Início de uma tetralogia – A Imortalidade (1990), A Lentidão (1995), A Identidade (1998), A Ignorância (2000) -, o sexto romance de Milan Kundera emerge do gesto casual de uma mulher a seu instrutor de natação, gesto que cria uma personagem no espírito do escritor chamado Kundera. Tal como a Emma de Flaubert ou a Anna de Tolstoi, a Agnès de Kundera torna-se objeto de indefinida nostalgia. A partir dela nasce um romance que explora os grandes temas da existência e a busca da imortalidade. Não a da alma, mas a imortalidade de quem, pela vida ou pela arte, aspire a deixar de si um sinal imperecível. PrimeiraParte Orosto Asenhorapoderiatersessenta,sessentaecincoanos.Euaolhavade minhaespreguiçadeira,recostadodiantedapiscinadeumclubede ginásticanoúltimoandardeumprédiomodernodeondeseviaParis inteiraatravésdeimensasjanelasenvidraçadas.Esperavaoprofessor Avenariuscomquemmeencontroalidevezemquandoparadiscutir umascoisaseoutras.MasoprofessorAvenariusnãochegava,eeuolhava asenhora;só,napiscina,imersaatéacintura,elaolhavaojovemprofessor denataçãoque,deroupão,empéumpoucoacimadeondeelaestava, dava-lheumaaula.Obedecendoasuasordens,elaapoiou-senabordada piscinaparainspirareexpirarprofundamente.Fezissoseriamente,com zelo,eeracomosedasprofundezasdaságuasseelevasseavozdeuma velhalocomotivaavapor(essavozidílica,hojeesquecida,sóposso transmitiraosquenãoaconheceram,comparandoàrespiraçãodeuma senhoradeidadequeinspiraeexpiranabordadeumapiscina).Olhava-a fascinado.Seuarcômicopungentemecativava(essearcômico,o professordenataçãotambémpercebia,poisoscantosdeseuslábios pareciamtremeratodahora),masalguémfaloucomigoedesviouminha atenção.Poucodepois,quandoquisvoltaraobservá-la,aaulahavia terminado.Elafoiembora,demaio,andandoaolongodapiscinaequando játinhaultrapassadooprofessordenataçãoaproximadamenteunsquatro oucincometros,virouacabeçaparaele,sorriu,efezumgestocomamão. Meucoraçãoapertou-se.Essesorriso,essegesto,eramdeumamulherde vinteanos!Suamãotinhagiradonoarcomumalevezaencantadora.Como se,brincando,elajogasseparaseuamanteumbalãocolorido.Essesorriso eessegestoeramcheiosdeencanto,enquantoqueorostoeocorponãoo erammais. Eraoencantodeumgestosufocadononão-encantodocorpo.Masa mulher,mesmoquesoubessequenãoeramaisbonita,esqueceuisso naquelemomento. Porumacertapartedenósmesmos,vivemostodosalémdotempo. Talvezsótomemosconsciênciadenossaidadeemcertosmomentos excepcionais,sendo,namaiorpartedotempo,unssem-idade.Emtodo caso,nomomentoemquesevirou,sorriuefezumgestocomamãoparao professordenatação(quenãofoicapazdeseconterecaiuna gargalhada),elanãotomavaconhecimentodesuaidade.Graçasaeste gesto,noespaçodeumsegundo,umaessênciadeseuencanto,quenão dependiadotempo,revelava-seemeencantava.Fiqueiestranhamente comovido.EonomeAgnèssurgiuemmeuespírito.Agnès. Nuncaconheciumamulhercomessenome. Estounacama,mergulhadonadoçuradeumtorpor.Àsseishoras, depoisdoprimeiroelevedespertar,estendoamãoparaopequenorádio colocadopertodomeutravesseiro,eapertoobotão.Ouçoasnotíciasda manhã,maldistinguindoaspalavras,edurmodenovo,durmotantoqueas frasesqueescutotransformam-seemsonhos.Éafasemaisbeladosono,o maisdeliciosomomentododia:graçasaorádio,saboreiomeuseternos despertaresecochilos,esseembalosoberboentreavigíliaeosono,esse movimentoqueporsisómetiraodesgostodeternascido.Seráquesonho ouestourealmentenaópera,diantededoisatoresvestidosdecavalheiros quefalamcomentonaçõesacentuadasevariadasaprevisãodotempo? Porqueseráquenãofazemissocomoamor? Depoiscompreendoquesetratadelocutores,nãofalammais,masse interrompemumaooutrobrincando. —Odiaseráquente,tórrido,haverátempestade,dizoprimeiro,queo outrointerrompe,fazendograça: —Nãoépossível!Oprimeirorespondenomesmotom: —Massim,Bernardo.Sintomuito,masnãoháescolha.Umpoucode coragem!Bernardocainagargalhadaedeclara: —Eisocastigodenossospecados.Eoprimeiro: —Porque,Bernardo,tenhodesofrerpelosseuspecados?Então Bernardoriaindamais,paradeixarclaroparaosouvintesdequepecado setrata,eeuocompreendo:existeapenasumacoisaquetodosdesejamos: queomundointeironosconsideregrandespecadores!Quenossosvícios sejamcomparadosaostemporais,àstempestades,aosfuracões!Aoabrir hojeoguarda-chuvaemcimadacabeça,quecadafrancêspensecom invejanorisoequívocodeBernardo.Giroobotãoesperandodormir novamenteemcompanhiadeimagensmaisinteressantes.Naestaçãoao lado,umavozdemulheranunciaqueodiaseráquente,tórrido, tempestuoso,ealegro-medeverquenaFrançatemostantasestaçõesde rádio,equetodas,nomesmomomento,falamamesmacoisa.Ofeliz casamentodauniformidadecomaliberdade,oqueéqueahumanidade poderiadesejardemelhor?PortantovoltoàestaçãoondeBernardose gabavadeseuspecados;masemseulugar,umavozdehomementoaum hinoaoúltimomodelodafábricaRenault,giroaindaobotão,umcorode mulheresenalteceasliquidaçõesdecasacosdepele,voltoparaBernardo, atempodeouvirosúltimoscompassosdohinoàRenault,depoisopróprio Bernardoretomaapalavra. Imitandoamelodiaquehaviaterminado,nosinformacomumavoz cantantequeacabavadeaparecerumabiografiadeHemingway,a centésimavigésimasétima,masessarealmentemuitoimportante,porque demonstraque,emtodasuavida,Hemingwaynãodisseumasópalavra verdadeira.Aumentouonúmerodeseusferimentosdeguerra,fingiuser umgrandesedutorquandoficouprovadoqueemagostode1944edepois apartirdejulhode1959,eleestavacompletamenteimpotente. —Nãoépossível,disseavozrisonhadooutro,eBernardoresponde brincando: —Maséverdade...,evoltamostodosparaopalcodaópera,até Hemingway,oimpotente,vaiconosco,depoisumavozmuitograveevoca umprocessoquenodecorrerdasúltimassemanasemocionoutodaa França:duranteumaoperaçãosemimportância,umaanestesiamalfeita provocouamortedeumdoente.Emconsequênciadisso,aorganização encarregadadedefenderos "consumidores",assimelanoschamaatodos,propõefilmarnofuturo todasasintervençõescirúrgicaseguardarosfilmesemarquivos.Esse seriaoúnicomeio,segundoaorganização"paraadefesados consumidores",paragarantiraumfrancêsmortopelobisturi,queseria devidamentevingadopelajustiça.Depoisdurmonovamente. Quandoacordei,eramquaseoitoemeia;imagineiAgnès.Comoeu,ela estádeitadanumagrandecama.Ametadedireitadacamaestávazia. Queméomarido?Aparentementealguémquesaicedonosábado.Epor issoqueelaestásóeosciladeliciosamenteentreodespertareosonho. Depoislevanta-se.Emfrentedela,numsuportecomprido,estáuma televisão.Jogasuacamisola,quecobreatelacomoumcortinadobranco. Pelaprimeiravezavejonua,Agnès,aheroínademeuromance.Elaestáde pé,ébonita,nãopossotirarosolhosdela.Finalmente,comosetivesse sentidomeuolhar,somenoquartovizinhoeseveste. QueméAgnès? AssimcomoEvasaiudeumacosteladeAdão,assimcomoVênus nasceudaespuma,Agnèssurgiudeumgestodeumasenhora sexagenária,quevinabordadapiscina,dandoadeusaseuprofessorde natação,ecujostraçosjáseapagamnaminhamemória.Seugesto despertouemmimumaimensa,umaincompreensívelnostalgia,eessa nostalgiagerouopersonagemaquemdeionomedeAgnès. Masohomemnãosedefine,eumpersonagemderomancemenos ainda,comoumserúnicoeinimitável?Comoentãoépossívelqueogesto observadonumapessoaA,essegestoqueformavacomelaumtodo,quea caracterizava,quecriavaseuencantosingular,sejaaomesmotempoa essênciadeumapessoaBedetodaminhafantasiasobreela?Issoconvida aumareflexão:Senossoplanetaviupassaroitentabilhõesdeseres humanos,époucoprovávelquecadaumdelestenhaseupróprio repertóriodegestos. Matematicamente,éimpensável.Ninguémduvidaquenãohajano mundoincomparavelmentemenosgestosdoqueindivíduos.Issonosleva aumaconclusãochocante:umgestoémaisindividualdoqueum indivíduo.Paradizerissoemformadeprovérbio:muitaspessoas,poucos gestos. Faleinoprimeirocapítuloarespeitodasenhorademaio,que,"no espaçodeumsegundo,umaessênciadeseuencanto,quenãodependiado tempo,revelava-se,emeencantava".Éoqueeupensava,masestava enganado.Ogestonãorevelouabsolutamenteumaessênciadasenhora,ou melhor,deveríamosdizerqueasenhoramerevelouoencantodeum gesto.Poisnãopodemosconsiderarumgestonemcomoapropriedadede umindivíduo,nemcomosuacriação(ninguémtendocondiçõesdecriar umgestopróprio,inteiramenteoriginalepertencentesóasi),nemmesmo comoseuinstrumento;ocontrárioéverdadeiro:sãoosgestosquese servemdenós;somosseusinstrumentos,suasmarionetes,suas encarnações. Agnès,tendoterminadodesevestir,apressou-seemsair.Nasaídado quarto,parouuminstanteparaescutar.Umvagoruídonoquartovizinho indicavaquesuafilhaacabaradeacordar.Comoparaevitarumencontro, apertouopassoeapressou-seemdeixaroapartamento.Noelevador, apertouobotãodotérreo.Emvezdeandar,oelevadortremeu convulsivamente,comoumhomemcomadoençadeSãoGuido.Nãoeraa primeiravezqueoshumoresdamáquinaasurpreendiam.Orasubia quandoelaqueriadescer,orarecusava-seaabriraportaeamantinha prisioneiraumameiahora.Comosequisesseentabularumaconversa, comosequisessecomunicar-lhealgumacoisadeurgentecomseusmeios decepcionantesdeanimalmudo.Pordiversasvezesjásequeixaraà porteira;masesta,jáqueoelevadorcomportava-secorretamentecomos outroslocatários,nãovianaquestãoentreAgnèseelesenãoumproblema particular,enãolhedavaamenoratenção.Agnèstevequesairedescera pé.Assimqueelaodeixou,oelevadoracalmou-seeporsuavezdesceu. Sábadoeraodiamaiscansativo.Paul,seumarido,saíaantesdassete horas,ealmoçavacomumamigo,enquantoelaaproveitavaodialivrepara resolverumaquantidadedeobrigaçõesmaispenosasqueseutrabalhono escritório:iraocorreio,aguentarumameiahoradefila,fazerascompras nosupermercado,brigarcomavendedora,perdertempodiantedacaixa, telefonarparaobombeiro,suplicar-lheparapassarnumahora determinadaparaevitardeesperá-loodiainteiro.Entredois compromissos,esforçava-seemencontrarummomentoparaasauna, ondenuncatinhatempodeirduranteasemana,epassavaofimdatarde manejandooaspiradoreopanodepó,porqueafaxineira,quevinhana sexta-feira,negligenciavaseutrabalhocadavezmais. Masessesábadoeradiferentedosoutros:eraoquintoaniversárioda mortedeseupai.Umacenavoltava-lheaoespírito:seupaiestásentado, inclina-sesobreummontedefotografiasrasgadas,eairmãdeAgnèsgrita: —Porquevocêestárasgandoasfotosdemamãe?Agnèsdefendeseu pai,asduasirmãsbrigam,tomadasporumasúbitaraiva. Elaentrouemseucarroestacionadoemfrentedecasa. Umelevadorlevou-aaoúltimoandardeumedifíciomoderno,ondeo clubeseinstalaracomsaladeginástica,piscina,pequenolagocomondas, sauna,evistasobreParis.Novestiário,osalto-falantesespalhavammúsica derock.Dezanosantes,quandoAgnèsseinscrevera,ossócioseram poucoseoambientecalmo.Depois,deumanoparaooutro,oclube melhorou:haviacadavezmaisvidro,maisluzes,plantasartificiais,altofalantes,música,cadavezmaisfrequentadores,cujonúmeroaindadobrou nodiaemqueserefletiramnosimensosespelhosqueadireçãodecidiu instalaremtodasasparedesdasaladeginástica. Agnèsabriuseuarmárioecomeçouadespir-se.Duasmulheres conversavampertodela.Comumavozlentaedocedecontralto,umase queixavadeummaridoquedeixavatudoespalhadopelochão:seuslivros, suasmeias,atéseucachimboeseusfósforos.Aoutra,umasoprano,tinha umacadênciaduasvezesmaisrápida;amaneirafrancesadesubiruma oitavanofimdafraselembravaocacarejoindignadodeumagalinha: —Essaagora,vocêmedecepciona!Medápena!Nãoépossível!Ele nãopodefazerisso!Nãoépossível!Vocêestánasuacasa!Temseus direitos!Aoutra,comoquedivididaentreumaamigaemquemreconhecia autoridadeeummaridoaquemamava,explicavamelancolicamente: —Oquevocêquer.Eleéassim.Elesemprefoiassim.Sempredeixou ascoisasespalhadaspelochão. —Poisbem,queeleparecomisso!Vocêestáemsuacasa!Tem direitos! Eununcapoderiasuportarisso! Agnèsnãoparticipavanessegênerodeconversa;nuncafalavamalde Paul,mesmosabendoqueissoadistanciavaumpoucodasoutras mulheres.Elavirouacabeçaemdireçãoàvozaguda:eraumamoçamuito jovem,comcabelosclaroseumrostodeanjo. —Ah,não,demodoalgum!Vocêtemseudireito!Nãoabaixeacabeça!, continuouoanjo,eAgnèspercebeuquesuaspalavraseram acompanhadasporcurtoserápidosmovimentosdecabeçadadireitapara aesquerdaedaesquerdaparaadireita,enquantoosombroseas sobrancelhaslevantavamcomoqueparademonstrarumespanto indignadocomaideiaquesepudessedesconhecerosdireitoshumanosde suaamiga.Agnèsconheciaessegesto:suafilhaBrigitebalançavaacabeça exatamentedomesmomodo. Umavezdespida,fechouoarmárioàchaveeentroupelaportade vaivémnumasalaladrilhada,ondedeumladoestavamasduchas;do outro,aportaenvidraçadadasauna.Eraláqueestavamasmulheres, apertadasladoaladoembancosdemadeira.Algumasusavamumacapa deplásticoespecial,queformavaemtornodocorpo(oudeumapartedele, especialmentebarrigaenádegas)umaespéciedeembalagemhermética queprovocaumaintensatranspiraçãoeaesperançadeemagrecimento. Agnèssubiuparaomaisaltodosbancosaindadisponíveis.Apoiou-se naparedeefechouosolhos.Abarulheiradamúsicanãochegavaatéali, masasvozesmisturadasdasmulheres,quefalavamtodasaomesmo tempo,ressoavamtãofortequantoela.Umajovemdesconhecidaentrou,e desdeasoleiracomeçouacomandarasoutras:fezapertaraindamaisas fileirasparaabrirespaçojuntoaocalor,depoisinclinou-separaapanharo baldeeentornou-osobreofogareiro. Comumchiado,ovaporfervendofoiemdireçãoaoteto,eumamulher sentadaaoladodeAgnèsprotegeuorostocomasduasmãos,fazendouma caretadedor. Adesconhecidapercebeuissoedeclarou: —Gostoqueovaporferva,issoprovaqueestamosnumasauna! Plantou-seentredoiscorposnus,ecomeçouafalarsobreoprogramade televisãodavésperaondeseapresentaraumcélebrebiólogoqueacabara depublicarsuasmemórias. —Eleestavamaravilhoso,disseela.Umaoutraaprovou: —Émesmo!Etãomodesto!Adesconhecidacontinuou: —Modesto?Vocênãocompreendeuqueessehomeméincrivelmente orgulhoso,masoorgulhodelemeagrada!Adoroaspessoas orgulhosas!Evirou-separaAgnès. —Poracasovocêoachoumodesto? Agnèsdissequenãotinhaassistidoaoprograma:comoseessa respostaimplicassenumadiscordânciasecreta,adesconhecidarepetiu comfirmeza,olhandoAgnèsnosolhos: —Nãosuportoamodéstia!Osmodestossãounshipócritas! Agnèslevantouosombros,eajovemdesconhecidacontinuou. —Numasauna,éprecisoquehajacalor.Querotranspiraraos borbotões. Masdepois,éprecisoumaduchafria.Adoroasduchasfrias!Eunão entendoaspessoasque,depoisdasauna,tomamduchasquentes.Emcasa sótomoduchasfrias.Tenhohorroraduchasquentes. Nãodemorouasufocar,tantoque,depoisdeterrepetidooquanto detestavaamodéstia,levantou-seedesapareceu. Nasuainfância,duranteumdospasseiosquefaziacomseupai,Agnès lheperguntaraseeleacreditavaemDeus.Elerespondeu: —AcreditonocomputadordoCriador.Arespostaeratãoestranhaque acriançaaguardara.Computadornãoeraaúnicapalavraestranha, Criadortambémera.PoisopainãofalavanuncadeDeus,massempredo CriadorcomosequisesselimitaraimportânciadeDeusunicamenteàsua performancecomoengenheiro.OcomputadordoCriador:mascomoum homempoderiacomunicar-secomumaparelho?Elaentãoperguntouao paiseelecostumavarezar.Eledisse: —TantoquantocostumorezarparaEdisonquandoumalâmpada queima. EAgnèspensa:oCriadorcolocounocomputadorumdisquetecomum programadetalhado,edepoisfoiembora.Quedepoisdecriaromundo, Deusotenhadeixadoàmercêdehomensabandonados,e,aosedirigira Ele,caemnumvaziosemeco,estaideianãoénova.Massever abandonadopeloDeusdenossosantepassadoséumacoisa,eumaoutraé serabandonadopeloinventordivinodocomputadorcósmico.Emseulugar ficaumprogramaquesedesenrolaimplacavelmenteemsuaausência,sem quesepossamudaroquequerqueseja. Programarocomputador;issonãoquerdizerqueofuturoseja planejadoemdetalhes,nemque"láemcima"tudoestejaescrito.Por exemplo,oprogramanãoestipulavaqueem1815ocorresseabatalhade Waterloo,nemqueosfrancesesaperdessem,masapenasqueohomemé pornaturezaagressivo,queaguerralheéconsubstanciai,equeo progressotécnicoatornarácadavezmaisatroz.Dopontodevistado Criador,todoorestoésemimportância,simplesjogodevariaçõesede permutasnumprogramageralquenadatemavercomumaantecipação proféticadofuturo,masdeterminaapenasolimitedaspossibilidades; entreesseslimitesdeixatodoopoderaoacaso. Ohomeméumprojetodoqualpode-sedizeramesmacoisa.Nenhuma Agnès,nenhumPaulfoiplanejadonumcomputador,masapenasum protótipo:oserhumano,tiradoemmiríadesdeexemplaresquesão simplesderivadosdomodeloprimitivo,quenãotemnenhumaessência individual.Nãomaisessênciaindividualdoquetemumcarrosaídoda fábricaRenault.Aessênciadocarrotemdeserprocuradaalémdesse carro,nosarquivosdoconstrutor.Apenasumnúmerodesériedistingue umcarrodooutro.Numexemplarhumano,onúmeroéorosto,esse conjuntodetraçosacidentaleúnico.Nemocaráter,nemaalma,nem aquiloquechamamosoeusedistinguemnesseconjunto.Esserosto apenasnumeraumexemplar. Agnèslembra-sedadesconhecidaqueacabaradeproclamarasua raivadasduchasquentes.Elatinhavindorevelaratodasasmulheres presentes1)quegostavadetranspirar,2)adoravaosorgulhosos,3) desprezavaosmodestos,4)adoravaasduchasfrias,5)detestavaas duchasquentes.Emcincotraçoseladesenharaseuauto-retrato,emcinco pontosdefiniraseueueoofereceraatodoomundo.Eelanãoooferecera modestamente(afinaldecontasdeclararaseudesprezopelosmodestos), masàmaneiradeumamilitante.Empregaraverbosapaixonados,adoro, desprezo,detesto,comoqueparasemostrarprontaadefenderpassoa passooscincotraçosdeseuretrato,oscincopontosdesuadefinição. Porqueessapaixão,perguntou-seAgnès,epensou:umavez despachadosparaomundotalqualsomos,primeirotemosquenos identificarcomessejogodedados,comesseacidenteorganizadopelo computadordivino:deixardenosespantarmosprecisamentequeisso (essacoisaquenosconfrontanoespelho)sejanossoeu.Senão estivéssemosconvencidosdequenossorostoexpressanossoeu,senão tivéssemosailusãoprimeiraefundamental,nãoteríamospodidocontinuar aviver,oupelomenoslevaravidaasério.Enãoseriaaindasuficientenos identificarmoscomnósmesmos,precisaríamosdeumaidentificação apaixonadacomavidaecomamorte.Poiségraçasaessaúnicacondição quenãoaparecemosanossosprópriosolhoscomoumasimplesvariante doprotótipohumano,mascomoseresdotadosdeumaessênciaprópriae intransferível.Eisporqueajovemdesconhecidasentiunecessidadenão apenasdedesenharseuretrato,masaomesmotempoderevelaratodo mundoqueesseretratoencerravaalgumacoisadeinteiramenteúnicae insubstituívelpelaqualvaliaapenalutaremesmodaravida. Depoisdepassarquinzeminutosnocalordaestufa,Agnèslevantou-se efoimergulharnapiscinadeáguagelada.Emseguida,foiparaasalade repousoedeitou-seentreasoutrasmulheresque,ali,tambémnão paravamdefalar. Umaperguntapassava-lhepelacabeça:depoisdamorte,queexistência ocomputadorprogramara? Doiscasossãopossíveis.SeocomputadordoCriadortemcomoúnico campodeaçãoonossoplaneta,eseédele,eapenasdeleque dependemos,nãopodemosesperardepoisdamortesenãoumavariação daquiloqueconhecemosduranteavida;encontraremosapenaspaisagens semelhantes,ecriaturassemelhantes.Ficaremossozinhosounuma multidão?Ah!Asolidãoétãopoucoprovável,navidaelajáérara,entãoo quedizerdepoisdamorte!Hátãomaismortosdoquevivos!Namelhor hipóteseaexistênciadepoisdamorteparecerácomoqueAgnèsestá vivendonasaladerepouso:portodooladoelaouviráumincessante falatóriodemulheres.Aeternidadecomoumfalatórioinfinito:paraser francapoderiaseimaginarpior,masmesmoaideiadeterdeouviressas vozesdemulhersempre,semtrégua,eeternamente,éparaAgnèsuma razãosuficienteparaagarrar-sefuriosamenteàvida,eretardaramorteo máximopossível. Masumaoutraeventualidadeseapresenta:acimadocomputador terrestre,háoutrosquelhesãohierarquicamentesuperiores.Nessecaso, aexistênciadepoisdamortenecessariamentenãodeveriaparecercomo quejávivemos,eohomempoderiamorrercomumaesperançavagamais justificada.Agnèsvê,então,umacenaquenessesúltimostemposocupa suaimaginação:emcasa,elaePaulrecebemavisitadeumdesconhecido. Simpático,afável,senta-senumapoltronaemfrenteaeleseentabulauma conversa.Paul,encantadocomessevisitanteestranhamenteamável, mostra-seafável,falante,amistoso,edecidebuscarumálbumondeestão colocadososretratosdefamília.Ovisitanteofolheia,mascertasfotoso deixamperplexo.Porexemplo,diantedaquerepresentaAgnèseBrigite aopédatorreEiffel,elepergunta: —Quemé? —Vocênãoaestáreconhecendo?ÉAgnès!Eaquiénossafilha, Brigite! —Eusei,disseavisita;estoufalandodessaestrutura.Paulolhapara elecomespanto: —MaséatorreEiffel! —Ah!bom,disseavisita,entãoessaéafamosatorre!Falanotomde umhomemaquemvocêmostraoretratodeseuavôequedeclara: —Entãoeleéoavôdequemtantoouvifalar!Estouencantadodevê-lo finalmente! Paulficadesconcertado,Agnèsnemtanto.Elasabequeméesse homem. Sabeporqueeleveio,equeperguntasvaifazeraeles.Éexatamente porissoqueelasesenteumpouconervosa.Elagostariadeconseguirficar asóscomele,masnãosabecomofazê-lo. Hácincoanos,seupaimorrera,háseisanosperderaamãe.Naépoca, opaijáestavadoente,etodosesperavamqueelemorresse.Amãe,ao contrário,estavacheiadesaúdeedisposição,aparentementedestinadaa umalongaefelizviuvez;demodoqueopaisentiraumcertodesgosto quando,inesperadamente,elamorreraemseulugar.Comoseeletemesse areprovaçãodaspessoas.Aspessoaseramafamíliadamãe.Afamíliado paiestavaespalhadapelomundointeiro,ecomexceçãodeumaprima distantequemoravanaAlemanha,Agnèsnãoconhecianinguém.Dolado materno,aocontrário,todososparentesmoravamnamesmacidade: irmãos,irmãs,primos,primaseumainfinidadedesobrinhosesobrinhas. Oavômaterno,modestoagricultorrural,souberasacrificar-sepelosfilhos quetinhamestudadoefeitobonscasamentos. Semdúvida,nosprimeirostempos,amãeeraapaixonadapelopai:o quenãoénadaespantoso,jáqueeraumhomembonito,ecomtrintaanos jáexerciaafunção,entãoaindarespeitável,deprofessoruniversitário.Ela nãosealegravaapenasdeterummaridodignodeinveja,alegrava-se aindamaisemoferecê-locomopresenteàsuafamília,àqualestavaligada pelaantigatradiçãodesolidariedaderural.Mascomoopaierapouco sociável,egeralmentetaciturno(semqueninguémsoubesseseeleera tímidoouseeracarregadoparalongepelosseuspensamentos,emoutras palavras,seseusilêncioeramarcademodéstiaoudeindiferença),a oferendamaternalforneceuàfamíliamaisproblemadoquefelicidade. Àmedidaqueavidapassavaeocasalenvelhecia,amãeprendia-se cadavezmaisaseusparentes:entreoutrasrazões,porqueopaificava eternamentefechadoemseuescritório,enquantoqueelasentiauma necessidadeincontroláveldefalarepassavahorasaotelefonecomsua irmã,seusirmãos,suasprimasousuassobrinhas,comasquais compartilhavacadavezmaisosproblemas.Agoraquesuamãemorrera, Agnèsviasuavidacomoumcírculo:depoisquedeixaraseumeio,lançousecorajosamentenummundocompletamentediferente,depoisvoltou paraseupontodepartida:moravacomseupaieasduasfilhasnumacasa comjardimonde,váriasvezesporano(noNatal,nosaniversários), convidavaafamíliaparagrandesfestas;suaintençãoeramoraralicom suairmãesuasobrinhaquandoocorresseamortedopai(morte prognosticadahámuitotempo,queproporcionavaaointeressadoa atenciosasolicitudecomquesecercaaquelesquevãodeixaruma herança). Masamãemorreraeopaisobrevivera.Quinzediasdepoisdoenterro, quandoAgnèsesuairmã,Laura,foramvê-lo,elasoencontraramsentado diantedamesadasala,inclinadosobreummontedefotografiasrasgadas. Lauraarrancou-asgritando: —Porquevocêestárasgandoasfotosdemamãe? Agnès,porsuavez,inclinou-sesobreodesastre:não,nãoeramapenas asfotosdemamãe,eram,sobretudo,asfotosdopai;masemalgumasela apareciaaseulado,eemoutraselaestavasó.Surpreendidoporsuas filhas,opaicalou-se,semumapalavradeexplicação. —Paredegritar,falouAgnèsentreosdentes,masLauracontinuou.O pailevantou-se,foiparaoquartovizinhoeasduasirmãsbrigaramcomo nunca.Nodiaseguinte,LaurapartiuparaParis,eAgnèscontinuouem casa.Opai,então,confidenciou-lhequeencontraraumpequeno apartamentonocentrodacidadeequeresolveravenderacasa.Foiuma novasurpresa:poisaosolhosdetodomundo,opaieraumdesastradoque tinhadeixadointeiramentecomamãeasrédeasdosnegócios.Acreditavasequeeleeraincapazdeviversemela,nãosomenteporqueelenãotinha nenhumsensoprático,masporque,poroutrolado,elenuncasabiaoque queria;poismesmoasuavontadeelepareciatercedidoàmãehámuito tempo.Masquandodecidiumudar-se,subitamente,semhesitar,depoisde algunsdiasdeviuvez,Agnèscompreendeuqueelerealizavaaquiloque planejarahámuitotempo,equesabiamuitobemoquequeria.Eraainda maisinteressanteporqueelenãopoderiaprever,elatambémnão,quea mãemorreriaemprimeirolugar;setiveraaideiadecomprarum apartamentonacidadevelha,era,portanto,menosumprojetodoqueum sonho.Viveracomamãeemsuacasa,passearacomelanojardim, acolherasuasirmãsesuassobrinhas,fingiraescutá-las,masduranteesse tempo,naimaginação,eleviverasóemseuapartamentodesolteiro;depois damortedamãe,nãofizerasenãomudar-separaondehámuitotempojá moravaemespírito. Pelaprimeiravez,eleapareceuparaAgnèscomoummistério.Porque rasgarasfotos?Porquesonharacomumpequenoapartamentoportanto tempo? Eporquenãoforafielaodesejodamãe,quedesejavaversuairmãe suasobrinhainstaladasnacasa?Issoteriasidomaisprático:elasteriamse ocupadodelemelhordoqueaenfermeiracujosserviços,umdia,ele contrataria.Quandoelaperguntou-lheporquequeriamudar-se,sua respostafoimuitosimples: —Oquevocêquerqueumhomemsozinhofaçanumacasatão grande? Elanemsugeriu-lhequeconvidasseairmãeasobrinha,tãoevidente ficouqueelenãoqueriaisso.Agnèsimaginouqueseupaitambémfechava umcírculo. Amãe:dafamíliaàfamília,passandopelocasamento.Opai:passando pelocasamentodasolidãoàsolidão. Osprimeirossintomasdesuagravedoençaapareceramalgunsanos antesdamortedamãe.Agnèstiraraquinzediasdefériasparapassar sozinhacomele... Massuaexpectativanãoserealizou,porqueamãenuncaosdeixoua sós.Umdia,oscolegasdauniversidadevieramvisitaropai.Fizeram-lhe todaespéciedeperguntas,maserasempreamãequerespondia.Agnès nãoaguentoumais: —Porfavor!Deixepapaifalar!Amãeficouzangada: —Vocênãoestávendoqueeleestádoente! Quandonofimdessesquinzediasopaisesentiuligeiramentemelhor, Agnèsfezdoispasseioscomele.Masnoterceiro,amãefoidenovocom eles. Amãemorreraháumanoquandooestadodesaúdedopaiagravou-se subitamente.Agnèsfoivê-lo,passoutrêsdiascomele,noquartodiaele morreu. Essestrêsdiasforamosúnicosqueelapôdepassarnacompanhiadele nascondiçõesqueelasempredesejara.Pensouqueeleshaviamseamado semteremtidotempodeseconhecer,porfaltadeocasiõesdese encontraremasós.Sóentreoitoedozeanoselapôdeficarsozinhacomele muitasvezes,porqueamãetinhadeseocupardapequenaLaura;faziam, então,longospasseiosnanatureza,eelerespondiasuasinúmeras perguntas.Foiaíqueelelhefalousobreocomputadordivino,esobreuma porçãodeoutrascoisas.Dessasconversas,sólheficaramfragmentos, semelhantesacacosdelouçaquebrada,que,chegandoàidadeadulta,ela esforçava-seporcolarnovamente. Amortepôsfimàsuaeternasolidãoadois.Noenterro,todaafamília damãevoltouaencontrar-se.Mascomoamãenãoestavamaislá, ninguémtentoutransformarolutoembanquetefúnebre,eoenterro dispersou-serapidamente. Aliás,osparenteshaviaminterpretadoavendadacasaeamudançado paiparaumapartamentocomoumamaneiradenãorecebervisitas. Sabendodopreçodacasa,elesnãopensavamsenãonaherançarecebida pelasduasfilhas.Masotabeliãoinformou-lhesquetodoodinheiroque estavanobancodestinava-seaumasociedadedematemáticos,daqualo paiforaco-fundador.Eletomou-seaindamaisdistantedoqueeraquando vivo.Comose,comessetestamento,elelhespedisseofavordeesquecê-lo. Depois,umdia,Agnèsconstatouquesuacontanobancosuíçotinha sidocreditadacomumaquantiabastanteconsiderável.Elacompreendeu tudo.Estehomemaparentementetãodestituídodesensoprático,agira commuitaastúcia. Dezanosantes,quandoumprimeiroalertacolocarasuavidaemrisco equeelavierapassarquinzediascomele,eleaobrigaraaabriruma contanaSuíça. Poucoantesdesuamorte,elecolocaranelaquasetodososseussaldos bancários,guardandoorestoparaossábios.Seeletivessedesignado abertamenteAgnèscomosuaherdeira,teriaferidoinutilmentesuaoutra filha;setivessetransferidosecretamentetodoseudinheiroparaaconta deAgnès,semdestinarumaquantiasimbólicaparaosmatemáticos,teria suscitadoacuriosidadeindiscretadetodomundo. Primeiramente,elaachouquedeviadividircomLaura.Comoelaera oitoanosmaisvelha,Agnèsnãopodiasedesfazerdeumsentimento protetoremrelaçãoasuairmã.Mas,finalmente,nãolhedissenada.Não poravareza,masportemordetrairseupai.Comessepresente, certamenteeletinhadesejadodizer-lhealgumacoisa,fazer-lheumsinal, darumconselho,queelenãotiveratempodedaremvidaequeela deveria,noentanto,guardarcomoumsegredoquesópertenciaaeles dois. Elaestacionouocarro,desceuedirigiu-separaagrandeavenida. Sentia-secansadaemorriadefome,ecomoétristealmoçarsozinhaem restaurante,suaintençãoeracomeralgumacoisabemdepressanum bistrôqualquer. Antigamenteobairroeracheiodeacolhedorastavernasbretãs,onde sepodiacomeràvontadepanquecascomcaldadecidra.Umdia,as tavernasdesapareceramparadarlugaraessasmodernaslanchonetesàs quaisdamosotristenomedefastfood.Tentandoporumasóvezsuperar suaaversão,dirigiu-seaumadessaslanchonetes.Atravésdovidroviaos clientesinclinadossobreatoalhagordurosadepapel.Seuolhardeteve-se sobreumamoçadepelemuitopálidaelábiosdeumvermelhovivo.Assim queacabouoalmoço,amoçaempurrouocopodecoca-colavazioeenfiou odedoindicadornofundodaboca;ficoumexendocomodedoalidurante muitotempo,revirandoosolhos.Namesavizinha,umhomem escarrapachadonacadeiraolhavafixamentearua,escancarandoaboca. Seubocejonãotinhacomeçonemfim,eraobocejoinfinitodamelodia wagneriana:abocafechava-se,masnãointeiramente,elaabria-semaise mais,enquantoaomesmotempoosolhostambémseabriamefechavam. Outrosclientesbocejavam,exibindoseusdentesesuaspontes,suas coroasesuaspróteses,eninguémnuncapunhaamãoemfrenteàboca. Entreasmesaspasseavaumacriançaderouparosa,segurandoseu ursinhoporumapata,eelatambémestavacomabocaaberta;evia-se bemque,aoinvésdebocejar,emitiagritos,batendodevezemquandocom oursinhonaspessoas.Comoasmesasficavamladoalado,mesmoatrásdo vidropercebia-sequecadapessoadeviaestarengolindo,juntocomseus pedaçosdecarne,oseflúviosquenessemêsdejunhoemanavamda transpiraçãodosvizinhos.AondadefeiúraatingiuAgnèsnorosto,afeiúra visual,olfativa,gustativa(Agnèsimaginavaogostodohambúrguer inundadodecoca-colaadocicada),atalpontoquedesviouosolhose decidiumatarafomeemoutrolugar. Acalçadaformigavadegenteeandava-secomdificuldade.Diantedela, duaslongassilhuetasnórdicascomrostospálidos,cabelosamarelos, abriamcaminhonamultidão:umhomemeumamulher,dominandocom suascabeçasamassamovediçadefranceseseárabes.Umeoutrotraziam nascostasumamochilarosa,enabarriga,numsuporte,umacriança.Logo desapareceram,substituídosporumamulhervestidacomcalçalargaque paravanojoelho,segundoamodadoano.Seutraseiro,comessaroupa, pareciaaindamaioremaispróximodochão;ostornozelos,nusebrancos, pareciamumvasorústicoenfeitadocomumrelevodevarizesazulacinzentadas,enroladascomoumnódepequenasserpentes.Agnès pensou:essamulherpoderiaterencontradovinteoutrasmaneirasde vestir-separatornarseutraseiromenosmonstruosoedissimularsuas varizes.Porquenãoofaz?Nãoapenasaspessoasnãoprocurammaisficar bonitasquandoestãonomeiodasoutras,masnemmesmoevitamser feias! Elapensou:umdia,quandoainvasãodefeiúratornar-seinteiramente insuportável,compraránofloristaumsóraminhodemiosótis,pequeno cauleencimadoporumaflorminiatura,sairácomelenarua,segurando-o emfrenteaorosto,oolharfixadoneleafimdenadaver,anãoseresse belopontoazul,últimaimagemquequerconservardeummundoqueela deixoudeamar.Irá,destaforma,pelasruasdeParis,aspessoaslogo saberãoreconhecê-la,ascriançascorrerãoatrás,zombarãodela,jogarão coisaseParisinteirairáapelidá-la:adoidadomiosótis... Continuouseucaminho:oouvidodireitoregistravaaalgazarrada música,asbatidasritmadasdebateria,provenientesdaslojas,dossalões decabeleireiro,dosrestaurantes;enquantooouvidoesquerdocaptavaos barulhosdochão:oronronaruniformedoscarros,oroncodeumônibus quearrancava.Depoisobarulhopenetrantedeumamotoaatingiu.Ela nãopôdedeixardeprocurarcomosolhosoquelhecausavaessador física:umamoçadejeans,delongoscabelosflutuandoaovento,mantinhaseempertigadanaselacomoatrásdeumamáquinadeescrever; desprovidodesilencioso,omotorfaziaumaalgazarraatroz. Agnèslembrou-sedadesconhecidaquetrêshorasantesentrarana saunaeque,paraapresentarseu"eu",paraimpô-loaosoutros,anunciara ruidosamentenasoleiradaportaquedetestavaasduchasquentesea modéstia.Agnèspensou:amoçadecabelospretosobedeceuaumimpulso semelhanteaotirarosilenciosodesuamoto.Nãoeraamáquinaquefazia barulho,erao"eu"damoçadecabelospretos;essamoça,paraserouvida, paraocuparopensamentodosoutros,tinhaacrescentadoàsuaalmaum barulhentocanodedescarga.Aovervoaroslongoscabelosdessaalma barulhenta,Agnèscompreendeuqueeladesejavaintensamenteamorte damotociclista.Seoônibusativesseesmagado,seelativesseficado ensanguentadanoasfalto,Agnèsnãoteriasentidonemhorrornempena, apenassatisfação. Derepente,assustadacomesseódio,pensou:omundoatingiuuma fronteira,quandoeleaultrapassar,tudopodevirarloucura:aspessoas andarãopelasruassegurandoummiosótis,ouentãoatirarãounsnos outrosnafrentedetodos.Ebastarámuitopoucacoisa,umagotad'água faráocopotransbordar:porexemplo,umcarro,umhomem,ouumdecibel amaisnarua.Existeumafronteiraquantitativaanãoserultrapassada; masessafronteiranãoévigiadaporninguém,etalvezatémesmoninguém saibadesuaexistência. Nacalçadahaviacadavezmaisgente,eninguémlhecedialugar,de modoquedesceuparaarua,continuandoseucaminhoentreabeiradada calçadaeofluxodoscarros.Hámuitotempofizeraaexperiência:nuncaas pessoaslheabriamcaminho.Sentiaissocomoumaespéciedemaldição quemuitasvezesesforçava-seporquebrar:juntandocoragem,esforçavaseparanãosairdeumalinhareta,afimdeobrigarapessoaemfrentea desviar-se,massempreerravaogolpe.Nessaprovadeforçacotidiana, banal,erasempreelaaperdedora.Umdia,umacriançadeseteanostinha aparecidoemfrenteaela;elatinhatentadonãoceder,masfinalmentenão pôderesistirpormedodeesbarrarnacriança. Voltou-lheumalembrança:comunsdozeanosdeidade,tinhaido passearcomospaispelamontanha.Nomeiodeumgrandecaminho,na floresta,apareceramdiantedelesdoisgarotosdovilarejo:umdeles seguravanamãoumbastãoparacomelebarrar-lhesapassagem; —Éumcaminhoparticular!Umcaminhocompedágio!Gritouele, empurrandolevementeabarrigadopaicomobastão. Semdúvidaeraapenasumabrincadeiradecriançaebastariater afastadoogaroto.Ouentãoseriaumamaneirademendigareteria bastadotirarumfrancodobolso.Masopaideumeia-voltaepreferiu tomarumoutrocaminho.Paradizeraverdade,erasemimportância,eles caminhavamsemdireção;noentanto,amãelevouamalaquestãoenão pôdedeixardedizer: —Elerecuamesmodiantedegarotosdedozeanos! NahoraAgnèstambémsentiu-seumpoucodecepcionadacomo comportamentodeseupai. Umanovaofensivadebarulhointerrompeuessalembrança;homens comcapacetes,armadosdebritadeiras,inclinavam-seemarcosobreo asfalto.Deumaalturaindeterminada,comosecaíssedocéu,umafugade Bachtocadaaopianosoou,derepente,comforçanomeiodessa barulheira.Aparentemente,umlocatáriodoúltimoandarabriraajanelae colocaraseuaparelhonovolumemáximo,paraqueabelezaseverade Bachressoassecomoumaadvertênciadirigidaaomundoensandecido. MasafugadeBachnãoerasuficientepararesistiraosbritadoresnemaos carros,aocontrário,foramoscarroseosbritadoresqueseapropriaram dafugadeBach,integrando-aàsuaprópriafuga;Agnèspôsamãonos ouvidosedestamaneiracontinuouseucaminho. Umtranseunte,queianadireçãooposta,lançou-lhe,então,umolhar furiosobatendocomsuamãonatesta,oquenalinguagemdosgestosde todosospaísessignificaparaooutroqueeleélouco,malucooupobrede espírito.Agnèscaptouesseolhar,essaraiva,esentiu-seinvadidaporuma cóleraincontrolável. Parou.Queriaavançarnohomem.Queriacobri-lodepancadas.Mas nãopodia:ohomemjáforacarregadopelamultidão,eAgnèslevouum empurrão,poiseraimpossívelpararmaisdetrêssegundosnacalçada. Continuouseucaminhosemconseguirtiraressehomemdacabeça: quandoummesmoruídoosenvolveu,elejulgounecessáriofazê-la entenderqueelanãotinhanenhumarazão,talvezmesmonenhumdireito, detaparosouvidos. Estehomemtinhachamadoatençãoparaseugesto.Eraaigualdade personificadainfligindo-lheumaculpa,nãoadmitindoqueumindivíduose recusasseasuportaroquetodosdeveriamsuportar.Eraaigualdadeem pessoaquelheproibiradeficaremdesacordocomomundoemquetodos vivemos. Seudesejodematarestehomemnãoeraumasimplesreação passageira. Mesmodepoisdoprimeiromomentodefúria,essedesejonãoa deixava;juntava-seaeleapenasoespantodesercapazdeumatalraiva.A imagemdohomembatendonatestaflutuavaemsuasentranhascomoum peixequelentamenteapodreciaequeelanãopodiavomitar. Seupaivoltou-lheaoespírito.Depoisquerecuaradiantededois garotosdedozeanos,muitasvezeselaoimaginavanaseguintesituação: eleestáabordodeumnavioqueafunda;éevidentequeosbotesde salvamentonãopoderãoacolhertodomundo,demodoquenotombadilho oatropeloéfrenético.Opaicomeçaacorrercomosoutros,mas descobrindoocorpo-a-corpodospassageirosprestesasepisotearematéa morte,erecebendoumtremendosocodeumasenhoraporqueestáno caminhodela,derepentepára,coloca-seaolado,eporfim,ficaapenas observandoosbotessuperlotadosque,nomeiodeclamoresedeinjúrias, descemlentamentesobreasondasdescontroladas. Quenomedaraessaatitudedopai?Covardia?Não.Oscovardestêm medodemorrer,eparasobreviversabemlutarcorajosamente.Nobreza? Semdúvida,seeletivesseagidoporconsideraçãocomseupróximo.Mas Agnèsnãoacreditavanumatalmotivação.Então,doquesetratava?Ela nãosabia.Umaúnicacoisaparecia-lhecerta:numbarcoqueafundae ondeéprecisolutarparasubirnosbotes,opaiestariacondenadopor antecipação. É,issoeracerto.Aquestãoqueelasecolocaéaseguinte:seupaiteria odiadoaspessoasdonaviocomoelaacabaradeodiaramotociclistaeo homemquezombaradelaporqueelataparaosouvidos?Não,Agnèsnão chegaaimaginarqueseupaipudesseodiar.Aarmadilhadoódioéqueele nosprendemuitointimamenteaoadversário.Eisaobscenidadedaguerra: aintimidadedosanguemutuamentederramado,aproximidadelascivade doissoldados,que,olhosnosolhos,transpassam-sereciprocamente.Agnès temcerteza:éprecisamenteessaintimidadequerepugnaseupai:o atropelonobarcooencheriadeumatalrepulsaqueeleprefeririamorrer afogado.Ocontatofísicocompessoasquesebatem,sepisoteiamese matamumasàsoutrasparecia-lhebempiordoqueumamortesolitáriana purezadaságuas. Alembrançadopaicomeçavaalibertá-ladoódioqueacabarade invadi-la.Poucoapouco,aimagemenvenenadadohomembatendocoma mãonatestadesapareciadeseuespírito,ondebruscamentesurgiuesta frase:nãopossomaisodiá-los,porquenadameuneaeles;nãotemosnada emcomum. SeAgnèsnãoéalemã,éporqueHitlerperdeuaguerra.Pelaprimeira veznahistória,nãosedeixouaovencidonenhuma,nenhumaglória:nem mesmoadolorosaglóriadonaufrágio.Ovencedornãosecontentouem vencer,decidiujulgarovencido,ejulgoutodaanação;porissonessa épocafalaralemãoeseralemãonãotinhasidofácil. OsavósmaternosdeAgnèstinhamsidoproprietáriosdeumafazenda nafronteiradaszonasfrancesaealemãdaSuíça;tantoquefalavam fluentementeasduaslínguas,sebemqueadministrativamenteessazona pertencesseàSuíçafrancesa.Osavóspaternoseramalemães estabelecidosnaHungria.Opai,antigoestudanteemParis,tinhaumbom conhecimentodefrancês;noentanto,quandocasou-se,oalemãotornou-se naturalmentealínguadocasal.Masdepoisdaguerra,amãelembrou-se dalínguaoficialdeseuspais:Agnèsfoimandadaparaumliceufrancês.O pai,comoalemão,sósepermitia,portanto,umprazer:recitarparasua filhamaisvelhaosversosdeGoethenooriginal. Eisopoemaalemãomaiscélebredetodosostempos,aquelequetoda criançaalemãdeveaprenderdecor: Sobretodososcumes Éosilêncio, Nacopadetodasasárvores Vocêsente Apenasumsuspiro Ospassarinhossecalamnafloresta. Tenhapaciência,logo Vocêdescansarátambém. Aideiadopoemaémuitosimples:aflorestaadormece,vocêtambém adormecerá.Avocaçãodapoesianãoénosdeslumbrarcomumaideia surpreendente;massimfazercomqueuminstantedosersetorne inesquecíveledignodeumainsustentávelnostalgia. Natraduçãotudoseperde,sóseperceberáabelezadopoemalendo-o emalemão: uberallenGipfeln IstRuh, InallenWipfeln Spurestdu KaumeinenHauch; DieVògeleinschweigenimWalde. Wartenur,balde Ruhestduauch. Todosessesversostêmumnúmerodesílabasdiferentes,ostroqueus, osiambos,osdáctilossealternam,osextoversoéestranhamentemais longoqueosoutros;eapesardopoemasercompostoporduasquadras,a primeirafrasegramaticalterminaassimetricamentenoquintoverso, criandoumamelodiaquenãoexisteemnenhumaoutraparteanãoser nessesóeúnicopoema,tãosublimequantoperfeitamentecomum. OpaioaprenderadesdeasuainfâncianaHungria,quando frequentavaaescolaprimáriaalemã,eAgnèstinhaamesmaidadequando elefezcomqueelaoescutassepelaprimeiravez.Elesorecitavamemseus passeios,acentuandoexageradamentetodasassílabastônicas,eandando noritmodopoema.Acomplexidadedamétricanãotornandoacoisafácil,o sucessosósecompletavanosdoisúltimosversos:war-tenur-bal-deru-hestdu-auch.Elesgritavamtãoforteaúltimapalavraqueelaeraouvida noraiodeumquilômetro. Opairecitaraopoemapelaúltimavez,doisoutrêsdiasantesdesua morte.PrimeiroAgnèsacreditouquedestaformaelevoltavaàsua infância,àsualínguamaterna;depoispensou,quandoeleaolharadireto nosolhos,íntimaeeloquentemente,queelequeriaqueelarecordassea felicidadedeseuspasseiosdeoutrora;só,nofinal,elacompreendeuqueo poemafalavadamorte:seupaiquerialhedizerqueiamorrerequesabia disso.Nuncalheocorreraantesaideiadequeessesversosinocentes,bons paraoscolegiais,pudessemtertalsignificado.Seupaiestavadeitado,a testacobertadesuor;elatomou-lheamão,e,retendoaslágrimas,repetiu docementecomele:wartenur,balderuhestduauch.Logodescansarás também.Eelasedeucontadequereconheciaavozdamortedopai:erao silênciodospássarosadormecidosnostoposdasárvores. Osilêncio,realmente,espalhou-sedepoisdamorte,encheuaalmade Agnès,eerabelo;tornareiadizê-lo:eraosilênciodospássaros adormecidosnostoposdasárvores.Enestesilêncio,comoumacornetade caçanofundodafloresta,ressoavacadavezmaisnitidamenteaúltima mensagemdopai,àmedidaqueotempopassava.Oqueelequereriadizer comoseupresente?Quefosselivre.Paravivercomoquisesseviver,para irondequisesseir.Elenuncaousaraisso.Porissoderatodososmeiosà suafilhaparaqueelaousasse,ela. Desdeseucasamento,Agnèsrenunciaraàsalegriasdasolidão:cada diapassavaoitohorasnumescritórioemcompanhiadedoiscolegas; depoisvoltavaparacasa,paraseuapartamentodequatropeças.Mas nenhumadaspeçaslhepertencia:haviaumagrandesala,umquartode dormir,umquartoparaBrigite,eopequenoescritóriodePaul.Quandoela sequeixava,Paulpropunhaqueconsiderasseasalacomoseuquarto,e prometia(comumasinceridadeinsuspeita)quenemelenemBrigite viriamincomodá-la.Mascomoelaficariaàvontadenumasalamobiliada comumagrandemesaeoitocadeirasfrequentadasapenaspelasvisitas quevinhamànoite? TalvezagorapossamoscompreendermelhorporqueAgnèssesentira tãofeliz,essamanhã,nasuacamaquePaulacabaradedeixar,eporque emseguidaatravessaraocorredorsemfazerbarulho,commedode chamaraatençãodeBrigite.Atésentiacertaafeiçãopeloelevador inconstante,jáquelheproporcionavaalgunsmomentosdesolidão.Mesmo seucarrolhedavaumpoucodefelicidade,porquealininguémlhefalava, ninguémaolhava.Sim,issoeraoprincipal,ninguémaolhava.Asolidão: doceausênciadeolhares.Umdia,seusdoiscolegasficaramdoentese duranteduassemanastrabalhousozinhanoescritório.