenhorasbondosasquepresidemasinstituiçõesdecaridade.Elanão
tinhaohábitodedaresmolasaosmendigos.Quandopassavaporeles,a
doisoutrêsmetrosdedistância,nãoosenxergava.Sofriademiopia
espiritual.Osnegrosqueperdiamsuacarneaospedaços,aquatromil
quilômetrosdedistânciadela,estavam,portanto,maispróximos.Achavamseexatamentenaquelelugardohorizonteparaondeogestodeseus
braçoslevavasuaalmadolorida.
Noentanto,existeumadiferençaentreumpolonêscondenadoàmorte
eosnegrosleprosos!AquiloqueemBetinaeraumaintervençãona
Históriatornou-seemLauraumsimplesatodecaridade.
ParaLaura,issonãoeranada.AHistóriamundial,comsuasrevoluções,
suasutopias,suasesperanças,seushorrores,desertouaFrançaedeixou
apenasnostalgia.Éjustamenteporissoqueofrancêsinternacionalizoua
caridade.Nãoéoamorcristãopelopróximo(como,porexemplo,nos
americanos)queoestimulaàsboasobras,masanostalgiadessaHistória
perdida,odesejodefazê-lalembrar-sedele,deestarpresentenelapelo
menossobaformadeumalatavermelhadepediresmolasdestinadaa
coletardinheiroparaosnegros.
ChamemosogestodeBetinaedeLauragestododesejodeimortalidade.
Aspirandoàgrandeimortalidade,Betinaquerdizer:recuso-mea
desaparecercomopresenteesuaspreocupações,queroultrapassara
mimmesma,fazerpartedaHistóriaporqueaHistóriaéamemóriaeterna.
Mesmoaspirandosomenteapequenaimortalidade,Lauraqueramesma
coisa:ultrapassarasimesmaeultrapassaromomentoinfelizque
atravessa,fazer"algumacoisa"paraficarnamemóriadosquea
conheceram.
Aambiguidade
Emsuainfância,Brigitejágostavadesentarnocolodeseupai,mas
parece-mequecomdezoitoanosgostavamaisainda.Agnèsnãodizianada.
MuitasvezesBrigitemetia-senacamadeles(porexemplo,quando
estavamvendotelevisão)eentreostrêsreinavaumaintimidadefísica
maiordoqueoutroraentreAgnèseseusprópriospais.Agnèstambém
percebiaaambiguidadedessequadro:umamoçagrande,compeitos
opulentosequadrisredondos,sentadanocolodeumhomembonitoem
plenovigor,roçacomessepeitoexuberanteosombroseorostodo
homem,chamando-ode"papai".
Umanoiteconvidaramumbandoalegredeamigos,entreosquais
estavaLaura.Nummomentodeeuforia,quandoBrigiteestavanocolodo
pai,Lauradisse:
—Tambémquerofazerisso!
Brigiteemprestou-lheumjoelhoetodasduasficarammontadasnas
pernasdePaul.
AsituaçãonoslembramaisumavezBetina,poisfoigraçasaelaea
maisninguémquesentar-senosjoelhoscriouummodelodeambiguidade
erótica.JádissequeBetinatinhaatravessadoocampodebatalhaamoroso
desuavida,abrigadaatrásdoescudodainfância.Carregaraesseescudo
nasuafrenteatéoscinquentaanos,paratrocá-loporumescudodemãee
colocartodososmoçosnoseucolo;maisumavezasituaçãoera
maravilhosamenteambígua:éproibidosuspeitardeumamãedeter
intençõessexuaiscomseufilho,eéporissoqueaimagemdeumrapaz
sentadonocolodeumamulhermadura(mesmoquesómetaforicamente)
écheiadesignificadoseróticosaindamaisfortesporseremnebulosos.
Ousoafirmarquenãoexisteerotismoautênticosemaarteda
ambiguidade;quantomaispoderosaéaambiguidade,maisvivaéa
excitação.
Quemnãoselembradeterbrincado,nasuainfância,dosublimejogo
domédico?Agarotadeita-senochãoeogarototiraaroupadelasobo
pretextodevisitamédica.Agarotaficadócil,poisaquelequeaobserva
nãoéumgarotocurioso,masumespecialistasérioquesepreocupacom
suasaúde.Acargaeróticadessasituaçãoétãoimensaquantomisteriosa;
todosdoisficamsemfôlego.Aindamaissemfôlegoporqueogarotoem
nenhummomentodeixarádeserummédicoe,aotiraracalcinhada
menina,atrataráde"senhora".Essemomentoabençoadodavidainfantil
evocaemmimumalembrançamaisbelaainda,odeumacidadetchecado
interiorondeumamoçavoltouaseinstalarem1969,depoisdeuma
temporadaemParis.TendoidoparaaFrançaestudarem1967,
reencontrouseupaísocupadopeloexércitorusso;aspessoastinham
medodetudoeoúnicodesejoquetinhameraestarnoutrolugar,em
qualquerlugarondehouvesseliberdade,equefossenaEuropa.Durante
doisanos,ajovemtchecatinhafrequentadoassiduamenteosseminários
que,nessaépoca,deveriamserfrequentadosassiduamentesealguém
pretendesseinstalar-senocoraçãodavidaintelectual;alitinhaaprendido
quenaprimeirainfância,antesdafaseedipiana,atravessamosoqueo
célebrepsicanalistachamavaafasedoespelho,naqualdiziaqueantesde
confrontarcomocorpodamãeedopaidescobrimosnossoprópriocorpo.
Voltandoparaseupaís,amoçatchecaachouquemuitodeseus
compatriotas,paragrandeespantodeles,tinhampuladoprecisamenteeste
estágiodesuaevoluçãopessoal.AureoladapeloprestígiodeParisede
seusfamososseminários,elareuniuumgrupodejovensmulheres.Davalhescursosteóricos,dosquaisninguémcompreendianadaeasiniciavaem
exercíciospráticos,tãosimplesquantoeracomplicadaaparteteórica:
todasficavamnuasecadaumaexaminava-sediantedeumgrande
espelho,depoisexaminavam-setodasjuntascomextremaatenção,
finalmenteobservavam-seemespelhosdebolsa,queumaestendiaàoutra
demaneiraamostrar-lheaquiloquenuncaelatinhavistoantes.Em
nenhummomentoainstrutorainterrompiasuaexplicaçãoteóricacuja
fascinanteopacidadeastransportavaparalongedaocupaçãorussa,para
longedesuacidade,proporcionando-lhesalémdomaisumaexcitação
misteriosaesemnome,daqualevitavamfalar.Semdúvida,ainstrutora
eranãoapenasumadiscípuladograndeLacan,mastambémumalésbica;
noentanto,nãoacreditoquenessegrupohouvessemuitaslésbicas
convictas.Edetodasessasmulheres,confesso,aquelaqueocupameu
pensamentoéumamoçainteiramenteinocenteparaquemnãoexistia
maisnadanomundo,duranteessassessões,anãoserotenebroso
discursodeLacanmaltraduzidoparaotcheco.Ah!,essasreuniões
científicasdemulheresnuas,essassessõesnumapartamentodapequena
cidadetcheca,enquantoaspatrulhasrussasfaziamsuasrondas,ah,como
erammaisexcitantesdoqueasorgiasemquecadapessoaesforça-sepor
fazerosgestosesperados,emquetudoécombinadoetemapenasum
sentido,lamentavelmenteúnico!Masapressemo-nosemdeixarapequena
cidadetcheca,evoltemosaosjoelhosdePaul:Lauraestásentadanum;no
outro,imaginemosnopresente,porrazõesexperimentais,nãoBrigite,mas
suamãe.
ParaLauraéumasensaçãoagradávelcolocarseutraseiroemcontato
comascoxasdeumhomemsecretamentedesejado:asensaçãoéainda
maisexcitanteporqueelanãosesentounocolodePaulnaqualidadede
suaamantemassimdecunhada,complenoconsentimentodamulher.
Lauraéatoxicômanadaambiguidade.
ParaAgnès,asituaçãonãotemnadadeexcitante,maselanãopode
tirardacabeçaessafraseridícula:emcadajoelhodePaulestásentadoum
ânusdemulher!EmcadajoelhodePaulestásentadoumânusdemulher!
Agnèséoobservadorlúcidodaambiguidade.
EPaul?Elefalasemparar,brinca,levantandooraumjoelho,oraoutro,
paraconvencerasduasirmãsdesuasbrincadeirasdetitio,semprepronto
atransformar-seemcavalodecorridaparaalegriadesuaspequenas
sobrinhas.
Pauléopalermadaambiguidade.
Nopiordeseusproblemasamorosos,Laurapediamuitasvezes
conselhoaPaulemuitasvezesoencontravaemdiferentesbares.Notemos
queosuicídioficavaausentedesuasconversas.LaurapediraaAgnèsque
guardassesegredodeseusprojetosmórbidos,queelamesmanunca
mencionavaemfrentedePaul.
Assim,aimagemexcessivamentebrutaldamortenãorompiaotecido
delicadodabelatristezadoambiente,esentadosumdiantedooutro,
algumasvezesPauleLaurasetocavam.Paulapertava-lheamãoouo
ombrocomoqueparadar-lheforçaeconfiança,poisLauraamava
Bernardo,equemamamerecequealguémlhedêapoio.
Iadizerquenessesmomentoseleaolhavanosolhosmasissonãoseria
exato,jáqueLaurarecomeçouausarseusóculosescuros;Paulconheciaa
razãodisso:elanãoqueriamostrarsuaspálpebrasinchadaspelas
lágrimas.Osóculos,derepente,carregavam-sedemuitossignificados:
davamaLauraumaelegânciaquasesevera,quaseinacessível;mas
mostravamaomesmotempoalgumacoisademuitocarnal,demuito
sensual:umolhomolhadodelágrimas,umolhosubitamentetransformado
emorifíciodocorpo,umadessasnovebelasportasdocorpofemininode
quefalaocélebrepoemadeApollinaire,umorifíciomolhado,escondido
atrásdafolhadeparreiradovidroacinzentado.Aideiadalágrimaatrás
dosóculosalgumasvezeseratãointensa,ealágrimaimaginadatão
abrasadora,quesetransformavanumvaporqueosenvolviaatodosdois,
privando-osdojulgamentoedavisão.
Paulpercebiaessevapor.Masseráquecompreendiaosentidodele?
Achoquenão.Imaginemosessasituação:umagarotavemverum
garoto.
Começaatirararoupadizendo:—Doutor,osenhortemqueme
examinar.Então,ogarotodeclara:—Masminhafilha!Eunãosoumédico!
ÉexatamenteassimquePaulsecomportava.
Avidente
SePaul,nasuadiscussãocomGrizzly,quismostrar-seumbrilhante
partidáriodafrivolidade,comoéquecomasduasirmãsnocolotinhasido
tãopoucofrívolo?Eisaexplicação:nasuacabeça,afrivolidadeeraum
benéficoclisterqueelequeriaaplicarnacultura,navidapública,naarte,
napolítica,umbomclisterparaGoetheeNapoleão,mas(prestem
atenção!)quecertamentenãoserviaparaLauraeBernardo.Aprofunda
desconfiançaquePaulsentiaporBeethoveneRimbauderaredimidapela
confiançasemlimitesquedispensavaaoamor.
Emseuespíritoanoçãodeamorestavaligadaàimagemdooceano,o
maistempestuosodoselementos.QuandoestavadefériascomAgnès,
deixavaajaneladoquartodohotelescancarada,paraqueseussuspiros
deamorsejuntassemàvozdasondaseparaquesuapaixãose
confundissecomessagrandevoz.Mesmosendofelizcomsuamulher,
mesmoamando-a,sentiaemalgumrecônditosecretodesuaalmaum
ligeiro,umtímidodesapontamentocomaideiadequeseuamornunca
tivessesemanifestadodemaneiraumpoucomaisdramática.Quase
invejavaemLauraosobstáculosquetinhaencontradoemseucaminho
porque,segundoele,apenasosobstáculospodemtransformaroamorem
históriadeamor.Tambémsentiaporelaumsentimentodeafetuosa
solidariedade,sofrendocomostormentosdelacomosefossemseus.
Umdia,elalhetelefonouparadizerqueBernardoiriadentrodealguns
diasparaaMartinica,paraacasadafamília,equedecidiraencontrar-se
comelelá,sebemqueelenãoativesseconvidado.Seoencontrasseláem
companhiadeumadesconhecida,pior.Pelomenostudoficariaesclarecido.
Parapoupá-ladeconflitosinúteis,eletentoudissuadi-la.Masa
conversaeternizava-se:Laurarepetiasempreosmesmosargumentose
Paul,conformado,apressou-seemdizer:
—Vá,jáquevocêestátãoprofundamenteconvencidadequesua
decisãoestácerta!Massemlhedartempo,Lauradeclarou:—Umaúnica
coisapoderiameimpedirdefazeressaviagem:umaproibiçãosua.
Assimacabavadetransmitir-lhemuitoclaramenteoqueeledeveria
dizerparadissuadi-ladesseprojeto,preservandoaomesmotemposua
dignidadedemulherdecididaairatéofimdodesesperoedaluta.
Lembremo-nosdeseuprimeiroencontrocomPaul;ouviranasuacabeça
exatamenteaspalavrasqueNapoleãodisseraaGoethe:"Eisumhomem!"
SePaulfosserealmenteumhomem,nãoteriahesitadouminstanteem
proibir-lheessaviagem.Ora,elenãoeraumhomem,massimumhomem
deprincípios:hámuitotempohaviariscadoapalavra"proibir"doseu
vocabulárioeficavaorgulhosocomisso.Protestou:—Vocêsabeque
nuncaproíbonadaaninguém.Laurainsistiu:
—Maseuquerosuasproibiçõesesuasordens.Vocêsabequeninguém
maistemessedireito.Fareioquevocêmedisser.
Paulsentiu-seperturbado:passaraumahoraexplicandoqueelanão
deviair,eháumahoraelaafirmavaocontrário.Porque,emvezdese
deixarconvencer,lhepediaumaproibição?Elecalou-se.
—Vocêtemmedo?—Elaperguntou.
—Medodequê?
—Demeimporsuavontade.
—Senãopudeconvencê-la,nãotenhoodireitodeproibiroquequer
queseja.
—Éissoqueeudiria,vocêestácommedo.
—Queriaconvencê-lapelarazão.Elariu.
—Vocêseescondeatrásdarazãoporquetemmedodemeimporsua
vontade.Temmedodemim!
Seurisofezcomqueelemergulhassenumconstrangimentoainda
maioreapressou-seemterminaraconversa:—Voupensarnisso.
DepoispediuaAgnèssuaopinião.Eladisse:—Elanãodeveir.Seria
umabobagemmonumental.Sefalarcomela,façatudoparaimpedi-lade
partir!
MasaopiniãodeAgnèsnãorepresentavagrandecoisa,poisoprincipal
conselheirodePauleraBrigite.
Quandoeleexplicouasituaçãoemqueestavasuatia,elalogoreagiu:
—Eporqueelanãoiriaparalá?Devemosfazersempreoque
queremos.
—Massuponha,objetouPaul,queencontreBernardocomuma
mulher.
Faráumescândaloterrível!
—Eeledissequeestariaacompanhadodeumamulher?
—Não.
—Deveriaterdito.Senãoofez,éporqueécovardeeelanãotem
nenhumarazãoparapoupá-lo.OqueéqueLauratemaperder?Nada.
PodemosperguntarporqueBrigitedeuaPaulessaopiniãoenãouma
outra.PorqueestavasolidáriacomLaura?Nãoacredito.Muitasvezes
Lauracomportava-secomosefossefilhadePaul,oqueBrigiteachava
ridículoedesagradável.Nãotinhaamenorvontadedeficarsolidáriacom
atia;suaúnicapreocupaçãoeraagradaraseupai.PressentiaquePaul
dirigia-seaelacomoaumavidente,equeriaconsolidaressaautoridade
mágica.SupondocorretamentequesuamãeerahostilàviagemdeLaura,
elaquisadotaraatitudecontrária,deixarfalarporsuabocaavozda
mocidade,eseduzirseupaicomumgestodecoragemirrefletida.
Balançavarapidamenteacabeçadaesquerdaparaadireita,eda
direitaparaaesquerda,levantandoosombroseassobrancelhasePaul,
maisumavez,sentiaaestranhasensaçãodeteremsuafilhaumabateria
deonderetirarenergia.
Talvez,pensouele,seAgnèstivesseohábitodepersegui-lo,sepegasse
umaviãoparapersegui-loemilhasdistantes,talvezeletivessesidomais
feliz.Todasuavidahaviadesejadoqueamulheramadaestivessedisposta
abateracabeçanaparedeporele,agritardedesesperooudarpulosde
alegrianoapartamento.
ConcluiuqueLauraeBrigiteeramdoladodacoragemedaloucura,e
quesemumtoquedeloucuraavidanãomereciaservivida.QueLaura,
portanto,sedeixasseconduzirpelavozdocoração!Porqueviraretornar
avirarcadaumdenossosatosnafrigideiradarazãocomosefosseuma
panqueca?
—Noentantonãoesqueça,objetoueleainda,queLauraéumamulher
sensível.Essaviagemsópodefazê-lasofrer!
—Nolugardela,euiria.Eninguémpoderiamesegurar,disseBrigite
numtomcategórico.
DepoisLaurachamouPaulnotelefone.Paracortaraconversa,elelogo
lhedisse:
—Penseimuitoeminhaopiniãoéquevocêdevefazerexatamenteo
quequer.Sequerpartir,parta!
—Jáestavaquasedecididaadesistir.Vocêestavamuitopreocupado
comessaviagem.Masjáqueagoravocêaprova,partoamanhã.
IssofoiparaPaulumaduchafria.Compreendeuquesemestímulo
LaurajamaisiriaparaaMartinica.Masfoiincapazdeacrescentarmais
algumacoisa:aconversaparouaí.Nodiaseguinte,umaviãolevouLaura
sobreoAtlântico,ePaulsentiu-sepessoalmenteresponsávelporuma
viagemquenoíntimo,comoAgnès,achavaumabsurdo.
Osuicídio
Passaram-sedoisdiasdepoisqueLauraembarcou.Àsseishorasda
manhã,otelefonetocou.EraLaura.Disseàirmãeaocunhadoquena
Martinicaerameia-noite.Suavoztinhaumaalegriaforçada;porissoAgnès
concluiuqueascoisasnãocorriambem.
Nãoseenganara:vendoLauranaaleiacercadadecoqueirosque
levavaàsuacasa,Bernardoficoupálidoderaivaedisselhecomdureza:—
Eupediavocêquenãoviesse.
Elatentoujustificar-se,massemumapalavraelejogouduascamisas
numasacola,entrounocarroefoiembora.Sozinha,perambuloupelacasa
edescobriudentrodeumarmáriosuaroupadebanhovermelhaquelá
deixaraficarnumavisitaanterior.
—Sóessaroupadebanhomeesperava.Sóessaroupadebanho,disse,
passandodorisoàslágrimas.Chorando,continuou:—Foiumabaixeza.
Vomitei.Depoisdecidificar.Énessacasaquetudoterminará.Quando
voltar,Bernardomeencontraráaquivestidacomessaroupadebanho.
AvozdeLauraressoavanoquarto;osdoispodiamouvi-la,poishavia
umaextensão.
—Eulhepeço,diziaAgnès,acalme-se.Procuremanterseusangue-frio.
Laurariudenovo:—Quandopensoqueantesdeviajarcompreivinte
caixasdebarbitúricosequeasesqueciemParis!Estavamuitonervosa.
—Melhorainda,melhorainda,disseAgnès,quenahorasentiuum
verdadeiroalívio.
—Masaquiacheiumrevólvernumagaveta,continuouLaura,rindo
aindamais:—Bernardodevetemerporsuavida!Temmedodeser
atacadopelosnegros.Vejonissoumaviso.
—Queaviso?
—Quedeixouorevólverparamim.
—Vocêestálouca!Elenãodeixounada!Nãoesperavaque
vocêchegasse!
—Eclaroqueelenãodeixoudepropósito.Mascomprouumrevólver
quesóeuusarei.Portanto,deixou-oparamim.
Agnèssentiunovamenteumaexasperadasensaçãodeimpotência.
—Eulheimploro,disseela,coloqueesserevólvernolugar.
—Masnãoseicomousá-lo.MasPaul...Paul,vocêestámeouvindo?
Paulpegouotelefone.
—Sim.
—Paul,estoufelizdeouvirsuavoz.
—Eutambém,Laura,maspeçoquevocê...
—Eusei,Paul,masnãopossomais...erompeuemsoluços.Houveum
silêncio.
DepoisLaurarecomeçou:—Orevólverestádiantedemim.Nãoposso
tirarosolhosdele.
—Coloque-oondeestava,—dissePaul.
—Paul,vocêfezoserviçomilitar.
—Claro.
—Vocêéoficial!
—Segundo-tenente.
—Issoquerdizerquevocêsabeusarumrevólver.Paul
ficouatrapalhado.Mastevequeresponder:—Sim.
—Comosesabeseumrevólverestácarregado?
—Seotirosaiéporqueestácarregado.
—Seeuapertarogatilho,otirosai?
—Épossível.
—Como,épossível?
—Seopinodesegurançaestiversolto,otirosai.
—Ecomosevêqueestásolto?
—Ora,vocênãovaiexplicaraelacomosematar!Agnès
gritou,arrancandooaparelhodasmãosdePaul.
Lauracontinuou:—Sóquerosabercomoseusa.Narealidade,todo
mundodeveriasabercomoseusaumrevólver.Comosesoltaopinode
segurança?
—Chega,dizAgnès,nemumapalavramaissobreesserevólver.
Ponha-odevoltaaondeestava.Chega!Chegadebrincadeira!
Lauramudoudevozsubitamente,umavozgrave:—Agnès!Nãoestou
brincando!Enovamentedesatouasoluçar.
Aconversanãoacabava;AgnèsePaulrepetiamasmesmasfrases,
asseguravamaLauraqueelesaamavam,suplicavamqueelaficassecom
eles,quenãoosdeixassemais,tantoqueelaacabouprometendoqueia
colocarorevólvernagavetaequeiadormir.
Desligandootelefone,estavamtãocansados,queficarammuitotempo
semdizerumapalavra.
DepoisAgnèsfalou:—Porqueelafazisso!Porquefazisso!
EPauldisse:—Foiminhaculpa.Euéquedissequeelafosse.
—Elateriaidodequalquermaneira.Paulabanouacabeça:
—Não.Elaiaficar.Fizamaiorbobagemdaminhavida.
AgnèsquispouparPauldessesentimentodeculpa.Nãoporcompaixão,
mastalvezporciúme:elanãoqueriaqueelesesentisseresponsávelpor
Lauraaesseponto,nemquementalmenteficassetãoligadoaela.Porisso
disse:—Comovocêpodetercertezadequeelaencontrouumrevólver?
Paulnãocompreendeulogo.
—Oquevocêquerdizer?
—Quetalveznãohajarevólvernenhum.
—Agnès!Elanãoestábrincando!Sente-seisso.
Agnèstentouformularsuassuspeitascommaisprudência:—É
possívelqueelatenhaumrevólver.Mastambémnãoéimpossívelqueela
tenhabarbitúricos,equeelafaledorevólversóparanos
assustar.Tambémnãosepodeexcluirqueelanãotenhanembarbitúricos
nemrevólver,equequeiranosatormentar.
—Agnès,—dissePaul,—vocêémá.
ArepreensãodePauldespertousuaatenção:jáháalgumtempo,sem
dúvidanenhuma,eleestavamaispróximodeLauradoquedeAgnès;ele
pensavanela,dava-lhecuidadosespeciais,ficavapreocupado,eAgnès,de
repente,foiforçadaaimaginarqueeleacomparavacomsuairmã,eque
nessacomparaçãoelaapareciacomoamenossensíveldasduas.
Tentousedefender:—Nãosoumá.QuerosomentedizerqueLauraé
capazdequalquercoisaparachamaratenção.Énormal,poisestá
sofrendo.Todomundotendearirdesuasdecepçõesamorosaseadarde
ombros.Masquandoelapegaumrevólver,ninguémpoderirmais.
—Eseoseudesejodechamaratençãolevá-laaosuicídio?Issonãoé
possível?
—É,admitiuAgnès,eumlongosilêncioangustiadoabateu-sesobre
eles.
DepoisAgnèsdisse:—Tambémpossocompreenderquesequeira
acabarcomtudo.Quenãosepossamaissuportarosofrimento.Nema
maldadedosoutros.Quesequeirairemboraparasempre,iremborapara
sempre.Todomundotemodireitodesematar.Enossaliberdade.Não
tenhonadacontraosuicídiodesdequesejaumamaneiradeirembora.
Parouumsegundo,nãoquerendoacrescentarnada,mas
estavafuriosamentehostilemrelaçãoaosatosdesuairmãparanão
continuar:—Masocasodelaédiferente.Elanãoquerirembora.Pensano
suicídioporqueéumamaneiradeficar.Ficarcomele.Deficarconosco.De
inscrever-separasemprenanossamemória.Decaircomtodopesoem
nossavida.Denosesmagar.
—Vocêéinjusta,—dissePaul,—elaestásofrendo.
—Seidisso,disseAgnès,começandoachorar.Imaginousuairmã
mortaetudooqueacabaradedizerpareceu-lhemesquinho,vile
indesculpável.
—Eseelaprometeuguardarorevólversóparanostranquilizar?ela
disse,discandoonúmerodacasadaMartinica;comoninguémrespondeu
sentiramosuorescorrendoemsuastestas;sabiamquenãopoderiam
desligarequeiriamescutarindefinidamenteacampainhaquesignificaria
amortedeLaura.
Finalmenteouviramsuavozestranhamenteseca.Perguntaramonde
elaestava.
"Noquartoaolado",disseela.AgnèsePaulfalavamaomesmotempo
aotelefone.Contaramaangústiaquetinhafeitocomqueelesligassemde
novo.
Reafirmaramseuamorporelamuitasvezeseapressaquetinhamem
vê-ladenovoemParis.
Foramtardeparaotrabalhoesópensaramnelaodiainteiro.Denoite
tornaramachamaredenovoaligaçãodurouumahora,denovo
reafirmaramseuamoresuaimpaciência.
Algunsdiasdepois,elatocouacampainhanaporta.Paulestavasozinho
emcasa.Depénaporta,elausavaóculosescuros.Caiunosbraçosdele.
Foramparaasalaesentaram-seempoltronasumemfrenteaooutro,mas
elaestavatãoagitadaquelevantou-senofimdealgunsinstantese
começouaandarpelasala.
Falavafebrilmente.Entãoeletambémselevantou,começouaandar
pelasalaeafalar.
Faloucomdesprezodeseuantigoaluno,deseuprotegido,deseu
amigo.
Issopoderiajustificar-se,claro,pelapreocupaçãodediminuiremLaura
adordeumaseparação.Maselepróprioestavasurpresodeconstataraté
quepontoelepensavasinceraeseriamentetudooquedizia:Bernardoera
ummimado;umfilhinhodepapairico,umarrogante.
Apoiadanalareira,LauraolhavaPaul.EPaul,derepente,percebeu
queelanãousavamaisóculos.ElaosseguravanamãoefixavaemPaul
unsolhosinchados,molhados.Compreendeuqueháalgunsinstantes
Lauranãooouviamais.
Calou-se.Umgrandesilêncioinvadiuasala,comosefosseumaforça
inexplicávelqueoobrigavaaaproximar-sedela.
—Paul,disseela,porquenãonosencontramosmaiscedo,vocêe
eu?Antesdetodososoutros...
Estaspalavrasespalharam-seentreelescomoumaneblina.Paul
penetrounessacamadaestendendoobraço,comoseestivessetateando;
suamãotocouemLaura.LauradeuumsuspiroedeixouamãodePaulem
suapele.Depoisdeuumpassoparaoladoerecolocouosóculos.Esse
gestodissipouaneblinaeelesviram-sefaceafacecomocunhadae
cunhado.
AlgunsinstantesmaistardeAgnèsvoltoudotrabalhoeentrounasala.
Osóculosescuros
RevendoLaurapelaprimeiravezdepoisdoseuretornodaMartinica,
Agnès,emvezdeabraçá-lacomosefazcomumapessoaqueescapoude
umacatástrofe,demonstrousurpreendentefrieza.Nãoviasuairmã,via
seusóculosescuros,essamáscaratrágicaquequeriaditarotomdo
reencontro.
—Laura,disseela,comosenãotivessereparadoamáscara,você
emagreceuterrivelmente.
Sóentãoaproximou-sedela,eseguindoocostumefrancêsentreduas
pessoasconhecidas,beijou-adeleveemcadaladodorosto.
Levandoemcontaqueessaseramasprimeiraspalavraspronunciadas
depoisdessesdiasdramáticos,temosqueadmitirqueeramimpróprias.
Nãotinhamcomoobjetivonemavida,nemamorte,nemoamor,masa
digestão.Emsi,issonãoseriamuitograve,porqueLauraadoravafalarde
seucorpo,eoconsideravacomoumametáforadeseussentimentos.Oque
erabempioréqueessafrasefoiditasemomenorcarinho,semnenhuma
admiraçãomelancólicapelostormentosresponsáveispeloemagrecimento
deLaura,mascomcansaçoerepulsaevidentes.
ÉclaroqueLauracompreendeuperfeitamenteotomempregado
porAgnèseentendeuseusignificado.Mas,porsuavez,fingindoignoraro
quepensavasuairmã,respondeucomvozsofrida:
—Sim,perdisetequilos.Agnèstinhavontadedegritar:—Chega!
Chega!Issojáduroudemais!Pare!—Masdominou-seenãodissenada.
Lauralevantouamão:—Olhe,nãoémaisumbraço,éumcaule...Não
possomaisvestirumasaia.Estounadandodentrodeminhasroupas.Meu
nariztambémestásangrando...ecomoparailustraroqueacabavade
dizer,virouacabeçaparatráserespiroulongamentepelonariz.
Agnèscontemplouessecorpomagrocomumarepulsaquenão
podiadominarepensou:paraondeforamossetequilosqueLaura
perdeu?Comoumaenergiaqueseconsome,dissolveram-senoazuldo
céu?Ousumiramemexcrementosnosesgotos?Paraondeforamossete
quilosdoinsubstituívelcorpodeLaura?
Entretanto,Lauratiraraseusóculosescuros,paracolocá-lossobrea
chaminéondeestavaencostada.Virouparasuairmãseusolhosinchados
delágrimas,comohaviafeitominutosantescomPaul.
Quandotirouosóculos,foicomosetivessedespidoorosto.Comose
estivessenua.Nãodamaneiraqueumamulhersedespeemfrentedo
amante,mascomodiantedeummédicoaquemeladelegaa
responsabilidadedeseucorpo.
Incapazdedeterasfrasesquegiravamemsuacabeça,Agnèsdisseem
vozalta:
—Chega!Pare.Estamosexaustos.VocêvaiseseparardeBernardo
comomilharesdemulheressesepararamdemilharesdehomenssemno
entantosematarem.
Depoisdemuitassemanasdeintermináveisconversas,nasquais
Agnèsjuravaasuairmãtodoseuamor,umatalexplosão,pensaríamos,
deveriasurpreenderLaura,mas,curiosamente,nãoasurpreendeu;Laura
reagiuàspalavrasdeAgnèscomoseelajáasesperassehámuitotempo.
Foicomamaiorcalmaquerespondeu:
—Voudizeravocêoquepenso.Vocênãosabenadasobreoamor,
nemnuncasoube,nemvaisabernunca.Oamornuncafoioseuponto
forte.
LauraconheciaospontosvulneráveisdesuairmãeAgnèstevemedo:
compreendeuqueLaurafalavadessamaneiraporquePaulestava
presente.Derepentetudoficouclaro,nãosetratavamaisdeBernardo:
todoessedramadesuicídionãotinhanadaavercomele;provavelmente
nuncasaberiadisso;odramasóeradirigidoaPauleAgnès.Elaainda
pensou:secomeçamosalutar,colocamosemmovimentoumaforçaque
nãosedetémnoprimeiroobjetivoqueera,paraLaura,Bernardo;havia
outrosainda.
Nãoeramaispossívelesquivar-sedaluta.Agnèsdisse:
—SevocêperdeusetequilosporcausadeBernardo,issoéumaprova
irrefutáveldeamor.Porém,édifícilentendervocê.Seamoalguém,desejolheobem;sedetestoalguém,desejo-lheomal.Você,hásemanase
semanas,torturaBernardoeanóstambém.Qualarelaçãocomoamor?
Nenhuma.
Imaginemosasalacomoumpalcodeteatro:àextremadireita,a
lareira,àesquerdaumabibliotecacercandoopalco.Nocentro,aofundo,
umsofá,umamesabaixaeduaspoltronas.Paulestáempénomeioda
sala,Lauraestápertodalareira,adoispassosdedistância,eolhaAgnès
fixamente.OsolhosinchadosdeLauraacusamsuairmãdecrueldade,de
incompreensão,edefrieza.ÀmedidaqueAgnèsfala,Laurarecuaparao
meiodasala,emdireçãoaolugarondeestáPaul,comoparamostrarcom
esserecuoseuespantoamedrontadodiantedeumataqueinjustodesua
irmã.
ChegandoadoispassosdePaul,elaparou,repetindo:
—Vocênãoconheceabsolutamentenadadoamor.
Agnèsavançoueveioocuparolugarpertodalareiraquesuairmã
acabaradedeixar.Disse:
—Seimuitobemoqueéoamor.Noamor,oimportanteéaquelea
quemseama.Édelequesetrata,edemaisninguém.Eeumeperguntoo
queéoamorparaumamulherquenãosabeenxergarsenãoelaprópria.
Emoutraspalavras,eumeperguntoquesentidotemapalavraamorpara
umamulhercompletamenteegoísta.
—Perguntar-seoqueéoamornãotemnenhumsentido,minha
queridairmã,dizLaura.Oamoréoqueé,eistudo.Vive-seoamorounão.
Oamoréumaasaquebatedentrodomeupeitocomodentrodeuma
gaiola,equemelevaafazercoisasqueavocêpareceminsensatas.Isso
nuncalheaconteceu.Eusóenxergoamimmesma,dizvocê.Masvejoclaro
emvocê,atéofundo.
Ultimamente,quandovocêmeasseguravaseuamor,eusabia
perfeitamentequenasuabocaessapalavranãotinhanenhumsentido.
Nãoerasenãoumaarmadilha.Umargumentoparameacalmar.Parame
impedirdeperturbarsuatranquilidade.Euaconheço,minhairmã:você
estevedooutroladodoamortodaasuavida.Dooutroladototalmente.
Alémdoamor.
Enquantofalavamdeamor,asduasmulheressedilaceravamcomos
dentes.Eohomemqueestavacomelasestavadesesperado.Queriadizer
qualquercoisaparaatenuaratensãoinsuportável:
—Nóstrêsestamosexaustos.Precisamos,ostrês,irparalonge,
qualquerlugar,eesquecerBernardo.
MasBernardojáestavairrevogavelmenteesquecido,eaintervenção
dePaultevecomoúnicoefeitosubstituiradisputapelosilêncio;nenhuma
compaixãoeratransmitidaporessesilêncio,nenhumalembrançaem
comum,nemomenorvestígiodesolidariedadeentreasduasirmãs.
Nãoafastemosdevistaoconjuntodopalco:àdireita,apoiadana
lareira,estavaAgnès;nomeiodasala,viradaemdireçãoàirmã,estava
Laura,adoispassosdePaul.Comamãofezumgestodedesesperada
impotênciadiantedoódioquetinhaexplodidotãoabsurdamenteentre
duasmulheresqueeleamava.
Comosequisesse,paraenfatizarsuareprovação,afastar-sedelaso
maispossível,deumeia-voltaedirigiu-separaaestante.Encostou-seali,
virouacabeçaparaajanelaetentounãovê-lasmais.
Agnèsviuosóculosescurospousadossobrealareiraeapanhou-os
maquinalmente.Examinou-oscomraiva,comosetivesseentreasmãosas
grossaslágrimasnegrasdairmã.Sentiarepugnânciaportudoquevinha
docorpodeLaura,eessasgrossaslágrimasdevidropareciam-lheuma
dassecreçõesdessecorpo.
LauraviuosóculosescurosentreasmãosdeAgnès.Essesóculos
subitamentelhefaziamfalta.Precisavadeumescudo,deumvéupara
cobrirseurostodiantedoódiodesuairmã.Masaomesmotemponão
tinhaforçasparadarquatropassos,iratéasuairmã-inimigaerecuperálos.TinhamedodeAgnès.Elaidentificava-seassim,comumaespéciede
paixãomasoquista,àvulnerávelnudezdeseurostosobreoqualestavam
impressostodosostraçosdeseussofrimentos.
Elasabiabemqueospropósitosquetinhaarespeitodeseucorpo,os
setequilosperdidos,irritavamAgnèsaomáximo,elaosabia
instintivamente,intuitivamente,eeraprecisamenteporisso,pordesafio,
porrevolta,queelaqueriasetornarcorpoomáximopossível,nãoser
nadamaisdoqueumcorpo,umcorpoabandonadoerejeitado.Queria
depositaressecorponomeiodasaladelesedeixá-lolá.Deixá-lolá,pesado
eimóvel.Eobrigá-los,seelesnãooquisessemnacasadeles,apegaresse
corpo,seucorpo,umpelospunhos,ooutropelospés,edepositá-lona
calçadacomosedepositasecretamente,ànoite,umvelhocolchãousado.
Agnèsestavaempépertodalareira,osóculosescurosnamão.Nomeio
dasala,Lauraolhavasuairmãerecuandocontinuavaaseafastardela.
Depoisdeuumúltimopassoeseucorpoapoiou-senocorpodePaul,junto,
muitojunto,Paulestandoencostadonaestante.Lauracolocouasmãos
sobreascoxasdePaulcomfirmeza.Virandoacabeçaparatrás,apoiou
suanucasobreopeitodePaul.
Agnèsestavanumcantodasala,osóculosescurosnamão;nooutro
canto,emfrenteelongedela,Lauraerguia-secomoumaestátua,
encostadanocorpodePaul.Ficaramimóveis,petrificados,ninguémdeu
umapalavra.Passou-seumtempoantesqueAgnèsafastasseseupolegar
doindicador.Osóculosescuros,símbolodosofrimento,essaslágrimas
metamorfoseadas,caíramsobrealagequecercavaaestantevoandoem
pedaços.
QuartaParte
HomoSentimentalis
NodecorrerdoeternoprocessomovidocontraGoethenocasoBetina,
inúmerasacusaçõesforampronunciadascontraeleassimcomotambém
váriostestemunhosforamfornecidos.Paranãocansaroleitorcoma
enumeraçãodecoisasinsignificantes,nãomedetereisenãoemtrês
testemunhosquemeparecemcapitais.
Primeiro:otestemunhodeRainerMariaRilke,omaiorpoetaalemão
depoisdeGoethe.
Segundo:otestemunhodeRomainRolland,umdosromancistasmais
lidosdosmontesUraisaoAtlânticonasdécadasdevinteetrinta,eque
alémdissogozavadeumanotávelautoridadecomohomemdoprogresso,
antifascista,humanista,pacifistaeamigodaRevolução.
Terceiro:otestemunhodopoetaPaulEluard,excelenterepresentante
daquiloquechamamosavant-garde,grandeintérpretedoamoroumelhor,
segundoumaexpressãodelepróprio,doamor-poesia,jáqueessasduas
noções(comopodemostestemunharemumdeseusmaisbelostrabalhos,
intituladoprecisamentelamourdelapoésie)emseuespíritoconfundem-se
numasó.
Convocadocomotestemunhanoprocessoeterno,Rilke
empregouexatamenteosmesmostermosquenacélebreobraemprosa,
editadaem1910:LescahiersdeMalteLauridsBrigge,ondedirigiaaBetina
estalongaapóstrofe:
"Comoépossívelqueninguémfalemaisdoseuamor?Oqueterá
acontecidodemaisimportantedepoisdisso?Dequeseocupam?Você
mesmaconheciaovalordeseuamor,vocêodiziaemvozaltaaseupoeta
maior,paraqueeleotornassehumano,poisesseamoreraainda
elemento.Masopoeta,escrevendoavocê,dissuadiuoshomens.Todos
leramsuasrespostaseacreditarammaisainda,poisopoetaémais
inteligívelparaelesdoqueanatureza.Mastalvezcompreendamumdia
queolimitedesuagrandezaestáaqui.Essaamante(dieseLiebende)foi-lhe
imposta(auferlegtsignifica"imposto"
comoumdeverouumexameéimposto)eelefracassou(erhatsie
nichtbestanderí)oquesignifica,precisamente:elenãoconseguiupassar
noexamequeera,paraele,Betina).Oquequerdizerqueelenãopôde
retribuiroseuamor?
Umamorcomoessenãoprecisaserretribuído,contémemsimesmoo
gritodeapeloesuaresposta;eleseexaltaporsimesmo.Masopoeta
deveriahumilhar-sediantedesseamor,emtodasuamagnificência,e
aquiloqueditava,escrevê-loaduasmãoscomoS.JoãoEvangelistade
joelhosemPatmos.Nãotinhaoutraescolhadiantedessavozque"exerciao
ministériodosanjos"(die"dasAmtderEngelverrichtete")equetinhavindo
envolvê-loelevá-loparaaeternidade.Aliestavaacarruagemdesua
viagemfulguranteatravésdoscéus.Alifoipreparado,nahoradesua
morte,omitosombrio{derdunkleMythos)queeledeixouvazio."
OtestemunhodeRomainRollandtratadarelaçãoentre
Goethe,BeethoveneBetina.Oromancistaaexplicoudetalhadamenteno
ensaioGoetheeBeethoven,publicadoemParisem1930.Colocando
nuancesemsuaatitude,elenãoescondequesuasimpatiaéporBetina:ele
interpretaosacontecimentosmaisoumenoscomoela.Goetheoaflige,
mesmoquenãoneguesuagrandeza:aprudência,tantoestéticaquanto
política,ficamalparaosgênios.ECristiana?
Ah,émelhornemfalarnela,éuma'"nulidadedeespírito".
Essepontodevista,repito,éexpressocomsutilezaecomcomedimento.
Osdiscípulossãosempremaisradicaisdoqueseusinspiradores.
TenhonasmãosumaricabiografiadeBeethoven,publicadanaFrançanos
anossessenta.Nelafala-seclaramentena"covardia"deGoethe,noseu
"servilismo",noseu"medosenildiantedetodanovidade",etccetera,
etccetera.Aocontrário,Betinaédotadadeuma"qualidadedeclarividência
edeumpoderdeadivinhaçãoquequaselheconferemasdimensõesde
umgênio".ECristiana,comosempre,nãoésenãoumapobree"volumosa
esposa".
MesmoquesecoloquemdoladodeBetina,RilkeeRollandfalamde
Goethecomrespeito.NolivroLessentiersetlesroutesdelapoésie,textos
escritosem1949(istoé,sejamosjustosemrelaçãoaele,nomomento
menosfelizdesuacarreiradepoeta,quandoeraferozmentepartidáriode
Stalin),PaulEluard,umverdadeiroSaint-Justdoamor-poesia,mostra-se
aindamaisduro:
"Goethe,emseudiário,assinalaseuprimeiroencontrocomBetina
Brentanocomestaspalavras:'MamselBrentano'.Oprestigiosopoeta-autor
deWerther,preferiaapazdeseularaosdelíriosativosdapaixão,etodaa
imaginaçãoetambémtodootalentodeBetinanãoodesviariamdeseu
sonhoolímpico.SeGoethetivessecedido,seucantotalveziriabaixarà
terra,masnãooamaríamosmenos,poispossivelmentenãoteriase
decididoporseupapeldecortesãoenãoteriacontaminadoseupovo
persuadindo-odequeainjustiçaépreferívelàdesordem."
"Essaamantelhefoiimposta",escreveuRilke,epodemosperguntar:o
quesignificaessaformagramaticalpassiva?Emoutraspalavras:quem
impôsaeleessaamante?
Amesmaperguntanosvemaoespíritoquandolemos,numacarta
escritaaGoetheporBetinaem15dejulhode1807:"Nãodevotermedo
demeentregaraestesentimento,porquenãofuieuqueoplanteinomeu
coração."
Quem,então,oplantou,Goethe?CertamentenãofoioqueBetinaquis
dizer.Aquelequelheplantouoamornocoraçãoeraalguémsuperioraela
esuperioraGoethe:senãofoiDeus,foipelomenosumdosanjosdeque
falaRilke.
Chegandonesseponto,podemostomaradefesadeGoethe:sealguém
(Deusouumanjo)plantouumsentimentonocoraçãodeBetina,élógico
queelaobedeceráaessesentimento:eleestánoseucoração,éseu
sentimento,édela.
Masninguém,parece,plantouessesentimentonocoraçãodeGoethe.
Betinalhefoi"imposta".Prescritacomoumdever.Auferlegt.Apartirdaí,
comopodeRilkecensurarGoetheporresistiraumdeverquelhefoi
impostocontrasuavontade,porassimdizer,semadvertência?Porqueele
deveriacairdejoelhoseescrever"aduasmãos"aquiloquelhe"ditava"
umavozvindadasalturas?
Pornãopoderresponderracionalmenteaessapergunta,souforçadoa
recorreraumacomparação:imaginemosSimãopescandonomarda
Galileia.
Jesusaproxima-seelhepedequedeixeasredesparasegui-lo.Simão
diz:
"Deixe-meempaz.Prefirominhasredesemeuspeixes."UmSimão
desseslogosetransformarianumpersonagemcômico,numFalstaffdo
Evangelho:foinissoqueGoethetransformou-seaosolhosdeRilke,um
Falstaffdoamor.
RilkedizdoamordeBetina:Esseamornãoprecisaserretribuído,
contémemsimesmoseuapeloesuaresposta;elesesatisfazasimesmo.O
amorplantadonocoraçãodoshumanosporumjardineirodosanjosnão
precisadenenhumobjeto,nenhumeco,nenhumGegen-Liebe(contra-amor,
amorretribuído),comodiziaBetina.Oamado(Goethe,porexemplo),nãoé
nemacausanemoobjetivodoamor.
NaépocadesuacorrespondênciacomGoethe,Betinatambémdirigia
cartasdeamoraArnim.Escreveunumadelas:"Oamorverdadeiro(die
wahreLiebe)éincapazdeinfidelidade."Esseamorquenãosepreocupa
emserretribuído(dieLiebeohneGegen-Liebe)"procuraoamadoemtodas
assuasmetamorfoses".
SeoamortivessesidoplantadonocoraçãodeBetinanãopor
umjardineiroangélicomasporGoetheeporArnim,umamorporGoethee
porArnimteriasedesenvolvidonela,amorinimitável,intercambiável,
destinadoàquelequeohaviaplantado,àquelequeeraamado,eportanto
amorquenãoconheciametamorfoses.Poderíamosdefinirsemelhante
amorcomoumarelação:umarelaçãoprivilegiadaentreduaspessoas.
Aocontráriodisso,aquiloqueBetinachamawahreLiebe(amor
verdadeiro)nãoéamor-relação,masamor-sentimento:achamaqueuma
mãocelesteacendenaalmadeumhomem;atochasobcujaluzoqueama
"procuraoamadoemtodasasmetamorfoses".Umamorassim(oamorsentimento)nãoconheceainfidelidade,poismesmoseoobjetomuda,o
amorcontinuaamesmachama,iluminadapelamesmamãoceleste.
Nestepontodenossareflexão,talvezpossamoscomeçara
compreenderporque,nasuavolumosacorrespondência,Betinafaztão
poucasperguntasaGoethe.MeuDeus,imaginesetivessempermitidoque
vocêmantivesseumacorrespondênciacomele!Sobreoquevocêoteria
interrogado!Sobretodososseuslivros!Sobreoslivrosescritosporseus
contemporâneos.Sobreapoesia.
Sobreaprosa.
Sobreapintura.SobreaAlemanha.SobreaEuropa.Sobreaciênciae
sobreatécnica.Vocêoteriaempurradoatésuasúltimastrincheiraseo
levariaaexplicarsuasatitudes.Discutiriacomele,paraconstrangê-loa
formularoquenuncadisseraatéentão.
Ora,BetinanãodiscutecomGoethe.Nemmesmosobrearte.Comuma
únicaexceção:elalheexpõesuasideiassobremúsica.Maséelaquemlhe
dálições!BemsabequeGoethenãocompartilhadesuasopiniões.Então,
porquenãolheperguntaasrazõesdesuadivergência?Seelativesse
sabidoformularasperguntas,asrespostasdeGoethenosteriamfornecido
aprimeiracríticaantecipadadoRomantismonamúsica!
Masnão,nãoencontraremosnadaparecidonessavasta
correspondência:elanãonosinformagrandecoisasobreGoethe
simplesmenteporqueBetinaseinteressavamuitomenosdoquesepensa
porGoethe;acausaeosentidodeseuamornãoeraGoethe,masoamor.
Acivilizaçãoeuropeiaésupostamentefundamentadanarazão.Mas
tambémpoderíamosdizerqueaEuropaéumacivilizaçãodosentimento;
eladeuorigemaotipohumanoqueeugostariadechamarohomem
sentimental:homosentimentalis.
Areligiãojudaicaprescreveuumaleiaseusfiéis.Elapretendeser
racionalmenteacessível(otalmudeéumaracionalizaçãoperpétuasobre
asprescriçõesbíblicas);elanãoexigedosseusadeptosumsentido
misteriosodosobrenatural,nemumaexaltaçãoespecial,nemfogomístico
queimandoaalma.
Ocritériodobemedomaléobjetivo:éaleiescrita,quedeveser
compreendidaeobservada.
Ocristianismovirouessecritériodecabeçaparabaixo.AmeaDeuse
façaoquequiser,disseSantoAgostinho.Transferidoparaaalmado
indivíduo,ocritériodobemedomaltornou-sesubjetivo.Seaalmade
Untelécheiadeamor,estátudobem:estehomemébometudooqueele
fazébom.
BetinapensacomoSantoAgostinhoquandoescreveparaArnim:
"Encontreiumbeloprovérbio:overdadeiroamortemsemprerazão,
mesmoseestáerrado.QuantoaLutero,dissenumacarta:overdadeiro
amormuitasvezeséinjusto.Issonãomeparecetãobomquantoomeu
provérbio.Aliás,Luterodizia:oamorprecedetudo,mesmoosacrifício,
mesmoaoração.Concluoqueoamoréavirtudesuprema.Oamornosfaz
perderaconsciência(machtbewusstlos)doterrestreenosalimentacomo
celestial;assimoamornoseximedetodaculpa(machtunschuldig)."
Nestaconvicçãodequeoamorinocentaohomemrepousaa
originalidadedodireitoeuropeuedasuateoriadeculpabilidade,queleva
emconsideraçãoossentimentosdoacusado:quandovocêmataalguéma
sangue-frio,pordinheiro,vocênãotemnenhumadesculpa;sevocêomata
porqueelelheofendeu,suacóleralhevalerácircunstânciasatenuantesea
penaimpostaserámenor;enfim,sevocêforlevadoaoassassinatoporum
sentimentodeamorferido,porciúme,ojúrivaisimpatizarcomvocê,e
Paul,comoadvogadoencarregadodedefendê-lo,exigiráapenamáxima
paraavítima.
Éprecisodefinirohomemsentimentalnãocomoumapessoa
queexperimentasentimentos(porquetodossomoscapazesde
experimentá-los),mascomoumapessoaqueosvalorizou.Desdequeo
sentimentosejaconsideradocomoumvalor,todomundoquer
experimentá-lo;ecomotodosnóstemosorgulhodenossosvalores,é
grandeatentaçãodeexibirnossossentimentos.
Essatransformaçãodosentimentoemvalorproduziu-senaEuropaem
tornodoséculoXII:quandocantavamsuaimensapaixãoporumanobre
dama,porumabem-amadainacessível,ostrovadorespareciamtão
admiráveisetãobelosquetodos,aexemplodeles,queriamsevangloriar
deserapresadealgumindomávelmovimentodocoração.
Ninguémpenetrouohomosentimentaliscommaisperspicáciadoque
Cervantes.DomQuixotedecideamarumacertadama,Dulcineia,apesarde
malconhecê-la(nãoexisteaínadaquepossanossurpreender:quandose
tratadowahreLiebe,doverdadeiroamor,jásabemosquepoucoimportaa
amada).Nocapítulovinteecincodaprimeiraparte,eleretira-separaas
montanhasdesertasemcompanhiadeSancho,láondequermostrar-lhea
grandezadesuapaixão.
Mascomoprovarqueemsuaalmaardeumachama?Alémdomais,
comoprová-loparaumsertãoingênuoeprimitivocomoSancho?Então,no
caminhoíngreme,DomQuixotesedespe,ficaapenasdecamisa,epara
mostraraseuescudeiroaextensãodeseusentimento,começaadarsaltos
ecambalhotasemfrentedele.Cadavezqueficadecabeçaparabaixo,a
camisaescorregadeseusombroseSanchoenxergaseusexoquebalança.
Ocastoepequenomembrodocavaleiroofereceumespetáculotão
risivelmentetriste,tãopungente,queatéSancho,comsuaalmarústica,
nãoaguenta,montaemRocinanteevaiemboraemdisparada.
Quandoseupaimorreu,Agnèstevequeorganizaroenterro.Elanão
queriaqueacerimôniativessediscursoequeriaqueamúsicafosseo
AdágiodadécimasinfoniadeMahler,daqualseupaigostava
especialmente.Masessamúsicaerahorrivelmentetriste,eAgnèstemia
nãoconseguirreteraslágrimasduranteacerimônia.Considerando
inadmissívelsoluçarempúblico,colocounoseuaparelhodesomuma
gravaçãodoAdágioeaescutou.Umavez,depoisduas,depoistrês.A
músicaevocavaalembrançadeseupai,eelachorou.MasquandooAdágio
sooupelaoitavaounonaveznasala,opoderdamúsicaenfraqueceuena
décimaterceiraaudiçãoAgnèsficoutãocomovidaquantosetocassem
diantedelaohinonacionaldoParaguai.Graçasaessetreinamentoelanão
chorounoenterro.
Pordefinição,osentimento,surgeemnósànossareveliaemuitas
vezescomnossocorposedefendendo.Domomentoquequeremos
experimentá-lo(assimquedecidimosexperimentá-lo,comoDomQuixote
decidiuamarDulcineia),osentimentonãoémaissentimento,masimitação
desentimento,suaexibição.Aquiloquegeralmentechamamoshisteria.É
porissoqueohomosentimentalis(emoutraspalavras,aquelequeinstituiu
osentimentocomovalor)énarealidadeidênticoaohomohystericus.
Oquenãoquerdizerqueohomemqueimitaosentimentonãoosinta.
OatorquerepresentaopapeldovelhoreiLearsenteemcena,defronte
aosespectadores,atristezaautênticadeumhomemabandonadoetraído,
masessatristezaevapora-senomesmomomentoquearepresentação
termina.Éporissoqueohomosentimentalislogodepoisdenoster
comovidocomseusgrandessentimentos,nosdesconcertacomsua
inexplicávelindiferença.
DomQuixoteeravirgem.Betinatinhavinteecincoanosquandosentiu
pelaprimeiravezamãodeumhomememseuseio,noquartodehotelem
Teplitz,ondeestavaasóscomGoethe.EGoethe,segundoseusbiógrafos,só
conheceuoamorfísicodurantesuafamosaviagemàItália,quandojá
estavacomquasequarentaanos.Poucodepois,emWeimar,encontroua
operáriadevinteetrêsanosquesetransformouemsuaprimeiraamante
permanente.EraCristianaVulpiusque,depoisdemuitosanosdevidaem
comum,tornou-sesuaesposaem1806,equeumdia,nomemorávelano
de1811,jogounochãoosóculosdeBetina.Erafielmentedevotadaaseu
marido(protegeu-ocomseucorpo,dizem,diantedossoldadosde
Napoleão)ecertamenteexcelenteamante,oqueéconfirmadopelo
encantamentodeGoethe,queachamavameinBettschatz,expressãoque
sepoderiatraduzirpor"tesourodeminhacama".
Noentanto,nahagiografiadeGoethe,Cristianasitua-sealémdoamor.
OséculoXIX(mastambémonosso,cujaalmacontinuasemprecativado
séculoprecedente)recusou-seadeixarCristianaentrarnagaleriados
amoresdeGoethe,aoladodeLotte(aquelaqueserviriademodeloà
CharlottedeWerther),deFrédérique,deLili,deBetinaoudeUrilke.Vocês
diriamqueeraporsersuaesposa,equeadotamosohábitodeconsiderar
ocasamentocomoumacoisaantipoética.Masachoqueaverdadeirarazão
émaisprofunda:opúblicorecusou-seaveremCristianaumamorde
GoethesimplesmenteporqueGoethedormiacomela.Poisotesourodo
amoreotesourodacamaapareciamcomoduascoisasincompatíveis.Seos
escritoresdoséculoXIXgostavamdeterminarseusromancescom
casamentos,nãoeraparaprotegerahistóriadeamordamonotonia
matrimonial.Não,eraparaprotegê-ladocoito.
Asgrandeshistóriasdeamoreuropeiassedesenrolamnumespaço
foradocoito:ahistóriadaprincesadeClèves,adePauleVirgínia,o
romancedeFromentin,cujoherói,Dominique,gostaavidainteiradeuma
únicamulherquenuncabeijoue,claro,ahistóriadeWerther,eade
VictoriadeHamsun,eadePierreeLucie,essespersonagensdeRomain
RollandqueemseutempofizeramchorarasleitorasdetodaaEuropa.No
Idiota,DostoievskideixouNastassiaPhilippovnadormircomoprimeiro
comerciantequeapareceu,masquandochegouavezdapaixão
verdadeira,istoé,quandoNastassiaseviuentreopríncipeMichkinee
Rogojine,seussexossedissolveramemtrêsgrandescoraçõescomo
pedaçosdeaçúcaremtrêsxícarasdechá.OamordeAnnaKareninaede
Vronskiterminoucomseuprimeiroatosexual,esseamorlogoenvelheceu
enemsabemosporquê:seráquefaziamamordemodotãolamentável?
Ouaocontrário,seráqueseamavamcomtantoentusiasmoqueaforçada
volúpiafeznascernelesosentimentodopecado?Qualquerquesejaa
resposta,chegaremossempreàmesmaconclusão:depoisdoamorprécoital,nãoexistiamaisograndeamor,enempoderiaexistir.
Issonãosignificaabsolutamentequeoamorforadocoitofosse
inocente,angélico,infantil,puro:aocontrário,eleencerravatudooquese
podeimaginardeinfernalnestemundo.NastassiaPhilippovnapôde
dormircomtodatranquilidadecomplutocratasvulgares;masdepoisdo
seuencontrocomMychkineeRogojine,cujossexos,comojádisse,se
dissolveramnograndesamovardosentimento,elapenetranumazonade
catástrofeeseperde.
LembremostambémestacenasoberbadeDominique,deFromentin:os
doisnamoradosqueseamaramduranteanossemsetocarvãodarum
passeioacavaloeaterna,afina,adelicadaMadeleinetemacrueldade
inesperadadeforçarseucavaloagalopardesenfreadamente,sabendo
bemqueDominiqueémaucavaleiroesearriscaamorrer.Oamor
extracoital:umapanelanofogo,naqualosentimento,levadoaopontode
ebulição,transforma-seempaixãoefaztremeratampaquecomeçaa
dançarloucamente...
Anoçãoeuropeiadeamortemraízesnosoloforadocoito.OséculoXX,
quesevangloriadeterliberadoasexualidadeegostaderidicularizaros
sentimentosromânticos,nãosoubedarànoçãodeamornenhumoutro
sentido(éumdosnaufrágiosdesteséculo),demodoqueumjovem
europeu,quandopronunciamentalmenteessagrandepalavra,sevê
transportadonasasasdoencantamento,querqueiraquernão,parao
pontoexatoemqueWertherviveuseuamorporLotteeemque
Dominiquequasecaiudocavalo.
ÉsignificativoqueRilke,admiradordeBetina,tenhaadmiradotambém
aRússia,apontodeconsiderá-laporumperíodocomosuapátria
espiritual.PoisaRússiaé,porexcelência,opaísdosentimentocristão.Foi
preservadadoracionalismodaescolásticamedieval,nãoconheceua
Renascença.Ostemposmodernos,fundamentadosnopensamentocrítico
cartesianoaatingiramcomumoudoisséculosdeatraso.Portantoohomo
sentimentalisnãoencontrounaRússiacontrapesosuficienteetornou-seali
suaprópriahipérbole,oquechamamoscomumenteaalmaeslava.
ARússiaeaFrançasãodoispólosdaEuropaqueexercerãouma
atraçãoeternaumpelooutro.AFrançaéumvelhopaíscansadoondeo
sentimentosósobrevivecomofórmulas.Paraterminarumacarta,um
francêsescreve:"Queiraaceitar,carosenhor,acertezademeus
sentimentosespeciais."Quandorecebipelaprimeiravezumacartaassim,
assinadaporumasecretáriadasEdiçõesGallimard,viviaaindaemPraga.
Salteiatéotetodealegria:emParisexisteumamulherquemeama!
Conseguiunasúltimaslinhasdeumacartaoficialintroduziruma
declaraçãodeamor!Nãoapenaselasentepormimsentimentos,masela
acentuaexpressamentequeelessãoespeciais!Nuncaumatchecame
dissecoisaparecida!
Bemmaistarde,quandomeinstaleiemParis,explicaram-mequea
práticaepistolaroferecetodoumlequesemânticodefórmulasdepolidez;
permitemqueumfrancêsescolhascomaprecisãodeumfarmacêuticoo
sentimentoquequiser,semsenti-lo,expressando-oaodestinatário;nessa
gamadeescolhaossentimentosespeciaisrepresentamograumaisbaixo
dapolidezadministrativa,chegandoquaseaodesprezo.
Oh,França!ÉsopaísdaForma,comoaRússiaéopaísdoSentimento!
Éporissoqueumfrancêseternamentefrustradodenãosentirnenhuma
chamaqueimaremseupeito,contemplacominvejaenostalgiaopaísde
Dostoievski,ondeoshomensestendemaosoutroshomenslábiosfraternos,
prontosaestrangularquemserecusarabeijá-los.Aliás,seestrangularem,
éprecisoperdoá-loslogo,poisagiramsobodomíniodeumamorferido,e
Betinanosensinouqueoamorperdoaàquelequeama.Pelomenoscento
evinteadvogadosparisiensesalugariamumtremparaMoscou,afimde
defenderoassassinosentimental.Nãoseriamlevadosporqualquer
sentimentodecompaixão(sentimentoexóticodemais,poucopraticadoem
seupaís),masporprincípiosabstratosquesãosuaúnicapaixão.O
assassinorusso,quenãosabenadadetudoisso,seprecipitaráemdireção
aseudefensorfrancêsdepoisdaabsolvição,paraabraçá-loebeijá-lonos
lábios.Amedrontado,ofrancêsrecuará,orussoofendidooapunhalará,e
todaahistóriavaiserepetir.
Ah!Osrussos...
EnquantoeuaindaviviaemPraga,contava-seestahistóriaengraçada
sobreaalmarussa.Comumaconstrangedorarapidez,umtchecoseduz
umarussa.Depoisdocoitoelalhedizcominfinitodesprezo:
—Vocêtevemeucorpo.Masnuncateráminhaalma!
Belaanedota.BetinaescreveuaGoethequarentaecincocartas,nelas
vemoscinquentavezesapalavraalma,apalavracoraçãocentoedezenove
vezes.
Éraroqueapalavracoraçãosejautilizadanosentidoanatômicoliteral
("meucoraçãobateu");maisfrequentementeéusadaporsinédoque,para
designaropeito("queriaapertá-loemmeucoração"),masnamaiorparte
doscasosapalavrasignificaamesmacoisaqueaalma:oeusensível.
Penso,logoexistoéumaafirmaçãodeumintelectualquesubestimaas
doresdedente.Sinto,logoexistoéumaverdadedealcancemuitomais
amploequeconcerneatodoservivo.Meueunãosedistingue
essencialmentedoseueupelopensamento.Muitaspessoas,poucasideias:
pensamostodosmaisoumenosamesmacoisa,transmitindo,pedindo
emprestado,roubandonossasideiasumdooutro.Massealguémpisameu
pé,sóeusintoador.Ofundamentodoeunãoéopensamentomaso
sofrimento,sentimentomaiselementardetodos.Nosofrimento,nemum
gatopodeduvidardeseueuúnicoenãointercambiável.
Quandoosofrimentoémuitoagudo,omundodesapareceecadaumde
nósficasóconsigomesmo.OsofrimentoéaGrandeEscolado
egocentrismo.
—Vocênãotemumprofundodesprezopormim?PerguntaHippolyte
aopríncipeMychkine.
—Porquê?Seriaporquevocêsofreuesofremaisdoquenós?
—Não,apenasporquesouindignodomeusofrimento.
Souindignodomeusofrimento.Grandefórmula.Implicaque
osofrimentonãoéapenasofundamentodoeu,suaúnicaprovaontológica
indubitável,mastambém,detodosossentimentos,omaisdignode
respeito.Ovalordosvalores.ÉporissoqueMychkineadmiratodasas
mulheresquesofrem.
AoverpelaprimeiravezafotodeNastassiaPhilippovna,elediz:
—Estamulherdevetersofridomuito.Essaspalavrasestipulamde
umasóvez,antesmesmoquepossamosverapessoa,queNastassia
Philippovnasesituaacimadetodasasoutras.
—Eunãosounada,masvocê,vocêsofreu,dizenfeitiçadoMychkinea
Nastassianocapítuloquinzedaprimeiraparte,edesdeentãoestáperdido.
DissequeMychkineadmiratodasasmulheresquesofrem,maso
inversonãoémenosverdadeiro:assimqueumamulherlheagrada,elea
imaginasofrendo.Ecomonãosabeseguraralíngua,apressa-seemdizê-lo.
Aliás,esteéumexcelentemétododesedução(penaqueopríncipenão
saibatirardelemelhorpartido),porquesedizemosàumamulher:"Você
sofreumuito",écomosefalássemosdiretamenteàsuaalma,comose
acariciássemosessaalmaeaexaltássemos.Todamulheremtal
circunstânciaestáprontaanosdizer:
—Vocêaindanãotemmeucorpo,masminhaalmajáésua!Sobo
olhardeMychkine,aalmanãopáradecrescer,pareceumgigantesco
cogumelo,tãoaltoquantoumacasadecincoandares,parececomumbalão
queaqualquermomentopodevoarparaocéucomasuatripulação.Éisso
quechamoahipertrofiadaalma.
QuandoGoetherecebeudeBetinaoprojetodaestátua,sentiu,sevocê
selembra,umalágrimanoolho;tinhaentãocertezadequeseuforomais
íntimolhefaziaconhecer,destaforma,averdade:Betinaoamava
realmenteeeleerainjustoemrelaçãoaela.Sómaistardecompreendeu
quealágrimanãolherevelavanenhumaverdadesurpreendentesobrea
dedicaçãodeBetina,massimplesmenteumaverdadebanalsobresua
própriavaidade.Tevevergonhadesedeixarlevarpelademagogiadesua
lágrima:realmente,apartirdoscinquentaanos,tiveralongasexperiências
comela:cadavezquealguémoelogiava,ouquandoeleprópriosentiauma
ondadeauto-satisfaçãodiantedeumaboaaçãoquerealizava,ficavacom
lágrimasnosolhos.Oqueéumalágrima?Goetheperguntava-semuitas
vezesenuncaencontrouaresposta.Noentantoumacoisaficouclara:
muitasemuitasvezes,alágrimanasciadaemoçãoprovocadaemGoethe
aoverGoethe.
CercadeumasemanadepoisdahorrívelmortedeAgnès,Laurafez
umavisitaaPaul,arrasadodedor.
—Paul,disseela,estamossósnomundo.
Paulsentiuaslágrimassubirem-lheaosolhosevirouacabeçapara
disfarçarsuador.
FoiprecisamenteessemovimentodecabeçaquelevouLauraa
segurar-lhefirmementeobraço:
—Paul,nãochore!
Olhando-aatravésdesuaslágrimas,constatouqueelatambémestava
comosolhosmolhados.Sorriu.
—Évocêqueestáchorando,disseelecomavoztrêmula.
—Sevocêprecisardoquequerqueseja,Paul,saibaqueestouaqui,
queestouinteiramentecomvocê.
Paulrespondeu:
—Seidisso.
AlágrimanoolhodeLauraeraalágrimadaemoçãoqueísuscitavaem
LauraavisãodeumaLauradecididaafazerosacrifíciodesuavida,
ficandoaoladodomaridodesuairmãdesaparecida.
AlágrimanoolhodePauleraalágrimadaemoçãosuscitadaemPaula
fidelidadedeumPaulincapazdevivercomumaoutramulherquenão
fosseaprópriasombradesuacompanheiradesaparecida,suaimitação,
suairmã.
Edepois,umdia,deitaramnumagrandecamaealágrima(a
misericórdiadalágrima)levouaúltimasuspeitaquetalvezaindativessem
detrairamorta.
Aartemilenardaambiguidadeeróticaveiosocorrê-los:estavam
deitadosumaoladodooutro,nãocomoumcasal,mascomoirmãoeirmã.
ParaPaul,Lauratinhasidoumtabu;jamaisaassociouaumaimagem
sexual,nemmesmonoâmagodeseupensamento.Sentia-secomoum
irmãoparaela,encarregada,portanto,desubstituirsuairmã.Aprincípio
essesentimentotornou-lhemoralmentemaisfácilirparaacamacomela,
depoisencheu-odeumaexcitaçãointeiramentedesconhecida:elessabiam
tudoumsobreooutro(comoumirmãoeumairmã)eoqueosseparava
nãoeraodesconhecidomasainterdiçãojávelhadevinteanosque,como
tempo,tornava-secadavezmaisinviolável.Nadaestavamaispróximoque
ocorpodooutro.Nadaeramaisproibidoqueocorpodooutro.Comuma
excitantesensaçãodeincesto(elágrimasnosolhos),começaramafazer
amor;eleaamoucomselvageria,comonuncaemsuavidaamaraalguém.
Dopontodevistadaarquitetura,existemcivilizaçõessuperioresàda
Europa,eatragédiaantigajamaisseráultrapassada.Masnenhuma
civilizaçãoconseguiucriar,apartirdossons,essemilagrequeéahistória
milenardamúsicaeuropeia,comtodasuariquezadeformasedeestilos!
AEuropa:grandemúsicaehomosentimentalis.Doisgêmeosdormindo
ladoaladonomesmoberço.
Amúsicanãosóensinouaoeuropeuasensibilidade,mastambéma
aptidãodevenerarossentimentoseoeusensível.Vocêconheceessa
situação:nopalco,oviolonistafechaosolhos,longamente,fazressoaras
duasprimeirasnotas.Oouvinte,porsuavez,fechaosolhosesentindosua
almaencher-lheopeito,suspira:—Comoébonito!
Noentanto,ouviuapenasduassimplesnotas,queemsimesmasnão
podemconternenhumpensamentodocompositor,nenhumaintenção
criativa,portantonenhumaarte,nenhumabeleza.Masessasnotastocaram
ocoraçãodoouvinte,impondosilêncioàsuainteligênciacomotambémao
seujulgamentoestético.Umsimplessommusicalageemnós
aproximadamentedamesmamaneiracomooolhardeMychkinefixando
umamulher.Amúsica:umabombainflandoaalma.Asalmas
hipertrofiadas,transformadasemenormesbalões,planamsobotetoda
saladeconcertoeseentrechocamnumaenormeconfusão.
Lauraamavaamúsicasinceraeprofundamente;emseuamorpor
Mahlerperceboumsignificadopreciso:Mahleréoúltimogrande
compositorqueaindasedirigecomsinceridadeaohomosentimentalis.
DepoisdeMahler,osentimentonamúsicatorna-sesuspeito.Debussyquer
nosencantar,nãonoscomover,eStravinskitemvergonhados
sentimentos.MahleréparaLauraoúltimocompositor,equandoouve,
vindodoquartodeBrigiteasvociferaçõesdorock,seuamorporuma
músicaemviasdedesaparecersobosgolpesdasguitarraselétricassenteseatingidoeelaseenfurece;porissodirigeaPaulumultimato;ouMahler
ouorock;oquequerdizer:oueuouBrigite.
Mascomoescolherentreduasmúsicasigualmentepoucoamadas?
ParaPaulorockémuitobarulhento(comoGoethe,eletemoouvido
delicado)eamúsicaromânticadespertaneleumasensaçãodeangústia.
Umdia,duranteaguerra,quandoemtornodeletodomundoestava
aterrorizadopelamarchaameaçadoradaHistória,emvezdetangosoude
valsasorádiocomeçouatransmitirosacordesemtommenordeuma
músicatristeesolene;emsuamemóriadecriançaessesacordesmenores
ficaramgravadosparasemprecomoummensageirodecatástrofes.Mais
tarde,compreendeuqueopathosdamúsicaromânticauniatodaaEuropa:
nósoouvimoscadavezqueumhomemdeEstadoéassassinadoouque
umaguerraédeclarada,cadavezemqueéprecisoencherdeglóriaas
cabeçasdaspessoasparaquesedeixemmatarmaisfacilmente.Asnações
quesedestruíamentresieramtomadasporumaemoçãofraternal
idênticaaoouvirosomdaMarchafúnebredeChopinouaSinfoniaheróica
deBeethoven.Ah!SedependessedePaulomundodispensariatantoo
rockquantoMahler.Masasduasmulheresnãolhedeixavamescapatória.
Elasoforçavamaescolher:entreduasmúsicas,entreduasmulheres.Ele
nãosabiaoquefazer,pois,essasmulheres,gostavadeumaedeoutra.
Elas,aocontrário,sedetestavam.Comtristezatorturante,Brigite
olhavaopianobrancoqueduranteanostinhalheservidodeprateleira:
lembrava-lheAgnèsqueporamoràirmãtinhasuplicadoqueela
aprendesseatocar.MalAgnèsmorrera,opianoreviveueeratocadotodos
osdias.ComainvasãodorockBrigitequeriavingaramãetraídae
expulsaraintrusa.QuandocompreendeuqueLauraficaria,foielaquem
partiu.Orockcalou-se.Odiscorodavanavitrola,ostrombonesdeMahler
ressoavamnoapartamentoedilaceravamocoraçãodePaul,arrasadocom
aausênciadeBrigite.LaurasegurouacabeçadePauleolhou-onosolhos:
—Querolhedarumfilho,eladisse.
Osdoissabiamquehámuitoosmédicoshaviam-lheavisadoque
evitasseumanovagravidez.Porissoacrescentou:—Fareitodasas
operaçõesnecessárias.
Chegouoverão.Laurafechouabutiqueeosdoisforampassarquinze
diasnapraia.Asondasquebravamnaareiaeesseruídoenchiaopeitode
Paul.Eraaúnicamúsicaqueamavacompaixão.Felizeatônito,viaLaura
confundir-secomessamúsica;foiaúnicamulheremsuavidaquefoipara
elecomoooceano;aúnicaquefoioceano.
RomainRolland,testemunhadaacusaçãonoprocessoeternomovido
contraGoethe,distinguia-seporduasqualidades:adoravaasmulheres
("elaémulhereporissonósaamamos"disseeledeBetina)etinhao
desejoentusiasmadodeprogredir(oqueparaelesignificava:coma
RússiacomunistaecomaRevolução).Curiosamente,esseadoradorda
feminilidadededicavaamesmaadmiraçãoaBeethoven,porqueelese
recusaraacumprimentarasmulheres.Esseérealmenteofundodo
problemasecompreendermosoquedeveteracontecidonaestaçãode
águasdeTeplitz:Beethoven,comochapéuenterradonacabeçaeasmãos
atrásdascostas,passapelaImperatrizesuacortequecertamentenãoera
compostasomentedehomensmastambémdemulheres.
Nãocumprimentá-losteriasidoumagrosseriasemigual!Éimpensável:
apesardeoriginalederude,Beethovennuncasecomportoucomoum
cafajesteemrelaçãoàsmulheres!Todaessaanedotaéumatolice
evidente:seelapôdetersidoacolhidaeespalhadacomcandura,éporque
aspessoas(eatémesmoumromancista,oqueéumavergonha!)
perderamtodoosentidodarealidade.
Poderãomeobjetarqueéabusivoexaminaraveracidadedeuma
anedotaque,evidentemente,nãoéumtestemunhomasumaalegoria.De
acordo;consideremos,portanto,aalegoriacomoalegoria;esqueçamosas
circunstânciasdesuaorigem(elascontinuarãosempreobscuras),
esqueçamosaparcialidadedequeumeoutroquiseramrevesti-la,e
tentemosapreenderseusignificado,porassimdizer,objetivo:Oque
significaochapéudeBeethovenprofundamenteenterradonacabeça?Que
Beethovendesprezaaaristocracia,porqueelaéreacionáriaeinjusta,
enquantoqueochapéunamãohumildedeGoetheimploraaomundo
continuartalqualé?Sim,essaéainterpretaçãocomumenteaceita,mas
eradifícildedefender:comoGoethe,Beethovenfoiobrigadoanegociar
comsuaépocaummodusvivendiparasimesmoeparasuamúsica;assim,
elededicavaassuassonatas,oraaumpríncipe,oraaoutroe,para
celebrarosvencedoresdeNapoleãoreunidosemViena,nãohesitouem
comporumacantataemqueocorogritavaaspalavras"Queomundoseja
denovoaquiloqueera!";chegouatéaescreverumapolonaiseparaa
ImperatrizdaRússia,comsequisessedepositarsimbolicamenteainfeliz
Polônia(essaPolôniapelaqualBetinalutariacorajosamentetrintaanos
maistarde)aospésdeseuusurpador.
Portanto,se,emnossocarroalegórico,Beethovencruzacomogrupode
aristocratassemtirarseuchapéu,issonãopodesignificarqueos
aristocratassejamreacionáriosdesprezíveiseeleumrevolucionário
admirável;issosignificaqueaquelesquecriam(estátuas,poemas,
sinfonias)merecemmaisrespeitodoqueaquelesquegovernam
(empregados,funcionáriosoupovos).Queacriaçãorepresentemaisqueo
poder,aartemaisqueapolítica.Queasobrassãoimortais,nãoasguerras
nemosbailesdospríncipes.
(Aliás,Goethedeviateramesmaopinião,sóqueachavainútilrevelar
essaverdadedesagradávelaosmestresdomundoenquantovivos.Tinha
certezadequenooutromundoelesocumprimentariamprimeiro,eessa
certezalhebastava.)
Aalegoriaéclara,enoentantoéinterpretadasempreaocontrário:
aquelesque,diantedoquadroalegóricoapressam-seemaplaudir
Beethoven,nãoentendiamnadadoseuorgulho;namaiorpartedasvezes
pessoasobscurecidaspelapolítica,epreferemLenine,Castro,Kennedyou
MitterrandaPicassoouFellini.CertamenteRomainRollandtirariaseu
chapéuabaixando-oaindamaisqueGoethe,setivessevistonaaleiade
TeplitzStalinseaproximandodele.
OrespeitodeRomainRollandpelafeminilidademepareceumpouco
bizarro.Ele,queadmiravaBetinapelasimplesrazãodelasermulher("ela
émulhereporissonósaamamos"),nadaencontroudeadmirávelem
Cristianaque,semdúvida,tambémeramulher!DizqueBetinatemum
coração"ternoelouco",queelaé"loucaesábia","loucamentevivae
sorridente",erepetemuitasvezes"louca".Ora,sabemosqueparaohomo
sentimentalisaspalavras"louco",
"louca","loucura"(queemfrancês,"fou","folie","folie",temuma
ressonânciaaindamaispoéticadoquenasoutraslínguas!)significaa
exaltaçãoliberadadossentimentosdetodaacensura("osdelíriosativos
dapaixão",comodizEluard)econsequentementesepronunciamcomuma
comovidaadmiração.DeCristiana,aocontrário,oadoradordemulherese
doproletariadonãofalanuncasemjuntaraseunome,emdesacordocom
todasasregrasdagalanteria,osadjetivos
"ciumenta","vermelhaepesada","gorda","inoportuna","curiosa"e
"obesa".