Ànoite,constatou comgrandeespantoquenãosentiaquasenenhumcansaço.Issoafez compreenderqueosolhareseramfardosinsuportáveis,beijosde vampiros;queforaoestiletedosolharesquegravaraasrugasemseu rosto. Essamanhã,acordando,ouviranorádioque,duranteumaintervenção cirúrgicasemimportância,umanegligênciadosanestesistasocasionaraa mortedeumajovempaciente.Emconsequênciadisso,trêsmédicos estavamsendoindiciadoseumaorganizaçãodedefesadosconsumidores propuseraque,nofuturo,todasasoperaçõesfossemfilmadas,eosfilmes arquivados.Parecequetodosaplaudiramessainiciativa.Milharesde olharesnostranspassamcadadia,masissonãoésuficiente:éprecisoalém dissoumolharinstitucional,quenãonosdeixaráumsegundo,quenos observaránomédico,narua,sobreamesadecirurgia,nafloresta,no fundodacama;aimagemdenossavidaseráconservadaintegralmenteem arquivosparaserusadaaqualquermomentoemcasodelitígio,ouquando acuriosidadepúblicaoexigir. NovamentesentiuumagrandesaudadedaSuíça.Depoisdamortedo pai,iaàSuíçaduasoutrêsvezesporano.PauleBrigite,comumsorriso indulgente,referiam-seaissocomoumanecessidadehigiênicosentimental:elaiavarrerasfolhasmortasdecimadotúmulodopai,ia respiraroarpuropelagrandejanelaabertadeumhotelalpino.Eles estavamenganados:aSuíça,ondenenhumamanteaesperava,eraaúnica graveesistemáticainfidelidadedequesesentiaculpadaemrelaçãoaeles. ASuíça:ocantodospássarosnotopodasárvores. Agnèssonhavaficarláumdiaenuncamaisvoltar.Chegavamesmoa visitarosapartamentosàvendaouporalugar;chegouatéafazero rascunhodeumacartaanunciandoàfilhaeaomaridoque,apesarde continuaraamá-los,queriaagoraviversó.Sópediaaelesquedetempos emtemposmandassemnotíciasparaqueelativessecertezadequenada demaulhesacontecera.Eraissoprecisamentequetinhadificuldadeem expressareexplicar:suanecessidadedesabercomoestavam,aomesmo tempoquenãodesejavavê-losnemviveremcompanhiadeles. Éclaro,evidentemente,queissoeramsonhos.Comoumamulher sensatapodeabandonarumcasamentofeliz?Apesardisso,umavoz longínquaesedutoraperturbavasuapazmatrimonial:eraavozda solidão.Fechavaosolhoseouviaaolonge,naprofundezadasflorestas,o somdeumacometadecaça.Haviacaminhosnessasflorestas,eemum delesestavaseupai;elelhesorria;eleachamava. Sentadanumapoltrona,nasala,AgnèsesperavaPaul.Diantedeles haviaaperspectivadeumcansativo"jantarfora".Comonãotinhacomido nadaduranteodia,sentia-seumpoucofraca,epermitia-seummomento dedescontraçãofolheandoumarevistavolumosa.Muitocansadaparaler psartigos,contentava-seemolharasfotografias,numerosasecoloridas. Naspáginascentrais,haviaumagrandereportagemconsagradaauma catástrofeocorridaduranteumaexibiçãoaeronáutica.Umaviãoem chamascaírasobreamultidãodeespectadores.Asfotografiaseram imensas,cadaumaocupavaumapáginadupla;viam-sepessoas aterrorizadas,correndoemtodasasdireções,asroupasqueimadas,apele torrada,ocorpocercadodechamas;Agnèsnãoconseguiadesviaroolhare pensavanaalegriafrenéticadofotógrafoqueviraderepente,enquantose aborreciacomumespetáculosoporífero,afelicidadecair-lhedocéusoba formadeumaviãoemchamas. Virandoapágina,viupessoasnuasnumapraiaeumgrandetítulo:as fotosdefériasquenuncaserãovistasnoálbumdeBuckingham,seguidode umtextocurtoqueterminavacomestafrase:"...eofotógrafoestavalá:os amigosdaprincesaassustamnovamenteacrônica".Umfotógrafoestavalá. Emtodolugarestáumfotógrafo.Umfotógrafoescondidoatrásdeum arbusto.Umfotógrafodisfarçadoemmendigoaleijado.Emtodolugar existeumolho.Emtodolugarexisteumaobjetiva. Agnèslembrou-sequeoutrora,emsuainfância,ficavafascinadacoma ideiadequeDeusaviaeaviasemtréguas.Foientão,semdúvida,que sentiupelaprimeiravezessavolúpia,esseestranhoprazerqueoshomens sentememservistos,vistosacontragosto,vistosemseusmomentosde intimidade,vistosevioladospeloolhar.Suamãe,queerareligiosa,dizialhe:"Deusestávendovocê",esperandofazê-laperderohábitodementir, deroerasunhas,edecolocarosdedosnonariz,masaconteceujustoo contrário;eraprecisamentequandoelaseentregavaaessesmaushábitos, ounosmomentosdevergonha,queAgnèsimaginavaDeusemostrava-lhe oqueestavafazendo. PensounairmãdarainhadaInglaterra,imaginandoquenaquelahora oolhodeDeusforasubstituídopeloaparelhodefotografia.Oolhodeum sóerasubstituídopelosolhosdetodos.Avidatransformara-senumaúnica evastaorgiasexualnaqualtodomundoparticipa.Todomundopodever, numapraiatropical,aprincesadaInglaterrafestejarnuaoseu aniversário.Aparentemente,oaparelhofotográficosóseinteressapor pessoascélebres,masbastaqueumaviãoseespatifepertodevocê,que saiamchamasdesuacamisa,paraquevocêsetornecélebreeincluídona orgiageralquenadatemavercomoprazer,masanunciasolenemente queninguémpodeseesconderemlugarnenhumequecadaumestáà mercêdetodos. Umdiaemquemarcaraumencontrocomumhomem,nomomentoem queobeijavanohalldeumgrandehotel,umtipodejeanseblusãode courosurgiu,inesperadamente,comcincosacolasatiracolo;agachado, colouoolhonamáquina.Agitandoamão,tentoufazê-locompreendersua recusaemserfotografada,masotipo,depoisdebalbuciaralgumas palavraseminglês,começouarireasaltarparatodososladoscomouma pulga,apertandoodisparadordamáquinasemparar.Episódio insignificante:comonaquelediahaviaumcongressonohotel,haviam alugadooserviçodeumfotógrafoparaqueossábios,vindosdomundo inteiro,pudessemcomprarsuasfotografiasdelembrançanodiaseguinte. MasAgnèsnãosuportavaaideiadequepudessesubsistiremalgumlugar umatestemunhadoseuencontrocomoamigo:nodiaseguinte,voltouao hotelparacomprartodasasfotos(queamostravamaoladodohomem comumamãolevantadadiantedorosto)epediutambémosnegativos, masesses,jáclassificadosnosarquivosdaempresa,estavaminacessíveis. Apesardaausênciadetodoperigo,elanãopodiaselivrardeumacerta angústiacomaideiadequeumsegundodesuavida,emvezdese converteremnadacomotodososoutrossegundos,seriaarrancadodo cursodotempoeseumacasoimbecilviesseexigilo,umdiairiaressuscitar comoummortomalenterrado. Pegouumaoutrarevista,essamuitomaisvoltadaparaapolíticaea cultura.Nãohaviacatástrofes,nãohaviaprincesasnuasabeira-mar,mas rostos,rostos,rostosemtodaparte.Mesmonasegundaseçãodarevista, consagradaaoscomentáriossobrelivros,osartigoseramtodos acompanhadosdeumafotografiadoautoremquestão.Osautoressendo geralmentedesconhecidos,podiajustificar-seafotocomoinformaçãoútil, mascomojustificarcincofotografiasdopresidentedaRepública,dequem todomundoconheciadecoronarizeoqueixo?Oscronistastambém tinhamsuasfotoscomvinheta,esemanaapóssemanacertamenteela seriarepetidanomesmolugar.Nareportagemsobreastronomia,viam-se ossorrisosampliadosdosastrônomos;erostosemtodososencartes publicitários,rostoselogiavammóveis,máquinasdeescreveroucenouras. Denovopercorreuarevistadaprimeiraàúltimapáginafazendoocálculo: setentaeduasfotosrepresentandoumsórosto;quarentaeumacomo rostoeocorpo;noventarostosevinteetrêsfotosdegrupos;esóonze fotografiasondeoshomensdesempenhavamumpapelinsignificanteou nulo.Nototalhaviaduzentosevinteetrêsrostosnarevista. Depois,quandoPaulchegouemcasa,Agnèscontou-lhesobreseus cálculos. —Sim,concordouele.Quantomaisohomemtorna-seindiferenteà política,aosinteressesdooutro,maiseleficaobcecadoporseupróprio rosto.Éoindividualismodenossostempos. Oindividualismo?Ondeestáoindividualismoquandoacâmerafilma vocênomomentodesuaagonia?Aocontrário,estáclaroqueoindivíduo nãosepertencemais,queécompletamenteapropriedadedosoutros. Lembro-medequenaminhainfância,quandoqueriamfotografaralguém, semprepediamlicença.Mesmoamim,osadultosperguntavam:diga, menina,podemostirarseuretrato?Depois,umdianinguémperguntou maisnada.Odireitodacâmerafoicolocadoacimadetodososdireitos,e dessediaemdiantetudomudou,rigorosamentetudo. Pegouarevistaedisse: —Quandovocêcolocaladoaladoafotodedoisrostosdiferentes,fica espantadocomtudoqueosdiferencia.Masquandotemdiantedesi duzentosevinteetrêsrostos,compreende,derepente,quenãovêsenão numerosasvariantesdeumsórosto,equenenhumindivíduojamais existiu. —Agnès,dissePaulesuavozsubitamentetornou-segrave,seurosto nãoseparececomnenhumoutro. Agnèsnãonotouotomdesuavozesorriu. —Nãosorria.Estoufalandosério.Quandoamamosalguém,amamos seurosto,eassimotornamostotalmentediferentedosoutros. —Seidisso.Vocêmeconhecepelomeurosto,meconhececomorosto, enuncameconheceudeoutromodo.Assimnãopodeter-lheocorridoa ideiadequemeurostonãofosseeu. Paulrespondeucomasolicitudepacientedeumvelhomédico: —Comovocêpodepretendernãoserseurosto?Oqueexisteatrásdo seurosto? —Imaginequevocêtenhavividonummundoemquenãoexistissem espelhos.Vocêteriasonhadocomseurosto,oteriaimaginadocomo umaespéciedereflexoexteriordaquiloqueseencontraemvocê.Edepois, suponhaquecomquarentaanostenhamlheestendidoumespelho. Imagineseuespanto.Teriavistoumrostototalmenteestranho.E compreenderianitidamenteaquiloquerecusaaadmitir:seurostonãoé você. —Agnès,dissePaullevantando-se.Estavabempróximodela.Nosolhos dePaulviaoamor;enostraçosdePaul,suasogra.Parecia-secomela, comoasogra,semdúvida,parecia-secomopai,queporsuavezseparecia comalguém. Aprimeiravezemqueviraessamulher,Agnèssesentiramuito perturbadacomasuasemelhançafísicacomofilho.Maistarde,quando fizeraamorcomPaul,umaespéciedecrueldadetrouxe-lhedevoltaessa semelhança,apontodeparecer-lheemalgunsmomentosquehaviauma senhoradeidadedeitadasobreela,orostodeformadopeloprazer.Mashá muitotempoPaulesqueceraquelevavaemseurostoodecalquedesua mãe,certodequeseurostoeraseuedenenhumaoutrapessoa. —Nossonome,também,vemporacaso,prosseguiuela,semque saibamosquandoapareceunomundo,nemcomoumnosso desconhecidoantepassadooconseguiu.Nãocompreendemos absolutamenteestenome,nãoconhecemossuahistória,emesmoassimo usamoscomgrandefidelidade,nosconfundimoscomele,gostamosdele, somosridiculamenteorgulhososdele,comoseotivéssemosinventadonum lancedegenialinspiração.Quantoaorosto,éamesmacoisa.Lembro-me, issodeveteracontecidonofimdeminhainfância:detantomeolharno espelho,acabeichegandoàconclusãodequeoqueeuviaeraeu.Tenho umavagalembrançadessaépoca,masseiquedescobrirmeueudeveter sidoinebriante.Maistarde,porém,chegaomomentoemquenosolhamos noespelhoedizemos:seráquesoueumesmo?Eporquê?Porquedevo sersolidáriocomissoai?Quemeimportaesserosto?Eapartirdaítudo começaadesmontar.Tudocomeçaadesmontar. —Oquecomeçaadesmontar?PerguntouPaul.Oquehácomvocê, Agnès?Oqueandaacontecendocomvocêultimamente? Elaoencaroue,novamente,baixouacabeça.Permanentemente, parecia-secomamãe.Pareciacadavezmais.Maisemaisparecia-secoma velhasenhoraqueerasuamãe. Paultomou-anosbraços,forçando-aalevantar-se.Foisóquandoela levantouosolhosqueeleosviucheiosdelágrimas. Eleapertou-aemseusbraços.ElacompreendeuquePaulaamava profundamenteeissoinundou-adeumasensaçãodepena.Eleaamavae issolhedavatristeza,eleaamavaeelatinhavontadedechorar. —Temosdesair,estánahoradenosvestirmos,disseelaescapulindo deseuabraço.Correuparaobanheiro. EstouescrevendosobreAgnès,imaginando-a,deixo-adescansarnum bancodesauna,perambularporParis,folhearrevistas,discutircomseu marido,masaquiloquefezcomquetudocomeçasse,ogestodasenhora cumprimentandooprofessordenatação,nabeiradapiscina,ficoucomo queesquecido.SeráqueAgnèsnãofazmaisessegestoparaninguém? Não.Mesmoqueissopareçaestranho,parece-mequehámuitotempoela nãoofaz.Outroraquandoaindaeramuitojovem,sim,elaofazia. Eranotempoemqueelaaindamoravanacidade,naqual,aofundo, desenhavam-seoscumesdosAlpes.Garotadedezesseisanos,foraao cinemacomumcolegadeclasse.Quandoasluzesseapagaram,ele segurousuamão. Logosuaspalmascomeçaramatranspirar,masogarotonãoousava maislargaressamãotãocorajosamenteconquistada,porquedessemodo teriadereconhecerquetranspiravaequetinhavergonhadisso.Portanto tiveramsuasmãosencharcadasemquenteumidadeduranteumahorae meiaesóassepararamquandoaluzvoltouaacender. Paraprolongaroencontro,elealevoudepoispelasruelasdacidade antiga,atéumvelhoconventoqueadominavaecujoclaustroatraíauma multidãodeturistas.Aparentementepremeditaratudocomcuidado,pois, numpassorelativamentedecididolevou-aporumcorredordeserto,sobo pretextobastantebobodemostrar-lheumquadro.Chegaramaofimdo corredorsemencontraromenorsinaldequadro,masapenasumaporta pintadademarromemqueestavamescritasasletrasW.C.Semnotara porta,ogarotoparou.Agnèssabiamuitobemqueseucolegapoucose interessavaporquadrosequeapenasprocuravaumlugarescondidopara lhedarumbeijo.Coitado,nãotinhaencontradonadamelhordoqueesse becosemsaídapertodosbanheiros!Elaescapuliue,paraevitarqueele achassequeelazombavadele,mostroucomodedoainscrição.Apesardo desespero,eletambémriu.Comessasduasletrascomopanodefundo, era-lheimpossívelinclinar-separabeijá-la(aindamaisquesetratavade umprimeirobeijo,pordefiniçãoinesquecível)enãolherestavamaisnada anãoservoltarparaasruascomoamargosentimentodecapitulação. Andavamsemdizerumapalavra,eAgnèsestavaaborrecida:porque elenãoatinhasimplesmentebeijadonomeiodarua?Porquetinha preferidolevá-laaumcorredorsuspeito,emdireçãoabanheirosonde geraçõessucessivasdevelhosmonges,feiosefedorentos,esvaziaramsuas entranhas?Oconstrangimentodogarotoaenvaideciacomosinalde confusãoamorosa,masairritavamaisaindacomoprovadesua imaturidade:saircomumgarotodamesmaidadedava-lheaimpressãode desqualificar-se;apenasosmaisvelhosaatraíam.Talvezporqueelao traíssementalmente,mesmoreconhecendoqueoamava,umvago sentimentodejustiçalevou-aaajudá-lo,adar-lheesperança,elibertá-lo deseuconstrangimentopueril.Seelenãoencontravacoragem,elairia encontrar. EleaacompanhouatéemcasaeAgnèsimaginouquechegandolá, diantedapequenagradedojardim,elaoabraçariafurtivamenteparadarlheumbeijo,deixando-opetrificadodesurpresa.Masnoúltimomomentoa vontadepassouquandoelaviuqueogarotonãoapenasestavacomacara fechada,masmostrava-sedistanteemesmohostil.Elesapertaram-seas mãos,eelasubiupelaaleiaentredoiscanteirosemdireçãoàportada casa.Sentiapesarsobreelaoolhardeseucolega,queaobservavaimóvel. Maisumavezsentiupenadele,umapenadeirmãmaior,eentãofezuma coisacujaideianãolheteriaocorridoumsegundoantes.Semdeter-se, virouacabeçaparaele,sorriu,eagitoualegrementeseubraçonoar,com levezaegraça,comoselançasseparaocéuumbalãocolorido. Esseinstanteemque,derepente,semnenhumapremeditação, eleganteerapidamente,Agnèslevantouamão,esseinstanteé maravilhoso.Numafraçãodesegundo,edesdeaprimeiravez,comopôde elaencontrarummovimentodecorpoedebraçotãoperfeito,tãobem acabadoquantoumaobradearte? Nessaépoca,umasenhoradeunsquarentaanos,secretáriana faculdade,regularmenteiaverseupaiparaentregar-lhediversospapéise trazeroutroscomsuaassinatura.Sebemqueomotivofosseinsignificante, essasvisitaseramseguidasporumaestranhatensão(amãeficava taciturna)queintrigavamuitoAgnès.Elaprecipitava-separaajanelapara espiardiscretamenteasecretáriaassimqueelasepreparavaparair embora.Umdiaemqueelasedirigiuparaapequenagradedojardim (destaformadescendoocaminhoqueAgnèsdeveriamaistardesubirsob oolhardeseuinfelizamigo),asecretáriavirou-se,sorriu,elançouamão paraoarnummovimentosúbito,rápidoeleve.Foiinesquecível:aaleiade areiabrilhavacomoumjatodouradosobosraiosdosol,e,decadaladoda pequenagradefloresciamdoisarbustosdejasmim.Ogestodesdobrara-se naverticalcomoparaindicaraessepedaçodeterradouradoadireçãode seuvôo,tantoqueosarbustosbrancosjásetransformavamemasas. Agnèsnãopodiaverseupai,mascompreendeucomogestodamulher queeleestavanaportadacasaeaseguiacomosolhos. Essegestoeratãoinesperado,tãobelo,queficounamemóriadeAgnès comoumtraçodeluz;eleaconvidavaparaalgumaviagemdistante,e despertavanelaumdesejoindeterminadoeimenso.Quandoveioo momentoemqueelatevenecessidadedeexpressaralgumacoisa importanteaseuamigo,ogestoreviveunelaparadizeremseulugar aquiloqueelanãosouberadizer. Nãoseidurantequantotempoelarecorreuaestegesto(ou,mais exatamente,quantotempoestegestorecorreuaela);atéodia,sem dúvida,emqueelaconstatouquesuairmã,oitoanosmaismoça,lançavaa mãonoarparadespedir-sedeumcolega.Aoverseuprópriogesto executadoporsuairmãmenorquedesdesuamaistenrainfânciaatinha admiradoeimitadoemtudo,sentiuumcertomal-estar:ogestoadulto combinavamalcomumameninadeonzeanos.Mas,sobretudo,ficou perturbadapelofatodessegestoficaràdisposiçãodetodomundoenão serabsolutamentepropriedadesua;comose,aofazê-lo,elasetornasse culpadadeumroubooudeumacontravenção.Desdeentão,começounão apenasaevitaressegesto(nãoénadafácildesabituar-sedosgestosque moramconosco),masadesconfiardetodososgestos.Esforçava-sepor fazerapenasaquelesquesãoindispensáveis(balançaracabeçaparadizer "sim"ou"não",mostrarumobjetoaquemnãooestávendo)equenão pretendemnenhumaoriginalidadenocomportamentofísico.Assim,ogesto queafascinaraquandoviraasecretáriaafastar-senaaleiadourada(e quetambémmeseduzira,quandoviasenhorademaiodaradeusaseu professordenatação),adormeceudentrodela. Noentanto,umdia,despertou.Foiantesdamortedamãe,quandofoi passarquinzediasàcabeceiradopaidoente.Despedindo-senoúltimodia, sabiaquenãopoderiarevê-lopormuitotempo.Amãenãoestavaeopai quisacompanhá-laatéarua,ondeestavaseucarro.Elaproibiu-ode passardaportadacasaefoisozinhaemdireçãoàpequenagradedo jardim,sobreaareiadouradaentreosdoiscanteiros.Ficoucoma gargantaapertadaeumimensodesejodedizeraseupaialgumacoisade belo,queaspalavrasnãopodemdizer;esubitamente,semsabercomo issoaconteceu,elavirouacabeçaecomumsorrisolançouamãona vertical,rápida,elevemente,comoparadizerqueaindatinhamumalonga vidadiantedelesequeseveriammuitasvezes.Uminstantedepois lembrou-sedasecretáriaquevinteecincoanosantes,nomesmolugar,do mesmomodo,mandouumrecadoaseupai.Agnèsficoucomovidae perturbada. Comosedeumahoraparaoutra,numsósegundo,duasépocas distantestivessemseencontrado,comosetivessemsereencontradonum sógestoduasmulheresdiferentes.Passou-lhepeloespíritoaideiadeque elastalvezfossemasúnicasqueeletinhaamado. Depoisdojantar,nosalãoondetodosestavaminstaladosempoltronas, copodeconhaqueouxicrinhadecafénamão,corajosamenteoprimeiro convidadolevantou-se,e,comumsorriso,inclinou-sediantedadonada casa.Aessesinalquequiseraminterpretarcomoumaordem,osoutros tambémpularamdesuaspoltronas.PauleAgnèstambém,eforampegar seucarro.Pauldirigia,enquantoAgnèscontemplavaaincessanteagitação dosveículos,opiscardasluzesetodooinútilburburinhodeumanoite urbanaquenãoconheceodescanso.Então,maisumavezsentiuuma estranhaefortesensaçãoqueainvadiacadavezmais.frequentemente:ela nãotemnadaemcomumcomessascriaturasdeduaspernas,acabeça acimadopescoço,abocanorosto. Antigamente,suapolítica,suaciência,suasinvençõesatinhamcativado, eelaimaginara,umdia,representarumpequenopapelemsuagrande aventura,atéodiaemquenasceunelaasensaçãodenãoserumadelas. Essasensaçãoeraestranha,elasedefendiadelasabendoqueeraabsurda eimoral,masacabouseconvencendodequenãosepodecomandaros sentimentos:elanãopodianemseatormentarcomsuasguerras,nem alegrar-secomsuasfestas,porqueestavaimpregnadapelacertezadeque tudoissonãoeraproblemaseu. Issoquerdizerqueelatemumcoraçãoseco?Não,issonãotemnadaa vercomocoração.Aliás,semdúvida,ninguémdavamaisdinheiroaos mendigosdoqueela.Nãopodepassarindiferenteaoladodeleseeles dirigem-seaelacomoseosoubessem,percebendoimediatamenteede longe,entrecentenasdetranseuntes,aquelaqueosvêequeosescuta— sim,éverdade,masdevoacrescentar:suagenerosidadeemrelaçãoaos mendigostinhatambémumfundonegativo:Agnèslhesdáesmolanão porquefaçampartedogêneromasporquesãoestranhosaele,porquesão excluídosdelee,provavelmente,comoela,nãosejamsolidárioscomele. Anão-solidariedadecomogênerohumano:sim,éisso.Eumaúnica coisapodiatirá-ladesseafastamento:oamorconcretoporumhomem concreto.Seelarealmenteamassealguém,odestinodosoutrosdeixariade lheserindiferente,umavezqueobem-amadodependeriadessedestino, fariapartedele;eela,apartirdaí,nãopoderiamaisterasensaçãodeque osofrimentodaspessoas,suasguerrasesuasfériasnãosãoproblemas dela. Essaúltimaideiaassustou-a.Seriaverdadequeelanãogostavade ninguém?EPaul? Tornoualembrar-sedecomoeleseaproximoudelaumpoucoantes, quandoestavamsaindoparaojantar,quandotomou-aemseusbraços.É, algumacoisaestavaerrada:háalgumtempoperseguia-aaideiadeque seuamorporPaulrepousavaapenassobreumavontade:sobreavontade deamá-lo;sobreavontadedeterumcasamentofeliz.Seessavontade diminuísseuminstante,oamorvoariacomoumpassarinhoqueencontra suagaiolaaberta. Éumahoradamanhã,AgnèsePaulestãosedespindo.Setivessemde descreverodespirumdooutro,eosgestosqueadotam,ficariambem atrapalhados.Hámuitotempoquejánãoseolhammais.Oaparelhoda memóriaestádesligadoenãoregistramaisnadadaquiloqueantecedeseu deitarnacamadecasal. Acamadecasal:oaltardocasamento;equemdizaltartambémdiz sacrifício.Éláquesesacrificammutuamente:todosdoistêmdificuldadede dormirearespiraçãodeumacordaooutro;cadaumdelesdirige-separa abeiradadacama,deixandonomeioumgrandevazio;umfingedormir, naesperançadepermitirqueooutrodurma,paraquepossaadormecer virandoerevirando-sesemmedodeincomodá-lo.Infelizmente,ooutro nãopoderáaproveitarisso,estandotambémocupado(porrazões idênticas)emsimularosono,evitandomexer-se. Nãoconseguirdormireproibir-sedesemexer:acamadecasal. Agnèsdeitou-sedecostaseimagenspassamporsuacabeça:este homemamáveledesconhecido,quesabetudosobreelesmasnãosabeo queéatorreEiffel,chegounacasadeles.Agnèsdariaqualquercoisapara umaconversaasóscomele,maseleescolheudepropósitoomomento quandoosdoisestivessememcasa.Agnèsdavatratosàbolaparainventar umadesculpaquepudesseafastarPaul.Estavamostrêssentadosem poltronasàvoltadeumamesabaixa,diantedetrêsxícarasdecafé,ePaul conversavaparadistrairavisita.Agnèssópensavanomomentoemqueo homemcomeçariaaexplicarasrazõesdesuavisita.Essasrazões,elaas conhecia.Massóela,enãoPaul.Afinal,avisitainterrompeuaconversa paraentrardecheionoassunto: —Achoquevocêssabemdeondevenho. —Sim,respondeuAgnès.Elasabequeelevemdeumoutroplaneta, umplanetamuitodistantequeocupaumaimportanteposiçãonouniverso. Elogoacrescentacomumsorrisotímido: —Láémelhor? Avisitacontenta-seemlevantarosombros: —Ora,Agnès,vocêsabemuitobemondevive.Agnèsdiz: —Podeserquesejanecessárioqueamorteexista.Maselanão poderiaserinventadadeoutramaneira?Érealmentenecessáriodeixar atrásdesirestosmortaisquetemosdeenterrarouqueimar?Tudoissoé abominável! —ÉbemsabidoqueaTerraéumaabominação,respondeavisita. —Outracoisa,retomaAgnès,mesmoqueminhaperguntalhepareça boba.Osquevivemlá,ondevocêestá,têmrostos? —Não.Orostosóexisteaquiondevocêsestão. —Eosqueestãolá,comosediferenciamunsdosoutros? —Lá,porassimdizer,cadauméasuaprópriaobra.Cadauminventaseasimesmointeiramente.Édifícilexplicar.Vocêsnãopoderiam compreender. Masumdiacompreenderão.Poisvimparadizer-lhesquenuma próximavidavocêsnãovoltarãoàTerra. Claro,Agnèsjásabiaoqueavisitaialhedizerenãopodiase surpreender. MasPaulestavapasmo.Olhouavisita,olhouAgnès,quesópôde perguntar: —EPaul? —PaultambémnãovoltaráàTerra,respondeuavisita.Foiissoque vimanunciar-lhes.Nósprevenimossempreaquelesqueescolhemos. Tenhoumaúnicaperguntaafazer:—Nessapróximavida,vocêsquerem ficarjuntos,ounãoqueremmaisseencontrar? Agnèsesperavaessapergunta.Porissoqueiraterficadosozinhacomo visitante.DiantedePaul,sabequeéincapazderesponder:"Nãoquero maisvivercomele."Elanãopoderesponderissoemsuapresença,nemele emfrentedela,mesmoquesejaprovávelqueeletambémgostassede viversuaoutravidadiferentementee,porconsequência,semAgnès.Pois, dizeremvozalta,napresençaumdooutro:"Numapróximavidanão queremosmaisficarjuntos,nãoqueremosmaisnosencontrar", equivaleriaadizer:"Nenhumamorexisteentrenós,nemnuncaexistiu." Eisoqueelesnãopodemdizeremvozalta,porquetodasuavidaem comum(vinteanosjádevidaemcomum)repousasobreailusãodoamor, umailusãoquetodosdoiscultivamemantêmcomsolicitude.Elatambém sabeeimaginaacena,quandochegaaessaperguntadavisita,queirá semprecapitularequeapesardesuaaspiração,eapesardeseudesejo, acabarárespondendo: —Sim,claro.Queroquefiquemosjuntos,mesmonumaoutravida. Hoje,noentanto,pelaprimeiraveztemcertezadeencontrarcoragem, mesmonapresençadePaul,paradizeroquequer,oqueelarealmente querdofundodocoração;estácertadeencontrarcoragemmesmocomo riscodeverdesmoronartudoaquiloqueexisteentreeles.Elaouveaseu ladoumarespiraçãoprofunda.Pauladormeceu.Comoumabobina colocadanumaparelhodeprojeçãoeladesenrolamaisumaveztodaa cena:dialogacomovisitante,Paulpasmo,olha-os,eovisitantepergunta: —Numapróximavidavocêsqueremcontinuarjuntosounãoquerem seencontrar? (Écurioso:sebemquedisponhadetodasasinformaçõesarespeito deles,apsicologiaterrestrecontinuaincompreensívelparaele,anoçãodo amordesconhecida;portantonãopodesuspeitardasdificuldadesemque oscolocacomsuaperguntadiretaeprática,formuladacomamelhordas intenções.)Agnèsreúnetodasassuasforçaserespondecomavozfirme: —Preferimosnãonosencontrarmais. Eécomoseelabatesseaportadiantedailusãodoamor. SegundaParte Aimortalidade 13desetembrode1811.Jáhátrêssemanas,ajovemrecém-casada Betina,nascidaemBrentano,moracomseumarido,opoetaAchimvon Arnim,emcasadocasalGoethe,emWeimar.Betinatemvinteeseisanos; Arnim,trinta;Cristiana,amulherdeGoethe,quarentaenove;Goethetem sessentaedoisanosenemumdente.Arnimamasuajovemmulher, Cristianaamaseuvelhosenhor,eBetina,mesmodepoisdecasada,não páradeflertarcomGoethe.Nessedia,GoetheficaemcasaeCristiana acompanhaojovemcasalaumaexposição(organizadapeloamigoda família,oconselheiroáulicoMayer)emqueestãoexpostosquadros elogiadosporGoethe.MadameCristiananãocompreendeosquadrosmas guardoutãobemoqueGoethediziadeles,quesemdificuldadefezpassar comosuasasopiniõesdeseumarido.Arnimouveavozpossantede CristianaevêosóculoscolocadossobreonarizdeBetina.ComoBetina franzeonariz(àmaneiradoscoelhos),osóculosestremecem.EArnim sabebemoqueissoquerdizer:Betinaestáirritadaapontodeestar furiosa.Pressentindoatempestade,foidiscretamenteparaasalavizinha. Malsaíra,BetinainterrompeCristiana:não,elanãoestádeacordo!Na verdade,essesquadrossãoimpossíveis! Cristianatambémestáirritada,eissoporduasrazões:porumlado, apesardecasadaegrávida,ajovemaristocrataflertacomGoethesem nenhumpudor,poroutro,ocontradiz.Oqueelaespera?Ocuparo primeirolugarentreosadeptosdeGoetheeaomesmotempooprimeiro lugarentreseusopositores? Cristianaestáalteradaporcadaumadessasrazõesseparadamente, mastambémpelasduasjuntas,jáqueumaexcluiaoutrapelalógica.Assim declaraemvozaltaqueéimpossívelqualificardeimpossíveisquadrostão notáveis. AoqueBetinaretruca:nãoapenaséperfeitamentepossívelqualificálosdeimpossíveis,masaindaéprecisodeclará-losridículos!Sim,ridículos, eelaenumeraargumentosobreargumentoemapoioàsuaafirmação. Cristianaescutaeconstataquenãocompreendeabsolutamentenada doqueessamoçalhefala.QuantomaisBetinaseexalta,maisusapalavras queaprendeucomosamigosdesuaidade,jovensquefrequentaramas universidades,eCristianabemsabequeelaasempregaprecisamente porquesão incompreensíveis.Elaolhaparaonarizondetrememosóculos,epensa queessesóculoseessaspalavrasincompreensíveiscombinam perfeitamente.OsóculosnonarizdeBetinamerecematenção!Ninguém ignoraqueGoethecondenavaousodeóculosempúblicocomosinalde maugosto,comoextravagância.SeBetinaosusaassimmesmo,emplena Weimar,éparamostrar,cominsolênciaeporprovocação,suainclusãona novageração,essaqueprecisamentedistingue-sepelasconvicções românticasepelousodeóculos. Quandoalguém,comorgulhoeostentação,proclamasuafiliaçãoànova geração,sabemosbemoqueelequerdizer:querdizerqueaindaestará vivoquandoosoutros(nocasodeBetina,GoetheeCristiana)estarão mortoseenterrados. Betinafala,exalta-secadavezmais,ederepenteamãodeCristiana voanoar.Noúltimomomentoelapercebequenãoénadaeducadodarum tapanumaconvidada.Refreiaseugesto,esuamãoapenasroçaatestade Betina.Osóculoscaemnochãoesequebramemmilpedaços.Emvolta deles,constrangidas,aspessoasviram-separaolhar,estateladas;dasala vizinhaapareceopobreArnimque,nãoencontrandonadamaisinteligente afazer,abaixa-separajuntarospedaços,comosequisessecolá-los. Durantemuitashoras,todomundoesperacomansiedadeoveredicto deGoethe.Quandosouberdetudo,dequemtomarápartido? GoethetomapartidoporCristianaefechadefinitivamentesuaportaao jovemcasal. Quandoumcoposequebra,issotrazsorte.Quandoumespelhose quebra,podemosesperarseteanosdeinfelicidade.Equandoosóculos voamempedaços?Éaguerra.Betinaproclamaemtodosossalõesde Weimarque"asalsichonaenlouqueceuedeu-lheumamordida",afrase corredebocaembocaeWeimarinteirariàslágrimas.Essafraseimortal aindaecoaemnossosouvidos. Aimortalidade.Goethenãotinhamedodessapalavra.EmseulivroMa vie,quetemocélebresubtítuloDichtungundWahrheit,Poesiaeverdade, elefalasobreacortinaque,rapazdedezenoveanos,contemplava avidamentenonovoteatrodeLeipzig.Sobreofundodacortinaestavam representados(citoGoethe)derTempeldesRuhmes,oTemplodaGlória,e diantedeletodososgrandesdramaturgosdetodosostempos.Nomeio deles,semdaratençãoaosoutros,"umhomemvestindoumaroupaleve dirigia-sediretamenteaoTemplo;estavadecostasenadatinhade extraordinário.EraShakespeareque,semprecursores,indiferenteaos grandesmodelos,caminhavasozinhoaoencontrodaimortalidade". ÉclaroqueaimortalidademencionadaporGoethenadatemavercom aimortalidadedaalma.Trata-sedeumaoutraimortalidade,profana,para aquelesquepermanecemdepoisdemortosnamemóriadaposteridade. Qualquerpessoapodeesperarporessaimortalidade,maioroumenor, maisoumenoslonga,edesdeaadolescênciapensanisso.Quandoeuera menino,aosdomingosiapassearnumacidadedaMorávia,onde,dizia-se,o prefeitoguardavaemsuasalaumcaixãodedefuntoaberto,dentro,do qual,nosmomentosdeeuforiaouquandosentia-seexcepcionalmente satisfeitoconsigomesmo,deitava-seimaginandoseuenterro.Nuncaviveu nadadetãobeloquantoessesmomentosdesonhonofundodeumcaixão: viviasuaimortalidade. Diantedaimortalidadeaspessoasnãosãoiguais.Éprecisodistinguir apequenaimortalidade,recordaçãodeumhomemnoespíritodaquelesque oconheceram(aimortalidadecomquesonhavaoprefeitodacidadeda Morávia),eagrandeimortalidade,recordaçãodeumhomemnoespírito daquelesquenãooconheceram.Existemcarreirasque,porprincípio, confrontamumhomemcomagrandeimortalidade,incerta,éverdade,até improvável,masincontestavelmentepossível:sãoascarreirasdeartistae dehomemdeEstado. DetodososhomensdeEstadoeuropeusdenossotempo,semdúvida FrançoisMitterrandéaquelequedeumaiorlugaràimortalidadeemseus pensamentos.Lembro-medainesquecívelcerimôniaorganizadaem1981 depoisdesuaeleiçãoàpresidência.NapraçadoPantheonestavareunida umamultidãoentusiasta,daqualelesedistanciou:subiuagrandeescada (exatamentecomoShakespearedirigindo-seaoTemplodaGlória,comona cortinadescritaporGoethe),comtrêsrosasnamão.Depois, desaparecendoaosolhosdopúblico,absortonosseuspensamentos, postou-sesozinhoentreostúmulosdesessentaequatromortosilustres, nãosendoseguidonessasolidãosenãoporumcâmera,umaequipede cineastasealgunsmilhõesdefrancesesque,sobodilúviodaNonade Beethoven,olhavamfixosatelevisão.Colocouasrosassucessivamentenos túmulosdostrêsmortosquetinhaescolhidoentretodos.Comoum agrimensor,plantouessastrêsrosascomotrêsestacasnoimensocanteiro deobrasdaeternidade,paradestaformadelimitarotriângulonomeiodo qualergueriaseupalácio. ValéryGiscardd'Estaing,seupredecessornapresidência,em1974 convidouosgarisparaseuprimeirocafédamanhãnopaláciodos CamposElísios.Essegestoeradeumburguêssensível,preocupadoemser amadopelaspessoassimpleseemfazê-lasacharqueeraumdeles. Mitterrandnãoeratãoingênuoapontodequererseparecercomosgaris (nenhumpresidentepodepretenderisso);queriaparecercomosmortos, oquedemonstraumasabedoriamaior,poisamorteeaimortalidade formamumaduplainseparável,aquelecujorostoseconfundecomorosto dosmortoséumimortalvivo. OpresidenteamericanoJimmyCartersempremefoisimpático,masfoi quaseamoroquesentiporeleaovê-lo,nateladatelevisão,protegidopor umagasalho,seguidoporumgrupodecolaboradores,treinadorese seguranças;derepenteosuorinundousuatesta,seurostocontraiu-se, seuscolaboradoresinclinaram-sesobreele,carregando-onocolo:uma pequenacrisecardíaca. Ojoggingdeveriaforneceraopresidenteaocasiãodemostraraopovo suaeternajuventude;cinegrafistasforamconvidadosparaissoenãoera culpadelessetiveramquenosmostrar,emlugardeumatleta transbordantedesaúde,umhomemenvelhecidoeazarento. Ohomemdesejaaimortalidade,eumdiaacâmeranosmostrasua bocadeformadaporumatristecareta,únicacoisaquenosrestarádelee quesetransformaránaparáboladetodasuavida;eleentrarána imortalidadeditarisível. TychoBrahéeraumgrandeastrônomo,mashojenãolembramosmais nadadele,salvoporessecélebrejantarnacorteimperialdePragaemque elerefreoupudicamentesuavontadedeiraobanheiro,atéquesuabexiga explodiueele,mártirdavergonhaedaurina,foiprontamentejuntar-se aosimortaisrisíveis. Juntou-seaelescomomaistardeCristianaGoethetransformadapara sempreemsalsichonalouca.Nãoconheçonomundoromancistaqueme sejamaiscarodoqueRobertMusil.Elemorreuumamanhãlevantando halteres.Agoraquandovoulevantá-los,antestomomeupulsocom angústiaetenhomedodemorrer,poismorrercomumhalteresnamão, comomeuqueridoautor,fariademimumimitadortãoinacreditável,tão frenético,tãofanático,queaimortalidaderisívelmeestariaimediatamente garantida. ImaginemosquenaépocadoimperadorRodolfoexistissemascâmeras (essasqueimortalizaramCarter)equetivessemfilmadoojantarnacorte emqueTychoenroscava-seemsuacadeira,empalidecia,cruzavaas pernas,reviravaobrancodosolhos.Seeletivessepodidosaberqueestava sendoobservadoporalgunsmilhõesdeespectadores,seusofrimentoteria sidodezvezesmaioreorisoressoariaaindamaisfortenoscorredoresde suaimortalidade.Opovo,queprocuradesesperadamenterazõespara ficaralegre,certamenteexigiriaquesepassasseemcadaréveillonofilme sobreoilustreastrônomoquetiveravergonhadefazerpipi. Essaimagemsuscitaemmimumapergunta:naépocadascâmeras, seráqueaimortalidademudoudecaracterística?Nãohesitoem responder:nofundo,não;poisaobjetivafotográfica,antesdeser inventada,jáexistiacomosuaprópriaessênciaimaterializada.Semque nenhumaobjetivarealestivessedirigidasobreelas,aspessoasjáse comportavamcomosefossemfotografadas.Jamaisumbandodefotógrafos correuatrásdeGoethe,mascorriamassombrasdosfotógrafosprojetadas sobreelevindasdaprofundezadofuturo.Foiassim,porexemplo,durante seucélebreencontrocomNapoleão.Noaugedesuacarreira,oImperador dosfrancesestinhareunidoemErfurttodososchefesdeEstadoeuropeus afimdeinteirá-losdadivisãodepoderentreelepróprioeoImperador dasRússias. Nesseparticular,Napoleãoerabemfrancês:algumascentenasde milharesdemortosnãobastavamparasatisfazê-lodesejava,alémdisso,a admiraçãodosescritores.Perguntouaseuconselheiroculturalquaiseram asmaisaltasautoridadesespirituaisdaAlemanhacontemporânea;o conselheiromencionou,emprimeirolugar,umcertosenhorGoethe. Goethe!Napoleãobateunatesta:OautordosSofrimentosdojovem Werther!DuranteacampanhadoEgito,umdiaconstataraqueseusoficiais estavammergulhadosnesselivro.Comoeletambémoconhecia,foitomado defúria.Censurouviolentamenteosoficiaisporleremfrivolidades sentimentaiseproibiu-osdeumavezportodasdeabrirumromance. Qualquerromance.Quelessemlivrosdehistória,muitomaisúteis!Mas nessaocasião,contentedesaberquemeraGoethe,decidiuconvidá-lo.Fez issocommaisprazeraindaporque,segundoseuconselheiro,Goetheera famososobretudocomodramaturgo.Aocontráriodosromances,oteatro erafavorecidoporNapoleãoporquelembrava-lheasbatalhas.Porserele mesmoumgrandeautordebatalhas,tantoquantoumdiretordecena inigualável,emseuforoíntimoestavaconvencidodeseromaiorpoeta trágicodetodosostempos,maiorqueSófocles,maiorqueShakespeare. Oconselheiroculturaleraumhomemcompetente,quenoentanto muitasvezesseconfundia.ÉverdadequeGoetheseocupavamuitodo teatro,massuaglórianãoerapropriamentedesuaspeças.Semdúvidao conselheirodeNapoleãooconfundiacomSchiller!Afinaldecontas,como SchillereramuitoligadoaGoethe,nãoeratãoincongruenteassimfazer dosdoisamigosumsópoeta;talvezmesmooconselheiroagissecompleno conhecimentodecausa,numlouvávelempenhopedagógico,criandopara Napoleão,comosíntesedoclassicismoalemão,apessoadeumFriedrich WolfgangSchilloethe. QuandoGoethe(semdesconfiarqueeraSchilloethe)recebeuoconvite, compreendeuimediatamentequedeviaaceitar.Chegavaaossessenta anos.Amorteaproximava-seecomelaaimortalidade(poisamorteea imortalidade,comojádisse,formamumaduplaindivisível,maisbelaque MarxeEngels,queRomeueJulieta,queLaureleHardy)eGoethenão podialevarnabrincadeiraoconvitedeumimortal.Apesardemuito ocupadocomsuaTeoriadascores,queeleconsideravacomoomáximode suaobra,deixouseumanuscritoepartiuparaErfurt,ondeem2de outubrode1808deu-seoencontroinesquecívelentreumpoetaimortale umimortalestrategista. Acompanhadopelassombrasagitadasdosfotógrafos,guiado peloajudante-de-ordensdeNapoleão,Goethesobeagrandeescada,epor umaoutraescadaeoutroscorredores,dirige-seaumagrandesalano fundodaqualNapoleão,sentadoàmesa,tomaseucafédamanhã.Em tornodeleformigavamhomensuniformizadosqueentregam-lherelatórios eoestrategistalhesrespondesemparardemastigar.Algunsinstantes passamatéqueoajudante-de-ordensousemostrarGoethe,que permaneceimóvel,àdistância.Napoleãolevantaosolhos,deslizaamão direitasobseudólmã,apalmacontraoestômago.Éumgestoquetemo hábitodefazerquandoestácercadoporfotógrafos.Apressando-seem engolir(porquenãoébomserfotografadocomorostodeformadopela mastigação,hajavistaamaldadedosfotógrafosqueadoramessegênero defotografias),eleproferiuemvozaltaparaquetodospudessemouvir: —Eisumhomem! Éexatamenteoquesechama,hoje,naFrança,uma"pequenafrase".Os políticospronunciamlongosdiscursosrepetindo,semnenhum constrangimento,sempreamesmacoisa,sabendoquedequalquer maneiraopúblicoconheceráapenasalgumaspalavrascitadaspelos jornalistas;parafacilitar-lhesatarefa,paramanipulá-losumpouco,eles inseremnessesdiscursoscadavezmaisidênticosumaouduasfrasesque nuncahaviamdito;istoétãoinesperado,tãoespantoso,que instantaneamenteapequenafrasetorna-secélebre.Hoje,aartepolítica nãoconsisteemgerirapólis(essasegeraporsimesma,segundoalógica deseumecanismoobscuroeincontrolável),maseminventarpequenas frasespelasquaisohomempolíticoserávistoecompreendido,votadonas sondagens,eleitoounãoeleito.Goetheaindanãoconheceanoçãode "pequenafrase"mas,comonósjásabemosdisso,ascoisasestãoláemsua essênciaantesdeseremmaterialmenterealizadas.edenominadas.Goethe compreendequeNapoleãoacabadeproferirumapequenafrasesoberba; "pequenafrase"queseráútilaambos.Encantado,aproxima-sedamesa. Pensemoquequiseremdaimortalidadedospoetas,osestrategistas sãoaindamaisimortais:éportantojustoqueNapoleãointerrogueGoethe enãoocontrário. —Queidadeosenhortem?Perguntaele. —Sessentaanos,respondeGoethe. —Osenhorestábem-dispostoparasuaidade,dizNapoleãocom respeito(eletemvinteanosmenos),eGoetheempertiga-se.Aoscinquenta anoselejáerabemgordo,enãoligavaparaseuqueixoduplo.Mascomo correrdosanos,conheceuomedodamorte,enamesmahoraomedode entrarnaimortalidadecomumahorrívelbarriga.Porissodecidiu emagrecerelogovoltouaserumhomemesbelto,cujaaparência,semser bela,podeaomenosevocaralembrançadeumabelezapassada. —Osenhorécasado?PerguntaNapoleãocomsincerointeresse. —Sim,respondeGoethe,inclinando-seligeiramente. —Etemfilhos? —Umfilho. Nisso,umgeneralaproxima-sedeNapoleãoparacomunicar-lheuma notíciaimportante.Napoleãocomeçaapensar.Retirasuamãodedebaixo dodólmã,pegaumpedaçodecarnecomogarfo,leva-oatéaboca(acena nãoémaisfotografada)erespondemastigando.Sónofimdeummomento voltaalembrar-sedeGoethe.Comuminteressesinceropergunta-lhe: —Osenhorécasado? —Sim,respondeGoetheinclinando-seligeiramente. —Etemfilhos? —Umfilho. —EoseuCarlosAugusto?DizNapoleãoinesperadamentedisparando sobreGoetheonomedosoberanodeWeimarqueevidentementeelenão aprecia. Goethenãoquerfalarmaldeseupríncipe,masnãoquerendotambém contradizerumimortal,eleretrucacomumahabilidadeinteiramente diplomáticaqueCarlosAugustofezmuitopelasciênciasepelasartes.A alusãoàsartesofereceaoimortalestrategistaaocasiãodelevantar-seda mesa,detornaracolocaramãosobodólmã,deavançaralgunspassosem direçãoaopoeta,ededesenvolverdiantedelesuasideiassobreoteatro. Imediatamenteoinvisívelbandodefotógrafosagita-se,osaparelhos crepitam,eoestrategistaqueseafastacomopoetaparaumdiálogoínfimo temquelevantaravozparapoderserouvidonasala.PropgéaGoethe escreverumapeçasobreaconferênciadeErfurt,poiseladeverágarantir, enfim,àhumanidade,afelicidadeeapaz. —Oteatro,acrescentaeleemvozalta,deveriatornar-seaescolado povo! (Eisasegundapequenafrase,quemereceriaserdivulgadapela televisãologonodiaseguinte.) —Eseriaoportuno,continuouelemaissuavemente,dedicarapeçaao CzarAlexandre.