Curiosamente,oamigodasmulheresedoproletariado,omensageiro
daigualdadeedafraternidade,nãomanifestanenhumaemoçãocoma
ideiadequeCristianafosseumaantigaoperáriaequeGoethedemonstrou
umacoragemforadocomumaoviverabertamentecomela,casando-se
depois.Eletevequeenfrentarnãoapenasascalúniasdossalõesde
Weimar,mastambémadesaprovaçãodeseusamigosintelectuais,Helder
eSchiller,queaolhavamdecima.NãomesurpreendesaberqueaWeimar
dosaristocratastenhaaplaudidoaopiniãodeBetinaqualificandoMadame
Goethedesalsichona.Masficosurpresodeverissoaplaudidopeloamigo
dasmulheresedaclasseoperária.Comoelepôdesentir-setãopróximoda
jovemaristocrataqueexibiamaliciosamentesuaculturadiantedeuma
mulhersimples?EcomoéqueCristiana,quebebia,dançava,engordava
alegrementesemseimportarcomsualinha,nuncatevedireitoaodivino
qualificativode"louca"etenhasido,paraoamigodoproletariado,apenas
"inoportuna"?
Comoéqueoamigodoproletariadonãoteveaideiadetransformara
cenadosóculosquebradosnumquadroalegóricoemqueumamulherdo
povoinfligeumapuniçãojustaaumaintelectualarrogante,equeGoethe,
tomandoadefesadesuamulher,enfrentacomacabeçaerguida(esem
chapéu!)oexércitodanobrezaedeseusdetestáveispreconceitos?
Claro,umatalalegorianãoseriamenosbobaqueaprecedente.No
entantoaquestãopermanece:porqueoamigodoproletariadoedas
mulheresteriapreferidoumaalegoriabobaaqualqueroutra?Porque
preferiuBetinaaCristiana?
Estaperguntanoslevaaocernedaquestão.
Ocapítuloseguintenosdaráaresposta.
GoethepersuadiaBetina(numacartasemdata)a"sairdesimesma".
Hoje,diríamosqueelecensuravaseuegocentrismo.Mas,teriaeleo
direitodefazerisso?Quemtomaraopartidoeabraçaraacausados
patriotasdoTirol?
QuemdefenderaamemóriadePetõfieavidadocondenadoàmorte
Mieroslawski?Quempensavaconstantementenosoutros?Qualdosdois
estavaprontoasacrificar-se?
Betina.Semdúvidanenhuma.MasaobservaçãodeGoethe,noentanto,
nãoficainvalidada,poisBetinanuncasaiudeseueu.Ondequerquetenha
ido,seueuflutuavaatrásdelacomoumabandeira.Oqueaincitouatomar
opartidoeacausadosmontanhesesdoTirolnãoforamosmontanheses,
masacativanteimagemdeBetinaapaixonadapelalutadosmontanheses
doTirol.OqueaincitouaamarGoethe,nãofoiGoethe,masaimagem
sedutoradameninaBetinaapaixonadapelovelhopoeta.
Lembro-medeseugesto,quechameidegestododesejode
imortalidade:primeiroelacolocouosdedosnumpontosituadoentreseus
doisseios,comoparaindicarocentrodaquiloquechamamosoeu.Depois
lançouasmãosparafrente,comoparaprojetaresseeumuitolonge,além
dohorizonte,emdireçãoàimensidade.Ogestododesejodeimortalidade
nãoconhecesenãodoispontosdereferência:oeuaqui,eohorizontelá
longe;eapenasduasnoções:oabsolutoqueéoeueoabsolutodomundo.
Portantoessegestonãotemnadaemcomumcomoamor,jáqueooutro,o
próximo,qualquerhomemqueseencontreentreestesdoispólos
extremos(omundoeoeu),estáexcluídoantecipadamentedojogo,
omitido,invisível.
Orapazquesealistaaosvinteanosnopartidocomunistaouquede
fuzilnamãovaisejuntaràguerrilhanasmontanhas,ficafascinadopor
suaprópriaimagemderevolucionário:éelaqueodistinguedosoutros,é
elaquefazcomqueelesetorneelemesmo.Naorigemdesualuta
encontra-seoamorexacerbadoeinsatisfeitodeseueu,aoqualdesejadar
contornosbemnítidos,antesdeenviá-lo(fazendoogestododesejode
imortalidade,comoacabeidedescrever)aograndepalcodaHistóriapara
ondeconvergemmilharesdeolhares;esabemos,porexemplo,por
MychkineeporNastassiaPhilippovna,quesobosolharesintensamente
dirigidosparaelaaalmanãopáradecrescer,deinflar,deaumentarde
volume,parafinalmentesubiremdireçãoaofirmamentocomoumbalão
magnificamenteiluminado.
Oqueincitaaspessoasalevantaropunho,apegaremumfuzil,a
defenderemjuntascausasjustasouinjustas,nãoéarazão,massimaalma
hipertrofiada.ÉelaocombustívelsemoqualomotordaHistórianão
funcionariaesemoqualaEuropaestariadeitadasobreagrama,olhando
preguiçosamenteasnuvensqueflutuamnocéu.
Cristiananãosofriadenenhumahipertrofiadaalmaenãodesejava
absolutamenteexibir-senograndepalcodaHistória.Desconfioqueela
preferissedeitar-senagrama,paraolharasnuvensflutuandonocéu.
(Desconfioquenessesmomentoselaatéficassefeliz,ideiadesagradável
paraohomemdealmahipertrofiadaque,consumidopelaschamasdeseu
eu,nuncaestáfeliz.)PortantoRomainRolland,amigodoprogressoedas
lágrimas,nãohesitouumminutoquandotevequeescolherentreCristiana
eBetina.
Passeandopeloscaminhosdoalém,Hemingwayviuaolongeumjovem
quevinhaaoseuencontro;eleestavaelegantementevestidoecomboa
postura.
Amedidaqueesseeleganteaproximava-se,Hemingwaypodia
distinguiremseuslábiosumsorrisoleveemalicioso.QuandoestaVa
próximo,ojovemdiminuiuopassocomosequisessedaraHemingway
umaúltimachancedereconhecê-lo.
—Johann!Hemingwaygritouespantado.
Goethesorriucomsatisfação,orgulhosocomseuexcelenteefeito
cênico.
Nãoesqueçamosque,tendodirigidopormuitotempoumteatro,sabia
manejaressesefeitos.Depoispegouseuamigopelobraço(interessante:se
bemquemaismoçonessemomento,elecontinuavaasecomportarcom
Hemingwaycomaamávelindulgênciadealguémmaisvelho)elevou-o
paraumlongopasseio.
—Johann,disseHemingway,hojevocêestábonitocomoumdeus!A
belezadeseuamigolhedavaumprazersinceroeriufeliz:
—Masondeestãoseuschinelos?Esuaviseiraverde,ondefoiparar?
Equandoparouderir:—Éassimquevocêdeviaseapresentarparao
eternoprocesso.Esmagarosjuízesnãocomseusargumentos,mascom
suabeleza!
—Vocêsabequenuncadisseumapalavranoprocessoeterno.Erapor
desprezo.Masnãopudedeixardeiredeescutá-los.Lamento.
—Oquevocêquer?Condenaramvocêàimortalidadeparapuni-lopor
terescritolivros.Vocêmesmomeexplicouisso.
Goethelevantouosombrosedissecomcertoorgulho:
—Numcertosentido,podeserquenossoslivrossejamimortais.Pode
ser.
Depoisdeumapausa,juntouameia-voz,emtomgrave:
—Masnãonós.
—Aocontrário!Hemingwayprotestoucomamargura.Nossoslivros,é
provávelquelogoparemdelê-los.DoseuFaustonãosobrarásenãouma
óperabobadeGounod.Etalvez,também,esseversoquetratadaquestão
doeternofemininoquenoslevaaalgumlugar.
—DasEwigweiblicheziehtunshinan,recitouGoethe.
—Éisso.Masoshomensnuncadeixarãodecomentaros
menoresdetalhesdesuavida.
—Atéhojevocênãocompreendeuqueospersonagensdequefalam
nãotêmnadaaverconosco?
—Vocênãovaiquererdizer,Johann,quenãohánenhumarelação
entrevocêeoGoethedequemtodomundofala,esobrequemtodomundo
escreve.
Admitoquevocênãoéinteiramenteidênticoàimagemqueficoude
você.
Admitoquenelavocêestejabastantedeformado.Mas,aindaassim,está
representadonela.
—Não,nãoestoupresentenestaimagem,disseGoethecombastante
firmeza.Edigomais.Emmeuslivrostambémnãoestoupresente.Aquele
quenãoé,nãopodeestarpresente.
—Essalinguagemémuitofilosóficaparamim.
—Esqueçauminstantequevocêéamericanoetrabalhecomseu
cérebro:aquelequenãoé,nãopodeestarpresente.Étãocomplicado
assim?Desdeoinstantedaminhamorte,abandoneitodososlugaresque
ocupava.Mesmomeuslivros.Esseslivroscontinuamnomundosemmim.
Ninguémmeacharámaisneles.Porquenãosepodeacharquemnãoé.
—Gostariamuitodeacreditaremvocê,continuouHemingway,mas
diga-me:sesuaimagemnãotemnadaemcomumcomvocê,porquevocê
consagrou-lhetantoscuidadosemvida?PorqueconvidouEckermannpara
ficaremsuacasa?PorqueresolveuescreverPoesiaeVerdade!
—Ernest,resigne-seaadmitirquefuitãoabsurdoquantovocê.A
preocupaçãocomaprópriaimagem,essaéaincorrigívelimaturidadedo
homem.
Étãodifícilficarindiferenteàsuaimagem!Umaindiferençadessas
suplantaasforçashumanas.Ohomemsóaconquistadepoisdesuamorte.
Emais,nãologodepois.Muitodepoisdesuamorte.Vocêaindanãochegou
lá.Vocêaindanãoéadulto.E,noentanto,vocêestámorto...Jáháquanto
tempo?
—Vinteeseteanos,disseHemingway.
—Émuitopouco.Éprecisoesperaraindavinteoutrintaanospelo
menos.
Sóentãocompreenderá,talvez,queohomemémortalesaberátalvez
tirardissotodasasconclusões.Impossívelchegaraissoantes.Algum
tempoantesdeminhamorte,acheiquesentiaemmimumatalforça
criadoraqueseutotaldesaparecimentomepareciaimpossível.Éclaro,
acreditavadeixardemimumaimagemqueseriameuprolongamento.Sim,
fuicomovocê.Mesmodepoisdamorte,foidifícilparamimresignar-mea
nãosermais.Émuitoestranho,sabe?
Sermortaléaexperiênciahumanamaiselementar,enoentantoo
homemnuncafoicapazdeaceitá-la,decompreendê-la,decomportar-sede
acordocomisso.Ohomemnãosabesermortal.Equandomorre,nemsabe
ficarmorto.
—Evocê,vocêachaquesabeficarmorto?perguntouHemingwaypara
atenuaragravidadedomomento.
—Vocêacharealmentequeamelhormaneiradeestarmortoéperder
seutempoconversandocomigo?—Nãosejaidiota,Ernest,disseGoethe.
Vocêsabequenomomentonãosomossenãoafantasiafrívoladeum
romancistaquenosfazdizeraquiloqueprovavelmentenuncadissemos.
Masvamosadiante.Vocênotoumeuaspectohoje?
—Jálhedisse,logodepoisqueoreconheci!Vocêestábelocomoum
deus!
—Eraassimqueeuera,naépocaemquetodaaAlemanhaviaemmim
umimplacávelsedutor,disseGoethenumtomquasesolene.Depois
acrescentou,emocionado:quisquevocêguardassedemimessaimagem
nodecorrerdeseuspróximosanos.
Hemingwayolhou-ocomsúbitaeternaindulgência:
—Evocê,Johann,qualasuaidadepost-morten?
—Centoecinquentaeseisanos,Goetherespondeucomumcerto
pudor.
—Evocêaindanãoaprendeuaficarmorto?Goethesorriu:
—Sei,Emest,estouagindoumpoucoemcontradiçãocomoqueacabo
delhedizer.Semedeixeilevarporessavaidadeinfantil,éporqueestamos
nosvendohojepelaúltimavez.
Depois,lentamente,comoumhomemquedaíemdiantenãofarámais
nenhumadeclaração,pronunciouestaspalavras:
—Poiscompreendi,deumavezportodas,queoeternoprocessoé
umaestupidez.Finalmentedecidiaproveitarmeuestadodemortopara,se
mepermiteessaexpressãoinexata,irdormir.Parasaborearavolúpiado
não-sertotal,quemeugrandeinimigoNovalisdiziaterumacorazulada.
QuintaParte
Oacaso
Depoisdoalmoço,voltouparaoquarto.Eraumdomingo,ohotelnão
esperavanenhumhóspedenovo,ninguémapressionavaadeixaroquarto,
agrandecamaficaradesfeita,comoadeixarademanhã.Esseespetáculoa
enchiadefelicidade:tinhapassadoessasduasnoitessozinha,semouvir
outroruídoanãosersuaprópriarespiração,deitadaenviesadadeum
ladoaoutrodacamacomosequisesseapoderar-sedetodaessasuperfície
retangularquesópertenciaaseucorpoeaseusono.
Emsuamalaabertasobreamesa,tudojáestavanolugar:emcimada
saiadobradaestavam,numaediçãoembrochura,ospoemasdeRimbaud.
Elaostinhalevadoporquenasúltimassemanastinhapensadomuitoem
Paul.AntesdeBrigitenascer,elasubianagarupadeumagrande
motocicletaepercorriamtodaaFrança.Emsualembrança,esteperíodoe
estamotoseconfundiamcomRimbaud:eraopoetadeles.
Elaapanharaessespoemassemi-esquecidoscomoseapanhasseum
diárioíntimo,curiosaemverseasanotaçõesamareladaspelotempolhe
pareceriamcomoventes,ridículas,fascinantesousemnenhuma
importância.Osversoscontinuavamsempretãobelosquantoantes,mas
numpontoasurpreenderam:nãotinhamnadaavercomagrandemoto
queelacavalgavaoutroracomPaul.
OmundodapoesiadeRimbaudestavamuitomaispróximodos
contemporâneosdeGoethedoquedoscontemporâneosdeBrigite.
Rimbaud,quetinhaseimpostoaomundointeirocomoabsolutamente
moderno,eraumpoetadanatureza,umvagabundo,seuspoemas
continhampalavrasqueohomemdehojeesqueceuouquenãolhedão
maisnenhumprazer:grilos,olmos,agrião,aveleiras,tilias,urze,carvalho,
corvosagradáveis,excrementosquentesdevelhospombais;ecaminhos,
sobretudocaminhos.Nasnoitesazuisdoverãoireipeloscaminhosnomeio
dotrigo,pisandoarelvatenra...Nãofalareinada,nãopensareiemnada...e
ireilonge,muitolonge,comoumcigano,nomeiodanatureza—felizcomose
estivessecomumamulher...
Elafechouamala.Depoissaiupelocorredor,saiucorrendodohotel,
jogousuamalanobancodetrásesentou-seaovolante.
Eramduasemeiaeeraprecisopartirsemdemora,poiselanão
gostavadedirigirànoite.Masnãosedecidiaaligaromotor.Comoum
amantequenãotevetempodedizeroquetinhanopeito,apaisagemem
voltaaimpediadepartir.
Desceudocarro.Asmontanhasacercavam;asdaesquerdaestavam
iluminadasdecoresvivaseabrancuradasgeleirasbrilhavaporcimade
seuhorizonteverde;asdadireitaestavamenvoltasnumaneblinaque
impediaquesevissesuasilhueta.Eramdoisefeitosdeluzcompletamente
diferentes;doismundosdiferentes.Elavirouacabeçadaesquerdaparaa
direitaedadireitaparaaesquerdaedecidiufazerumúltimopasseio.
Tomouumcaminhoquesubiaprogressivamenteentreaspastagensem
direçãoàsflorestas.
SuaviagemaosAlpescomPaul,sobreagrandemotocicletaforahá
vinteanos.Paulgostavadomar,asmontanhasnãoosensibilizavam.Ela
queriafazê-logostardoseumundo;queriaqueeleficasseextasiadodiante
dasárvoresedaspastagens.Amotoestavaparadaaoladodaestradae
Pauldizia:
—Umapastagemnãoénadamaisdoqueumcampodesofrimento.
Nestelindoverde,umsermorreacadasegundo,asformigasdevoramna
terraasminhocasvivas,ospássarosestãovigilantesemplenocéu,à
espreitadeumadoninhaoudeumrato.Vocêestávendoestegatopreto
imóvelentreafolhagem?
Eleestásóesperandoumaoportunidadeparamatar.Achorepugnante
orespeitoingênuoquetemospelanatureza.Vocêachaquenas
mandíbulasdeumtigreumacorçaficamenosespantadadoquevocê
mesmaficaria?Seaspessoasdizemqueumanimalnãopodesofrertanto
quantoumhomem,éporquenãopoderíamossuportaraideiadeviverno
meiodeumanaturezaquenãoésenãoatrocidade,apenasatrocidade.
Paulficafelizdeverohomemcobrirpoucoapoucotodaaterrade
cimento.Paraele,eracomosetivessememparedadoumaforçaassassina
viva.
Agnèsocompreendiabemdemaisparaficarchocadacomessaaversão
ànatureza,motivada,porassimdizer,porsuabondadeeseusensode
justiça.
Mastalvezfossemaisociúmebastantebanaldeummaridoquese
esforçavaporseparardeumavezportodasafilhadopai.Poisfoideseu
paiqueAgnèsherdouoamorpelanatureza.Emsuacompanhia
percorreraquilômetrosequilômetrosdecaminhos,deslumbrando-secom
osilênciodosbosques.
Umdia,unsamigosalevaramparapasseardecarronapaisagem
americana.Eraumreinodeárvores,infinitoeinacessível,entrecortado
porlongasestradas.Osilênciodessasflorestasparecera-lhemais
ameaçadordoqueotumultodeNovaYork.NosbosquesdequeAgnès
gosta,oscaminhosseramificamempequenosdesvios,depoisematalhos;
pelosatalhosandamosguardas-florestais.Aolongodoscaminhosficamos
bancosdeondesepodeverapaisagemcheiadecarneirosevacas
pastando.ÉaEuropa,éocoraçãodaEuropa,osAlpes.
Háoitodias,rasgaraminhasbotasNaspedrasdocaminho...
Rimbaudescreveu.
Caminho:tiradeterrasobreaqualseandaapé.Aestradadiferenciasedocaminhonãosóporqueapercorremosdecarro,masporqueéuma
simpleslinhaligandoumpontoaoutro.Aestradaemsinãofaznenhum
sentido;sótêmsentidoosdoispontosligadosporela.Ocaminhoéuma
homenagemaoespaço.
Cadatrechodocaminhotemumsentidopróprioenosconvidaaparar.
Aestradaéumatriunfaldesvalorizaçãodoespaço,espaçoquehojeemdia
nãoémaisdoqueumentraveaosmovimentosdohomem,umaperdade
tempo.
Antesmesmodedesapareceremdapaisagem,oscaminhos
desapareceramdaalmahumana:ohomemnãotemmaisvontadede
caminharedeterprazernisso.Suavidatambém,elenãoavêmaiscomo
umcaminho,mascomoumaestrada:comoumalinhaquelevadeum
pontoaoutro,dopostodecapitãoaopostodegeneral,doestadodeesposa
aoestadodeviúva.Otempodeviverestáreduzidoaumsimplesobstáculo
queéprecisoultrapassarnumavelocidadecadadiamaior.
Ocaminhodaestradatambémencerraduasnoçõesdebeleza.Quando
Pauldiziaquehaviaumalindapaisagemnumcertolugar,queriadizer:se
vocêpararoseucarroali,veráumlindocastelodoséculoXVcercadopor
umparque;ouentão:existeumlago,ecisnesnadandoemsuasuperfície
espelhadaqueseperdenohorizonte.
Nomundodasestradas,umabelapaisagemsignifica:umapequena
ilhadebeleza,ligadaporumlongocaminhoaoutraspequenasilhasde
beleza.
Nomundodoscaminhos,abelezaécontínuaesemprevariada;acada
passo,elanosdiz"Pare!".
Omundodoscaminhoseraomundodopai.Omundodasestradasera
omundodeseumarido.AhistóriadeAgnèsacabanumcírculo:domundo
doscaminhosaomundodasestradas,eagoranovamenteaopontode
partida.PoisAgnèsseinstalanaSuíça.Suadecisãojáestátomada,eépor
issoqueháduassemanaselasesentetãocontínuaeloucamentefeliz.
Atardejáestavaavançadaquandoelavoltouparaseucarro.No
momentoexatoemquegirouachavenaignição,oprofessorAvenarius,de
calçãodebanho,aproximou-sedapequenapiscinaondeeujáoesperava
naáguaquente,agitadaporviolentosturbilhõesquejorravamdesuas
paredessubmersas.
Éassimqueosacontecimentossesincronizam.Cadavezqueumacoisa
acontecenolugarZ,umaoutratambémacontecenoslugaresA,B,C,D,E.
"Enomomentoexatoemque..."éumadasfórmulasmágicasque
encontramosemtodososromances,umafórmulaquenosenfeitiçana
leituradosTrêsmosqueteiros,oromancepreferidodoprofessorAvenarius,
aquemdigoàguisadecumprimento:—Nesteprecisomomento,enquanto
vocêentranapiscina,aheroínadomeuromanceenfimgirouachaveda
igniçãoepegouaestradaparaParis.
—Maravilhosacoincidência,disseoprofessorAvenariuscomvisível
satisfação,emergulhounaágua.
—Evidentementenomundoacontecem,acadasegundo,milharesde
coincidênciasdessegênero.Sonhoemescreverumgrandelivrosobreisso:
umaTeoriadoacaso.Primeiraparte:oacasoregendoascoincidências.A
classificaçãodosdiversostiposdecoincidências.Porexemplo:"No
momentoprecisoemqueoprofessorAvenariusmergulhaparaexporsuas
costasaosturbilhões,noparquepúblicodeChicagoumafolhamortacaide
umcastanheiro."Eisumacoincidênciadeacontecimentos,maselanãofaz
nenhumsentido.Naminhaclassificaçãoeuadenominocoincidênciamuda.
Masimaginesedigo:"nomomentoexatoemqueaprimeirafolhamorta
caíanacidadedeChicago,oprofessorAvenariusentravanapiscinapara
massagearascostas."Afrasetorna-semelancólica,porquevemoso
professorAvenariuscomoummensageirodooutono,eaáguanaqual
mergulhanosparecesalgadadelágrimas.Acoincidênciaprovocouno
acontecimentoumsignificadoimprevisto,éporissoqueachamode
coincidênciapoética.Maspossotambémdizer,comofizaovê-lo:"O
professorAvenariusmergulhounapiscinanomomentoprecisoemque
Agnès,emalgumlugarnosAlpes,punhaseucarronaestrada."Essa
coincidêncianãopodeserdenominadapoética,porqueelanãodánenhum
sentidoespecialàsuaentradanapiscina,maséumacoincidênciaassim
mesmomuitopreciosaeeuachamocoincidênciapúntica.Écomoseduas
melodiasseunissemnumamesmacomposição.Conheçoissodesdea
infância.Umgarotocantavaumamúsica,umoutroumaoutramúsica,e
elescombinavamtodasduas!
Masexisteaindaumoutrotipodecoincidência:"OprofessorAvenarius
enfiou-senometrôemMontparnassenomomentoexatoemqueláestava
umabelamulhersegurandoumalatavermelhadepediresmolas."Temos
aíumacoincidênciageradoradehistórias,especialmentecaraaos
romancistas.
Fiz,então,umapausa,esperandoincitá-loamecontarmaissobreo
encontronometrô;maselesecontentouemcurvarascostas,paraexpor
bastanteseulumbagoàmassagemdaáguaondulada,edeuaentender
quenãoestavanadainteressadonoúltimoexemploqueeudera.
—Nãopossomedesfazerdaideia,disseele,dequenavidahumanaa
coincidêncianãoéregidapelocálculodasprobabilidades.Querodizercom
issoquemuitasvezessomosconfrontadoscomacasostãoimprováveisque
nãotêmnenhumajustificativamatemática.Recentemente,estavaandando
porParis,numaruainsignificantedeumbairroinsignificante,encontrei
umamulherdeHamburgoqueviaquasetodososdiashávinteecinco
anos,equeperderacompletamentedevista.Entraranessaruapor
engano,haviadescidodometrôumaestaçãoantesdaminha.Quantoà
mulher,vieraaParispassartrêsdiasetinhaseperdido.Haviauma
probabilidadeemumbilhãodenosencontrarmos!
—Entãoqualéométodoquevocêadotaparacalcularaprobabilidade
dosencontroshumanos?
—Vocêconheceummétodo?
—Não.Elamento,respondi.Écurioso,masavidahumananuncafoi
submetidaaumaenquetematemática.Tomemosporexemplootempo.
Sonhoemfazerumaexperiência:aplicareletrodosnacabeçadeum
homemecalcularqualaporcentagemdesuavidaqueeleconsagraao
presente,queporcentagemàslembranças,queporcentagemaofuturo.
Destaformapoderíamosdescobriroqueéohomemnasuarelaçãocomo
tempo.Oqueéotempohumano.Ecomcertezapoderíamosdefinirtrês
tiposhumanosfundamentais,segundooaspectodotempoquefosse
dominanteparacadaum.Voltoaosacasos.Oquepodemosdizerdesério
sobreosacasosdavida,semumapesquisamatemática?Sóisso,quenão
existematemáticaexistencial.
—Matemáticaexistencial.Excelenteachado,disseAvenariusperdido
emsuameditação.Depoisdisse:—Dequalquermodo,queeletivessetido
umachanceemummilhãoouemumtrilhãodeacontecer,oencontroera
perfeitamenteimprovável,eaprópriaimprobabilidadefazseupreço.Pois
amatemáticaexistencial,quenãoexiste,colocariamaisoumenosessa
equação:ovalordeumacasoéigualaseugraudeimprobabilidade.
—Encontrarinesperadamente,emplenaParis,umabelamulherque
nãosevêhámuitosanos...digocomumarsonhador.
—Eumeperguntoemquevocêsebaseiaparainterpretarqueelaera
bonita.Elatomavacontadosvestiáriosdeumacervejariaquenaquela
épocaeufrequentavatodososdias,evieraaPariscomumgrupode
aposentadosparaumaexcursãodetrêsdias.Quandonosreconhecemos,
olhamo-noscomembaraço.Eatécomumcertodesespero,omesmoque
teriaumjovemaleijadoqueganhasseumabicicletanumarifa.Todosdois
tivemosaimpressãodeterrecebidodepresenteumacoincidênciamuito
preciosamasperfeitamenteinútil.Pareciaquealguémcaçoaradenóse
sentimosvergonhaumdiantedooutro.
—Essetipodecoincidênciapoderíamoschamardemórbida,eudisse.
Masemvãomepergunto:emquecategoriaqualificaroacasopeloqual
BernardoBertrandrecebeuseudiplomadeburrototal?
Avenariusrespondeucomseuarmaisautoritário:
—SeBernardoBertrandfoipromovidoaburrototaléporqueeleéum
burrototal.Oacasonãotemnadaavercomessaocorrência.Havianisso
umaabsolutanecessidade.MasasleisimplacáveisdaHistóriadequefala
Marxnãoseimpõemcomnecessidademaiordoqueessediploma.
Ecomoseminhaperguntaotivesseaborrecido,eleficouempéna
águacomtodasuaestaturaameaçadora.Eutambémmepusdepéefomos
nossentarnumbardooutroladodasala.
Tínhamospedidodoiscoposdevinhoedadooprimeirogole.Avenarius
continuou:
—Noentanto,vocêbemsabequecadaumdemeusatoséumatode
guerracontraSatânia.
—Éclaroquesei,respondi.Porissopergunto:porqueirritar-se
precisamentecomBernardoBertrand?
—Vocênãocompreendeunada,disseAvenarius,aparentemente
cansadodeverificarqueeunemsempreentendiaoqueelejáme
explicaradiversasvezes.
—ContraSatânianãoexistenenhumalutaeficazeracional.Marx
tentou,todososrevolucionáriostentaram,enofinaldascontaselase
apossoudetodasasorganizaçõesqueinicialmenteeramdestinadasa
destruí-la.Todoomeupassadoderevolucionárioacabounumadesilusãoe
hojesómeimportaestapergunta:oquepodefazeraqueleque
compreendeuaimpossibilidadedetodalutaorganizadaracionaleeficaz
contraSatânia?Sóexistemduassoluções:oubemseconformaedeixa
entãodeserelemesmo,oubemcontinuaacultivarsuanecessidadeíntima
derevolta,eamanifestadevezemquando.Nãoparamudaromundo,
comoMarxdesejavaoutrorajustificadamenteeemvão,masimpulsionado
porumimperativomoralíntimo.Ultimamentepenseimuitasvezesem
você.Eimportanteparavocêtambémexpressarrevolta,nãoapenaspor
romancesquenãopodemlhetrazernenhumasatisfação,maspelaação!
Queroquehojevocêfinalmentejunte-seamim!
—Mascontinuonãocompreendendo,respondi,porqueumimperativo
moralíntimolevou-oaatacaruminfelizapresentadorderádio.Querazões
objetivasolevaramaisso?Porquevocêoescolheu,enãoaoutro,como
símbolodeburrice?
—Proíbo-lheempregaressaestúpidapalavrasímbolo!Disse
Avenariuslevantandoavoz.Essaébemamentalidadedasorganizações
terroristas!Essaéamentalidadedospolíticosatuaisquenãosãomaisdo
quemalabaristasdesímbolos!Desprezodomesmomodoaquelesque
penduramumabandeiranasuajanela,eaquelesqueaqueimamnas
praças.Bernardo,ameusolhos,nãotemnadadesímbolo.Nadaparamim
émaisconcretodoqueele!Euoescutofalartodasasmanhãs!Sãosuas
palavrasqueinaugurammeudia!Elemeirritacomsuavozefeminada,sua
afetaçãoesuasbrincadeirasidiotas!Tudoquedizmepareceinsuportável!
Razõesobjetivas?Nãoseioqueissosignifica!Euopromoviaburrototal,
inspiradonaminhaliberdadepessoalmaisextravagante,maismaldosa,
maiscaprichosa!
—Éissoquequeriaouvirvocêdizer.VocênãoagiucomooDeusda
necessidade,mascomooDeusdoacaso.
—Acasoounecessidade,agrada-meparecerDeusaseusolhos,
respondeuAvenariuscomvozbranda.Masnãocompreendoporque
minhaescolhaosurpreendetanto.Umtipoquebrincademodotãoidiota
comseusouvintesequeconduzumacampanhacontraaeutanásiaé
incontestavelmenteumburrototal,enãovejorealmentequempoderiame
contestar.
AsúltimaspalavrasdeAvenariusmedeixarampetrificado.
—VocêconfundeBernardoBertrandcomBertrandBertrand!
—EstoufalandodoBernardoBertrandquefalanorádioequeluta
contraosuicídioeacerveja!
—Massãoduaspessoasdiferentes!Opaieofilho!Comoéquevocê
podeconfundirnumasópessoaumredatorderádioeumdeputado?Seu
erroéumexemploperfeitodoquechamávamosaindahápoucouma
coincidênciamórbida.
Avenariusficoudesconcertadoporuminstante.Masnãodemoroua
responderedisse:—Receioquevocêestejaseconfundindocomsua
teoriadacoincidência.Meuerronadatemdemórbido.Estáclaro,eleevoca
aocontráriooquevocêchamavacoincidênciapoética.Opaieofilho
tornaram-seumburrodeduascabeças.Nemavelhamitologiagrega
jamaisinventouumanimaltãoextraordinário!
Depoisdeesvaziarnossoscopos,fomostrocarderoupanosvestiários,
deondetelefoneiparaorestauranteparanosreservarumamesa.
OprofessorAvenariusestavacolocandoumameiaquandoAgnès
lembrou-sedestafrase:"Umamulherpreferesempreofilhoaomarido."
Agnèsouvirasuamãedizerisso(emcircunstânciasquedepoisesquecera)
quandotinhadoze,trezeanos.Osentidodessafrasenãoficaclaroanão
serquelheconsagremosummomentodereflexão:dizerqueamamosA
maisdoqueBnãoécomparardoisníveisdeamor,issoquerdizerqueB
nãoéamado,poisseamamosalguém,nãopodemoscompará-lo.Oamadoé
incomparável.MesmonocasodeamarmosaomesmotempoAeB,é
impossívelcompará-los,senãologodeixamosdeamarumdosdois.Ese
declaramospublicamentepreferirumaooutro,nãosetrataparanósde
confessaratodomundonossoamorporA(poisbastariaentãodizer"amo
A!"),trata-sedefazerentender,comdiscriçãomascomclareza,queBnos
éinteiramenteindiferente.
ApequenaAgnès,claro,eraincapazdeumaanálisedessas.Certamente
suamãecontavacomisso:elasentianecessidadedeseabrir,masqueria
evitaraomesmotemposefazerentendercompletamente.Ora,apesarde
serincapazdecompreendertudo,acriançaadivinhouqueaobservação
eradesfavorávelaseupai.Aseupai,queelaamava!Tambémnãose
sentiuabsolutamenteenvaidecidadeseroobjetodeumapreferência,mas
simentristecidaqueseprejudicasseoamado.
Afraseficougravadaemsuamemória;Agnèsprocuravaimaginaro
quesignificavaconcretamenteamaralguémmaiseoutromenos;nacama,
enrolava-senascobertaseviaessacenadiantedeseusolhos:seupai
estavadepédandoamãoasuasduasfilhas.Emfrentealinhava-seum
pelotãodeexecuçãoqueapenasesperavaumaordem:Preparar!Fogo!A
mãefoiimplorarperdãoaogeneralinimigo,queconcedeu-lheodireitode
poupardoisdostrêscondenados.
Destaformaelacorreantesdocomandantedaraordemdeatirar,tira
suasfilhasdamãodopaie,apavorada,leva-asemboracorrendo.
Conduzidapelamãe,Agnèsviraacabeçaemdireçãoaseupai;vira-setão
obstinadaedecididamente,quesenteumacâimbrananuca;vêqueseu
paiaseguetristementecomosolhos,semamenorrevolta:estáresignado
comaescolhadamãe,porsaberqueoamormaternalsuplantaoamor
conjugaiequecabeaelemorrer.
Àsvezes,elaimaginavaogeneralinimigoautorizandoamãeasalvar
umsóinimigo.NãoduvidavaumsegundoqueamãesalvariaLaura.
Imaginava-sesó,aoladodopai,emfrenteaosfuzisdossoldados.Elalhe
apertavaamão.
Nesseinstante,Agnèsnãoseimportavaabsolutamentecomsuamãee
suairmã,nemmesmoasolhava,mesmosabendoqueelasseafastariam
rapidamenteequenemumanemoutraseviraria!Napequenacama
Agnèsrevirava-senascobertas,lágrimasquentessubiam-lheaosolhos,e
elasesentiatomadadeumafelicidadeindizívelporqueseguravaseupai
pelamão,porqueestavacomeleeiriammorrerjuntos.
SemdúvidaAgnèsteriaesquecidoacenadaexecução,seasduas
irmãsnãotivessembrigado,nodiaemqueviramopaidebruçadosobre
umapilhadefotosrasgadas.OlhandoLauragritar,lembrou-sequeessa
mesmaLauraadeixarasócomopaidiantedopelotãodefuzilamentoe
afastara-sesemsevirar.
Derepentecompreendeuqueadesavençadelaseramaisprofundado
quepensava;éporissoquenuncamaisfezalusãoaessadisputa,comose
temessecolocaronomenoquedeveriaficarsemnome,edespertaroque
deveriaficaradormecido.
Então,quandosuairmãafastou-sechorandoderaiva,deixando-a
sozinhacomopai,pelaprimeiravezsentiuumaestranhasensaçãode
cansaçoaoconstatarcomsurpresa(asconstataçõesmaisbanaissão
sempreasmaissurpreendentes)queteriaamesmairmãtodasuavida.
Elapodiatrocardeamigos,mudardeamantes,podiasedivorciardePaul
sequisesse,maisnãopodiademodoalgummudardeirmã.Emsuavida,
Lauraeraumaconstante,eeraaindamaisfatiganteparaAgnèsporqueas
relaçõesdelas,desdeocomeço,pareciamumacorrida:Agnèscorriana
frente,suairmãvinhaatrás.
Àsvezeselatinhaaimpressãodeserumpersonagemdeumcontode
fadasqueconheciadesdeainfância:aprincesa,acavalo,tentaescaparde
umperseguidormalvado;temnamãoumavassoura,umpenteeumafita.
Quandojogaatrásdesiavassoura,umaespessaflorestaseergueentre
elaeomalvado.
Dessaformaelaganhatempo,masomalvadologoreaparece;elajogao
pente,quelogosetransformaemrochedospontudos.Equandomaisuma
vezeleestánosseuscalcanhares,eladesenrolaafita,queseespalhacomo
umgranderio.
DepoisAgnèssótinhanamãoumúltimoobjeto:osóculosescuros.Ela
jogou-osnochão,eoscacosdevidrocortanteasepararamdeseu
perseguidor.
MasagoraelatemasmãosvaziasesabequeLauraéamaisforte.Elaé
maisforteporquefazdesuafraquezaumaarmaeumasuperioridade
moral:sãoinjustoscomela,seuamanteaabandona,elasofre,tenta
suicidar-se;enquantoqueAgnès,queviveumcasamentofeliz,jogano
chãoosóculosescurosdesuairmã,ahumilha,efecha-lheaporta.É,
depoisdocasodosóculosquebradospassaramnovemesessemsever.
AgnèssabequePauladesaprovasemdizer-lhenada.SofreporLaura.A
corridaaproxima-sedofim.Agnèssentearespiraçãodesuairmãlogo
atrásdelaesabequefoiderrotada.
Seucansaçoécadavezmaior.Nãotemmaisamenorvontadede
correr.
Nãoéumaatleta.Nuncaprocurouumacompetição.Nãoescolheusua
irmã.Nãoqueriasernemseumodelonemsuarival.NavidadeAgnès,
essairmãeratãofortuitaquantoaformadesuasorelhas.Agnèsescolheu
tantosuairmãquantoaformadesuasorelhas,etemdecarregaratrásde
siemtodasuavidaumacasosemsentido.
Quandoerapequena,seupailheensinaraajogarxadrez.Umadas
jogadasaencantara,aquelaqueosespecialistaschamamroque:ojogador
deslocaduaspeçasaomesmotempo:colocaatorreaoladodacasadorei,
efazpassaroreidooutroladodatorre.Essamanobraagradava-lhe
muito:oinimigojuntatodasassuasforçasparaatacarorei,ederepenteo
reidesapareceanteseusolhos:elemudadecasa.TodasuavidaAgnès
sonharaumajogadadessas,esonhavacadavezmaisàmedidaqueseu
cansaçoaumentava.
Depoisqueseupaimorreradeixando-lhedinheironaSuíça,ialáduas
outrêsvezesporano,sempreparaomesmohotel,etentavaimaginarque
ficariaparasemprenosAlpes:poderiaviversemPaulesemBrigite?Como
saber?Asolidãodepassartrêsdiasnohotel,essa"solidãoexperimental",
nãolheensinavagrandecoisa."Irembora!"ressoava-lhecomoamaisbela
dastentações.Massefosseparasempre,nãoficarialogoarrependida?É
verdadequedesejavaasolidão,masaomesmotempoamavaseumaridoe
suafilhaepreocupava-secomeles.Exigirianotíciasdeles,sentiria
necessidadedesabercomoiam.Mascomofazerparaficarsó,longedeles,
eaomesmotemposerinformadadeseusatosegestos?Ecomoorganizar
suanovavida?Procurarumoutroemprego?Tarefadifícil.Nãofazernada?
Sim,eratentador,masderepentenãoteriaaimpressãodeestar
aposentada?Aopensarnisso,seuprojetode"irembora"parecia-lhecada
vezmaisartificial,forçado,irrealizável,semelhanteaumadessasilusões
utópicasquealimentamosquandosabemosbemnofundodenósmesmos
quenãopodemosfazernadaenadafaremos.
Edepois,umdia,asolução,veiodoexterior,amaisinesperadaeamais
banal.SeupatrãoabriraumafilialemBerna,ecomoeranotórioqueAgnès
falavaalemãotãobemquantofrancês,tinham-lheperguntadoseaceitaria
dirigirtrabalhosdepesquisaemBerna.Sabendoqueeracasada,não
contavammuitocomsuaconcordância;elaossurpreendeuatodos:
respondeu"sim"semhesitação;surpreendeu-seasimesma:esse"sim"
quepronunciarasemreflexãopréviaprovavaqueseudesejonãoerauma
comédiaquerepresentavaparasimesma,porbrincadeiraedabocapara
fora,masalgumacoisasériaereal.
Avidamenteessedesejoaproveitaraaocasiãoparasetransformar,
finalmente,desonhoromânticoqueera,emalgodeinteiramenteprosaico:
umfatordepromoçãoprofissional.Aoaceitarooferecimentoquelhe
faziam,Agnèssecomportaracomoqualquermulherambiciosa,sebem
queninguémpudessedescobrirnemdesconfiardesuasverdadeiras
motivaçõespessoais.Desdeentãotudoficouclaroparaela:nãohaveria
maisnecessidadedetestesnemdeexperiênciasenãoeramaisnecessário
imaginar"oqueiriaacontecerseacontecesse"...Derepenteoqueela
desejavaestavaalieficousurpresadesentirumaalegriatãopuraesem
mistura.
EraumaalegriatãoviolentaqueAgnèssentiu-seenvergonhadae
culpada.
NãotevecoragemdecontaraPaulsuadecisão.Porissofoiumaúltima
vezparaseuhotelnosAlpes.(Daíemdianteteriaumapartamento
próprio:quernosarredoresdeBerna,quermaislongenamontanha.)
Duranteessesdoisdias,queriarefletirsobreummeiodedizertudoa
BrigiteeaPaul,parapoderpareceraosolhosdelescomoumamulher
ambiciosaeemancipada,apaixonadaporsuaprofissãoeseusucesso,
quandonuncaforaassim.
Jáeranoite;faróisacesos,Agnèsatravessouafronteirasuíçaeentrou
naauto-estradafrancesaquesempreaamedrontara;disciplinados,os
bonssuíçosrespeitavamasleis,enquantoqueosfrancesesexpressavam
compequenosmovimentoshorizontaisdecabeçasuaindignaçãodiantede
quemquerquepretendessenegarodireitodelesàvelocidadee
transformavamseuspasseiosemcelebraçõesorgiásticasdosdireitosdo
homem.
Sentindofome,decidiuquepararianumrestauranteounumhotelna
beiradaestradaparajantar.Asuadireitatrêsgrandesmotosa
ultrapassaramcomumabarulheirainfernal;àluzdosfaróis,os
motociclistasapareciamcomumaroupasemelhanteaosmacacõesdos
astronautas,oquelhesdavaumaspectodecriaturasextraterrestrese
desumanas.
Nesseprecisomomento,enquantoumgarçomsedebruçavasobre
nossamesarecolhendoospratosvaziosdaentrada,euestavadizendoa
Avenarius:
—Namesmamanhãemquecomeceiaescreveraterceirapartede
meuromance,ouvinorádioumanotíciaquenuncapodereiesquecer.Uma
moçafoiparaumaestradanomeiodanoite,sentou-seevirouascostas
paraoscarros.
Comacabeçaentreosjoelhosesperavaamorte.Omotoristado
primeirocarrodesviounoúltimominutoemorreucomsuamulhereseus
doisfilhos.Osegundocarrotambémacabounumavala.Depoisum
terceiro.Amoçanãotevenada.
Levantou-se,foiemboraeninguémnuncasoubequemera.
Avenariusdisse:
—Querazões,aseuver,podemlevarumamoçaasentar-senuma
estradanomeiodanoiteparasedeixaresmagar?
—Nãotenhoideia,eudisse.Masapostoquetinhaumarazão
derrisória.
Oumelhor,umarazãoque,defora,nospareceriaderrisóriae
inteiramentedespropositada.
—Porquê?—PerguntouAvenarius.Levanteiosombros.
—Nãoconsigoimaginarnenhumarazãomaior,comoporexemplouma
doençaincurávelouamortedeumentequerido,paraumsuicídiotão
horrível.
Numcasoassim,ninguémescolheriaessefimhorrívelarrastandopara
amorteoutraspessoas!Apenasumarazãodesprovidaderazãopode
levaraessehorrordespropositado.Emtodasaslínguasqueprovêmdo
latim,apalavrarazão(ratio,reason,ragione)temdoissentidos:antesde
designaracausadesignaafaculdadedereflexão.Assim,arazãoenquanto
causaésempreentendidacomoracional.
Umarazãocujaracionalidadenãoétransparentepareceincapazde
causarumefeito.Ora,emalemão,arazãoenquantocausasechamaGrund,
palavraquenadatemavercomaratiolatinaequedesigna
primeiramenteosolo,depoisumfundamento.Dopontodevistadaratio
latinaocomportamentodamoçasentadanaestradapareceabsurdo,
descabido,semrazão,noentanto,temsuarazão,querdizerseu
fundamento,seuGrund.Nofundodecadaumdenósestáinscritoum
Grund,queéacausapermanentedenossosatos,queéosolosobreoqual
sedesenvolvenossodestino.Tentoaprenderemcadaumdemeus
personagensseuGrundeestoucadavezmaisconvencidodequeeletema
característicadeumametáfora.
—Suaideiameescapa,disseAvenarius.
—Pena,éaideiamaisimportantequejámeveioaoespírito.Nesse
instanteogarçomchegou,trazendoonossopato.Omolhoestavadelicioso,
enosfezesquecercompletamenteaconversaqueacabávamosdeter.Só
depoisdeuminstanteAvenariusrompeuosilêncio:
—Oquevocêestáescrevendoexatamente?
—Nãoéreproduzível.
—Pena.
—Porquepena?Éumasorte.Hojeemdiaaspessoasvãoemcimade
tudoquefoiescritoparatransformaremfilme,emdramadetelevisãoou
emdesenhoanimado.Jáqueoessencialnoromanceéaquiloquenãopode
serditosenãoporumromance,emtodaadaptaçãosóficaoquenãoé
essencial.Quemquerquesejasuficientementeloucoparahojeainda
escreverromances,deve,sequiserprotegê-loscomsegurança,escrevê-los
demaneiratalquenãopossamseradaptados,emoutraspalavras,que
nãopossamsercontados.
Elenãoeradessaopinião:
—PossocontaravocêcomomaiorprazerOstrêsmosqueteirosde
AlexandreDumas,quandovocêquiser,edepontaaponta!
—Soucomovocê,gostodeAlexandreDumas,disseeu.Noentanto
lamentoquequasetodososromancesescritosatéhojeobedeçamdemaisà
regradaunidadedeação.Istoé,queestejamfundamentadosapenas
numasequênciacausaideaçõeseacontecimentos.Essesromances
parecemumaruaestreita,aolongodaqualospersonagenssão
perseguidoscomchicotadas.Atensãodramáticaéaverdadeiramaldição
doromance,porquetransformatudo,mesmoasmaisbelaspáginas,
mesmoascenaseasobservaçõesmaissurpreendentes,numasimples
etapaquelevaaodesfechofinal,ondeseconcentraosentidodetudoque
precede.Devoradopelofogodesuaprópriatensão,oromanceseconsome
comoummontedepalha.
—Escutandovocê,dissetimidamenteoprofessorAvenarius,tenho
medodequeseuromancesejachato.
—Deve-seentãoconsiderarchatotudoquenãoéumacorrida
frenéticaparaodesenlacefinal?Aosaborearestacoxadepato,seráque
vocêsechateia?
Vocêseapressaparaofinal?Pelocontrário,vocêquerqueopatoentre
emvocêomaislentamentepossívelequeseusaborseeternize.O
romancenãodeveserparecidocomumacorridadebicicleta,massimcom
umbanqueteondeseservemmuitospratos.Esperocomimpaciênciaa
sextaparte.Umnovopersonagemvaisurgirnomeuromance.Enofim
dessasextaparteeledesaparececomochegou,semdeixartraço.Elenãoé
acausadenadaenãoproduznenhumefeito.Éjustamenteoqueme
agrada.Seráumromancenoromance,eahistóriaeróticamaistristeque
jáescrevi.Atévocêficarátriste.
Avenariusguardouumsilêncioembaraçado,depoismeperguntou
gentilmente:—Equalseráotítulodoseuromance?
—Ainsustentávellevezadoser.
—Masessetítulojáestátomado.
—Sim.Pormim!Masnaépocameenganeidetítulo.Eledeveria
pertenceraoromancequeestouescrevendoagora.
Continuamosemsilêncio,atentossomenteaogostodovinhoedopato.
Enquantomastigava,Avenariusdeclarou:—Naminhaopiniãovocê
estátrabalhandomuito.Deveriatomarcuidadocomsuasaúde.
BemquesabiaondeAvenariusqueriachegar,masfinginãoperceber,
saboreandomeuvinhoemsilêncio.
Depoisdeumlongomomento,Avenariusrepetiu:—Achoquevocê
estátrabalhandomuito.Deveriatomarcuidadocomsuasaúde.
—Tomocuidado,respondi.Voufazerregularmenteexercíciosdepeso
ehalteres.
—Éperigoso.Vocêcorreoriscodeterumataque.
—Édissomesmoquetenhomedo,eudisse,elembrei-medeRobert
Musil.
—Vocêdeviaeracorrer,correrànoite.Voumostrar-lheumacoisa,
disseelecomumarmisterioso,desabotoandosuacamisa.Presoemvolta
doseupeitoedesuabarrigaimponenteviumcuriosoobjetoque
lembravavagamenteoarreiodeumcavalo.Embaixoeàdireita,ocinto
prendiaumacorreiadaqualpendia,ameaçadora,umafacadecozinha.
Felicitei-oporseuequipamento,masparadesviaraconversadeum
assuntoquejáconheciabastante,orientei-oparaoúnicocasoqueme
interessavamuitoesobreoqualestavacuriosoemsaberumpoucomais:
—QuandovocêencontrouLauranocorredordometrô,elareconheceu
vocêevocêareconheceu?
—Sim,disseAvenarius.
—Gostariadesabercomovocêsseconheceram.
—Vocêseinteressaporbobagenseascoisassériasoaborrecem,disse
elecomumardecepcionado,abotoandodenovoacamisa.Vocêparece
umavelhafofoqueira.Levanteiosombros.
Continuou:—Tudoissonãoénadainteressante.Antesdeentregar-lhe
odiplomadeburrototal,tinhamcoladofotografiasdelenasruas.
Querendovê-loemcarneeosso,fuiesperá-lonohall,noescritórioda
rádio.Quandosaíadoelevador,umamulhercorreuparaeleebeijou-o.
Depoisresolvisegui-los,emeuolharcruzoualgumasvezescomoda
mulher,demodoqueminhacaradeveterlheparecidoconhecida,apesar
delanãosaberquemeuera.
—Elalheinteressou?—Avenariusbaixouavoz:
—Devoconfessarquesenãofossemeuinteresseporela,nuncateria
concretizadooprojetododiploma.Projetoscomoessetenhoaosmilhares,
masamaiorpartedasvezesnãopassamdesonhos.
—É,seidisso,aprovei.
—Masquandoumhomemseinteressaporumamulher,faztodoo
possívelparaentrar,aomenosindiretamente,emcontatocomela,para
tocardelongenoseumundo,parabalançá-lo.
—Resumindo,seBernardotornou-seumburrototal,foiporqueLaura
lheinteressou.
—Talvezvocênãoestejaenganado,disseAvenariuscomumar
pensativo,eacrescentou:—Háqualquercoisanessamulherquea
transformanumavítimacerta.Éprecisamenteoquemeatraíanela.
Quandoavinosbraçosdedoismendigosbêbadosefedorentos,fiquei
entusiasmado!Quemomentoinesquecível!
—Bem,atéaíconheçosuahistória.Masqueriasaberoqueaconteceu
depois.
—Elatemumtraseiroabsolutamenteextraordinário,continuou
Avenariussemseimportarcomminhapergunta.Quandoestavanocolégio
seuscolegasdeviambeliscá-lo.Imaginoquecadavezquefaziamissoela
davaumgritoagudocomsuavozdesoprano.Essesgritoseramadeliciosa
antecipaçãodeseusorgasmosfuturos.
—É,falemosdisso.Conte-metudooqueaconteceu,quandovocêa
arrastouparaforadometrôcomoumsalvadorprovidencial.
Avenariusfingiunãoouvirnada.
—Aosolhosdeumesteta,prosseguiuele,seutraseirodeveparecer
muitovolumosoeumpoucobaixo,oqueéumpoucoincômodo,poissua
almaquervoarparaasalturas.Mas,paramim,todaacondiçãohumana
resume-senestacontradição:acabeçaécheiadesonhos,eotraseirouma
âncoraquenosprendenochão.
AsúltimaspalavrasdeAvenarius,sabeDeusporquê,ressoavam
melancolicamente,talvezporquenossospratosestivessemvaziosenão
houvessemaisvestígiosdopato.Maisumavezogarçominclinou-separa
tiraramesa.
Avenariuslevantouacabeçaparaele:
—Vocêtemumpedaçodepapel?
Ogarçomestendeu-lheumtíquetedecaixa,Avenariuspegouacanetae
fezumdesenho.
Depoisdisse:EisLaura:suacabeçacheiadesonhosolhaparaocéu.
Masseucorpoéatraídoparaaterra:otraseiroeosseios,também
bastantepesados,olhamparabaixo.
—Écurioso,disse,efizumdesenhoaoladododele.
—Quemé?perguntouAvenarius.
—SuairmãAgnès:nelaocorposeelevacomoumachama,masa
cabeçacontinuasempreligeiramentebaixa:umacabeçacéticaqueolha
paraochão.
—PrefiroLaura,disseAvenariuscomvozfirme,depoisacrescentou:
—
Masoqueprefiromaisdoquetudosãomeuspasseiosnoturnos.Você
gostadaigrejadeSaint-Germain-des-Près?
Fizsinalquesim.
—E,noentanto,vocênuncaaenxergourealmente.
—Nãoestouentendendo,disseeu.
—Háalgumtempo,desciaaruadeRennesemdireçãoaoboulevard
contandoonúmerodevezesquetinhatempodelevantarosolhospara
Saint-Germainsemserempurradoporumtranseuntemuitoapressado,ou
derrubadoporumcarro.Conteiumtotaldeseteolhadas,quemevaleram
umamancharoxanobraçodireito,porqueumrapazimpacientemedeu
umacotovelada.Umaoitavaoportunidademefoiconcedidaquandome
plantei,cabeçaparaoalto,exatamenteemfrenteàentradadaigreja.Mas
sópodiaverafachada,numaperspectivaemcontre-plongéemuito
deformante.Dessasolhadasfugazesoudeformadasguardeinaminha
memóriaumaimagemaproximadaqueparecetãopoucocomaigreja
quantomeupequenodesenhodeduastorresseparececomLaura.A
igrejadeSaint-Germaindesapareceu,etodasasigrejasdetodasas
cidadesdesapareceram,comoaluadesaparecenumeclipse.Aoinvadiras
ruas,oscarrosreduziramascalçadasondeseamontoamospedestres.Se
queremseolhar,vêemoscarroscomopano-de-fundo;sequeremolhara
casaemfrente,vêemoscarrosemprimeiroplano;nãoexisteumsóângulo
emquenãosevejamcarros,nofundo,nafrente,doslados.Seutumulto
onipresente,comoumácido,devoratodososmomentosdecontemplação.
Porcausadoscarros,aantigabelezadascidadestornou-seinvisível.Não
soucomoessesmoralistasestúpidosqueficamindignadoscomosdezmil
mortosanuaisnasestradas.Pelomenos,issofazbaixaronúmerode
automobilistas.Masmerevoltocomofatodoscarrosteremeclipsadoas
catedrais.
OprofessorAvenariuscalou-se,depoisdisse:
—Bemqueestoucomvontadedecomerumpedaçodequeijo.
Osqueijosfizeram-meesqueceraigreja,eovinhoevocouemmima
imagemsensualdeduasflechassuperpostas:
—Tenhocertezadequevocêaacompanhoudevoltaequeelao
convidouparasubirparaoapartamentodela.Confidenciou-lhequeeraa
mulhermaisinfelizdomundo.Aomesmotempo,seucorposedissolvia
comsuascarícias,estavasemdefesaenãopodiamaisreternemas
lágrimasnemaurina.
—Nemaslágrimasnemaurina!exclamouAvenarius.Queesplêndida
visão!
—Depoisvocêfezamorcomela,elaoolhavadefrenteesacudiaa
cabeçarepetindo:
—Nãoévocêqueeuamo!Nãoévocêqueeuamo!
—Oquevocêestádizendoémuitoexcitante,disseAvenarius,masde
quemvocêestáfalando?
—DeLaura!
Elemeinterrompeu:
—Éabsolutamentenecessárioquevocêfaçaexercício.Acaminhada
noturnaéaúnicacoisaquepodedistraí-lodesuasfantasiaseróticas.
—Estoumenosarmadodoquevocê,disse,fazendoalusãoaoseu
arreio.Vocêbemsabequesemequipamentoadequadoéinútilnos
lançarmosemtalempreitada.
—Nãotenhamedo.Oequipamentonãotemtantaimportância.No
começotambémnãoopossuía.Tudoisso,disseelemostrandoopeito,éum
requintequemeexigiumuitosanosdepreparo,efuilevadoaissomenos
porumanecessidadepráticadoqueporumcertodesejodeperfeição,
puramenteestéticoequaseinútil.Porenquanto,vocêpodesecontentar
comumafacadebolso.Apenasénecessáriorespeitaraseguinteregra:o
dafrentedoladodireitonoprimeirocarro,odafrentedaesquerdano
segundo,odetrásdoladodireitonoterceiro,enoquarto...
—...odetrásdoladoesquerdo...
—Errado!DisseAvenariusmorrendoderir,comoumprofessor
maldosoquericomaratadeumaluno.
—Noquarto,todosquatro!
RiporuminstantecomAvenariuseelecontinuou:
—Seiquehámuitotempovocêestáobcecadocomasmatemáticas,de
modoquevocêdeveriarespeitaressaregularidadegeométrica.Eua
imponhoamimcomoumaregraincondicionalquetemduplosentido:por
umlado,elaconduzapolíciaparaumapistafaisa,jáqueaestranha
disposiçãodospneusfurados,aparentementecarregadosdeuma
significaçãoespecial,apareciacomoumamensagem,comoumcódigoque
ostirasesforçavam-seemvãoemdecifrar;massobretudo:respeitando
essageometria,introduzíamosemnossaaçãodestruidoraumprincípiode
belezamatemática,enosdiferenciávamosradicalmentedosvândalosque
riscamoscarrosecagamnacapota.FoinaAlemanha,hámuitotempo,que
acerteiosdetalhesdomeumétodo,numaépocaemqueacreditavaainda
serpossívelorganizarumaresistênciaàSatânia.
Frequentavaumaassociaçãodeecologistas.Paraaquelaspessoas,o
supremomalcausadoporSatâniaéadestruiçãodanatureza.Nãofosse
issopoderíamosatécompreendê-la.Tinhasimpatiapelosecologistas.
Propusquecriássemosequipesencarregadasdefurarospneusdurantea
noite.Semeuplanotivessesidoaplicado,garantoquenãohaveriamais
carros.Nofimdeummês,cincoequipesdetrêshomenstornariamseuuso
impossívelnumacidadedetamanhomédio!
Expus-lhesmeuplanonosmenoresdetalhes,todomundopoderia
aprendercomigocomoseconduzumaaçãosubversivaperfeitamente
eficaz,indecifrávelpelapolícia.Masessescretinosmetomaramporum
provocador!Vaiaram-meeameaçaramcomseuspunhos.Duassemanas
depois,pegaramsuasgrandesmotos,seuspequenoscarroseforamfazer
umamanifestação,emalgumlugarnafloresta,contraaconstruçãodeuma
centralnuclear.Destruíramumaquantidadedeárvoresedeixaramatrás
desi,porquatromeses,umfedorinsuportável.Entãocompreendiquehá
muitotempojáfaziampartedeSatânia,eacabaram-semeusesforçospara
tentartransformaromundo.Hojenãorecorromaisàsantigaspráticas
revolucionáriasanãoserparameuprazerpuramenteegoísta.Correr
pelasruasdenoitefurandopneuséumaalegriaenormeparaaalmaeum
excelenteexercícioparaocorpo.Umavezmaisrecomendo-oavocê
vivamente.
Vocêdormirámelhor.EnãopensarámaisemLaura.
—Umacoisameintriga.Suamulheracreditamesmoquevocêsaiade
noiteparafurarpneus?Nãodesconfiaquevocê,comessepretexto,está
escondendoaventurasamorosas?
—Vocêesqueceumdetalhe.Euronco.Issomepossibilitadormirem
quartoseparado.Souodonoabsolutodeminhasnoites.
Elesorriaeeusentiaumavontadegrandedeaceitarseuconvitee
prometeracompanhá-lo:porumladosuainiciativameparecialouvável;
poroutrosentiagrandeafeiçãopormeuamigoegostariadesergentilcom
ele.Massemmedartempodeabriraboca,elechamouogarçomepediua
conta;depoisdisso,aconversatomouumoutrorumo.
Comonãosesentiatentadapornenhumdosrestaurantesqueviaao
longodaestrada,continuouseminterromperaviagemeseucansaço
aumentavacomafome.Jáeramuitotardequandoelafreouemfrentede
ummotel.
Nãohavianinguémnasala,anãoserumamãeeseufilhodeseisanos,
queoravinhaficarnamesa,oracorriaemcírculossoltandouivos.
Elapediuomenumaissimplesenotouumbonecocolocadonomeioda
mesa.Eraumhomenzinhodeborracha,umbonecodepropaganda.O
homenzinhotinhaocorpogrande,aspernascurtaseumnarizverde
monstruosoquelhedesciaatéoumbigo.Engraçado,pensouela,egirando
afiguranasmãosobservou-amuitotempo.
Imaginouquesedavavidaaohomenzinho.Umavezdotadodealma,
semdúvidaelesentiriaumavivadorsealguém,comoAgnèsfazianaquele
momento,sedivertisseemtorcerseunarizverdeeemborrachado.Logo
nascerianeleomedodoshomens,poistodomundoiriaapertaressenariz
ridículo,eavidadohomenzinhonãoseriasenãomedoesofrimento.
SentiriaeleumrespeitosagradoporseuCriador?Ser-lhe-iagratopor
elelheterdadoavida?Dirigiria-lheoraçõesdiárias?Umdia,alguémlhe
estenderiaumespelhoedesdeentãoiriadesejaresconderseurostoentre
asmãos,porquesentiriaumaterrívelvergonhadiantedaspessoas.Mas
nãopoderiaescondê-loporqueseuCriadorofabricaradetalmodoque
nãopodiamexerasmãos.
Agnèspensava:écuriosoimaginarqueohomenzinhoteriavergonha.
Seráeleresponsávelporseunarizverde?Aocontrário,nãolevantariaele
osombroscomindiferença?Não,nãolevantariaosombros.Teria
vergonha.Quandoohomemdescobrepelaprimeiravezseufísico,nãoé
nemindiferençanemraivaquesenteemprimeirolugarecommaior
intensidade,masavergonha,umavergonhafundamentalque,comaltose
baixos,mesmoatenuadapelotempo,oacompanharáavidainteira.
QuandoAgnèstinhadezesseisanos,foificarunsdiasnacasadeuns
amigosdeseuspais;nomeiodanoiteficoumenstruadaemanchouo
lençoldesangue.Demanhãcedo,aoconstatarisso,foitomadadepânico.
Semfazerbarulho,foicorrendoatéobanheiro,esfregouolençolcomuma
toalhaembebidaemáguacomsabão;nãoapenasamanchaaumentoumas
Agnèssujoutambémocolchão;sentiu-semortalmenteenvergonhada.
Porquesentiavergonha?Todasasmulheresnãotinhamumciclo
menstrual?TeriaAgnèsinventadoosórgãosfemininos?Seria
responsávelporeles?Éclaroquenão.Masaresponsabilidadenãotem
nadaavercomavergonha.SeAgnèstivesseentornadotinta,porexemplo,
estragandoolençoleotapetedeseusanfitriões,issoteriasido
constrangedoredesagradável,maselanãoteriatidovergonha.A
vergonhanãotemporfundamentoumerroquecometemos,masa
humilhaçãoquesentimosemseroquesomossemotermosescolhido,ea
sensaçãoinsuportáveldequeessahumilhaçãoéevidenteparatodos.
Nadadeespantososeohomenzinhodenarigãoverdetemvergonhade
seurosto.MasentãooquedizerdopaideAgnès?Eleerabonito!
Sim,era.Masoqueéabelezadopontodevistamatemático?Existea
belezaquandoumexemplarétãosemelhantequantopossívelaoprotótipo
original.Imaginemosquetenhamospostonocomputadorasdimensões
mínimasemáximasdetodasaspartesdocorpo:entretrêsesete
centímetrosdecomprimentodonariz,entretrêseoitodealturadetesta,e
assimpordiante.É
feioohomemcujatestamedeseiscentímetroseonarizapenastrês.
Feiúra:caprichosapoesiadoacaso.Numhomembonito,ojogodosacasos
escolheuumamédiadetodasasmedidas.Beleza:prosaismodamédia
exata.Nabeleza,maisaindaquenafeiúra,manifesta-seocaráternãoindividual,não-pessoaldorosto.
Emseurosto,ohomembonitovêoprojetotécnicooriginal,talqualo
desenhouoautordoprotótipo,eeletemdificuldadeemacreditarque
aquiloquevêsejaumeuinimitável.Demodoquesentevergonha,
exatamentecomoohomenzinhodonarizverde.
Quandoseupaiestavaagonizante,Agnèsficousentadaaoladoda
cama.
Antesdeentrarnafasefinaldaagoniaelelhedisse:
—Nãomeolhemais,eforamasúltimaspalavrasqueouviudele,sua
últimamensagem.
—Elaobedeceu;inclinandoacabeçaparaochão,fechandoosolhos,só
segurousuamãoeapertou-a;deixouquepartisse,lentamenteesemser
visto,paraomundoondenãoexistemrostos.
Pagouacontaedirigiu-separaocarro.Ogarotoquegritavano
restaurantecorreuaoseuencontro.Agachou-sediantedela,comobraço
estendido,comoseestivessearmadocomumapistolaautomática.Imitando
ostiros:"Bang,bang,bang!"eleacrivavadebalasimaginárias.
Elaparou,curvou-seàalturad«eleedissecomumavoztranquila:
—Vocêéidiota?
Eleparoudeatirareaencaroucomseusgrandesolhosinfantis.Ela
repetiu:
—Éclaroquevocêéidiota.
Umacaradechorodeformouorostodogaroto:
—Voucontaràmamãe!
—Vai,vaifazerintriga!DisseAgnès.Sentou-senovolanteepartiucom
todadecisão.
Estavacontentepornãoterencontradoamãe.Imaginava-agritando,
balançandoacabeçadadireitaparaaesquerda,levantandoosombrose
assobrancelhasparadefenderacriançaofendida.Éclaroqueosdireitos
dacriançaficamacimadetodososoutrosdireitos.Naverdade,porquesua
mãepreferiuLauraaAgnès,quandoogeneralinimigolheconcederaa
graçaparaapenasumdostrêscondenados?Arespostaeraclara:preferiu
LauraporqueLauraeraamaismoça.Nahierarquiadasidades,orecémnascidoficanotopo,depoisvemacriança,depoisoadolescente,esó
depoisohomemadulto.Quantoaovelho,eleficaomaispróximodochão,
bemembaixodessapirâmidedevalores.
Eomorto?Omortoestáabaixodaterra.Portantomaisembaixoainda
doqueovelho.Ovelhoaindavêreconhecidostodososdireitosdohomem
paraele.
Omorto,aocontrário,osperdenomesmoinstantedesuamorte.
Nenhumaleioprotegemaisdacalúnia,suavidaparticulardeixadeser
particular;ascartasqueseusamoreslheescreveram,oálbumcom
lembrançasquesuamãelhedeixou,nadadisso,nadalhepertencemais.
Poucoapouco,nodecorrerdosanosqueprecederamsuamorte,opai
destruíratudoatrásdesi:nemmesmodeixararoupanosarmários,
nenhummanuscrito,nenhumanotadeaula,nenhumacarta.Tinha
destruídotodososseustraços,semqueninguémsoubesse.Sóumavez,
poracaso,otinhamsurpreendidodiantedaquelasfotosrasgadas.Masisso
nãohaviaimpedidoqueeleasdestruísse.Nãosobraranenhuma.
EracontraissoqueLauraprotestava.Combatiapelosdireitosdosvivos,
contraasexigênciasinjustificadasdosmortos.Poisorostoque
desapareceráamanhãsobaterraounofogonãopertenceaofuturo
morto,masapenasaosvivos,quesãofamintosequetêmnecessidadede
comerosmortos,suascartas,seusbens,suasfotos,seusantigosamores,
seussegredos.
Masopai,pensouAgnès,tinhaescapadoatodos.
Pensavaneleesorria.E,derepente,veio-lheaideiadequeeleforaseu
únicoamor.E,erainteiramenteclaro:seupaiforaseuúnicoamor.
Nomesmomomento,grandesmotosaultrapassaramdenovonuma
velocidadelouca:aluzdosfaróisclareavaassilhuetasdebruçadassobre
osguidons,carregadasdeumaagressividadequefaziatremeranoite.Era
omundodoqualqueriafugir,fugirparasempre,tantoquedecidiusairda
auto-estradanocruzamentoseguinte,paratomarumaestradamenos
movimentada.
EstamosnumaavenidadeParischeiadeluzesedebarulho,enos
dirigimosparaaMercedesdeAvenariusestacionadaalgumasruas
adiante.Maisumavezpensávamosnamoçaquesesentaraumanoitena
rua,acabeçaescondidanasmãos,esperandoseratropelada.
—Tenteiexplicar-lhe,disseeu,quenofundodenósseencontra,como
causadenossosatos,aquiloqueosalemãeschamamGrund,um
fundamento;umcódigoquecontémaessênciadenossodestino;eesse
código,penso,temacaracterísticadeumametáfora.Amoçadeque
falamoscontinuaincompreensívelsenãorecorrermosaumaimagem.Por
exemplo:elaandapelavidacomonumvale;acadainstantepassapor
alguémelhedirigeapalavra;masaspessoasaolhamsemcompreendere
seguemseucaminho,porqueseexpressacomumavoztãobaixaque
ninguémouve.Éassimqueaimaginoeestoucertodequeéassimqueela
tambémsevê:comoumamulherqueandanumvale,nomeiodepessoas
quenãoaouvem.Ouentãoumaoutraimagem:elafoiaodentista,asalade
esperaestálotada;chegaumnovopaciente,vaidiretoparaapoltrona
ondeelaseinstalouesentaemseusjoelhos;nãoofazdepropósito,mas
simplesmenteessapoltronalhepareceuvazia;elaprotesta,afasta-ocom
osbraços,grita:
—Afinal,senhor!Nãoestávendoqueolugarestáocupado?Soueu
queestousentadaaqui!
Masohomemnãoaescuta,instalou-seconfortavelmenteemcimadela
econversaalegrementecomaquelesqueesperamsuavez.Essasduas
imagensadefinememepermitemcompreendê-la.Seudesejodesuicídio
nãoeracausadopornadadeexterior.Estavaplantadonosolodoseuser,
cresceunelalentamenteedesabrochoucomoumaflornegra.
—Admitamos,disseAvenarius.Masfaltavocêexplicarporqueela
decidiusematarnaquelediaenãoemoutro.
—Comoexplicarodesabrochardeumaflornumdiatalenãonum
outro?
Suahorachegou.Odesejodeautodestruiçãocresceralentamentenela
eumbelodiaelanãoresistiumais.Asinjustiçasquesofreráeramaté
leves:aspessoasnãorespondiamaoseucumprimento,ninguémlhe
sorria;quandoestavanafilanocorreio,umamulhergordadera-lheum
empurrãoepassaraàsuafrente;eravendedoranumagrandelojaeseu
chefedeseçãoaacusaradenãotratarbemasclientes.Milvezesquisera
serevoltar,dargritosdeprotesto,massemnuncadecidirfazê-lo,porque
tinhaumfiodevozquesumiasoboefeitodaraiva.Maisfracadoqueos
outros,sofriacontínuasofensas.Quandoomalatingeohomem,repercute
sobreoutros.Éoquechamamosbriga,desordem,vingança.Masofraco
nãotemforçadeespalharomalqueseabatesobreele,suaprópria
fraquezaohumilhaemortifica,diantedelaficaabsolutamentesemdefesa.
Sólherestadestruirsuafraquezadestruindo-seasimesmo.Foiassimque
amoçacomeçouaimaginarsuaprópriamorte.
Avenarius,aoprocurarsuaMercedes,percebeuqueseenganarade
rua.
Voltamosparatrás.
Continuei:
—Amorte,talcomoadesejava,nãoseassemelhavaa
umdesaparecimentomasaumarejeição.Umarejeiçãodesimesma.Em
nenhumdiadesuavida,nenhumapalavraquedisseradera-lhesatisfação.
Comportava-seatravésdavidacomoumfardomonstruosoquedetestava
edoqualnãopodiasedesfazer.Éporissoquequeriarejeitar-seasi
mesma,rejeitar-secomoserejeitaumpapelamassado,comoserejeita
umamaçãpodre.Desejavarejeitar-secomoseaquelaquerejeitavae
aquelaqueerarejeitadafossemduaspessoasdiferentes.
Imaginavaqueempurravaasimesmapelajanela.Masaideiaera
ridículaporqueelamoravanoprimeiroandar,eagrandelojaemque
trabalhava,situadanotérreo,nãotinhajanelas.Queriamorrer,morrer
esmagadaporumgolpebrutalquefizesseumbarulho,comoquando
esmagamosasasasdeuminseto.Eraumdesejofísicodeseresmagada,
comoacontecequandosentimosnecessidadedeencostarfortementea
palmadamãonumlugardocorpoqueestádoendo.
TendochegadoemfrentedasuntuosaMercedesdeAvenarius,
paramos.
—Pelasuadescriçãosentimosquasesimpatiaporela,disseAvenarius.
—Seioquevocêquerdizer:seelanãotivesseprovocadoamortede
outraspessoas.Masissotambémseexprimenessasduasimagensquedei
dela.
Quandodirigiaapalavraàalguém,ninguémaouvia.
Elaestavaperdendoomundo.Quandodigomundoestoumereferindo
aessapartedouniversoquerespondeaosnossosapelos(nernqueseja
comoumecoapenasperceptível)edequemtambémouvimososapelos.
Paraelapoucoapoucoomundotornava-semudoedeixavadeserseu
mundo.Ficavainteiramentefechadaemsímesmaeemseutormento.Pelo
menoselapoderiaserarrancadadesuareclusãopeloespetáculodo
tormentodosoutros?Não.Poisotormentodosoutrosocorrianomundo
queelatinhaperdido,quenãoeramaisoseu.SeoplanetaMartenãofor
senãosofrimento,seatésuaspedrasgritamdedor,issonãonosemociona
nada,porqueMarteenãopertenceaonossomundo.Ohomemque
desprendeu-sedomundoéinsensívelàdordomundo.Oúnico
acontecimentoque,poruminstante,aarrancoudeseutormento,foia
doençaeamorted«eseucachorrinho.Avizinhaficouindignada:essa
moçanãotemamenorcompaixãopelaspessoas,maschoraporseu
cachorro.S-echoravapelocachorroeraporqueessecachorrofaziaparte
desenamundo,esuavizinhanão,absolutamente;ocachorrorespondiaa.
suavoz,aspessoasnão.
Continuamosemsilêncio,pensandonainfeliz,depoisAvenanisabriua
portadocarroemefezumsinalencorajador:
—Vem!Eulevovocê!Vouemprestar-lheumtêniseumafaca!Sabia
queseeunãofossecomelefurarpneus,nãoencontrariaoutrocúmplicee
ficariasozinho,exiladoemsuaextravagância.Estavaloucopara
acompanhá-lo,maserapreguiçoso,esentiaaolongeumvagodesejode
dormir,passarametadedanoitecorrendopelasruasmepareciaum
sacrifícioimpensável.
—Voltoparacasa.Estoucomvontadedeirapé,disseeuestendendolheamão.
Elefoiembora.SeguisuaMercedescomosolhos,sentindoremorso
comaimpressãodetertraídoumamigo.Depoistomeiocaminhodecasae
logomeuspensamentosvoltaramparaaquelamoçaemquemodesejode
destruir-setinhadesabrochadocomournaflornegra.
Pensei:umdia,depoisdotrabalho,emvezdevoltarparacasaelavai
paraforadacidade.Nãovianadaemtornodela,nãosabiaseeraverão,
outonoouinverno,seestavaaoladodeumriooudeurnafábrica;na
verdadejáhaviamuitotempoqueelanãoviviamaisnessemundo;não
tinhaoutromundosenãosuaalma.
Nãovianadaemtornodesi,nãosabiaseeraverão,outonoouinverno,
seestavapertodeumriooudeumafábrica;andava,eseandavaera
porqueaalma,quandoainquietaçãoainvade,exigemovimento,nãopode
ficarnolugar,poisquandoficaimóveladorficaterrível.Comoquando
vocêtemumadordedente:algumacoisaoobrigaaandaremcírculosem
voltadoquarto;nãoexisteumarazãoracionalparaisso,jáqueo
movimentonãopodediminuirador,mas,semquevocêsaibaporque,o
dentedoloridoimploraquevocêcontinueemmovimento.
Portantoelaandavaechegouaumagrandeestrada,ondeoscarros
enfileiravam-seunsdepoisdosoutros;elaandavanoacostamento,na
beirada,semvernada,perscrutandoapenasofundodesuaalmaquelhe
devolviasempreimagensdehumilhação.Nãoconseguiadesviarseuolhar;
devezemquandoapenas,quandopassavaatrepidaçãodeumamotocuja
barulheiraferia-lheostímpanos,dava-secontadequeomundoexterior
existia;masessemundonãotinhaomenorsignificado,erapuramenteum
espaçovaziosemoutrointeressesenãopermitir-lheandar,deslocarsua
almadoloridadeumlugarparaoutronaesperançadeatenuarseu
sofrimento.
Jáhámuitotempoelasonhavaemsedeixaresmagarporumcarro.
Masoscarrosrodavamcomtodadesenvolturaeelasentiamedo,eles
tinhammuitomaisforçadoqueela;nãoviaondearranjarcoragempara
atirar-seembaixodesuasrodas.Deveriaatirar-sesobreelas,contraelas,e
paraissofaltavam-lheforçascomolhefaltavamquandoqueriagritar
contraseuchefedeseçãoquearepreendiainjustamente.
Tinhasaídodecasanofimdatarde,agorajáeranoite.Seuspés
estavamdormenteseelasabiaqueerafracaparairmaislonge.Nesse
momentodecansaço,viuonomeDijonnumgrandepainelluminoso.
Nomesmoinstanteocansaçofoiesquecido.Comoseessapalavralhe
lembrassealgumacoisa.Esforçava-seemreternamemóriauma
lembrançafugaz:tratava-sedealguémdeDijon,ouentãoalguémlhe
contaraalgumacoisaengraçadaquetinhaacontecidoemDijon.De
repente,persuadiu-sequeseriabomvivernaquelacidade,queseus
habitantesnãoeramcomoaspessoasqueconheceraatéentão.Foicomo
umamúsicadedançaquetocassenomeiododeserto.Foicomoumafonte
deáguacristalinaquejorrassenumcemitério.
É,iriaparaDijon!Começouafazersinaisparaoscarros.Masoscarros
passavamsemparar,cegando-acomseusfaróis.Amesmasituaçãose
repetiasempre,àqualelanãoconseguiaescapar:dirige-seaalguém,
chama,fala,gritaalgumacoisa,masninguémouve.
Hámaisdemeiahoraquelevantavaobraçoemvão:oscarrosnão
paravam.Acidadeiluminada,aalegrecidadedeDijon,aorquestrade
dançanomeiododeserto,tornouamergulharnastrevas.Omundose
retiravamaisumavezdelaeelavoltavaparaofundodesuaalma,cercada
apenaspelovazio.