(PoisédelequetrataaconferênciadeErfurt!Édeleque Napoleãoquersefazerumaliado!)DepoisinfligeaSchilloetheuma pequenaliçãodeliteratura,masinterrompidoporumdosseusajudantesde-ordensperdeofio.Naesperançadeencontrá-lo,repetemaisduas vezes,semlógicanemconvicção,queoteatroéaescoladopovo,depois (pronto!Atéqueenfim! Tornouaencontrarofio!)elechega&MortedeCésar,deVoltaire.Belo exemplo,segundoele,deumpoetaqueperdeuaocasiãodetornar-seo educadordopovo.Suatragédiadeveriatermostradoumgrande estrategistatrabalhandopelobem-estardogênerohumano,masimpedido porumamorteprematuraderealizarseusnobrespropósitos. Asúltimaspalavrasressoarammelancolicamente,eoestrategistaolha opoetadiretamentenosolhos.—Eisumgrandeassuntoparaosenhor! Massãointerrompidosdenovo,osgeneraisentramnasala.Napoleão tirasuamãodedebaixododólmã,sentaemsuamesa,pegaumpedaçode carnecomseugarfoecomeçaamastigarescutandoosrelatórios.As sombrasdosfotógrafosdesapareceram.Goetheolhaemtorno,páraem frentedosquadros.Depois,aproximando-sedoajudante-de-ordensqueo acompanhara,perguntaseaaudiênciaterminara.Oajudante-de-ordens dizsim,ogarfodeNapoleãolevanta-seeGoethevaiembora. BetinaerafilhadeMaximilianeLaRoche,amulherporquemGoethe foraapaixonadoaosvinteetrêsanos.Abstraindo-sedealgunscastos beijos,eraumamorimaterial,puramentesentimental,quetiveratão poucasconsequênciasqueamãedeMaximilianetinha,emtempo oportuno,casadosuafilhacomoricocomercianteitalianoBrentano; quandoesteviuqueojovempoetatinhaintençãodecontinuaroflertecom suamulher,expulsou-odesuacasacomaproibiçãodetornaracolocaros pésali.Maximilianetevedozefilhos(seuinfernalmachoitalianoprocriou vinteaotodo!),entreelesumachamadaElizabeth;eraBetina. Betinasentira-seatraídaporGoethedesdeamaistenrainfância.Não apenasporqueaosolhosdetodaaAlemanhaeleestavaacaminhodo TemplodaGlória,mastambémporquesouberadahistóriadeamorde Goetheporsuamãe. Interessou-seapaixonadamenteporesseantigoamor,tãofascinante quantodistante(meuDeus,remontavaatrezeanosantesdonascimento deBetina!)epoucoapoucoocorreu-lheaideiadequeelatinhadireitos secretossobreograndepoeta,dequem,nosentidometafórico(quemmais doqueumpoetadeverialevarasérioasmetáforas?)elaseconsiderava filha. Oshomens,comosabemos,têmumatendêncialastimávelafugirdas obrigaçõespaternas,anãopagaraspensõesalimentícias,anegara paternidade. Recusam-seacompreenderqueacriançaéaessênciadetodoamor, mesmosenãoérealmenteconcebidaepostanomundo.Naálgebra amorosa,ofilhoéosinaldeumasomamágicadedoisseres.Mesmo amandoumamulhersemtocá-la,umhomemdevecontarcoma possibilidadedequeseuamorsejafecundoequeofrutosóapareçatreze anosdepoisdoúltimoencontrodosnamorados.Eramaisoumenosissoo queBetinadeviaterpensadoantesdeousariraoencontrodeGoethe,em Weimar.Eranaprimaverade1807.Elatinhavinteedoisanos(querdizer, amesmaidadequeelequandocortejavasuamãe),esentia-sesempre criança.Essasensaçãomisteriosamenteaprotegia,comoseainfância fosseseuescudo. Abrigar-secomoescudodainfânciaeraodisfarcedetodasuavida. Seudisfarce,mastambémsuanatureza,porquedesdecriançabrincavade criança. EstavasempreumpoucoapaixonadaporClemensBrentano,seuirmão maisvelho,esentava-secomalegrianoseucolo.Então(tinhanaépoca quatorzeanos)jáestavanamesmasituaçãodesaborearacondiçãotrês vezesambíguadecriança,deirmãedemulhersedentadeamor.É possívelexpulsarumacriançadeseucolo?NemGoetheseriacapazde fazê-lo. Elasentou-senoseucolonomesmodiaemqueseencontrarampela primeiravez,em1807,sepelomenosdermoscréditoaoqueelamesma contoumaistarde:primeiroinstalou-senosofáemfrenteaGoethe;com momentâneatristezaelefalavasobreaduquesaAméliaquemorrera poucosdiasantes.Betinadissequenãosouberadenada."Como! Espantou-seGoethe,avidadeWeimarnãolheinteressa?"EBetina:"Nada meinteressaanãoserosenhor."Sorrindoparaamoça,Goethe pronunciouestafrasefatal:"Vocêéumacriançaencantadora."Assimque ouviuapalavra"criança"Betinasentiutodoseumedodesaparecer:"Não possocontinuarnestesofá",disseelaficandodepé."Fiqueàvontade", disseGoethe,eBetina,precipitando-se,sentou-seemseucolo.Eladeveter sentidoumatalsensaçãodeconforto,aconchegadanele,quelogo adormeceu. Édifícilafirmarsetudosepassoudessemodo,ouseBetinanos engana,masseelanosengana,melhorainda:assimpodemos compreenderqueimagemelaqueriaoferecerdesimesmaequalerao seumétodoparaabordaroshomens:àmaneiradeumacriança,tinhasido deumaimpertinentesinceridade(aodeclararqueamortedaduquesa era-lheindiferente,aoacharincômodoosofáondediversaspessoasantes delatinhamsesentado,sentindo-sehonradas);comoumacriança,atirousenopescoçodeGoethe,sentou-seemseusjoelhoseparaculminar:à maneiradeumacriança,dormiunocolodele. Nadaémaisvantajosodoqueadotarumcomportamentoinfantil:ainda inocenteeinexperiente,acriançapodesepermitiroquequer;nãotendo aindaentradonomundodaforma,elanãoéforçadaaobservarasregras deboaconduta;podeexpressarseussentimentossemsepreocuparcom asconveniências.AspessoasqueserecusavamaveracriançaemBetina achavamqueelaerameiomaluca(umdia,movidaapenaspelosentimento dealegria,tinhadançadonoquarto,caíraeabriraatestanabeiradade umamesa),mal-educada(nasala,preferiasempresentarnochão)e, sobretudo,irremediavelmenteafetada.Emcompensação,aquelesque aceitavamvê-lacomoumaeternacriançaficavamencantadoscomsua espontaneidadeinteiramentenatural. Goetheficoucomovidocomacriança.Comolembrançadesuaprópria juventude,ofereceu-lheumbeloanel.E,namesmanoite,anotou laconicamenteemseucaderno:MamselBrentano. Quantasvezesessesamantescélebres,GoetheeBetina,se encontraram? Elaveiovê-lonooutonodomesmoanode1807epassoudezdiasem Weimar. Depoissóoreviuapóstrêsanos,duranteumacurtavisitadetrêsdias aTeplitz,umaestaçãodeáguasdaBoêmiaqueGoethefrequentava,fato queelaignorava. UmanomaistardeocorreuavisitafatalaWeimarquando,duas semanasapóssuachegada,seusóculosespatifaram-senochão. Equantasvezesficaramrealmenteasós,num"tête-à-tête"?Três, quatrovezes,nãomaisdoqueisso.Quantomenosseviam,maisse escreviam,ouantes,paraserpreciso:elalheescrevia.Dirigiu-lhe cinquentaeduaslongascartas,emqueotratavadevocêesófalavade amor.Masapesardaavalanchedepalavras,nadarealmenteaconteceue podemosnosperguntarporqueahistóriadeamordosdoisficoutão célebre. Eisaresposta:elaficoucélebredestaformaporquedesdeocomeço tratava-sedeoutracoisaenãodeamor. Goethenãodemorouadescobrir.Preocupou-se,pelaprimeiravez, quandoBetinacontou-lheque,muitoantesdesuasvisitasaWeimar,ficara íntimadesuamãeque,comoela,moravaemFrankfurt.Quissabertudo sobreele,eavelhasenhora,envaidecidaeencantada,passoudiasinteiros contando-lhesuaslembranças.Betinaesperavaqueaamizadedamãelhe abrisserapidamenteacasadeGoethe,assimcomotambémseucoração. Nãofoimuitofeliznessecálculo.Goetheachavaligeiramentecômicaa adoraçãoquelhedevotavasuamãe(nuncaiavê-laemFrankfurt)e,na aliançadeumafilhaextravagantecomumamãeingênua,farejavaperigo. QuandoBetinacontavaashistóriasdavelhasenhora,imaginoqueele tivessesentimentosconfusos.Aprincípio,claro,ficavaenvaidecidocomo interessequelhedevotavaamoça.Suasconversasdespertavamnelemil lembrançasesquecidasqueoencantavam.Elelogodescobriuhistóriasque nãopoderiamteracontecido,ouqueomostravamsobumaspectotão ridículoquenãodeviamteracontecido. Alémdisso,todasuainfância,todasuajuventudetomavamnosrelatos deBetinaumacoroumesmoumsentidoquelhedesagradavam.Nãoque Betinaquisesseutilizarcontraelesuaslembrançasdeinfância;mastodo mundo(nãoapenasGoethe)achairritantequesuavidasejacontada segundoumaoutrainterpretaçãoquenãoasua.TantoqueGoethe experimentouumasensaçãodeameaça:essamoçaquecirculavaentreos intelectuaisjovensdomovimentoromântico(Goethenãotinhaamenor simpatiaporeles)eraameaçadoramenteambiciosaetomava-se(comuma naturalidadequebeiravaodespudor)porumafuturaescritora.Umdia, aliás,elalhedissesemrodeios:queriaescreverumlivroapartirdas recordaçõesdasuamãe.Umlivrosobreele,sobreGoethe!Nesseinstante, atrásdosprotestosdeamor,eleenxergouaagressividadedessapenae começouaseprecaver. Maspelofatodeestaremguarda,proibia-sedeserdesagradável.Era perigosademaisparaqueelepudessepermitir-sefazerdelaumainimiga; melhorseriamantê-laconstantementesobumamávelcontrole,sem exagerartambémaamabilidade,poisomenorgestopoderiaser interpretadocomoumindíciodeumaconivênciaamorosa(aosolhosde Betina,mesmoumespirropoderiapassarporumadeclaraçãodeamor), poderiamultiplicaraindapordezasaudáciasdamoça. Umdiaelaescreveu-lhe:"Nãoqueimeminhascartas,nãoasrasgue; issopoderiaserruimparavocê,porqueoamorqueexpressonelasestá ligadoavocê,firmemente,solidamente,demaneiraviva.Masnãoas mostreaninguém. Guarde-asescondidascomoumabelezasecreta."Elecomeçouasorrir comcondescendência,porvê-latãoseguradasbelezasdesuascartas,mas emseguidaficouintrigadocomafrase:"Nãoasmostreaninguém!"Por queessaproibição? Comoseeletivessevontadedemostrá-lasaalguém!Peloimperativo nãomostre,Betinarevelavaumdesejosecretodemostrar. Compreendendoqueascartasqueelelhedirigiadetemposemtempos poderiamteroutrosleitores,via-senasituaçãodeumacusadoadvertido pelojuiz:apartirdeagoratudoquevocêdisserpoderáserutilizado contravocê. Portantoesforçou-seemtraçarentreaafabilidadeeacircunspecção umcaminhointermediário:emrespostaàssuascartascheiasdeêxtase enviavabilhetesaomesmotempoamistososecontidos;aseutratamento devocê,durantemuitotempoopôsosenhora;seseencontravamna mesmacidade,eletestemunhava-lheumacordialidadeinteiramente paternal,convidava-aparasuacasa,masdepreferêncianapresençade outraspessoas. Então,dequesetratava? Betinaescreveu-lheumacarta:"Tenhoafirmeefortevontadedeamáloeternamente".Leiacomatençãoessafraseaparentementebanal.Bem maisdoqueapalavra"amar"importamaspalavras"eternamente"e "vontade". Nãoireiprolongarmaisessesuspense.Nãosetratavadeamor. Tratava-sedeimortalidade. Em1810,duranteostrêsdiasemqueoacasoosreuniuemTeplitz,ela confiouaGoethequeembrevesecasariacomopoetaAchimvonArnim. Provavelmentedisseissoumpoucoembaraçada,commedoqueele considerasseessecompromissomatrimonialcomoumatraiçãoaesse amordeclaradocomtantoêxtase.Suainsuficienteexperiênciacomos homensnãolhepermitiapreverasecretaalegriaquetalnotíciapoderia proporcionaraGoethe. AssimqueBetinapartiu,escreveuumacartaparaCristianaemquese podialerestafrasecheiadealegria:"MUArnimistswohlge-wiss."Com Arnimétranquilo.Namesmacartaelealegrava-sedeverBetina "realmentemaisbonitaemaisagradáveldoqueantes",eadivinha-sepor queelaparecia-lheassim:Goetheestavacertodequeaexistênciadeum maridooporiadaíemdianteaoabrigodasextravagânciasqueatéentãoo haviamimpedidodeapreciarosencantosdeBetinacomserenidadeebom humor. Paracompreenderbemasituaçãoéprecisonãoesquecerum componentefundamental:Goetheforadesdesuaprimeirajuventudeum homemmulherengo,portantoeraassimquarentaanosdepoisquando conheceuBetina;durantetodoessetempoaperfeiçoara-seneleum mecanismodegestosereflexossedutoresqueaomenorimpulsose punhamemmovimento.Atéentão,nãosemesforço,éprecisoquesediga, eraforçadoempresençadeBetinaamanteressemecanismoimóvel.Mas quandocompreendeuque"comArnimétranquilo"pensoucomalívioque daíemdianteaprudêncianãoeramaisnecessária. Ànoite,elaveioencontrá-loemseuquarto,comosemprecomum trejeitoinfantil.Contandoinconveniênciasencantadoras,elasentou-seno chãoemfrenteàpoltronaemqueGoetheseinstalara.Comoeleestavade excelentehumor("comArnimétranquilo"!)inclinou-sesobreelapara acariciar-lheorostocomoseacariciaumacriança.Nesseinstanteacriança parouseufalatórioeolhouparaelecomolhoscheiosdeexigênciase desejosinteiramentefemininos. Segurando-lheasmãos,obrigou-aalevantar-se.Fixemosbemacena: elecontinuavasentado,elaestavapertodele,enovãodajanelaosolse punha. Olhavam-senosolhos,amáquinadeseduzirestavaemmovimentoe Goethenãofazianadaparadesligá-la.Comumavozumpoucomaisbaixa doqueemoutrasocasiõesesemdespregarosolhosdela,pediu-lheque desnudasseosseios.Elanãodissenada,nãofeznada;enrubesceu.Ele levantou-sedapoltronaedesabotoouseuvestidonaalturadopeito. Imóvel,elacontinuavacomseusolhosnosolhosdele,eovermelhodopôrdo-solmisturava-senasuapelecomoruborqueacobriadatestaatéo estômago.Elecolocouamãosobreseuseio:"Alguémjamaistocouseu seio?"Perguntouele."Não",respondeuela."Eétãoestranhoquevocême toque..."eelanãodesviavaosolhosdosseusuminstante.Amãosempre sobreseuseio,eletambémaolhava,dentrodosolhos,eprofundamente, longamente,comavidezobservavaopudordeumamoçaaquemninguém jamaistocaraoseio. EisaproximadamenteacenacomofoianotadapelaprópriaBetina, cenaque,provavelmente,nãotevenenhumasequência;nahistóriadeles, maisretóricadoqueerótica,elabrilhacomoumaúnicaeesplêndidajóia deexcitaçãosexual. Mesmoquandologodepoissedistanciaramumdooutro,guardaramo vestígiodessemomentoencantado.Nacartaseguinteaoencontro,Goethe chamou-a"allerliebste",amaisqueridadetodas.Portanto,elenão esqueceraaessênciadesseencontroe,desdeaprimeiracartaenviadaem seguida,paracontar-lhequecomeçaraaescreversuasMemórias,Poesiae Verdade,elepediaqueelaoajudasse:suamãenãoestavamaisneste mundo,ninguémmaisselembravadeseusanosdejuventude.Mas durantemuitotempoBetinafizeracompanhiaàvelhasenhora:elaéquem deveriatranscreveroquelheforacontado,eraelaquemdeveriaenviar issoaGoethe. SeráquenãosabiaqueBetinapretendiapublicarumlivrosobrea infânciadeGoethe?Quejáestavamesmoementendimentoscomum editor?Claroqueelesabia!Apostoqueelefezessepedidonãoporuma exigênciareal,masparaimpossibilitá-ladepublicarqualquercoisasobre ele.Fragilizadapelosortilégiodoúltimoencontro,commedotambémde queseucasamentocomArnimaafastassedeGoethe,elacedeu.Ele conseguiudesarmá-lacomosedesarmaumabomba. Depois,emsetembrode1811,BetinaveioaWeimaracompanhadade seujovemmarido,dequemestavagrávida.Nadadámaisalegriadoque encontrar-seumamulher,atéentãoperigosa,masque,desarmada,não provocamaisnenhummedo.Ora,Betina,emboragrávida,emboracasada, emboraimpedidadeescreverseulivro,nãoseconsideravadesarmadae nãopretendiaabsolutamentecessarocombate.Quemecompreendam bem;nãoocombatepeloamor,maspelaimortalidade. QueGoethetenhapensadonaimortalidade,suaidadepermitiatal suposição.MasseráqueumamulhertãomoçaquantoBetina,etãopouco conhecida,teriatidoomesmopensamento?Evidentemente.Sonha-secom aimortalidadedesdeainfância.Alémdisso,Betinapertenciaàgeraçãodos Românticos,deslumbradospelamortedesdeodiadonascimento.Novalis nãochegouaostrintaanosdeidade,masapesardesuajuventude,nada, provavelmente,oinspiroumaisdoqueamorte,amortefeiticeira,amorte transmutadanaembriaguezdapoesia.Todosviviamnatranscendência,no superar-seasi,asmãosestendidasparaoinfinito,paraofinaldesuas vidas,emesmoparaoalém,emdireçãoàimensidãodonão-ser.Comojá disse,ondequerqueestejaamorte,aimortalidade,suacompanheira,está comela,eosRomânticosatratamcomdespudoradaintimidade,assim comoBetinatratavaGoethe. Essesanos,entre1807e1811,foramosmaisbelosdesuavida.Em Viena,em1810,fezumavisitainesperadaaBeethoven.Assimconheceuos doisalemãesmaisimortaisdetodos,nãoapenasobelopoetamastambém ofeiocompositor,eflertoucomosdois.Essaduplaimortalidadea embriagava.Goethejáestavavelho(naépoca,umsexagenárioera consideradoumvelho)emagnificamentemaduroparaamorte;maltendo quarentaanosnessaépoca,Beethovensemsabê-loestavacincoanosmais próximodotúmulodoqueGoethe.Betinaaninhava-seentreelescomoum anjinhodelicadoentreduasenormescolunasnegras.Eramaravilhosoea bocadesdentadadeGoethenãoaincomodavaabsolutamente.Ao contrário,quantomaisvelhoeleera,maisaatraía,porquequantomaisse aproximavadamorte,maiseleseaproximavadaimortalidade.Sóum Goethemortoestariaemcondiçõesdetomá-lafirmementepelamãoe conduzi-laparaoTemplodaGlória.Quantomaiseleseaproximavada morte,menoselapretendiarenunciaraele. Porissonessefatalmêsdesetembrode1811,sebemquecasadae grávida,fazia-semaisdoquenuncadecriança,falavaaltoeforte,sentavasenochão,namesa,nabeiradadacômoda,nolustre,subianasárvores, deslocava-sedançando,cantavaquandoosoutrosconversavam gravemente,expressava-secomgravidadequandoosoutroscantavam,e procuravacustasseoquecustasseaoportunidadedeumtête-à-têtecom Goethe.Noentanto,nodecorrerdessasduassemanassóconseguiuficara sóscomeleumavez.Segundocontam,oencontroocorreumaisoumenos assim: Eranoite,estavamsentadospertodajanelanoquartodeGoethe.Ela começouafalardaalma,depoisdasestrelas.Goethelevantouosolhosem direçãoaocéuemostrou-lheumgrandeastro.MasBetinaeramíopeenão vianada.Eleestendeu-lheumtelescópio:"Vocêtemsorte,olhaláMercúrio. Nesteoutonopodemosvê-lomuitobem."MasBetinasonhavacomas estrelasdosapaixonados,nãocomasestrelasdosastrônomos:colocandoo olhonotelescópio,ela,depropósito,nãoviunadaedeclarouqueaslentes estavammuitofracas.Pacientemente,Goethefoibuscarumtelescópiomais possante.Maisumavezpôsoolhoneleemaisumavezdissequenãovia nada.OqueincitouGoetheafalar-lhedeMercúrio,deMarte,dosplanetas, doSoledaVia-láctea.Faloulongamente,equandoterminou,Betina, pedindoqueeleadesculpasse,voltouparaoquarto.Algunsdiasmais tarde,naexposição,elaproclamouqueosquadroseramimpossíveis,e Cristiana,comoúnicaresposta,fezvoarporterraseusóculos. Estediadosóculosquebrados,umdia13desetembro,foivividopor Betinacomoumagrandederrota.Primeiramentereagiucom agressividade,proclamandoportodaWeimarquetinhasidomordidapor umasalsichaenlouquecida,masnãodemorouaperceberque,mostrandoseassimressentida,arriscava-seanãovermaisGoethe,reduzindodesta formaseugrandeamorpeloimortalaumepisódiobanalfadadoao esquecimento.Assim,elaobrigouobomArnimaescreverumacartapara Goethepedindoqueperdoassesuamulher.Acartaficousemresposta.O casaldeixouWeimar,ondeestevenovamenteemjaneirode1812.Goethe nãoosrecebeu.Em1816,CristianamorreueBetina,algumtempodepois, mandouaGoetheumalongacartacheiadehumildade. Goethenãoreagiu.Em1821,portantodezanosdepoisdoseuúltimo encontro,elachegouaWeimar,fez-seanunciaraGoethe,querecebia convidadosnaquelanoiteenãopôdeimpedi-ladeentrar.Maselenãolhe disseumasópalavra.Emdezembrodomesmoano,elaaindaescreveu-lhe. Nãorecebeunenhumaresposta. Em1823,osconselheirosmunicipaisdeFrankfurttomaramadecisão deerguerummonumentoemhonradeGoethe,eoencomendaramaum escultorchamadoRauch.QuandoBetinaviuoesboço,queadesagradou, nãotevedúvidasdequeodestinooferecia-lheumaoportunidadequenão podiaperder. Emboranãosoubessedesenhar,botoumãosàobraedesenhouseu próprioprojetodeestátua:Goetheestavasentadonaposturadeumherói antigo:emumadasmãosseguravaumalira;entreseusjoelhosuma pequenameninaquedeveriarepresentarPsique;oscabelosdopoeta pareciamchamas.ElamandouodesenhoparaGoetheeaconteceuumfato inteiramentesurpreendente:emseuolhoapareceuumalágrima!Foi assimquedepoisdetrezeanos(estávamosemjulhode1924,eletinha setentaecincoanos;ela,trintaenove)elerecebeu-aemcasae,embora umpoucocontrafeito,fezcomqueelacompreendessequetudoestava perdoado,queaeradosilênciodesdenhosoestavasuperada. Parece-mequeduranteestafasedosacontecimentososdois protagonistashaviamchegadoaumacompreensãofriamentelúcidadas coisas:todososdoissabiamdoquesetratavaecadaumdelessabiaqueo outrotambémsabia.Aodesenharomonumento,Betinamostroupela primeiravez,semambiguidade,aquiloquedesdeocomeçoestavaemjogo: aimortalidade.Sempronunciá-la,elatocounessapalavracomosetoca umacordaqueressoadoceelongamente. Goetheouviuisso.Primeiroficouingenuamenteenvaidecido,mas poucoapouco(depoisdeenxugarsualágrima)compreendeuo verdadeiroemenoslisonjeirosentidodamensagem:elalhefaziasaber queoantigojogocontinuava;queelanãosedavaporvencida,queseria elaquemcortariasuamortalha,aquelacomqueeleseriaexpostoà posteridade;elalheavisavaqueelenãopoderiaabsolutamenteimpedi-la, esobretudonuncapormeiodeumsilêncioamuado. Maisumavezpensouoquejásabiahámuitotempo:eraperigosaeera melhortomarcuidadocomela. BetinasabiaqueGoethesabia.Issoficaevidentenoencontrodooutono domesmoano,oprimeirodepoisdesuareconciliação;elamesmaocontou numacartaenviadaàsuasobrinha:assimqueaacolheu,escreveBetina, "Goethemostrou-seprimeirorabugento,depoisdissemepalavras carinhosasparareconquistarminhasimpatia". ComonãocompreenderGoethe!Aovê-la,percebeuintensamente oquantoelaoirritavaeficoucomraivadeterinterrompidoessemagnífico silênciodetrezeanos.Começouumabrigaparadescarregarnelatodasas reclamaçõesquenuncatinhaexpressado.Maslogocontrolou-se:porque sersincero?Porquedizer-lheoquepensava?Apenasimportavaasua decisão:neutralizá-la,pacificá-la,mantê-lasobcontrole. Sobdiversospretextos,contaBetina,Goetheinterrompeuoencontro delespelomenosseisvezesparairàsalavizinhaonde,escondido,bebia vinho,comopôdedepoisperceberpeloseuhálito.Elaacaboupor perguntar-lhe,comarbrincalhão,porquebebiaescondido,eGoethe aborreceu-se. MaisdoqueGoethebebendovinhoescondido,éBetinaquemeparece interessante:elanãosecomportoucomovocêoueu,queteríamos observadoGoethecombomhumor,mascalando-nosdiscretae respeitosamente.Dizer-lheoqueosoutrosteriammantidoemsilêncio ("Seuhálitocheiraaálcool!Porquevocêbebeu?Porquebebe escondido?")erasuamaneiradeextorquirdeGoetheumapartedesua intimidade,deficarcorpo-a-corpocomele.Nessaagressividadeda indiscriçãoqueemnomedesuaespontaneidadeinfantilsempre reivindicara,GoethelogoreconheceuaBetinaque,trezeanosantes, decidiranuncamaisrever.Semdizerumapalavraelelevantou-se,pegou umalâmpadaparadizerqueoencontroterminaraequeeleiria acompanharavisitapelocorredorescuroatéaporta. Então,contaBetinanoprosseguimentodesuacarta,paraimpedi-lode sair,elaajoelhou-senasoleira,emfrenteaoquarto,edisselhe:"Querover sepossomantê-lopresoesevocêéumespíritodoBem,ouumespíritodo Mal,comooratodeFausto;beijoeabençôoasoleiradessaportaquecada diaéatravessadapeloespíritomaiseminentequetambémémeumelhor amigo."O quefezGoethe?Segundoacartacitada,declarou:"Parasair,nãovou pisoteá-la,nemvocênemseuamor;essemeémuitocaro;quantoaseu espírito,voudeslizaremtornodele(erealmentecontornava cuidadosamenteocorpoajoelhadodeBetina),poisvocêémuitoardilosae émelhorviverempazcomvocê." Essafrase,colocadapelaprópriaBetinanabocadeGoethe,parece-me resumirtudoaquiloque,duranteesseencontroelelhedissesemdizer: Sei,Betina,queseuesboçodaestátuafoiumardilgenial.Naminha senilidadedeploráveldeixei-mecomoverpelaschamascomquevocê comparameuscabelos(ah,meuspobrescabelosralos),masnãodemoreia compreender:vocênãoquismemostrarumdesenhomasapistolaque temnamãoparaatirarnasprofundezasdaminhaimortalidade.Não,não conseguidesarmá-la.Noentantonãoqueroaguerra.Queroapaz.Nada maisdoqueapaz.Prudentementevoucontorná-lasemtocá-la,nãovou abraçá-la,nãovoubeijá-la.Emprimeirolugar,nãotenhoamenorvontade. Depois,seiquetudoqueeufizervocêtransformaráemmuniçãoparasua pistola. Doisanosdepois,BetinavoltouaWeimar;elaviuGoethequasetodos osdias(nessaépocaeletinhasetentaeseteanos)enofimdesuaestada, aotentarintroduzir-senacortedeCarlosAugusto,cometeuumadas impertinênciasencantadorasdequeconheciaosegredo.Aconteceu,então, umfatoinesperado:Goetheexplodiu."Essamoscainsuportável(diese leidigeBremse)queminhamãemelegou,escreveueleaCarlosAugusto, nosincomodahámuitotempo.Elaconservaumpequenojogoquearigor poderiaagradaremsuamocidade,aconversadelaécheiaderouxinóise elagorjeiacomoumcanário.SeVossaAltezapermitir,vouproibirno futuro,comafirmezadeumtio,todasassuasimpertinências.Docontrário, VossaAltezanuncaficarálivredesuasinconveniências." Seisanosmaistarde,elasefezanunciarmaisumavezemcasadele. MasGoetherecusou-seavê-laeacomparaçãodeBetinacomumamosca ficousendosuaúltimapalavranessahistória. Coisacuriosa:depoisdeterrecebidoodesenhodomonumento,ele adotaracomoregramanterapazcomelaaqualquerpreço.Sebemque alérgicoatéasuapresença,eletudofizera(porissoelasentiucheirode álcoolemseuhálito)parapassaranoite"numaboarelação"comela.Como elepoderiadeixarirporáguaabaixotodososseusesforços?Eleque tomavatantocuidadodenãopartirrumoàimortalidadecomacamisa amassada,comoelepôdeescreveressaspalavrashorríveis,mosca insuportável,essaspalavrasqueseriamcensuradasaindacemanos depois,trezentosanosdepois,equandomaisninguémlerianemFausto nemOssofrimentosdojovemWerther! Éprecisocompreenderoquadrantedavida: Atéumcertomomento,amortepermaneceumfatodistantedemais paraquenosocupemosdela.Elaénão-vista,nãoévisível.Eaprimeira fasedavida,amaisfeliz. Depois,subitamente,nosdeparamoscomanossaprópriamortediante denóseéimpossívelafastá-ladenossocampovisual.Elaestáconosco.E comoaimortalidadeégrudadaàmortecomoHardyaLaurel,podemos dizerqueaimortalidade,elatambémestáconosco.Maldescobrimossua presença,começamos,febrilmente,acuidardela.Nóslheencomendamos umsmoking,compramosumagravata,commedoqueternoegravata sejamescolhidosporoutrapessoa,emalescolhidos.Foinummomento comoessequeGoethedecidiuescreversuasMemórias,suacélebrePoesia everdade,econvidouparasuacasaodevotadoEckermann(porcuriosa coincidênciaissopassou-senessemesmoanode1823quandoBetinafezo desenhodaestátua)paraqueelepudesseescreversuasConversascom Goethe,essebeloretratorealizadosobaamávelfiscalizaçãodoretratado. Depoisdessasegundafasedesuavida,ondeohomemnãopode afastaramortedosolhos,vemumaterceira,amaiscurtaeamaissecreta, daqualpoucosesabe,edaqualnãosefala.Suasforçasdeclinameum serenocansaçoseapossadohomem.Cansaço:pontosilenciosoqueconduz doriodavidaaoriodamorte.Amorteestátãopróximaquenoscansamos devê-la.Comoantes,elaénão-vistaenão-visível.Não-vistacomoos objetosmuitofamiliares,muitoconhecidos.Ohomemcansadoolhapela janelaafolhagemdasárvoresdasquaismentalmentepronunciaonome: castanheira,álamo,bordo.Essaspalavrassãobelascomoopróprioser.O álamoégrandeepareceumatletalevantandoosbraçosparaocéu.Ou pareceumaaltachamapetrificada.Oálamo,oh,oálamo. Aimortalidadeéumailusãoderrisória,umapalavravazia,umsoprode vento,queseperseguecomumarededepegarborboletas,sea compararmoscomabelezadoálamo,queovelhocansadovêpelajanela.A imortalidade,ovelhocansadonãopensanelaabsolutamente. Oqueelefará,ovelhocansadoolhandooálamo,quandoderepente surgeumamulherquequerdançaremtornodamesa,ajoelhar-sena soleiradaportaeconversarcoisassofisticadas?Comosentimentode inefávelalegriaeumabruscaretomadadevigor,eleachamaráleidige Bremse,moscainsuportável. PensonesseinstanteemqueGoetheescreveu:moscainsuportável. Pensonoprazerquesentiuepensoque,numlampejodelucidez, compreendeu:nuncaagiracomoqueriateragido.Elesupunha-seo gerentedesuaimortalidadeeessaresponsabilidadefizeracomque perdessetodaanaturalidade.Tiveramedodasextravagâncias,sentindo porelasaomesmotempomuitaatração,esecometeraalgumas,tentara depoisatenuá-lasparanãoafastar-sedessamoderaçãosorridenteque algumasvezesoidentificaracomabeleza. Aspalavras"moscainsuportável"nãoestavamdeacordonemcomsua obra,nemcomsuavida,nemcomsuaimortalidade.Essaspalavraserama liberdadepura.Sópodeescreveressaspalavrasumhomemque,tendo chegadoàterceirafasedavida,deixoudegerenciarsuaimortalidadee nãoaconsideramaisumacoisaséria.Érarochegaratéesselimite extremo,masaquelequeoatingesabequealieemnenhumoutrolugar encontra-seaverdadeiraliberdade. EssasideiasatravessaramoespíritodeGoethe,maselelogoas esqueceuporqueeraumvelhocansado,esuamemóriaestavafalhando. Recordemos:foidisfarçadaemcriançaqueelaveiovê-loaprimeira vez. Vinteecincoanosmaistarde,emmarçode1832,quandosoubeda gravedoençadeGoethe,foiumacriançaqueelalogoenviouàsuacasa: seufilhoSigmund. EssetímidogarotodedezoitoanospassouseisdiasemWeimar, seguindoasinstruçõesdesuamãe,semsabernadadoquesetratava.Mas Goethesabia:elaomandouparapertodelecomoumembaixador encarregadodefazê-locompreender,porsuasimplespresença,quea morterondavaatrásdaportaequedaliemdianteBetinatomariacontada imortalidadedeGoethe. DepoisamorteabriuaportaenodiavinteeseisdemarçoGoethe morreudepoisdeumasemanadelutaeBetina,algunsdiasmaistarde, escreveuumacartaaoexecutortestamentáriodeGoethe,ochanceler Muller:"Naverdade,amortedeGoetheprovocou-meumaimpressão profunda,inapagável,masnãoumaimpressãodetristeza;nãoposso expressarcompalavrasaverdadeexata,mascreioaproximar-meo máximoaodizerquefoiumaimpressãodeglória." SublinhemosbemessaprecisãodeBetina:nãodetristezamasde glória. Poucodepois,elapediuaomesmochancelerMullerparamandar-lhe todasascartasqueescreveraaGoethe.Relendo-as,teveumadecepção: todaessahistóriapareciaumrascunho,claro,deumaobra-prima,no entantonadaalémdeumrascunhoe,alémdisso,imperfeito.Erapreciso começaratrabalhar.Otrabalhoduroutrêsanos:corrigiu,reescreveu, completou.Seestavadescontentecomsuasprópriascartas,asdeGoethe pareciam-lheaindamaisdecepcionantes. Aorelê-las,sentia-seferidaporseulaconismo,porsuareserva,atépor suaimpertinência.Comoserealmenteeleatomasseporumacriança, redigiamuitasvezessuascartassobaformadeamáveisliçõesdestinadas aumaestudante. Assimsendo,elatevequemudarotom:"minhacaraamiga"tornou-se "meucoraçãoquerido",ascensurasqueelelhedirigiraforamadoçadas poracréscimoselogios,eoutrosacréscimosderamaentenderopapelde inspiradoraemusaqueBetinasouberarepresentarjuntoaopoeta fascinado. Demaneiraaindamaisradical,elareescreveusuasprópriascaretas. Não,elanãomudouotom,otomestavacerto.Masmudou,porexemplo,as datas(parafazerdesaparecernomeiodesuacorrespondênciaoslongos intervalosqueteriamdesmentidoaconstânciadesuapaixão),eliminou muitaspassagensinconvenientes(aquela,porexemplo,emqueimplorava aGoethequenãomostrassesuascartasaninguém),acrescentououtras explicações,tornoumaisdramáticasassituaçõesdescritas,deumais profundidadeàssuasopiniõessobrepolíticaouarte,notadamentequando músicaeBeethovenestavamemquestão. Acabouolivroem1835epublicou-osobotítuloGoethesBriefwechsel miteinemKinde."CorrespondênciadeGoethecomumacriança."Ninguém colocouemdúvidaaautenticidadedascartasaté1929,datanaquala correspondênciaoriginalfoidescobertaepublicada. Ah!Porqueelanãoteriaqueimadoascartasatempo? Coloque-seemseulugar:nãoéfácilqueimardocumentosíntimosque lhesãocaros;écomosevocêreconhecessequenãotemmaistempo,que vaimorreramanhã;assimvocêadiaeternamenteesseatodedestruiçãoe umdiaétardedemais. Contamoscomaimortalidade,eesquecemosdecontarcomamorte. Graçasàdistânciaqueofimdenossoséculonospermite,talvez possamosousardizer:opersonagemGoetheestáexatamentenomeioda históriaeuropeia. Goethe:osoberbopontomediano,ocentro.Nãoocentro,ponto pusilânimequedetestaosextremos,masocentrosólidoquesustentaos doisextremosnumnotávelequilíbrioqueaEuropanuncamaisconhecerá. EmsuajuventudeGoetheestudaaindaalquimia,mastorna-semaistarde umpioneirodaciênciamoderna;eleéomaiordosalemães,sendoao mesmotempoantipatriotaeeuropeu;cosmopolita,noentantonãodeixa nuncaasuaprovíncia,suaminúsculaWeimar;éumhomemdanaturezae aomesmotempoumhomemdaHistória.Noamor,étãolibertinoquanto romântico.Eaindaisso: Lembremo-nosdeAgnèsnoelevadoragitadoporsacudidelas,como quetomadopeladoençadeSãoGuido.Mesmosendoespecialistaem cibernética,elanãopodiaentenderoquesepassavanacabeçatécnica dessamáquina,queparaelaeratãoestranhaeopacaquantoos mecanismosdetodososobjetosqueencontravatodososdias,desdeo pequenocomputadorcolocadoaoladodotelefoneatéolava-louça. Goethe,aocontrário,viveuessemomentodahistória,curtoeúnico,em queoníveltécnicojápermitiaumcertoconforto,masemqueohomem cultoaindapodiacompreendertodososutensíliosqueocercavam.Goethe sabiacomoqueecomosuacasatinhasidoconstruída,porqueuma lâmpadaaóleoiluminava,conheciaomecanismodeseutelescópio;sem dúvidanãoousavaefetuaroperaçõescirúrgicas,masporterassistidoa algumas,podiadialogarcomoconhecedorcomomédicoqueotratava.O mundodosobjetostécnicoseraparaeleinteligíveletransparente.Essefoi ograndemomentogoethianonomeiodahistóriadaEuropa,ominutoque deixaráumacicatriznostálgicanocoraçãodohomemaprisionadono elevadorqueseagitaequedança. AobradeBeethovencomeçaondeterminaograndemomentode Goethe. Poucoapoucoomundoperdesuatransparênciaetorna-seopaco, ininteligível,precipita-senodesconhecido,enquantoohomemtraídopelo mundorefugia-seemseuforoíntimo,emsuanostalgia,emseussonhos, emsuarevolta,e,aturdidocomavozdolorosaqueemergededentrodele, nãosabemaisouvirasvozesqueointerpelamdefora.ParaGoethe,ogrito interiorerauminsuportávelclamor. Detestavaobarulho,ésabido.Nãosuportavanemmesmoolatidode umcãonofundodeumjardimdistante.Diz-sequenãogostavademúsica. Éfalso.Nãogostavadeorquestras.AdoravaBach,queaindapensavaa músicacomosonoridadetransparentedevozesindependentesedistintas. MasnassinfoniasdeBeethoven,asvozesparticularesdosinstrumentos fundiam-senumaopacidadesonoradegritosedechoros.Goethenão suportavaosurrosdaorquestra,tantoquantonãosuportavaosruidosos soluçosdaalma.OsamigosdeBetinatinhampercebidoarepulsanosolhos dodivinoGoethequeosobservavatapandoosouvidos.Nãopodiam perdoá-loeoatacavamcomouminimigodaalma,darevoltaedo sentimento. IrmãdopoetaBrentano,mulherdopoetaArnim,adoradorade Beethoven,Betina,membrodafamíliaRomântica,eraamigadeGoethe.Eis suaexcelenteposição:elaeraasoberanadedoisreinados. Seulivroapresentava-secomoumamagníficahomenagemaGoethe. Todasassuascartasnãoeramsenãoumcantodeamordedicadoaele. Queseja,mascomotodomundosabiaqueMadameGoethejogaranochão osóculosdeBetina,equeGoethe,então,porumasalsichaenlouquecida, traíravergonhosamenteacriançaapaixonada,esselivroeraaomesmo tempo(emuitomais)umaliçãodeamorimpostaaopoetaquediantede umgrandesentimentocomportou-secomoumcovardevaidosoe sacrificouapaixãoporumamiserávelpazmatrimonial.OlivrodeBetina era,aomesmotempo,umahomenagemeumabofetada. NomesmoanoemqueGoethemorreu,numacartaendereçadaa seuamigo,ocondeHermannvonPuckler-Muskau,elacontouoquetinha acontecidonumdiadeverão,vinteanosantes.Segundoconsta,soubera dissopelopróprioBeethoven.Em1812(portanto,umanodepoisdoano negrodosóculosquebrados),estetinhavindopassaralgunsdiasem TeplitzondeencontraraGoethepelaprimeiravez.Fizeramumpasseio juntos.Enquantoiamporumaaleia,derepenteapareceudiantedelesa imperatrizacompanhadaporsuafamíliaesuacorte.Aoperceberocortejo edeixandodeescutaroqueBeethovenlhedizia,Goetheparou,afastou-se etirouoseuchapéu.Beethoven,porsuavez,enterrouoseunacabeça, franziuasgrossassobrancelhasquecrescerammaisalgunscentímetrose dirigiu-se,semafrouxaropasso,deencontroaosaristocratas;forameles quepararam,queodeixarampassar,queocumprimentaram.Sóvirou-se depoisparaesperarGoethe.Eentãodisselheoquepensavadeseu comportamentoservil.Repreendeu-ocomoaumacriança. Essacenarealmenteaconteceu?Beethovenainventou?Inteiramente? Ouapenasexagerouumpouco?OufoiBetinaqueaexagerou?Ouque forjou-ainteiramente?Nuncaninguémsaberá.Masécertoqueao escreversuacartaaHermannvonPuckler,elacompreendeubemovalor inestimáveldessaanedota,aúnicaquepoderiarevelarosentidomais profundodahistóriadeamorentreelaeGoethe.Todavia,comotorná-la conhecida?Emsuacarta,elaperguntaaHermannvonPuckler:"Ahistória lheagrada?KannstDusiebraucherí!"Vocêpodeutilizá-la?Comovon Pucklernãotivesseintençãodeutilizá-la,ela,aprincípio,alimentaoprojeto deeditartodaacorrespondênciaquemantiveracomoconde,depois acabouencontrando,delonge,amelhorsolução:em1839,narevista Athenãum,elapublicaacartaemqueopróprioBeethovencontaessa história!Ooriginaldessacartadatadade1812nuncafoiencontrado. ExisteapenasacópiaescritapelamãodeBetina.Muitosdetalhes 80 (porexemplo,adataexatadacarta)indicamqueBeethovenjamaisa escreveu,oupelomenosnuncaaescreveucomoBetinaarecopiou.Mas poucoimportaquesetratedeumfalsooudeumsemifalso,aanedota tornou-secélebreeagradouatodomundo.Derepente,tudoficouclaro:se Goethepreferiuumasalsichaaumgrandeamor,nãofoiporacaso: enquantoBeethovenéumhomemrevoltadoquepassanafrente,como chapéuenterradonacabeça,asmãosatrásdascostas,ele,Goethe,éum homemservilquefazreverênciaspeloscantosdeumaaleia. Tendoestudadomúsica,chegandomesmoacomporalgumaspeças, Betinaestavaàalturadecompreenderoquehaviadenovoedebelo namúsicadeBeethoven.Portanto,pergunto:amúsicadeBeethoven cativou-aporsuaqualidade,porsuasnotas?Ouseriapeloque representava,oumelhordizendo,porsuanebulosaligaçãocomasatitudes eideiasqueBetinaesuageraçãocompartilhavam?Contasfeitas,oamor pelaarte,issoexisteejamaisexistiu? Nãoéumailusão?QuandoLenineproclamouqueacimadetudoamava aAppassion-ata,deBeethoven,oquerealmenteamava?Oqueeleouvia?A música?Ouummajestosoclamorquelembrava-lheosmovimentos pompososdesuaalmarepletadesangue,defraternidade,de enforcamentos,dejustiçaedoabsoluto?Eleouviaamúsicaou simplesmentedeixavaqueelaotransportasseaumdevaneioquenada tinhaemcomumnemcomaartenemcomabeleza?Masretornemosa Betina:elafoiatraídapeloBeethovenmúsico,oupelograndeBeethoven anti-Goethe?Elaamavaamúsicadeumamordiscreto,comoessequenos prendeaumametáforamágica,àaliançadeduascoressobreumquadro? Oudessapaixãoconquistadoraquenosfazaderiraumpartidopolítico? Sejaláoquefor(enuncasaberemosoqueera),Betinaenviouaomundoa imagemdeumBeethovenindoemfrente,ochapéuenterradonacabeça,e essaimagemcontinuousozinhasuacaminhadaatravésdosséculos. Em1927,cemanosdepoisdamortedeBeethoven,umarevistaalemã, DieliterarischeWelt,pediuaoscompositoresmaisimportantesque dissessemoqueBeethovenrepresentavanaopiniãodeles.Aredação jamaispôdeimaginarumatalexecuçãopóstumadohomemcomochapéu enterradonacabeça:Auric,membrodoGrupodosSeis,fezuma proclamaçãoemnomedetodososseusamigos:Beethovenera-lhesatal pontoindiferentequenãomerecianemmesmosercontestado.Queeleum diapudesseserredescoberto,reabilitado,comoaconteceucemanosantes comBach?Inadmissível!Ridículo!Janacektambémconfirmouqueaobra deBeethovennuncaoencantara.ERavelresumiu:nãogostavade Beethoven,porquesuaglórianãorepousavasobresuamúsica, obviamenteimperfeita,massobreummitoliterárioorigináriodesua biografia. Ummitoliterário.Nocaso,elerepousasobredoischapéus: umprofundamenteenterradonacabeça,atéasenormessobrancelhas;o outro,namãodeumhomemqueseinclinaprofundamente.Osmágicos gostamdemanipularchapéus.Gostamqueobjetosdesapareçamneles,ou delestirampombosquevoamparaoteto.Betinatiroudochapéude Goetheosfeiospássarosdeseuservilismo;enochapéudeBeethoven (certamentesemquerer)elafezdesaparecertodasuamúsica.Ela reservouparaGoetheodestinodeTychoBrahéedeCarter:uma imortalidaderisível.Masaimortalidaderisívelnosespreitaatodos;para Ravel,Beethovenindoemfrentecomseuchapéuenterradoatéas sobrancelhaseramuitomaisrisíveldoqueGoethequeseinclinava profundamente. Consequentemente,mesmoseforpossívelmoldaraimortalidade, moldá-laantecipadamente,manipulá-la,elanuncaacontecerácomofoi planejada.OchapéudeBeethoventornou-seimortal.Nesseaspecto,o planofoibem-sucedido.Masosignificadoqueteriaochapéuimortal, ninguémpoderiaprever. "Sabe,Johann,disseHemingway,eutambémnãoescapodesuas eternasacusações.Emvezdelermeuslivros,escrevemlivrossobremim. Parecequeeunãogostavademinhasmulheres.Quenãomeocupei suficientementedemeufilho.Quequebreiacaradeumcrítico.Quefui poucosincero.Quefuiorgulhoso.Quefuimacho.Quemevanglorieide duzentosetrintaferimentosdeguerraquandotiveapenasduzentoseseis. Quememasturbei.Quefuimauparaminhamãe. —Oquevocêqueréaimortalidade,disseGoethe.Aimortalidadeéum eternoprocesso. —Seéumeternoprocesso,seriaprecisoumjuizdeverdade!Enão umaprofessoradointeriorcomumavaranamão. —Umavaraerguidaporumaprofessoradeinterior,eisoeterno processo! Oquemaisvocêimaginou,Ernest? —Nãoimagineinada.Esperavaapenasquedepoisdamorteviveria umpoucotranquilo. —Vocêfeztudoparatornar-seimortal. —Bobagem.Apenasescrevialivros. —Exatamente!exclamouGoethe. —Quemeuslivrossejamimortais,nãotenhonadacontra.Escrevi-os demaneiratalquenãosepodemudarumapalavraneles.Tudofizpara queresistamàsintempéries.Mascomohomem,comoErnestHemingway estoupoucoligandoparaaimortalidade! —Compreendo,Ernest.Masvocêdeveriatersidomaisprudente quandovivo.Agora,nãohámuitacoisaafazer. —Maisprudente?Éumaalusãoàsvantagensquecontava?Sim,na minhamocidadeeraumgalo,gostavadememostrar.Regalava-mecomas históriasquecontavamameurespeito.Mascreia-me,pormaisvaidoso quefosse,nãoeraummonstroenãosonhavaabsolutamentecoma imortalidade!Nodiaemquecompreendiqueerajustamenteelaqueme espreitava,entreiempânico.Cemvezesimploreiàspessoasquenãose metessemnaminhavida.Masquantomaisimplorava,piorera.Instalei-me emCubaparaescapardelas.QuandomederamoprêmioNobel,recuseimeairaEstocolmo.Estavapoucoligandoparaaimortalidade,edirei aindamais:odiaemqueconstateiqueelameabraçava,ohorrorquesenti foipiordoqueohorrordamorte.Ohomempodepôrfimàsuavida,mas nãopodepôrfimàsuaimortalidade.Nahoraemquevocêembarcanela, nãopodemaisdescer,mesmoquequeimeosmioloscomoeu,você continuaàbordocomoseusuicídio,eéhorrível,Johann,éhorrível.Estava morto,deitadonotombadilho,eemtornoviaminhasquatromulheres agachadas,escrevendotudoquesabiamdemim,eatrásdelasestavameu filhoquetambémescrevia,eGertrudeStein,avelhafeiticeiraestavalá,e escrevia,etodosmeusamigosestavamláecontavamtodasasintrigas, todasascalúniasquetinhamouvidoameurespeito,eumacentenade jornalistassecomprimiamatrásdeles,microfonesligados,eemtodasas universidadesdaAméricaumexércitodeprofessoresclassificavamtudo isso,analisavam,desenvolviam,fabricandomilharesdeartigosecentenas delivros." HemingwaytremiaeGoethetomou-lheamão."Acalme-se,Ernest. Acalme-se,meuamigo.Euocompreendo.Oquevocêestámecontando mefazlembrarumsonho.Foimeuúltimosonho,depoisdissonuncamais sonheiouentãoeramsonhosconfusosqueeunãopodiadistinguirda realidade.Imagineumapequenasaladeteatrodemarionetes.Estouatrás dopalco,movimentoosbonecoseeumesmorecitootexto.