Depoischegouaumpontoemqueumaestradamenorcortavaaautoestrada.Parou:não,osbólidosdaauto-estradanãoserviamparanada:não
poderiamnemesmagá-lanemlevá-laparaDijon.Saiudaauto-estradae
pegouapequenaestradamaiscalma.
Comovivernummundocomoqualnãoseestádeacordo?Comoviver
comoshomensquandonãocompartilhamosnemseustormentosnem
suasalegrias?Quandonãopodemosserumdeles?
Oubemoamoroubemoconvento,pensavaAgnès.Oamorou
oconvento:duasmaneirasqueohomemtemderecusarocomputador
divino,deescapardele.
Oamor:outroraAgnèsimaginaraestetipodeexame:depoisdamorte
perguntamsevocêquerdespertarparaumanovavida.Sevocêrealmente
amar,vocêaceitaráaideiasócomacondiçãodeencontrarapessoaque
vocêamou.Avidaéparavocêumvalorapenascondicional,esóvalena
medidaemquepermitequevocêvivaseuamor.Apessoaamada
representaparavocêmaisdoquetodaaCriação,maisdoqueavida.Eis
aí,claro,umablasfêmiadesdenhosaemrelaçãoaocomputadordivino,que
seconsiderasuperioratodasascoisasedetentordosentidodaexistência.
Masamaiorpartedaspessoasnãoconheceuoamor,eentreaquelas
quepensamconhecê-lomuitopoucaspassariamcomsucessonoexame
inventadoporAgnès;correriamatrásdapromessadeumaoutravidasem
imporamenorcondição;prefeririamavidaaoamoretornariamacair,de
bomgrado,nateiadearanhadoCriador.
Senãoédadoaohomemvivercomapessoaamadaetudosubordinar
aoamor,resta-lheumoutromeiodeescaparaoCriador:entrarparaum
convento.
Agnèslembra-sedestafrase:"Retirou-separaoconventodeParma."
Aolongodotexto,atéentão,nuncasetratoudenenhumconvento,mas
essaúnicafrase,naúltimapágina,énoentantotãoimportantequedela
Stendhaltiraotítulodeseuromance;poisafinalidadedetodasas
aventurasdeFabricedelDongoeraoconvento:olugarafastadodomundo
edoshomens.
Antigamente,aspessoasqueestavamemdesacordocomomundoe
quenãocompartilhavamcomelenemseustormentosnemsuasalegrias,
entravamparaoconvento.Mascomonossoséculorecusa-seaconcederàs
pessoasodireitodeficaremdesacordocomomundo,acabaram-seos
conventosemqueumFabriciopodiaserefugiar.Nãoexistemmaislugares
afastadosdomundoedoshomens.Dissosórestaalembrança:oidealdo
convento,osonhodoconvento.Oconvento.Retirou-separaoconventode
Parma.Miragemdoconvento.Foiparatornaraencontraressamiragem
queháseteanosInêsiaparaaSuíça.Paraencontrarseuconvento,o
conventodoscaminhosafastadosdomundo.
Lembrou-sedeumestranhomomentovividonaquelemesmodia,no
fimdatarde,quandoforapassearpelocampoumaúltimavez.Chegando
pertodeumrio,estendeu-senarelva.Ficoumuitotempoassim,
imaginandosentiraságuasdorioatravessando-a,levandotodoseu
sofrimentoetodasujeira:seueu.
Momentoestranho,inesquecível:elahaviaesquecidoseueu,havia
perdidoseueu;enissoresidiaafelicidade.
Essalembrançafeznascernelaumpensamentovago,fugaz,eno
entantotãoimportante(talvezomaisimportantedetodos)queAgnès
tentouapreendê-locompalavras:
Oqueéinsustentávelnavida,nãoéser,massimserseueu.Graçasa
seucomputador,oCriadorfezentrarnomundobilhõesdeeus,esuas
vidas.Masaoladodetodasessasvidaspodemosimaginarumsermais
elementarqueexistiaantesqueoCriadorcomeçasseacriar,umsersobre
quemelenãoexerceu,nemexercenenhumainfluência.Estendidana
relva,cobertapelocantomonótonodoriachoquelevavaseueu,asujeira
doseueu,Inêsparticipavadesseserelementarquesemanifestanavozdo
tempoquecorreenoazuldocéu;agorasabiaquenãohánadamaisbelo.
Apequenaestradaquetomaraaosairdaauto-estradaestácalma;ao
longe,infinitamentedistantes,asestrelasbrilham.Agnèspensa:
Viver,nãoexistenissonenhumafelicidade.Viver:carregarpelomundo
seueudoloroso.
Masser,seréfelicidade.Ser:transformar-seemfonte,baciadepedra
naqualouniversocaicomoumachuvamorna.
Andoumuitotempoainda,ospésdormentes,titubeante,depoissentousenoasfaltonomeiodapistadireitadaestrada.Estavacomacabeçapara
dentrodosombros,comonariznosjoelhos,e,curvandoascostas,sentia
quequeimavamsóempensarqueasexpunhaaometal,aoferro,ao
choque.
Enroscava-se,afundandomaisseupobrepeitomagroondeseelevava,
amarga,achamadeseueudoloridoqueaimpediadepensaremoutra
coisaquenãofosseelamesma.Desejavaseresmagadapelochoquepara
queessachamaseextinguisse.
Aoouvirumcarroaproximar-se,enroscou-seaindamais,obarulho
tornou-seinsuportável,masemvezdoimpactoesperadoelasósentiuà
suadireitaumsoproviolento,queafezvirar-sesobresimesma.Houveum
chiardepneus,depoisumaenormebarulheira;elanãoviunadaporque
manteveosolhosfechadoseorostoenfiadoentreosjoelhos,alémdisso
ficoupasmadeseveraindavivaesentadacomoantes.
Maisumavezpercebeuobarulhodeummotorqueseaproximava;
dessavezficouplantadanochãoeochoquesefezouvirbemperto,logo
seguidoporumgrito,umgritoindescritível,umgritohorrívelqueafez
saltar.Ficoudepénomeiodaestradadeserta;maisoumenosaduzentos
metrosviuchamas,enquantoquedeumpontomaispróximocontinuava
subindo,deumavalaemdireçãoaocéuescuro,umgritohorroroso.
Estegritoeratãoinsistenteetãohorrívelqueomundoemtornodela,o
mundoquehaviaperdido,voltouaserreal,colorido,ofuscante,sonoro.De
pénomeiodapista,subitamenteelateveasensaçãodesergrande,deser
poderosa,deserforte;omundo,essemundoperdidoquerecusava-sea
ouvi-la,voltava-lhegritando,eeratãobeloetãoterrívelquequeriagritar
porsuavez,masemvão,poissuavozhaviaemudecidoemsuagargantae
nãoconseguiafazê-lavoltar.
Umterceirocarrocegou-acomseusfaróis.Quisabrigar-semasnão
sabiaparaqueladosaltar;ouviuumchiadodepneus,ocarrodesvioue
houveumchoque.Então,ogritoquetinhanagargantaafinaldespertou.
Davala,sempredomesmolugar,subiaumurroininterrupto,aoqual
finalmentecomeçouaresponder.
Depoisvirouascostasefoiembora.Foiemboragritando,fascinadapor
suavoztãofracapodersoltarumgritotãoforte.Nolugaremquea
estradamenorjuntava-seàauto-estradahaviaumacabinetelefônica.Ela
pegouoaparelho:
—Alô!Alô!
Dooutroladodalinhaumavozrespondeu.
—Aconteceuumacidente!eladisse.Avozperguntou-lheonde,mas
nãopodendoprecisarondeestavadesligouotelefoneevoltoucorrendo
paraacidadequedeixarademanhã.
Algumashorasantes,Avenariushaviameexplicadocominsistênciaa
necessidadedeseguirumaordemestritaparafurarospneus:primeirona
frenteàdireita,depoisnafrenteàesquerda,depoisatrásàdireita,depois
todososquatro.
Maseraapenasumateoria,destinadaaespantaroauditóriode
ecologistaseumamigomuitocrédulo.Naverdade,Avenariusprocedia
semnenhummétodo.
Corriapelaruaedevezemquando,aosabordesuafantasia,
apanhavasuafacaparaenterrá-lanopneumaispróximo.
Norestaurante,elehaviameexplicadoqueeraprecisodepoisdecada
golpecolocardenovoafacanolugar,prendê-lanacinturaecontinuar
correndocomasmãosvazias.Porumladoficamosmaisàvontadepara
correr,poroutrogarantimosnossasegurança:émelhornãocorrerorisco
deservistocomumafacanamão.Ogolpetambémdevesercurtoe
violento,nãolevarmaisdoquealgunssegundos.
Masora,tantoquantodogmáticonateoria,Avenariusmostrava-se
negligentenaprática,semmétodoeperigosamenteinclinadoa
improvisações.
Depoisdeterfuradodoispneus(emvezdequatro)numaruadeserta,
empertigou-seecomeçouacorrerexibindoafaca,desprezandotodasas
regrasdesegurança.Ocarroparaoqualsedirigianaquelemomento
estavaestacionadonumaesquina.Eleestendeuobraçoquandoainda
estavaaquatrooucincometrosdoobjetivo(aindaumdesrespeitoàs
regras:eraprematuro!)enaquelemesmoinstanteseuouvidodireito
ouviuumgrito.Umamulheroolhavapetrificadadeterror.Deveter
aparecidonaesquinanomomentoexatoemqueAvenarius,preparando
seualvo,concentravatodasuaatençãonabeiradadacalçada.Ficaram
plantadosumemfrenteaooutroe,comoAvenariustambémficou
igualmenteparalisadopelosusto,seubraçolevantadoimobilizou-se.Sem
conseguirtirarosolhosdessafacaerguida,amulhersoltouumnovogrito.
FinalmenteAvenariusrecuperousuacalmaetornouacolocarafacana
cintura,embaixodesuaroupa.Paratranquilizaramulher,sorriue
perguntou-lhe:
—Quehorassão?
Comoseessaperguntaativesseassustadomaisdoqueafaca,a
mulhersoltouumterceirogritodeterror.
Enquantoapareciamalgunsnotívagos,Avenariuscometeuumerro
fatal.
Seeletivessetornadoatirarsuafacaeativesselevantadocomumar
feroz,amulherteriarecuperadoasforçasecorrido,levandoatrásdela
todosostranseuntesocasionais.Mas,comoelepôsnacabeçaagircomose
nadahouvesse,repetiucomcortesia:
—Poderiafazeragentilezademedizerashoras?
AoverqueostranseuntesseaproximavamequeAvenariusnãotinha
másintenções,pelaquartavezamulherdeuumterrívelgrito,depoiscom
umavozfortequeixou-se,tomandoportestemunhastodososquepodiam
ouvi-la:
—Elemeameaçoucomumafaca!Queriameviolar!
Numgestoqueexpressavaumaperfeitainocência,Avenariusafastou
osbraços:
—Meuúnicodesejoerasaberahoracerta.
Docírculoquetinhaseformadoemtornodelesdestacou-seumhomem
deuniforme,umagentedapolícia.Perguntouoqueestavaacontecendo.A
mulherrepetiuqueAvenariustinhaqueridoviolá-la.
Ohomenzinhoaproximou-setimidamentedeAvenariusque,
endireitandosuamajestosapostura,declaroucomumavozpoderosa:—
SouoprofessorAvenarius!
Essaspalavras,assimcomoagrandedignidadecomque
forampronunciadas,impressionarammuitooagentedepolícia;parecia
inteiramenteinclinadoapediràspessoasquesedispersassemeadeixar
Avenariusirembora.
Masamulher,inteiramenterecuperadadomedo,tornou-se
agressiva:—EmesmoqueosenhorfosseoprofessorKapilarius,gritou,
meameaçoucomumafaca!
Algunsmetrosadiante,abriu-seumaportaeumhomemsaiuparaa
rua.
Andavademodoestranho,comoumsonâmbulo,eparounomomento
emqueAvenariusexplicavacomumavozfirme:—Nãofiznadaanãoser
pediràsenhoraquemedissesseashoras!
Amulher,comosepercebessequeadignidadedeAvenarius
conquistavaasimpatiadoscuriosos,gritouparaopolícia:—Eleestácom
umafacaembaixodaroupa!Escondeu-anaroupa!Umafacaenorme!
Bastarevistá-lo!
OpolícialevantouosombrosepediuaAvenarius,quasese
desculpando:
—Osenhorquerfazerofavordedesabotoarsuaroupa?Avenarius
ficouuminstantesurpreso.Depoiscompreendeuquenãotinhaescolha.
Lentamentedesabotoousuaroupaeabriu-a,revelandoatodoso
engenhososistemadecintosquerodeavaseupeitoeaassustadorafacade
cozinhapresanacorreia.
Oscuriosossoltaramumsuspirodeespanto,enquantoosonâmbulo,
aproximando-sedeAvenarius,disse:—Souadvogado.Nocasodeprecisar
deajuda,aquiestámeucartão.Sóumapalavra.Vocênãoéobrigadoa
responderàsperguntas.Desdeoprimeiromomentodoinquéritoosenhor
podeexigirapresençadeumadvogado.
Avenariuspegouocartãoepôsnobolso.Opolicialpegou-opelobraço
evirouparaaspessoas:—Andem!Andem!
Avenariusnãoofereceuresistência.Sabiaqueestavapreso.Desdeque
viramagrandefacadecozinhasuspensaemsuacintura,aspessoasnão
lhetestemunhavamamenorsimpatia.Comosolhosprocurouohomem
quelhedisseraseradvogadoequelhederaocartão.Masohomem
afastava-sesemsevoltar:dirigiu-separaumcarroestacionado,depois
colocouachavenafechadura.Avenariustevetempodevê-lohesitare
ajoelhar-sepertodaroda.
NessemomentoopolicialpegouvigorosamenteAvenariuspelobraçoe
arrastou-oparaolado.
Pertodeseucarroohomemsoltouumsuspiro:—MeuDeus!Etodo
seucorpofoilogosacudidoporsoluços.
Tornouasubirparacasa,chorando,eprecipitou-separaotelefone.
Queriachamarumtáxi.Notelefoneumavozextraordinariamentedocelhe
disse:—TáxisParisienses.Porfavor,esperenalinha...,emseguidaouviuseumamúsicanofone,umalegrecorodemulherescomumabateria;no
fimdeumlongomomentoamúsicaseinterrompeueavozdocepediu-lhe
novamenteparaficarnalinha.Tinhavontadedeurrarquenãotinha
paciênciadeesperar,quesuamulherestavamorrendo,massabiaque
gritarnãotinhasentido,poisavoznooutroladodofioestavagravada
numafitaeninguémouviriaseusprotestos.
Depoisamúsicaressooumaisforte,corodemulheres,gorjeios,
baterias,edepoisdeumalongaesperaaverdadeiravozdeumamulher,
queimediatamentereconheceucomotalpoisnãoeramaisabsolutamente
doce,masbastantedesagradáveleimpaciente.Quandodisseque
precisavadeumtáxiparaserlevadoaalgumascentenasdequilômetros
deParis,avoznãorespondeulogo,equandotentouexplicarqueprecisava
desesperadamentedeumtáxi,maisumavezressoounoseuouvidoa
alegremúsica,abateria,osgorjeiosdemulheres,depoisnofimdeum
longomomento,adocevozgravadapediu-lhequeficassepacientemente
nalinha.
Desligouediscouonúmerodasuaassistente.Masemvezda
assistente,surgiudooutroladodalinhasuavozgravada:umavozalegre,
picante,deformadapelosorriso:—Estoucontentequevocêfinalmente
tenhaselembradodeminhaexistência.Nãopodesabercomolamentonão
poderfalarcomvocê,massevocêmedeixaronúmerodeseutelefone,
ligareicomprazerassimquepuder...
—Idiota,—disseeledesligando.
PorqueBrigitenãoestavaemcasa?Deveriaterchegadohámuito
tempo,pensavapelacentésimavez,efoidarumaolhadanoseuquarto,
mesmosabendoquenãoaachariaali.
Aquemrecorrer?ALaura?Elanãohesitariaememprestar-lheseu
carro,masiriainsistiremacompanhá-lo;eissoelenãopodiaconsentir:
AgnèsromperacomsuairmãePaulnãoqueriafazernadacontrasua
vontade.
Entãolembrou-sedeBernardo.Asrazõesdabrigaentreeles
pareceram-lhederepenteridiculamentefúteis.Discouseunúmero.
Bernardoestavaemcasa.
Paulexplicouoqueacontecera,epediu-lheemprestadoocarro.
—Estouaídaquiapouco,disseBernardo,enaquelemomentoPaul
sentiu-secheiodeamorporseuvelhoamigo.Gostariadebeijá-loechorar
emseuombro.
EstavafelizporBrigitenãoestaremcasa.Esperavaqueelanão
chegasse,queriairsozinhoparapertodeAgnès.Derepentetudohavia
desaparecido,suacunhada,suafilha,omundointeiro,sórestavamAgnèse
ele;nãoqueriaterceirosentreeles.Nãotinhadúvida,Agnèsestava
morrendo.Senãoestivesseemestadodesesperador,nãooteriam
chamadodeumhospitaldointeriornomeiodanoite.
Suaúnicapreocupaçãodaíparafrenteerachegaratempodebeijá-la
maisumavez.Seudesejodebeijá-latornou-seobsessivo.Desejavaum
beijo,oúltimobeijo,obeijoterminalquelhepermitiriacapturar,como
numarede,aquelerostoqueiriadesapareceredoqualrestariaapenasa
lembrança.
Sólherestavaesperar.Paulcomeçouaarrumarsuamesadetrabalho,
espantando-sedequenummomentocomoessepudessesededicarauma
atividadetãoinsignificante.Oqueimportavaquesuamesaestivesseou
nãoemordem?Eporquederaumcartãodevisitaaumdesconhecidona
rua?Masnãoconseguiaparar:arrumouseuslivrosnumcantodamesa,
embolouunsenvelopesdevelhascartasejogou-osnacestadelixo.É
assimmesmo,pensou,queohomemagequandoéatingidoporuma
desgraça:comporta-secomoumsonâmbulo.Aforçadeinérciadocotidiano
procuramantê-lonostrilhosdavida.
Olhouseurelógio.Ospneusfuradosjálhetinhamfeitoperderumaboa
meiahora.Depressa,depressa,sopravaparaBernardo,nãoqueroque
Brigitemeencontreaqui,queroirsozinhoechegaratempo.
Nãotevesorte.BrigiteentrouemcasanomomentodeBernardo
chegar.
Osdoisvelhosamigosabraçaram-se,BernardovoltouparacasaePaul
entrounocarrodeBrigite.Eladeixouqueeleguiasseepartiramem
grandevelocidade.
Viaerguer-senomeiodaestradaumasilhuetademulher,
bruscamenteiluminadaporumpossanteprojetor,braçosafastadoscomo
numbale;eracomoumaapariçãodeumabailarinapuxandoacortinade
umespetáculo,poisdepoisnãohaverianada,edetodaarepresentação
precedente,esquecidadeumasóvez,sórestaraessaimagemfinal.Depois
sentiuapenascansaço,umcansaçotãoimenso,semelhanteaumpoço
profundo,queosmédicoseasenfermeirasacharamqueelaperderaos
sentidos,enquantoelacompreendia,esentiacomsurpreendentelucidez,
queestavamorrendo.Conseguiaatéespantar-sevagamentepornão
experimentarnenhumanostalgia,nenhumamágoa,nenhumsentimentode
horror,nadadaquiloqueatéaquelediativesseassociadoàideiadamorte.
Depoisviuqueumaenfermeirainclinava-separalhesegredar:—Seu
maridoestávindo.Vemvervocê.Seumarido.
Agnèssorriu.Porquesorrira?Algumacoisavoltou-lheàmemóriadesse
espetáculoesquecido:é,elaeracasada.Depoissurgiuumnome:Paul!Sim,
Paul.Paul.Paul.Seusorrisoeraaqueledasdescobertassúbitascomuma
palavraperdida.Comoquandoalguémlheestendeumursodepelúciaque
vocênãovêhácinquentaanosevocêoreconhece.
Paul,elarepetiasorrindo.Osorrisocontinuouemseuslábios,mesmo
quandoelaesqueceuacausa.Estavacansadaetudoacansava.Sobretudo,
nãotinhaforçasparasuportarnenhumolhar.Conservavaosolhos
fechados,paranãovernadanemninguém.Importunadaeincomodada
portudoquesepassavaemtornodela,desejavaquenadasepassasse.
Depoislembrou-se:Paul.Afinal,oqueaenfermeiradizia?Queele
estavachegando?Alembrançadoespetáculoesquecido,doespetáculoque
forasuavida,derepentetornou-semaisclara.Paul.Paulestáchegando!
Nesseinstantedesejouviolentamente,apaixonadamente,queelenãoa
vissemais.
Estavacansada,nãoquerianenhumolhar.NãoqueriaoolhardePaul.
Nãoqueriaqueeleavissemorrer.Elatinhaqueseapressar.
Umaúltimavezrepetiu-seasituaçãofundamentaldesuavida:ela
correeéperseguida.Paulapersegue.E,noentanto,elanãotemmaisnada
nasmãos.
Nemescova,nempente,nemfita.Estádesarmada.Estánua,mal
cobertaporumaespéciedelençolbrancodohospital.Ei-laentrandona
últimalinhaàdireita,ondenadamaispodevirajudá-la,ondepodeapenas
contarcomavelocidadedesuacorrida.Quemserámaisrápido?Paulou
ela?SuamorteouachegadadePaul?
SeucansaçoficouaindamaisprofundoeAgnèsteveaimpressãode
afastar-secomtodarapidez,comoseempurrassemsuacamapordetrás.
Abriuosolhoseviuumaenfermeiraderoupabranca.Comoquese
pareciaseurosto?
Agnèsnãoodistinguiamais.Eestaspalavrasvoltaram-lheà
memória:—Lánãoexistemrostos.
Aproximando-sedacamaPaulviuocorpocobertocomumlençolpor
cimadacabeça.Umamulherderoupabrancaavisou-lhes:—Elamorreu
háquinzeminutos.
Opoucotempoqueoseparavadosúltimosmomentosde
Agnèsexacerbavaseudesespero.Tinhaperdidoporquinzeminutos.
Poraproximadamentequinzeminutosperderaarealizaçãodesuaprópria
vida,quederepenteficavainterrompidaeabsurdamentetruncada.
Parecia-lheque,durantetodasuavidaemcomum,elanuncafora
realmentedele,queelenuncaahaviapossuído;equepararealizare
terminarahistóriadeamordeles,faltava-lheumúltimobeijo,umúltimo
beijoparareter,emseuslábios,Agnèsviva;paraconservá-laentreseus
lábios.
Amulherderoupabrancalevantouolençol.Eleviuorostofamiliar,
pálidoebelo,noentantotãodiferente:oslábios,sebemquesempre
pacíficos,desenhavamumalinhaqueelenuncaconhecera.Não
compreendiaaexpressãodesserosto.Estavaincapazdeinclinar-see
beijá-lo.
AoladodeleBrigiteexplodiuemsoluçosecomeçouatremercoma
cabeçanopeitodePaul.
Eleolhouorostocomaspálpebrasfechadas:nãoeraparaPaulquese
dirigiaesseestranhosorrisoqueelenuncavira;essesorrisodirigia-sea
alguémquePaulnãoconhecia:elelheeraincompreensível.
AmulherderoupabrancaseguroubruscamentePaulpelobraço;ele
estavaapontodedesmaiar.
SextaParte
Omostrador
Malacriançanasce,põe-seasugaratetadamãe.Quandoamãea
desmama,chupaodedo.
Umdia,Rubensperguntouaumasenhora:
—Porqueasenhoradeixaseufilhochuparodedo?Elejátemdez
anos!
Elaficouaborrecida:
—Nãovouproibi-lo.Issoprolongaseucontatocomoseiomaterno!
Gostariaqueeleficassetraumatizado?
Assimacriançachupouodedoatéostrezeanos,idadeemquepassou
tranquilamentedodedoparaocigarro.
Maistarde,aofazeramorcomessamãequedefendiaodireitodeseu
filhoàsucção,Rubenscolocouseuprópriopolegarsobreoslábiosdela;
virandoacabeçalentamentedadireitaparaaesquerda,elacomeçoua
lamber.Comosolhosfechados,imaginavaestarcomdoishomens.
EssapequenahistóriamarcaumadataimportanteparaRubens,
porquefezcomquedescobrisseumamaneiradetestarasmulheres:
colocavaopolegarsobreseuslábioseesperavaareação.Asqueo
lambiameram,semdúvida,atraídaspeloamorplural.Asqueficavam
indiferentescomopolegareramdefinitivamentesurdasàstentações
perversas.
Umadasmulheresquetiveraseuspendoresorgiásticosdesvendados
pelo"testedopolegar"realmenteamavaRubens.Depoisdoamor,segurou
seupolegaredeu-lheumbeijodesajeitado,quequeriadizer:nomomento
queroqueseupolegarvolteaserpolegar,porquedepoisdetudoque
imaginei,estoucontentedeestaraquiasóscomvocê.
Asmetamorfosesdopolegar.Ouainda:comoosponteirossemovem
sobreomostradordavida.
Sobreomostradordeumrelógio,osponteirosgiramemcírculo.
Ozodíacotambém,comoédesenhadopelosastrólogos,temoaspectode
ummostrador.Ohoróscopoéumrelógio.Querseacrediteounãonas
previsõesastrológicas,ohoróscopoéumametáforadavida,eassimsendo,
encerragrandesabedoria.
Comoéqueumastrólogodesenhaseuhoróscopo?Traçaumcírculo,a
imagemdaesferaceleste,eodivideemdozesetorescadaum
representandoumsigno:Carneiro,Touro,Gêmeos,etc.Emseguida,no
círculozodiacal,eleinscreveossímbolosgráficosdoSol,daLuaedossete
planetasnoslugaresprecisosondeestavamessesastrosnomomentoem
quevocênasceu.Comose,sobreummostradorderelógionormalmente
divididoemdozehoras,inscrevesseanormalmentenovenúmeros
suplementares.Noveponteirospercorremessemostrador:sãotambémo
Sol,aLuaeosplanetas,masdamaneiracomogiramnocéudurantetodaa
suavida.Cadaplaneta-ponteiroestáassimincessantementenumanova
relaçãocomosplanetas-números,essespontosimóveisdoseuhoróscopo.
Aconfiguraçãosingularquetinhamessesplanetasnomomentoemque
vocênasceuéotemapermanentedesuavida,suadefiniçãoalgébrica,a
impressãodigitaldesuapersonalidade;osastrosimobilizadossobreseu
horóscopoformamentresiânguloscujovaloremgraustemumsignificado
preciso(positivo,negativo,neutro):imagine,porexemplo,queseuVênus
amorososeacheemconflitocomseuMarteagressivo;queoSoldesua
personalidadesejafortificadoporsuaconjunçãocomoenérgicoe
aventureiroUrano;queasexualidadesimbolizadapelaLuaseja
sustentadapeloastrodelirantequeéNetuno,eassimpordiante.Porém,
duranteseutrajeto,osponteirosdosastrosvãotocarcadaumdospontos
imóveisdohoróscopo,pondoassimemjogo(debilitante,energizante,
ameaçador)diversoscomponentesdeseutemavital.Avidaébemassim:
nãoseparececomoromancepicarescoondeoherói,decapítuloem
capítulo,ésurpreendidoporacontecimentossemprenovos,semnenhum
denominadorcomum;éparecidacomessacomposiçãoqueosmúsicos
chamamtemacomvariações.
Uranomove-senocéunumpassorelativamentelento.Levaseteanos
parapercorrerumsigno.Suponhamosquehojeestejanumarelação
dramáticacomoSolimóvelnoseuhoróscopo(digamosqueestejama
noventagrausdedistância):vocêteráumanodifícil;emvinteeumanosa
situaçãoserepetirá(Uranoestandoentãoacentoeoitentagrausdoseu
Sol,oquetemomesmosignificadonefasto),masarepetiçãoseráapenas
aparente,porquenesseano,nomesmomomentoemqueUranoatacao
seuSol,SaturnonocéuseencontrarácomVênusnoseuhoróscoponum
relacionamentotãoharmoniosoqueatempestadepassaráporvocêna
pontadospés.Comosevocêfosseatingidoporumamesmadoença,mas
destavezsendotratadonumhospitalfabuloso,onde,emvezde
enfermeirasimpacientes,estariamanjos.
Aastrologia,parece,nosensinaofatalismo:vocênãoescaparádoseu
destino!Ameuver,aastrologia(presteatenção,aastrologiacomo
metáforadavida)dizumacoisamaissutil:vocênãoescaparáaotemade
suavida!Issoquerdizerqueseráumaquimeratentarimplantarnomeio
desuavidauma"vidanova",semnenhumrelacionamentocomsuavida
precedente,partindodozero,comosediz.Suavidaserásempre
construídacomosmesmosmateriais,osmesmostijolos,osmesmos
problemas,eoquevocêpoderiaconsiderarnoprincípiocomouma"vida
nova"logoaparecerácomoumasimplesvariaçãodojávivido.
Ohoróscopoparececomumrelógio,eorelógioéaescoladafinitude:
assimqueumponteirocompletouumcírculoparavoltaraolugardeonde
partiu,umafasetermina.Nomostradordohoróscopo,noveponteiros
giramemvelocidadesdiferentes,marcandoatodoinstanteofimdeuma
faseeocomeçodeoutra.Emsuajuventude,ohomemnãoestáem
condiçõesdeperceberotempocomoumcírculo,masapenascomoum
caminhoqueoconduzdiretoparahorizontessemprediversos;não
percebeaindaquesuavidacontémapenasumtema;perceberáissomais
tarde,quandoavidacompusersuasprimeirasvariações.
Rubensteriaunsquatorzeanosquandoumamenina,quedeviatera
metadedesuaidade,parou-onaruaparaperguntar:
—Porfavor,osenhorpoderiamedizerashoras?
Eraaprimeiravezqueumadesconhecidaochamavadesenhor.Ficou
encantadoeacreditouestarcomeçandoumanovaetapaemsuavida.
Depoisesqueceu-secompletamentedesseepisódio,atéodiaemqueuma
mulherbonitalhedisse:
—Quandovocêeramoçotambém,nãopensava...
Eraaprimeiravezqueumamulherreferia-seàsuamocidadecomo
umacoisadopassado.Nesseinstantevoltou-lheaimagemdameninaque
outroralheperguntaraahora,ecompreendeuqueentreessasduas
figurasfemininasexistiaumparentesco.Eramduasfigurasemsi
insignificantes,encontradasporacaso;noentanto,quandoasrelacionou,
surgiramcomodoiselementosdecisivosnomostradordesuavida.
Colocareideoutramaneira:imaginemosomostradordavidade
Rubenssobreumgigantescorelógiomedieval,odePraga,porexemplo,na
praçadaVielleVillequeatravesseimilvezesantigamente.Orelógiosoa,e
emcimadomostradorabre-seumapequenajanela;saidaíuma
marionete,umameninadeseteanosqueperguntaahora.Depois,quando
omesmoponteiro,muitolentamente,muitosanosdepois,atingeonúmero
seguinte,ossignoscomeçamatocar,apequenajanelareabre-se,esaiuma
outramarionete:"Vocêtambémquandoeramoço..."
Quandoeramuitojovem,jamaisousaraconfessaraumamulhersuas
fantasiaseróticas.Achava-seobrigadoatransformartodasuaenergia
amorosaemumafantásticaproezafísicasobreocorpofeminino.Suas
parceiras,nãomenosjovens,estavamperfeitamentedeacordocomisso.
Lembrava-sevagamentequeumadelas,quedesignaremospelaletraA,
duranteoamor,repentinamente,arqueou-sesobreoscotovelose
tornozelos,curvacomoumaponte;comoeleestavadeitadosobreela,
perdeuoequilíbrioequasecaiudacama.ParaRubens,essegesto
esportivoeraricodesignificadospassionaispeloqueficoureconhecidoà
suaamiga.Viviaseuprimeiroperíodo:operíododemutismoatlético.
Depois,poucoapouco,perdeuessemutismo;achou-semuitoaudacioso
nodiaemque,pelaprimeiravez,diantedeumamoça,designouemvoz
altaumacertapartedeseucorpo.Aaudácia,narealidade,eramenordo
queelepensava,poisaexpressãoqueempregaraeraumdiminutivo
carinhoso,umaperífrasepoética.Porém,eleestavaencantadocomsua
coragem(surpresotambémdamoçanãolheterimpostosilêncio)e
começouainventarmetáforas,asmaisrequintadaspossíveis,parafalar,
comumrodeiopoético,sobreoatosexual.Eraseusegundoperíodo:o
períododasmetáforas.
Naépoca,elesaíacomB.Depoisdohabitualprelúdioverbal(muito
metafórico!),fizeramamor.Sentindo-senopontodegozar,subitamenteela
pronunciouumafraseondeseuprópriosexoeradesignadoporumtermo
inequívocoenãometafórico.Eraaprimeiravezqueouviaessapalavrada
bocadeumamulher(outradataimportantesobreseumostrador,diga-se
depassagem).Surpreso,eufórico,compreendeuqueessetermobrutal
tinhamuitomaischarmeeforçaexplosivaquetodasasmetáforasjamais
inventadas.
Passadoumtempo,Cconvidou-oàcasadela.Essamulhereraquinze
anosmaisvelhadoqueele.Antesdoencontro,elerepetiraparaseuamigo
Mtodasassublimesobscenidades(não,nadamaisdemetáforas!)queele
tencionavadizeràsenhoraCduranteocoito.Foiumestranhofracasso:
antesqueeleencontrasseacoragemnecessária,foielaquemasproferiu.
Novamenteficouestupefato.Nãosomenteaaudáciadesuaparceira
ultrapassaraasua,mas,oqueeraaindamaisestranho,elaempregara
literalmenteamesmaformadefalarqueelelevaraváriosdiaspara
aperfeiçoar.Essacoincidênciaentusiasmou-o.Creditouofatoauma
telepatiaerótica,ouaummisteriosoparentescodealmas.Foiassimque
progressivamenteentrouemseuterceiroperíodo:operíododaverdade
obscena.
OquartoperíodofoiestreitamenteligadoaseuamigoM:operíododo
telefoneárabe.Chamava-setelefoneárabeumabrincadeiraqueelefizera
muitasvezesentrecincoeseteanosdeidade:ascriançassentavam-se
ladoalado,oprimeirocochichavaumalongafraseaosegundo,quea
cochichavaaoterceiro,quearepetiaaoquarto,eassimemseguidaatéo
último,queapronunciavaemvozalta,oqueprovocavaumrisogeral
diantedadiferençaentreafraseinicialesuatransformaçãofinal.Adultos,
RubenseMbrincavamdetelefoneárabecochichandoàssuasamantes
frasesobscenas,extraordinariamentesofisticadas;semdesconfiarque
participavamdabrincadeira,asmulheresasrepercutiam.EcomoRubens
eMtinhamalgumasamantesemcomum(ouamantesqueeles
discretamenteserepassavam),podiamtransmitirporintermédiodelas
alegresmensagensdeamizade.Umdiaumamulhercochichou-lhedurante
oamorumafrasetãoenrolada,tãoimprovável,queRubensreconheceu
imediatamenteummaravilhosoachadodeseuamigoenãopôdeseconter;
amulhertomouseurisoabafadoporumaconvulsãoamorosae,
encorajada,repetiuafrase;aterceiravez,elaarepetiuaosgritos,tanto
que,pairandoemcimadeseuscorposemplenacopulação,Rubens
percebiaofantasmadeseuamigoàsgargalhadas.
Lembrou-seentãodajovemBque,lápelofimdoperíododas
metáforas,haviainopinadamenteempregadoumapalavraobscena.Como
passardotempo,umaperguntasurgiuemseuespírito:essapalavra,seria
aprimeiravezqueadissera?Naépocanãoduvidavadisso.Achavaqueela
estavaapaixonadaporele,desconfiavaquequeriacasarcomeleequenão
conhecianenhumoutrohomem.
Agoracompreendiaqueumhomemdeviaterensinadoaelaprimeiro
(diriamesmo,treinado)ausaressapalavraantesqueelapudessedizê-la
aRubens.
Sim,comopassardosanos,graçasàexperiênciadotelefoneárabe,ele
sedavacontadequenaépocaqueelalhejuravafidelidade,Bcertamente
tinhaoutroamante.
Aexperiênciadotelefoneárabeotransformara:perderaasensação
(sensaçãoàqualtodossucumbimos)dequeoamorfísicoéummomento
deintimidadetotalduranteoqualdoiscorpossolitáriosseunemumao
outro,nummundotransformadoemdesertoinfinito.Deagoraemdiante
elesabiaqueummomentocomoessenãotrazmuitasolidão.Mesmono
povaréudosChamps-Elysées,eleestavamaisintimamentesódoquenos
braçosdamaissecretadasamantes.Poisoperíododotelefoneárabeerao
períodosocialdoamor:todomundoparticipa,àcustadealgumaspalavras,
doabraçoentredoisseres;semcessar,asociedadealimentaomercado
dasimagenslúbricaseassegurasuadifusãoeseuintercâmbio.Então
antecipouaseguintedefiniçãodenação:comunidadedeindivíduoscuja
vidaeróticaéligadapelomesmotelefoneárabe.
Mas,emseguida,encontrouajovemD,detodasassuasmulheres,a
maisfalante.Desdequeseencontrarampelasegundavez,confessou-se
fanaticamenteonanista,ecapazdechegaraoorgasmocontandoparasi
mesmacontosdefadas.
—Contosdefadas?Quais?Conte!Ecomeçouafazer-lheamor.
Elacontou:umapiscina,cabinesdevestir,buracosnasdivisõesde
madeira,osolharesquesentiasobresuapeleenquantosedespia,aporta
queseabriasubitamente,quatrohomensnasoleira,eassimpordiante;o
contodefadaserabelo,erabanal,eRubensnãopodiasenãosefelicitar
porsuaparceira.
Masumacoisaestranhalheaconteceranessemeiotempo:
quandoencontravaoutrasmulheres,descobrianaimaginaçãodelas
fragmentosdesseslongoscontosdefadasqueDlhedescreveraduranteo
amor.Àsvezesencontravaamesmapalavra,amesmamaneiradedizer,
apesardessaspalavrasedamaneiradedizê-lasseremcompletamente
incomuns.OextensomonólogodeDeraumespelhoondeeramrefletidas
todasasmulheresqueelehaviaconhecido,eraumavastaenciclopédia,um
Laroussedeimagensemodoslascivosemoitovolumes.Nocomeço,
interpretouomonólogodeDsegundooprincípiodotelefoneárabe:por
intermédiodecentenasdeamantes,anaçãointeiralevavaparaacabeça
desuaamiga,comoparadentrodeumacolmeia,asimagenslúbricas
colhidasnosquatrocantosdopaís.Maistarde,constatouqueaexplicação
nãoeraverdadeira.AlgunsfragmentosdograndemonólogodeDeram
encontradosemmulheresqueelesabia,comcerteza,quenãopoderiam
tertidonenhumcontatoindiretocomD,nenhumamanteemcomum
poderiaterfeitoentreelasopapeldemensageiro.
Rubenslembrou-se,então,desuaaventuracomC:prepararaparaela
fraseslascivas,masfoielaquemasdisse.Naépocaeleachavaqueera
telepatia.
Ora,CrealmenteleraessasfrasesnacabeçadeRubens?Mais
provavelmente,elaastinhaemsuacabeçamuitoantesdeconhecê-lo.Mas
comoosdoispodiamterasmesmasideiasnacabeça?Équeelasdeviam
terumafontecomum.Veio,então,àcabeçadeRubensaideiadequeum
sóemesmorioatravessatodososhomensetodasasmulheres,ummesmo
riosubterrâneocarregandoimagenseróticas.Cadaindivíduorecebeseu
lotedeimagens,nãodeumamanteoudeumaamante,comonojogodo
telefoneárabe,masdesserioimpessoal(transpessoalouinfrapessoal).
Ora,dizerqueorioquenosatravessaéimpessoal,édizerquenão
dependedenós,masdaquelequenoscriouequeocolocouemnós,oque
querdizer,emoutrostermos,quedependedeDeus,vistoqueéDeus,ou
deumdeseusavatares.QuandoRubensformulouessaideiapelaprimeira
vezpareceu-lheblasfematória,maslogodepoisoaspectodeblasfêmia
evaporou-seeelemergulhounoriosubterrâneocomumaespéciede
humildadereligiosa:sentiaquenesserioestamostodosunidos,nãocomo
membrosdeumamesmanação,mascomofilhosdeDeus;cadavezque
imergianesseriotinhaasensaçãodeconfundir-secomDeusnuma
espéciedefusãomística.Sim,oquintoperíodoeraoperíodomístico.
AvidadeRubensresumia-se,então,aumahistóriasobreoamorfísico?
Comefeitopodemosentendê-laassim;eodiaemqueeledescobriu
isso,assinalatambémumadataimportanteemseumostrador.
Aindanocolégio,passavahorasnomuseuolhandoosquadros;em
casa,pintavaumacentenadeguachesegraçasàscaricaturasquefazia
dosprofessorestinhaumacertareputaçãoentreseuscolegas.Desenhavaasalápisparaarevistadosalunosqueerareproduzidaemxerox,ou
então,norecreio,desenhava-asagiznoquadro-negro,paragrande
divertimentodaclasse.Essaépocapermitiuqueeledescobrisseoqueera
aglória:eraconhecidoeadmiradonocolégio,etodos,porbrincadeira,
chamavam-noRubens.Comolembrançadessesbelosanos(osúnicosde
glória),conservouoapelidodurantetodasuavidae(cominesperada
ingenuidade)ohaviaimpostoaseusamigos.
Aglóriaterminounovestibular.Queriaprosseguirseusestudosna
EscoladeBelas-Artes,masnãopassounosexames.Nãoeratãobom
quantoosoutros?
Ounãotinhasorte?Écurioso,masnãopossoresponderaessas
perguntastãosimples.
Comindiferença,começouaestudardireito,botandoaculpadeseu
fracassonapequenezdesuaSuíçanatal.Esperandoconcretizaremoutro
lugarsuavocaçãodepintor,tentouasorteporduasvezes:primeiro
apresentando-sesemsucessonoconcursodaEscoladeBelas-Artesem
Paris,depoisoferecendoseusdesenhosadiversasrevistas.Porqueos
recusavam?Osdesenhoseramruins?Osdestinatárioseramimbecis?Ou
entãoaépocanãoseinteressavapordesenhos?Omáximoquepossofazer
érepetirquenãotenhorespostasparaessasperguntas.
Cansadodeseusfracassos,desistiu.Pode-seconcluir,certamente(e
eraconscientedisso),quesuapaixãopelodesenhoepelapinturaera
menosintensadoqueimaginara:enganara-se,nocolégio,quandose
atribuiuumavocaçãodeartista.Nocomeçoficoudecepcionadocomessa
descoberta,maslogo,comoumdesafio,umaapologiadaresignação
ressoouemsuaalma:porqueseriaobrigadoaserapaixonadopela
pintura?Oqueeratãolouvávelnessapaixão?Amaiorpartedosmaus
quadros,dosmauspoemas,nãonasceporqueosartistasvêememsua
paixãopelaartequalquercoisadesagrado,umamissão,umdever(com
elespróprios,portanto,comahumanidade)?Suaprópriarenúnciao
incitavaaconsiderarartistaseescritorescomopessoasmenostalentosas
doqueambiciosas,edaíemdianteevitouconvivercomeles.
Seumaiorrival,N,umgarotodamesmaidade,nascidonamesma
cidadeeantigoalunodomesmocolégio,foiadmitidonaEscoladeBelasArteselogo,aindaporcima,obtevegrandesucesso.Naépocadoginásio,
todomundoachavaqueRubenstinhamuitomaistalentodoqueN.Isso
querdizerquetodomundoestavaenganado?Ouqueotalentoéumacoisa
quesepodeperderpelocaminho?Comosuspeitamos,nãoháresposta
paraessasperguntas.Aliás,nãoéissooimportante:naépocaemqueseus
fracassosoestimulavamarenunciardefinitivamenteàpintura(épocados
primeirossucessosdeN)Rubenstinhaumcasocomumamoçamuito
jovememuitobonita,enquantoNcasava-secomumamoçarica,tãofeia
queemsuapresençaRubensficousemar.Parecia-lhequeessa
coincidênciaeracomoumsinaldodestino,indicando-lheondeficavao
centrodegravidadedesuavida:nãonavidapública,masnavida
particular,nãonaprocuradeumacarreira,masnosucessocomas
mulheres.Ederepente,oqueaindanavésperalhepareceraumdefeito,
revelava-seumasurpreendentevitória:sim,elerenunciariaàglória,àluta
peloreconhecimento(lutatristeevã),afimdeseconsagraràprópriavida.
Nemmesmoperguntouasipróprioporqueasmulheresseriam"aprópria
vida".Issolhepareciaevidenteeindubitável.Estavacertodeterescolhido
umcaminhomelhordoqueseucolegaatreladoaumespantalho.Assim
sendo,suajovemebelaamigaencarnavaparaelenãosóumapromessa
defelicidade,massobretudoseutriunfoeseuorgulho.Paraconfirmar
essavitóriainesperada,paramarcá-lacomoselodoirrevogável,casou-se
comessabeleza,persuadidodequeiriasuscitarainvejageral.
AsmulheresrepresentamparaRubensa"própriavida"e,portanto,
nadaémaisurgentedoquecasarcomsualindeza,eassim,aomesmo
tempo,renunciaràsmulheres.Eisumcomportamentoilógico,masmuito
comum.Rubenstinhavinteequatroanos.Acabavadeentrarnoperíodo
daverdadeobscena(foipoucodepoisdessaépocaqueconheceuamoçaB
easenhoraC),massuasexperiênciasnãocontradiziamsuaopiniãodeque
acimadoamorfísicohaviaoamor,ograndeamor,valorsupremodoqual
jáouvirafalarmuito,comoqualsonharamuito,edoqualnadasabia.Não
tinhadúvida:oamoreraacoroaçãodavida(dessa"própriavida"queele
preferia,àsuacarreira)eéprecisoacolhê-lodebraçosabertosesem
compromissos.
Comoacabeidedizer,osponteirosdeseumostradorsexualmarcavam
agoraahoradaverdadeobscena,masestandoapaixonado,Rubens
prontamenteregrediuparaosestágiosanteriores:nacama,ficavamudo,
oudiziaàsuanoivacarinhosasmetáforas,certodequeaobscenidade
teriatransportadotodosdoisparaforadoterritóriodoamor.
Diriaissodeoutramaneira:seuamorpelalindezaolevavadevoltaà
adolescência;poispronunciandoapalavra"amor",comojádisseemoutra
ocasião,todaaEuropavoltou,sobreasasasdoencantamento,aoestado
pré-coital(ouextracoital),aolugarondeojovemWertherhaviasofridoe
ondeDominique,noromancedeFromentin,quasecaiudocavalo.No
momentoemqueencontroualindeza,Rubensestavaprontoparacolocar
nofogoapanelacomosentimentoeesperaromomentoemquefervesse,
transformandoosentimentoempaixão.Oquecomplicavaumpoucoas
coisaseraaligaçãoquemantinhaemoutracidadecomumaamiga(vamos
chamá-ladeE),trêsanosmaisvelhadoqueele,quehaviaconhecidobem
antesdesualindeza,ecomqueaindaconviveuporalgunsmeses.Sóparou
devê-lanodiaemquedecidiucasar-se.Arupturanãofoiprovocadapor
umesfriamentoespontâneodossentimentosdeRubensemrelaçãoaela
(logoveremosatéquepontoeleaamava),masporsuaconvicçãodeter
entradonumafasedavida,imponenteesolene,ondeafidelidade
supostamentesantificariaoamor.Noentanto,umasemanaantesdodia
marcadoparaseucasamento(cujoensejoparecia-lheumtantoduvidoso)
sentiuporE,abandonada,semamenorexplicação,umasaudade
irresistível.Comonuncachamaradeamoresserelacionamento,ficou
surpresoemdesejá-latãoardentemente,detodocoração,detodaa
cabeça,detodoseucorpo.Nãoaguentandomais,foiaoseuencontro.
Duranteumasemana,deixou-sehumilharnaesperançadefazeremamor,
pediu,implorou,cumulou-acomseucarinho,comsuatristeza,comsua
insistência,maselasólheofereceuapresençadeseurostodesolado;seu
corpo,nãopôdenemtocar.
Frustradoetriste,voltouparacasanamesmamanhãdodiado
casamento.
Ficoubêbadoduranteafestae,ànoite,levouajovemnoivaparao
apartamentodeles.Fazendo-lheamor,cegopelabebedeiraepelasaudade,
chamou-apelonomedaantigaamiga.Catástrofe!Nuncamaisesqueceria
osgrandesolhosgrudadosnelecomhorrorizadoespanto!Nesseinstante
emquetudodesmoronava,pensouqueaamigaabandonadavingara-see
minaraseucasamentodesdeoprimeirodia.Talveztenhacompreendido
também,nessebrevemomento,oinverossímildoqueacontecera,a
grotescaburricedeseulapso,aburricequetornavaaindamais
insuportávelofracassoinevitáveldoseucasamento.Foramtrêsouquatro
segundosterríveisemqueficoumudo;depoisderepentecomeçoua
gritar:—Eva!Elisabete!Catarina!e,incapazdelembrar-sedeoutros
nomesfemininos,repetiu:
—Catarina!Elisabete!Sim,vocêéparamimtodasasmulheres!Todas
asmulheresdomundo!Eva!Clara!Julieta!Vocêéamulhernoplural!
Paulina,Pierrette!Todasasmulheresdomundoestãoemvocê,vocêtemo
nomedetodaselas!...eacelerouosmovimentosdoamor,comoum
verdadeiroatletadosexo;depoisdealgunssegundos,pôdeconstatarque
osolhosarregaladosdaesposaretomavamseuaspectohabitualequeseu
corpopetrificadoretomavaoritmocomtranquilizadoraregularidade.
Amaneiracomoescapoudodesastrepodeparecerapenasverossímil
e,semdúvida,nosespantamosdequeajovemrecém-casadatenhalevado
asérioumacomédiatãoestapafúrdia.Masnãoesqueçamosqueosdois
viviamsobodomíniodopensamentopré-coital,queseaparentaaoamor
absoluto.Qualocritériodeamor-próprioaesseperíodovirginal?Eleé
puramentequantitativo:oamoréumsentimentomuito,muito,muito,
muitogrande.Ofalsoamoréumsentimentopequeno,overdadeiroamor
(diewahreLiebe!)éumsentimentomuitogrande.Mas,dopontodevistado
absoluto,todoamornãoépequeno?
Certo.Éporqueoamorparaprovarqueéverdadeiroquerfugirdo
razoável,querignorarqualquermedida,quersairdoverossímil,querse
transformaremdelíriosativosdapaixão(nãoesqueçamosEluard!),em
outrostermos,querserlouco!Ainverossimilhançadeumgestoexagerado
sópodetrazervantagens.Paraumobservadordoladodefora,amaneira
comoRubensconseguiusesafardoseuproblemanãofoinemelegante,
nemconvincente,masnocasoeraaúnicaquelhepermitiaevitara
catástrofe;agindocomolouco,Rubensexigiuoabsoluto,oabsolutolouco
deamor:efoioqueosalvou.
Seempresençadesuaesposamuitojovem,Rubensvoltouaserum
atletalíricodoamor,issonãoquerdizerquetenharenunciadopara
sempreaosjogoslúbricos,masquequeriacolocarapróprialubricidadea
serviçodoamor.
Imaginavaqueiaviversócomumamulher,numêxtasemonogâmico,
todasasexperiênciasqueconheceracomumacentenadeoutras.Faltava
resolverumaquestão:emqueritmoaaventuradasensualidadedeveria
progredirnocaminhodoamor?Comoocaminhodeviaserlongo,muito
longo,semfimsepossível,mantinhacomoprincípio:frearotempo,não
precipitarnada.
Digamosqueeleimaginavaofuturosexualcomsualindezacomoa
escaladadeumaaltamontanha.Sealcançasseocumenoprimeirodia,o
quefarianodiaseguinte?Assim,eraprecisoplanejaraascensãoparaque
preenchessetodaumavida.Faziaamorcomsuamulhertambémcom
paixão,éverdade,comfervor,masdigamosdemaneiraclássica,evitando
asperversõesqueoatraíam(comelamaisaindadoquecomqualquer
outra),masdeixavaparamaistarde.
Nãoimaginavaqueoqueaconteceupudesseacontecer:deixaramdese
entender,irritavam-seumaooutro,ocasaldisputavaopoder,ela
reclamavamaisespaçoparaseudesabrocharpessoal,eleseaborrecia
porqueelanãoqueriacozinharosovosparaseucafédamanhã,eantes
quecompreendessemoqueestavaacontecendoviram-sedivorciados.O
grandesentimentosobreoqualpretenderaconstruirtodasuavida
desapareceutãodepressaqueRubensduvidavaquejamaisexistira.Essa
evaporaçãodosentimento(evaporaçãosúbita,rápida,fácil!)foiparaele
algovertiginosoeinacreditávelqueofascinavaaindamaisqueoêxtase
amorosovividodoisanosantes.
Seobalancetedeseucasamentoeranulo,obalanceteeróticotambém
oeracommaisrazãoainda.Dadooritmolentoquesehaviaimposto,não
haviapostoempráticacomessaesplêndidacriatura,senãojogoseróticos
bastanteinocentes,moderadamenteexcitantes.Nãosomentenãohavia
alcançadoocumedamontanha,masnãotinhachegadonemaoprimeiro
belvedere.Porissoquisreveralindezadepoisdodivórcio(elanãose
opôs:desdequenãodisputavammaisopoder,passaraagostardesses
encontros),afimdepôrempráticaaomenosalgumasdaspequenas
perversõesqueeleguardaraparaofuturo.Masnãopôdepraticarquase
nada,porquedessavezescolheuumritmoapressadodemais,eajovem
divorciada(queelequeriaquepassassenumatacadasóaoestágioda
verdadeobscena)interpretousuaimpaciênciasensualcomoumaprovade
cinismoefaltadeamor,tantoqueasrelaçõespós-matrimoniaisacabaram
rapidamente.
Ocasamentonasuavidanãotendosidosenãoumsimplesparêntese,
estoutentadoadizerqueRubensvoltouexatamenteaopontoondeestava
antesdeencontrarsuafuturaesposa;masseriafalso.Depoisdoinchaço
dosentimentoamoroso,consideraraseuachatamento,tãoincrivelmente
indolorenãodramático,comoumarevelaçãochocante:encontrava-se
definitivamentealémdoamor.
Ograndeamorqueohaviaextasiadohádoisanosfezcomque
esquecesseapintura.Masquandofechouoparêntesedocasamentoe
constatoucommelancólicodespeitoqueseachavaalémdoamor,sua
renúnciaàartepareceu-lhe,derepente,comoumacapitulação
injustificável.
Começouaesboçarosquadrosquequeriapintarnoseucadernode
notas.
Paralogoconstatar,porém,queumavoltaaopassadoeraimpossível.
Nocolégio,imaginavaquetodosospintoresdomundoavançavamnum
mesmograndecaminho:eraumaestradarealqueiadapinturagóticaaos
grandesitalianosdaRenascença,depoisaosholandeses,depoisa
Delacroix,deDelacroixaManet,deManetaMonet,deBonnard(ah,como
gostavadeBonnard!)aMatisse,deCézanneaPicasso.Nessaestrada,os
pintoresnãoavançavamemtropacomosoldados,não,cadaumandava
sozinho,masasdescobertasdeunsinspiravamosoutrosetodosestavam
conscientesdeabriremumapassagememdireçãoaodesconhecidoque
erasuametacomumequeosunia.Depois,derepente,ocaminho
desapareceu.Foicomoofimdeumlindosonho:durantealgunsmomentos
procuramosaindaasimagensesmaecidas,antesdecompreenderquenão
podemosfazerossonhosvoltarem.Entretanto,apesardedesaparecido,o
caminhocontinuavanaalmadospintores,representadopelodesejo
inextinguívelde"iradiante".Masondeéo"adiante"senãohámais
caminho?Emquedireçãoprocuraro"adiante"perdido?Entreospintores,
odesejode"iradiante"tornou-seumaneurose;todoscorriamemtodosos
sentidos,unscruzandocomosoutrossemparar,comopassantesagitados
namesmapraçadeumamesmacidade.
Todosqueriamdistinguir-seecadaumesforçava-seporredescobrir
umadescobertaqueooutronãoteriaaindaredescoberto.Felizmente,logo
aparecerampessoas(nãomaispintores,masmarchands,organizadoresde
exposiçõesacompanhadosdeseusagentesdepublicidade)quepuseram
ordemnessecaos,edecidiramqualdescobertaeranecessáriaredescobrir
emtaletalano.Essereordenamentofavoreceuavendadequadros
contemporâneos;elessubitamenteseamontoaramnossalõesdosmesmos
milionáriosque,dezanosantes,faziampoucodePicassooudeDali,eque
Rubensporessarazãodesprezavacomfervor.
OsmilionáriosdecidiramsermodernoseRubensdeuumsuspirode
alíviopornãosermaispintor.
Umdia,emNovaIorque,visitouoMuseudeArteModerna.Noprimeiro
andarhaviaumaexposiçãodeMatisse,Braque,Picasso,Miro,Dali,Ernst;
Rubensficouencantado:aspinceladassobreastelasexpressavamum
prazerfrenético.Àsvezesarealidadesofriaumestuprograndiosocomo
umamulheragredidaporumfauno,àsvezesenfrentavaopintorcomoo
touroenfrentaotoureiro.Masnoandarsuperior,reservadoàpintura
maisrecente,Rubensencontrou-seemplenodeserto:nenhumtraçodas
alegrespinceladas,nenhumtraçodeprazer;desaparecidosostoureirose
ostouros;astelashaviambanidoarealidadequandonãoaimitavamcom
obtusaecínicafidelidade.EntreosdoisestágioscorriaoLeteu,orioda
morteedoesquecimento.Rubensentãodisseasimesmoque,seacabara
renunciandoàpintura,foiporumarazãomaisprofunda,provavelmente,
queasimplesfaltadetalentoouperseverança:sobreomostradorda
pinturaeuropeia,osponteirosmarcavammeia-noite.
TransplantadoparaoséculoXIX,oquefariaumalquimistadegênio?
OqueseriahojedeCristóvãoColombo,quandocentenasde
transportadorasasseguramasrotasmarítimas?OqueShakespeare
escreverianumaépocaondeoteatroaindanãoexisteounãoexistemais?
Essasperguntasnãosãomeramenteretóricas.Quandoumhomem
édotadoparaumaatividadeparaaqualorelógiosoouameia-noite(ou
aindanãosoouaprimeirahora),oqueacontececomseutalento?Vaise
transformar?Vaiseadaptar?CristóvãoColombosetransformariaem
diretordeumasociedadetransportadora?Shakespeareescreveria
roteirosparaHollywood?Picassoproduziriahistóriasemquadrinhos?Ou
entãotodosessesgrandestalentosseretirariamdomundo,partiriam,por
assimdizer,paraalgumconventodaHistória,cheiosdedecepçãocósmica
porteremnascidoemmáhora,foradaépocaparaaqualestariam
destinados,foradomostradorquemarcavaaépocadeles?Abandonariam
seutalentointempestivocomoRimbaud,quecomdezenoveanos
abandonouapoesia?
Tambémaessasperguntas,nemvocê,nemeu,nemRubensobteremos
resposta.ORubensdemeuromanceeraumgrandepintoreventual?Ou
entãonãotinhanenhumtalento?Abandonouospincéisporfaltadeforças
ou,aocontrário,porqueteveaforçadepercebercomlucidezafutilidade
dapintura?
Certamente,muitasvezespensavaemRimbaudeemseuforoíntimo
gostavadesecomparar(sebemquecomtimidezeironia).Nãosomente
Rimbaudabandonouapoesiaradicalmenteesempena,massuaatividade
ulterioréasarcásticanegaçãodapoesia:diz-sequesededicavaaotráfico
dearmasnaÁfricaeàvendadenegros.Mesmoseasegundaafirmação
nãoésenãoumalendacaluniosa,elaexpressabem,porhipérbole,a
violênciaautodestrutiva,apaixão,araiva,comasquaisRimbaudse
separoudeseupassadodepoeta.SeRubensfoicadavezmaisatraídopelo
mundodosespeculadoresedosfinancistas,étalveztambémporquevia
nessaatividade(comousemrazão)oopostodosseussonhosdeartista.O
diaemqueseucolegaNtornou-sefamoso,Rubensvendeuumquadroque
outroraelelhepresenteara.Nãosomenteessavendarendeu-lhealgum
dinheiro,masrevelou-lheumbommeiodeganharavida:venderaos
milionários(queeledesprezava)obrasdepintorescontemporâneos(de
queelenãogostava).Muitaspessoasganhamavidavendendoquadros,
semnenhumconstrangimentoemexerceressaatividade.
Velásquez,Vermeer,Rembrandttambémnãoforammarchandsde
quadros?
Rubenscertamentesabiadisso.Masseestavaprontoasecompararao
Rimbaudmarchanddeescravos,jamaissecomparariaaosgrandes
pintoresmarchandsdequadros.Rubensjamaisiriaduvidardainutilidade
totaldeseutrabalho.Noprincípioficouacabrunhadoerepreendeu-sepor
seuimoralismo.Masacaboudizendoasimesmo:nofundo,oquesignifica
"serútil"?Asomadautilidadedetodosossereshumanosdetodasas
épocasestácontidainteiramentenomundotalcomoéhoje.Por
conseguinte:nadamaismoraldoqueserinútil.
Maisoumenosdozeanosdepoisdoseudivórcio,Fveiovê-lo.Contou
suavisitaàcasadeumsenhor:logoquechegou,elepediuqueela
esperasseunsbonsdezminutosnasala,sobopretextodeestar
atendendootelefonenoquartoaolado,terminandoumaconversa
importante.Talvezestivessefingindotelefonar,paraqueelativessetempo
defolhearrevistaspornográficasdispostassobreumamesabaixa,em
frenteàpoltronaqueelelhehaviaindicado.Fconcluiusuanarrativacom
estaobservação:
—Seeufossemaisjovem,eleteriamepossuído.Seeutivesse
dezesseteanos.Éaidadedasmaisloucasfantasias,aidadeemquenão
sabemosresistiranada...
Rubensescutaraumtantodistraidamente,masasúltimaspalavraso
tiraramdesuaindiferença.Deagoraemdianteseriasempreamesma
coisa:alguémpronunciariadiantedeleumafrasequeotomariade
surpresa,comoumacensura,fazendo-olembrardealgumacoisaque
tivesseperdido,perdidoirrevogavelmente.QuandoFfaloudeseus
dezesseteanosedaincapacidadederesistiràstentaçõesquetinha
naquelaépocalembrou-sedesuajovemesposaquetambémtinha
dezesseteanosnaépocaemqueseconheceram.Lembrou-sedeumhotel
nointeriorondeestevecomelaumpoucoantesdesecasarem.Faziam
amornumquartoaoladodoquartoocupadoporumamigo.
—Elenosouve!cochichouafuturaesposaváriasvezes.
—Agora(sentadodiantedeFquecontavaastentaçõesdosseus
dezesseteanos)Rubenssedeucontadequenaquelanoiteelahaviadado
suspirosmaisprofundosquehabitualmente,haviaatégritado,portanto
gritaradepropósitoparaserouvidapeloamigo.
Nosdiasseguintes,elahaviarelembradoessanoiteváriasvezes:
—Vocêachamesmoqueelenãonosouviu?
Naépoca,viranessaperguntaamanifestaçãoapreensivadeseupudor,
etentaraapaziguá-la(umatalingenuidadeagoraofaziaenrubesceratéas
orelhas!),assegurando-lhequetodosdiziamqueoamigotinhaumsonode
pedra.
OlhandoparaF,pensavaquenãodesejavaespecialmentefazer-lhe
amornapresençadeoutramulheroudeoutrohomem.Mascomoera
possívelquealembrançadesuamulher,suspirandoegritandoquatorze
anosantesenquantopensavanoamigodeitadodooutroladodaparede,
comoerapossívelqueessalembrança,depoisdetantosanos,fizessecom
queosanguelhesubisseàcabeça?
Disseasimesmo:oamoratrês,aquatro,sópodeserexcitantena
presençadamulheramada.Sóoamorécapazdedespertaroespanto,a
excitaçãohorrorizadadiantedocorpodeumamulherabraçadaporum
homem.Oantigoditadomoralizador,segundooqualocontatosexualsem
amornãotemsentido,erasubitamentejustificáveletinhaumnovo
significado.
Nodiaseguinte,tomouumaviãoparaRomaondetinhadecolocarem
ordemalgunsnegócios.Porvoltadasquatrohorasestavalivre.Cheiode
umasaudadesemraízes,pensavaemsuaantigaesposa,masnãosónela;
todasasmulheresqueconheceradesfilavamdiantedeseusolhosetinhaa
impressãodequeficaraemfaltacomtodaselas,queviveracomelasmuito
menosdoqueteriapodidoedoquedeveriatervivido.Paraseverlivre
dessasaudade,dessainsatisfação,foiàpinacotecadopalácioBarberini
(emtodasascidadesvisitavaaspinacotecas),depoisdirigiu-separaa
escadariadaPiazzadiSpagnaesubiuatéaVilaBorghese.Sobrepedestais,
flanqueandoaslongasaleiasdoparque,estavamcolocadosbustosem
mármoredeitalianoscélebres.Seusrostos,imobilizadosnumacaretafinal,
estavamexpostoscomoresumosdesuasvidas.
Rubenssempreseimpressionaracomoaspectocômicodasestátuas.
Sorriu.
Depoislembrou-sedoscontosdefadasdesuainfância:ummágico
enfeitiçaaspessoasduranteumbanquete;todospermanecemnaposição
emqueestavamnaqueleinstante:abocaaberta,orostodeformadopela
mastigação,umossoroídonamão.Umaoutralembrança:ossobreviventes
deSodoma,Deusproibiu-osdesevirarem,sobpenadesetransformarem
emestátuasdesal.EssahistóriadaBíbliamostrasemequívocoquenãohá
piorcastigo,piorhorrordoquetransformaruminstanteemeternidade,
arrancarohomemdotempoedoseumovimentocontínuo.Perdidonesses
pensamentos(esquecidoslogodepois),derepenteenxergou-a!Não,não
eraasuamulher(aquelaquedavasuspiros,achandoqueseriaouvidapor
umamigonoquartovizinho),eraoutrapessoa.
Tudoaconteceunumafraçãodesegundo.Elesóareconheceuno
últimomomento,quandoelajáestavajuntodeleequandoopassoseguinte
osteriadefinitivamenteafastadoumdooutro.Comexcepcionalrapidezele
paroudechofre,virou-se(elatambémreagiu)efalou-lhe.
Teveaimpressãodequeeraelaqueeledesejaraduranteanos,deque
aprocurarapelomundointeiro.Cemmetrosadiantehaviaumcafécom
mesasarrumadasàsombradasárvores,sobumcéuesplendidamente
azul.Sentaram-sefrenteafrente.
Elausavaóculosescuros.Elesegurou-osentredoisdedos,tirou-oscom
delicadezaecolocou-osnamesa.Elanãoreagiu.
—Foiporcausadestesóculos,disseele,quequasenãoareconheci.
Beberamáguamineral,sempoderdesviaroolharumdooutro.Ela
estavaemRomacomomaridoesódispunhadeumahora.Elesabiaque
seascircunstânciasopermitissem,teriafeitoamornaquelemesmodia,
naqueleminuto.
Comosechamava?Qualoseunome?Eleesqueceraeachava
impossívelperguntar-lhe.Contou-lhe(comcompletasinceridade)que,
duranteotempoemqueestiveramseparados,tinhatidoaimpressãode
queestavaàesperadela.
Comoconfessar-lhe,então,quenãosabiaseunome?
Disse:—Sabecomonósachamávamos?
—Não.
—Aviolinista.
—Porqueaviolinista?
—Porquevocêeradelicadacomoumviolino.Fuieuqueinventeiesse
nomeparavocê.
Sim,eleoinventara.Nãonaépocaemqueaconhecera,
muitorapidamente,masagora,noparquedaVilaBorghese,porque
precisavadeumnomeparapoderfalar-lhe;eporqueachava-adelicada,
eleganteedocecomoumviolino.
Oquesabiasobreela?Muitopouco.Lembrava-sevagamentedetê-la
vistonumaquadradetênis(eleteriavinteeseteanos,eladezmenosdo
queele),detê-laconvidadoumdiaparairemaumaboate.Nadançada
épocaohomemeamulherficavamaumpassoumdooutro,se
entortavamejogavamosbraçosumdecadavezemdireçãoaoparceiro.
Foicomessemovimentoqueelaficougravadaemsuamemória.Oque
teriaacontecidodetãoestranho?Oseguinte:elanãoolhavaparaRubens.
Então,paraondeolhava?Paraovazio.Todososdançarinosfaziamuma
meia-flexãocomosbraçosjogando-osparaafrenteumdecadavez.Ela
tambémfaziaessemovimento,masdeumamaneiraumpoucodiferente:
quandojogavaumbraçoparadiante,faziacomquedescrevesseuma
curva:paraaesquerdacomobraçodireito,paraadireitacomobraço
esquerdo.
Comosequisesseesconderseurostoatrásdessesmovimentos
circulares.Comosequisesseescondê-lo.Adançaeraconsideradaentão
relativamenteindecente,eeracomoseamoçaquisessedançar
indecentementeescondendosuaindecência.
Rubensficaraencantado!Comosejamaistivessevistoumacoisatão
amorosa,tãolinda,tãoexcitante.Depoistocaramumtangoeoscasaisse
abraçaram.Nãopodendoresistiraumsúbitoimpulso,pousou-lheamão
sobreoseio.Tevemedo.
Oqueelafaria?Nãofeznada.Continuouadançar,amãodeRubens
sobreseuseio,olhandoparaafrente.Comumavozquasetrêmula,ele
perguntou:
—Alguémjátocouseuseio?
Comumavoznãomenostrêmula(eracomoserealmenteroçassemas
cordasdeumviolino),elarespondeu:—Não.
Amãosemprepousadasobreseuseio,achouesse"não"amaislinda
palavradomundoeficouextasiado:parecia-lheveropudor;vê-lode
perto,vê-loexistir;teveaimpressãodepodertocaressepudor(aliás,eleo
tocavarealmente,poisopudordamoçaconcentrara-seinteiroemseuseio,
invadiraseuseio,transformara-seemseio).
Porqueaperderadevista?Quebravaacabeçasemencontrar
umaresposta.Nãoselembravamais.
NoiníciodoséculoArthurSchnitzler,romancistavienense,publicouum
notávelromanceintituladoMademoiselleElsa.Aheroínaéumamoçacujo
paiendividou-seapontodequasesearruinar.Ocredorprometeuperdoar
asdívidasdopaiseafilhaficassenuadiantedele.Depoisdeumlongo
debateinterior,Elsaconsente,masseupudorétantoqueaexibiçãodesua
nudezfazcomqueelapercaarazãoemorra.Evitemosqualquermalentendido:nãosetratadeumahistóriamoralizadora,dirigidacontraum
ricaçomaueperverso!Não,trata-sedeumromanceeróticoqueprendeo
fôlego;elenosfazcompreenderopoderqueoutroratinhaanudez:parao
credor,significavaumaenormesomadedinheiro,eparaamoçaumpudor
infinitoquefazianascerumaexcitaçãopróximadamorte.
.NoquadrantedaEuropa,oromancedeSchnitzlermarcaummomento
importante;ostabuseróticoseramaindapoderososnofinaldopuritano
séculoXIX,masaliberaçãodoscostumesjásuscitavaumdesejo,não
menospoderoso,desuperaçãodessestabus.Pudoredespudorse
encontravamnumpontoemquesuasforçaseramiguais.Foiummomento
deintensatensãoerótica.Vienaviveuissonaviradadoséculo.Esse
momentonãovoltarámais.
Opudorsignificaquenosproibimosaquiloquequeremos,aomesmo
tempoemquesentimosvergonhadequereraquiloquenosproibimos.
Rubenspertenciaàúltimageraçãoeuropeiaeducadanopudor.Porisso
ficoutãoexcitadoaocolocaramãonoseiodamoçaededeslancharassim
seupudor.Umdia,nocolégio,meteu-seescondidonumcorredor,edeuma
janelaconseguiuverasmeninasdesuaclasse,comosseiosdefora,
esperandoparafazerradiografiadepulmão.Umadelasoenxergouedeu
umgrito.Asoutrassecobriramdepressacomsuasblusasecorreram
atrásdelenocorredor.Eleviveuummomentodeterror;derepentenão
erammaissuascolegasdeclasse,suasamigasprontasabrincareflertar.
Emseusrostoslia-seumamaldadecruelmultiplicadapelonúmerodelas,
umamaldadecoletivadecididaacaçá-lo.Escapou,maselasnão
abandonaramsuaperseguiçãoeodenunciaramàdireçãodocolégio.
Enfrentouumaacusaçãodiantedetodaaclasse.Comumdesprezomal
disfarçadoodiretorqualificou-odevoyeur.
Tinhamaisoumenosquarentaanosquandoasmulheresdeixaram
seussutiãsnumagavetae,estendidasnaspraias,mostraramseusseios
paraomundointeiro.Andavaabeira-mareevitavaolharessanudez
inesperada,porqueovelhoimperativohaviaseenraizadonele:nãoferiro
pudordeumamulher.
Quandopassavaporumamulherconhecida,porexemplo,amulherde
umcolega,queestavasemsutiã,constatavacomsurpresaquenãoeraela
quesentiavergonha,masele.Encabulado,nãosabiaparaondeolhar.
Tentavanãoolharosseios,maseraimpossível,poispercebemososseios
nusdeumamulhermesmoquandoolhamossuasmãosouseusolhos.
Assim,tentavaolharseusseiosnuscomtantanaturalidadequantoolharia
umatestaouumjoelho.Masnãoerafácil,exatamenteporqueosseiosnão
sãonemumatestanemumjoelho.Qualquercoisaquefizesse,parecia-lhe
queessesseiosnusqueixavam-sedele,queoacusavamdenãoestar
suficientementedeacordocomsuanudez.Tinhasempreaforteimpressão
dequeasmulheresqueencontravanapraiaeramaquelasquevinteanos
antesotinhamdenunciadoaodiretorporvoyeurismo:tãomaldosasquanto
aquelas,exigiamdele,comamesmaagressividademultiplicadapelo
númerodelas,quereconhecesseodireitoquetinhamdeficarnuas.
Afinal,maloubem,reconciliou-secomosseiosnus,massemconseguir
desfazer-sedosentimentodequeumacoisagraveacabavadeacontecer:
nomostradordaEuropahaviasoadoahora:opudorhaviadesaparecido.
Enãoapenashaviadesaparecido,masdesapareceratãofacilmente,numa
sónoite,quepodíamosatépensarquenuncaexistira.Quenãoerasenão
umasimplesinvençãodoshomensdiantedeumamulher.Quepudornão
erasenãoumamiragemdoshomens.Seusonhoerótico.
Depoisdeseudivórcio,comoeudisse,Rubensviu-se
definitivamente"alémdoamor".Essafórmulaagradava-lhe.Muitasvezes
elerepetia(àsvezescommelancolia,àsvezesalegremente):vivominha
vida"alémdoamor".
Masoterritórioquechamava"alémdoamor"nãosepareciacomo
terrenodefundo,sombrioeabandonado,deumpaláciomagnífico(palácio
doamor);não,eleeravastoerico,infinitamentevariadoemaisextenso,
talvezmaisbelodoqueoprópriopaláciodoamor.Entreasvárias
mulheresquenelemoravam,algumaslheeramindiferentes,outraso
distraíam,mashaviaalgumasporquemeraapaixonado.Épreciso
compreenderessaaparentecontradição:alémdoamor,oamorexiste.
Realmente,seRubensempurravapara"alémdoamor"suasaventuras
amorosas,nãoeraporinsensibilidade,masporquepretendialimitá-lasà
simplesesferaerótica,proibindoquetivessemamenorinfluêncianocurso
desuavida.
Todasasdefiniçõesdoamorterãosempreumpontocomum:oamoré
algumacoisadeessencial,transformaavidaemdestino:ashistóriasque
acontecem"alémdoamor",pormaisbelasquesejam,têm
consequentementeenecessariamenteumcaráterepisódico.
Masrepito:apesardebanidaspara"alémdoamor",paraumterritório
doepisódico,algumasmulheresdeRubenssuscitavamneleternura,
outrasoobcecavam,outrasotornavamciumento.Querdizerqueos
amoresexistiammesmo"alémdoamor",ecomono"alémdoamor"a
palavraamorestavaproibida,todosessesamoreseramnarealidade
secretose,portanto,aindamaiscativantes.
NocafédaVillaBorghese,sentadoemfrentedaquelaquechamavaa
violinista,imediatamentecompreendeuqueelaseriaparaeleuma"amada
alémdoamor".Sabiaqueavidadaquelajovem,seucasamento,suas
preocupaçõesnãoointeressavam,massabiatambémquesentiriaporela
umaternuraextraordinária.
—Estoulembrandoumoutronomequevoudaravocê.Vouchamá-la
avirgemgótica.
—Eu,umavirgemgótica?
Nuncaachamaraassim.Aideiatinhalheocorridouminstanteantes,
quandopercorriam,ladoalado,oscemmetrosqueosseparavamdocafé.
Amoçaevocaranelealembrançadequadrosgóticosquehavia
contempladonopalácioBarberiniantesdoencontrodeles.
Continuou:—Nospintoresgóticos,asmulherestêmabarriga
ligeiramentesalienteeacabeçainclinadaparaochão.Vocêtemapostura
deumajovemvirgemgótica.
Deumaviolinistanumaorquestradeanjos.Seusseiosseviramparao
céu,suabarrigaseviraparaocéu,massuacabeça,comoseconhecessea
vaidadedetodasascoisas,inclina-separaapoeira.
Voltavampelaaleiaondetinhamseencontrado.Ascabeçascortadas
dosmortosilustres,colocadasemcimadepedestais,osencaravamcheias
dearrogância.
Naentradadoparquesedespediram:ficoucombinadoqueRubens
viriavê-laemParis:eladeu-lheseunome(onomedoseumarido),o
númerodoseutelefone,eindicouashorasemqueestariasozinhaem
casa;depoispegousorrindoseusóculosescuros:
—Agora,seráquepossotornaracolocá-los?
—Pode,respondeuRubens,seguindo-apormuitotempocomosolhos
enquantoseafastava.
Odolorosodesejoqueexperimentaranavésperadoseuencontro,ao
verquesuajovemesposaescapava-lheparasempre,transformou-seem
obsessãopelaviolinista.Procurounasuamemóriatudoquelherestara
dela,semacharnadaanãoseralembrançadaquelaúnicanoitenaboate.
Cemvezesevocouamesmaimagem:nomeiodoscasaisdebailarinos,ela
estavabememfrentedele,aumpassodedistância.Olhavanovazio.Como
senãoquisessevernadadomundoexteriormassimconcentrar-seemsi
mesma.Comosealihouvesse,aumpassodela,nãoRubensmasum
grandeespelhonoqualseobservava.Observavaseusquadris,projetados
parafrenteumdecadavez,observavasuasmãosqueefetuavamao
mesmotempomovimentoscircularesemfrentedosseusseiosedoseu
rosto,comoparaescondê-losouapagá-los.Comoseelaosapagassee
fizesseaparecerdenovoolhando-senoespelhoimaginário,excitadacom
seuprópriopudor.Seusmovimentosdedançaeramumapantomimado
pudor,nãoparavamdefazerreferênciaàsuanudezescondida.
UmasemanadepoisdeseuencontroemRoma,tinhamum
encontromarcadonohalldeumgrandehotelparisiensecheiode
japonesescujapresençalhesdavaumaagradávelimpressãodeanonimato
edefaltaderaízes.Depoisdefecharaportadoquarto,aproximou-sedela
ecolocouumadasmãonoseuseio:
—Foiassimquelhetoquei,nanoiteemquefomosdançar.Lembra?
—Lembro,disseela,efoicomoumalevebatidanamadeiradeum
violino.