Éuma representaçãodeFausto.DomeuFausto.Apropósito,vocêsabiaqueem nenhumaparteoFaustoétãobonitoquantonoteatrodemarionetes?Por issoestavacontentequenãohouvesseatoresequepudesserecitar,eu mesmo,osversosquenessediaressoavammaisbelosdoquenunca. Depois,derepente,olheiparaasalaeviqueestavavazia.Fiquei desconcertado.Ondeestãoosespectadores?MeuFaustoétãocansativoa pontodetodosteremidoembora?Eunãomerecianemumavaia? Encabulado,olheiaomeuredorefiqueiestupefato:esperavavê-losna sala,eestavamtodosatrásdopalco!Osolhosarregaladosobservavam-me comcuriosidade.Nomomentoquenossosolharesseencontraram, começaramaaplaudir.Compreendiqueoespetáculoqueelesqueriam assistir,nãoeramasmarionetes,maseupróprio. NãooFausto,masGoethe!Fuitomadodehorror,muitosemelhantea essequevocêacabademencionar.Sentiqueelesqueriamqueeudissesse qualquercoisa,maseunãoeracapaz.Agargantaapertada,largueios bonecosnopalcoiluminado,queninguémolhara.Tenteiconservaruma serenidadedigna,semumapalavradirigi-meatéocabideparaapanhar meuchapéu,coloquei-onacabeça,esemdaramenoratençãoatodos essescuriosos,saíefuiparacasa. Esforçava-meemnãoolharnemparaadireitanemparaaesquerda, sobretudo,emnãoolharparatrás,porquesabiaqueelesestavamnomeu rastro.Evirandoachave,abriapesadaportadaminhacasa,batendo-a, depressa,atrásdemim. Acendiolampiãoaóleo,esegurando-ocomminhamãotrêmula,dirigimeparameuescritórioparaesqueceresseepisódioexaminandominha coleçãodeminerais.Masmaltinhacolocadoolampiãoemcimadamesa, meuolharfoiatraídoparaajanela:viseusrostosapertadosunscontraos outros.Ecompreendiquenuncameverialivredeles,nunca,nuncamais. Pelosgrandesolhoscomquemefixavam,dei-mecontadequeolampião iluminavameurosto.Apaguei-o,mesmosabendoqueeraumerro: perceberiamapartirdaíquemeescondiadeles,quetinhamedo,ficariam aindamaisexaltados.Ecomoomedojáeramaiordoquearazão,corri paraomeuquarto,puxeiolençoldacamaparacobrirminhacabeçaeme posteinumcantodoquarto,bemcoladonaparede..." HemingwayeGoetheafastam-senoscaminhosdoalémevocês meperguntamdeondetireiessaideiadejuntarexatamenteessesdois. Poder-se-iaimaginarduplamaissurpreendente?Elesnãotêmnadaem comum!Edaí?Comquem,segundovocês,Goethegostariadepassaro temponoalém?ComHerder? ComHõlderlin?ComBetina?ComEckermann?Lembrem-sedeAgnèse desuarepulsaemimaginarquedepoisdesuamorteteriaqueouvir,para sempre,aquelasmesmasvozesdemulherquesempreouvianasauna.Ela nãoqueriatornaraencontrar-senemcomPaulnemcomBrigite!Então, porqueGoethedeveriadesejarapresençapóstumadeHerder?Ouso mesmodizerquenãotinhanenhumavontadedereverSchiller.Claro,ele nuncateriareconhecidoissoquandovivo,porqueseriaumtristesaldonão tertidoemvidanenhumgrandeamigo.CertamenteSchillereraseuamigo maisquerido.Porémomaisqueridoquerdizermaisqueridodoquetodos osoutros,que,falandofrancamentenãoeramassimtãoqueridos.Eram seuscontemporâneos,eelenãoostinhaescolhido.NemmesmoSchillerele tinhaescolhido.Quandoumdiatevequeserenderàevidênciadeque durantetodaasuavidaosteriaemtornodesi,aangústiaapertou-lheo coração.Quefazer?Tinhaqueseresignar.Masporqueiriadesejar frequentá-losdepoisdesuamorte? Foi,portanto,porumamorpuramentedesinteressadoqueimaginei oferecer-lhecomocompanheiroalguémquefossecapazdecativá-lo(se vocêsjáesqueceram,lembro-lhesqueGoethe,quandovivo,eramuito interessadopelaAmérica),alguémquenãolhelembrasseaquelecírculo deRomânticosderostopálido,quenofimdesuavidaapossaram-seda Alemanha. "Sabe,Johann,disseHemingway,paramiméumagrandesorteestar emsuacompanhia.Diantedevocê,aspessoastrememderespeito,de modoqueminhasmulhereseatémesmoavelhaGertrudeSteinsomem assimquelhevêem."Emseguida,elecomeçouarir:"Anãoserqueseja porcausadasuaroupainacreditável." ParatornarcompreensíveisessaspalavrasdeHemingway,tenhoque explicarqueosimortaissãoautorizadosaescolher,paraseuspasseiosno além,oaspectofísicoquepreferementreaquelesquetiveramemvida.E Goetheescolheraoaspectoíntimodeseusúltimosanos;ninguémanãoser aquelesquelheerampróximosoviramassim:paraprotegerseusolhos queardiam,usavanatestaumaviseiraverdeetransparente,amarradana testaporumbarbante;usavachinelosnospése,commedodofrio, enrolava-senumenormexalecolorido. Aoouvirfalardesuaroupainacreditável,riudealegriacomose Hemingwaytivesselhefeitoumgrandeelogio.Depoisinclinou-separaele edisseameiavoz:"FoiporcausadeBetinaquemevestiassim.Ondequer queváelafaladeseugrandeamorpormim.Portantoqueroqueas pessoasvejamoobjetodesseamor!Assimqueelamevêdelonge,foge.Sei quesapateiaderaivaaomeverperambularporaquicomesteaspecto: semdentes,semcabeloecomesseobjetogrotescoemcimadosolhos." TerceiraParte Aluta Asirmãs Aestaçãoderádioqueescutopertenceaogoverno,portantonão transmiteanúnciosdepublicidade,masalternanotícias,comentários,e músicaspopularesmaisrecentes.Comoaestaçãoaoladoéparticular,os anúnciossubstituemamúsica,masparecetantocomasmúsicaspopulares maisrecentes,quenuncaseiqualestaçãoescuto,eaindaficosabendo menosporqueadormeçoetornoaadormeceratodoinstante.Mergulhado numtorpor,aprendoquedepoisqueaguerraterminouhaviadoismilhões demortosnasestradasdaEuropa,amédiaanualnaFrançasendodedez milmortosetrezentosmilferidos,umexércitointeirodesempernas,sem braços,semorelhas,semolhos.Indignadocomesteterrívelbalanço,o deputadoBertrandBertrand(essenomeébonitocomoumaberceuse) propôsaadoçãodeumaexcelenteprovidência,mastendosidovencido pelosono,justonessemomento,sósoubeumameiahoradepois,quando repetiramamesmanotícia:odeputadoBertrandBertrand,cujonomeé bonitocomoumaberceuse,propôs,naAssembleia,umprojetoproibindo qualqueranúnciodecerveja.Issoprovocouumaenormetempestadena Assembleia,numerososdeputadosopuseram-seao\projeto,apoiadospor representantesdorádioedatelevisãoque|perderiammuitodinheiro comessaproibição.Emseguida,ouçoavozdopróprioBertrand:falado combatecontraamorte,dalutapelavida...Apalavra"luta",repetidacinco vezesduranteseubrevediscurso,lembrou-meminhavelhapátria,Praga, bandeirasvermelhas,cartazes,lutapelafelicidade,lutapelajustiça,luta pelofuturo,lutapelapaz;lutapelapazatéadestruiçãodetodosportodos, semdeixaracrescentarasabedoriadopovotcheco. Masjáadormeceranovamente(umdocesonoquemeinvadecadavez quepronunciamonomedeBertrandBertrand)e,quandoacordei,foipara ouvirumfientáriosobrejardinagem;ajustoobotãonaestaçãovizinha.Ali, aquestãododeputadoBertrandBertrandeaproibiçãodequalquer núnciosobrecerveja.Asrelaçõeslógicasforamaparecendopoucoaco:as pessoassematamnocarrocomonumcampodebatalha,masnão podemosproibirosautomóveis,quesãooorgulhodohomemmoderno; umacertaporcentagemdecatástrofeséatribuídaàbebedeirademaus motoristas,masnãopodemosproibirovinho,glóriaimemorialdaFrança; umapartedabebedeirapúblicadeve-seàcerveja,masacervejatambém nãopodeserproibida,jáquehaveriaviolaçãodostratadosinternacionais sobrealiberdadedosmercados;umacertaporcentagemdebebedoresde cervejaéincentivadaabeberinfluenciadapelascampanhaspublicitárias, oque,enfim,revelaocalcanhar-de-aquilesdoinimigo:vejaondeocorajoso deputadodecidiubrigar!VivaBertrandBertrand,digocomigomesmo,mas comoessenomeprovocaemmimoefeitodeumaberceuse,logoadormeço, atéomomentoemqueouçoumavozbastanteconhecida,umasedutora vozaveludada,sim,éBernardo,olocutor,ecomonãohánovidadesanão serasdotráfego,eleconta:estanoite,umajovemsentou-senaestradade costasparaosautomóveis.Trêscarros,umdepoisdooutro,desviaramno últimomomentoeforamachatar-senasarjeta,houvemortoseferidos.Não conseguindooquequeria,asuicidafoiemborasemdeixarrastro,esó soubemosdesuaexistênciapelosdepoimentosconvergentesdosferidos. Essanotíciaassustou-meatalpontoquenãopudemaisdormir.Sóme restavalevantar,tomarmeucafédamanhãesentar-medianteda máquinadeescrever.Masdurantemuitotemponãoconseguime concentrar,tinhadiantedosolhosessajovemenroscadanomeiodarua,a cabeçaentreosjoelhos,eouçoosgritosquesaemdavala.Tenhoque afastaressaimagemàforçaparapodercontinuarmeuromanceque,se vocêtemboamemória,começounabeiradeumapiscina,quando, esperandopeloprofessorAvenarius,viumadesconhecidacumprimentar seuprofessordenatação. RevimosessegestoquandoAgnèsdespediu-sedeseutímidocolegade classe. Repetiu-otodasasvezesqueacompanhavaumamigoatéacercado jardim.ApequenaLauraescondia-seatrásdeumarbustoeesperavao retornodesuairmã;queriaverobeijoqueiamtrocar,depoisseguir Agnèsquandoelavoltassesozinhaatéaportadecasa.Esperavaque Agnèsvoltasseeacenassecomobraço. Paraamenina,nessemovimentoestavamagicamenteincluídaa vaporosaideiadoamordoqualelanadasabia,eque,paraela,ficaria ligadaparasempreàideiadeumaencantadoraecarinhosairmãmais velha. QuandoAgnèssurpreendeuLauraimitandoessegestopara cumprimentarseusamiguinhos,achoudesagradáveledecidiu,desde então,comosabemos,despedir-sedesuasamigassemdemonstrações. Essabrevehistóriadeumgestonospermitediscerniromecanismoque determinavaorelacionamentoentreasduasirmãs:acaçulaimitavaamais velha,estendiaasmãosparaela,masestaescapava-lhesemprenoúltimo momento. Depoisdepassarnovestibular,Agnèsfoicontinuarseusestudosem Paris. Lauraficouressentidacomelaporesseabandonodaspaisagensque juntastinhamamado.Masdepoisdoseuvestibular,tambémmatriculou-se paraestudaremParis.Agnèsdedicou-seàmatemática.Quandoterminou seusestudostodospreviram-lheumabrilhantecarreiracientífica,masem vezdecontinuarsuaspesquisas,Agnèscasou-secomPauleaceitouum empregobanal,apesardebemremunerado,massemnenhuma perspectivadeglória.Lauraficoudesolada,edecidiu,quandoentroupara oConservatório,paracompensaroinsucessodesuairmã,ficarcélebreem seulugar. UmdiaAgnèsapresentou-lhePaul.Naqueleinstantedoencontro, Lauraouviualguéminvisíveldizer-lhe:"Eisumhomem!Overdadeiro.O único.Nãoexisteoutronomundo."Quemeraointerlocutorinvisível? TalvezaprópriaAgnès?Sim.Eraelaquemostravaocaminhoàsuairmã caçula,aomesmotempoqueobarrava.MuitogentiscomLaura,Agnèse Paulcuidavamdelacomtantasolicitudequeemcasadeles,emParis, sentia-secomoantesemsuacidadenatal. Ficando,destaforma,noambientefamiliar,desfrutavaumafelicidade quenãoeraisentadeumacertamelancolia:ohomemquepoderiaamar, aomesmotempoeraoúnicoquelheeraproibido.Quandocompartilhava davidadocasal,osmomentosdefelicidadealternavam-secomcrisesde tristeza.Calava-se,oolharperdidonoo;Agnès,então,segurando-lheas mãos,dizia:"Oquevocêtem,Laura?Oquevocêtem,minhairmãzinha?"Às vezes,namesmaaçãoecomamesmaemoçãoeraPaulquetomava-lheas mãos,etodostrêsmergulhavamnumbanhovoluptuosofeitode sentimentosconfusos:fraternoseamorosos,tolerantesesensuais.Depois casou-se.Brigite,afilhadeAgnès,estavacomdezanoseLauradecidiu oferecer-lheumpequenoprimoouumapequenaprima. Pediuaseumaridoqueaengravidasse,oqueeleexecutouem dificuldade,masoresultadofoiaflitivo:Laurateveumabortoeosmédicos preveniramquedaíemdiantenãopoderiaterfilhosanãoserquese submetesseagravesintervençõescirúrgicas. Osóculosescuros QuandoAgnèsaindaestavanocolégio,apaixonou-seporóculos escuros. Elaosusavamaisparaparecerbonitaeenigmáticadoquepara protegerosolhosdosol.Osóculostornaram-sesuamania:assimcomo certoshomenstêmumarmáriocheiodegravatas,assimcomocertas mulheresenchemdeanéissuascaixasdejóias,Agnèscolecionavaóculos escuros. QuantoaLaura,começouausaróculosescurosnodiaseguinteaoseu aborto.Naépoca,elaosusavaquasequeconstantemente,desculpando-se comasamigas:"Nãosezanguem,ochoromedesfigurou,nãoposso aparecersemeles." Daíemdianteosóculosescurossignificaramolutoparaela.Nãoos usavaparaesconderochoro,masparaquesoubessemquechorava.Os óculostornaram-seosubstitutodaslágrimas,tendosobreaslágrimas verdadeirasavantagemdenãoenfearaspálpebras,denãotorná-las vermelhaseinchadas,edeafavorecermais. AítambémfoiAgnèsqueinspirouaLauraogostopelosóculosescuros. Masahistóriadosóculostambémmostraquearelaçãoentreasduas irmãsnãopoderiaseresumiràimitaçãodamaisvelhapelamaismoça.Ela aimitava,sim,masaomesmotempoacorrigia:davaaosóculosescurosum conteúdomaisprofundo,umsentidomaisgrave,forçandoporassimdizer osóculosescurosdeAgnèsaenrubescerporsuafrivolidade.Quando Lauraapareciacomseusóculosescuros,issosempresignificavaque sofria,eAgnèssentiaquedeviatirarosseus,pormodéstiaepor delicadeza. Ahistóriadosóculosrevelaaindaumacoisa:Agnèsapareciacomouma favorecidadaFortuna,Lauracomosuaenjeitada.Todasduasacabaram acreditandoquenãoeramiguaisemfacedodestino,oquetalvezafetasse AgnèsmaisaindadoqueaLaura."Minhairmãzinhaéapaixonadapormim eelanãotemsorte."FoiporissoqueelaficoucontenteemacolherLaura emPariseapresentou-lhePaulpedindo-lhequeatratassecomafeto;por issoquedescobriuparaLauraumpequenoapartamentoagradávelna vizinhançaeaconvidavaparasuacasatodasasvezesquedesconfiavaque elaestavatriste.Masesforçava-seemvão,continuavasendosempreela queaFortunafavoreciainjustamente,eLauraaenjeitadadaFortuna. Lauratinhaumgrandetalentomusical,tocavapianomuitobem,no entanto,teimosamente,decidiuestudarcantonoConservatório."Quando tocopiano,estouemfrentedeumobjetoestranhoehostil,amúsicanão mepertence,pertenceaoinstrumentopretonaminhafrente.Aocontrário, quandocanto,meucorpotransforma-seemórgãoeeumetornomúsica." Nãofoiculpasuase,infelizmente,tinhaumavozmuitofracaquea conduziuaofracasso:nãotornou-sesolistaeduranteorestodesuavida suasambiçõesmusicaisreduziram-seaumcorodeamadores,ondeia duasvezesporsemanaparaensaiaralgunsconcertosanuais. Seucasamento,emqueinvestiratodasuaboa-vontade,desmoronou tambémnofimdeseisanos.Éverdadequeseumaridomuitoricoteveque deixar-lheumbeloapartamentoeumapensãoalimentíciaconsiderável,o quelhepermitiucomprarumalojaondevendiapelescomumahabilidade quesurpreendeuatodos;masessesucessoeramuitoterra-a-terrapara repararainjustiçasofridaemnívelbemmaiselevado:espirituale sentimental. Divorciada,mudavadeamantesetinhaumareputaçãodeamante apaixonadaefingiacarregarseusamorescomoumacruz."Tivemuitos homensemminhavida",diziamuitasvezesnumtomgraveemelancólico, comoparasequeixardodestino. —Invejovocê,respondeuAgnès,eLaura,emsinaldetristeza,colocou seusóculosescuros. AadmiraçãoquesentiunainfânciaaoverAgnèscumprimentarsuas amigasnagradedojardimnuncaadeixara,enodiaemquecompreendeu quesuairmãrenunciavaaqualquercarreiracientíficanãopôdeesconder suadecepção. —Oqueéquevocêmecensura?DisseAgnèsparasedefender.Você, emvezdecantarnaÓpera,vendepeles,eeu,emvezdeviajardeum congressoparaoutroocupoumlugaragradavelmenteinsignificantenuma empresadeinformática. —Maseufizoquepudeparapodercantarenquantovocêrenunciou propositadamenteàssuasambições.Eufuivencida.Vocêentregou-se. —Eporqueeudeveriaterfeitocarreira? —Agnès!Sótemosumavida!Éprecisoassumi-la!Afinaldecontas devemosdeixaralgumacoisaatrásdenós! —Deixaralgumacoisaatrásdenós?RepetiuAgnèsnumtom espantadoecético. Laurademonstrouumadiscordânciaquasedolorosa: —Agnès,vocêénegativa! Muitasvezesdirigiaessareprovaçãoàsuairmã,masmentalmente. Nuncaaexpressaraemvozaltaanãoseremduasoutrêsocasiões.A últimavezfoidepoisdamortedesuamãe,quandoviraopairasgaras fotos.Oqueopaifaziaerainaceitável:destruíaumapartedavida,desua vidacomumcommamãe;rasgavaimagens,rasgavalembrançasquenão eramapenassuas,maspertenciamatodaafamíliaeprincipalmenteàs filhas;nãotinhaodireitodeagirassim.Elacomeçouagritarcomele,e Agnèstomouadefesadopai.Quandoficaramsozinhas,pelaprimeiravez navidabrigaram,apaixonadaeraivosamente. —Vocêénegativa!Vocêénegativa!GritouLaura;depois,chorandode raivaelacolocouseusóculosescurosefoiembora. Ocorpo Quandojáestavammuitovelhos,océlebrepintorSalvadorDaliesua mulherGaladomesticaramumcoelhoquedepoisviveucomelessem deixá-losuminstante:gostavammuitodele.Umdia,quandodeveriam partirparaumalongaviagem,discutiramatétardedanoiteoqueiriam fazercomocoelho.Eradifícillevá-lo,masnãomenosdifícilconfiá-loa alguém,porqueocoelhotinhamedodoshomens.NodiaseguinteGala preparouoalmoçoeDalideleitou-se,atéomomentoemquecompreendeu quecomiaumensopadodecoelho. Levantou-sedamesaecorreuparaobanheiroparavomitarnapiaseu pequenoanimalquerido,fielcompanheirodeseusdiasdevelhice.Gala,ao contrário,estavacontentequeseuamadotivessepenetradoemsuas entranhas,tivesse-asacariciadolentamente,tornando-seocorpodesua dona.Elanãoconheciarelaçãomaisabsolutadeamordoqueaingestãodo seramado.Comparadoaessafusãodoscorpos,oatodeamorfísico parecia-lheumpruridoirrisório. LauraeracomoGala.AgnèseracomoDali.Elaamavaumaquantidade depessoas,homensemulheres,masseumestranhocontratodeamizade aobrigasseacuidardeseusnarizeseaassoá-losregularmente,teria preferidoviversemamigos.Conhecendoasidiossincrasiasdesuairmã, Lauraarepreendia: —Oquesignificaasimpatiaquevocêsenteporalguém?Dessa simpatia,comovocêpodeexcluirocorpo?Semseucorpo,ohomem continuaumhomem? E,LauraeracomoGala:perfeitamenteidentificadacomseucorpo, perfeitamenteinstaladanele.Eocorponãoeraapenasaquiloquesepodia vernumespelho:apartemaispreciosaencontrava-senointerior. Reservavatambémumlugarespecial,emseuvocabulário,aosnomesdos órgãosinternos.Paraexpressarodesesperoemqueseuamantea mergulharanavéspera,eladizia: —Tenhovomitadodesdequeelepartiu. Apesardasfrequentesalusõesaovômito,Agnèsnãotinhacertezase elajamaisvomitara.Ovômitonãoeraasuaverdade,masasuapoesia:a metáfora,aimagemlíricadadecepçãoedodesgosto. Umdia,quandoforamfazercomprasnumabutiquedelingerie,Agnès viuLauraacariciarumsutiãqueavendedoralhemostrava.Nesses momentoséqueelacompreendiatudooqueaseparavadesuairmã:para Agnès,osutiãfaziapartedosobjetosdestinadosacompensaruma carênciafísica,comoporexemplooscurativos,aspróteses,osóculos,os coletesqueosdoentesdasvértebrascervicaistêmdeusar.Osutiãtem comofunçãosustentarumacoisamaispesadadoqueoprevisto,cujopeso foimalcalculado,equemaistardeéprecisoescorarumpoucocomosão escoradascompilastrasecontrafortesavarandadeumaconstrução malfeita.Emoutraspalavras:osutiãrevelaoaspectotécnicodocorpo feminino. AgnèsinvejavaPaulporelepoderviversemestareternamente conscientedoseucorpo.Eleinspira,expira,seupulmãotrabalhacomo umgrandefoleautomático,eéassimqueelesenteseucorpo:esquecendooalegremente.Mesmoquetenhaproblemasfísicos,nuncafaladeles,não pormodéstia,masporumdesejovaidosodeelegância,porqueuma doençanãoésenãoumaimperfeiçãoqueoenvergonha.Duranteanos, sofreudeumaúlceranoestômago,masAgnèssósoubenodiaemque umaambulânciaolevouaohospitalacometidodeumaterrívelcrise, justamentedepoisdeumadramáticadefesaoraldiantedotribunal.Essa vaidadepoderiasermotivoderiso,masemvezdissoAgnèsficava comovida,equaseoinvejava. SebemquePaulprovavelmentesejamaisvaidosodoqueamédia, pensavaAgnès,seucomportamentorevelaadiferençaentreascondições femininaemasculina:amulherlevamuitomaistempodiscutindosuas preocupaçõesfísicas;elanãoconheceoesquecimentoinconsequentedo corpo. Issocomeçapelochoquedasprimeirasperdasdesangue;derepenteo corposurgeeelasevêdiantedelecomoummecânicoencarregadode, sozinho,tomarcontadeumapequenafábrica:todososmesestemdeusar tampões,engolircomprimidos,ajustarosutiã,aprontar-separaproduzir. Agnèsolhavacominvejaoshomensvelhos;tinhaaimpressãoqueeles envelheciamdeoutramaneira:ocorpodeseupaitransformava-se imperceptivelmentenasuaprópriasombra,desmaterializava-se,ficando aquiembaixoapenasumaalmadisplicentementeencarnada.Aocontrário, quantomaisocorpofemininotorna-seinútil,maiselesetornacorpo: pesadoevolumoso;pareceumafábricavelhadestinadaàdemolição,mas aoladodaqualoeudeumamulheréobrigadoaficaratéofimcoma funçãodeguardiã. OquepoderiamudararelaçãodeAgnèscomseucorpo?Nada,anão seromomentodaexcitação.Aexcitação:redençãofugitivadocorpo. MastambémsobreessepontoLauranãoestariadeacordo.Omomento daredenção?Comoassim,momento?ParaLaura,ocorpoerasexualdesde oinício,apriori,sempreeinteiramente,poressência.Amaralguémpara elasignificava:levar-lheseucorpo,entregá-lodiantedele,seucorpotal qualé,tantonoexteriorquantonointerior,mesmocomotempoque,doce elentamente,odeteriora. ParaAgnèsocorponãoerasexual.Elesósetornavaassimemraros momentos,quandoaexcitaçãoprojetavasobreeleumaluzirreal,artificial, queotornavabeloedesejável.Eisporque,mesmoseninguém percebesse,Agnèseradominadapeloamorfísicoepresaaele,porque semeleamisériadocorponãoterianenhumasaídadeemergênciaetudo estariaperdido.Aofazeramorelaconservavaosolhosabertosese houvesseumespelhopertoelaseobservava:seucorpoparecia-lhe,então, inundadodeluz. Masolharseucorpoinundadodeluzéumjogopérfido.Umdiaque Agnèsestavacomseuamante,duranteoamorelapercebeunoespelho certosdefeitosdeseucorpoquenãohavianotadoemseuencontro anterior(elessóseviamumaouduasvezesporanonumgrandee anônimohotelparisiense)efoiimpossívelparaeladesviaroolhar:nãoviu maisoamante,nãoviumaisoscorposcopulando,viuapenaso envelhecimentoquecomeçavaacorroê-la. Imediatamenteaexcitaçãodesapareceudoquarto.Agnèsfechouos olhoseacelerouosmovimentosdoamorparaimpediroparceirode adivinharseuspensamentos:acabavadedecidirqueseriaseuúltimo encontro.Sentia-sefracaedesejavaoleitomatrimonialemcujacabeceira umapequenalâmpadaficavasempreapagada;elaodesejavacomouma consolação,comoumportodeobscuridade. Aadiçãoeasubtração Emnossomundo,emqueaparecemcadadiamaisemaisfisionomias queseparecemcadavezmais,nãoétarefafácilparaohomemquerer confirmaraoriginalidadedoseueueconseguirconvencer-sedesua inimitávelunicidade.Hádoismétodosparacultivaraunicidadedoeu:o métodoaditivoeométodosubtrativo.Agnèssubtraideseueutudoqueé exterioreemprestado,para,destaforma,aproximar-sedesuaessência pura(correndooriscodechegarazerocomessassubtraçõessucessivas). OmétododeLauraéexatamenteinverso:paratornarseueumaisvisível, maisfácildeserapreendido,paradar-lhemaisconsistência,ela acrescenta-lhesemcessarnovosatributos,aosquaistentaseidentificar (correndooriscodeperderaessênciadoeusobessesatributos adicionados). Tomemosoexemplodesuagata.Depoisdoseudivórcio,Lauraviu-se sónumgrandeapartamentoesentiu-setriste.Quisdividirsuasolidãonem quefossecomumpequenoanimal.Suaprimeiraideiafoiarranjarum cachorro,maslogocompreendeuqueumcachorroexigiriacuidadosque elanãoestavaemcondiçõesdeoferecer.Porissoarranjouumagata.Era umagrandegata,belaemá.Detantovivercomela,efalardelacomseus amigos,atribuiuaessagata,escolhidamaisporacasoesemgrande convicção(poisafinalaprincípioquiseraumcachorro!),umaimportância cadavezmaior:emtodososlugareselogiavaseusméritosobrigandotodos aadmirá-la.Vianelaabelaindependência,oorgulho,adesenvoltura, charmepermanente(bemdiferentedocharmehumanoquesealterna semprecommomentosdeinépciaedefaltadegraça);viaummodeloem suagata;evia-senela. NãointeressaabsolutamentesaberseemseucaráterLauraseparece ounãocomagata,oimportanteéqueelaadotou-acomosuamarcaea gatatornou-seumdosatributosdeseueu.Muitosdeseusamantestendo desaídamostradosuairritaçãodiantedesseanimalegocêntricoe malévolo,quesemnenhumarazãocuspiaedavaunhadas,tornou-seo testedopoderdeLauraquepareciadizeracadaum:vocêmeterá,mastal qualsourealmente,querdizer,comminhagata. Agataéaimagemdesuaalma,eoamantedeviaaceitarprimeirosua alma,sedepoisquisessepossuirseucorpo. Ométodoaditivoéinteiramenteagradávelseacrescentamosaoeuum cachorro,umagata,umassadodeporco,oamordooceanoouasduchas frias.Ascoisastornam-semenosidílicassedecidimosacrescentaraoeua paixãopelocomunismo,pelapátria,porMussolini,pelaIgrejaCatólica,pelo ateísmo,pelofascismooupeloanti-fascismo.Nosdoiscasos,ométodo continuaexatamenteomesmo:aquelequedefendeinsistentementea superioridadedosgatossobreosoutrosanimaisfaz,emessência,amesma coisaqueaquelequeproclamaMussolinioúnicosalvadordaItália:ele apregoaumatributodoseueueempenha-setotalmenteparaqueesse atributo(umgatoouMussolini)sejareconhecidoeamadoportodosqueo cercam. Esseéoestranhoparadoxodequesãovítimastodosaquelesque recorremaométodoaditivoparacultivarseueu:esforçam-seemadicionar paracriarumeuinimitavelmenteúnico,mastornando-seaomesmotempo ospropagandistasdessesatributosadicionados,fazemtudoparaqueo maiornúmerodepessoassepareçamcomeles;eentãoaunicidadedeseu eu(tãotrabalhosamenteconquistada)logodesaparece. Podemos,então,nosperguntarporqueumhomemqueamaumagata (ouumMussolini)nãosecontentacomseuamor,mas,alémdisso,quer impô-loaosoutros.Tentemosresponderlembrando-nosdaquelajovemda saunaque,comcombatividade,afirmavasuapredileçãopelasduchasfrias. Dessamaneira,deumatacadaconseguiusediferençardametadedo gênerohumano,queprefereasduchasquentes.Oazaréqueaoutra metadedahumanidadeparecia-seaindamaiscomela.Ah!comoétriste! Muitaspessoas,poucasideias,ecomofazerparanosdiferençarmosuns dosoutros?Ajovemdesconhecidanãoconheciasenãoummeiopara superaradesvantagemdesuasemelhançacomasinumeráveismultidões deadeptosdaduchafria:eraprecisolançarbruscamentesuaafirmação ("adoroasduchasfrias!")desdeaentradadasauna,comtodasuaenergia paraqueosmilhõesdeoutrasmulheresquegostamdeduchafria parecessemderepentemíserasimitadoras.Emoutraspalavras:se queremosqueoamor(inocentementeinsignificante)dasduchastorne-se umatributodenossoeu,éprecisoqueomundointeiroconheçanossa intençãodelutarmosporesseamor. AquelequefazdeumapaixãoporMussoliniumatributodeseueu, torna-semilitantepolítico;oqueexaltaosgatos,amúsicaoumóveis antigospresenteiaseusamigos. SuponhamosquevocêtemumamigoquegostadeSchumannedetesta Schubert,enquantovocêadoraSchuberteSchumannoaborrece.Que discovocêdariadepresentedeaniversárioaseuamigo?Schumannque eleadora,ouSchubertquevocêadora?Schubert,éclaro.Dandode presenteSchumann,vocêteriaadesagradávelimpressãodeserinsincero, depresentearseuamigocomumaespéciedesubornoparaagradar-lhe, comaideiaquasemesquinhadeconquistá-lo.Afinaldecontas,quando vocêpresenteiaéporamor,paraoferecerumapartedevocê,umpedaço doseucoração!Assimsendo,vocêdariaAInacabadadeSchubertaseu amigoque,depoisquevocêsaísse,colocarialuvas,cuspirianodisco,e segurando-oentredoisdedos,ojogarianolixo. Numintervalodealgunsanos,Laurapresenteousuairmãeseu cunhadocomumaparelhodejantar,umacompoteira,umalâmpada,uma cadeiradebalanço,cincoouseiscinzeiros,umatoalhademesae sobretudoumpianoquedoisrobustosrapazesumdiatrouxeram inesperadamente,perguntandoondedeveriamcolocá-lo.Lauraestava radiante: —Queriadar-lhesumpresentequeosobrigasseapensaremmim, mesmoqueeunãoestejacomvocês. Depoisdeseudivórcio,LauraiaparaacasadeAgnèssempreque tinhaummomentolivre.Ocupava-sedeBrigitecomosefossesuaprópria filha,esecomprouumpianoparaairmãeraparaqueasobrinha aprendesseatocá-lo.Ora,Brigitedetestavapiano.CommedoqueLaura ficassesentida,Agnèssuplicouàfilhaquefizesseumesforçoeque mostrassealgumaafeiçãoàsteclasbrancasepretas.Brigitedefendia-se: —Entãoéparadarprazeravocêquedevoaprenderatocar? Assimahistórianãoacaboubemepassadosalgunsmesesopianoera apenasumobjetodecorativo,ou.melhordizendo,inoportuno;lembrança melancólicadeumprojetoabortado;umgrandecorpobranco(sim,opiano erabranco)queninguémqueria. Narealidade,Agnèsnãogostavanemdopianonemdoaparelhode jantarnemdacadeiradebalanço.Nãoquefossemdemaugosto,mas tinhamumquêdeexcêntricoquenãocorrespondianemànaturezade Agnèsnemàssuaspreferências.Sentiunãosomenteumsinceroprazer, mastambémumalívioegoístaquandoumdia(háseisanosninguém puseraamãonopiano)Lauracontou-lhe,muitoalegre,queseapaixonara porBernardo,ojovemamigodePaul.Umamulherqueestánocomeçode umgrandeamor,pensouAgnès,teriamaisoquefazerdoquepresentear suairmãeocupar-sedaeducaçãodasobrinha. Amulhermaisvelhadoqueohomem,ohomemmais moçodoqueamulher "Eisumanotíciaextraordinária",dissePaulquandoLaurafalou-lhe sobreseuamor,econvidouasduasirmãsparajantar.Comoparaeleera umagrandealegriaverqueduaspessoasqueamavatambémseamavam, pediuduasgarrafasdeumvinhomuitocaro. —VocêvaiserelacionarcomumadasmelhoresfamíliasdaFrança, explicouaLaura.SabequeméopaideBernardo? Lauradisse: —Claro!Umdeputado!EPaul: —Vocênãosabedenada!OdeputadoBertrandBertrandéfilhodo deputadoArthurBertrand.Muitoorgulhosodoseusobrenome,Arthur Bertrandquisqueseufilhoofizessemaiscélebreainda.Depoisdepensar longamentequenomelhedar,teveaideiagenialdebatizá-loBertrand.Um nomeassimdobradonuncapoderiadeixarninguémindiferente,ninguém poderiaesquecê-lo!BastariadizerapenasBertrandBertrandparaque essenomeressoassecomoumaovação,comoumviva:Bertrand! Bertrand!Bertrand!Bertrand!Bertrand!Bertrand! Erepetindoessaspalavras,Paullevantavaocopocomoparalevantar umbrindeesoletraronomedeumchefeaduladopelasmultidões.Depois tomouumgole: —Essevinhoéextraordinário!Econtinuou:Cadaumdenósé misteriosamenteinfluenciadopeloseunome,eBertrandBertrand,que ouviumuitasvezespordiaarepetiçãorítmicadoseu,sentiu-seesmagado durantetodasuavidasobaglóriaimagináriadessasquatrosílabas sonoras.Nodiaemquefoireprovadonovestibular,encarouofatomuito piordoqueseuscolegas.Comoseseunomedobradoautomaticamente multiplicassepordoisseusensoderesponsabilidade.Suaproverbial modéstiapermitiria,certamente,quesuportasseavergonhaqueseabatia sobreele;masnãopodiaseadaptaràvergonhaqueseabaterasobreseu nome.Comvinteanosfezaseunomeapromessasolenedeconsagrarsua vidaacombaterpelobem.Masnãodemorouaconstatarqueédifícil distinguiraquiloqueébomdaquiloqueémau.Porexemplo,seupaivotou pelosacordosdeMunique,comamaioriadosdeputados.Elequeriasalvar apazporqueapazéincontestavelmenteumbem.Mas,maistarde,elefoi censuradoporter,destaforma,abertoocaminhodaguerra,queé incontestavelmenteummal.Querendoevitaroserrosdopai,ofilhofixouseemalgumascertezaselementares.Jamaispronunciou-sesobreos palestinos,sobreIsrael,sobrearevoluçãodeOutubro,sobreCastro,nem mesmosobreoterrorismo,sabendoqueoassassinatoapartirdeuma fronteirasecretatorna-seumatodeheroísmoequeessafronteirasempre seriaindiscernívelparaele.TomaapaixonadamentepartidocontraHitler, contraonazismo,contraascâmarasdegásenessesentidolamentao desaparecimentodeHitlernosescombrosdaChancelaria,porqueapartir dessediaobemeomalpassaramaserinsuportavelmenterelativos.Tudo issolevou-oadevotar-seaobemsobseuaspectomaisimediato,aindanão deformadopelapolítica.Adotoucomodivisa"beméavida".Dessemodoa lutacontraoaborto,contraaeutanásia,contraosuicídiotornou-seameta desuaexistência. Lauraprotestourindo:Segundovocêéumdébilmental! —Estávendo,dissePaulaAgnès,elajáestádefendendoafamíliado amante.Issomerecetodososelogios,domesmomodoqueestevinho,cuja escolhavocêdeveriaaplaudir.Duranteumrecenteprogramasobrea eutanásia,BertrandBertranddeixou-sefilmarnacabeceiradeumdoente paralisado,comalínguaamputada,cego,sofrendodorespermanentes. Estavaaoladodacama,inclinadosobreodoente,eacâmeraomostrava insuflandoneleaesperançadediasmelhores.Nomomentoemque pronunciavaapalavra"esperança"pelaterceiravez,odoente, bruscamenteexcitado,soltouumgritolongoeaterradorsemelhanteao gritodeumanimal,cavalo,touro,elefanteouostrêsjuntos,eBertrand Bertrandtevemedo:nãoconseguiamaisfalar,tentavaapenasguardaro sorriso,àscustasdeumesforçosobre-humanoeacâmerafilmou longamenteessesorrisopetrificadodeumdeputadotremendodemedo,e aoladodele,namesmatomada,orostodeummoribundourrando.Mas nãoeraissoqueeuqueriadizer.Oquequeriacontaréqueaoescolhero nomedeseufilho,erraraogolpe.Suaprimeiraintençãoerabatizá-lo Bertrand,maslogofoiobrigadoaadmitirqueseriagrotesco,doisBertrand Bertrandnestemundo,porqueaspessoasnuncairiamsabersesetratava deduasoudequatropessoas.Noentanto,nãoqueriadesistirpor completoàfelicidadedeouvirnonomedeseurebentooecodeseu próprionome,efoiassimquelheocorreuaideiadebatizarseufilhode Bernardo.Ora,BernardoBertrand,issonãosoacomoumaovaçãooucomo vivas,mascomoumbalbuciar,oumelhordizendo,comoumdesses exercíciosfonéticosqueosatoreseapresentadoresderádiousampara aprenderafalardepressa,semseenganar.Comodizia,osnomesque usamosnosteleguiammisteriosamente,eodeBernardoodestinavadesde oberçoa,umdia,falarnorádio. SePaulfalavatodasessasbobagens,eraporquenãoousavaexpressar emvozalta,diantedacunhada,opensamentoqueoobcecava:osoitoanos dediferençaentreLauraeojovemBernardo,essesoitoanoso encantavam!Paulrealmenteguardavaalembrançafascinantedeuma mulherquinzeanosmaisvelhaqueconheceraintimamentequandoele própriotinhavinteecincoanos. Queriafalarnisso,gostariadeexplicaraLauraquetodohomemdeve viverumamorporumamulhermaisvelha,equenenhumoutroamor deixaumalembrançamelhor."Umamulhermaisvelha"tevevontadede clamarlevantandoumavezmaisseucopo,"éumaametistanavidadeum homem!"Masrenunciouaessegestoimprudenteecontentou-seem evocaremsilênciosuaamantedeoutrora,quelhederaaschavesdeseu apartamentoondepodiaseinstalarquandoquisesseefazeroque quisesse,arranjoaindamaiscômodo,umavezquePaulestavaemmaus termoscomseupaiequeriamoraromenospossívelemcasadele.Elanão eraabsolutamentepossessivacomsuasnoites;vinhaencontrar-secomela quandoestavalivre,masnãotinhaquedarexplicaçõesquandonãotinha tempodevê-la.Elanãooforçavanuncaasairemsuacompanhiae comportava-se,quandoosdoiseramvistosemsociedade,comouma parenteamorosaprontaafazertudopelosobrinhoencantador.Quando elesecasou,ofereceu-lheumpresentesuntuosoquesempreficousendo umenigmaparaAgnès. MasaindaeramenospossíveldizeraLaura:estoucontentedeque meuamigoestejaapaixonadoporumamulhermaisvelha,quevaiserpara elecomoumatiaqueadoraseuadorávelsobrinho.Foimenospossível aindaquandoLauraretomouapalavra: —Omaravilhosoéquequandoestounacompanhiadelesinto-me remoçardezanos.Graçasaele,risqueidaminhavidadezouquinzeanos penosos,tenhoaimpressãodequefoiontemquechegueidaSuíçaeo conheci. EssaconfissãoimpediuquePaulevocasseemvozaltasuaametista; logoguardousuaslembrançasparasimesmoecontentou-seemsaborear ovinho,semouvirmaisoqueLauradizia.Sómaistarde,pararetomara conversa,perguntou:OqueBernardocontouavocêsobreseupai? —Nada,respondeuLaura.Possoasseguraravocêqueseupainãofoi assuntodenossasconversas.Seiqueelespertencemaumagrandefamília. Masvocêsabemuitobemoquepensodasgrandesfamílias. —Evocênãoestácuriosaemsaberaindamais? —Não,disseLaura,comumrisoalegre. —Poisdeveriaestar.BertrandBertrandéoprincipalproblemade BernardoBertrand. —Claroquenão!ExclamouLaura,convencidadeserelamesmao principalproblemadeBernardo.SabiaqueovelhoBertranddestinava Bernardoaumacarreirapolítica?—PerguntouPaul. —Não,—respondeuLauralevantandoosombros. —Nessafamília,herda-seumacarreirapolíticacomoseherdauma fazenda.BertrandBertrandestavacertoqueseufilhoumdiadisputaria, nolugardele,ummandatodedeputado.MasBernardo,comvinteanos, ouviuestanotícianorádio:"CatástrofeaéreasobreoAtlântico.Centoeseis passageirosdesapareceram,entreelessetecriançasequatrojornalistas." Quenessescasosascriançassejammencionadascomoumacategoria especialdahumanidade,nãonossurpreendemaishámuitotempo.Mas dessavez,quandoaapresentadoraacrescentouàscriançastambémos jornalistas,foiparaeleumraiodeluz. Compreendendoqueohomempolíticoéhojeumpersonagemrisível, decidiuserjornalista.Oacasoquisquenessaépocaeudirigisseum seminárionaFaculdadedeDireitoqueelefrequentava.Foiláqueele consumouatraiçãoaseupai.Bernardocontou-lheisso? —Éclaro!—respondeuLaura.—Eleadoravocê. Umnegroentrounasala,carregandoumcestodeflores.Laurafezum sinalcomamão.OnegromostroufantásticosdentesbrancoseLaura, tirandodocestoumbuquêdecincocravosmeiomurchos,estendeu-oa Paul: —Todaminhafelicidadedevoavocê. Paulenfiouamãonocestoeapanhouumoutrobuquêdecravos. —Nãoéamim,masavocêquefestejamoshoje.Disseeleoferecendolheasflores. —É,hojeéafestadeLaura,disseAgnèstirandodocestoumterceiro buquêdecravos. Lauratinhaosolhosúmidos. —Sinto-metãobemcomvocês,sinto-metãobemcomvocês,e levantou-se.Apertavaosdoisbuquêscontraopeito,imóvelaoladodo negroquesepostavacomoumrei.Todososnegrosparecemreis.Esteera comoOtelo,antesdeficarcomciúmesdeDesdemona,eLauraeracomo umaDesdemonaapaixonadaporseurei.Paulsabiaoqueiriaacontecer. QuandoLauraestavabêbada,semprecomeçavaacantar.Lentamente,das profundezasdoseucorpoumdesejodecantosubiuparasuagarganta,tão intensamente,quemuitaspessoasquejantavamnorestaurantevirarama cabeçacomcuriosidade. —Laura,sussurrouPaul,nesterestaurantepodeserquenão apreciemseuMahler! Comumbuquêapertadoemcadaseio,Lauraachavaqueestavanum palcodeópera.Parecia-lhesentirsobosdedosovolumedastetas inchadasdenotas.Mas,paraela,osdesejosdePauleramsempreordens. Obedeceuecontentou-seemsuspirar: —Gostariatantodefazerqualquercoisa... Entãoonegro,guiadopeloinstintosutildosreis,apanhounofundodo cestoosdoisúltimosbuquêsdecravosamassadose,comumgesto sublime,estendeu-osaLaura. —Agnès,disseLaura,queridaAgnès,semvocêeununcateriavindo paraParis,semvocênuncateriaconhecidoPaul,semPaulnuncateria conhecidoBernardo,ecolocouseusquatrobuquêsnamesadiantedesua irmã. Odécimoprimeiromandamento Antigamente,aglóriajornalísticapôdeencontrarseusímbolono famosonomedeErnestHemingway.Todasuaobra,assimcomoseuestilo sóbrioeconciso,temorigemnasreportagensqueoHemingwaymuito jovemmandavaaosjornaisdeKansasCity.Serjornalistasignificava,então, aproximar-semaisdoquequalqueroutrodavidareal,escavarseus recantosescondidos,mergulharasmãosaliesujá-las.Hemingway orgulhava-sedeterescritolivrosquesãoaomesmotempotãoterra-aterraecolocadostãoaltonofirmamentodaarte. QuandoBernardopensanapalavra"jornalista"(títuloquehoje,na França,englobatambémaspessoasdorádio,datelevisãoeosfotógrafos daimprensa),nãoéemHemingwayqueelepensa,eogêneroliteráriono qualeledesejadestacar-senãoéareportagem.Sonhamaisemescrever emalgumarevistadedestaque,editoriaisquefariamtremertodosos colegasdeseupai.Ouentãoentrevistas.Aliás,qualéojornalistamais marcantedosúltimostempos?NãoéumHemingwaycontandosuas experiênciasvividasnastrincheiras,nemumespecialistanasputasde Praga,comoEgonErwinKisch,nemumOrwellqueviveuumanointeiro comosmiseráveisdeParis,masOrianaFallaci,quepublicouentre1969e 1972,narevistaitalianaEuropeo,umasériedeentrevistascomospolíticos maiscélebresdaépoca.Essasentrevistaserammaisdoqueentrevistas; eramduelos.Antesdepodercompreenderquelutavamcomarmas desiguais—porqueeraelaquepodiafazerasperguntas,nãoeles—os políticostodo-poderososrolavamK.O.noestradodoringue. Essesdueloseramumsinaldostempos:asituaçãomudara.Os jornalistascompreenderamquequestionarnãoeraapenasométodode trabalhodorepórterdesempenhandohumildementeumaentrevistacom seucadernodenotasnamão,massimumamaneiradeexerceropoder.O jornalistanãoéaquelequefazasperguntas,masaquelequedetémo direitosagradodefazê-las,edefazê-lasaqualquerpessoa,sobre qualquerassunto.Mastodosnósnãotemosessedireito? Todaperguntanãoseriaumapassareladecompreensãolançadade homemahomem?Talvez.Explico,portanto,minhaafirmação:opoderdo jornalistanãosefundamentasobreodireitodefazerumapergunta,mas sobreodireitodeexigirumaresposta. Observe,porfavor,queMoisésnãocolocou"Nãomentiras"entreos dezmandamentosdeDeus.Nãofoiporacaso!Poisaquelequediz"Não minta"deveterditoantes"Responda!",quandoDeusnãodeuaninguémo direitodeexigirdooutroumaresposta."Nãominta,digaaverdade"são ordensqueumhomemnãodeveriadirigiraumoutrohomemenquanto eleoconsiderecomoseuigual. ApenasDeustalvezpudessefazê-lo,maselenãotemnenhumarazão deagirassim,jáquesabetudoequenãotemnenhumanecessidadede nossasrespostas. Entreoquecomandaeoquedeveobedecer,adesigualdadenãoétão radicalcomoadesigualdadeentreoquetemodireitodeexigiruma respostaeoquetemodeverderesponder.Porissoodireitodeexigir umarespostanuncafoiconcedido,anãoserexcepcionalmente.Por exemplo,aojuizqueinstruiumaquestãocriminal.Nodecorrerdenosso século,osEstadoscomunistasefascistasseoutorgaramessedireito,nãoa títuloexcepcional,maspermanente.Osquevoltavamaessespaísessabiam queaqualquermomentopodiamobrigá-losaresponder:oquehaviam feitonavéspera?Oqueelespensavamemseuíntimo? SobreoqueconversavamcomA?MantinhamrelaçõesíntimascomB? Foijustamenteesseimperativosacramentado,"nãominta!digaa verdade!",essedécimoprimeiromandamentoacujaforçanãosouberam resistir,queostransformounumcortejodepobressujeitosinfantilizados. Entretanto,devezemquandoapareciaumCrecusando-se obstinadamenteadizersobreoqueconversavacomA;paraexpressarsua revolta(àsvezeseraaúnicarevoltapossível!)disseumamentiraemvez deumaverdade.Masapolíciasabiaemandouinstalarmicrofonesemcasa dele.Elanãofoimovidapornenhummotivocondenável,maspelosimples desejodeaprenderumaverdadequeomentirosoCescondia. Simplesmentemantinhaseusagradodireitodeexigirumaresposta. Numpaísdemocrático,qualquercidadãobotariaalínguadeforapara qualquerpolicialqueousasselheperguntardoqueconversavacomAese tinharelaçõesíntimascomB.Noentanto,aquitambémopodersoberano dodécimoprimeiromandamentoéexercido.Afinaldecontas,épreciso queummandamentosejaexercido,numséculoondeoDecálogoestá praticamenteesquecido!Todaaestruturamoraldenossaépocatemcomo baseodécimoprimeiromandamento,eojornalistacompreendeumuito bemquecaberiaaeleassegurarsuagestão;assimoquerumasecreta determinaçãodaHistória,queconferehojeemdiaaojornalistaumpoder comoqualnenhumHemingway,nenhumOrwelljamaisousousonhar. Issoficouclarocomoáguademinanodiaemqueosjornalistas americanosCarlBernsteineBobWoodwarddesmascararamcomsuas perguntasasmanobrascondenáveisdopresidenteNixondurantea campanhaeleitoral,destaformaconstrangendoohomemmaispoderoso doplaneta,primeiroamentirpublicamente,depoisaadmitirpublicamente quementira,eenfimadeixaraCasaBrancacabisbaixo.Assim,nosso aplausofoiunânimeporquejustiçaforafeita.Paultambémaplaudiu, porquenesseepisódiopreviaumagrandemudançahistórica,o ultrapassardeumlimiar,omomentoinesquecíveldeumareconstrução: surgiaumanovaforçaque,sozinha,seriacapazdedestronaroantigo profissionaldopoderqueatéentãoforaopolítico.Destroná-lonãosópelas armasoupelaintriga,maspelasimplesforçadoquestionamento. "Digaaverdade!",exigeojornalista,eclaro,podemosnosperguntar: qualoconteúdodapalavra"verdade"quepossadarorigemàinstituição dodécimoprimeiromandamento?Afimdeevitarqualquermal-entendido, sublinhemosquenãosetratanemdaverdadedeDeus,quecustouaJan Husafogueira,nemaverdadecientíficaquemaistardecustouaGiordano Brunoamesmamorte.Averdadequeodécimoprimeiromandamento exigenãodizrespeitonemàfénemaopensamento,éaverdadenoestágio ontológicomaisbaixo,averdadepuramentepositivistadascoisas:oqueC fezontem;oquepensarealmentenoíntimodesimesmo;doquefala quandoencontraA;esetemrelaçõesíntimascomB.Noentanto,apesarde situadonoestágioontológicomaisbaixo,éaverdadedanossaépocaeela encerraamesmaforçaexplosivaqueencerravaemoutrostemposa verdadedeJanHusedeGiordanoBruno."Vocêtemrelaçõesíntimascom B?"perguntaojornalista.Crespondecomumamentira,afirmandonunca terconhecidoB.Masojornalistaridisfarçadamenteporquehámuito tempoorepórterdeseujornalfotografousecretamenteBinteiramente nuanosbraçosdeC,esódependedeletornarpúblicooescândalo, acrescentandoalémdomaisasafirmaçõesdomentirosoCquetãocovarde quantoafrontosamentecontinuaanegarqueconheçaB. Estamosemplenacampanhaeleitoral,ohomempolíticoentranum helicóptero,dohelicópteropassaparaumcarro,agita-se,transpira,engole seucafécorrendo,gritanosmicrofones,fazdiscursosdeduashoras,mas finalmenteseráumWoodwardouumBernsteinquedecidiráqualentreas cinquentamilfrasespronunciadasvaiaparecernosjornaiseserácitada norádio.Daíodesejoquetemohomempolíticodefalarpessoalmenteno rádioenatelevisão,masentãoéprecisoaintermediaçãodeumaOriana Fallaci,quedetémocomandodoprogramaequefazasperguntas.Para tirarproveitodobrevemomentoemquetodaanaçãopodevê-lo,ohomem políticogostariadedizerimediatamenteaquiloquerealmenteé importanteparaele,masWoodwardiráinterrogá-losobreassuntosque nãolheinteressarãoabsolutamente,esobreosquaispreferirianãofalar. Destaformaencontrar-se-ánasituaçãoclássicadoestudanteinterrogado noquadro-negro,queirárecorreraumvelhotruque:fingindoresponder àpergunta,recorrerá,naverdade,afrasespreparadasemcasaparao programa.Masseessetruquepôdeenganaroprofessoralgumasvezes, nãoiráenganarBernsteinqueoperseguirásempiedade:"Osenhornão respondeuàminhapergunta!" Quemhojeemdiagostariadefazerumacarreirapolítica?Quem gostariadeserinterrogadoavidatodanoquadro-negro?Certamentenão ofilhododeputadoBertrandBertrand. Aimagologia Ohomempolíticodependedojornalista.Masdequemdependemos jornalistas?Daquelesqueospagam.Equemospagasãoasagênciasde publicidadequecompramparaseusanúnciosespaçosnosjornais,ou temponorádio.Àprimeiravista,poderíamospensarqueelasirãose dirigir,semhesitar,atodososjornaiscujagrandecirculaçãopode promoveravendadeumproduto. Maséumaideiaingênua.Avendadoprodutotemmenosimportância doquesepensa.Bastaconsideraroquesepassanospaísescomunistas: afinaldecontas,nãosepoderiaafirmarquemilharesdecartazesde LeninecoladosemtodapartepelocaminhopossamtornarLeninemais querido.Asagênciasdepublicidadedopartidocomunista(asfamosas seçõesdeagitaçãoepropaganda)hámuitotempoesqueceramasua finalidadeprática(tornaramadoosistemacomunista)etornaram-seseu própriofim:criarumalinguagem,fórmulas,umaestética(oschefesdessas agênciasforam,outrora,osmestresabsolutosdaarteemseupaís),um estilodevidaparticularqueemseguidadesenvolveram,lançaram,e impuseramaospobrespovos. Vocêspoderiamobjetarquepublicidadeepropagandanãotêmligação entresi,estandoumaaserviçodomercadoeaoutraaserviçoda ideologia?Nãoestãocompreendendonada.Hámaisoumenoscemanos, naRússia,osmarxistasperseguidosformarampequenoscírculos clandestinosemqueseestudavaemconjuntooManifestodeMarx; simplificaramoconteúdodessaideologiaparadifundi-laemoutros círculoscujosmembros,simplificandoporsuavezessasimplificaçãodo simples,atransmitiramepropagaramatéomomentoemqueomarxismo, conhecidoepoderosoemtodoplaneta,viu-sereduzidoaumacoleçãode seisousetesloganstãoprecariamenteligadosentresi,quedificilmente podemosconsiderá-locomoideologia.EcomotudoqueficoudeMarxnão formamaisnenhumsistemalógicodeideias,masapenasumasequênciade imagenseemblemassugestivos(ooperárioquesorrisegurandoseu martelo,obrancoestendendoamãoaoamareloeaonegro,apombada pazvoando,etc),podemosjustificadamentefalardeumatransformação progressiva,geraleplanetáriadaideologiaemimagologia. Imagologia!Emprimeirolugar,quemforjouestemagistralneologismo? Pauloueu?Nãoimporta.Oquecontaéquefinalmenteexisteuma palavraquepermitereunirnumsótetofenômenoscomdenominaçõestão diferentes:agênciaspublicitárias;conselheirosemcomunicaçãodos homensdeEstado;desenhistasqueprojetamalinhadeumnovocarroou doequipamentodeumasaladeginástica;criadoresdamodaegrandes costureiros;cabeleireiros;estrelasdoshow-businessditandoasnormasda belezafísica,ondeseinspiramtodososramosdaimagologia. Osimagólogosexistiam,bementendido,antesdacriaçãodaspoderosas instituiçõesqueconhecemoshoje.MesmoHitlertinhaseuimagólogo pessoalque,plantadodiantedoFuhrer,mostrava-lhepacientementeos gestosquedeveriafazernopalanqueparaprovocaroentusiasmonas multidões.Masseesseimagólogo,duranteumaentrevistaconcedidaa algumjornalista,tivessedescritoaosalemãesumFuhrerincapazdemover asmãosadequadamente,nãoteriasobrevividomaisdoquemeiodiaa tamanhaindiscrição.Hoje,oimagólogonãodissimulamaisseutrabalho, muitopelocontrário,adorafalarnele,frequentementeemvezdeeem lugardeseuhomemdeEstado;adoraexplicarpublicamentetudoque tentouensinaraseucliente,osmaushábitosquefê-loperder,as instruçõesquelhedeu,ossloganseasfórmulasqueadotaránofuturo,a cordagravataqueusará.Tantoorgulhonãodevenossurpreender:nos últimosdecênios,aimagologiaalcançouumavitóriahistóricasobrea ideologia. Todasasideologiasforamderrotadas:seusdogmasacabaramsendo desmascaradoscomoilusõeseaspessoasdeixaramdelevá-lasasério.Por exemplo,oscomunistasacreditaramqueaevoluçãodocapitalismoiria empobrecercadavezmaisoproletariado:umdia,aodescobrirquetodos ostrabalhadoresdaEuropaiamdecarroparaotrabalho,tiveramvontade degritarquetinhamsidoenganadospelarealidade.Arealidadeeramais fortedoqueaideologia.Eéprecisamentenessesentidoqueaimagologiaa ultrapassou:aimagologiaémaisfortedoquearealidade,que,aliás,há muitotempodeixouderepresentarparaohomemoquerepresentava paraaminhaavóquevivianumacidadedaMoráviaesabiatudopor experiência:comosepreparaumpão,comoseconstróiumacasa,comose mataumporcoecomosefazcomeleumacarnedefumada,comose confeccionamosedredons,oqueosenhorpárocopensavadomundoeo quepensavatambémosenhorprofessor;encontrandocadadiatodosos habitantesdacidade,sabiaquantosassassinatostinhamsidocometidosna regiãonosúltimosdezanos;mantinhaporassimdizerarealidadesobseu controlepessoal,demodoqueninguémpoderiafazê-laacreditarquea agriculturadaMoráviaprosperavasenãohouvesseoquecomeremcasa. EmParis,meuvizinhodeandarpassaamaiorpartedeseutemposentado emseuescritóriodiantedeumoutroempregado,depoisvoltaparacasa, ligaatelevisãoparasaberoqueacontecenomundo,equandoo apresentador,comentandoaúltimasondageminformaqueparaamaioria dosfrancesesaFrançaéacampeãdaEuropaemmatériadesegurança(li, recentemente,essasondagem),loucodealegria,abreumagarrafade champanhaenuncasaberáquenomesmodia,namesmaruaemque mora,foramcometidostrêsassaltosedoisassassinatos. Assondagensdeopiniãosãooinstrumentodecisivodopoder imagológico,sãoelasquelhepermitemviveremperfeitaharmoniacomo povo. Oimagólogobombardeiaaspessoascomperguntas:Comosecomporta aeconomiafrancesa?ExisteracismonaFrança?Oracismoéumacoisaboa oumá?Qualéomaiorescritordetodosostempos?AHungriaficana EuropaounaPolinésia?DetodososhomensdeEstadodomundo,qualéo maissexy!Comoarealidade,hoje,éumcontinentequepoucovisitamos,e quejustificadamentenãoamamos,asondagemtornou-seumaespéciede realidadesuperior;ou,emoutraspalavras,tornou-seaverdade.A sondagemdeopiniãoéumparlamentoemsessãopermanente,quetem comomissãoproduziraverdade,digamosqueatémesmoaverdademais democráticaquejamaisconhecemos.Comonuncaentraráemcontradição comoparlamentodaverdade,opoderdosimagólogosviverásempre dentrodaverdade,emesmoqueeusoubessequetudoqueéhumanoé perecível,nãopoderiaimaginarqueforçaconseguiriaquebraressepoder. Apropósitodarelaçãoentreideologiaeimagologia,acrescentoainda isso:asideologiaseramcomoimensasrodas,rodandonosbastidorese desencadeandoasguerras,asrevoluções,asreformas.Asrodas imagológicastambémgiram,massuarotaçãonãotemnenhumefeitosobre aHistória.Asideologiasseguerreavam,cadaumaeracapazdeenvolver todaumaépocacomseupensamento.Aimagologiaorganizaporsimesma aalternânciapacíficadeseussistemasnoritmoalegredasestações.Como diriaPaul:asideologiaspertencemàHistória,oreinodaimagologia começaali,ondeaHistóriatermina. Apalavramudança,tãocaraànossaEuropa,tomouumnovosentido: nãosignificamaisumanovafasenumaevoluçãocontínua(nosentidode umViço,deumHegeloudeumMarx),masodeslocamentodeumlado paraoutro,doladoesquerdoparaoladodireito,doladodireitoparatrás, detrásparaoladoesquerdo(nosentidodosgrandescostureiros inventandoocortedapróximaestação).NoclubequeAgnèsfrequenta,se osimagólogosdecidiramcolocarnasparedesimensosespelhos,nãofoi parapermitiraosginastasacompanharmelhorseusexercícios,mas porqueoespelho,naquelemomento,eraumnúmerovitoriosonaroleta imagológica.Setodomundodecide,nomomentoemqueescrevoestas linhas,queéprecisoconsiderarofilósofoMartinHeideggercomoum mistificadoreumcanalha,nãoéporqueseupensamentotenhasido superadoporoutrosfilósofos;massimporquenaroletaimagológicaele tornou-se,nomomento,umnúmeroperdedor,umantiideal.Osimagólogos criamsistemasdeideaisedeantiideais,sistemasquenãodurarãomuito,e emquecadaumserálogosubstituídoporoutro,masqueinfluenciam nossoscomportamentos,nossasopiniõespolíticas,nossosgostosestéticos, ascoresdostapetesdasala,assimcomoaescolhadoslivros,comtanta forçaquantoosantigossistemasdosideólogos. Depoisdessasobservações,possovoltaraocomeçodeminhas reflexões. Ohomempolíticodependedojornalista.Eosjornalistasdependemde quem? Dosimagólogos.Oimagólogoexigedojornalistaqueseujornal(ousua cadeiadetelevisão,ousuaestaçãoderádio)respondaaoespíritodo sistemaimagológicodeumdeterminadomomento.Eisoqueosimagólogos verificamdetemposemtempos,quandodecidemdarounãoseuapoioa umjornal.Umdia,examinaramocasodeumaestaçãoderádioonde BernardoeraredatoreondePaulfazia,todosossábados,umacrônica intitulada"Odireitoealei". Prometeramofereceràestaçãomuitoscontratospublicitárioselançar umagrandecampanha,comcartazesemtodaParis,masimpondo condiçõesàsquaisodiretordosprogramas,conhecidopeloapelidode Grizzly,nãopodiadeixardesesubmeter:poucoapoucocomeçoua diminuirtodososcomentários,paranãoaborreceroouvintecomlongas reflexões,deixouqueinterrompessemafaladosredatorescomperguntas deoutrosredatores,transformando,destaforma,omonólogoemconversa; multiplicouosintervalosmusicais,atémesmoaopontodeconservar muitasvezesamúsicadefundoatrásdesuaspalavras,recomendoua todososseuscolaboradoresquedessematudoquediziamnomicrofone umalevedescontração,jovemeinconsequente,aquelamesmaque enfeitoumeussonhosdemanhãcedofazendodameteorologiauma espéciedeópera-bufa. Preocupadoemaparecersempreaseussubordinadoscomoumurso todopoderoso,fezoquepôdeparaconservartodososseuscolaboradores noposto. Cedeuapenasnumponto.Oprogramaintitulado"Odireitoealei"era consideradopelosimagólogoscomotãodesinteressantequeeles recusaram-seadiscuti-lo,contentando-se,quandoalguémomencionava, emexplodirnumagargalhadaquemostravaseusdentesmuitobrancos. Depoisdeterlhesprometidocancelaressacrônica,Grizzlyficou envergonhadodetercedido.SuavergonhaaindaeramaiorporquePaul eraseuamigo. Obrilhantealiadodeseuscoveiros OdiretordosprogramastinhaosobrenomedeGrizzlyenempoderia teroutro:eraatarracado,lento,bonachão,mastodossabiamque,quando enfurecido,suapesadapatapodiabater.Osimagólogos,descaradosa pontodepretenderensinar-lheoofício,levavamaoextremoasua paciênciadeurso.Estavanacantinadaemissora,sentadoàmesa,e explicavaaalgunscolaboradores: —Essesimpostoresdapublicidadeparecemmarcianos.Nãose comportamcomopessoasnormais.Quandofazemasobservaçõesmais desagradáveis,suasfisionomiasresplandecemdecontentamento.Não utilizammaisdoqueunssessentavocábuloseseexpressamporfrases curtasnãocontendomaisdoquequatropalavras.Suafala,pontuadade doisoutrêstermostécnicosincompreensíveis,enuncianomáximoumaou duasideias,vertiginosamenteprimárias.Essepessoalnãotemvergonha desercomoé,nãotemomenorcomplexodeinferioridade.Eisaíaprova deseupoder. Maisoumenosnessemomento,Paulapareceunacantina.Aopercebêlo,opequenogrupoficouaindamaiscontrafeitopelofatodePaulparecer estardeexcelentehumor.Pediuumaxícaradecafénobalcãoefoijuntarseaseuscompanheiros. NapresençadePaul,Grizzlysentiu-seconstrangido.Estavaaborrecido consigomesmopornãotê-loapoiado,epornemtertidoacoragemde contarissoaele.Submergidoporumanovaondaderaivadosimagólogos, prosseguiu: —Parasatisfazeraessescretinos,possoatétransformaraprevisão meteorológicaemdiálogodepalhaços,masmeincomodaouvirBernardo anunciarlogoemseguidaamortedecentenasdepessoasnumacatástrofe aérea. Estouprontoasacrificarminhavidaparaqueumfrancêssedivirta, masasnotíciasnãosãopalhaçadas. Todospareciamconcordar,excetoPaul.Quandoumjovemprovocador riu,eleinterveio: —Grizzly!Osimagólogostêmrazão!Vocêconfundeasnotíciascomas ocorrênciasnoturnas. Grizzlylembrou-sedacrônicadePaul,àsvezesespirituosa,mas sempreexcessivamentesutilerecheadadepalavrasdesconhecidas,cujo significadoaredaçãoiaemsegredoprocurardepoisnodicionário. Preferindoevitaresseassuntonomomento,elerespondeureunindotoda suadignidade: —Sempreleveimuitoasérioojornalismoenãotenhoaintençãode mudardeopinião. Paulprosseguiu: —Ouvirasnotíciaséomesmoquefumarumcigarroquedepois jogamosfora. —Achodifíciladmitirisso. —Masvocêéumfumanteinveterado!Porqueacharuimqueas notíciassepareçamcomoscigarros?DizPaulrindo.Seoscigarrossão nocivos,asnotíciassãoinofensivaseproporcionamavocêumaagradável diversãoantesdeumdiadetrabalho. —AguerraentreoIrãeoIraqueéumdivertimento?Perguntou Grizzly,eumapontadeaborrecimentomisturou-seàpenaquesentiade Paul. —Acatástrofeferroviáriadehoje,todaessacarnificina,vocêachaisso engraçado? —Vocêcometeumerrocorriqueirovendonamorteumatragédia, dissePaul,quedecididamenteestavaemgrandeforma. —Confesso,dizGrizzlycomvozglacial,quesemprevinamorteuma tragédia. —Aíestáoerro,dizPaul.Umacatástrofeferroviáriaéhorrívelpara quemestánotrem,ousabequeseufilhoestáládentro.Masnas informaçõespelorádio,osentidodamorteéomesmoquenosromances deAgathaChristieque,semdúvida,éamaiormágicadetodosostempos, porquesoubetransformaramorteemdivertimento,enãosomenteuma morte,masdezenasdemortes,centenasdemortes,mortesemcadeia, perpetradasparanossagrandealegrianoscamposdeexterminaçãodos seusromances.Aushwitzestáesquecida,masosfornoscrematóriosdos romancesdeAgathaenviameternamentesuafumaçaemdireçãoao firmamento,esóumhomemmuitoinocentepoderiaafirmarqueéa fumaçadatragédia. Grizzlylembrou-sedeque,comparadoxoscomoesse,Paul,durante muitotempo,influenciaratodaaequipe,que,soboolharmaléficodos imagólogos,davafracoapoioaochefe,secretamentepersuadidadequeele estavaforademoda.Censurando-seportercedido,Grizzlyaomesmo temposabiaquenãotinhaoutraescolha. Essescompromissosobrigatórioscomoespíritodaépocatêmqualquer coisadebanal,afinaldecontas,deinevitável,anãoserquesequeira convocaraumagrevegeraltodososqueencararamnossoséculocom repugnância.MasnocasodePaul,nãosepodiafalardecompromisso obrigatório.Eleesforçava-seemofereceraseuséculosuainteligênciae seusbrilhantesparadoxoscomplenoconhecimentodecausa,esegundo Grizzly,comexcessodezelo.Aindacommaisfrieza,Grizzlyentão respondeu: —EutambémleioAgathaChristie!Quandoestoucansado,quando queromergulharnainfânciaporuminstante.Masseavidainteirase tornaumabrincadeiradecrianças,omundoacabarámorrendosobas risadinhasegritariasinfantis. Pauldisse: —PrefiromorrersobgritariasinfantisdoqueescutandoaMarcha fúnebredeChopin.Eacrescentooseguinte:Todomalvemdessamarcha fúnebrequeéaglorificaçãodamorte.Sehouvessemenosmarchas fúnebres,talvezsemorressemenos.Compreendaoquequerodizer:o respeitoqueatragédiainspiraémaisperigosoqueadespreocupaçãodas gritariasinfantis.Qualéaeternacondiçãodastragédias?Aexistênciade ideaisquetêmmaiorvalorqueavidahumana.Equaléacondiçãodas guerras?Amesmacoisa.Vocêéobrigadoamorrer,porquepareceque existequalquercoisasuperioràsuavida.Aguerrasópodeexistirno mundodatragédia;desdeoprincípiodesuahistória,ohomemnão conheceusenãoomundotrágicoenãoécapazdesairdisso.Aidadeda tragédiasópodeacabarporumarevoltadafrivolidade.Aspessoassó conhecem,daNonadeBeethoven,osquatrocompassosdohinoàalegria queacompanhamoanúnciodosperfumesBella.Issonãomeescandaliza.A tragédiaserábanidadomundocomoumavelhacabotina,quecomamão sobreocoraçãorecitacomvozrouca.Afrivolidadeéumadietaradical paraemagrecer.Ascoisasperderão90%deseusentidoesetornarão leves.Nessaatmosferararefeita,ofanatismodesaparecerá.Aguerra tornar-se-áimpossível. —Estoufelizemsaberque,afinal,vocêencontrouumamaneirade acabarcomasguerras,dizGrizzly. —Vocêimaginaajuventudefrancesaprontaacombaterpelapátria? NaEuropa,aguerratornou-seimpensável.Nãopoliticamente,mas antropologicamenteimpensável.NaEuropa,aspessoasnãosãomais capazesdeguerrear. Nãovámedizerquedoishomensemdesacordoprofundopodemse amar;sãocontosdacarochinha.Talvezpudessemseamarseguardassem paraelesprópriossuasopiniões,nãofalandosobreissoanãoseremtom debrincadeiraparadiminuiraimportânciadelas(foiassimquePaule Grizzlyconversaramatéagora).Masdepoisqueabrigaestourou,foitarde demais.Nãoqueacreditassemtantonasopiniõesquedefendiam,masnão suportavamnãoterrazão.Olheosdois.Alémdetudo,essabriganãovai mudarnadadenada,nãochegaráanenhumaconclusão,nãomudaráa marchadosacontecimentos,écompletamenteestéril,inútil,limitadaao perímetrodessacantinaeàsuaatmosferafétida,comaqualdesaparecerá quandoasfaxineirasabriremasjanelas.Noentanto,vejaaconcentração dopequenogrupodeouvintes,apertadosemvoltadamesa!Todos escutamemsilêncio,atéesquecendodetomarocafé.Eosdoisadversários seagarramaessaminúsculaopiniãopública,quevaidesignarouumou outrocomoodetentordaverdade:paracadaumdeles,serdesignado comoaquelequenãoadetémequivaleaumadesonra.Ouaperderum pedaçodoseueu.Narealidade,poucoimportaaelesaopiniãoque defendem.Mascomofizeramdissoumatributodoseueu,cadaataquea essaopiniãoéumaaguilhoadaemsuascarnes. Emalgumlugarnasprofundezasdesuaalma,Grizzlysentiasatisfação comaideiadequePaulnãofariamaiscomentáriossofisticadosna emissora;suavoz,cheiadeumorgulhodeurso,fazia-semaisbaixa,mais glacial.Paul,aocontrário,falavamaisaltoeasideiasquelhepassavam pelacabeçaeramcadavezmaisarrebatadaseprovocadoras. —Agrandecultura,dizele,éfilhadessaperversãoeuropeiaque chamamosdeHistória;querodizerqueestamaniadeestarsemprena frente,deconsiderarasgeraçõesseguintescomoumacorridade revezamentoondecadaumchegaantesdeseuantecessorparaser ultrapassadoporseusucessor.Semessacorridaderevezamento,que chamamosdeHistória,nãohaveriaaarteeuropeia,nemoquea caracteriza:odesejodeoriginalidade,odesejodemudança.Robespierre, Napoleão,Beethoven,Stalin,Picassotambémsãocorredoresde revezamento,todoscorremnomesmoestádio. —VocêachamesmoquesepodecompararBeethovenaStalin?— perguntouGrizzlycomcarregadaironia. —Evidentemente,mesmoseissolhechoca.Aguerraeaculturasãoos doispólosdaEuropa,seucéueseuinferno,suaglóriaesuavergonha,mas nãopodemserdesassociadas.Quandoumaacabar,aoutratambém acabará,desaparecerãojuntas.OfatodenãohavermaisguerranaEuropa hácinquentaanosestámisteriosamenteligadoaofatodequehácinquenta anosnãoconhecemosnenhumPicasso. creds—Voulhedizerumacoisa,Paul,disseGrizzlycominquietante lentidão,epodia-sedizerqueialevantarsuapesadapataparaaplicarum golpe:seagrandeculturaestáperdida,vocêtambémestá,eessassuas ideiasparadoxaisjuntocomvocê,porqueoparadoxocomotaltemcomo baseagrandeculturaenãoasgritariasinfantis.Vocêmefazpensar nessesjovensqueantigamenteaderiamaosmovimentosnazistasou comunistas,nãocomaintençãodepraticaromalnemporarrivismo,mas porexcessodeinteligência.Nadanarealidadeexigemaisesforçodo pensamentodoqueaargumentaçãonecessáriaparajustificaronãopensamento.Pudeconstatarissopessoalmente,depoisdaguerra,quando osintelectuaiseartistasentraramcomobezerrosparaopartido comunista,quedepois,comomaiorprazer,liquidou-ossistematicamente. Vocêfazexatamenteamesmacoisa.Vocêéobrilhantealiadodeseus próprioscoveiros. Oburrototal DorádiocolocadoentresuascabeçasvinhaavozfamiliardeBernardo, entrevistandoumatorcujofilmedeveriaestrearbrevemente.Suavoz estridentetirou-osdeseutorpor. —Vimfalarsobremeufilme,nãosobremeufilho. —Nãotenhamedo,chegaráavezdele,diziaavozdeBernardo.Masa atualidadetemassuasexigências.Correoboatodequeosenhorteveum papelimportantenoescândalodeseufilho. —Quandomeconvidouparaseuprograma,garantiu-mequeeleseria sobreofilme.Portantofalaremosdofilme,enãodaminhavidaparticular. —Osenhoréumhomempúblico,estoulhefazendoperguntasque interessamaosnossosouvintes.Estouapenascumprindomeudever. —Respondereiaqualquerperguntasobreofilme. —Comoquiser.Masnossosouvintesficarãosurpresosqueosenhorse recusearesponder. Agnèssaiudacama.Nofimdeunsbonsquinzeminutos,quandoia paraotrabalho,Paul,porsuavez,levantou-se,vestiu-se,edesceupara buscaracorrespondêncianaportaria.AssinadaporGrizzlyumadascartas anunciava-lhecomgrandesrodeios,misturandodesculpascomumhumor amargoaquiloquejásabemos:arádiodispensavaosserviçosdePaul. Releuacartaquatrovezes.Depois,comumgestodeindiferençafoi paraseuescritório.Massentia-sepoucoàvontade,incapazdeconcentrarse,esópensavanacarta.Paraeleeraumgolpetãoduroassim?Doponto devistaprático,absolutamente.Masestavamagoado.Todasuavida esforçara-separafugirdomundodosjuristas:estavafelizcoordenando umseminárionauniversidade,eestavafelizfalandonarádio.Nãoquea profissãodeadvogadolhedesagradasse:aocontrário,gostavados acusados,tentavacompreenderocrimequehaviamcometidoedar-lhe sentido;"Nãosouumadvogado,massimumpoetadadefesa!",diziaele brincando;ecolocava-seconscientementedetodoocoraçãoaoladodos fora-da-lei,considerando-se(nãosemumacertavaidade)comoum traidor,umquinta-coluna,umguerrilheirocaridosonummundodeleis desumanas,comentadasemgrossoslivrosquecarregavasemprenas mãoscomaligeirarepugnânciadeumconhecedordesiludido.Também desejavamantercontatoshumanosforadoslimitesdoPaláciodeJustiça, ligar-seaosestudantes,aosescritores,aosjornalistas,paraconservara certeza(enãoapenasailusão)depertenceraessafamília.Eramuito ligadoaelesenãoaceitaradebomgradoqueacartadeGrizzlyo mandassedevoltaparaseuescritórioeparaotribunal. Haviaoutromotivoparasentir-sedeprimido.QuandoGrizzlychamou-o navésperadealiadodeseuspróprioscoveiros,Paulnãoviranissosenão umaelegantemaldade,semnenhumconteúdoconcreto.Apalavracoveiros nãolhediziagrandecoisa.Équeaindanãosabianadasobreesses coveiros.Masagoraquejáreceberaacarta,rendia-seàevidência:os coveirosexistiammesmo,jáohaviamindicadoeoesperavam. Subitamentecompreendeuqueaspessoasoviamdemaneiradiversa daqueeleprópriosevia,nãodamaneiraqueeleimaginavaservisto.De todososcolaboradoresdaestação,eraoúnicoquedeveriasair,apesarde Grizzly(nãotinhaamenordúvida)tê-lodefendidodamelhormaneira possível.Emqueirritaratodosessespublicitários?Aliás,seriaingênuo acharqueessaspessoasseriamasúnicasaconsiderá-loinaceitável. Muitasoutrasdeveriamteramesmaopinião.Oquetinhaacontecidocom suaimagem?Tinhaacontecidoalgumacoisa,elenãosabiadizeroquee nuncairiasaber.Poiséassim,ealeivaleparatodomundo:nunca sabemosporqueeemqueaborrecemososoutros,emquelhessomos antipáticos,emquelhesparecemosridículos;nossaprópriaimagemépara nósomaiormistério. Paulsabiaque,odiainteiro,nãopensariaemmaisnada;tirandoo telefonedogancho,convidouBernardoparaalmoçarfora. Sentaram-seumemfrenteaooutro;Paulmorriadevontadedefalarda carta,mascomoerabem-educadosuasprimeiraspalavrasforamde delicadeza:' 'Escuteivocêdemanhãcedo.Vocêcercouaqueleatorcomosefosse umcoelho." —Éverdade,disseBernardo.Talveztenhaexagerado.Masestavade umhumorexecrável.Ontemrecebiumavisitaquenuncavouesquecer. Umdesconhecidoveiomever.Maisaltoumpalmodoqueeu,ostentando umabarrigaenorme.Apresentando-se,sorriuparamimcomumar terrivelmenteamável."Tenhoahonradeentregar-lheestediploma", dissemeeleenfiandoentremeusdedosumtubodecartolina.Pediu-me cominsistênciaqueoabrissediantedele.Dentrohaviaumdiploma.Em cores.Numaboacaligrafia.Ainscriçãodizia:BernardoBertrandé promovidoaburrototal. —Oquê?dissePaulcaindonagargalhada,maslogocontrolou-seao verdiantedeleumrostograveesérioemquenãohaviaomenortraçode divertimento. —É,repetiuBernardocomumavozsinistra,fuipromovidoaburro total. —Masquempromoveuvocê?Haviaonomedeumaorganização? —Não,háapenasumaassinaturailegível. Bernardorepetiumuitasvezesoquelhetinhaacontecido,antesde acrescentar: —Comeceinãoacreditandonosmeusolhos.Tinhaaimpressãode estarsendovítimadeumatentado,queriagritarechamarapolícia.Depois compreendiquenãopodiafazernada.Otiposorriaemeestendiaamão: "Possofelicitá-lo?"dissemeele,eestavatãoconfusoqueapertei-lheamão. —Apertouamãodele?Agradeceu-lhesinceramente?dissePaul reprimindoorisocomdificuldade. —Quandocompreendiquenãopodiamandarapolíciaprenderaquele sujeito,quismostrarmeusangue-frioeagircomosetudofosse perfeitamentenormalecomosenadativessemeofendido. —Ématemático,dissePaul:quandoseépromovidoaburro,agimos comoumburro. —Quehorror,disseBernardo. —Evocênãosabequemera?Noentantoeleseapresentou! —Estavatãonervosoquelogoesquecionomedele.Paulnão conseguiamaissecontrolar;caiunagargalhada. —É,seiquevocêvaidizerqueéumabrincadeira,éclaroquevocêtem razão,éumabrincadeira,continuouBernardo.Masnãohánadaafazer. Desdeentãonãoconsigopensaremoutracoisa. PaultinhaparadoderircompreendendoqueBernardodiziaa verdade:semdúvidanenhuma,nãopensavaemmaisnadadesdea véspera.ComoPaulteriareagidorecebendosemelhantediploma? ExatamentecomoBernardo. Quandovocêéqualificadodeburrototal,significaquepelomenosuma pessoavêvocêcomostraçosdeumburroequefazquestãodequevocê saibadisso.Sóissojáédesagradável.Eéinteiramentepossívelquea iniciativatenhasidotomadanãoapenasporumaúnicapessoa,maspor umadezenadepessoas.Étambémpossívelqueessaspessoaspreparem umoutrogolpe,como,porexemplo,colocarumanúncionosjornais,detal modoquenoLeMondedodiaseguinte,nosanúnciosdosfunerais,dos casamentosedasdistinçõeshonoríficas,todospossamficarsabendoque Bernardofoipromovidoaburrototal. Bernardoconfidenciou-lhedepois(ePaulnãosabiasedeviarirdo amigoouchorarporele)quedesdequereceberaodiploma,eleo mostravaatodosqueencontrava.Nãoqueriaficarsozinhonasua humilhação,tentavaenglobarnelaosoutros,explicandoatodomundoque nãoeraoúnicovisado. —Sesetratasseapenasdemim,teriammeentregadoodiplomaem casa. Masmeentregaramnarádio!Éumataqueaosjornalistas!Umataque contratodosnós! Paulcortavaacarnenoprato,bebericavaseuvinhoepensava:eisdois bonsamigos:umsechamaburrototal,ooutroéobrilhantealiadodeseus coveiros.Ecompreendeu(oquetornavaseuamigomaismoçoaindamais querido)queemespíritonãoochamariamaisBernardo,massemprede burrototal:nãopormaldade,masporqueumtítulotãobonitoé irresistível,todosaquelesaquemBernardomostraraodiploma,emseu abatimentoirracional,certamenteiriamchamá-losempreassim. PensoutambémqueGrizzlytinhasidomuitoafetuosoaoqualificá-lode brilhantealiadodeseuscoveirosnodecorrerdeumasimplesconversade mesa. Afinaldecontas,poderiaterlhedadoumdiplomaeissoteriasidobem pior.Foiassim,graçasaoproblemadeseuamigo,quePaulquase esqueceuseuprópriosofrimentoequandoBernardolhedisse:"Parece quevocêtambémteveumaborrecimento".Eleafastouaquestão: "Bobagens,"eBernardoconcordou:"vilogoquevocêestavaacimadisso. Vocêtemmilcoisasmaisinteressantesafazer." QuandoBernardolevou-oatéseucarro,Pauldisselhecommuita melancolia: —Grizzlyestáerradoeosimagólogostêmrazão.Ohomemnãoénada alémdesuaimagem.Osfilósofospodemnosexplicarqueaopiniãodo mundocontapoucoequesócontaaquiloquesomos.Masosfilósofosnão compreendemnada.Enquantovivermosentreoshomens,seremosaquilo queossereshumanosachamquesomos.Passamosporpatifesou espertalhõesquandonofundonosperguntamossempararcomoosoutros nosenxergam,quandonosesforçamosporpareceromaissimpáticosque podemos.Masentremeueueodooutro,seráqueexisteumcontato direto,semosolhoscomointermediários?Épossívelpensaroamorsema buscaangustiadadesuaprópriaimagemnopensamentodapessoa amada?Quandooqueooutropensadenósnãotemmaisimportância,é porquedeixamosdeamá-lo. —Vocêtemrazão,disseBernardocomumavozbaixa. —Éumailusãoingênuaacharquenossaimageméumasimples aparência,atrásdaqualseesconderiaaverdadeirasubstânciado nossoeu,independentedoolhardomundo.Comumcinismoradical,osimagólogosprovamqueocontrárioéverdadeiro:nossoeuéumasimples aparência,inatingível,indescritível,confusa,enquantoqueaúnica realidade,fácildemaisdeapreenderededescrever,énossaimagemnos olhosdosoutros.Epior,vocênãotemocomandosobreisso.Vocêprimeiro tentapintá-lavocêmesmo,depoispelomenosconservarumainfluência sobreela,controlá-la,masemvão:bastaumafórmulamaldosapara transformá-laparasemprenumalamentávelcaricatura. Pararampertodocarro;Paulviuemfrentedeleumrostoaindamais ansiosoepálido.Suaintençãotinhasidoreconfortaroamigo,masagora constatavaquesuaconversaoabatera.Sentiuremorso:foipensandoemsi mesmo,noseuprópriocaso,queeletinhasedeixadolevarporessas reflexões. Masomalestavafeito. Aodespedir-se,Bernardodissecomumconstrangimentoquecomoveu Paul: —Porfavor,nãofalenissocomLaura.NãofalenemcomAgnès.Deulheumapertodemãofirmeeamistoso: —Podeconfiaremmim. Devoltaaseuescritório,começouatrabalhar.Seuencontrocom Bernardoestranhamenteoconsolaraeelesesentiamelhordoquede manhã.Nofimdatarde,foiencontrarAgnèsemcasa.Aolhefalardacarta deGrizzly,nãodeixoudeacrescentarqueoproblemaerasem importância.Tentourirenquantofalava,masAgnèspercebeuqueentreas palavraseoriso,Paulcomeçavaatossir.Conheciaessatosse.Quando tinhaumaborrecimentoPaulsempresabiasecontrolar;aúnicacoisaque otraíaeraessatosseinsistente,daqualnãosedavaconta. —Elesquiseramtornaroprogramamaisengraçadoemaisjovem, disseAgnès.Seucomentáriopretendiaserirônicoemrelaçãoaosque tinhamcanceladooprogramadePaul.Depoisacariciou-lheoscabelos.Mas nuncadeveriaterfeitoisso.NosolhosdeAgnès,Paulviasuaimagem:ade umhomemhumilhadoquetinhamresolvidonãoacharmaisnemjovem nemengraçado. Ágata Cadaumdenósdesejatransgredirasconvenções,ostabuseróticos,e entrarcomembriagueznoreinodoProibido.Masnosfaltatantaaudácia... Arranjarumaamantemaisvelha,umamantemaismoço,eisoque podíamosrecomendarcomoomeiodetransgressãomaisfácil,mais acessívelatodos.PelaprimeiravezLauratinhaumamantemaismoçodo queela,Bernardotinha,pelaprimeiravez,umaamantemaisvelhadoque ele,etodosdoisviviamessaprimeiraexperiênciacomoumpecado excitante. QuandoLauraasseguravaaPaulqueBernardoafaziarejuvenescer dezanos,falavaaverdade:umaondadeenergiaainvadia.Masissonão queriadizerqueelasesentiamaismoçadoqueele.Aocontrário, saboreavacomumdeleite,atéentãodesconhecido,aideiadeterum amantemaismoço,umamantequeseachavamaisfracoequeficavatenso aopensarquesuaamanteexperimentadairiacompará-loaseus antecessores.Noerotismoécomonadança:umdosparceirossemprese encarregadeconduzirooutro.PelaprimeiravezLauraconduziaohomem, econduzirparaelaeratãoexcitantequantoserconduzidoparaBernardo. Oqueamulhermaisvelhaofereceaohomemmaismoçoéantesde tudoacertezadequeseuamorsedesenvolverálongedequalquerrisco matrimonial,pois,afinaldecontas,ninguémimaginaqueumhomemque temumfuturobeloepromissorvásecasarcomumamulheroitoanos maisvelha.ÉporissoqueBernardotinhaparaLauraomesmoolharque Pauloutrorativeraparaamulherquesetornousuaametista:supunha quesuaamanteestivessedispostaadesaparecerumdiadiantedeuma mulhermaismoçaqueelepudesseapresentaraseuspaissemqueestes sesentissemconstrangidos.ConfiandonasabedoriamaternaldeLaura, achavaqueelaseriacapazdesermadrinhadeseucasamentoefingir perfeitamenteparaajovemnoivanuncatersido(oumesmoaindaser) amantedeBernardo. Suafelicidadefoicompletadurantedoisanos.DepoisBernardofoi promovidoaburrototaletornou-setaciturno.Lauraignoravatudosobreo diploma(Paulcumpriraoprometido)enãotendoohábitodeinterrogar Bernardosobreseutrabalhotambémnãosabianadasobreseusoutros problemasprofissionais(comosabemos,umadesgraçanuncavem sozinha);portantointerpretavaseumutismocomoprovadequenãoa amavamais.Jámuitasvezestinhareparadoqueissoacontecia:elenão sabiaoqueelatinhaacabadodefalar;estavacertadequenesses momentosestavacomoutramulhernacabeça.Ah,emamoréprecisotão poucoparaquefiquemosdesesperados! Veioumdiaàcasadelamergulhadoempensamentossombrios.Ela desapareceudasalaparatrocarderoupaeeleficousozinhonasalaem companhiadagrandegata.Nãosentiaporelanenhumasimpatiaespecial, massabiaqueaosolhosdadonaobichoerasagrado.Sentadonuma poltrona,entregava-se,portanto,aseuspensamentossombrios estendendomaquinalmenteamãoemdireçãoàgata,porqueseachavana obrigaçãodeacariciá-la.Masagatacomeçouarosnaremordeu-lheamão. Estamordida,somando-seatodaumasériedefracassosehumilhações suportadasnasúltimassemanas,encheu-oderaivae,pulandodacadeira, ameaçouagatacomopunhofechado.Elacorreuparaumcantoearqueou ascostasemitindoterríveismiados. Depoisvirou-seeviuLaura.Depénaporta,elacertamenteobservara todaacena. —Não,disseela,agatanãodeveserpunida.Estavaperfeitamenteno direitodela. Bernardoolhou-acomespanto.Amordidaestavadoendoeesperava queaamante,senãosealiasseaelecontraagata,pelomenosdesseprova deumsensomínimodejustiça.Sentiavontadededarumpontapétão violentonagata,queelaficassecoladanaparede.Foiprecisoumagrande esforçoparaconseguirdominar-se. Lauracontinuou,articulandocadapalavra: —Quandoéacariciada,elaexigequenãosefiquedistraído.Eu tambémnãosuportoquesefiquecomigocomopensamentonoutracoisa. Algunsmomentosantes,aoversuagatareagirtãoviolentamenteà atitudedistraídadeBernardo,sentiu-se,derepente,solidáriacomo animal.HásemanasBernardocomportava-seemrelaçãoaelacomoem relaçãoàgata:acariciava-a,masseuspensamentosestavamlonge;fingia estaremsuacompanhia,masnãoaescutava. Quandoviuagatamorderseuamante,teveaimpressãodequeseu outroeu,oeusimbólicoemísticoqueeraparaelaseuanimal,queria, destemodo,encorajá-la,mostrar-lheacondutaaseguir,servirdeexemplo. Hámomentos,pensouela,emqueéprecisomostrarasgarras;decidiuque naquelamesmanoite,norestauranteemquedeveriamjantarasós, finalmenteencontrariaacoragemnecessáriaparaagir. Direiclaramente,adiantandoosacontecimentos:édifícilimaginar bobagemmaiordoqueasuadecisão.Aquiloqueelaqueriaera inteiramentecontrárioaseusinteresses.ÉprecisoacentuarqueBernardo, desdequeaconhecerahádoisanos,estavafelizemsuacompanhia,talvez atémaisfelizdoqueLauraimaginava.Elaeraparaeleumaevasão,um refúgiolongedavidaqueseupai,oeufônicoBertrandBertrand,preparoulhedesdeainfância.Enfim,podiaviverumaliberdade,comodesejava,ter umcantosecretoondenenhummembrodesuafamíliavinhaintroduzir suacabeçacuriosa,umcantoondesuavidacorriaseguindooutroshábitos: adoravaosmodosboêmiosdeLaura,opianoquedevezemquando tocava,osconcertosaqueiacomela,seusestadosdeespíritoesuas excentricidades.Emsuacompanhia,sentia-selongedaspessoasricase enfadonhasquefrequentavamacasadeseupai.Masafelicidadedeles tinhaumacondição:deviampermanecersolteiros.Secasassem,tudo mudariasubitamente:auniãodelesficariaimediatamenteexpostaatodas asinterferênciasdafamíliadeBernardo;oamordelesperderia,desta forma,nãoapenasseucharme,mastambémsuaprópriarazãodeser.E Lauranãopoderiaexercertodopoderqueexerciaatéentãosobre Bernardo. Comoelapodiatomarumadecisãotãoestúpida,tãocontráriaaseus interesses?Conheceriatãopoucooseuamante?Compreenderiatãomal? É,porestranhoquepareça,elaoconheciamal,enãoocompreendia. FicavamesmoorgulhosaemnãoseinteressarporBernardo,mas apenasporseuamor.Nuncaointerrogavasobreseupai.Nãosabianada sobresuafamília. Quandoelelhefalavadesimesmo,elasecaceteavaostensivamentee logomanifestavasuarecusaemdesperdiçarumtempopreciosoque poderiadedicaraBernardo.Maisestranhoainda:duranteassemanas sombriasdodiploma,emqueelenãoabriaabocaanãoserpara desculpar-sedeestarcomproblemas,elasemprerepetia: —É,osproblemas,seioqueéisso.Massemnuncafazer-lheaseguinte pergunta,amaissimplesdetodas: —Queproblemasvocêtem?Objetivamente,oqueestáacontecendo? Fale,digaoquelhepreocupa! Écurioso:eraloucaporBernardoe,aomesmotempo,nãose interessavaporele.Diriaaté:eraloucaporBernardoeporessamesma razãonãoseinteressavaporele.Selhecensurássemossuafaltade interesseeaacusássemosdenãoconhecerseuamante,elanãonos compreenderia.PoisLauranãosabiaoquesignificaconheceralguém.Era comoumavirgemquetemeficargrávidaaotrocarmuitosbeijoscomseu amante!HámuitotempopensavaemBernardoquasesemparar. Imaginavaseucorpo,seurosto,tinhaaimpressãodeestarconstantemente comele,deestarimpregnadadele.Porissoachavaqueoconheciadecor, comoninguémoconheceraantes.Osentimentodoamornosenganaa todosporumailusãodecompreensão. Depoisdessesesclarecimentos,talvezpossamos,enfim,acreditarque eladeclarou-lhenasobremesa(paradesculpá-lapoderiaesclarecerque tinhamtomadoumagarrafadevinhoedoisconhaques,masestoucertode queelateriaditoamesmacoisaseestivessesóbria): —Bernardo,casecomigo! Ogestodeprotestocontraosatentadosaosdireitosdo homem Brigitesaiudeseucursodealemãofirmementedecididaanãovoltar maisali.Porumlado,alínguadeGoetheparecia-lhedestituídadetoda utilidadeprática(foisuamãequelhetinhaimpostoesseaprendizado),por outroladosentia-seemprofundodesacordocomoalemão.Essalínguaa irritavapeloseuilogismo.Destavezadosefoiexcessiva:apreposiçãoohne (sem)regiaoacusativo,apreposiçãomit(com)regiaodativo.Porquê?Na verdadeasduaspreposiçõessignificamosaspectosnegativoepositivoda mesmarelação,demodoquedeveriamgeraramesmadeclinação.Brigite fizeraessaobservaçãoaseuprofessor,umjovemalemãoqueficou embaraçadocomessaobjeçãoequesesentiralogoculpado.Essehomem simpáticoesutilsofriaporpertenceraumpovoquetinhasidogovernado porHitler.Prontoaculparsuapátriaportodasastaras,concordou imediatamentequenenhumarazãoválidajustificavaduasdeclinações diferentescomaspreposiçõesmiteohne. —Seiquenãoélógico,maséumusoqueficouestabelecidoatravés dosséculos,disseelecomosequisessedespertarapenadajovem francesaemrelaçãoaumalínguacondenadapelahistória. —Estoucontentequevocêreconheçaisso.Nãoélógico.Ora,uma línguadeveserlógica,disseBrigite. Ojovemalemãoconcordou: —Pena;nãotivemosumDescartes.Éumaloucuraimperdoávelde nossahistória.AAlemanhanãotematradiçãoquevocêstêmderazãoede clareza,elaécheiadebrumasmetafísicas.AAlemanhaéamúsica wagneriana,etodossabemosquemeraomaioradmiradordeWagner: Hitler! NãoseimportandonemcomHitlernemcomWagner,Brigitecontinuou seuraciocínio: —Umacriançapodeaprenderumalínguailógica,porqueumacriança nãoédotadaderazão.Masumestrangeiroadultonuncapoderáaprendêla.Ameuver,éporissoqueoalemãonãoéumalínguadecomunicação universal. —Vocêtemtodarazão,disseoalemão,eacrescentouameiavoz:veja comoeraabsurdaavontadealemãdedominaromundo. Satisfeitaconsigomesma,BrigiteentrounocarroefoiparaoFauchon comprarumagarrafadevinho.Emvãoprocurouumlugarpara estacionar:filasdecarrosalinhavam-senascalçadas,pára-choques encostadosempára-choques,numaextensãodeumquilômetro;depoisde darvoltasdurantequinzeminutos,foiinvadidaporumespantoindignado comessafaltadevagas:subiunacalçadaedesligouomotor.Depois dirigiu-seapéparaaloja.Delongepercebeuquealgoestranhoacontecia. Aproximando-se,compreendeu:Ointerioreavizinhançadacélebreloja, ondetudocustadezvezesmaiscarodoqueemqualqueroutrolugar,tanto queaclientelaédepessoasquetêmmaisprazerempagardoqueem comer,estavamocupadosporumacentenadepessoasmodestamente vestidas,degrevistas;eraumamanifestaçãocuriosa:nãotinhamvindo quebrarnada,nemfazerameaças,nemgritarslogans;tinhamvindo simplesmenteembaraçarosricaçoseestragar-lhesoprazerdobomvinho edocaviar.Naverdade,tantoosvendedoresquantooscompradores subitamentesorriamcomtimidezepareciamtãoincapazesdevender quantodecomprar. Brigiteabriucaminhoatravésdamultidãoeentrou.Nãotinhaantipatia pelosgrevistasetambémnãotinhanadacontraasmulheresusando casacosdepele.Emvozaltapediuumagarrafadebordeaux.Sua determinaçãosurpreendeuavendedoraefezcomqueesta compreendessequeosmanifestantes,cujapresençanãoeranada ameaçadora,nãodeveriamimpedirqueelaservisseajovemfreguesa. Brigitepagouagarrafaevoltouparaocarro,diantedoqualestavamdois policiais,canetanamão. Começouarepreendê-los,eassimqueelesexplicaramqueocarro estavamalestacionadosobreacalçada,elamostrou-lhesoscarros estacionadosemfilaunsatrásdosoutros:—Vocêspodemmedizeronde iriaestacionar?