Elasentiriavergonhacomosentiraháquinzeanosatrás?Betinateria
sentidovergonhaemTeplitzquandoGoethetocou-lheoseio?Opudorde
BetinanãoseriaapenasumsonhodeGoethe?Opudordaviolinistanão
seriaapenasumsonhodeRubens?Serásempreessepudor,mesmoirreal,
mesmoreduzidoàlembrançadeumpudorimaginário,queestarálá,com
eles,noquartodehotel,envolvendo-oscomsuamagiaedandoumsentido
atudoquefaziam.Despiuaviolinistacomoseacabassemdesairdaboate.
Duranteoamor,eleaviadançar:elaescondiaorostocomgestosdasmãos
eseobservavanumgrandeespelhoimaginário.
Comavidezdeixaram-selevarporessaondaqueatravessahomense
mulheres,essaondamísticadeimagensobscenasemquetodasas
mulherestêmumcomportamentoidêntico,masnasquaisosmesmos
gestoseasmesmaspalavrasrecebemdecadarostoindividualumpoder
individualdefascínio.
Rubensouviaaviolinista,escutavasuasprópriaspalavras,olhavao
rostodelicadodavirgemgótica,seuslábioscastosarticulandopalavras
grosseiras,esentia-secadavezmaisembriagado.
Otempogramaticaldesuaimaginaçãoeróticaeraofuturo:vocême
fará,nosiremosorganizar...Essefuturotransformaosonhonuma
promessaperpétua(quenãoémaisválidaquandoosamantesvoltamao
estadonormal,masque,nãosendonuncaesquecida,torna-sedenovo
promessa).Portantoerainevitávelqueumdia,nohalldohotel,elea
esperasseemcompanhiadeseuamigoM.Subiramcomelaparaoquarto,
beberameconversaram,depoiscomeçaramadespi-la.
Quandotiraramseusutiã,elacolocouasmãosnopeito,tentandocobrir
seusseios.Elesalevaramentão(estavasódecalcinha)paraafrentede
umespelho(umespelhocolocadonaportadeumarmário):elaficoudepé
entreosdois,aspalmassobreosseios,eolhou-sefascinada.Rubens
constatouqueseMeelesóolhavamparaela(seurosto,suasmãos
cobrindoseupeito),elanãoosvia,olhandocomoquehipnotizadaparasua
própriaimagem.
OepisódioéumanoçãoimportantedaPoéticadeAristóteles.Aristóteles
nãogostadoepisódio.Detodososacontecimentos,segundoele,ospiores
(dopontodevistadapoesia)sãoosacontecimentosepisódicos.Nãosendo
umaconsequêncianecessáriadaquiloqueoprecedeenãoproduzindo
nenhumefeito,oepisódioencontra-seforadoencadeamentocausaiqueé
ahistória.Comosefosseumacasoestéril,elepodeseromitidosemqueo
relatosetorneincompreensível;nãodeixaomenortraçonavidados
personagens.Vocêvaidemetrôencontraramulherdasuavidae,na
estaçãoqueprecedeasua,umamoçadesconhecidaqueestáaseulado,
tomadadeummalsúbito,perdeaconsciênciaedesmaia.Uminstante
antesvocênemahavianotado(poisafinaldecontasvocêtemumencontro
comamulherdesuavidaenadamaislheimporta!),nessemomentovocê
éforçadoalevantá-laecarregá-laporalgunssegundosnosseusbraços,
esperandoqueelaabraosolhos.Vocêainstalanobancoqueacabade
ficarlivreecomoocarroperdevelocidadeaoaproximar-sedaestação,
vocêseafastaimpacientementedelaparacorrernadireçãodamulherde
suavida.Apartirdessemomento,amoça,queuminstanteantesvocê
carregavanosbraços,éesquecida.Eisumepisódioexemplar.Avidaé
assimcheiadeepisódiosquantoumcolchãoécheiodecrinas,masopoeta
(segundoAristóteles)nãoéumcolchoeiroedeveafastardeseurelato
todososrecheiosapesardavidarealsertalvezcompostaapenasdesses
recheios.
AosolhosdeGoethe,seuencontrocomBetinafoiumepisódiosem
importância;nãosóeleocupavanasuavidaumlugarquantitativamente
minúsculo,comoGoethetambémfeztudoparaimpedirqueesseepisódio
assumisseumpapelcausaiecolocou-ocuidadosamenteàpartedesua
biografia.
Ora,éaíqueaparecearelatividadedanoçãodeepisódio,essa
relatividadequeAristótelesnãoalcançou:ninguémpodegarantirqueum
acidenteepisódiconãocontenhaumapotencialidadecausai,quepodeum
diaacordarepôremmarchainesperadamenteumcortejode
consequências.Umdia,eudisse,eessediapodechegarmesmodepoisdo
personagemestarmorto,daíotriunfodeBetinaquetornou-separte
integrantedavidadeGoethe,quandoGoethenãoestavamaisvivo.
Podemos,portanto,completarcomosegueadefiniçãodeAristóteles:a
priorinenhumepisódioestácondenadoacontinuarparasempre
episódico,jáquecadaacontecimento,mesmoomaisinsignificante,encerra
apossibilidadedetornar-semaistardeacausadeoutrosacontecimentos,
transformando-seaomesmotemponumahistória,numaaventura.Os
episódiossãocomominas.Amaiorpartenãoexplodenunca,noentanto,
chegaodiaemqueomaismodestopodelheserfatal.Narua,vemuma
moçanasuadireção,dirigindo-lhedelongeumolharquelhepareceráum
poucoalucinado.Eladiminuiopassopoucoapouco,depoispára:
—Évocêmesmo?Hámuitosanosqueprocurovocê!Eseatiranoseu
pescoço.Eamoçaquehaviacaídodesmaiadanosseusbraçosnodiaem
quevocêiaencontraramulherdasuavida,aqualnessemeiotempose
tornousuaesposaeamãedoseufilho.Masamoçaencontradaporacaso,
hámuitotempo,decidiuficarapaixonadapeloseusalvador,eoencontro
fortuitodevocêsvaiparecer-lheumsinaldodestino.Vailhetelefonar
cincovezespordia,escreverácartas,procurarásuamulherparaexplicar
queestágostandodevocê,equetemdireitossobrevocê,atéomomento
emqueamulherdasuavidaperderáapaciênciaefaráamorcomum
lixeiroeoabandonarácarregandoseufilho.Paraescapardamoça
apaixonada,quenessemeiotempodesembarcounoseuapartamentocom
tudoquetinhanosarmários,vocêprocurarárefúgiodooutroladodo
oceanoeéláquemorreránodesesperoenamiséria.Senossasvidas
fossemeternascomoadosdeusesantigos,anoçãodeepisódioperderia
seusentido,poisnoinfinitotodososacontecimentos,mesmoomais
insignificante,tornar-se-áumdiacausadeumefeitoesetransformaráem
história.
Aviolinistacomquemdançaraquandotinhavinteeseteanosnãoera
paraRubenssenãoumsimplesepisódio,umarqui-episódio,atéomomento
emqueareviuquinzeanosmaistarde,poracaso,naVillaBorghese.
Naquelemomento,deumepisódioesquecido,nasceuderepenteuma
pequenahistória,masmesmoessapequenahistória,navidadeRubens,
ficouinteiramenteepisódica,semamenorchancedeumdiafazerparte
daquiloquepoderíamoschamarsuabiografia.
Biografia:sucessãodeacontecimentosqueconsideramosimportantes
paranossavida.Masoqueéimportanteeoquenãoé?Comonãosabemos
(enemmesmonosocorrenosfazermosumaperguntatãosimplesetão
boba),aceitamoscomoimportanteaquiloquenospareceimportantepara
osoutros,porexemplo,paraofuncionárioquenosfazpreencherum
questionário:datadenascimento,profissãodospais,níveldeestudos,
funçõesexercidas,domicíliossucessivos(filiaçãoeventualaopartido
comunista,acrescentariamnaminhaantigapátria),casamentos,divórcios,
datadenascimentodosfilhos,sucessos,fracassos.Éhorrível,maséassim:
aprendemosaolharnossaprópriavidapelosolhosdosquestionários
administrativosoupoliciais.Jáéumapequenarevoltainseriremnossa
biografiaumaoutramulherquenãoénossaesposalegítima;ouainda,
umaexceçãodessassóéadmissívelseessamulherdesempenhouem
nossavidaumpapelespecialmentedramático,oqueRubensnãopoderia
dizerdaviolinista.
Aliás,porsuaaparênciaassimcomoporseucomportamento,a
violinistacorrespondiaàimagemdeumamulher-episódio;elaeraelegante
masdiscreta,belasemchamaratenção,dadaaoamorfísicomasaomesmo
tempotímida;elanuncaincomodavaRubenscomconfidenciassobresua
vidaparticular,mastambémevitavadramatizaradiscriçãodeseusilêncio
paratransformá-lonummistérioinstigante.Eraumaverdadeiraprincesa
doepisódio.
Oencontrodaviolinistacomosdoishomensnumgrandehotel
parisienseeraexcitante.Entãoostrêsfizeramamoremconjunto?Não
esqueçamosqueaviolinistahaviasetornadoparaRubensuma"amada
alémdoamor";oimperativoantigodespertounele,ordenando-lhe
diminuiroritmodosacontecimentosparaqueoamornãoperdessemuito
depressasuacargasexual.
Antesdelevá-laparaacama,fezsinalparaqueseuamigodeixasse
discretamenteoquarto.
Portanto,duranteoamor,ofuturogramaticaltransformoumaisuma
vezsuaspalavrasemumapromessaque,noentanto,nuncaserealizou:
poucodepois,oamigoMdesapareceudoseuhorizonteeoencontro
excitantededoishomenseumamulhercontinuousendoumepisódiosem
continuação.Rubensviaaviolinistaduasoutrêsvezesporano,quando
tinhaaoportunidadedeviraParis.
Depoisaocasiãonãomaisseapresentoue,denovo,aviolinista
desapareceuquaseinteiramentedesuamemória.
Osanospassarame,umdia,sentou-secomumcoleganumcaféda
cidadeondemorava,aopédosAlpesSuíços.Reparouquenamesaem
frenteumajovemoobservava.Bonita,abocagrandeesensual(queele
teriadebomgradocomparadoaumabocaderã,seéquesepodedizer
queasrãssãobelas),pareciasertudooqueelesemprehaviadesejado.
Mesmoatrêsouquatrometrosdedistância,seucorpoparecia-lhe
agradávelaocontatoe,nessemomento,eleopreferiaaocorpodetodasas
outrasmulheres.Elaoolhavatãointensamenteque,semouvirmaisoque
seucolegadizia,deixou-secativareimaginoudolorosamentequedentro
dealgunsminutos,quandosaíssedocafé,perderiaessamulherpara
sempre.
Porémnãoaperdeu,porquelogoqueelesselevantaramdamesaela
tambémselevantoue,comoeles,dirigiu-separaoedifícioemfrenteonde
dentrodepoucotempoalgunsquadrosseriamleiloados.Atravessandoa
rua,ficaramporuminstantetãopertoumdooutroqueelenãopôde
deixardelhedirigirapalavra.Elareagiucomoseesperasseporissoe
começouaconversarcomRubenssemdaratençãoaseucolega,que,sem
graça,seguiu-osemsilêncioatéosalãodevendas.Quandooleilãoacabou,
encontraram-seasósnomesmocafé.
Nãotendomaisdoqueumameiahora,apressaram-seemdizerumao
outrooquetinhamparadizer.Masoquetinhamasedizernãoeralá
grandecoisa,eeleficousurpreendidocomolentoescoardessameiahora.
Ajovemeraumaestudanteaustraliana,tinhaumquartodesanguenegro
(quemalsepercebia,razãopelaqualelagostavamaisaindadefalarsobre
isso),estudavasemiologiadapinturasobadireçãodeumprofessorde
Zurique,e,naAustrália,duranteumcertotempo,ganharaavidadançando
seminuanumaboate.Todasessasinformaçõeseraminteressantes,mas
davamaRubensumaforteimpressãodeestranheza(porquedançarde
seiosnusnaAustrália?PorqueestudarsemiologiadapinturanaSuíça?Na
realidade,oqueerasemiologia?),atalpontoqueemvezdedespertarsua
curiosidade,elasocansavamdeantemãocomoobstáculosaserem
vencidos.Tambémficoucontentedeverameiahoraenfimterminar:
imediatamenteseuentusiasmoreavivou-se(poiselaaindalheagradava)e
marcaramumencontroparaodiaseguinte.
Foientãoquetudodeuerrado:acordoucomdordecabeça,ocarteiro
trouxe-lheduascartasdesagradáveis,quandotelefonouparaumescritório
tevequeaguentaravozimpacientedeumamulherqueserecusavaa
entenderseupedido.Desdequeaestudanteapareceunoumbraldesua
porta,seusmauspresságiosforamconfirmados:porquesevestiratão
diferentedavéspera?Nospés,enormestêniscinzentos;emcimadostênis,
meiasgrossas;emcimadasmeias,umacalçaque,estranhamente,afazia
parecermenor;emcimadacalça,umblusão;emcimadoblusão,enfim,ele
podiaveroslábiosderã,sempreatraentesmascomacondiçãode
abstrair-sedetudooqueestavamaisembaixo.
Afaltadeelegânciadeumatalindumentárianãoeraemsimuitograve
(nãomudavaofatodequeamoçaerabonita);oquemaisinquietava
Rubenseraasuaprópriaperplexidade:porqueumajovemquevai
encontrar-secomumhomem,comoqualelaquerfazeramor,nãoseveste
demaneiraquepossaagradá-lo?Seráqueelaquerdizerquearoupaé
umacoisaexterior,semimportância?Ouentão,aocontrário,elaatribui
elegânciaaessasroupaseseduçãoaessesenormestênis?Ouainda,não
terianenhumapreçoporessehomemquevaiencontrar?
Afim,talvez,deserperdoadocasoesseencontronãomantivessetodas
assuaspromessas,eleconfessou-lhetertidoumdiaruim,numtomque
tentavaserbrincalhão,eenumeroutudooquelheacontecerade
aborrecidodesdeamanhã.
Elateveumgrandesorriso:
—Oamoréomelhorantídotoparaosmauspresságios!
Rubensficouintrigadocomapalavra"amor"',daqualestava
desabituado.
Oqueelaqueriadizercomisso?Oatodoamorfísico?Ou,então,o
sentimentoamoroso?Enquantoelepensava,eladespiu-senumcantodo
cômodoemeteu-senacama,abandonando,sobreumacadeira,suacalça
delinho,edebaixodacadeira,seusenormestêniscomasgrossasmeias
dentrodeles,essestênisquepararamporummomentoemcasade
Rubensnodecorrerdesualongaperegrinaçãoentreasuniversidades
australianaseascidadeseuropeias.
Foiumatodeamorincrivelmentepacíficoesilencioso.Direique
Rubensderepentevoltouaoestadodeatletismotaciturno,masa.palavra
"atletismo"
seriaumtantodeslocada,poisnadasubsistiadasambiçõesdorapaz
outrorapreocupadoemprovarsuapotênciafísicaesexual;aatividadea
quesededicavampareciaterumaspectomaissimbólicodoqueatlético.Só
queRubensnãotinhaamenorideiadoqueseusmovimentos
supostamentesimbolizariam:aternura?Oamor?Aboasaúde?Aalegria
deviver?Ovício?Aamizade?AféemDeus?Seriatalvezumaoraçãoà
longevidade?(Ajovemestudavasemiologiadapintura;maselanão
deveriaesclarecerantesasemiologiadocoito?)Elefaziamovimentos
vazios,epelaprimeiravezemsuavidanãosabiaporqueosfazia.
Duranteumapausa(aideiaveioàcabeçadeRubensdequeo
professordesemiologia,eletambém,certamentedeveriafazerumapausa
dedezminutosnodecorrerdoseminário),amoçapronunciou(comvoz
semprecalmaeserena)umafrasequenovamentecontinhaa
incompreensívelpalavra"amor".Rubenspensava:magníficascriaturas
femininas,vindasdofundodoespaço,descerãosobreaTerra;seucorpo
seráparecidocomodasterrestres,comadiferençadequeseráperfeito,
porqueemseuplanetadeorigemnãoexistedoençaeseucorponãotem
defeitos.Masseupassadoextraterrestreserásempreignoradopelos
homensdaTerraque,emconsequência,nãocompreenderãonadasobre
suapsicologia;jamaispoderãopreveroefeito,queterãosobreelas,oque
elesdirãooufarão:nuncaadivinharãoassensaçõesdissimuladasatrásde
seurosto.Comseresdesconhecidosaesseponto,pensouRubens,será
impossívelfazeramor.
Depoisvoltouatrás:nossasexualidadeébastanteautomatizada,sem
dúvida,paranospermitircopularmesmocommulheresextraterrestres,
masseriaumatodeamoralémdequalquerexcitação,umsimples
exercíciofísico,desprovidotantodesentimentoquantodelubricidade.
Ointervaloacabava,asegundapartedoseminárioiacomeçardaía
poucoeRubenstinhavontadededizeralgumacoisa,qualquer
despropósitoparaforçá-laaperderoequilíbrio,masaomesmotempo
sabiaquenãosedecidiria.Sentia-secomoumestrangeiroobrigadoa
discutircomumapessoanumalínguaqueconhecessepouco;nãopoderia
nemdizerumdesaforo,poisoadversáriolheperguntariainocentemente:
"Oquequisdizer?Nãocompreendinada!"PortantoRubensnãodisse
nenhumdespropósitoecommudaserenidadefezamornovamente.
Quandosaíramparaarua(semsaberseelaestavasatisfeita
oudecepcionada,maselapareciamaisparasatisfeita),eletomaraa
decisãodenãorevê-lamais;semdúvidaelaficariamagoada,e
interpretariaessasúbitaperdadeafeto(afinaldecontas,eladeveriater
notadoatéquepontoeleseentusiasmaraporelanavéspera!)comouma
derrotaaindamaisduraporserinexplicável.
Sabiaqueporsuacausaostênisdaaustralianadaliemdiante
viajariampelomundocomumpassomaismelancólicoainda.Despediu-se,
enomomentoemqueeladobrouaesquinadarua,elesentiuabater-se
sobreeleapossante,dilacerantenostalgiadetodasasmulheresquetivera
emsuavida.Erabrutaleinesperadocomoumadoença,que,semavisar,
estouranumsósegundo.
Poucoapouco,compreendeu.Nomostrador,oponteiroatingiaum
novonúmero.Ouviusoarahoraeviuumapequenajanelaabrir-seno
granderelógiomedievaldeonde,movidoporummecanismomiraculoso,
saíaumamarionete:eraumamocinhacalçandotênisenormes.Sua
apariçãosignificavaqueodesejodeRubensacabavadefazermeia-volta;
jamaisdesejarianovasmulheres;sódesejariaasmulheresquejápossuíra;
seudesejodaliemdianteseriaassombradopelopassado.
Olhandoasbelasmulheresnarua,espantou-sedenãoprestaratenção
nelas.Algumaschegavammesmoavirar-sequandoelepassou,masacho
quenãoasnotou.Outrora,sódesejavamulheresnovas.Desejava-astão
impacientementequecomalgumassófezamorumavez.Comoparaexpiar
essaobsessãopelanovidade,essanegligênciaparacomtudoqueera
estáveleconstante,essaimpaciênciainsensataqueohaviaprecipitado
paradiante,queriavoltar,encontrarnovamenteasmulheresdopassado,
repetirseusabraços,iratéofim,explorartudooquenãoforaexplorado.
Compreendeuqueasgrandesexcitaçõesencontravam-seagorano
passadoeque,sedesejassenovasexcitações,teriadeprocurá-lasno
passado.
Noprincípio,eleerapudicoesempredavaumjeitodefazeramorno
escuro.Noentantoficavasemprecomosolhosbemabertos,afimde
perceberaomenosalgumacoisaassimqueumraiodeluzfiltrasseatravés
daspersianas.
Emseguida,nãosomentehabituou-seàluz,masaexigia.Sepercebesse
quesuaparceiraestavacomosolhosfechados,obrigava-aaabri-los.
Depois,umdia,constatoucomsurpresaquefaziaamoremplenaluz,
masqueseusolhosestavamfechados.Fazendoamor,mergulhavaemsuas
lembranças.
Noescuro,osolhosabertos.
Emplenaluz,osolhosabertos.
Emplenaluz,osolhosfechados.
Omostradordavida.
Elesentoudiantedeumafolhadepapeletentouescrevernumacoluna
onomedesuasamantes.Logosofreuaprimeiraderrota.Muitoraras
foramaquelasdasquaisconseguiulembraronomeeosobrenome,eem
algunscasosnãopodialembrarnemumnemoutro.Asmulheres
tornaram-se(discretamente,imperceptivelmente)mulheressemnome.Se
tivessemantidouma
correspondênciacomessasmulherestalveztivesseretidoseusnomes
namemória,porqueteriasidoobrigadoaescrevê-los,muitasvezes,no
envelope;mas"alémdoamor",nãosetemohábitodeenviarcartasde
amor.Setivessetidoohábitodechamá-laspeloprimeironome,talvez
pudesselembrar-se,masdepoisdodesastredasuanoitedenúpcias
obrigou-seaempregarsomentenomesafetuososebanais,quequalquer
mulheremqualquermomentopodeaceitarsemdesconfiança.
Escreveunumameiapágina(aexperiêncianãoexigiaumalista
completa),muitasvezessubstituindoosnomesporsinaisqueas
diferenciavam("sardas"ou"professora",eassimpordiante),depois
tentoureconstituirocurriculumvitaedecadauma.Aderrotafoipior
ainda!Nãosabianadasobreavidadelas!Parasimplificaratarefa,limitouseaumaúnicapergunta:quemeramseuspais?Comquaseumaexceção
(conheceraopaiantesdafilha),nãotinhaamenorideia,enoentanto
essasmulheresdevemnecessariamenteterocupadoumlugar
fundamental!Certamenteteriamcontadoaelemuitosobreseuspais!Que
valoreleatribuíaàvidadesuasamigas,quandosequerconseguiaos
dadosmaiselementaressobreelas?
Acabouporadmitir(nãosemalgumconstrangimento)queasmulheres
haviamrepresentadoparaeleapenasumaexperiênciaerótica.Agora
tentavaaomenosrelembraressaexperiência.Parouporacasonuma
mulher(semnome)quenasuafolhahaviadesignadocomo"adoutora".O
queaconteceraaprimeiravezquefizeramamor?Reviunaimaginaçãoseu
apartamentodaépoca.Malentraram,elasedirigiuparaotelefone;depois,
diantedeRubens,desculpou-secomalguémporestarocupadaaquela
noitecomumcompromisso
inevitável.Riram-sedessadesculpaefizeramamor.Curiosamente,
aindaouviaessarisada,masnãoviamaisnadadocoito:ondetinhasido?
Sobreotapete?Nacama?Nosofá?Comoelaeraduranteoamor?Quantas
vezesencontraram-sedepois?Trêsoutrintavezes?Comodeixaramdese
ver?Lembrar-se-iaaomenosdeumapequenapartedasconversas,que
deviamterocupadoumasvintehoras,senãoumacentena?Lembrou-se
muitoconfusamentequeela,àsvezes,falavanumnoivo(quantoaoteor
dessasinformaçõeselecertamenteesquecera).Coisaestranha:onoivofoi
aúnicalembrançaqueguardou.Oatodoamorfoientãoparaelemuito
menosimportantedoqueaideiaenvaidecedoraefútildecornearum
homem.
PensouemCasanovacominveja.Nãoemsuasproezaseróticas,das
quais,afinaldecontas,muitoshomenssãocapazes,masemsua
incomparávelmemória.
Quasecentoetrintamulheresarrancadasdoesquecimento,comseus
nomes,seusrostos,seusgestos,suasconversas!Casanova:autopiada
memória.Emcomparação,quepobrebalanceteodeRubens!Quando,no
começodaidadeadulta,renunciaraàpintura,consolou-secomaideiade
queoconhecimentodavidaimportava-lhemaisdoquealutapelopoder.A
vidadetodosseusamigos,engajadosnaprocuradosucesso,parecia-lhe
marcadatantopelaagressividadequantopelamonotoniaepelovazio.
Acreditaraqueasaventuraseróticasoconduziriamaocentroda
verdadeiravida,davidarealeplena,ricaemisteriosa,sedutorae
concreta,queeledesejavaabraçar.Derepenteviuseuerro:apesarde
todasasaventurasamorosas,conheciaossereshumanostão
precariamentequantoaosquinzeanos.Sempreseorgulharadetervivido
intensamente;masessaexpressão"viverintensamente"eraumapura
abstração;procurandooconteúdoconcretodessa"intensidade",não
descobriusenãoumdesertoondevagavaovento.
Oponteirodorelógiomostrou-lhequedaíemdianteseriaassombrado
pelopassado.Mascomoserassombradopelopassado,senãosevêali
senãoumdesertoondeoventoperseguealgunsfarraposdelembranças?
Issoquerdizerqueeleseráassombradoporfarraposdelembranças?Sim.
Podemosserassombradosmesmoporfarrapos.Aliás,nãovamos
exagerar;semdúvidanãoselembravadenadadeinteressantesobrea
jovemdoutora,masoutrasmulheressurgiamdiantedeseusolhoscom
insistenteintensidade.
Sedigoquesurgem,comoimaginaressesurgimento?Rubens
descobriuumacoisabastantecuriosa:amemórianãofilma,fotografa.O
queguardaradetodasessasmulheres,namaioriadoscasos,foram
algumasfotografiasmentais.
Nãoviasuasamigasemmovimentocontínuo;mesmomuitocurtos,os
gestosnãoapareciamemsuaduração,masfixosnumafraçãodesegundo.
Suamemóriaeróticaoferecia-lheumpequenoálbumdefotografias
pornográficas,masnenhumfilmepornográfico.Equandodigoálbum,
exagero,poisnototalRubensnãoguardaramaisdoqueseteouoitofotos;
essasfotoserambelas,fascinavam-no,masaquantidadedelasera
melancolicamentepequena:seteouoitofraçõesdesegundos,eisaoquese
reduziunasuamemóriasuavidaeróticaàqualoutroradecidiraconsagrar
todasassuasforçasetalento.
ImaginoRubensnasuamesa,acabeçaapoiadanamão,lembrandoo
pensadordeRodin.Noquepensa?Resignadocomaideiadequesuavida
reduziu-seàexperiênciaerótica,eestaaimagensfixas,asetefotografias,
queriaaomenosconfiarqueumcantodesuamemóriaretivesseainda
algumapartedeumaoitavafoto,umanona,umadécima.Porissoestá
sentado,acabeçaapoiadanamão.Evocanovamenteasmulheres,uma
depoisdaoutra,tentandoachar,paracadauma,umafotoesquecida.
Nodecorrerdesseexercício,fezoutraconstataçãointeressante:teve
amantesparticularmenteaudaciosasemsuasiniciativaseróticasemuito
atraentesfisicamente;noentanto,nãodeixaramemsuaalmamaisdoque
muitopoucasfotosexcitantes,ounenhumafoto.Mergulhandoagoraem
suaslembranças,émaisatraídopelasmulheresquetiveraminiciativa
eróticamaisveladaedeaparênciadiscreta:asmesmasquenaépocaele
haviatalvezsubestimado.Comoseamemóriaeoesquecimentotivessem,
depois,passadoporumasurpreendentetransformaçãodetodososseus
valores,depreciandonasuavidaeróticatudoqueforavoluntário,
intencional,ostentatório,planejado,enquantoqueasaventuras
imprevistasaparentementemodestastornavam-seinestimáveisemsua
lembrança.
Pensanasmulheresquesuamemóriaassimvalorizou:umadelasjá
deveterultrapassadoaidadedosdesejos;omododeviverdealgumas
outrastornariaosreencontrosdifíceis.Masexisteaviolinista.Nãoavêhá
oitoanos.Trêsfotografiasmentaisaparecemdiantedeseusolhos.Na
primeiraelaestádepé,aumpassodele,amãoparadanomeiodeum
gestoquepareciaquerercobrir-lheorosto.Asegundafotofixavao
momentoquandoRubens,amãopousadasobreseuseio,pergunta-lhe:
alguémjáatocouassim,eelaresponde"não"ameiavoz,olhandoem
frente.Enfim(essaéafotomaisfascinante),eleavêdepéentredois
homensdiantedeumespelho,cobrindocomasduasmãososseiosnus.
Curiosamente,nastrêsfotosseurosto,beloeimóvel,temomesmo
olhar:fixodiantedela,desviando-sedeRubens.
Procurouseunúmerodetelefone,queoutroraconheciadecor.Faloulhecomosetivessemsevistonavéspera.EleveioaParis(dessavezsem
nenhumaoutrarazão,veiosóparavê-la)ereviu-anomesmohotel,onde,
muitosanosantes,elaficaradepéentredoishomens,cobrindocomas
duasmãososseiosnus.
Aviolinistaaindatinhaamesmasilhueta,amesmagraçade
movimentos,eseustraçoshaviamguardadotodasuanobreza.Noentanto
algomudara:vistademuitoperto,suapeleperderatodaafrescura.
Rubensnãopodiadeixardeperceberisso,mas,curiosamente,os
momentosemquereparavaerammuitobreves,apenasalgunssegundos;
logodepois,aviolinistaretomavarapidamentesuaprópriaimagem,tal
comoestavadesenhadahámuitotemponalembrançadeRubens;elase
escondiaatrásdesuaimagem.
Aimagem:Rubenssempresoubeoqueera.Escondidoatrásdascostas
deumcolega,haviafeitoacaricaturadeumprofessor.Depoislevantouos
olhos:animadodeumamímicaperpétua,orostodoprofessornãose
pareciaaodesenho.Noentanto,desdequeoprofessorsaiudeseucampo
visual,Rubensnãoconseguiuimaginá-lo(oqueaconteciaaindaagora)a
nãosercomoaspectodacaricatura.Oprofessordesapareceraparasempre
atrásdesuaimagem.
Naocasiãodeumaexposiçãoorganizadaporumfotógrafocélebre,viu
afotografiadeumhomemque,numacalçada,levantava-secomorosto
cobertodesangue.Fotoinesquecíveleenigmática.Quemeraessehomem?
Quelheacontecera?Talvezumacidentebanal,pensouRubens:umpasso
emfalso,umaqueda;eapresençadespercebidadofotógrafo.Sem
desconfiardenada,ohomemlevantou-seelavouorostonumbistrôem
frente,antesdeencontrarsuamulher.Nomesmoinstante,naeuforiade
seupróprionascimento,suaimagemseparou-sedeleetomouadireção
oposta,paraviversuasprópriasaventuras,cumprirseudestino.
Podemosnosesconderatrásdenossaimagem,podemosdesaparecer
parasempreatrásdenossaimagem,podemosnosseparardenossa
imagem:nuncasomosnossaprópriaimagem.Foigraçasatrêsfotos
mentaisqueRubens,oitoanosdepoisdetê-lavistopelaúltimavez,
telefonouparaaviolinista.Masqueméaviolinistaseparadadesua
imagem?Sabiamuitopoucosobreelaenãoqueriasabermais.Imaginoo
encontrodosdoisoitoanosdepois:eleestásentadoemfrenteaela,no
salãodeentradadeumgrandehotelparisiense.Sobreoqueconversam?
Sobretudomenosavidaquelevam.Poisumconhecimentomútuomuito
íntimoostornariaestranhosumaooutro,levantandoentreosdoisum
murodeinformaçõesinúteis.Nãosabemmaisdoqueomínimonecessário
sobreooutro,quaseorgulhososdeteremescondidosuasvidasna
penumbratornandodestaformaseusencontrosaindamaisiluminados,
extirpadosdotempo,cortadosdetodocontexto.
Envolveuaviolinistacomumolharterno,felizemconstatarqueela
certamenteenvelheceraumpouco,masestavaaindapróximadesua
imagem.
Comumaespéciedecinismocomovido,disseasipróprio:ovalorda
presençafísicadaviolinistaésuaaptidãodesempreseconfundircomsua
imagem.
Ecomimpaciênciaeleesperaomomentoemqueelaemprestaráaessa
imagemseucorpovivo.
Comooutrora,encontraram-seuma,duas,trêsvezesporano.Eosanos
passaram.Umdiatelefonou-lheparaavisarqueiriaaParisdentrodeduas
semanas.Elarespondeuquenãoteriatempodevê-lo.
—Possoadiarminhaviagemumasemana,disseRubens.
—Tambémnãotereitempo.
—Então,digaquando.
—Nãoagora,elarespondeuvisivelmenteconstrangida,nãopoderei
pormuitotempo...
—Aconteceualgumacoisa?
—Não,nada.
Osdoisestavampoucoàvontade.Diríamosqueaviolinistadecidiranão
overmais,masnãotinhacoragemdedizê-lo.Aomesmotempo,essa
hipóteseeratãoimprovável(nenhumasombrajamaistoldaraseuslindos
encontros)queRubensfez-lheoutrasperguntas,paracompreendera
razãodesuarecusa.Comoorelacionamentodelesdesdeocomeço
baseara-senumatotalausênciadeagressividade,excluindomesmo
qualquerinsistência,eleevitavaimportuná-la,mesmoquefossecom
simplesperguntas.
Assim,terminouaconversa,contentando-seemacrescentar:
—Possotelefonarnovamente?
—Claro!Porquenão?Elarespondeu.Telefonou-lheummêsmais
tarde.
—Vocêaindaestásemtempoparamever?
—Nãofiqueaborrecido.Vocênãotemnadaavercomisso.Fez-lhea
mesmaperguntadeantes:
—Aconteceualgumacoisa?
—Não,nada.
Rubenscalou-se.Nãosabiaoquedizer.
—Azaromeu,enfimdisse,sorrindomelancolicamenteaotelefone.
—Vocênãotemnadacomisso,possolheassegurar.Nãoécomvocê.
Écomigo,nãocomvocê!
Rubensachouquepodiaperceberalgumaesperançanessas
últimaspalavras.
—Masentão,issonãotemsentidonenhum!Temosquenosver!
—Não,eladisse.
—Seeutivessecertezaquevocênãoquermever,nãodiriamaisnada.
Masvocêdizquesetratadevocê!Oqueaconteceu?Temosquenos
ver!Precisofalarcomvocê!
Malpronunciouessaspalavras,pensou:não,eraportatoqueelase
recusavaadaraverdadeirarazão,quasesimplesdemais:nãoqueriamais
nadacomele.Erasuadelicadezaqueoconstrangia.Porissonãodevia
insistir.Tornar-se-iaimportunoeteriainfringidooacordotácitoque
tinhamqueosproibiadeexpressardesejosquenãofossempartilhados.
Quandoelarepetiu:
—Não,porfavor,elenãoinsistiumais.
Desligando,lembrou-sederepentedaestudanteaustralianadostênis
enormes.Elatambémforaabandonada,porrazõesquenãopôde
compreender.
Seaoportunidadetivessesurgidoeleateriaconsoladodamesma
maneira:
—Vocênãotemnadaavercomisso.Nãoécomvocê.Ecomigo.
Compreendeuqueseucasocomaviolinistaestavaterminadoeque
nuncasaberiaporquê.Ficarianaignorância,comoaaustralianadaboca
bonita.OssapatosdeRubensdeagoraemdianteiriamviajarpelomundo
comumpoucomaisdemelancoliadoqueantes.Comoosgrandestênisda
australiana.
Períododemutismoatlético,períododasmetáforas,períododa
verdadeobscena,períododotelefoneárabe,períodomístico,tudoisso
estavalongenopassado.Osponteirostinhamdadoavoltadomostrador
dasuavidasexual.
Encontrava-seforadotempodoseumostrador.Encontrar-seforado
mostrador,issonãosignificanemofimnemamorte.Jásooumeia-noiteno
mostradordapinturaeuropeia,ospintorescontinuamapintar.Quandose
estáforadomostrador,issoquerdizersimplesmentequenãoaparecerá
maisnadadenovonemdeimportante.Rubensaindasaíacommulheres,
maselashaviamperdidotodaaimportânciaparaele.Aqueviamais
frequentementeeraajovemG,quesedistinguiapelospalavrõesque
gostavadeintercalarnaconversa.Muitasmulheresfaziamomesmo
naquelaépoca.Estavanoar.Diziammerda,estoucagando,caralho,para
daraentenderquelongedepertenceremàvelhageração,conservadorae
bem-educada,eramlivres,emancipadas,modernas.NãoimpedequeG,
assimqueRubensatocou,tenhareviradoosolhosparaotetoecaídonum
santomutismo.Seuscontatoseramsemprelongos,quaseintermináveis,
porqueGsóconseguiachegaraoorgasmodesejadocomavidez,depoisde
esforçosmuitolongos.Deitadadecostas,comatestasuandoeocorpo
molhado,elatrabalhava.EramaisoumenosassimqueRubensimaginava
aagonia:queimandoemfebredesejamosardentementeterminar,maso
fimseprolonga,prolonga-seobstinadamente.Asduasoutrêsprimeiras
vezes,tentouapressarofimsussurrandoumaobscenidadenoouvidode
G,mascomoelalogodesviasseacabeçaemsinaldedesaprovação,daíem
dianteficouemsilêncio.Ela,aocontrário(numtomdescontentee
impaciente),diziasemprenofimdevinteoutrintaminutos:
—Maisforte,maisforte,mais,mais!
Enesseinstanteelesedavacontadequenãopodiamais:tinhalhe
feitoamorpormuitotempoenumritmomuitorápidoparapoder
redobraraintensidade;virandoentãoparaolado,recorriaaum
expedientequelhepareciaaomesmotempoaaceitaçãodeumfracassoe
umvirtuosismotécnicodignodeumacondecoração:enfiava
profundamenteamãonasuabarriga,efetuavacomosdedospoderosos
movimentosdebaixoparacima;escorriaumjorro,eraumainundação,ela
obeijava,cobrindo-odepalavrasdoces.
Seusrelógiosíntimoseramdeploravelmenteassimétricos:quandoele
estavainclinadoàternura,elasoltavaseuspalavrões;quandoelequeria
palavrões,elamantinhaumsilêncioobstinado;quandoelenecessitava
silêncioesono,elatornava-seternaetagarela.
Erabonitaetãomaisjovemdoqueele!Rubenssupunha
(modestamente)quenãoeraporcausadesuahabilidademanualqueela
vinhatodasasvezesqueeleachamava.Tinhaporelaumsentimentode
gratidão,porqueduranteoslongosmomentosdetranspiraçãoedesilêncio
queelapermitiaqueelepassassesobreseucorpo,elepodiasonharà
vontade,comosolhosfechados.
UmdiaRubensteveentreasmãosumavelhacoleçãodefotos
dopresidenteJohnKennedy:apenasfotoscoloridas,pelomenosumas
cinquenta,eemtodas(emtodas,semexceção!)opresidenteestavarindo.
Elenãosorria,não,eleria!Suabocaestavaabertaeosdentesdefora.Não
havianadaestranhonisso,asfotografiashojesãoassim,masRubensficou
mesmosurpresoaoconstatarqueKennedyriaemtodasasfotos,quesua
bocanuncaestavafechada.
AlgunsdiasdepoisfoiaFlorença.DepédiantedoDaviddeMiguel
Ângelo,imaginouaquelerostodemármoretãosorridentequantoode
Kennedy.David,esseexemplodebelezamasculina,derepenteficoucom
umarimbecil!Desdeentão,pegouohábitodeplantarmentalmenteuma
bocarisonhanosrostosdosquadroscélebres;foiumaexperiência
interessante:acaretadorisoeracapazdedestruirtodososquadros!
Imagine,emvezdosorrisoimperceptíveldaGioconda,umrisoquelhe
desnudasseosdenteseasgengivas!
Apesardefamiliarizadocomaspinacotecas,àsquaisconsagravao
essencialdeseutempo,RubenstevequeesperarpelasfotosdeKennedy
parasedarcontadessasimplesevidência:desdeaAntiguidadeatéRafael,
talvezatéIngres,osgrandespintoreseescultoresevitaramrepresentaro
riso,emesmoosorriso.Éverdadequeosrostosdasestátuasetruscassão
todosrisonhos,masessesorrisonãoéumamímica,umareaçãoimediataa
umasituação,éumestadoduráveldorostobrilhandodeeternabeatitude.
Paraosescultoresantigoscomoparaospintoresdeépocasfuturas,orosto
belonãoeraimaginávelanãosernasuaimobilidade.