—Disseela.—Sepermitemqueaspessoascomprem automóveis,deviamgarantir-lhesumlugarondecolocá-los,não?Épreciso serlógico! Contoissotudosópeloseguintedetalhe:repreendendoospoliciais, Brigitelembrou-sedosgrevistasemfrentedalojaesentiuporelesuma bruscaegrandesimpatia:sentia-seunidaaelesnummesmocombate.Isso deu-lhecoragemefaloumaisalto;osguardas(tãoembaraçadosquantoas mulherescomcasacosdepelediantedosgrevistas)podiamapenasrepetir idiotamente,semamenorconvicção,aspalavras"proibido","nãoé permitido","disciplina","ordem"eacabaramdeixandoqueelapartisse semmultá-la. Duranteessainvestida,Brigiteacompanhousuareclamaçãocom rápidosecurtosmovimentosdecabeça,levantandoaomesmotempoos ombroseassobrancelhas.Quando,devoltaacasa,contouoincidentea seupai,suacabeçafezexatamenteomesmomovimento.Jáencontramos essegesto:expressaumespantoindignadodiantedaquelesque pretendemnegarnossosdireitosmaiselementares.Logo,chamemosesse gesto:ogestodeprotestocontraosatentadosaodireitodohomem. Anoçãodosdireitosdohomemdatadedoisséculosmassóatingiuo apogeudesuaglórianasegundametadedosanossetentadenossoséculo. Nestaépoca,AlexandreSoljenitsynefoibanidodaRússia,suapessoa extraordinária,debarba,ecomumpardealgemas,hipnotizouos intelectuaisocidentaisemfaltadegrandesdestinos.Graçasaele,com cinquentaanosdeatraso,acabaramporreconheceraexistênciade camposdeconcentraçãonaRússiacomunista;mesmooshomens avançadosadmitiramsubitamentequeaprisionaraspessoaspeloque pensavamnãoerajusto.Eparajustificarsuanovaatitude,encontraram umexcelenteargumento:oscomunistasrussosestavamatentosaos direitosdohomem,solenementeproclamadospelaprópriaRevolução Francesa! Portanto,graçasaSoljenitsyne,aexpressão"direitosdohomem" reencontrouseulugarnovocabulárioatual;nãoconheçoumpolíticoque nãoinvoquedezvezespordia"alutapelosdireitosdohomem"ou"os direitosdohomemdesprezadospornós".MascomonoOcidentenãose vivesobaameaçadoscamposdeconcentração,comopodemosfalarou escreverqualquercoisa,àmedidaquealutapelosdireitosdohomem ganhavapopularidade,perdiatodoconteúdoconcreto,paratornar-se finalmenteaatitudecomumdetodosarespeitodetudo,umaespéciede energiatransformandotodososdesejosemdireitos.Omundo transformou-seemdireitodohomemetudotransformou-seemdireito:o desejodoamornodireitoaoamor,odesejodorepousonodireitoao repouso,odesejodaamizadenodireitoàamizade,odesejodedirigir depressademais,nodireitodedirigirdepressademais,odesejoda felicidadenodireitoàfelicidade,odesejodepublicarumlivronodireitode publicarumlivro,odesejodegritarnasruasdenoitenodireitodegritar nasruasdenoite.Osgrevistastêmodireitodeocuparalojadeluxo,as mulherescomcasacosdepeletêmodireitodecomprarcaviar,Brigitetem odireitodeestacionarseucarrosobreacalçada,etodos,grevistas, mulherescomcasacosdepele,Brigite,pertencemaomesmoexércitode militantesdosdireitosdohomem. SentadonumapoltronaemfrentedeBrigite,Paul,comamor,olhava-a balançaracabeçadaesquerdaparaadireita.Elesabiaqueafilhagostava deleeissoparaeleeramaisimportantedoqueagradarasuamulher.Pois osolhoscheiosdeadmiraçãodafilhadavam-lheoqueAgnèsnãopodialhe dar:aprovadequeelenãoestavaafastadodajuventude,queaindafazia partedosjovens. ApenasduashorashaviampassadodesdequeAgnès,comovidacom suatosse,havia-lheacariciadooscabelos.Aessacaríciahumilhante,como elepreferiaobalançardecabeçadeBrigite!Apresençadesuafilhaagia nelecomoumacumuladordeenergia,deondeeletiravasuaforça. Serabsolutamentemoderno Ah!EssecaroPaulquequeriaprovocarGrizzlyeirritá-lo,fazendoum riscosobreaHistória,sobreBeethoven,sobrePicasse.Nomeuespírito confunde-secomJaromil,opersonagemdeumromancecujaredação termineiexatamentehávinteanos,umexemplardoqualserádeixado numbistrôdeMontparaasse,paraserentregueaoprofessorAvenarius. EstamosemPragaem1948;Jaromil,comaidadededezoitoanos,está mortalmenteapaixonadopelapoesiamoderna,porDesnos,Éluard,Breton, VitezslavNezval;aexemplodelescriouparasimesmoumslogancoma fraseescritaporRimbaudemUmatemporadanoinferno:"éprecisoser absolutamentemoderno".Ora,oqueemPragarevelou-sederepente inteiramentemodernofoiarevoluçãosocialista,queimediatae brutalmentecondenouàmorteaartemodernapelaqualJaromilestava mortalmenteapaixonado.Então,meuherói,diantedealgunsamigosnão menosapaixonadospelaartemoderna,renegousarcasticamentetudoque amava(tudoqueamavarealmenteedetodocoração)paranãotrairo grandemandamentode"serinteiramentemoderno".Emsuanegação, colocoutodaraiva,todapaixãodeumadolescentedesejosodeentrarna vidaadultaporumatobrutal;eseusamigos,aovercomqueobstinação negavatudoquelheeramaiscaro,tudoaquiloporquetinhavividoe queriaviver,aovê-lonegarPicassoeDali,BretoneRimbaud,aoverque osnegavaemnomedeLenineedoExércitoVermelho(quenaquele momentorepresentavaomáximodamodernidade),seusamigosficaram comagargantaapertada,primeiroestupefatos,depoisenojadose finalmentehorrorizados.Oespetáculodesseadolescentequeaderiaàquilo quesedeclaravamoderno,equeaderianãoporcovardia(parafavorecer suacarreira)masporcoragem,comoumhomemquesacrificacomdor aquiloqueama,sim,esseespetáculotinhaalgumacoisadehorrível (prenunciandoohorrordoterroriminente,ohorrordasprisõesedos enforcamentos).Talvezalguémtenhadito,então,observando-o:"Jaromilé oaliadodeseuspróprioscoveiros." Claro,JaromilePaulnãoseparecemabsolutamente.Seuúnicoponto emcomuméjustamenteaconvicçãoapaixonadadeque"éprecisoser absolutamentemoderno"."Absolutamentemoderno"éumanoçãocujo conteúdoémutáveleinatingível.Em1872,certamenteRimbaudnão pensavaversobessaspalavrasmilhõesdebustosdeLenineedeStalin; imaginavaaindamenososfilmespublicitários,asfotoscoloridaseorosto extasiadodeumcantorderock.Maspoucoimporta,poisser absolutamentemodernosignifica:nuncaquestionaroconteúdodo moderno,colocar-seaseuserviçocomoseestáaserviçodoabsoluto,isto é,semterdúvidas. AssimcomoJaromil,Paulsabiaqueamodernidadedeamanhãdifere dadehojeequepeloimperativoeternodomodernoéprecisosabertrair seuconteúdoprovisório,domesmomodoquepelosloganrimbaudianoé precisosabertrairosversosdeRimbaud.EmParisde1968,aoadotaruma terminologiabemmaisradicalaindadoqueJaromilnaPragade1948,os estudantesrecusaramomundotalqualeleé,omundosuperficialdo conforto,docomércio,dapublicidade,omundodaestúpidaculturade massasquerecheiaacabeçadaspessoascommelodramas,omundodas convenções,omundodopai.Nessaépoca,Paulhaviapassadoalgunsdias nasbarricadasesuavozecoaratãoresolutamentequantoavozdeJaromil vinteanosantes;nadapoderiafazê-lorecuar;apoiadonobraçoquelhe ofereciaarevoltaestudantil,distanciava-sedomundodospais,para finalmentetornar-se,aostrintaecincoanos,umadulto. Depoisotempopassou,suafilhacresceuesesentiuavontadeno mundocomoeleé,nomundodatelevisão,dorock,dapublicidade,da culturademassasedeseusmelodramas,nomundodoscantores,dos carros,damoda,dasmerceariasdeluxoedosindustriaiselegantes elevadosàcategoriadeestrelas. Capazdedefenderdecididamentesuasposiçõescontraosprofessores, contraospoliciais,contraosprefeitoseosministros,Paulnãosabia defender-seabsolutamentedesuafilha,quegostavadesentar-seemseus joelhosenãoseapressavademodoalgumemdeixaromundodopai, comoelefizeraoutrora,paraentrarnaidadeadulta.Aocontrário,ela queriaficaromaiortempopossívelsobomesmotetodeseutolerante papai,que(quasequeenternecido)permitiaquetodosossábadosela dormissecomseunamoradoaoladodoquartodospais. Quesignificaserabsolutamentemodernoquandonãoseémaisjovem equandosetemumafilhainteiramentediferentedaquiloqueéramosna suaidade? Paulencontrouarespostasemdificuldade:nestecaso,ser absolutamentemodernosignificaidentificar-seinteiramentecomsuafilha. ImaginoPaul,emcompanhiadeAgnèsoudeBrigite,sentadoàmesado jantar.Brigite,sentadameiodeladonacadeira,mastigaenquantoolhaa televisão.Nenhumdostrêsdizumapalavraporqueatelevisãoestáalta. PaulcontinuapensandonafunestaobservaçãodeGrizzly,queoqualificou comoaliadodeseuspróprioscoveiros.DepoisarisadadeBrigite interrompeuocursodeseuspensamentos:natelaestápassandoum anúncio:umacriançanua,compoucomenosdeumano,selevantadeseu penicoarrastandoatrásdelaorolodepapelhigiênicocujabrancurase estendecomoacaudamajestosadeumvestidodenoiva.Ora,PaullembrasedeterconstatadorecentementequeBrigitejamaisleraumpoemade Rimbaud.Considerandoaquepontoelemesmo,naidadedeBrigite,amara Rimbaud,comrazãoelepoderiajulgá-lacomoseuprópriocoveiro. Sentecertamelancoliaquandoouvearisadaabertadesuafilha,que ignoraograndepoetaesedeleitacominépciastelevisionadas.Depois perguntaasimesmo:narealidade,porqueeleamoutantoRimbaud? Comochegouaesseamor?Foienfeitiçadoporseuspoemas?Não.Naquela épocaRimbaudconfundia-seemseuespíritocomTrotsky,comBreton, comMao,comCastro,paraformarumaúnicaamálgamarevolucionária.O queeleconheceuprimeirodeRimbaudfoiosloganrepisadoportodo mundo:mudaravida.(Comose,paraformulartalbanalidade, precisássemosdeumpoetagenial...)Semdúvida,Pauldepoisleuosversos deRimbaud;sabiaalgunsdecoreamava-os.Masnuncaleutodosos poemas:sótinhagostadodaquelesquetinhamsidomencionadosporsua turma,queporsuavezosmencionaragraçasàrecomendaçãodeoutra turma. Portanto,Rimbaudnãofoiseuamorestéticoeépossívelqueelenunca tenhaconhecidoumamorestético.Enrolou-senabandeiradeRimbaud comonosenrolamossobumabandeira,comoaderimosaumpartido político,comosetorceporumclubedefutebol.Naverdade,oquelhe tinhamacrescentadoosversosdeRimbaud?Nadamaisdoqueoorgulho deserumdosqueamavamosversosdeRimbaud. PaulvoltavasempreàsuarecenteconversacomGrizzly:é,ele exagerava,deixava-selevarpelosparadoxos,provocavaGrizzlyetodosos outros,masafinaldecontasnãodiziaaverdade?AquiloqueGrizzlychama comtodorespeito"acultura"nãoénossaquimera,algodebeloede precioso,claro,masquenosimportamuitomenosdoqueousamos admitir? Algunsdiasantes,PauldesenvolveracomBrigite,esforçando-sepor retomarosmesmostermos,asreflexõesquetrocaracomGrizzly.Queria conhecerasreaçõesdesuafilha.Nãoapenaselanãoseescandalizoupelas fórmulasprovocantes,masdispôs-seairmuitoalém.Eraissoquecontava paraPaul.Poisestavacadavezmaisligadoàsuafilhae,háalgunsanos perguntavasuaopiniãosobretodososproblemasqueenfrentava.Talvez, aprincípio,otenhafeitoporumapreocupaçãopedagógica,paraforçá-laa seinteressarporcoisassérias,maspoucodepoisospapéisseinverteram sub-repticiamente:nãopareciamaisumprofessorestimulandocomsuas perguntasumalunotímido,massimumhomempoucosegurodesique consultaumavidente. Nãoseexigedeumavidentequepossuaumagrandesabedoria(Paul nãotinhailusõessobreostalentoseosconhecimentosdesuafilha),mas queelaestejaligadaporfiosinvisíveisaumreservatóriodesabedoria independentedela. QuandoBrigiteexpunhasuasopiniões,nãoasatribuíaàoriginalidade pessoaldesuafilha,masàgrandesabedoriacoletivadosjovens,quese expressavaporsuaboca;assimaescutavacomumaconfiançasempre crescente. Agnèslevantara-sedamesaejuntavaospratosparalevá-losàcozinha, Brigitetinhaviradosuacadeiraparaafrentedatelevisão,ePaul continuavanamesasozinho.Pensavanumjogodesalãoqueseuspais jogavam.Dezpessoasrodamemtornodedezcadeiras,ecomumsinal todasdevemsesentar.Cadacadeiratrazumainscrição.Sobreaquelhe cabepodemosler:Brilhantealiadodeseuscoveiros.Elesabequeojogo terminouequevaificarsentadoparasemprenessacadeira. Oquefazer?Nada.Aliás,porqueumhomemnãoseriaaliadodeseus coveiros?Deverialutarcomelesaossocos?Paraquecuspissemnoseu caixão? MaisumavezouviuorisodeBrigiteeumaoutradefiniçãologolheveio aoespírito,maisparadoxalemaisradical.Agradou-lheapontodefazê-lo esquecersuatristeza.Eisessadefinição:serabsolutamentemodernoéser aliadodeseuspróprioscoveiros. Servitimadesuaglória DizeraBernardo"casecomigo!"era,emqualquercircunstância,um erro;dizê-lodepoisdeletersidopromovidoaburrototal,eraumerrotão grandequantoaalturadoMont-Blanc.Poiséprecisolevaremcontauma circunstânciaque,àprimeiravista,podeparecerinteiramenteimprovável, mascujalembrançaénecessáriasequisermoscompreenderBernardo: comexceçãodeumarubéolaemcriança,elenuncatinhaficadodoente,a únicamortequeviradepertoforaadogalgodeseupaiealémdealgumas másnotasnosexames,nãotinhaconhecidoofracasso;tinhavividona certezadeser,pornatureza,destinadoàfelicidadeesimpáticoatodo mundo.Suapromoçãoàcategoriadeburrofoioprimeirogolpedodestino queoatingiu. Aconteceu,então,umaestranhacoincidência.Osimagólogos,namesma época,lançaramumavastacampanhapublicitáriapelaestaçãoderádiode Bernardo,detalmodoqueafotografiacoloridadaequipederedação espalhou-sesobregrandescartazescoladosportodapartenaFrança: estavamtodossobumfundodecéuazul,comcamisabranca,mangas arregaçadasebocaaberta:estavamrindo.AopassearporParis,Bernardo, primeiro,sentiu-seinebriadodeorgulho.Mas,nofimdeumasemanaou duasdeglóriaimaculada,oogroventripotenteveioentregar-lhe,sorrindo, umtubodecartolina.Seissotivesseacontecidoantes,quandooretrato gigantenãoseoferecesseaomundointeiro,Bernardotalveztivesse suportadomelhorochoque.Masaglóriadafotoveiodaràvergonhado diplomaumaespéciederessonância;elaaamplificou. LernoLeMondequeumdesconhecido,umcertoBernardoBertrand, foipromovidoaburrototaléumacoisa,outraésaberdapromoçãodeum homemcujafotografiaseespalhasobretodososmuros.Aglória acrescentaatudoquenosaconteceumecocemvezesmaior.Nãoénada agradávelpassearpelomundocarregandoatrásdesiumeco.Derepente Bernardocompreendeusuavulnerabilidaderecenteepensouqueaglória era,exatamente,oqueelejamaisambicionara.Éevidente,elesempre desejouosucesso,masosucessoeaglóriasãocoisasdiferentes.Aglória significaqueumdeterminadonúmerodepessoasoconhecemsemque vocêosconheça;elesachamque,noqueconcerneàsuapessoatudoé permitido,queremsabertudosobrevocê,ecomportam-secomosevocê fossepropriedadedeles.Atores,cantores,políticossentemumaespéciede volúpiaoferecendo-sedessamaneiraaosoutros.Masessavolúpia, Bernardonãoadesejava.Recentemente,entrevistandoumatorcujofilho estiverametidonumcasoescabroso,deleitou-sevendocomoaglóriadesse homemtornara-seseucalcanhar-de-aquiles,seupontofraco,suatara,a cabeleiraporondeagarrá-lo,sacudi-losemsoltá-lomais.Bernardoqueria seraquelequefaziaasperguntas,enãoaquelequeéobrigadoa responder.Ora,aglóriapertenceaoqueresponde,nãoaoqueinterroga.O homemquerespondeéiluminadopelosrefletores.Ohomemquepergunta éfilmadodecostas.ÉNixonenãoWoodwardqueapareceemplenaluz. Bernardonãodesejaaglóriadaqueleparaquemsãodirigidosos refletores,masopoderdaquelequeficanapenumbra.Desejaaforçade umcaçadorquemataumtigre,nãoaglóriadotigreadmiradoporaqueles queseservirãodelecomotapete. Porémaglórianãopertencesóàspessoascélebres.Cadapessoa conheceaomenosumavezsuapequenaglóriaeaomenosporum momentosenteomesmoqueGretaGarbo,Nixonouumtigreesfolado.A bocaabertadeBernardoriaemtodasasparedesdacidadeeelesentia-se amarradonopelourinho:todomundoovia,oexaminava,ojulgava.Quando Lauralhediz:"Bernardocasecomigo!",eleaimaginaaseuladono pelourinho.Subitamente(issonuncaaconteceraantes),elapareceu-lhe velha,desagradavelmenteextravaganteeligeiramenteridícula. Tudoissoeraaindamaisidiotaporquenuncaprecisaradelacomo agora. Oamormaissaudávelaindaeraparaeleoamordeumamulhermais velha,comacondiçãodequeesseamorsetornasseaindamaissecretoe queessamulhermostrasseaindamaissabedoriaediscrição.Seemvezde estupidamenteter-lhepedidoparacasar,Laurativessedecididofazer desseamorumluxuosocasteloafastadodavidapública,elanãoprecisaria termedodeperderBernardo.Masvendoafotogiganteemcadacantode rua,Laurarelacionouissocomanovaatitudedeseuamante,comseus silêncios,comseuardistraído,econcluiusemhesitaçãoqueosucesso colocaraemseucaminhoumaoutramulherqueocupavatodosseus pensamentos.ComoLauranãoqueriaentregar-sesemlutar,passouao ataque. VocêcompreendeagoraporqueBernardorecuou.Quandoumataca,o outrorecua,éaregra.Esserecuo,comotodossabem,éamanobrade guerramaisdifícil.Bernardoexecutou-acomaprecisãodeum matemático:enquantorecentementepassavaquatronoitesporsemanaem casadeLaura,limitou-seaduas;quandoantessaíacomelatodososfins desemana,passouaconsagrar-lhesomenteumdomingoemcadadoise preparou-separanovasrestrições.Faziaomesmoqueopilotodeuma naveespacialque,reentrandonaatmosfera,precisafrearbruscamente. Assimsendo,freava,comprudênciaedeterminação,enquantosua graciosaematernalamantedesapareciasobseuolhar.Emseulugar estavaumamulherbriguenta,desprovidatantodesabedoriaquantode maturidadeedesagradavelmenteativa. UmdiaGrizzlylhedisse:—Conhecisuanoiva. Bernardoficouvermelhodevergonha.Grizzlycontinuou:—Elafalou- medeumabrigadevocês.Éumamulhersimpática.Sejagentilcomela. Bernardoficoubrancoderaiva.SabendoqueGrizzlydavacomalíngua nosdentes,tinhacertezadequetodaaemissoraagorasabiaonomede suaamante.Umaligaçãocomumamulhermaisvelhaparecera-lheaté entãoumaencantadoraperversão,quaseumaaudácia;masnomomento compreendiaqueseuscolegasnãoveriamnissosenãoaconfirmaçãode suaburrice. —Porquevocêfoiqueixar-seaestranhos? —Aestranhos?Doquevocêestáfalando? —DeGrizzly. —Penseiquefosseseuamigo! —Mesmosendomeuamigo,paraquecontaraelenossavidaíntima? Elarespondeutristemente:—Nãoescondomeuamorporvocê.É precisoqueeumecale?Seráquevocêtemvergonhademim? Bernardonãorespondeunada.Sim,tinhavergonhadela.Tinha vergonhadela,mesmosendofelizemsuacompanhia.Massóerafelizem suacompanhianosmomentosemqueesqueciaquetinhavergonhadela. ALUTA Abordodanavecósmicadoamor,Laurasuportavamuitomala desaceleração. —Oqueéquevocêtem?Porfavor,meexplique. —Nada.Nãotenhonada. —Vocêmudou. —Precisoficarsozinho. —Aconteceualgumacoisa? —Estoupreocupado. —Seestápreocupado,éumarazãoamaisparanãoficarsozinho. Quandotemosproblemaséqueprecisamosdosoutros. Umasexta-feira,elefoiparasuacasadecamposemconvidá-la.No entanto,nosábadoeladesembarcounacasadele.Sabiaquenãodeveria agirassim,mashámuitotempotinhaohábitodefazeroquenãodeviae ficavaatéorgulhosadisso,poiseraporissoqueoshomensaadmiravame Bernardomaisdoquequalqueroutro.Asvezes,nomeiodeumconcerto oudeumespetáculoqueadesagradava,levantava-seemsinaldeprotesto eiaemboraostensivamenteecombastanteruído,sobosolhares reprovadoresdosvizinhosestarrecidos.Umdia,Bernardopediuàfilhado porteiroparaentregaraLaura,emsualoja,umacartaqueelaesperava comimpaciência;transportadapelaalegria,apanhounumaprateleiraum gorrodepele,quecustavapelomenosdoismilfrancos,edeu-oaessa adolescentededezesseisanos.Umaoutravezfoipassardoisdiascom Bernardoabeira-mar,numacasaalugada;parapuni-lodealgumacoisa quejánãolembromais,passouatardetodabrincandocomummeninode dozeanos,filhodeumpescadorvizinhodeles,comoseatétivesse esquecidodaexistênciadoamante.OespantosoéqueBernardomesmo sentindo-semagoado,acabouvendonocomportamentodelaumasedutora espontaneidade(poressegaroto,quaseesqueciomundointeiro!)aliadaa umafeminilidadedesconcertante(elanãoficaramaternalmente enternecidaporumacriança?),etodaaraivadesapareceunodiaseguinte, quandoelaesqueceuofilhodopescadorparaocupar-sedele.Soboolhar apaixonadoeadmirativodeBernardo,suasideiascaprichosas desabrochavamcomexuberância,pode-sedizerquefloresciamcomo rosas;seusatosincongruentes,suaspalavrasirrefletidasapareciamem Lauracomoamarcadesuaoriginalidade,comoagraçadeseueu,eela ficavacontente. QuandoBernardocomeçoualheescapar,suaextravagâncianão desapareceumaslogoperdeuseucaráteralegreenatural.Nodiaemque decidiuiràcasadelesemserconvidada,elasabiaquedessavezissonão provocarianenhumaadmiraçãoeentroucomumaansiedadequefezcom queoatrevimentodoseucomportamentohápoucoinocente,eaté encantador,setornasseagressivoecrispado.Elapercebiaissoenão perdoavaBernardodeprivá-ladoprazerqueaindarecentementesentia emserelamesma,prazerquesubitamenterevelou-sefrágil,semraízese inteiramentedependentedeBernardo,deseuamoredesuaadmiração. Masissosóincentivou-aaindamaisaagircomexcentricidade,insensatez, eaestimularsuamaldade;queriaprovocarumaexplosão,comavagae secretaesperançadequedepoisdatempestadeasnuvenssedissipariam equetudovoltariaasercomoantes. —Aquiestou,disseelarindo,esperoqueissolhedeixecontente. —Sim,issomedeixacontente.Masestouaquiparatrabalhar. —Nãovouatrapalharseutrabalho.Nãolhepeçonada.Sóqueroestar comvocê.Algumavezjáatrapalheiseutrabalho? Elenãorespondeu. —Afinaldecontas,jáfuiparaforacomvocêmuitasvezesquandovocê tinhaqueprepararseusprogramas.Jálheatrapalheialgumavez? Elenãorespondeu. —Atrapalheivocê? Nãotinhajeito.Tinhaqueresponder:—Não,vocênuncame atrapalhou. —Eporqueatrapalhoagora? —Vocênãomeatrapalha. —Nãominta!Tratedesecomportarcomohomemetenhaaomenosa coragemdemedizerqueeuoaborreçoterrivelmente,chegandosemser convidada.Detestooscovardes.Preferiaquevocêmemandassedarofora. Digaisso! Semgraça,elelevantouosombros. —Porquevocêécovarde? Novamenteelelevantouosombros. —Nãolevanteosombros! Tevevontadedelevantá-lospelaterceiravez,masnãoofez. —Oqueéquevocêtem?Porfavor,explique. —Nãotenhonada. —Vocêmudou. —Laura!Tenhopreocupações!—Dizele,levantandoavoz. —Eutambémtenhopreocupações!—Respondeela,levantando tambémavoz. Elesabiaquesecomportavacomoumidiota,comoumgaroto repreendidoporsuamamãe,eadetestava.Quedeviafazer?Sabiaser gentilcomasmulheres,divertido,talvezatésedutor,masnãosabia destratá-las,ninguémlheensinaraisso,aocontrário,todosmeteramna suacabeçaquecomelasnuncasepodiasermau.Comodevesecomportar umhomemcomumamulherquecheganacasadelesemserconvidada? Qualauniversidadeondepodemosaprenderessetipodecoisa? Desistindoderesponder-lhe,passouparaasalaaolado,deitounosofá eapanhouumlivroqualquer.Eraumromancepolicialemediçãodebolso. Deitadodecostas,seguravaolivroabertoemcimadopeito;fingiaque lia. Passadoumminuto,elaentrouesentou-seemfrentedele.Depois, olhandoafotografiacoloridaqueenfeitavaacapadolivro,perguntou: —Comovocêpodelerumacoisadessas?Surpreso,virouacabeça paraela. —Essacapa!—DizLaura. Elecontinuavasemcompreender. —Comovocêpodeficarolhandoparaumacapadetãomaugosto?Se vocêinsisteemleresselivronaminhapresença,faça-meofavorde arrancaracapa. Bernardonãorespondeunada,arrancouacapa,entregou-lhee continuoualer. Lauratinhavontadedegritar.Eladeviaselevantar,pensou,irembora enuncamaistornaravê-lo.Ouentão,deviaafastarolivroalguns centímetrosecuspir-lhenacara.Masnãotevecoragemdefazernemuma coisanemoutra. Preferiujogar-sesobreele(olivrocaiunotapete)e,cobrindo-ode beijosfuriosos,deslizouasmãossobreseucorpotodo. Bernardonãosentiaamenorvontadedefazeramor.Masseousou recusaradiscussão,nãosabiarecusaraoapeloerótico.Noquealiásse pareciacomtodososhomensdetodasasépocas.Quehomemousaria dizer:"Tireaspatas!"aumamulherqueamorosamenteescorregaamão entresuaspernas?EisaícomoomesmoBernardoquecomsoberano desprezoacabaradearrancaracapadeumlivroparaentregá-laàamante humilhada,reagiusubitamenteaseutoqueebeijou-adesabotoandoa calça. Maselatambémnãotinhavontadedefazeramor.Oquea impulsionaraemdireçãoaeleforaodesesperodenãosaberoquefazer,e anecessidadedefazerqualquercoisa.Suascaríciasimpacientese apaixonadasexpressavamodesejocegodeumaação,odesejomudode umapalavra.Quandocomeçaramaseamar,elaesforçou-seemfazeressa uniãomaisselvagemdoquenunca,tãograndiosacomoumincêndio.Mas comofazê-loduranteumcoitosilencioso(poissempreseamavamem silêncio,anãoseralgumaspalavraslíricasmurmuradasquasesem fôlego)?Sim,comofazê-lo?Commovimentosrápidosevigorosos? Aumentandootomdossuspiros?Mudandoposições?Comonão conhecesseoutrosmeios,utilizouessestrês.Principalmente,epor iniciativaprópria,mudavadeposiçãoatodomomento:oraficavade quatro,orasentava-seacocoradasobreele,orainventavaposições radicalmentenovaseextremamentedifíceis,queelesjamaishaviam tentado. Bernardointerpretouessaperformancefísicacomoimprevista,como umdesafioqueelenãopodiadeixarderessaltar.Voltouàsuaantiga ansiedadedejovemquetemiapoderemsubestimarseutalentoesua maturidadeerótica.EssaansiedadedevolviaaLauraopoderqueelahavia perdidoháalgumtempoesobreoqualorelacionamentodelesfora outrorafundamentado:opoderdeumamulhermaisvelhaqueseu parceiro.NovamenteteveadesagradávelimpressãodequeLauraera maisexperiente,quesabiaoqueelenãosabia,quepodiacompará-loaos outrosejulgá-lo.Assim,elecaprichavaemefetuarosmovimentos requisitadose,aomenorsinaldeLaurademonstrandoquequeriaficarde outrojeito,reagiacomdocilidadeeprontamentecomoumsoldadoem exercício.Essaginásticaamorosaexigiatantaaplicaçãoqueelenãotinha nemmesmotempoparaseperguntarseestavaexcitadoounão,nemse sentiaalgumacoisaquepudessesechamarvolúpia. Elanãosepreocupavamaisnemcomoprazernemcomaexcitação. Nãovoulhelargar,diziaparasimesma,nãovoumedeixarrejeitar,lutarei paraficarcomvocê.Seusexo,então,movendo-separacimaeparabaixo, transformou-seemumamáquinadeguerraqueelamovimentavaedirigia. Essaarmaeraaúltima,pensavaela,aúnicaquelherestava,maseratodopoderosa.Aoritmodeseusmovimentos,elarepetiaparasimesma,como umostinatodevioloncelonumtrechodemúsica:eulutarei,eulutarei,eu lutarei,eelaacreditavanasuavitória. Bastaabrirumdicionário.Lutarsignificaoporasuavontadeàvontade dooutro,afimdemachucá-lo,botá-lodejoelhos,eventualmentematá-lo. "Avidaéumaluta",eisumaexpressãoque,pronunciadapelaprimeira vez,deveserproferidacomumsuspiromelancólicoeresignado.Nosso séculodeotimismoedemassacresconseguiutransformaressahorrível fraseemumaalegrecantilena. Talvezvocêdigaque,seàsvezeséhorrívellutarcontraalguém,lutar poralgumacoisaénobreebelo.Semdúvida,ébelotrabalharafavorda felicidade(doamor,dajustiça,etc),massevocêgostadedesignaresse esforçopelapalavraluta,estáimplícitonessenobreesforçoosecreto desejodederrubaralguémporterra.Alutapornãopodeserdissociada dalutacontrae,durantealuta,oslutadoressempreesquecema preposiçãoporembenefíciodapreposiçãocontra. OsexodeLauramovia-sepossantementeparacimaeparabaixo. Lauralutava.Elaamavaelutava.LutavaporBernardo.Mascontraquem? Contraaquelequeabraçava,edepoisafastavaparaobrigá-loamudarde posição.Essaperformanceexaustivasobreosofáesobreotapetequeos faziatranspirarequeosdeixavasemarpareciaapantomimadeumaluta implacável:elaatacavaeelesedefendia,eladavaasordenseeleobedecia. OprofessorAvenarius OprofessorAvenariusdesciaaAvenidadoMaine,contornouaGare Montparnasseedecidiu,comonãoestavacompressa,atravessaras GaleriesLafayette.Nodepartamentodesenhoras,viu-senomeiodos manequins,vestidosnaúltimamoda,queoobservavamdetodososlados. Avenariusgostavadessacompanhia.Sentiaumaatraçãoespecialporessas mulheresqueseimobilizavamnumaloucagesticulaçãoecujaboca escancaradaexpressavanãooriso(oslábiosnãoestavamabertos)maso espanto.NaimaginaçãodoprofessorAvenarius,todasessasmulheres petrificadasacabavamdeperceberasoberbaereçãodeseumembro,que nãoeraapenasgigantesco,masdistinguia-sedospêniscomunspela cabeçadediabocomchifresquelheenfeitavamaextremidade.Aolado daquelasquedemonstravamumespantocheiodeadmiração,outras arredondavamseuslábiosvermelhoscomoeudegalinha,entreosquais umalínguapoderiaapareceraqualquermomentoparaconvidar Avenariusparaumbeijosensual.Edepoishaviaumaterceiracategoriade mulheres,aquelascujoslábiosdesenhavamumsorrisosonhador.Seus olhossemicerradosnãodeixavamamenordúvida:acabavamdesaborear longaesilenciosamenteavolúpiadocoito. Aesplêndidasexualidadedessesmanequins,cujoaspectoparecia irradiadoporumafontedeenergianuclear,nãoencontravaecoem ninguém:aspessoascirculavamentreasmercadorias,cansadas,abatidas, apáticas,rabugentas,ecompletamenteindiferentesaosexo;sóoprofessor Avenariusficavacontentequandopassavaporali,convencidodeestar comandandoumagigantescasuruba. Pena,ascoisasmaisbelasacabam:oprofessorAvenariussaiuda grandeloja,eparaevitarofluxodecarrosnaavenida,dirigiu-separaa escadaquelevavaaossubterrâneosdometrô.Familiarizadocomolugar, nãoficousurpresocomoespetáculo.Nocorredorinstalava-sesemprea mesmaequipe.Doismendigoscurtiamsuaressaca,semlargaragarrafa devinho;umdelesàsvezesinterpelavaostranseuntesparapedircom indolência,exibindoumsorrisotocante,umacontribuiçãoparaumanova garrafa.Umrapazsentadonochão,encostadonaparede,escondiaorosto entreasmãos;diantedeleumainscriçãoagizdiziaqueacabavadesairda prisão,nãoconseguiaencontrarempregoetinhafome.Finalmente,depé pertodaparede(emfrenteaohomemquesaíradaprisão),estavaum músicocansado;aseuspésestavamcolocadosdeumladoumchapéucom algumasmoedasnofundo;dooutrolado,umtrompete. Alinãohavianadadeanormal,apenasumdetalheforadocomum chamouaatençãodoprofessorAvenarius.Exatamenteameiocaminho entreohomemsaídodaprisãoeosdoismendigosbêbados,nãopertoda parede,masnomeiodocorredor,estavaumamulhermaisparabonita, quenãopassavadosquarentaanos;seguravanamãoumalatavermelha depediresmolas,queestendiaaostranseuntescomumsorrisoradiante defeminilidade;nalata,podia-selerumainscrição:ajudeosleprosos.Pela elegânciadesuasroupas,contrastavacomoambiente,eseuentusiasmo clareavacomoumalanternaapenumbradocorredor. Eraevidentequesuapresençaaborreciaosmendigos,habituadosa passaraliseudiadetrabalho,eotrompetecolocadoaospésdomúsico expressavacomeloquênciaacapitulaçãodiantedeumaconcorrência desleal. Cadavezqueamulhercaptavaumolhar,articulavacomnitidez,mas comvozquaseinaudívelparaforçarostranseuntesaleremseuslábios: "Osleprosos!" OprofessorAvenariustambémapressava-separadecifraressas palavrasemsuaboca,masamulheraovê-lopronunciousóo"le"edeixou o"prosos"emsuspenso,porqueoreconheceu.Avenarius,porsuavez,a reconheceusempoderentendersuapresençanesselugar.Subiuaescada correndoesaiudooutroladodaavenida. Alichegandocompreendeuquetomaraemvãooscorredores subterrâneospoisocaminhoestavabloqueado:doLaCoupoleàRuede Rennesumamultidãodemanifestantesavançavasobretodaalargurada calçada.Comotodostinhamorostoescuro,oprofessorAvenariusachou queeraumprotestodeárabescontraoracismo.Semdarimportânciaa eles,percorreualgumasdezenasdemetroseempurrouaportadeum bistrô;odonolhedisse:—OsenhorKunderaestáatrasado.Aquiestáo livroqueeledeixouparadistraí-loenquantoesperaeentregou-lhemeu livroAvidaestáemoutrolugar,naediçãobarataquesechamaFólio. OprofessorAvenariuscolocouolivronobolsosemlhedaramenor atençãoporquenesseprecisomomentoamulherdalatavermelhavoltouà suacabeçaedesejourevê-la. —Voltodaquiapouco,disseelesaindo. Pelasinscriçõesnasbandeirolas,acaboucompreendendoquenão eramárabesquedesfilavam,masturcos,equenãoprotestavamcontrao racismofrancês,mascontraabulgarizaçãodeumaminoriaturcana Bulgária.Osmanifestanteslevantavamopunhocomumgestoumtanto cansado,porqueaindiferençasemlimitesdosparisiensesperambulando pelascalçadaslevara-osàbeiradodesespero.Masquandoviramoventre magníficoeameaçadordeumhomemqueandavanacalçadanamesma direçãoequelevantavaopunhoegritavacomeles: —Abaixoosrussos!—Abaixoosbúlgaros!Sentiram-se poderosamenterevigoradoseosslogansressoaramaindamaisaltona avenida. Naentradadometrô,pertodaescadaquesubiraalgunsminutosantes, Avenariusviuduasfeiosasocupadasemdistribuirfolhetos.Parasaber maissobrealutaantibúlgara,perguntouaumadelas:—Asenhoraé turca? —Deusmelivre!Respondeuamulhercomoseeleativesseacusado dealgumacoisaabominável. —Nãotemosnadacomessamanifestação!Estamosaquiparalutar contraoracismo! Avenariuspegouumfolhetodecadaumaesubitamentedeparou-se comosorrisodeumrapazdisplicentementeapoiadonagradedometrô. Eletambémestendiaumfolheto,comaralegrementeprovocador. —Écontraoquê?—PerguntouoprofessorAvenarius? —Pelaliberdadedopovokanak. PortantooprofessorAvenariusdesceuparaosubsolocomtrês folhetos;desdeaentradaconstatouqueaatmosferadascatacumbastinha mudado;ocansaçoeotédiotinhamdesaparecido,estavaacontecendo algumacoisa:Avenariusouviuosomalegredotrompete,aplausos,risos. Depoisviuacenatoda:amulherdalatavermelhacontinuavalá,mas cercadapelosdoismendigos:oprimeiroseguravasuamãoesquerdaque estavalivre,osegundoseguravaligeiramenteobraçoqueseguravaalata. Oqueseguravaamãodavapequenospassosdedança,trêsparafrente, trêsparatrás.Oqueseguravaocotovelo,estendiaparaostranseunteso chapéudomúsico,gritando:"Paraosleprosos!ParaaÁfrica!"eomúsico aoladodelesopravaotrompete,sopravaatéperderofôlego,soprava comonunca;umajuntamentoseformava,aspessoasriamdivertidas, jogandomoedasnofundodochapéu,atémesmonotas,enquantoos mendigosagradeciam:"Ah,comoaFrançaégenerosa!Obrigada!Obrigada pelosleprososquesemaFrançamorreriamcomopobresanimais!Ah, comoaFrançaégenerosa!" Amulhernãosabiaoquefazer;oratentavaafastar-se,oraosaplausos aestimulavamadarpequenospassosdedançaparafrenteeparatrás. Chegouomomentoemqueomendigoquisrodaremdireçãoaela,para dançarcorpoacorpo.Sentiuumfortecheirodeálcooledefendeu-se desajeitadamente,omedoeaangústiaestampadosnorosto. Ohomemquesaíradaprisãolevantou-sederepenteecomeçoua gesticular,comoparaavisarosmendigosdeumperigoiminente.Doistiras seaproximavam.Aoavistá-los,oprofessorAvenariustambémentrouna dança:deixavaseuventreenormeoscilardaesquerdaparaadireita, lançavaosbraçosparafrente,umaum,semidobrados,sorriaparaos ladoseespalhavaemtornodesiumaindizívelatmosferade despreocupaçãoedepaz.Quandoostiraschegarampertodeles,dirigiu umsorrisodeconivênciaàmulherdalatavermelhaecomeçouabateras mãosnoritmodotrompeteedeseuspassos.Comoolharmorno,ostiras viraram-separaeleecontinuaramsuaronda. Encantadocomumtalsucesso,Avenariusredobrouoempenhoecom umalevezaimprevisívelgirounolugar,inclinou-separafrenteeparatrás, jogavaapernaparaoaltoimitandocomasmãosogestodeumadançarina decancã. Issologodeuumaideiaaumdosmendigosqueseguravaamulher pelocotovelo,abaixou-seelevantouabarradesuasaia.Elaquisse defendermasnãoconseguiaafastaroolhardohomembarrigudoquea olhavacomumsorrisoencorajador;quandoelatentoudevolver-lheo sorriso,omendigolevantouasaiaatéacintura,mostrandosuaspernas nuaseacalcinhaverde(combinandomuitobemcomasaiarosa). Novamenteelatentoudefender-se,masestavareduzidaàimpotência:em umadasmãosseguravaalatavermelha(sebemqueninguémtivesse colocadoalinemumtostão,elaaseguravafirmementecomosesuahonra, osentidodesuavida,suaalmatalvez,estivessemencerradosalidentro),a outramãoestavaimobilizadapelomendigo.Setivessemlheamarradoos braçosparaestuprá-la,suasituaçãonãoseriapior.Omendigolevantavaa saiabemalto,gritando:"Pelosleprosos!PelaÁfrica!",elágrimasde humilhaçãocorriampeloseurosto.Noentanto,recusando-seaparecer humilhada(umahumilhaçãoconfessadaéumahumilhaçãoemdobro), esforçou-seemsorrircomosetudoestivesseacontecendocomoseu consentimentoenointeressedaÁfrica;chegouatéajogarparaoaltouma perna,bonitaapesardeumpoucocurta. Umterrívelmaucheiroatingiuentãosuasnarinas:ohálitodomendigo fediatantoquantosuasroupasque,usadasdiaenoiteduranteanos, acabaramincrustando-senasuapele(seelefossevítimadeumacidente, todaumaequipecirurgiateriaquerasparseustraposduranteumahora antesdecolocá-lonumamesadeoperação);elanãoaguentavamais,num últimoesforçoconseguiulivrar-sedoseuabraço,e,apertandoalatacontra opeito,correuparaoprofessorAvenarius.Eleabriuosbraçoseabraçoua.Apertadacontraele,tremiaesoluçava.Eleacalmou-arapidamente, tomou-apelamão,elevou-aparaforadometrô. Ocorpo —Laura,vocêestáemagrecendo,Agnèsdissecomarpreocupado quandoalmoçavacomsuairmãnumrestaurante. —Estouperdendooapetite.Vomitotudo,respondeuLauratomando umgoledaáguamineralqueelapediraemvezdovinhohabitual.Éforte demais,acrescentouela. —Aáguamineral? —Éprecisoqueeujunteumpoucodeáguacomum. —Laura!...Agnèstevevontadedeprotestar,mascontentou-seem dizer:Nãoseatormenteassim. —Estátudoperdido,Agnès. —Masoquemudouentrevocês? —Tudo.Noentanto,fazemosamorcomonuncaantes.Comodois loucos. —Entãooquemudou,sevocêsfazemamorcomodoisloucos? —Sãoosúnicosmomentosquandotenhocertezaqueeleestácomigo. Quandoparamosdefazeramor,seuspensamentosvoamparalonge. Poderíamosfazeramorcemvezesmais,seriainútil.Porquefazeramornão representagrandecoisa.Nãoéissoqueimporta.Oimportanteéqueele penseemmim.Tivemuitoshomensemminhavida,nenhumsabemais nadasobremim,eunãoseimaisnadasobreelesemepergunto:porque viviseninguémvaiguardaromenortraçodemim?Querestarádaminha vida?Nada,Agnès,nada!Masestesdoisúltimosanosfiqueirealmentefeliz quandosoubequeBernardopensavaemmim,queeumoravanacabeça dele,quevivianele.Porqueaverdadeiravidaparamiméisso:Vivernos pensamentosdooutro.Semisso,souumamorta,apesardeviva. —Masquandovocêestásozinhaemcasaouvindodiscos,seuMahler nãolhedáumaespéciedepequenafelicidadeelementar,pelaqualvalea penaviver? Issonãolhebasta? —Agnès,vocêestádizendobobagensesabedisso.Mahlernão representanadaparamim,absolutamentenada,seestousozinha.Mahler sómedáprazerseestoucomBernardo,ouseseiqueeleestápensando emmim.Quandoelenãoestáali,nãotenhoforçasnemparafazerminha cama.Nãotenhonemvontadedetomarbanho,nemdetrocarminharoupa debaixo. —Laura!SeuBernardonãoéoúniconomundo! —É,sim,respondeuLaura.Porquevocêquerqueeumeiluda? Bernardoéaminhaúltimachance.Nãotenhomaisnemvintenemtrinta anos.DepoisdeBernardo,éodeserto. Tomouumgoledaáguamineralerepetiu: —Estaáguamineralémuitoforte. Depoischamouogarçomparapedirumagarrafadeágua. —Daquiaummês,elevaipassarquinzediasnaMartinica,prosseguiu. Jáestivelácomeleduasvezes.Dessavez,jámeavisouquevaisozinho. Durantedoisdiasnãopudecomernada.Masseioquevoufazer. AgarrafadeáguaapareceunamesaeLaura,soboolharatônitodo garçom,virou-adentrodocopodeáguamineral;depoisrepetiu:Sim,jásei oquevoufazer. Calou-secomosequisesse,comessesilêncio,provocarsuairmãa interrogá-la.Agnèsentendeuedepropósitonãofeznenhumapergunta. Mascomoosilêncioseprolongava,rendeu-se: —Oqueéquevocêvaifazer? Laurarespondeuquenasúltimassemanasconsultarapelomenos cincomédicospedindoacadaumreceitasdebarbitúricos. DepoisqueLauracompletousuasqueixasusuaiscomalusõesao suicídio,Agnèssentiu-secansadaeabatida.Jámuitasvezescontradissera suairmãcomargumentosracionaisousentimentais;reafirmava-lheseu amor(vocênãopodefazerissocomigo!),semomenorresultado:Laura voltavaafalardesuicídio,comosenãotivesseescutadonada. —IreiparaaMartinicaumasemanaantesdele,continuou.Tenhouma chave.Acasaestávazia.Dareiumjeitoparaquemeencontrelá.Epara quejamaispossameesquecer. SabendoqueLauraeracapazdecometeratosdespropositados,Agnès tevemedoquandoouviuafrase:"dareiumjeitoparaquemeencontrelá": elaimaginavaocorpodeLauraimóvelnomeiodasaladacasatropicale essaimagem,deu-secontacommedo,eraperfeitamentepossível, concebível,identificava-secomLaura. Amaralguém,paraLaura,significavadar-lhedepresenteseucorpo: entregá-lo,comomandaraentregaràsuairmãopianobranco;depositá-lo nomeiodeseuapartamento:eis-meaqui,eismeuscinquentaesetequilos, eisminhacarneemeusossos,sãoparavocêeéemsuacasaqueosdeixo. Essaoferendaeraparaelaumgestoerótico,porqueemsuaopiniãoo corponãoerasexualsomentenosmomentosexcepcionaisdaexcitação, mas,comodisse,desdeoprincípio,apriori,constanteeinteiramente,na superfíciecomonointerior,duranteosono,acordado,emesmodepoisda morte. ParaAgnès,oerotismolimitava-seaoinstantedaexcitaçãoquandoo corpotornava-sedesejávelebelo.Sóesseinstantejustificavaeresgatavao corpo;umavezextintaessaluzartificial,ocorpovoltavaaserum mecanismosujoqueelaeraobrigadaamanteremforma.PorissoAgnès nuncapoderiadizer:"dareiumjeitoparaqueelemeencontrelá."Ela ficariahorrorizadacomaideiadequeohomemamadoavissecomoum simplescorpoprivadodesexo,desprovidodequalquerencanto,orosto convulso,numaatitudequeelanãopoderiamaiscontrolar.Sentiria vergonha.Opudorimpediriaqueelasetornassecadáverporvontade própria. MasAgnèssabiaquesuairmãeradiferente:exporseucorposemvida nasaladeumamante,essaideiaeraconsequênciadorelacionamentode Lauracomocorpoedesuamaneiradeamar.PorissoAgnèstevemedo. Inclinando-sesobreamesa,segurouamãodairmã. —Entenda-me,disseLauraameia-voz.VocêtemPaul.Omelhor homemquevocêpossadesejar.EutenhoBernardo.AssimqueBernardo medeixar,nãotenhomaisnadaenãotereimaisninguém.Evocêsabeque nãomecontentocompouco!Nãovouolharparaamisériadaminha própriavida.Tenhominhavidaemaltaconta.Queroqueavidamedê tudo,ouentãovou-meembora.Vocêmeentende.Vocêéminhairmã. Houveummomentodesilêncio,Agnèstentandoconfusamente formularumaresposta.Estavacansada.Omesmodiálogorepetia-se semanaapóssemanaetudoqueAgnèspodiadizernãosurtianenhum efeito.Derepente,nessemomentodecansaçoeimpotênciaressoaram palavrascompletamenteinacreditáveis:—OvelhoBertrandBertrand provocounovamenteumatempestadenaAssembleiacontraaondade suicídios!EleéoproprietáriodacasanaMartinica.Imaginesóoprazer quevoulhedar!—DizLauracaindonagargalhada. Sebemquenervosaeforçada,essarisadafoiparaAgnèsumaaliada inesperada.Começouarirtambém,eorisodasduaslogoperdeutudoo quehaviadetenso,subitamentetornou-seumrisoverdadeiro,umrisode alívio,asduasirmãsriamàslágrimas,sabendobemqueseamavameque Lauranãosesuicidaria.Asduasfalavamaomesmotempo,semse largaremasmãos,eoqueelasdiziamerampalavrasdeamoratrásdas quaistranspareciaumacasanumjardimnaSuíçaeumacenodemão lançadoparaoaltocomoumabolacolorida,comoumconviteparaviajar, comoapromessadeumfuturoindizível,promessanãocumpridamascujo ecocontinuavaparaelasigualmentecativante. Quandoomomentodevertigempassou,Agnèsdisse: —Laura,éprecisonãofazeridiotices.Nenhumhomemmereceque vocêsofraporele.Penseemmim.Pensequeamovocê. ELauradiz: —Noentanto,gostariadefazeralgumacoisa,gostariatantodefazer algumacoisa.Algumacoisa?Algumacoisa? Lauraolhouairmãnofundodosolhoslevantandoosombros,como queadmitindoqueoconteúdoda"coisa"aindanãolhepareciaclaro. Depoisdeixoucairumpoucoacabeça,seurostocobriu-sedeumvago sorrisomelancólico,tocoucomapontadosdedososulcodopeitoe, repetindo"algumacoisa",jogouosbraçosparaafrente. Agnèsficoualiviada:semdúvidanãopodiaimaginarnadadeconcreto sobreessa"coisa",masogestodeLauranãodeixavanenhumadúvida:a "coisa" visavaasalturassublimes,nãopodiaternadaemcomumcomum cadáverestendidonosoalhodeumasalatropical. Algumashorasmaistarde,LaurafoiàAssociaçãoFrança-África, presididapelopaideBernardo,eofereceu-secomovoluntáriaparapedir esmolasparaosleprososnarua. Ogestododesejodeimortalidade OprimeiroamordeBetinafoiseuirmãoClemens,futurograndepoeta romântico;depois,comosabemos,ficouapaixonadaporGoethe,adorou Beethoven,amouseumaridoAchimvonArnim,tambémgrandepoeta, depoisapaixonou-sepelocondeHermannvonPuckler-Muskauque,sem serumgrandepoeta,escreveulivros(aliás,foiaelequeeladedicoua CorrespondênciadeGoethecomumacriança),depoisporvoltados cinquentaanos,alimentouumsentimentoerótico-maternalpordois homensmoços,PhilippNathusiuseJuliusDõringque,semescreverlivros, trocaramcartascomela(correspondênciaqueemparteelapublicou), admiravaKarlMarxeumdia,quandoestavavisitandoanoivadele,Jenny, forçou-oquealevasseparaumlongopasseionoturno(Marxnãotinhaa menorvontadedepassear,preferiaacompanhiadeJennyàdeBetina;no entantoatémesmoohomemcapazdeviraromundopeloavessoera incapazderesistiràmulherquetinhatratadoGoethede"você"),teveuma quedaporFranzLiszt,masmuitorápida,poislogosedeclarou desinteressadaporcausadointeresseexclusivodeLisztporsuaprópria glória,tentouapaixonadamenteajudaropintorKarlBlecheratingidopor umadoençamental(desprezavaamulherdelecomoantesdesprezara MadameGoethe),travouumacorrespondênciacomCarlosAlexandre, herdeirodotronodeSaxe-Weimar,escreveuparaoreidaPrússia, FredericoGuilherme,Olivrodorei,emqueexplicavaosdeveresdeumrei paracomseussúditos,depoisdestepublicouOlivrodospobres,noqual descreveaterrívelmisériadopovo,dirigiu-semaisumavezaoreipara pedir-lheparalibertarWilhelmFriedrichSchloeffel,acusadodefomentar umcomplôcomunista,poucodepoisinterveiojuntodeleemfavorde LudwikMieroslawski,umdosdirigentesdarevoluçãopolonesa,que esperavasuaexecuçãonumaprisãoprussiana.Oúltimohomemque adorou,elanuncaencontrou:foiSandorPetõfi,opoetahúngaroque morreuaosvinteeseisanosnasfileirasdoexércitorebeldede1848. Assimfezomundointeiroconhecernãoapenasumgrandepoeta(elao chamavaSonnengott,"deusdosol"),mascomeletambémsuapátria,cuja existência,naépoca,aEuropaquaseignorava.Senoslembrarmosdeque osintelectuaishúngarossedenominaram"círculoPetofi"quando,em 1956,serevoltaramcontraoImpériorussoaodeslancharemoprimeiro grandemovimentoanti-stalinista,constatamosqueporseusamoresBetina seapresentanovastocampodahistóriaeuropeia,desdeoséculoXVIIIaté ametadedoséculopresente.CorajosaedecididaBetina:afadada História,suasacerdotisa.Edigosacerdotisacommuitajustiça,porquea Históriaeraparaela(todosseusamigosempregavamamesmametáfora) "aencarnaçãodeDeus". Àsvezesseusamigoscensuravam-napornãopensarnafamíliacomo devia,nemnasuasituaçãomaterial,desacrificar-sedemaispelosoutros. —Oquevocêsdizemnãomeinteressa.Nãosouumacontadora!É assimquesou!Elarespondiacomapontadosdedossobreopeito, exatamenteentreosseios.Inclinavaacabeçaligeiramenteparatráse,com umsorriso,lançava,bruscamentemascomelegância,osbraçospara frente.Nocomeçodomovimentoasfalangespermaneciamunidas;os braçossóseseparavamnofimdogestoeaspalmasdasmãosabriam-se completamente. Não,vocêsnãoestãoenganados.Laurafezomesmogestonocapítulo precedente,quandodeclarouquererfazer"algumacoisa".Recordemosa situação:QuandoAgnèsdisse:—Laura,nãofaçabobagens.Nenhum homemmerecequevocêsofraporele.Penseemmim,pensequeaamo, Laurarespondeu:—Noentantoqueriafazeralgumacoisa,queriatanto fazeralgumacoisa. Aodizerisso,pensavaconfusamenteemdormircomoutrohomem.A ideiatinhalheocorridomuitasvezesenãoeraabsolutamenteumaideia contraditóriacomseudesejodesuicídio.Eramduasreaçõesextremas,mas perfeitamentelegítimasnumamulherhumilhada.Seuvagosonhode infidelidadefoibrutalmenteinterrompidopelaincômodaintervençãode Agnès,quequeriaesclarecerascoisas: —Algumacoisa?Oquê?Quecoisa? Compreendendoqueficariaridículoevocarainfidelidadelogodepois dosuicídio,Lauraficouencabuladaecontentou-seemrepetirmaisuma vez"algumacoisa".EcomooolhardeAgnèsexigisseumarespostamais precisa,elaesforçou-sepelomenosemdar,comumgesto,umcerto sentidoaessaexpressãotãoimprecisa:colocouasmãossobreopeito, depoislançou-asparafrente. Comoocorreu-lheaideiadefazeressegesto?Difícildizer.Nuncao tinhafeitoantes.Umdesconhecidodevetê-losopradocomosesopraaum artistaotextoqueeleesqueceu.Apesardenãoexpressarnadade concreto,ogestodavaaentenderque"fazeralgumacoisa"significa sacrificar-se,oferecer-seaomundo,mandarsuaalmaparaoazuldo infinito,comoumapombabranca. Algunsminutosantes,oprojetodeirparaometrôcomumalatade esmolascertamentelheseriaestranho,enacertaLauranãooteria imaginadosenãotivessecolocadoosdedosnosseioselançadoseus braçosparafrente.Estegestopareciadotadodeumavontadeprópria:ele comandavaeelaseguia. OsgestosdeLauraedeBetinasãoidênticosecertamenteexisteuma ligaçãoentreodesejodeLauradeajudarosnegrosnospaísesdistantese osesforçosdeBetinaparasalvaropolonêscondenadoàmorte.No entanto,acomparaçãoparecesemsentido.NãosaberiaimaginarBetina vonArnimpedindoesmolanometrôcomumalata.Betinanãotinhao menortalentoparaasobrasdecaridade.Nãoeraumaricadesocupada que,paraencherseusdias,organizassecoletasparaospobres.Tratava duramenteosempregados,apontodeprovocarrepreensõesdeseu marido("osempregadostambémtêmalma",lembrou-lheelenumacarta). Oqueaincitavaaagirnãoeraapaixãopelacaridade,masodesejode entraremcontatodiretoepessoalcomDeus,queacreditavaestar encarnadonaHistória.Todososseusamoresporhomenscélebres(os outrosnãoainteressavam)nãoeramsenãoumtrampolimdoqualse deixavacaircomtodopesodeseucorpoparaserimpulsionadadepois paramuitoalto,atéofirmamentoondeDeushabitavaencarnadona História. Etudoissoéverdade.Masatenção!Lauratambémnãosepareciacom assenhorasbondosasquepresidemasinstituiçõesdecaridade.Elanão tinhaohábitodedaresmolasaosmendigos.Quandopassavaporeles,a doisoutrêsmetrosdedistância,nãoosenxergava.Sofriademiopia espiritual.Osnegrosqueperdiamsuacarneaospedaços,aquatromil quilômetrosdedistânciadela,estavam,portanto,maispróximos.Achavamseexatamentenaquelelugardohorizonteparaondeogestodeseus braçoslevavasuaalmadolorida. Noentanto,existeumadiferençaentreumpolonêscondenadoàmorte eosnegrosleprosos!AquiloqueemBetinaeraumaintervençãona Históriatornou-seemLauraumsimplesatodecaridade. ParaLaura,issonãoeranada.AHistóriamundial,comsuasrevoluções, suasutopias,suasesperanças,seushorrores,desertouaFrançaedeixou apenasnostalgia.Éjustamenteporissoqueofrancêsinternacionalizoua caridade.Nãoéoamorcristãopelopróximo(como,porexemplo,nos americanos)queoestimulaàsboasobras,masanostalgiadessaHistória perdida,odesejodefazê-lalembrar-sedele,deestarpresentenelapelo menossobaformadeumalatavermelhadepediresmolasdestinadaa coletardinheiroparaosnegros. ChamemosogestodeBetinaedeLauragestododesejodeimortalidade. Aspirandoàgrandeimortalidade,Betinaquerdizer:recuso-mea desaparecercomopresenteesuaspreocupações,queroultrapassara mimmesma,fazerpartedaHistóriaporqueaHistóriaéamemóriaeterna. Mesmoaspirandosomenteapequenaimortalidade,Lauraqueramesma coisa:ultrapassarasimesmaeultrapassaromomentoinfelizque atravessa,fazer"algumacoisa"paraficarnamemóriadosquea conheceram. Aambiguidade Emsuainfância,Brigitejágostavadesentarnocolodeseupai,mas parece-mequecomdezoitoanosgostavamaisainda.Agnèsnãodizianada. MuitasvezesBrigitemetia-senacamadeles(porexemplo,quando estavamvendotelevisão)eentreostrêsreinavaumaintimidadefísica maiordoqueoutroraentreAgnèseseusprópriospais.Agnèstambém percebiaaambiguidadedessequadro:umamoçagrande,compeitos opulentosequadrisredondos,sentadanocolodeumhomembonitoem plenovigor,roçacomessepeitoexuberanteosombroseorostodo homem,chamando-ode"papai". Umanoiteconvidaramumbandoalegredeamigos,entreosquais estavaLaura.Nummomentodeeuforia,quandoBrigiteestavanocolodo pai,Lauradisse: —Tambémquerofazerisso! Brigiteemprestou-lheumjoelhoetodasduasficarammontadasnas pernasdePaul. AsituaçãonoslembramaisumavezBetina,poisfoigraçasaelaea maisninguémquesentar-senosjoelhoscriouummodelodeambiguidade erótica.JádissequeBetinatinhaatravessadoocampodebatalhaamoroso desuavida,abrigadaatrásdoescudodainfância.Carregaraesseescudo nasuafrenteatéoscinquentaanos,paratrocá-loporumescudodemãee colocartodososmoçosnoseucolo;maisumavezasituaçãoera maravilhosamenteambígua:éproibidosuspeitardeumamãedeter intençõessexuaiscomseufilho,eéporissoqueaimagemdeumrapaz sentadonocolodeumamulhermadura(mesmoquesómetaforicamente) écheiadesignificadoseróticosaindamaisfortesporseremnebulosos. Ousoafirmarquenãoexisteerotismoautênticosemaarteda ambiguidade;quantomaispoderosaéaambiguidade,maisvivaéa excitação. Quemnãoselembradeterbrincado,nasuainfância,dosublimejogo domédico?Agarotadeita-senochãoeogarototiraaroupadelasobo pretextodevisitamédica.Agarotaficadócil,poisaquelequeaobserva nãoéumgarotocurioso,masumespecialistasérioquesepreocupacom suasaúde.Acargaeróticadessasituaçãoétãoimensaquantomisteriosa; todosdoisficamsemfôlego.Aindamaissemfôlegoporqueogarotoem nenhummomentodeixarádeserummédicoe,aotiraracalcinhada menina,atrataráde"senhora".Essemomentoabençoadodavidainfantil evocaemmimumalembrançamaisbelaainda,odeumacidadetchecado interiorondeumamoçavoltouaseinstalarem1969,depoisdeuma temporadaemParis.TendoidoparaaFrançaestudarem1967, reencontrouseupaísocupadopeloexércitorusso;aspessoastinham medodetudoeoúnicodesejoquetinhameraestarnoutrolugar,em qualquerlugarondehouvesseliberdade,equefossenaEuropa.Durante doisanos,ajovemtchecatinhafrequentadoassiduamenteosseminários que,nessaépoca,deveriamserfrequentadosassiduamentesealguém pretendesseinstalar-senocoraçãodavidaintelectual;alitinhaaprendido quenaprimeirainfância,antesdafaseedipiana,atravessamosoqueo célebrepsicanalistachamavaafasedoespelho,naqualdiziaqueantesde confrontarcomocorpodamãeedopaidescobrimosnossoprópriocorpo. Voltandoparaseupaís,amoçatchecaachouquemuitodeseus compatriotas,paragrandeespantodeles,tinhampuladoprecisamenteeste estágiodesuaevoluçãopessoal.AureoladapeloprestígiodeParisede seusfamososseminários,elareuniuumgrupodejovensmulheres.Davalhescursosteóricos,dosquaisninguémcompreendianadaeasiniciavaem exercíciospráticos,tãosimplesquantoeracomplicadaaparteteórica: todasficavamnuasecadaumaexaminava-sediantedeumgrande espelho,depoisexaminavam-setodasjuntascomextremaatenção, finalmenteobservavam-seemespelhosdebolsa,queumaestendiaàoutra demaneiraamostrar-lheaquiloquenuncaelatinhavistoantes.Em nenhummomentoainstrutorainterrompiasuaexplicaçãoteóricacuja fascinanteopacidadeastransportavaparalongedaocupaçãorussa,para longedesuacidade,proporcionando-lhesalémdomaisumaexcitação misteriosaesemnome,daqualevitavamfalar.Semdúvida,ainstrutora eranãoapenasumadiscípuladograndeLacan,mastambémumalésbica; noentanto,nãoacreditoquenessegrupohouvessemuitaslésbicas convictas.Edetodasessasmulheres,confesso,aquelaqueocupameu pensamentoéumamoçainteiramenteinocenteparaquemnãoexistia maisnadanomundo,duranteessassessões,anãoserotenebroso discursodeLacanmaltraduzidoparaotcheco.Ah!,essasreuniões científicasdemulheresnuas,essassessõesnumapartamentodapequena cidadetcheca,enquantoaspatrulhasrussasfaziamsuasrondas,ah,como erammaisexcitantesdoqueasorgiasemquecadapessoaesforça-sepor fazerosgestosesperados,emquetudoécombinadoetemapenasum sentido,lamentavelmenteúnico!Masapressemo-nosemdeixarapequena cidadetcheca,evoltemosaosjoelhosdePaul:Lauraestásentadanum;no outro,imaginemosnopresente,porrazõesexperimentais,nãoBrigite,mas suamãe. ParaLauraéumasensaçãoagradávelcolocarseutraseiroemcontato comascoxasdeumhomemsecretamentedesejado:asensaçãoéainda maisexcitanteporqueelanãosesentounocolodePaulnaqualidadede suaamantemassimdecunhada,complenoconsentimentodamulher. Lauraéatoxicômanadaambiguidade. ParaAgnès,asituaçãonãotemnadadeexcitante,maselanãopode tirardacabeçaessafraseridícula:emcadajoelhodePaulestásentadoum ânusdemulher!EmcadajoelhodePaulestásentadoumânusdemulher! Agnèséoobservadorlúcidodaambiguidade. EPaul?Elefalasemparar,brinca,levantandooraumjoelho,oraoutro, paraconvencerasduasirmãsdesuasbrincadeirasdetitio,semprepronto atransformar-seemcavalodecorridaparaalegriadesuaspequenas sobrinhas. Pauléopalermadaambiguidade. Nopiordeseusproblemasamorosos,Laurapediamuitasvezes conselhoaPaulemuitasvezesoencontravaemdiferentesbares.Notemos queosuicídioficavaausentedesuasconversas.LaurapediraaAgnèsque guardassesegredodeseusprojetosmórbidos,queelamesmanunca mencionavaemfrentedePaul. Assim,aimagemexcessivamentebrutaldamortenãorompiaotecido delicadodabelatristezadoambiente,esentadosumdiantedooutro, algumasvezesPauleLaurasetocavam.Paulapertava-lheamãoouo ombrocomoqueparadar-lheforçaeconfiança,poisLauraamava Bernardo,equemamamerecequealguémlhedêapoio. Iadizerquenessesmomentoseleaolhavanosolhosmasissonãoseria exato,jáqueLaurarecomeçouausarseusóculosescuros;Paulconheciaa razãodisso:elanãoqueriamostrarsuaspálpebrasinchadaspelas lágrimas.Osóculos,derepente,carregavam-sedemuitossignificados: davamaLauraumaelegânciaquasesevera,quaseinacessível;mas mostravamaomesmotempoalgumacoisademuitocarnal,demuito sensual:umolhomolhadodelágrimas,umolhosubitamentetransformado emorifíciodocorpo,umadessasnovebelasportasdocorpofemininode quefalaocélebrepoemadeApollinaire,umorifíciomolhado,escondido atrásdafolhadeparreiradovidroacinzentado.Aideiadalágrimaatrás dosóculosalgumasvezeseratãointensa,ealágrimaimaginadatão abrasadora,quesetransformavanumvaporqueosenvolviaatodosdois, privando-osdojulgamentoedavisão. Paulpercebiaessevapor.Masseráquecompreendiaosentidodele? Achoquenão.Imaginemosessasituação:umagarotavemverum garoto. Começaatirararoupadizendo:—Doutor,osenhortemqueme examinar.Então,ogarotodeclara:—Masminhafilha!Eunãosoumédico! ÉexatamenteassimquePaulsecomportava. Avidente SePaul,nasuadiscussãocomGrizzly,quismostrar-seumbrilhante partidáriodafrivolidade,comoéquecomasduasirmãsnocolotinhasido tãopoucofrívolo?Eisaexplicação:nasuacabeça,afrivolidadeeraum benéficoclisterqueelequeriaaplicarnacultura,navidapública,naarte, napolítica,umbomclisterparaGoetheeNapoleão,mas(prestem atenção!)quecertamentenãoserviaparaLauraeBernardo.Aprofunda desconfiançaquePaulsentiaporBeethoveneRimbauderaredimidapela confiançasemlimitesquedispensavaaoamor. Emseuespíritoanoçãodeamorestavaligadaàimagemdooceano,o maistempestuosodoselementos.QuandoestavadefériascomAgnès, deixavaajaneladoquartodohotelescancarada,paraqueseussuspiros deamorsejuntassemàvozdasondaseparaquesuapaixãose confundissecomessagrandevoz.Mesmosendofelizcomsuamulher, mesmoamando-a,sentiaemalgumrecônditosecretodesuaalmaum ligeiro,umtímidodesapontamentocomaideiadequeseuamornunca tivessesemanifestadodemaneiraumpoucomaisdramática.Quase invejavaemLauraosobstáculosquetinhaencontradoemseucaminho porque,segundoele,apenasosobstáculospodemtransformaroamorem históriadeamor.Tambémsentiaporelaumsentimentodeafetuosa solidariedade,sofrendocomostormentosdelacomosefossemseus. Umdia,elalhetelefonouparadizerqueBernardoiriadentrodealguns diasparaaMartinica,paraacasadafamília,equedecidiraencontrar-se comelelá,sebemqueelenãoativesseconvidado.Seoencontrasseláem companhiadeumadesconhecida,pior.Pelomenostudoficariaesclarecido. Parapoupá-ladeconflitosinúteis,eletentoudissuadi-la.Masa conversaeternizava-se:Laurarepetiasempreosmesmosargumentose Paul,conformado,apressou-seemdizer: —Vá,jáquevocêestátãoprofundamenteconvencidadequesua decisãoestácerta!Massemlhedartempo,Lauradeclarou:—Umaúnica coisapoderiameimpedirdefazeressaviagem:umaproibiçãosua. Assimacabavadetransmitir-lhemuitoclaramenteoqueeledeveria dizerparadissuadi-ladesseprojeto,preservandoaomesmotemposua dignidadedemulherdecididaairatéofimdodesesperoedaluta. Lembremo-nosdeseuprimeiroencontrocomPaul;ouviranasuacabeça exatamenteaspalavrasqueNapoleãodisseraaGoethe:"Eisumhomem!" SePaulfosserealmenteumhomem,nãoteriahesitadouminstanteem proibir-lheessaviagem.Ora,elenãoeraumhomem,massimumhomem deprincípios:hámuitotempohaviariscadoapalavra"proibir"doseu vocabulárioeficavaorgulhosocomisso.Protestou:—Vocêsabeque nuncaproíbonadaaninguém.Laurainsistiu: —Maseuquerosuasproibiçõesesuasordens.Vocêsabequeninguém maistemessedireito.Fareioquevocêmedisser. Paulsentiu-seperturbado:passaraumahoraexplicandoqueelanão deviair,eháumahoraelaafirmavaocontrário.Porque,emvezdese deixarconvencer,lhepediaumaproibição?Elecalou-se. —Vocêtemmedo?—Elaperguntou. —Medodequê? —Demeimporsuavontade. —Senãopudeconvencê-la,nãotenhoodireitodeproibiroquequer queseja. —Éissoqueeudiria,vocêestácommedo. —Queriaconvencê-lapelarazão.Elariu. —Vocêseescondeatrásdarazãoporquetemmedodemeimporsua vontade.Temmedodemim! Seurisofezcomqueelemergulhassenumconstrangimentoainda maioreapressou-seemterminaraconversa:—Voupensarnisso. DepoispediuaAgnèssuaopinião.Eladisse:—Elanãodeveir.Seria umabobagemmonumental.Sefalarcomela,façatudoparaimpedi-lade partir! MasaopiniãodeAgnèsnãorepresentavagrandecoisa,poisoprincipal conselheirodePauleraBrigite. Quandoeleexplicouasituaçãoemqueestavasuatia,elalogoreagiu: —Eporqueelanãoiriaparalá?Devemosfazersempreoque queremos. —Massuponha,objetouPaul,queencontreBernardocomuma mulher. Faráumescândaloterrível! —Eeledissequeestariaacompanhadodeumamulher? —Não. —Deveriaterdito.Senãoofez,éporqueécovardeeelanãotem nenhumarazãoparapoupá-lo.OqueéqueLauratemaperder?Nada. PodemosperguntarporqueBrigitedeuaPaulessaopiniãoenãouma outra.PorqueestavasolidáriacomLaura?Nãoacredito.Muitasvezes Lauracomportava-secomosefossefilhadePaul,oqueBrigiteachava ridículoedesagradável.Nãotinhaamenorvontadedeficarsolidáriacom atia;suaúnicapreocupaçãoeraagradaraseupai.PressentiaquePaul dirigia-seaelacomoaumavidente,equeriaconsolidaressaautoridade mágica.SupondocorretamentequesuamãeerahostilàviagemdeLaura, elaquisadotaraatitudecontrária,deixarfalarporsuabocaavozda mocidade,eseduzirseupaicomumgestodecoragemirrefletida. Balançavarapidamenteacabeçadaesquerdaparaadireita,eda direitaparaaesquerda,levantandoosombroseassobrancelhasePaul, maisumavez,sentiaaestranhasensaçãodeteremsuafilhaumabateria deonderetirarenergia. Talvez,pensouele,seAgnèstivesseohábitodepersegui-lo,sepegasse umaviãoparapersegui-loemilhasdistantes,talvezeletivessesidomais feliz.Todasuavidahaviadesejadoqueamulheramadaestivessedisposta abateracabeçanaparedeporele,agritardedesesperooudarpulosde alegrianoapartamento. ConcluiuqueLauraeBrigiteeramdoladodacoragemedaloucura,e quesemumtoquedeloucuraavidanãomereciaservivida.QueLaura, portanto,sedeixasseconduzirpelavozdocoração!Porqueviraretornar avirarcadaumdenossosatosnafrigideiradarazãocomosefosseuma panqueca? —Noentantonãoesqueça,objetoueleainda,queLauraéumamulher sensível.Essaviagemsópodefazê-lasofrer! —Nolugardela,euiria.Eninguémpoderiamesegurar,disseBrigite numtomcategórico. DepoisLaurachamouPaulnotelefone.Paracortaraconversa,elelogo lhedisse: —Penseimuitoeminhaopiniãoéquevocêdevefazerexatamenteo quequer.Sequerpartir,parta! —Jáestavaquasedecididaadesistir.Vocêestavamuitopreocupado comessaviagem.Masjáqueagoravocêaprova,partoamanhã. IssofoiparaPaulumaduchafria.Compreendeuquesemestímulo LaurajamaisiriaparaaMartinica.Masfoiincapazdeacrescentarmais algumacoisa:aconversaparouaí.Nodiaseguinte,umaviãolevouLaura sobreoAtlântico,ePaulsentiu-sepessoalmenteresponsávelporuma viagemquenoíntimo,comoAgnès,achavaumabsurdo. Osuicídio Passaram-sedoisdiasdepoisqueLauraembarcou.Àsseishorasda manhã,otelefonetocou.EraLaura.Disseàirmãeaocunhadoquena Martinicaerameia-noite.Suavoztinhaumaalegriaforçada;porissoAgnès concluiuqueascoisasnãocorriambem. Nãoseenganara:vendoLauranaaleiacercadadecoqueirosque levavaàsuacasa,Bernardoficoupálidoderaivaedisselhecomdureza:— Eupediavocêquenãoviesse. Elatentoujustificar-se,massemumapalavraelejogouduascamisas numasacola,entrounocarroefoiembora.Sozinha,perambuloupelacasa edescobriudentrodeumarmáriosuaroupadebanhovermelhaquelá deixaraficarnumavisitaanterior. —Sóessaroupadebanhomeesperava.Sóessaroupadebanho,disse, passandodorisoàslágrimas.Chorando,continuou:—Foiumabaixeza. Vomitei.Depoisdecidificar.Énessacasaquetudoterminará.Quando voltar,Bernardomeencontraráaquivestidacomessaroupadebanho. AvozdeLauraressoavanoquarto;osdoispodiamouvi-la,poishavia umaextensão. —Eulhepeço,diziaAgnès,acalme-se.Procuremanterseusangue-frio. Laurariudenovo:—Quandopensoqueantesdeviajarcompreivinte caixasdebarbitúricosequeasesqueciemParis!Estavamuitonervosa. —Melhorainda,melhorainda,disseAgnès,quenahorasentiuum verdadeiroalívio. —Masaquiacheiumrevólvernumagaveta,continuouLaura,rindo aindamais:—Bernardodevetemerporsuavida!Temmedodeser atacadopelosnegros.Vejonissoumaviso. —Queaviso? —Quedeixouorevólverparamim. —Vocêestálouca!Elenãodeixounada!Nãoesperavaque vocêchegasse! —Eclaroqueelenãodeixoudepropósito.Mascomprouumrevólver quesóeuusarei.Portanto,deixou-oparamim. Agnèssentiunovamenteumaexasperadasensaçãodeimpotência. —Eulheimploro,disseela,coloqueesserevólvernolugar. —Masnãoseicomousá-lo.MasPaul...Paul,vocêestámeouvindo? Paulpegouotelefone. —Sim. —Paul,estoufelizdeouvirsuavoz. —Eutambém,Laura,maspeçoquevocê... —Eusei,Paul,masnãopossomais...erompeuemsoluços.Houveum silêncio. DepoisLaurarecomeçou:—Orevólverestádiantedemim.Nãoposso tirarosolhosdele. —Coloque-oondeestava,—dissePaul. —Paul,vocêfezoserviçomilitar. —Claro. —Vocêéoficial! —Segundo-tenente. —Issoquerdizerquevocêsabeusarumrevólver.Paul ficouatrapalhado.Mastevequeresponder:—Sim. —Comosesabeseumrevólverestácarregado? —Seotirosaiéporqueestácarregado. —Seeuapertarogatilho,otirosai? —Épossível. —Como,épossível? —Seopinodesegurançaestiversolto,otirosai. —Ecomosevêqueestásolto? —Ora,vocênãovaiexplicaraelacomosematar!Agnès gritou,arrancandooaparelhodasmãosdePaul. Lauracontinuou:—Sóquerosabercomoseusa.Narealidade,todo mundodeveriasabercomoseusaumrevólver.Comosesoltaopinode segurança? —Chega,dizAgnès,nemumapalavramaissobreesserevólver. Ponha-odevoltaaondeestava.Chega!Chegadebrincadeira! Lauramudoudevozsubitamente,umavozgrave:—Agnès!Nãoestou brincando!Enovamentedesatouasoluçar. Aconversanãoacabava;AgnèsePaulrepetiamasmesmasfrases, asseguravamaLauraqueelesaamavam,suplicavamqueelaficassecom eles,quenãoosdeixassemais,tantoqueelaacabouprometendoqueia colocarorevólvernagavetaequeiadormir. Desligandootelefone,estavamtãocansados,queficarammuitotempo semdizerumapalavra. DepoisAgnèsfalou:—Porqueelafazisso!Porquefazisso! EPauldisse:—Foiminhaculpa.Euéquedissequeelafosse. —Elateriaidodequalquermaneira.Paulabanouacabeça: —Não.Elaiaficar.Fizamaiorbobagemdaminhavida. AgnèsquispouparPauldessesentimentodeculpa.Nãoporcompaixão, mastalvezporciúme:elanãoqueriaqueelesesentisseresponsávelpor Lauraaesseponto,nemquementalmenteficassetãoligadoaela.Porisso disse:—Comovocêpodetercertezadequeelaencontrouumrevólver? Paulnãocompreendeulogo. —Oquevocêquerdizer? —Quetalveznãohajarevólvernenhum. —Agnès!Elanãoestábrincando!Sente-seisso. Agnèstentouformularsuassuspeitascommaisprudência:—É possívelqueelatenhaumrevólver.Mastambémnãoéimpossívelqueela tenhabarbitúricos,equeelafaledorevólversóparanos assustar.Tambémnãosepodeexcluirqueelanãotenhanembarbitúricos nemrevólver,equequeiranosatormentar. —Agnès,—dissePaul,—vocêémá. ArepreensãodePauldespertousuaatenção:jáháalgumtempo,sem dúvidanenhuma,eleestavamaispróximodeLauradoquedeAgnès;ele pensavanela,dava-lhecuidadosespeciais,ficavapreocupado,eAgnès,de repente,foiforçadaaimaginarqueeleacomparavacomsuairmã,eque nessacomparaçãoelaapareciacomoamenossensíveldasduas. Tentousedefender:—Nãosoumá.QuerosomentedizerqueLauraé capazdequalquercoisaparachamaratenção.Énormal,poisestá sofrendo.Todomundotendearirdesuasdecepçõesamorosaseadarde ombros.Masquandoelapegaumrevólver,ninguémpoderirmais. —Eseoseudesejodechamaratençãolevá-laaosuicídio?Issonãoé possível? —É,admitiuAgnès,eumlongosilêncioangustiadoabateu-sesobre eles. DepoisAgnèsdisse:—Tambémpossocompreenderquesequeira acabarcomtudo.Quenãosepossamaissuportarosofrimento.Nema maldadedosoutros.Quesequeirairemboraparasempre,iremborapara sempre.Todomundotemodireitodesematar.Enossaliberdade.Não tenhonadacontraosuicídiodesdequesejaumamaneiradeirembora. Parouumsegundo,nãoquerendoacrescentarnada,mas estavafuriosamentehostilemrelaçãoaosatosdesuairmãparanão continuar:—Masocasodelaédiferente.Elanãoquerirembora.Pensano suicídioporqueéumamaneiradeficar.Ficarcomele.Deficarconosco.De inscrever-separasemprenanossamemória.Decaircomtodopesoem nossavida.Denosesmagar. —Vocêéinjusta,—dissePaul,—elaestásofrendo. —Seidisso,disseAgnès,começandoachorar.Imaginousuairmã mortaetudooqueacabaradedizerpareceu-lhemesquinho,vile indesculpável. —Eseelaprometeuguardarorevólversóparanostranquilizar?ela disse,discandoonúmerodacasadaMartinica;comoninguémrespondeu sentiramosuorescorrendoemsuastestas;sabiamquenãopoderiam desligarequeiriamescutarindefinidamenteacampainhaquesignificaria amortedeLaura. Finalmenteouviramsuavozestranhamenteseca.Perguntaramonde elaestava. "Noquartoaolado",disseela.AgnèsePaulfalavamaomesmotempo aotelefone.Contaramaangústiaquetinhafeitocomqueelesligassemde novo. Reafirmaramseuamorporelamuitasvezeseapressaquetinhamem vê-ladenovoemParis. Foramtardeparaotrabalhoesópensaramnelaodiainteiro.Denoite tornaramachamaredenovoaligaçãodurouumahora,denovo reafirmaramseuamoresuaimpaciência. Algunsdiasdepois,elatocouacampainhanaporta.Paulestavasozinho emcasa.Depénaporta,elausavaóculosescuros.Caiunosbraçosdele. Foramparaasalaesentaram-seempoltronasumemfrenteaooutro,mas elaestavatãoagitadaquelevantou-senofimdealgunsinstantese começouaandarpelasala. Falavafebrilmente.Entãoeletambémselevantou,começouaandar pelasalaeafalar. Faloucomdesprezodeseuantigoaluno,deseuprotegido,deseu amigo. Issopoderiajustificar-se,claro,pelapreocupaçãodediminuiremLaura adordeumaseparação.Maselepróprioestavasurpresodeconstataraté quepontoelepensavasinceraeseriamentetudooquedizia:Bernardoera ummimado;umfilhinhodepapairico,umarrogante. Apoiadanalareira,LauraolhavaPaul.EPaul,derepente,percebeu queelanãousavamaisóculos.ElaosseguravanamãoefixavaemPaul unsolhosinchados,molhados.Compreendeuqueháalgunsinstantes Lauranãooouviamais. Calou-se.Umgrandesilêncioinvadiuasala,comosefosseumaforça inexplicávelqueoobrigavaaaproximar-sedela. —Paul,disseela,porquenãonosencontramosmaiscedo,vocêe eu?Antesdetodososoutros... Estaspalavrasespalharam-seentreelescomoumaneblina.Paul penetrounessacamadaestendendoobraço,comoseestivessetateando; suamãotocouemLaura.LauradeuumsuspiroedeixouamãodePaulem suapele.Depoisdeuumpassoparaoladoerecolocouosóculos.Esse gestodissipouaneblinaeelesviram-sefaceafacecomocunhadae cunhado. AlgunsinstantesmaistardeAgnèsvoltoudotrabalhoeentrounasala. Osóculosescuros RevendoLaurapelaprimeiravezdepoisdoseuretornodaMartinica, Agnès,emvezdeabraçá-lacomosefazcomumapessoaqueescapoude umacatástrofe,demonstrousurpreendentefrieza.Nãoviasuairmã,via seusóculosescuros,essamáscaratrágicaquequeriaditarotomdo reencontro. —Laura,disseela,comosenãotivessereparadoamáscara,você emagreceuterrivelmente. Sóentãoaproximou-sedela,eseguindoocostumefrancêsentreduas pessoasconhecidas,beijou-adeleveemcadaladodorosto. Levandoemcontaqueessaseramasprimeiraspalavraspronunciadas depoisdessesdiasdramáticos,temosqueadmitirqueeramimpróprias. Nãotinhamcomoobjetivonemavida,nemamorte,nemoamor,masa digestão.Emsi,issonãoseriamuitograve,porqueLauraadoravafalarde seucorpo,eoconsideravacomoumametáforadeseussentimentos.Oque erabempioréqueessafrasefoiditasemomenorcarinho,semnenhuma admiraçãomelancólicapelostormentosresponsáveispeloemagrecimento deLaura,mascomcansaçoerepulsaevidentes. ÉclaroqueLauracompreendeuperfeitamenteotomempregado porAgnèseentendeuseusignificado.Mas,porsuavez,fingindoignoraro quepensavasuairmã,respondeucomvozsofrida: —Sim,perdisetequilos.Agnèstinhavontadedegritar:—Chega! Chega!Issojáduroudemais!Pare!—Masdominou-seenãodissenada. Lauralevantouamão:—Olhe,nãoémaisumbraço,éumcaule...Não possomaisvestirumasaia.Estounadandodentrodeminhasroupas.Meu nariztambémestásangrando...ecomoparailustraroqueacabavade dizer,virouacabeçaparatráserespiroulongamentepelonariz. Agnèscontemplouessecorpomagrocomumarepulsaquenão podiadominarepensou:paraondeforamossetequilosqueLaura perdeu?Comoumaenergiaqueseconsome,dissolveram-senoazuldo céu?Ousumiramemexcrementosnosesgotos?Paraondeforamossete quilosdoinsubstituívelcorpodeLaura? Entretanto,Lauratiraraseusóculosescuros,paracolocá-lossobrea chaminéondeestavaencostada.Virouparasuairmãseusolhosinchados delágrimas,comohaviafeitominutosantescomPaul. Quandotirouosóculos,foicomosetivessedespidoorosto.Comose estivessenua.Nãodamaneiraqueumamulhersedespeemfrentedo amante,mascomodiantedeummédicoaquemeladelegaa responsabilidadedeseucorpo. Incapazdedeterasfrasesquegiravamemsuacabeça,Agnèsdisseem vozalta: —Chega!Pare.Estamosexaustos.VocêvaiseseparardeBernardo comomilharesdemulheressesepararamdemilharesdehomenssemno entantosematarem. Depoisdemuitassemanasdeintermináveisconversas,nasquais Agnèsjuravaasuairmãtodoseuamor,umatalexplosão,pensaríamos, deveriasurpreenderLaura,mas,curiosamente,nãoasurpreendeu;Laura reagiuàspalavrasdeAgnèscomoseelajáasesperassehámuitotempo. Foicomamaiorcalmaquerespondeu: —Voudizeravocêoquepenso.Vocênãosabenadasobreoamor, nemnuncasoube,nemvaisabernunca.Oamornuncafoioseuponto forte. LauraconheciaospontosvulneráveisdesuairmãeAgnèstevemedo: compreendeuqueLaurafalavadessamaneiraporquePaulestava presente.Derepentetudoficouclaro,nãosetratavamaisdeBernardo: todoessedramadesuicídionãotinhanadaavercomele;provavelmente nuncasaberiadisso;odramasóeradirigidoaPauleAgnès.Elaainda pensou:secomeçamosalutar,colocamosemmovimentoumaforçaque nãosedetémnoprimeiroobjetivoqueera,paraLaura,Bernardo;havia outrosainda. Nãoeramaispossívelesquivar-sedaluta.Agnèsdisse: —SevocêperdeusetequilosporcausadeBernardo,issoéumaprova irrefutáveldeamor.Porém,édifícilentendervocê.Seamoalguém,desejolheobem;sedetestoalguém,desejo-lheomal.Você,hásemanase semanas,torturaBernardoeanóstambém.Qualarelaçãocomoamor? Nenhuma. Imaginemosasalacomoumpalcodeteatro:àextremadireita,a lareira,àesquerdaumabibliotecacercandoopalco.Nocentro,aofundo, umsofá,umamesabaixaeduaspoltronas.Paulestáempénomeioda sala,Lauraestápertodalareira,adoispassosdedistância,eolhaAgnès fixamente.OsolhosinchadosdeLauraacusamsuairmãdecrueldade,de incompreensão,edefrieza.ÀmedidaqueAgnèsfala,Laurarecuaparao meiodasala,emdireçãoaolugarondeestáPaul,comoparamostrarcom esserecuoseuespantoamedrontadodiantedeumataqueinjustodesua irmã. ChegandoadoispassosdePaul,elaparou,repetindo: —Vocênãoconheceabsolutamentenadadoamor. Agnèsavançoueveioocuparolugarpertodalareiraquesuairmã acabaradedeixar.Disse: —Seimuitobemoqueéoamor.Noamor,oimportanteéaquelea quemseama.Édelequesetrata,edemaisninguém.Eeumeperguntoo queéoamorparaumamulherquenãosabeenxergarsenãoelaprópria. Emoutraspalavras,eumeperguntoquesentidotemapalavraamorpara umamulhercompletamenteegoísta. —Perguntar-seoqueéoamornãotemnenhumsentido,minha queridairmã,dizLaura.Oamoréoqueé,eistudo.Vive-seoamorounão. Oamoréumaasaquebatedentrodomeupeitocomodentrodeuma gaiola,equemelevaafazercoisasqueavocêpareceminsensatas.Isso nuncalheaconteceu.Eusóenxergoamimmesma,dizvocê.Masvejoclaro emvocê,atéofundo. Ultimamente,quandovocêmeasseguravaseuamor,eusabia perfeitamentequenasuabocaessapalavranãotinhanenhumsentido. Nãoerasenãoumaarmadilha.Umargumentoparameacalmar.Parame impedirdeperturbarsuatranquilidade.Euaconheço,minhairmã:você estevedooutroladodoamortodaasuavida.Dooutroladototalmente. Alémdoamor. Enquantofalavamdeamor,asduasmulheressedilaceravamcomos dentes.Eohomemqueestavacomelasestavadesesperado.Queriadizer qualquercoisaparaatenuaratensãoinsuportável: —Nóstrêsestamosexaustos.Precisamos,ostrês,irparalonge, qualquerlugar,eesquecerBernardo. MasBernardojáestavairrevogavelmenteesquecido,eaintervenção dePaultevecomoúnicoefeitosubstituiradisputapelosilêncio;nenhuma compaixãoeratransmitidaporessesilêncio,nenhumalembrançaem comum,nemomenorvestígiodesolidariedadeentreasduasirmãs. Nãoafastemosdevistaoconjuntodopalco:àdireita,apoiadana lareira,estavaAgnès;nomeiodasala,viradaemdireçãoàirmã,estava Laura,adoispassosdePaul.Comamãofezumgestodedesesperada impotênciadiantedoódioquetinhaexplodidotãoabsurdamenteentre duasmulheresqueeleamava. Comosequisesse,paraenfatizarsuareprovação,afastar-sedelaso maispossível,deumeia-voltaedirigiu-separaaestante.Encostou-seali, virouacabeçaparaajanelaetentounãovê-lasmais. Agnèsviuosóculosescurospousadossobrealareiraeapanhou-os maquinalmente.Examinou-oscomraiva,comosetivesseentreasmãosas grossaslágrimasnegrasdairmã.Sentiarepugnânciaportudoquevinha docorpodeLaura,eessasgrossaslágrimasdevidropareciam-lheuma dassecreçõesdessecorpo. LauraviuosóculosescurosentreasmãosdeAgnès.Essesóculos subitamentelhefaziamfalta.Precisavadeumescudo,deumvéupara cobrirseurostodiantedoódiodesuairmã.Masaomesmotemponão tinhaforçasparadarquatropassos,iratéasuairmã-inimigaerecuperálos.TinhamedodeAgnès.Elaidentificava-seassim,comumaespéciede paixãomasoquista,àvulnerávelnudezdeseurostosobreoqualestavam impressostodosostraçosdeseussofrimentos. Elasabiabemqueospropósitosquetinhaarespeitodeseucorpo,os setequilosperdidos,irritavamAgnèsaomáximo,elaosabia instintivamente,intuitivamente,eeraprecisamenteporisso,pordesafio, porrevolta,queelaqueriasetornarcorpoomáximopossível,nãoser nadamaisdoqueumcorpo,umcorpoabandonadoerejeitado.Queria depositaressecorponomeiodasaladelesedeixá-lolá.Deixá-lolá,pesado eimóvel.Eobrigá-los,seelesnãooquisessemnacasadeles,apegaresse corpo,seucorpo,umpelospunhos,ooutropelospés,edepositá-lona calçadacomosedepositasecretamente,ànoite,umvelhocolchãousado. Agnèsestavaempépertodalareira,osóculosescurosnamão.Nomeio dasala,Lauraolhavasuairmãerecuandocontinuavaaseafastardela. Depoisdeuumúltimopassoeseucorpoapoiou-senocorpodePaul,junto, muitojunto,Paulestandoencostadonaestante.Lauracolocouasmãos sobreascoxasdePaulcomfirmeza.Virandoacabeçaparatrás,apoiou suanucasobreopeitodePaul. Agnèsestavanumcantodasala,osóculosescurosnamão;nooutro canto,emfrenteelongedela,Lauraerguia-secomoumaestátua, encostadanocorpodePaul.Ficaramimóveis,petrificados,ninguémdeu umapalavra.Passou-seumtempoantesqueAgnèsafastasseseupolegar doindicador.Osóculosescuros,símbolodosofrimento,essaslágrimas metamorfoseadas,caíramsobrealagequecercavaaestantevoandoem pedaços. QuartaParte HomoSentimentalis NodecorrerdoeternoprocessomovidocontraGoethenocasoBetina, inúmerasacusaçõesforampronunciadascontraeleassimcomotambém váriostestemunhosforamfornecidos.Paranãocansaroleitorcoma enumeraçãodecoisasinsignificantes,nãomedetereisenãoemtrês testemunhosquemeparecemcapitais. Primeiro:otestemunhodeRainerMariaRilke,omaiorpoetaalemão depoisdeGoethe. Segundo:otestemunhodeRomainRolland,umdosromancistasmais lidosdosmontesUraisaoAtlânticonasdécadasdevinteetrinta,eque alémdissogozavadeumanotávelautoridadecomohomemdoprogresso, antifascista,humanista,pacifistaeamigodaRevolução. Terceiro:otestemunhodopoetaPaulEluard,excelenterepresentante daquiloquechamamosavant-garde,grandeintérpretedoamoroumelhor, segundoumaexpressãodelepróprio,doamor-poesia,jáqueessasduas noções(comopodemostestemunharemumdeseusmaisbelostrabalhos, intituladoprecisamentelamourdelapoésie)emseuespíritoconfundem-se numasó. Convocadocomotestemunhanoprocessoeterno,Rilke empregouexatamenteosmesmostermosquenacélebreobraemprosa, editadaem1910:LescahiersdeMalteLauridsBrigge,ondedirigiaaBetina estalongaapóstrofe: "Comoépossívelqueninguémfalemaisdoseuamor?Oqueterá acontecidodemaisimportantedepoisdisso?Dequeseocupam?Você mesmaconheciaovalordeseuamor,vocêodiziaemvozaltaaseupoeta maior,paraqueeleotornassehumano,poisesseamoreraainda elemento.Masopoeta,escrevendoavocê,dissuadiuoshomens.Todos leramsuasrespostaseacreditarammaisainda,poisopoetaémais inteligívelparaelesdoqueanatureza.Mastalvezcompreendamumdia queolimitedesuagrandezaestáaqui.Essaamante(dieseLiebende)foi-lhe imposta(auferlegtsignifica"imposto" comoumdeverouumexameéimposto)eelefracassou(erhatsie nichtbestanderí)oquesignifica,precisamente:elenãoconseguiupassar noexamequeera,paraele,Betina).Oquequerdizerqueelenãopôde retribuiroseuamor? Umamorcomoessenãoprecisaserretribuído,contémemsimesmoo gritodeapeloesuaresposta;eleseexaltaporsimesmo.Masopoeta deveriahumilhar-sediantedesseamor,emtodasuamagnificência,e aquiloqueditava,escrevê-loaduasmãoscomoS.JoãoEvangelistade joelhosemPatmos.Nãotinhaoutraescolhadiantedessavozque"exerciao ministériodosanjos"(die"dasAmtderEngelverrichtete")equetinhavindo envolvê-loelevá-loparaaeternidade.Aliestavaacarruagemdesua viagemfulguranteatravésdoscéus.Alifoipreparado,nahoradesua morte,omitosombrio{derdunkleMythos)queeledeixouvazio." OtestemunhodeRomainRollandtratadarelaçãoentre Goethe,BeethoveneBetina.Oromancistaaexplicoudetalhadamenteno ensaioGoetheeBeethoven,publicadoemParisem1930.Colocando nuancesemsuaatitude,elenãoescondequesuasimpatiaéporBetina:ele interpretaosacontecimentosmaisoumenoscomoela.Goetheoaflige, mesmoquenãoneguesuagrandeza:aprudência,tantoestéticaquanto política,ficamalparaosgênios.ECristiana? Ah,émelhornemfalarnela,éuma'"nulidadedeespírito". Essepontodevista,repito,éexpressocomsutilezaecomcomedimento. Osdiscípulossãosempremaisradicaisdoqueseusinspiradores. TenhonasmãosumaricabiografiadeBeethoven,publicadanaFrançanos anossessenta.Nelafala-seclaramentena"covardia"deGoethe,noseu "servilismo",noseu"medosenildiantedetodanovidade",etccetera, etccetera.Aocontrário,Betinaédotadadeuma"qualidadedeclarividência edeumpoderdeadivinhaçãoquequaselheconferemasdimensõesde umgênio".ECristiana,comosempre,nãoésenãoumapobree"volumosa esposa". MesmoquesecoloquemdoladodeBetina,RilkeeRollandfalamde Goethecomrespeito.NolivroLessentiersetlesroutesdelapoésie,textos escritosem1949(istoé,sejamosjustosemrelaçãoaele,nomomento menosfelizdesuacarreiradepoeta,quandoeraferozmentepartidáriode Stalin),PaulEluard,umverdadeiroSaint-Justdoamor-poesia,mostra-se aindamaisduro: "Goethe,emseudiário,assinalaseuprimeiroencontrocomBetina Brentanocomestaspalavras:'MamselBrentano'.Oprestigiosopoeta-autor deWerther,preferiaapazdeseularaosdelíriosativosdapaixão,etodaa imaginaçãoetambémtodootalentodeBetinanãoodesviariamdeseu sonhoolímpico.SeGoethetivessecedido,seucantotalveziriabaixarà terra,masnãooamaríamosmenos,poispossivelmentenãoteriase decididoporseupapeldecortesãoenãoteriacontaminadoseupovo persuadindo-odequeainjustiçaépreferívelàdesordem." "Essaamantelhefoiimposta",escreveuRilke,epodemosperguntar:o quesignificaessaformagramaticalpassiva?Emoutraspalavras:quem impôsaeleessaamante? Amesmaperguntanosvemaoespíritoquandolemos,numacarta escritaaGoetheporBetinaem15dejulhode1807:"Nãodevotermedo demeentregaraestesentimento,porquenãofuieuqueoplanteinomeu coração." Quem,então,oplantou,Goethe?CertamentenãofoioqueBetinaquis dizer.Aquelequelheplantouoamornocoraçãoeraalguémsuperioraela esuperioraGoethe:senãofoiDeus,foipelomenosumdosanjosdeque falaRilke. Chegandonesseponto,podemostomaradefesadeGoethe:sealguém (Deusouumanjo)plantouumsentimentonocoraçãodeBetina,élógico queelaobedeceráaessesentimento:eleestánoseucoração,éseu sentimento,édela. Masninguém,parece,plantouessesentimentonocoraçãodeGoethe. Betinalhefoi"imposta".Prescritacomoumdever.Auferlegt.Apartirdaí, comopodeRilkecensurarGoetheporresistiraumdeverquelhefoi impostocontrasuavontade,porassimdizer,semadvertência?Porqueele deveriacairdejoelhoseescrever"aduasmãos"aquiloquelhe"ditava" umavozvindadasalturas? Pornãopoderresponderracionalmenteaessapergunta,souforçadoa recorreraumacomparação:imaginemosSimãopescandonomarda Galileia. Jesusaproxima-seelhepedequedeixeasredesparasegui-lo.Simão diz: "Deixe-meempaz.Prefirominhasredesemeuspeixes."UmSimão desseslogosetransformarianumpersonagemcômico,numFalstaffdo Evangelho:foinissoqueGoethetransformou-seaosolhosdeRilke,um Falstaffdoamor. RilkedizdoamordeBetina:Esseamornãoprecisaserretribuído, contémemsimesmoseuapeloesuaresposta;elesesatisfazasimesmo.O