Osrostosnãoperdiamsuaimobilidade,asbocasnãoseabriamanão
serqueopintorquisesseapreenderosofrimento.Osofrimentodador:as
mulheresinclinadassobreocadáverdeJesus;abocaabertadeumamãe
noMassacredosinocentesdePoussin.Ousofrimentocomovício:AdãoeEva
deHolbein.Evaestácomorostoinchado,eabocaentreabertadeixaveros
dentesqueacabamdemorderamaçã.AoladodelaAdãoaindaéum
homemdeantesdopecado:temorostocalmo,abocafechada.NaAlegoria
dosvíciosdeCorreggio,todomundosorri!Paraexpressarovício,opintor
tevequesacudiratranquilidadeinocentedosrostos,esticarasbocas,
deformarostraçoscomosorriso.Nessequadroapenasumpersonagemri:
umacriança!Masseurisonãoédefelicidade,comoaqueexibemosbebês
nasfotospublicitáriasparaumamarcadechocolateoudefraldas.Essa
criançariporqueédepravada!
Orisosósetornainocentecomosholandeses:oBufãodeHalsouseu
quadroAboêmia.Poisospintoresholandesessãoosprimeirosfotógrafos;
osrostosquepintamsãoalémdobeloedofeio.Demorando-senasalados
holandeses,Rubenspensavanaviolinistaepensava:aviolinistanãoéum
modeloparaFranzHals;aviolinistaéomodelodosgrandespintoresde
antigamente,queprocuravamabelezanasuperfícieimóveldorosto.
Depoisalgunsvisitantessecomprimiam:todasaspinacotecasdomundo
estavamcheiascommultidõesdepessoas,comoantigamenteosjardins
zoológicos;osturistas,nafaltadeatrações,olhavamosquadroscomose
fossemferasnumajaula.Apintura,pensouRubens,nãoestámaisemsua
casanesteséculo,comonãoestáaviolinista;aviolinistapertenceaum
mundohámuitotempoesquecidoemqueabelezanãoria.
Mascomoexplicarqueosgrandespintorestenhamexcluídoorisodo
reinodabeleza?Rubenspensou:orostoébeloquandorefleteapresença
deumpensamentoenquantoomomentodorisoéummomentoemque
nãosepensamais.Mas,issoseriaverdade?Nãoseriaorisoesseraiode
reflexãoqueapreendeocômico?Não,pensouRubens:noinstanteemque
apreendeocômico,ohomemnãori;orisosegueimediatamentedepois,
comoumareaçãofísica,comoumaconvulsãoemqueospensamentos
ficamausentes.Orisoéumaconvulsãodorostoenaconvulsãoohomem
nãosedomina,estandoelemesmodominadoporalgumacoisaquenãoé
nemavontadenemarazão.Eraporissoqueoescultorantigonão
representavaoriso.Ohomemquenãosedomina(ohomemalémdarazão,
alémdavontade)nãopodiaserconsideradobelo.
Seanossaépoca,contrariandooespíritodosgrandespintores,fezdo
risoaexpressãofavoritadorosto,issoquerdizerqueaausênciade
vontadeederazãotornou-seoestadoidealdohomem.Podemosobjetar
quenosretratosfotográficosaconvulsãoésimulada,portantoconscientee
voluntária:Kennedyrindodiantedaobjetivadeumfotógrafonãoestá
reagindoabsolutamenteaumasituaçãocômica,masabremuito
conscientementeabocaemostraosdentes.
Issoapenasprovaqueaconvulsãodoriso(alémdarazãoeda
vontade)foieleitapeloshomensdehojecomoimagemidealatrásdaqual
escolheramparaseesconder.
Rubenspensa:oriso,detodasasexpressõesdorosto,éamais
democrática:aimobilidadedorostotornaclaramentediscernívelcada
umdostraçosquenosdistinguemdosoutros;masnaconvulsão,somos
todosparecidos.
UmbustodeJúlioCésarsecontorcendoderiréimpensável.Masos
presidentesamericanospartemparaaeternidadeescondidosatrásda
convulsãodemocráticadoriso.
VoltouaRoma.Nomuseu,demoroumuitotemponasaladepintura
gótica.Umdosquadrosofascinava:umaCrucificação.Oqueelevia?No
lugardoCristo,viaumamulherquepreparavamparacolocarnacruz.
ComooCristo,nãotinhaoutraroupasenãoumtecidobrancoemvoltados
rins.Seuspésapoiavam-senumsuportedemadeira,enquantoos
carrascos,comcordasgrossas,amarravamseustornozelosnosbarrotes
demadeira.Erguidanoaltodeummonte,acruzeravisíveldetodaparte.
Emvolta,umamultidãodesoldados,depessoasdopovoedecuriosos,
olhavaamulherexibida.Eraaviolinista.
Sentindotodososolharespregadosnoseucorpo,haviacobertoseus
seioscomaspalmasdasmãos.Asuadireitaeàsuaesquerdaerguiam-se
duasoutrascruzes,cadaumacomumladrão.Oprimeiroinclinava-separa
ela,seguravaumadesuasmãose,afastando-alentamentedeseupeito,
abria-lheobraçoatéaextremidadedatravetransversal.Osegundo
apanharaaoutramãoefaziaomesmomovimentoaofimdoquala
violinistaestavacomosdoisbraçosafastados.
Durantetodaaoperação,seurostopermaneciaimóvel.Olhava
fixamentealgumacoisaaolonge.Rubenssabiaquenãoeraohorizonte,
masumgigantescoespelhoimaginárioinstaladoemfrentedela,entreo
céueaterra.Vianelesuaimagem,aimagemdeumamulheremcruzcom
osbraçosafastadoseosseiosnus.Expostaàimensamultidão,vociferante,
bestial,elaestavatãoexcitadaquantotodasaquelaspessoasese
observavacomoelesprópriosaobservavam.
Rubensnãopodiaafastarosolhosdeumtalespetáculo.
Quandofinalmenteconseguiu,pensouqueessemomentodeveriaentrar
nahistóriareligiosacomonomedeAvisãodeRubensemRoma.Atéde
noiteficousobainfluênciadesseinstantemístico.Jáháquatroanosnão
telefonaraparaaviolinista,masdessaveznãoresistiu.Assimquechegou
aohotel,pegouotelefone.Dooutroladodalinhaouviuumavozfeminina
quenãoconhecia.
Perguntounumtomumpoucohesitante:
—PossofalarcomMadame...?Edeuonomedomarido.
—Sim,soueu,disseavoz.
Pronunciouentãooprimeironomedaviolinista;avoz
femininarespondeu-lhequeamulherqueeleprocuravaestavamorta.
—Morta?
—Sim,Agnèsmorreu.Quemqueriafalarcomela?
—Umamigo.
—Possosaberquem?
—Não,edesligou.
Nocinema,quandoalguémmorre,logoouvimosumamúsicatriste,mas
emnossasvidas,quandomorrealguémqueconhecemos,nãoouvimos
nenhumamúsica.Muitorarassãoasmortesquepodemrealmentenos
perturbarprofundamente:duasoutrêsnodecorrerdeumavida,não
mais.Amortedeumamulherqueeraapenasumepisódiosurpreendeu
Rubenseoentristeceu,masnãooperturbou,aindamaisqueessamulher
saíradesuavidaquatroanosantesequenaépocaeleseconformaracom
isso.
Seessamortenãotornavaaviolinistamaisausentedoqueera,no
entantoalteravatudo.Todasasvezesquepensavanela,Rubensnãopodia
deixardeseperguntaroqueteriaacontecidocomseucorpo.Teriasido
postonumcaixãoeenterrado?Teriasidocremado?Lembrava-sedeseu
rostoimóvelcomosgrandesolhosqueseolhavamnumespelho
imaginário.Viaaspálpebrassefechandolentamente:derepenteeraum
rostomorto.Peloprópriofatodesserostosertãotranquilo,apassagemda
vidaparaanão-vidaeraimperceptível,harmoniosa,bela.MasRubens
depoisimaginouoqueteriaacontecidocomesserosto.Efoihorrível.
Gveiovê-lo.Comosempreentregaram-seasuascaríciassilenciosas,
comosempreduranteessesmomentosintermináveisaviolinistasurgiuem
seuespírito:comosempre,ficavaemfrentedoespelho,osseiosnus,e
contemplava-secomumolharimóvel.DerepenteRubensachouqueela
estavamortatalvezhádoisoutrêsanos;queoscabelosjáestavam
descoladosdocrânioequeasórbitasjáestavamcavadas.Queriaselivrar
dessaimagem,senãonãopoderiacontinuarfazendoamor.Expulsoua
lembrançadaviolinista,decididoaconcentrar-seemG,emseufôlegoque
seacelerava,masseuspensamentosrecusavam-seaobedecerecomoque
depropósitopunhamdiantedeseusolhosaquiloquenãoqueriaver.E
quandoeles,enfim,resolveramobedecer-lheeparardemostrar-lhea
violinistanoseucaixão,elesamostraramnomeiodaschamas,numa
posturaprecisaqueeleconheciaporouvirdizer:ocorpoqueimadose
empertigava(soboefeitodeumamisteriosaforçafísica)detalformaque
aviolinistaseencontravasentadanoforno.Bemnomeiodessavisãode
umcadáverqueimandosentado,umavozdescontenteemisteriosaecoava
derepente:
—Maisforte,maisforte,mais,mais!
Rubenstevequeinterrompersuascarícias.PediuaGquedesculpasse
suamáforma.
Entãopensou:detudoquevivi,sómeficouumafotografia.Talvezela
reveleoquehádemaisíntimo,demaisprofundamenteescondidona
minhavidaerótica,aquiloquecontémsuaprópriaessência.Talvezsó
tenhafeitoamor,nestesúltimostempos,parapermitirqueessafoto
reviva.Enomomentoessafotoestáemchamas,eobelorostotranquilose
crispa,seretorce,escureceecaiemcinzas.
GdeviavoltarnasemanaseguinteeRubensinquietava-se
antecipadamentecomasimagensqueoobcecavamduranteoamor.
Esperandoexpulsaraviolinistadeseuespírito,sentouantesuamesa,a
cabeçaentreasmãos,ecomeçouaprocurarnasuamemóriaoutrasfotos
quepudessemsubstituiradaviolinista.Conseguiualgumas,eficouaté
agradavelmentesurpresoporachá-lasbelaseexcitantes.Massabia,bem
noseuíntimo,quesuamemóriairiaserecusaramostrá-lasquandofizesse
amorcomGequeemseulugar,comonumabrincadeiramacabra,
empurrariasub-repticiamenteaimagemdaviolinistasentadanomeiode
umbraseiro.Tinhaenxergadocerto.Aindadestavez,duranteoamor,teve
quepedirdesculpasaG.
Elesedisse,então,quenãopoderialhefazermalinterromperpor
algumtemposuasrelaçõescomasmulheres.Aténovaordem,comosediz.
Massemanaapóssemana,essapausaprolongou-se.Finalmenteumdiase
deucontadequenãohaveriamais"novaordem".
SétimaParte
Acelebração
Nasaladeginástica,hámuitotempograndesespelhosrefletiambraços
epernasemmovimento;depoisdeseismeses,sobainfluênciade
imagólogos,osespelhostambéminvadiramtrêsparedesdapiscina,a
quartaostentandoumaimensavidraçadeondesepodiaverostetosde
Paris.Estávamosderoupadebanho,sentadosnumamesapertodapiscina
ondenadadoresarquejavam.Nomeiodamesaumagarrafadevinho,que
eupediraparacelebrarumaniversário.
Avenariusnemtinhatidotempodemeperguntardequeaniversário
setratava,jáqueestavaabsorvidoporumanovaideia:
—Imaginequevocêtenhaqueescolherentreduaspossibilidades.
Passarumanoitedeamorcomumabelamulherconhecidamundialmente,
umaBrigitteBardotouumaGretaGarbo,comaúnicacondiçãodeque
ninguémjamaissaibadisso;ouentãopassearcomelanaavenidaprincipal
desuacidadenatal,obraçosobreseusombros,comaúnicacondiçãode
jamaisdormircomela.Gostariadesaberaporcentagemexatadonúmero
depessoasqueoptariamporumaououtrapossibilidade.Issoexigeum
métodoestatístico.Procureialgumasempresasdesondagens,masnãome
deramnenhumaresposta.
—Nãoseiatéquepontodeve-selevarasériooquevocêfaz.
—Tudooquefaçodeveserlevadocompletamenteasério.
—Imaginovocê,porexemplo,empenhadoemexporaosecologistas
seuplanodedestruiçãodosautomóveis.Vocênãopodeacreditarqueo
aceitariam!
Fizumapausa.Avenariusficouquieto.
—Vocêachaqueiriamaplaudi-lo?
—Não,disseAvenarius,nuncapenseiisso.
—Então,porqueexpôsseuprojetoaeles?Paradesmascará-los?Para
provarqueapesardeseusgestosdecontestaçãoelesfazempartedaquilo
quevocêchamadeSatânia?
—Nadademaisinútil,disseAvenarius,doquetentarprovarqualquer
coisaaosimbecis.
—Restasóumaexplicação:vocêquisfazerumabrincadeiracomeles.
Masnessecasotambémseucomportamentomeparecesemlógica:
afinaldecontas,vocênãoimaginouquealguémiriacompreendê-loe
começariaarir!
Avenariusfeznãocomacabeçaedissecomumacertatristeza:
—Nãoimagineiisso.Satâniasecaracterizaporumaabsolutafaltade
humor.Láocômico,emboraexista,tornou-seinvisível.Fazerbrincadeiras
nãotemmaissentido.
Acrescentou:
—Estemundolevatudoasério.Amiminclusive,oqueéocúmulo.
—Aocontrário,tenhoaimpressãodequeninguémlevanadaasério!
Todomundoquersedivertir,maisnada!
—Éamesmacoisa.Quandooburrototalforobrigadoaanunciarno
rádioocomeçodeumaguerraatômicaouum'terremotoemParis,faráo
possívelparaserengraçado.Talvezestejaprocurandodesdeagora
trocadilhosparaessasocasiões.Masissonãotemnadaavercomosentido
docômico.Poisoqueécômico,nessecaso,éohomemqueprocura
trocadilhosparaanunciarumterremoto.Ora,ohomemqueprocura
trocadilhosparaanunciarumterremotolevasuaspesquisasasérioenão
temamenordúvidadequeéengraçado.Ohumorsópodeexistirondeas
pessoasaindavislumbramafronteiraentreoqueéimportanteeoque
nãoé.Hoje,essafronteiraéindiscernível.
Conheçobemmeuamigoefrequentemente,sóparamedivertir,imito
suamaneiradefalar,façominhasassuasideiaseobservações;noentanto,
nãooentendo.Seucomportamentomeagradaefascina,masnãoposso
dizerqueocompreendainteiramente.Umdia,tenteiexplicar-lhequea
essênciadeumhomemnãoécompreensívelanãoserporumametáfora.
Pelobrilhoreveladordeumametáfora.Desdequeoconheciprocuroa
metáforaqueodescreva,mepermitindoassimcompreendê-lo.
—Senãofoiparafazerumabrincadeira,porqueentãoexpôsseu
plano?
Porquê?
Antesquepudessemeresponder,umaexclamaçãodesurpresanos
interrompeu:
—ProfessorAvenarius!Masépossível?
Vindodaporta,umbonitohomemcomroupadebanho,podendoter
entrecinquentaesessentaanos,dirigiu-separanossamesa.
Avenariuslevantou-se.Aparentementeemocionados,tantoumcomoo
outro,apertaram-seasmãoslongamente.
DepoisAvenariusapresentou-o.Compreendiquenaminhafrente
estavaPaul.
Elesentou-seànossamesa;Avenariusindicou-mecomumgesto
amplo:
—Vocênãoconheceseusromances?!Avidaestáemoutrolugar.É
precisolê-lo!Minhamulherdissequeéexcelente!
SubitamenteiluminadocompreendiqueAvenariusnuncalerameu
romance:quandoháumcertotempoforçou-mealevar-lheumexemplar,
eraporquesuamulhersofriadeinsôniaeprecisavaconsumirnacama
livrosaosquilos.Fiqueitriste.
—Vimrefrescarminhasideiasnaágua,Pauldisse.—Percebeuentão
ovinhoeesqueceuaágua.
—Oquevocêsestãotomando?
Apanhouagarrafaeleuaetiquetacomatenção.Depoisacrescentou:
—Estoubebendodesdedemanhã.
Issonotava-se,efiqueisurpreso.NuncapenseiquePaulfosseum
bêbado.Pediaogarçomquetrouxesseumterceirocopo.
Começamosafalardeumacoisaeoutra.Comdiversasalusõesameus
romances,queelejamaislera,AvenariusprovocouPaulafazeruma
observaçãocujafaltadecortesiaàminhapessoamedeixouumtanto
sentido.
—Eunãoleioromances.Asmemóriasparecem-memaisdivertidas,
maisinstrutivas.Easbiografias!UltimamentelilivrossobreSalinger,sobre
Rodin,sobreosamoresdeFranzKafka.Eumaestupendabiografiasobre
Hemingway!
Ah!Esseaí,queimpostor.Quementiroso.Quemegalômano,dissePaul
rindocomvontade.Queimpotente.Quesádico.Quemachão.Que
erotômano.Quemisógino.
—Sevocê,comoadvogado,estádispostoadefenderassassinos,eu
disse,porquenãodefendeosautoresque,àparteseuslivros,nãotêm
culpadenada?
—Porquemeirritam,dissePaulalegremente,ebotouvinhonocopo
queogarçomacabaradecolocardiantedele.
—MinhamulheradoraMahler,prosseguiu.Elamecontouquequinze
diasantesqueeletocassepelaprimeiravezsuaSétimasinfonia,trancousenumbarulhentoquartodehotel,edurantetodaanoitetrabalhou
novamenteaorquestração.
—Sim,eudisse,eraooutonode1908,emPraga.Ohotelchamava-se
L'ÉtoileBleu.
—Euoimaginomuitasvezesnessequartodehotelentreaspartituras,
prosseguiuPaulsemsedeixarinterromper,eestouconvencidodequesua
obraseriaumfracassose,nosegundomovimento,amelodiafossetocada
peloclarineteenãopelooboé.
—Éexatamenteisso,eudisse,pensandonomeuromance.Paul
continuou:
—Eugostariaqueessasinfoniafossetocadadiantedeumpúblicode
grandesconhecedores;primeirocomascorreçõesdosúltimosquinzedias,
depoissemelas.Apostoqueninguémpoderiadistinguirumaversãoda
outra.
Compreenda:écertamenteadmirávelqueomotivoexecutadono
segundomovimentoporumviolinosejarepetidonoúltimomovimentopor
umaflauta.
Cadacoisaestáemseulugar,tudoétrabalhado,pensado,
experimentado,nadafoideixadoaoacaso;masessagigantescaperfeição
nosultrapassa,ultrapassaacapacidadedenossamemória,nossa
capacidadedeconcentração,tantoquemesmooouvintemais
fanaticamenteatentonãoperceberádessasinfoniasenãoacentésima
partedoqueelacontém,emais,acentésimapartemenosimportanteaos
olhosdeMahler!
Essaideia,evidentementejusta,deixava-oalegreenquantoeuficava
cadavezmaistriste:seoleitorpularumasófrasedemeuromance,não
compreenderánada;noentanto,qualéoleitorquenãopulalinhas?Eu
mesmonãosouomaiorpuladordelinhasedepáginas?
Paulprosseguiu:
—Nãocontestoaperfeiçãodetodasessassinfonias.Contestosomente
aimportânciadessaperfeição.Essassinfoniasarqui-sublimesnãosão
senãocatedraisdoinútil.Sãoinacessíveisaohomem.Sãodesumanas.
Sempreexageramossuaimportância.Elasnosderamumasensaçãode
inferioridade.AEuropareduziuaEuropaacinquentaobrasgeniais,que
elanuncacompreendeu.
Vocêdevesedarcontadessarevoltantedesigualdade:milhõesde
europeusquenãorepresentamnada,diantedecinquentanomesque
representamtudo!Adesigualdadedasclasseséumacidentemenor,
comparadoaessadesigualdademetafísicaquetransformaunsemgrãos
deareia,enquantoaosoutrosconcedeosentidodoser.
Agarrafaestavavazia.Chameiogarçomparapediroutra.Oresultado
foiquePaulperdeuofiodoassunto.
—Vocêfalavadosbiógrafos,—cochichei-lhe.
—Ah!sim,lembrou-se.
—Enfim,vocêestavaradiantedepoderleracorrespondênciaíntima
dosmortos.
—Eusei,eusei,dissePaul,comosequisesseanteciparasob-jeçõesda
partecontrária:
—Creia-me:domeupontodevista,remexeracorrespondênciaíntima,
interrogarex-amantes,convencermédicosatraíremosigilomédico,é
nojento.Osbiógrafossãoaescória,eeujamaispoderiamesentaràmesa
comeles,comofaçocomvocês.Robespierretambémnãoteriasesentadoà
mesacomaescóriaquepilhavaetinhaorgasmoscoletivosdeleitando-se
comasexecuções.Massabiaquenadasefazsemaescória.Aescóriaéo
instrumentodojustoódiorevolucionário!
—OqueháderevolucionárioemodiarHemingway?—perguntei.
—NãoestoufalandodoódioporHemingway!Falodesuaobra.Falo
dasobrasdeles!Épreciso,enfim,dizeremvozaltaquelersobre
HemingwayémilvezesmaisdivertidoeedificantedoquelerHemingway.
ÉprecisoprovarqueaobradeHemingwaynãoénadamaisdoqueavida
deHemingwaycamuflada,equeessavidaétãoinsignificantequantoade
qualquerumdenós.ÉprecisocortarempedacinhosasinfoniadeMahler
eusá-lacomomúsicadefundoparaumanúnciodepapelhigiênico.É
precisoacabardeumavezportodascomoterrordosimortais.Abatero
poderarrogantedetodasasNonassinfoniasedetodososFaustos!
Inebriadocomseuprópriodiscurso,levantou-se,ocoponamão:
—Querobebercomvocêsofimdeumaépoca.
Nosespelhosqueserefletiammutuamente,Paulestavamultiplicado
vinteesetevezesenossosvizinhosdemesaolhavamcomcuriosidadesua
mãoerguendoocopo.Doishomensquesaíamdaáguadeumtanquecom
ondaspertodapiscinatambémseimobilizaramsemconseguirtiraros
olhosdasvinteesetemãosdePaulsuspensasnoar.Primeiroacheique
eleestavaassimpetrificadoparadarmaissolenidadeaoquedizia,mas
depoispercebiumamulherdemaioqueacabavadeentrarnasala:uma
mulherdeunsquarentaanos,rostobonito,pernasumpoucocurtasmas
perfeitamentedesenhadas,traseiroexpressivo,apesardeumpouco
grande,apontandoparaochãocomoumagrandeseta.Foiporcausadessa
setaqueareconheci.
Elanãonosviulogoedirigiu-separaapiscina.Masnósafixamostão
intensamentequenossoolharacaboucaptandoodela.Elaenrubesceu.É
bonitoquandoumamulherenrubesce;nessemomentoseucorponãolhe
pertence;elanãoodomina;estáàmercêdele;nadaémaisbelodoqueo
espetáculodeumamulhervioladaporseuprópriocorpo!Começavaa
compreenderporqueAvenariustinhaumfracoporLaura.Repareinele:
seurostocontinuavaperfeitamenteimpassível.Essecontroledesime
pareciatraí-loaindamaisdoqueoruborhaviatraídoLaura.
Elacontrolou-seeaproximou-sedenossamesa.Levantamo-nosePaul
nosapresentouàsuamulher.ContinueiaobservarAvenarius.Elesaberia
queLauraeramulherdePaul?Parecia-mequenão.Talcomooconhecia,
deveriaterdormidocomLauraumasóvezedesdeentãonãoadeveriater
vistomais.
Masnãoestavaabsolutamentecertodisso,eafinaldecontas,não
estavacertodenada.Quandoelalheestendeuamão,inclinou-secomosea
encontrassepelaprimeiravez.Laurafoiembora(depressademais,
pensei)emergulhounapiscina.
DerepentePaulperderatodaanimação.
—Estoucontentequevocêsatenhamconhecido,—disse
melancolicamente.—Comosediz,éamulherdaminhavida.Deveriame
felicitar.Avidaétãocurtaqueamaioriadaspessoasnãoencontranuncaa
mulherdesuasvidas.
Ogarçomtrouxeumaoutragarrafa,abriunanossafrente,despejou
vinhoemnossoscopos,demodoquePaulperdeudenovoofio.
—Vocêestavafalandodamulherdasuavida,eusoprei-lhequandoo
garçomseafastou.
—É,disseele.Temosumbebêdetrêsmeses.Tenhoumaoutrafilhado
primeirocasamento.Saiudecasaháumano.Semdizerumapalavrade
adeus.Sofricomisso.Ficoumuitotemposemdarnotícias.Hádoisdias
voltou,porqueonamoradoadeixou.Depoisdeterlhefeitoumfilho...Uma
menina.Carosamigos,tenhoumaneta!Sãoquatromulheresemvoltade
mim!
Aimagemdessasquatromulherespareciaenchê-lodealegria:
—Éporissoqueestoubebendodesdedemanhã.Beboaosnossos
reencontros!Beboàsaúdedeminhafilhaedeminhaneta!
Doladooposto,napiscina,Lauranadavaemcompanhiadeduas
mulheres,ePaulsorria.Eraumestranhosorrisocansado,queme
inspiravacompaixão.Parecia-mederepentevelho.Suacabeleiracinzenta,
forte,derepentesetransformanopenteadodeumavelhasenhora.Como
sequisessesuperarumacessodefraqueza,levantou-sedenovo,como
coponamão.
Enquantoisso,napiscina,osbraçosbatiamnaáguacomgranderuído.
Comacabeçaparaforadaágua,Lauranadavacrawldesajeitadamente,
mascomzelo,atécomraiva.
CadaumdessesgolpespareciacairnacabeçadePaulcomoumano
suplementar:envelheciaaolhosvistos.Estavacomsetentaanos,logocom
oitenta,enoentantoempertigava-seerguendoseucopocomoparase
protegerdessaavalanchedeanosquecaíanasuacabeça:
—Lembro-medeumafrasecélebrequemerepetiamnaminha
mocidade,eledissecomumavozderepentecansada.Amulheréofuturo
dohomem.Aliás,quemdisseisso?Nãomelembromais.Lenine?Kennedy?
Não,umpoeta.
—Aragon,—eusoprei.
Avenariusdissesemrodeios:—Oquequerdizeramulheréofuturo
dohomem?Queoshomensvãosetornarmulheres?Nãocompreendoessa
fraseestúpida!
—Nãoéumafraseestúpida!Éumafrasepoética!—dissePaul.
—Aliteraturavaidesaparecer,easestúpidasfrasespoéticasvão
continuarerrandopelomundo?—Eudisse.
Paulnãoprestouamenoratenção.Acabavadeenxergarseurosto
repetidovinteesetevezesnosespelhos:nãoconseguiatirarosolhosdisso.
Virando-sesucessivamenteparatodososrostosrefletidos,dissecom
umavozfracaeesganiçadademulhervelha:
—Amulheréofuturodohomem.Issoquerdizerqueomundo,
outroracriadoàimagemdohomem,irámodelar-sesobreaimagemda
mulher.Quantomaistornar-semecânicoemetálico,técnicoefrio,mais
teránecessidadedocalorqueapenasamulherpodedar.Sequisermos
salvaromundo,devemosnosmodelarsobreamulher,deixar-nosguiar
pelamulher,deixarmo-nosinfiltrarpeloEwigweibliche,peloeterno
feminino!
Comoqueexaustoporessaspalavrasproféticas,Paultinhaganho
aindaalgunsdecêniosamais,nomomentoeraumvelhinhofracodecento
evinte,centoesessentaanos.Nãopodendonemmaissegurarseucopo,
jogou-senumacadeira.Depoisdisse,sinceroetriste:
—Elavoltousemmeavisar.EladetestaLaura.ELauradetestaminha
filha.Amaternidadetornou-asaindamaiscombativas.Estárecomeçando,a
barulheiradeMahlernumasala,abarulheiradorocknaoutra.Está
recomeçando,elasmeobrigamaescolher,medirigemultimatos.
Começaramumabriga.Equandoasmulheresbrigam,nãoparammais.
Depoisinclinou-separanós,confidencialmente:—Carosamigos,não
melevemasério.Oquevoudizeragoranãoéverdade.—Baixouavoz
comosenoscomunicasseumgrandesegredo:—Foiumasorteenorme
queasguerrastenhamsidofeitaspeloshomens.Seasmulherestivessem
feitoaguerra,teriamsidotãopersistentesnasuacrueldadequenão
sobrarianenhumserhumanosobreoplaneta.
Ecomosequisessenosfazeresquecerlogooquedissera,bateucomo
punhonamesaelevantouavoz:—Carosamigos,gostariaqueamúsica
nuncativesseexistido!GostariaqueopaideMahler,depoisdeter
surpreendidoofilhosemasturbando,tivesselhedadoumtapatãofortena
orelhaqueopequenoGustavetivesseficadosurdoeincapazparasempre
dedistinguirumviolinodeumtambor.Egostariaporfimquesedesviasse
acorrenteelétricadetodasasguitarraselétricasequeasinstalassemem
cadeirasnasquaisseriampresospessoalmenteosguitarristas.
Depoisacrescentoucomumavozquemalseouvia:—Meusamigos,
gostariadeestaraindadezvezesmaisbêbadodoqueestou!
Eleestavacaídonacadeiraeesseespetáculoeratãotristequenosera
impossívelsuportá-lo.Levantamo-nosparadar-lheunstapasnascostas.
Enquantofazíamosisso,vimosquesuamulherhaviasaídodaáguae
quenoscontornavaparachegaratéaporta.Fingianãonosver.
EstariaaborrecidacomPaul,apontoatéderecusar-lheumolhar?Ou
elaestariaconstrangidadeterencontradoinesperadamenteAvenarius?
Dequalquermaneirasuaposturatinhaalgumacoisadetãoforteetão
atraentequeparamosdebaternascostasdePaul,etodostrêsolhamos
emdireçãodeLaura.
Quandoestavaadoispassosdaporta,produziu-seumacoisa
inesperada:elaviroubruscamenteacabeçaparanossamesaelançouo
braçoparaoar,comummovimentotãoleve,tãoencantador,tãorápido,
quepareceu-nosverumbalãodouradovoardeseusdedoseficar
suspensoacimadaporta.
LogoapareceuumsorrisonorostodePaul,queseguroufortementeo
braçodeAvenarius:
—Vocêviu?Viuessegesto?
—Vi,—disseAvenarius,oolharfixonobalãodouradoquebrilhavano
tetocomoumalembrançadeLaura.
ParamimerabemclaroqueogestodeLauranãoeradestinadoao
maridobêbado.Nãoeraogestomaquinaldo"atélogo"cotidiano,eraum
gestoexcepcionalericodesignificado.SópoderiaserdirigidoaAvenarius.
NoentantoPaulnãosuspeitavadenada.Comopormilagre,osanos
caíramdoseucorpoeeletornou-seumbelohomemdecinquentaanos,
orgulhosodesuacabeleiragrisalha.Olhouemdireçãodaporta,acimada
qualbrilhavaobalãodourado,edisse:
—Ah,Laura!Ébemdela!Ah,essegesto!Elearesumeporinteiro!
Depoisnosfezumrelatoemocionado:
—Aprimeiravezquemesaudouassimeualevavaparaa
maternidade.Parateracriança,tevequesesubmeteraduasoperações.
Tínhamosmedoquandopensávamosnoparto.Paramepoupardetanta
emoção,proibiu-medeficarcomelanaclínica.Fiqueipertodocarro,ela
dirigiu-sesozinhaparaaporta,echegandonaentrada,exatamentecomo
acaboudefazer,virouacabeçaemefezessegesto.Devoltaacasa,
sentimehorrivelmentetriste,elamefaziafalta,tantoqueparavoltara
sentirsuapresençatenteiimitar,paramimmesmo,obelogestoqueme
encantara.Sealguémmevissenessemomentoteriarido.Fiqueidecostas
pertodeumgrandeespelho,lanceiosbraçosparaoar,olhandoporcima
domeuombroparamesorrir.Fizissotrinta,cinquentavezestalvez,e
pensavanela.Eraaomesmotempoelaquemesaudavaeeuqueaolhava
mesaudando.Masquecoisaestranha,essegestonãocombinavacomigo.
Ficavacomessegestoirremediavelmentedesajeitadoecômico.
Levantou-seenosdeuascostas.Depoislançouosbraçosparaoar,
lançando-nosumolharporcimadoombro.Sim,tinharazão:estavacômico.
Caímosnagargalhada.Oqueoencorajouarepetirogestomuitas
vezes.Estavacadavezmaiscômico.
Depoisdisse:—Sabem,essegestonãoconvémaumhomem,éum
gestodemulher.Comessegestoamulhernosdiz:vem,siga-me,evocê
nãosabeparaondeelaconvidaeelatambémnãosabe,masconvidaassim
mesmo,convencidadequevaleapenasegui-la.Éporissoquedigo:ou
bemamulherseráofuturodohomem,oubemacabaráahumanidade,
poissóumamulherpodeguardaremsiumaesperançaquenadajustifica,
enosconvidarparaumfuturoduvidosonoqualsemasmulhereshámuito
tempojáteríamosdeixadodeacreditar.Todaminhavidaestiveprontoa
seguiravozdelas,mesmoquesejaumavozlouca,quandosoutudomenos
louco.Masparaquemnãoélouco,nadaémaisbelodoquedeixar-selevar
paraodesconhecidoporumavozlouca!Repetiuentãocomsolenidadeas
palavrasalemãs:DasEwigweiblicheziehtunshinan!Oeternofemininonos
conduzparaoalto!
Comoumorgulhosogansobranco,oversodeGoethebatiaasasas
sobreaabóbadadapiscina,enquanto,refletidopelostrêsimensos
espelhos,Pauldirigiu-separaaportaacimadaqualbrilhavasempreo
balãodourado.
Finalmente,viPaulsinceramentefeliz.Deualgunspassos,viroua
cabeçaemnossadireçãoelançouumbraçoparaoar.Estavarindo.Mais
umavez,virou-se:maisumavez,saudou-nos.Edepoisdaúltimae
desajeitadaimitaçãodessebelogestofeminino,desapareceuatrásda
porta.
Eudisse:—Eleexplicoubemessegesto,masachoqueseenganou.
Lauranãoconvidouninguémparaseguircomelaparaofuturo,quis
apenasfazervocêselembrarqueelaestavaaquiequeesperaporvocê.
Avenariuscalou-seeseurostoeraimpenetrável.Eudisseemtomde
censura:
—Vocênãotempenadele?
—Sim,—respondeuAvenarius.Gostosinceramentedele.Éinteligente.
Eengraçado.Ecomplicado.Etriste.Esobretudo,nãoesqueça:ajudou-me!
—Depoisinclinou-separamim,comosenãoquisessedeixarsemresposta
minhacensurasubentendida.—Conteiavocêmeuprojetodepesquisa:
perguntaràspessoassepreferemdormirsecretamentecomRita
Hayworthoumostrar-seempúblicocomela.Oresultado,claro,jásesabe:
todomundo,atéoúltimodospobrescoitados,fingiráquererdormircom
ela.Poisaseusprópriosolhos,aosolhosdesuasmulheres,deseusfilhos,e
mesmoaosolhosdofuncionáriocarecadaempresadepesquisas,querem
passarporhedonistas.Maséumailusãodeles.Cabotinismodeles.Hojeem
dia,nãoexistemmaishedonistas.Pronunciouestasúltimaspalavrascom
umacertagravidade,depoisacrescentousorrindo:—Excetoeu.E
continuou:—Pormaisquedigam,setivessemrealmenteescolha,estou
certodequetodasessaspessoas,todas,emvezdanoitedeamor,
prefeririamumpasseionapraça.Poiséaadmiraçãoquecontaparaeles,e
nãoavolúpia.Aaparência,enãoarealidade.Arealidadenãorepresenta
maisnadaparaninguém.Paraninguém.Parameuadvogado,elanão
representaabsolutamentenada.
Depois,dissecomumaespéciedeternura:—Éporissoqueprometo
solenementequenadadedesagradávellheacontecerá;elenãosofrerá
nenhumprejuízo:oschifresqueteráserãoinvisíveis.Comotempobom
serãoazuis,eserãocinzentosnosdiasdechuva.
Eaindaacrescentou:—Nenhummarido,aliás,desconfiariaqueum
homemqueviolaasmulherescomumafacanamãosejaamantedesua
mulher.Essasduasimagensnãocombinam.
—Uminstante,—eudisse.—Eleacreditarealmentequevocêviolou
mulheres?
—Estoudizendoquesim.
—Pensavaquefosseumabrincadeira.
—Vocêachaporacasoqueeureveleimeusegredo?—Eacrescentou:
—Mesmoqueeutivesseditoaverdade,elenãoteriameacreditado,ese
acabasseacreditando,imediatamentedeixariameucaso.Écomoum
violentadorqueeuointeresso.Sentepormimesseamormisteriosoqueos
grandesadvogadosdedicamaosgrandescriminosos.
—Masqueexplicaçãovocêdeuaele?
—Nenhuma.Fuiabsolvidoporfaltadeprovas.
—Como,faltadeprovas?Eafaca?
—Nãonegoquefoidifícil,—disseAvenarius,ecompreendiquenão
mediriamaisnada.
Deixeipassarumlongosilêncio,depoisdisse:—Pornadanomundo
vocêcontariaahistóriadospneus?
Elefezquenãocomacabeça.
Umaestranhaemoçãotomoucontademim:—Vocêestavaprontoa
serpresocomoviolentadorunicamenteparanãotrairojogo.
Derepente,compreendiAvenarius:senosrecusamosadar
importânciaaummundoqueseconsideraimportante,esenão
encontramosnessemundonenhumecoparanossoriso,sónosrestauma
solução:tomaromundocomoumbloco,etransformá-lonumobjetopara
nossojogo;transformá-lonumbrinquedo.
Avenariusjoga,eojogoéaúnicacoisaquelheimportanummundo
semimportância.Masessejogonãofaráninguémrir,eelesabedisso.
Quandoexpôsseusprojetosaosecologistas,nãofoiparadiverti-los.Foi
parasuaprópriadiversão.
Eulhedisse:
—Vocêbrincacomomundocomoumacriançamelancólicaquenão
temumirmãozinho.
Éessa!ÉessaametáforaqueprocurohámuitotempoparaAvenarius!
Atéqueenfim!
Avenariussorriucomoumacriançamelancólica.Depois,disse:
—Nãotenhoumirmãozinhomastenhovocê.Levantou-se,tambémme
levantei;pareciaquedepoisdasúltimaspalavrasdeAvenariussónos
restavaumabraço.Nósnosdemoscontadequeestávamosdecalção,e
ficamoscommedodeumcontatoíntimodasnossasbarrigas.Comumriso
constrangidofomosparaosvestiáriosondeumavozdemulher,estridente
eacompanhadaporumaguitarra,gritavatãoaltonosalto-falantes,que
nossavontadedeconversarterminou.Entramosnoelevador.Avenarius
dirigiu-separaosegundosubsolo,ondeestacionarasuaMercedes,eeu
descinotérreo.Emcincoenormescartazespregadosnohall,cincorostos
diferentesmeolhavamarreganhandoigualmenteoslábios.Tivemedoque
memordessemesaíparaarua.
Aruaestavalotadadecarrosquebuzinavamsemparar.Asmotos
subiamnascalçadaseforçavampassagementreospedestres.Penseiem
Agnès.Hádoisanos,dia,apósdiaeuaimaginarapelaprimeiravez;
esperavaentãoAvenariusnumaespreguiçadeiradoclube.Foiporissoque
hojepediumagarrafa.Meuromanceestavaterminado,equeria
comemorá-loali,ondenascerasuaprimeiraideia.
Oscarrosbuzinavam,ouviam-segritosderaiva.Nessemesmo
ambiente,outrora,Agnèsdesejaracomprarumramodemiosótis,uma
únicaflordemiosótis;desejarasegurá-ladiantedeseusolhoscomoo
últimotraço,quaseinvisível,dabeleza.
FIM
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