amorplantadonocoraçãodoshumanosporumjardineirodosanjosnão precisadenenhumobjeto,nenhumeco,nenhumGegen-Liebe(contra-amor, amorretribuído),comodiziaBetina.Oamado(Goethe,porexemplo),nãoé nemacausanemoobjetivodoamor. NaépocadesuacorrespondênciacomGoethe,Betinatambémdirigia cartasdeamoraArnim.Escreveunumadelas:"Oamorverdadeiro(die wahreLiebe)éincapazdeinfidelidade."Esseamorquenãosepreocupa emserretribuído(dieLiebeohneGegen-Liebe)"procuraoamadoemtodas assuasmetamorfoses". SeoamortivessesidoplantadonocoraçãodeBetinanãopor umjardineiroangélicomasporGoetheeporArnim,umamorporGoethee porArnimteriasedesenvolvidonela,amorinimitável,intercambiável, destinadoàquelequeohaviaplantado,àquelequeeraamado,eportanto amorquenãoconheciametamorfoses.Poderíamosdefinirsemelhante amorcomoumarelação:umarelaçãoprivilegiadaentreduaspessoas. Aocontráriodisso,aquiloqueBetinachamawahreLiebe(amor verdadeiro)nãoéamor-relação,masamor-sentimento:achamaqueuma mãocelesteacendenaalmadeumhomem;atochasobcujaluzoqueama "procuraoamadoemtodasasmetamorfoses".Umamorassim(oamorsentimento)nãoconheceainfidelidade,poismesmoseoobjetomuda,o amorcontinuaamesmachama,iluminadapelamesmamãoceleste. Nestepontodenossareflexão,talvezpossamoscomeçara compreenderporque,nasuavolumosacorrespondência,Betinafaztão poucasperguntasaGoethe.MeuDeus,imaginesetivessempermitidoque vocêmantivesseumacorrespondênciacomele!Sobreoquevocêoteria interrogado!Sobretodososseuslivros!Sobreoslivrosescritosporseus contemporâneos.Sobreapoesia. Sobreaprosa. Sobreapintura.SobreaAlemanha.SobreaEuropa.Sobreaciênciae sobreatécnica.Vocêoteriaempurradoatésuasúltimastrincheiraseo levariaaexplicarsuasatitudes.Discutiriacomele,paraconstrangê-loa formularoquenuncadisseraatéentão. Ora,BetinanãodiscutecomGoethe.Nemmesmosobrearte.Comuma únicaexceção:elalheexpõesuasideiassobremúsica.Maséelaquemlhe dálições!BemsabequeGoethenãocompartilhadesuasopiniões.Então, porquenãolheperguntaasrazõesdesuadivergência?Seelativesse sabidoformularasperguntas,asrespostasdeGoethenosteriamfornecido aprimeiracríticaantecipadadoRomantismonamúsica! Masnão,nãoencontraremosnadaparecidonessavasta correspondência:elanãonosinformagrandecoisasobreGoethe simplesmenteporqueBetinaseinteressavamuitomenosdoquesepensa porGoethe;acausaeosentidodeseuamornãoeraGoethe,masoamor. Acivilizaçãoeuropeiaésupostamentefundamentadanarazão.Mas tambémpoderíamosdizerqueaEuropaéumacivilizaçãodosentimento; eladeuorigemaotipohumanoqueeugostariadechamarohomem sentimental:homosentimentalis. Areligiãojudaicaprescreveuumaleiaseusfiéis.Elapretendeser racionalmenteacessível(otalmudeéumaracionalizaçãoperpétuasobre asprescriçõesbíblicas);elanãoexigedosseusadeptosumsentido misteriosodosobrenatural,nemumaexaltaçãoespecial,nemfogomístico queimandoaalma. Ocritériodobemedomaléobjetivo:éaleiescrita,quedeveser compreendidaeobservada. Ocristianismovirouessecritériodecabeçaparabaixo.AmeaDeuse façaoquequiser,disseSantoAgostinho.Transferidoparaaalmado indivíduo,ocritériodobemedomaltornou-sesubjetivo.Seaalmade Untelécheiadeamor,estátudobem:estehomemébometudooqueele fazébom. BetinapensacomoSantoAgostinhoquandoescreveparaArnim: "Encontreiumbeloprovérbio:overdadeiroamortemsemprerazão, mesmoseestáerrado.QuantoaLutero,dissenumacarta:overdadeiro amormuitasvezeséinjusto.Issonãomeparecetãobomquantoomeu provérbio.Aliás,Luterodizia:oamorprecedetudo,mesmoosacrifício, mesmoaoração.Concluoqueoamoréavirtudesuprema.Oamornosfaz perderaconsciência(machtbewusstlos)doterrestreenosalimentacomo celestial;assimoamornoseximedetodaculpa(machtunschuldig)." Nestaconvicçãodequeoamorinocentaohomemrepousaa originalidadedodireitoeuropeuedasuateoriadeculpabilidade,queleva emconsideraçãoossentimentosdoacusado:quandovocêmataalguéma sangue-frio,pordinheiro,vocênãotemnenhumadesculpa;sevocêomata porqueelelheofendeu,suacóleralhevalerácircunstânciasatenuantesea penaimpostaserámenor;enfim,sevocêforlevadoaoassassinatoporum sentimentodeamorferido,porciúme,ojúrivaisimpatizarcomvocê,e Paul,comoadvogadoencarregadodedefendê-lo,exigiráapenamáxima paraavítima. Éprecisodefinirohomemsentimentalnãocomoumapessoa queexperimentasentimentos(porquetodossomoscapazesde experimentá-los),mascomoumapessoaqueosvalorizou.Desdequeo sentimentosejaconsideradocomoumvalor,todomundoquer experimentá-lo;ecomotodosnóstemosorgulhodenossosvalores,é grandeatentaçãodeexibirnossossentimentos. Essatransformaçãodosentimentoemvalorproduziu-senaEuropaem tornodoséculoXII:quandocantavamsuaimensapaixãoporumanobre dama,porumabem-amadainacessível,ostrovadorespareciamtão admiráveisetãobelosquetodos,aexemplodeles,queriamsevangloriar deserapresadealgumindomávelmovimentodocoração. Ninguémpenetrouohomosentimentaliscommaisperspicáciadoque Cervantes.DomQuixotedecideamarumacertadama,Dulcineia,apesarde malconhecê-la(nãoexisteaínadaquepossanossurpreender:quandose tratadowahreLiebe,doverdadeiroamor,jásabemosquepoucoimportaa amada).Nocapítulovinteecincodaprimeiraparte,eleretira-separaas montanhasdesertasemcompanhiadeSancho,láondequermostrar-lhea grandezadesuapaixão. Mascomoprovarqueemsuaalmaardeumachama?Alémdomais, comoprová-loparaumsertãoingênuoeprimitivocomoSancho?Então,no caminhoíngreme,DomQuixotesedespe,ficaapenasdecamisa,epara mostraraseuescudeiroaextensãodeseusentimento,começaadarsaltos ecambalhotasemfrentedele.Cadavezqueficadecabeçaparabaixo,a camisaescorregadeseusombroseSanchoenxergaseusexoquebalança. Ocastoepequenomembrodocavaleiroofereceumespetáculotão risivelmentetriste,tãopungente,queatéSancho,comsuaalmarústica, nãoaguenta,montaemRocinanteevaiemboraemdisparada. Quandoseupaimorreu,Agnèstevequeorganizaroenterro.Elanão queriaqueacerimôniativessediscursoequeriaqueamúsicafosseo AdágiodadécimasinfoniadeMahler,daqualseupaigostava especialmente.Masessamúsicaerahorrivelmentetriste,eAgnèstemia nãoconseguirreteraslágrimasduranteacerimônia.Considerando inadmissívelsoluçarempúblico,colocounoseuaparelhodesomuma gravaçãodoAdágioeaescutou.Umavez,depoisduas,depoistrês.A músicaevocavaalembrançadeseupai,eelachorou.MasquandooAdágio sooupelaoitavaounonaveznasala,opoderdamúsicaenfraqueceuena décimaterceiraaudiçãoAgnèsficoutãocomovidaquantosetocassem diantedelaohinonacionaldoParaguai.Graçasaessetreinamentoelanão chorounoenterro. Pordefinição,osentimento,surgeemnósànossareveliaemuitas vezescomnossocorposedefendendo.Domomentoquequeremos experimentá-lo(assimquedecidimosexperimentá-lo,comoDomQuixote decidiuamarDulcineia),osentimentonãoémaissentimento,masimitação desentimento,suaexibição.Aquiloquegeralmentechamamoshisteria.É porissoqueohomosentimentalis(emoutraspalavras,aquelequeinstituiu osentimentocomovalor)énarealidadeidênticoaohomohystericus. Oquenãoquerdizerqueohomemqueimitaosentimentonãoosinta. OatorquerepresentaopapeldovelhoreiLearsenteemcena,defronte aosespectadores,atristezaautênticadeumhomemabandonadoetraído, masessatristezaevapora-senomesmomomentoquearepresentação termina.Éporissoqueohomosentimentalislogodepoisdenoster comovidocomseusgrandessentimentos,nosdesconcertacomsua inexplicávelindiferença. DomQuixoteeravirgem.Betinatinhavinteecincoanosquandosentiu pelaprimeiravezamãodeumhomememseuseio,noquartodehotelem Teplitz,ondeestavaasóscomGoethe.EGoethe,segundoseusbiógrafos,só conheceuoamorfísicodurantesuafamosaviagemàItália,quandojá estavacomquasequarentaanos.Poucodepois,emWeimar,encontroua operáriadevinteetrêsanosquesetransformouemsuaprimeiraamante permanente.EraCristianaVulpiusque,depoisdemuitosanosdevidaem comum,tornou-sesuaesposaem1806,equeumdia,nomemorávelano de1811,jogounochãoosóculosdeBetina.Erafielmentedevotadaaseu marido(protegeu-ocomseucorpo,dizem,diantedossoldadosde Napoleão)ecertamenteexcelenteamante,oqueéconfirmadopelo encantamentodeGoethe,queachamavameinBettschatz,expressãoque sepoderiatraduzirpor"tesourodeminhacama". Noentanto,nahagiografiadeGoethe,Cristianasitua-sealémdoamor. OséculoXIX(mastambémonosso,cujaalmacontinuasemprecativado séculoprecedente)recusou-seadeixarCristianaentrarnagaleriados amoresdeGoethe,aoladodeLotte(aquelaqueserviriademodeloà CharlottedeWerther),deFrédérique,deLili,deBetinaoudeUrilke.Vocês diriamqueeraporsersuaesposa,equeadotamosohábitodeconsiderar ocasamentocomoumacoisaantipoética.Masachoqueaverdadeirarazão émaisprofunda:opúblicorecusou-seaveremCristianaumamorde GoethesimplesmenteporqueGoethedormiacomela.Poisotesourodo amoreotesourodacamaapareciamcomoduascoisasincompatíveis.Seos escritoresdoséculoXIXgostavamdeterminarseusromancescom casamentos,nãoeraparaprotegerahistóriadeamordamonotonia matrimonial.Não,eraparaprotegê-ladocoito. Asgrandeshistóriasdeamoreuropeiassedesenrolamnumespaço foradocoito:ahistóriadaprincesadeClèves,adePauleVirgínia,o romancedeFromentin,cujoherói,Dominique,gostaavidainteiradeuma únicamulherquenuncabeijoue,claro,ahistóriadeWerther,eade VictoriadeHamsun,eadePierreeLucie,essespersonagensdeRomain RollandqueemseutempofizeramchorarasleitorasdetodaaEuropa.No Idiota,DostoievskideixouNastassiaPhilippovnadormircomoprimeiro comerciantequeapareceu,masquandochegouavezdapaixão verdadeira,istoé,quandoNastassiaseviuentreopríncipeMichkinee Rogojine,seussexossedissolveramemtrêsgrandescoraçõescomo pedaçosdeaçúcaremtrêsxícarasdechá.OamordeAnnaKareninaede Vronskiterminoucomseuprimeiroatosexual,esseamorlogoenvelheceu enemsabemosporquê:seráquefaziamamordemodotãolamentável? Ouaocontrário,seráqueseamavamcomtantoentusiasmoqueaforçada volúpiafeznascernelesosentimentodopecado?Qualquerquesejaa resposta,chegaremossempreàmesmaconclusão:depoisdoamorprécoital,nãoexistiamaisograndeamor,enempoderiaexistir. Issonãosignificaabsolutamentequeoamorforadocoitofosse inocente,angélico,infantil,puro:aocontrário,eleencerravatudooquese podeimaginardeinfernalnestemundo.NastassiaPhilippovnapôde dormircomtodatranquilidadecomplutocratasvulgares;masdepoisdo seuencontrocomMychkineeRogojine,cujossexos,comojádisse,se dissolveramnograndesamovardosentimento,elapenetranumazonade catástrofeeseperde. LembremostambémestacenasoberbadeDominique,deFromentin:os doisnamoradosqueseamaramduranteanossemsetocarvãodarum passeioacavaloeaterna,afina,adelicadaMadeleinetemacrueldade inesperadadeforçarseucavaloagalopardesenfreadamente,sabendo bemqueDominiqueémaucavaleiroesearriscaamorrer.Oamor extracoital:umapanelanofogo,naqualosentimento,levadoaopontode ebulição,transforma-seempaixãoefaztremeratampaquecomeçaa dançarloucamente... Anoçãoeuropeiadeamortemraízesnosoloforadocoito.OséculoXX, quesevangloriadeterliberadoasexualidadeegostaderidicularizaros sentimentosromânticos,nãosoubedarànoçãodeamornenhumoutro sentido(éumdosnaufrágiosdesteséculo),demodoqueumjovem europeu,quandopronunciamentalmenteessagrandepalavra,sevê transportadonasasasdoencantamento,querqueiraquernão,parao pontoexatoemqueWertherviveuseuamorporLotteeemque Dominiquequasecaiudocavalo. ÉsignificativoqueRilke,admiradordeBetina,tenhaadmiradotambém aRússia,apontodeconsiderá-laporumperíodocomosuapátria espiritual.PoisaRússiaé,porexcelência,opaísdosentimentocristão.Foi preservadadoracionalismodaescolásticamedieval,nãoconheceua Renascença.Ostemposmodernos,fundamentadosnopensamentocrítico cartesianoaatingiramcomumoudoisséculosdeatraso.Portantoohomo sentimentalisnãoencontrounaRússiacontrapesosuficienteetornou-seali suaprópriahipérbole,oquechamamoscomumenteaalmaeslava. ARússiaeaFrançasãodoispólosdaEuropaqueexercerãouma atraçãoeternaumpelooutro.AFrançaéumvelhopaíscansadoondeo sentimentosósobrevivecomofórmulas.Paraterminarumacarta,um francêsescreve:"Queiraaceitar,carosenhor,acertezademeus sentimentosespeciais."Quandorecebipelaprimeiravezumacartaassim, assinadaporumasecretáriadasEdiçõesGallimard,viviaaindaemPraga. Salteiatéotetodealegria:emParisexisteumamulherquemeama! Conseguiunasúltimaslinhasdeumacartaoficialintroduziruma declaraçãodeamor!Nãoapenaselasentepormimsentimentos,masela acentuaexpressamentequeelessãoespeciais!Nuncaumatchecame dissecoisaparecida! Bemmaistarde,quandomeinstaleiemParis,explicaram-mequea práticaepistolaroferecetodoumlequesemânticodefórmulasdepolidez; permitemqueumfrancêsescolhascomaprecisãodeumfarmacêuticoo sentimentoquequiser,semsenti-lo,expressando-oaodestinatário;nessa gamadeescolhaossentimentosespeciaisrepresentamograumaisbaixo dapolidezadministrativa,chegandoquaseaodesprezo. Oh,França!ÉsopaísdaForma,comoaRússiaéopaísdoSentimento! Éporissoqueumfrancêseternamentefrustradodenãosentirnenhuma chamaqueimaremseupeito,contemplacominvejaenostalgiaopaísde Dostoievski,ondeoshomensestendemaosoutroshomenslábiosfraternos, prontosaestrangularquemserecusarabeijá-los.Aliás,seestrangularem, éprecisoperdoá-loslogo,poisagiramsobodomíniodeumamorferido,e Betinanosensinouqueoamorperdoaàquelequeama.Pelomenoscento evinteadvogadosparisiensesalugariamumtremparaMoscou,afimde defenderoassassinosentimental.Nãoseriamlevadosporqualquer sentimentodecompaixão(sentimentoexóticodemais,poucopraticadoem seupaís),masporprincípiosabstratosquesãosuaúnicapaixão.O assassinorusso,quenãosabenadadetudoisso,seprecipitaráemdireção aseudefensorfrancêsdepoisdaabsolvição,paraabraçá-loebeijá-lonos lábios.Amedrontado,ofrancêsrecuará,orussoofendidooapunhalará,e todaahistóriavaiserepetir. Ah!Osrussos... EnquantoeuaindaviviaemPraga,contava-seestahistóriaengraçada sobreaalmarussa.Comumaconstrangedorarapidez,umtchecoseduz umarussa.Depoisdocoitoelalhedizcominfinitodesprezo: —Vocêtevemeucorpo.Masnuncateráminhaalma! Belaanedota.BetinaescreveuaGoethequarentaecincocartas,nelas vemoscinquentavezesapalavraalma,apalavracoraçãocentoedezenove vezes. Éraroqueapalavracoraçãosejautilizadanosentidoanatômicoliteral ("meucoraçãobateu");maisfrequentementeéusadaporsinédoque,para designaropeito("queriaapertá-loemmeucoração"),masnamaiorparte doscasosapalavrasignificaamesmacoisaqueaalma:oeusensível. Penso,logoexistoéumaafirmaçãodeumintelectualquesubestimaas doresdedente.Sinto,logoexistoéumaverdadedealcancemuitomais amploequeconcerneatodoservivo.Meueunãosedistingue essencialmentedoseueupelopensamento.Muitaspessoas,poucasideias: pensamostodosmaisoumenosamesmacoisa,transmitindo,pedindo emprestado,roubandonossasideiasumdooutro.Massealguémpisameu pé,sóeusintoador.Ofundamentodoeunãoéopensamentomaso sofrimento,sentimentomaiselementardetodos.Nosofrimento,nemum gatopodeduvidardeseueuúnicoenãointercambiável. Quandoosofrimentoémuitoagudo,omundodesapareceecadaumde nósficasóconsigomesmo.OsofrimentoéaGrandeEscolado egocentrismo. —Vocênãotemumprofundodesprezopormim?PerguntaHippolyte aopríncipeMychkine. —Porquê?Seriaporquevocêsofreuesofremaisdoquenós? —Não,apenasporquesouindignodomeusofrimento. Souindignodomeusofrimento.Grandefórmula.Implicaque osofrimentonãoéapenasofundamentodoeu,suaúnicaprovaontológica indubitável,mastambém,detodosossentimentos,omaisdignode respeito.Ovalordosvalores.ÉporissoqueMychkineadmiratodasas mulheresquesofrem. AoverpelaprimeiravezafotodeNastassiaPhilippovna,elediz: —Estamulherdevetersofridomuito.Essaspalavrasestipulamde umasóvez,antesmesmoquepossamosverapessoa,queNastassia Philippovnasesituaacimadetodasasoutras. —Eunãosounada,masvocê,vocêsofreu,dizenfeitiçadoMychkinea Nastassianocapítuloquinzedaprimeiraparte,edesdeentãoestáperdido. DissequeMychkineadmiratodasasmulheresquesofrem,maso inversonãoémenosverdadeiro:assimqueumamulherlheagrada,elea imaginasofrendo.Ecomonãosabeseguraralíngua,apressa-seemdizê-lo. Aliás,esteéumexcelentemétododesedução(penaqueopríncipenão saibatirardelemelhorpartido),porquesedizemosàumamulher:"Você sofreumuito",écomosefalássemosdiretamenteàsuaalma,comose acariciássemosessaalmaeaexaltássemos.Todamulheremtal circunstânciaestáprontaanosdizer: —Vocêaindanãotemmeucorpo,masminhaalmajáésua!Sobo olhardeMychkine,aalmanãopáradecrescer,pareceumgigantesco cogumelo,tãoaltoquantoumacasadecincoandares,parececomumbalão queaqualquermomentopodevoarparaocéucomasuatripulação.Éisso quechamoahipertrofiadaalma. QuandoGoetherecebeudeBetinaoprojetodaestátua,sentiu,sevocê selembra,umalágrimanoolho;tinhaentãocertezadequeseuforomais íntimolhefaziaconhecer,destaforma,averdade:Betinaoamava realmenteeeleerainjustoemrelaçãoaela.Sómaistardecompreendeu quealágrimanãolherevelavanenhumaverdadesurpreendentesobrea dedicaçãodeBetina,massimplesmenteumaverdadebanalsobresua própriavaidade.Tevevergonhadesedeixarlevarpelademagogiadesua lágrima:realmente,apartirdoscinquentaanos,tiveralongasexperiências comela:cadavezquealguémoelogiava,ouquandoeleprópriosentiauma ondadeauto-satisfaçãodiantedeumaboaaçãoquerealizava,ficavacom lágrimasnosolhos.Oqueéumalágrima?Goetheperguntava-semuitas vezesenuncaencontrouaresposta.Noentantoumacoisaficouclara: muitasemuitasvezes,alágrimanasciadaemoçãoprovocadaemGoethe aoverGoethe. CercadeumasemanadepoisdahorrívelmortedeAgnès,Laurafez umavisitaaPaul,arrasadodedor. —Paul,disseela,estamossósnomundo. Paulsentiuaslágrimassubirem-lheaosolhosevirouacabeçapara disfarçarsuador. FoiprecisamenteessemovimentodecabeçaquelevouLauraa segurar-lhefirmementeobraço: —Paul,nãochore! Olhando-aatravésdesuaslágrimas,constatouqueelatambémestava comosolhosmolhados.Sorriu. —Évocêqueestáchorando,disseelecomavoztrêmula. —Sevocêprecisardoquequerqueseja,Paul,saibaqueestouaqui, queestouinteiramentecomvocê. Paulrespondeu: —Seidisso. AlágrimanoolhodeLauraeraalágrimadaemoçãoqueísuscitavaem LauraavisãodeumaLauradecididaafazerosacrifíciodesuavida, ficandoaoladodomaridodesuairmãdesaparecida. AlágrimanoolhodePauleraalágrimadaemoçãosuscitadaemPaula fidelidadedeumPaulincapazdevivercomumaoutramulherquenão fosseaprópriasombradesuacompanheiradesaparecida,suaimitação, suairmã. Edepois,umdia,deitaramnumagrandecamaealágrima(a misericórdiadalágrima)levouaúltimasuspeitaquetalvezaindativessem detrairamorta. Aartemilenardaambiguidadeeróticaveiosocorrê-los:estavam deitadosumaoladodooutro,nãocomoumcasal,mascomoirmãoeirmã. ParaPaul,Lauratinhasidoumtabu;jamaisaassociouaumaimagem sexual,nemmesmonoâmagodeseupensamento.Sentia-secomoum irmãoparaela,encarregada,portanto,desubstituirsuairmã.Aprincípio essesentimentotornou-lhemoralmentemaisfácilirparaacamacomela, depoisencheu-odeumaexcitaçãointeiramentedesconhecida:elessabiam tudoumsobreooutro(comoumirmãoeumairmã)eoqueosseparava nãoeraodesconhecidomasainterdiçãojávelhadevinteanosque,como tempo,tornava-secadavezmaisinviolável.Nadaestavamaispróximoque ocorpodooutro.Nadaeramaisproibidoqueocorpodooutro.Comuma excitantesensaçãodeincesto(elágrimasnosolhos),começaramafazer amor;eleaamoucomselvageria,comonuncaemsuavidaamaraalguém. Dopontodevistadaarquitetura,existemcivilizaçõessuperioresàda Europa,eatragédiaantigajamaisseráultrapassada.Masnenhuma civilizaçãoconseguiucriar,apartirdossons,essemilagrequeéahistória milenardamúsicaeuropeia,comtodasuariquezadeformasedeestilos! AEuropa:grandemúsicaehomosentimentalis.Doisgêmeosdormindo ladoaladonomesmoberço. Amúsicanãosóensinouaoeuropeuasensibilidade,mastambéma aptidãodevenerarossentimentoseoeusensível.Vocêconheceessa situação:nopalco,oviolonistafechaosolhos,longamente,fazressoaras duasprimeirasnotas.Oouvinte,porsuavez,fechaosolhosesentindosua almaencher-lheopeito,suspira:—Comoébonito! Noentanto,ouviuapenasduassimplesnotas,queemsimesmasnão podemconternenhumpensamentodocompositor,nenhumaintenção criativa,portantonenhumaarte,nenhumabeleza.Masessasnotastocaram ocoraçãodoouvinte,impondosilêncioàsuainteligênciacomotambémao seujulgamentoestético.Umsimplessommusicalageemnós aproximadamentedamesmamaneiracomooolhardeMychkinefixando umamulher.Amúsica:umabombainflandoaalma.Asalmas hipertrofiadas,transformadasemenormesbalões,planamsobotetoda saladeconcertoeseentrechocamnumaenormeconfusão. Lauraamavaamúsicasinceraeprofundamente;emseuamorpor Mahlerperceboumsignificadopreciso:Mahleréoúltimogrande compositorqueaindasedirigecomsinceridadeaohomosentimentalis. DepoisdeMahler,osentimentonamúsicatorna-sesuspeito.Debussyquer nosencantar,nãonoscomover,eStravinskitemvergonhados sentimentos.MahleréparaLauraoúltimocompositor,equandoouve, vindodoquartodeBrigiteasvociferaçõesdorock,seuamorporuma músicaemviasdedesaparecersobosgolpesdasguitarraselétricassenteseatingidoeelaseenfurece;porissodirigeaPaulumultimato;ouMahler ouorock;oquequerdizer:oueuouBrigite. Mascomoescolherentreduasmúsicasigualmentepoucoamadas? ParaPaulorockémuitobarulhento(comoGoethe,eletemoouvido delicado)eamúsicaromânticadespertaneleumasensaçãodeangústia. Umdia,duranteaguerra,quandoemtornodeletodomundoestava aterrorizadopelamarchaameaçadoradaHistória,emvezdetangosoude valsasorádiocomeçouatransmitirosacordesemtommenordeuma músicatristeesolene;emsuamemóriadecriançaessesacordesmenores ficaramgravadosparasemprecomoummensageirodecatástrofes.Mais tarde,compreendeuqueopathosdamúsicaromânticauniatodaaEuropa: nósoouvimoscadavezqueumhomemdeEstadoéassassinadoouque umaguerraédeclarada,cadavezemqueéprecisoencherdeglóriaas cabeçasdaspessoasparaquesedeixemmatarmaisfacilmente.Asnações quesedestruíamentresieramtomadasporumaemoçãofraternal idênticaaoouvirosomdaMarchafúnebredeChopinouaSinfoniaheróica deBeethoven.Ah!SedependessedePaulomundodispensariatantoo rockquantoMahler.Masasduasmulheresnãolhedeixavamescapatória. Elasoforçavamaescolher:entreduasmúsicas,entreduasmulheres.Ele nãosabiaoquefazer,pois,essasmulheres,gostavadeumaedeoutra. Elas,aocontrário,sedetestavam.Comtristezatorturante,Brigite olhavaopianobrancoqueduranteanostinhalheservidodeprateleira: lembrava-lheAgnèsqueporamoràirmãtinhasuplicadoqueela aprendesseatocar.MalAgnèsmorrera,opianoreviveueeratocadotodos osdias.ComainvasãodorockBrigitequeriavingaramãetraídae expulsaraintrusa.QuandocompreendeuqueLauraficaria,foielaquem partiu.Orockcalou-se.Odiscorodavanavitrola,ostrombonesdeMahler ressoavamnoapartamentoedilaceravamocoraçãodePaul,arrasadocom aausênciadeBrigite.LaurasegurouacabeçadePauleolhou-onosolhos: —Querolhedarumfilho,eladisse. Osdoissabiamquehámuitoosmédicoshaviam-lheavisadoque evitasseumanovagravidez.Porissoacrescentou:—Fareitodasas operaçõesnecessárias. Chegouoverão.Laurafechouabutiqueeosdoisforampassarquinze diasnapraia.Asondasquebravamnaareiaeesseruídoenchiaopeitode Paul.Eraaúnicamúsicaqueamavacompaixão.Felizeatônito,viaLaura confundir-secomessamúsica;foiaúnicamulheremsuavidaquefoipara elecomoooceano;aúnicaquefoioceano. RomainRolland,testemunhadaacusaçãonoprocessoeternomovido contraGoethe,distinguia-seporduasqualidades:adoravaasmulheres ("elaémulhereporissonósaamamos"disseeledeBetina)etinhao desejoentusiasmadodeprogredir(oqueparaelesignificava:coma RússiacomunistaecomaRevolução).Curiosamente,esseadoradorda feminilidadededicavaamesmaadmiraçãoaBeethoven,porqueelese recusaraacumprimentarasmulheres.Esseérealmenteofundodo problemasecompreendermosoquedeveteracontecidonaestaçãode águasdeTeplitz:Beethoven,comochapéuenterradonacabeçaeasmãos atrásdascostas,passapelaImperatrizesuacortequecertamentenãoera compostasomentedehomensmastambémdemulheres. Nãocumprimentá-losteriasidoumagrosseriasemigual!Éimpensável: apesardeoriginalederude,Beethovennuncasecomportoucomoum cafajesteemrelaçãoàsmulheres!Todaessaanedotaéumatolice evidente:seelapôdetersidoacolhidaeespalhadacomcandura,éporque aspessoas(eatémesmoumromancista,oqueéumavergonha!) perderamtodoosentidodarealidade. Poderãomeobjetarqueéabusivoexaminaraveracidadedeuma anedotaque,evidentemente,nãoéumtestemunhomasumaalegoria.De acordo;consideremos,portanto,aalegoriacomoalegoria;esqueçamosas circunstânciasdesuaorigem(elascontinuarãosempreobscuras), esqueçamosaparcialidadedequeumeoutroquiseramrevesti-la,e tentemosapreenderseusignificado,porassimdizer,objetivo:Oque significaochapéudeBeethovenprofundamenteenterradonacabeça?Que Beethovendesprezaaaristocracia,porqueelaéreacionáriaeinjusta, enquantoqueochapéunamãohumildedeGoetheimploraaomundo continuartalqualé?Sim,essaéainterpretaçãocomumenteaceita,mas eradifícildedefender:comoGoethe,Beethovenfoiobrigadoanegociar comsuaépocaummodusvivendiparasimesmoeparasuamúsica;assim, elededicavaassuassonatas,oraaumpríncipe,oraaoutroe,para celebrarosvencedoresdeNapoleãoreunidosemViena,nãohesitouem comporumacantataemqueocorogritavaaspalavras"Queomundoseja denovoaquiloqueera!";chegouatéaescreverumapolonaiseparaa ImperatrizdaRússia,comsequisessedepositarsimbolicamenteainfeliz Polônia(essaPolôniapelaqualBetinalutariacorajosamentetrintaanos maistarde)aospésdeseuusurpador. Portanto,se,emnossocarroalegórico,Beethovencruzacomogrupode aristocratassemtirarseuchapéu,issonãopodesignificarqueos aristocratassejamreacionáriosdesprezíveiseeleumrevolucionário admirável;issosignificaqueaquelesquecriam(estátuas,poemas, sinfonias)merecemmaisrespeitodoqueaquelesquegovernam (empregados,funcionáriosoupovos).Queacriaçãorepresentemaisqueo poder,aartemaisqueapolítica.Queasobrassãoimortais,nãoasguerras nemosbailesdospríncipes. (Aliás,Goethedeviateramesmaopinião,sóqueachavainútilrevelar essaverdadedesagradávelaosmestresdomundoenquantovivos.Tinha certezadequenooutromundoelesocumprimentariamprimeiro,eessa certezalhebastava.) Aalegoriaéclara,enoentantoéinterpretadasempreaocontrário: aquelesque,diantedoquadroalegóricoapressam-seemaplaudir Beethoven,nãoentendiamnadadoseuorgulho;namaiorpartedasvezes pessoasobscurecidaspelapolítica,epreferemLenine,Castro,Kennedyou MitterrandaPicassoouFellini.CertamenteRomainRollandtirariaseu chapéuabaixando-oaindamaisqueGoethe,setivessevistonaaleiade TeplitzStalinseaproximandodele. OrespeitodeRomainRollandpelafeminilidademepareceumpouco bizarro.Ele,queadmiravaBetinapelasimplesrazãodelasermulher("ela émulhereporissonósaamamos"),nadaencontroudeadmirávelem Cristianaque,semdúvida,tambémeramulher!DizqueBetinatemum coração"ternoelouco",queelaé"loucaesábia","loucamentevivae sorridente",erepetemuitasvezes"louca".Ora,sabemosqueparaohomo sentimentalisaspalavras"louco", "louca","loucura"(queemfrancês,"fou","folie","folie",temuma ressonânciaaindamaispoéticadoquenasoutraslínguas!)significaa exaltaçãoliberadadossentimentosdetodaacensura("osdelíriosativos dapaixão",comodizEluard)econsequentementesepronunciamcomuma comovidaadmiração.DeCristiana,aocontrário,oadoradordemulherese doproletariadonãofalanuncasemjuntaraseunome,emdesacordocom todasasregrasdagalanteria,osadjetivos "ciumenta","vermelhaepesada","gorda","inoportuna","curiosa"e "obesa". Curiosamente,oamigodasmulheresedoproletariado,omensageiro daigualdadeedafraternidade,nãomanifestanenhumaemoçãocoma ideiadequeCristianafosseumaantigaoperáriaequeGoethedemonstrou umacoragemforadocomumaoviverabertamentecomela,casando-se depois.Eletevequeenfrentarnãoapenasascalúniasdossalõesde Weimar,mastambémadesaprovaçãodeseusamigosintelectuais,Helder eSchiller,queaolhavamdecima.NãomesurpreendesaberqueaWeimar dosaristocratastenhaaplaudidoaopiniãodeBetinaqualificandoMadame Goethedesalsichona.Masficosurpresodeverissoaplaudidopeloamigo dasmulheresedaclasseoperária.Comoelepôdesentir-setãopróximoda jovemaristocrataqueexibiamaliciosamentesuaculturadiantedeuma mulhersimples?EcomoéqueCristiana,quebebia,dançava,engordava alegrementesemseimportarcomsualinha,nuncatevedireitoaodivino qualificativode"louca"etenhasido,paraoamigodoproletariado,apenas "inoportuna"? Comoéqueoamigodoproletariadonãoteveaideiadetransformara cenadosóculosquebradosnumquadroalegóricoemqueumamulherdo povoinfligeumapuniçãojustaaumaintelectualarrogante,equeGoethe, tomandoadefesadesuamulher,enfrentacomacabeçaerguida(esem chapéu!)oexércitodanobrezaedeseusdetestáveispreconceitos? Claro,umatalalegorianãoseriamenosbobaqueaprecedente.No entantoaquestãopermanece:porqueoamigodoproletariadoedas mulheresteriapreferidoumaalegoriabobaaqualqueroutra?Porque preferiuBetinaaCristiana? Estaperguntanoslevaaocernedaquestão. Ocapítuloseguintenosdaráaresposta. GoethepersuadiaBetina(numacartasemdata)a"sairdesimesma". Hoje,diríamosqueelecensuravaseuegocentrismo.Mas,teriaeleo direitodefazerisso?Quemtomaraopartidoeabraçaraacausados patriotasdoTirol? QuemdefenderaamemóriadePetõfieavidadocondenadoàmorte Mieroslawski?Quempensavaconstantementenosoutros?Qualdosdois estavaprontoasacrificar-se? Betina.Semdúvidanenhuma.MasaobservaçãodeGoethe,noentanto, nãoficainvalidada,poisBetinanuncasaiudeseueu.Ondequerquetenha ido,seueuflutuavaatrásdelacomoumabandeira.Oqueaincitouatomar opartidoeacausadosmontanhesesdoTirolnãoforamosmontanheses, masacativanteimagemdeBetinaapaixonadapelalutadosmontanheses doTirol.OqueaincitouaamarGoethe,nãofoiGoethe,masaimagem sedutoradameninaBetinaapaixonadapelovelhopoeta. Lembro-medeseugesto,quechameidegestododesejode imortalidade:primeiroelacolocouosdedosnumpontosituadoentreseus doisseios,comoparaindicarocentrodaquiloquechamamosoeu.Depois lançouasmãosparafrente,comoparaprojetaresseeumuitolonge,além dohorizonte,emdireçãoàimensidade.Ogestododesejodeimortalidade nãoconhecesenãodoispontosdereferência:oeuaqui,eohorizontelá longe;eapenasduasnoções:oabsolutoqueéoeueoabsolutodomundo. Portantoessegestonãotemnadaemcomumcomoamor,jáqueooutro,o próximo,qualquerhomemqueseencontreentreestesdoispólos extremos(omundoeoeu),estáexcluídoantecipadamentedojogo, omitido,invisível. Orapazquesealistaaosvinteanosnopartidocomunistaouquede fuzilnamãovaisejuntaràguerrilhanasmontanhas,ficafascinadopor suaprópriaimagemderevolucionário:éelaqueodistinguedosoutros,é elaquefazcomqueelesetorneelemesmo.Naorigemdesualuta encontra-seoamorexacerbadoeinsatisfeitodeseueu,aoqualdesejadar contornosbemnítidos,antesdeenviá-lo(fazendoogestododesejode imortalidade,comoacabeidedescrever)aograndepalcodaHistóriapara ondeconvergemmilharesdeolhares;esabemos,porexemplo,por MychkineeporNastassiaPhilippovna,quesobosolharesintensamente dirigidosparaelaaalmanãopáradecrescer,deinflar,deaumentarde volume,parafinalmentesubiremdireçãoaofirmamentocomoumbalão magnificamenteiluminado. Oqueincitaaspessoasalevantaropunho,apegaremumfuzil,a defenderemjuntascausasjustasouinjustas,nãoéarazão,massimaalma hipertrofiada.ÉelaocombustívelsemoqualomotordaHistórianão funcionariaesemoqualaEuropaestariadeitadasobreagrama,olhando preguiçosamenteasnuvensqueflutuamnocéu. Cristiananãosofriadenenhumahipertrofiadaalmaenãodesejava absolutamenteexibir-senograndepalcodaHistória.Desconfioqueela preferissedeitar-senagrama,paraolharasnuvensflutuandonocéu. (Desconfioquenessesmomentoselaatéficassefeliz,ideiadesagradável paraohomemdealmahipertrofiadaque,consumidopelaschamasdeseu eu,nuncaestáfeliz.)PortantoRomainRolland,amigodoprogressoedas lágrimas,nãohesitouumminutoquandotevequeescolherentreCristiana eBetina. Passeandopeloscaminhosdoalém,Hemingwayviuaolongeumjovem quevinhaaoseuencontro;eleestavaelegantementevestidoecomboa postura. Amedidaqueesseeleganteaproximava-se,Hemingwaypodia distinguiremseuslábiosumsorrisoleveemalicioso.QuandoestaVa próximo,ojovemdiminuiuopassocomosequisessedaraHemingway umaúltimachancedereconhecê-lo. —Johann!Hemingwaygritouespantado. Goethesorriucomsatisfação,orgulhosocomseuexcelenteefeito cênico. Nãoesqueçamosque,tendodirigidopormuitotempoumteatro,sabia manejaressesefeitos.Depoispegouseuamigopelobraço(interessante:se bemquemaismoçonessemomento,elecontinuavaasecomportarcom Hemingwaycomaamávelindulgênciadealguémmaisvelho)elevou-o paraumlongopasseio. —Johann,disseHemingway,hojevocêestábonitocomoumdeus!A belezadeseuamigolhedavaumprazersinceroeriufeliz: —Masondeestãoseuschinelos?Esuaviseiraverde,ondefoiparar? Equandoparouderir:—Éassimquevocêdeviaseapresentarparao eternoprocesso.Esmagarosjuízesnãocomseusargumentos,mascom suabeleza! —Vocêsabequenuncadisseumapalavranoprocessoeterno.Erapor desprezo.Masnãopudedeixardeiredeescutá-los.Lamento. —Oquevocêquer?Condenaramvocêàimortalidadeparapuni-lopor terescritolivros.Vocêmesmomeexplicouisso. Goethelevantouosombrosedissecomcertoorgulho: —Numcertosentido,podeserquenossoslivrossejamimortais.Pode ser. Depoisdeumapausa,juntouameia-voz,emtomgrave: —Masnãonós. —Aocontrário!Hemingwayprotestoucomamargura.Nossoslivros,é provávelquelogoparemdelê-los.DoseuFaustonãosobrarásenãouma óperabobadeGounod.Etalvez,também,esseversoquetratadaquestão doeternofemininoquenoslevaaalgumlugar. —DasEwigweiblicheziehtunshinan,recitouGoethe. —Éisso.Masoshomensnuncadeixarãodecomentaros menoresdetalhesdesuavida. —Atéhojevocênãocompreendeuqueospersonagensdequefalam nãotêmnadaaverconosco? —Vocênãovaiquererdizer,Johann,quenãohánenhumarelação entrevocêeoGoethedequemtodomundofala,esobrequemtodomundo escreve. Admitoquevocênãoéinteiramenteidênticoàimagemqueficoude você. Admitoquenelavocêestejabastantedeformado.Mas,aindaassim,está representadonela. —Não,nãoestoupresentenestaimagem,disseGoethecombastante firmeza.Edigomais.Emmeuslivrostambémnãoestoupresente.Aquele quenãoé,nãopodeestarpresente. —Essalinguagemémuitofilosóficaparamim. —Esqueçauminstantequevocêéamericanoetrabalhecomseu cérebro:aquelequenãoé,nãopodeestarpresente.Étãocomplicado assim?Desdeoinstantedaminhamorte,abandoneitodososlugaresque ocupava.Mesmomeuslivros.Esseslivroscontinuamnomundosemmim. Ninguémmeacharámaisneles.Porquenãosepodeacharquemnãoé. —Gostariamuitodeacreditaremvocê,continuouHemingway,mas diga-me:sesuaimagemnãotemnadaemcomumcomvocê,porquevocê consagrou-lhetantoscuidadosemvida?PorqueconvidouEckermannpara ficaremsuacasa?PorqueresolveuescreverPoesiaeVerdade! —Ernest,resigne-seaadmitirquefuitãoabsurdoquantovocê.A preocupaçãocomaprópriaimagem,essaéaincorrigívelimaturidadedo homem. Étãodifícilficarindiferenteàsuaimagem!Umaindiferençadessas suplantaasforçashumanas.Ohomemsóaconquistadepoisdesuamorte. Emais,nãologodepois.Muitodepoisdesuamorte.Vocêaindanãochegou lá.Vocêaindanãoéadulto.E,noentanto,vocêestámorto...Jáháquanto tempo? —Vinteeseteanos,disseHemingway. —Émuitopouco.Éprecisoesperaraindavinteoutrintaanospelo menos. Sóentãocompreenderá,talvez,queohomemémortalesaberátalvez tirardissotodasasconclusões.Impossívelchegaraissoantes.Algum tempoantesdeminhamorte,acheiquesentiaemmimumatalforça criadoraqueseutotaldesaparecimentomepareciaimpossível.Éclaro, acreditavadeixardemimumaimagemqueseriameuprolongamento.Sim, fuicomovocê.Mesmodepoisdamorte,foidifícilparamimresignar-mea nãosermais.Émuitoestranho,sabe? Sermortaléaexperiênciahumanamaiselementar,enoentantoo homemnuncafoicapazdeaceitá-la,decompreendê-la,decomportar-sede acordocomisso.Ohomemnãosabesermortal.Equandomorre,nemsabe ficarmorto. —Evocê,vocêachaquesabeficarmorto?perguntouHemingwaypara atenuaragravidadedomomento. —Vocêacharealmentequeamelhormaneiradeestarmortoéperder seutempoconversandocomigo?—Nãosejaidiota,Ernest,disseGoethe. Vocêsabequenomomentonãosomossenãoafantasiafrívoladeum romancistaquenosfazdizeraquiloqueprovavelmentenuncadissemos. Masvamosadiante.Vocênotoumeuaspectohoje? —Jálhedisse,logodepoisqueoreconheci!Vocêestábelocomoum deus! —Eraassimqueeuera,naépocaemquetodaaAlemanhaviaemmim umimplacávelsedutor,disseGoethenumtomquasesolene.Depois acrescentou,emocionado:quisquevocêguardassedemimessaimagem nodecorrerdeseuspróximosanos. Hemingwayolhou-ocomsúbitaeternaindulgência: —Evocê,Johann,qualasuaidadepost-morten? —Centoecinquentaeseisanos,Goetherespondeucomumcerto pudor. —Evocêaindanãoaprendeuaficarmorto?Goethesorriu: —Sei,Emest,estouagindoumpoucoemcontradiçãocomoqueacabo delhedizer.Semedeixeilevarporessavaidadeinfantil,éporqueestamos nosvendohojepelaúltimavez. Depois,lentamente,comoumhomemquedaíemdiantenãofarámais nenhumadeclaração,pronunciouestaspalavras: —Poiscompreendi,deumavezportodas,queoeternoprocessoé umaestupidez.Finalmentedecidiaproveitarmeuestadodemortopara,se mepermiteessaexpressãoinexata,irdormir.Parasaborearavolúpiado não-sertotal,quemeugrandeinimigoNovalisdiziaterumacorazulada. QuintaParte Oacaso Depoisdoalmoço,voltouparaoquarto.Eraumdomingo,ohotelnão esperavanenhumhóspedenovo,ninguémapressionavaadeixaroquarto, agrandecamaficaradesfeita,comoadeixarademanhã.Esseespetáculoa enchiadefelicidade:tinhapassadoessasduasnoitessozinha,semouvir outroruídoanãosersuaprópriarespiração,deitadaenviesadadeum ladoaoutrodacamacomosequisesseapoderar-sedetodaessasuperfície retangularquesópertenciaaseucorpoeaseusono. Emsuamalaabertasobreamesa,tudojáestavanolugar:emcimada saiadobradaestavam,numaediçãoembrochura,ospoemasdeRimbaud. Elaostinhalevadoporquenasúltimassemanastinhapensadomuitoem Paul.AntesdeBrigitenascer,elasubianagarupadeumagrande motocicletaepercorriamtodaaFrança.Emsualembrança,esteperíodoe estamotoseconfundiamcomRimbaud:eraopoetadeles. Elaapanharaessespoemassemi-esquecidoscomoseapanhasseum diárioíntimo,curiosaemverseasanotaçõesamareladaspelotempolhe pareceriamcomoventes,ridículas,fascinantesousemnenhuma importância.Osversoscontinuavamsempretãobelosquantoantes,mas numpontoasurpreenderam:nãotinhamnadaavercomagrandemoto queelacavalgavaoutroracomPaul. OmundodapoesiadeRimbaudestavamuitomaispróximodos contemporâneosdeGoethedoquedoscontemporâneosdeBrigite. Rimbaud,quetinhaseimpostoaomundointeirocomoabsolutamente moderno,eraumpoetadanatureza,umvagabundo,seuspoemas continhampalavrasqueohomemdehojeesqueceuouquenãolhedão maisnenhumprazer:grilos,olmos,agrião,aveleiras,tilias,urze,carvalho, corvosagradáveis,excrementosquentesdevelhospombais;ecaminhos, sobretudocaminhos.Nasnoitesazuisdoverãoireipeloscaminhosnomeio dotrigo,pisandoarelvatenra...Nãofalareinada,nãopensareiemnada...e ireilonge,muitolonge,comoumcigano,nomeiodanatureza—felizcomose estivessecomumamulher... Elafechouamala.Depoissaiupelocorredor,saiucorrendodohotel, jogousuamalanobancodetrásesentou-seaovolante. Eramduasemeiaeeraprecisopartirsemdemora,poiselanão gostavadedirigirànoite.Masnãosedecidiaaligaromotor.Comoum amantequenãotevetempodedizeroquetinhanopeito,apaisagemem voltaaimpediadepartir. Desceudocarro.Asmontanhasacercavam;asdaesquerdaestavam iluminadasdecoresvivaseabrancuradasgeleirasbrilhavaporcimade seuhorizonteverde;asdadireitaestavamenvoltasnumaneblinaque impediaquesevissesuasilhueta.Eramdoisefeitosdeluzcompletamente diferentes;doismundosdiferentes.Elavirouacabeçadaesquerdaparaa direitaedadireitaparaaesquerdaedecidiufazerumúltimopasseio. Tomouumcaminhoquesubiaprogressivamenteentreaspastagensem direçãoàsflorestas. SuaviagemaosAlpescomPaul,sobreagrandemotocicletaforahá vinteanos.Paulgostavadomar,asmontanhasnãoosensibilizavam.Ela queriafazê-logostardoseumundo;queriaqueeleficasseextasiadodiante dasárvoresedaspastagens.Amotoestavaparadaaoladodaestradae Pauldizia: —Umapastagemnãoénadamaisdoqueumcampodesofrimento. Nestelindoverde,umsermorreacadasegundo,asformigasdevoramna terraasminhocasvivas,ospássarosestãovigilantesemplenocéu,à espreitadeumadoninhaoudeumrato.Vocêestávendoestegatopreto imóvelentreafolhagem? Eleestásóesperandoumaoportunidadeparamatar.Achorepugnante orespeitoingênuoquetemospelanatureza.Vocêachaquenas mandíbulasdeumtigreumacorçaficamenosespantadadoquevocê mesmaficaria?Seaspessoasdizemqueumanimalnãopodesofrertanto quantoumhomem,éporquenãopoderíamossuportaraideiadeviverno meiodeumanaturezaquenãoésenãoatrocidade,apenasatrocidade. Paulficafelizdeverohomemcobrirpoucoapoucotodaaterrade cimento.Paraele,eracomosetivessememparedadoumaforçaassassina viva. Agnèsocompreendiabemdemaisparaficarchocadacomessaaversão ànatureza,motivada,porassimdizer,porsuabondadeeseusensode justiça. Mastalvezfossemaisociúmebastantebanaldeummaridoquese esforçavaporseparardeumavezportodasafilhadopai.Poisfoideseu paiqueAgnèsherdouoamorpelanatureza.Emsuacompanhia percorreraquilômetrosequilômetrosdecaminhos,deslumbrando-secom osilênciodosbosques. Umdia,unsamigosalevaramparapasseardecarronapaisagem americana.Eraumreinodeárvores,infinitoeinacessível,entrecortado porlongasestradas.Osilênciodessasflorestasparecera-lhemais ameaçadordoqueotumultodeNovaYork.NosbosquesdequeAgnès gosta,oscaminhosseramificamempequenosdesvios,depoisematalhos; pelosatalhosandamosguardas-florestais.Aolongodoscaminhosficamos bancosdeondesepodeverapaisagemcheiadecarneirosevacas pastando.ÉaEuropa,éocoraçãodaEuropa,osAlpes. Háoitodias,rasgaraminhasbotasNaspedrasdocaminho... Rimbaudescreveu. Caminho:tiradeterrasobreaqualseandaapé.Aestradadiferenciasedocaminhonãosóporqueapercorremosdecarro,masporqueéuma simpleslinhaligandoumpontoaoutro.Aestradaemsinãofaznenhum sentido;sótêmsentidoosdoispontosligadosporela.Ocaminhoéuma homenagemaoespaço. Cadatrechodocaminhotemumsentidopróprioenosconvidaaparar. Aestradaéumatriunfaldesvalorizaçãodoespaço,espaçoquehojeemdia nãoémaisdoqueumentraveaosmovimentosdohomem,umaperdade tempo. Antesmesmodedesapareceremdapaisagem,oscaminhos desapareceramdaalmahumana:ohomemnãotemmaisvontadede caminharedeterprazernisso.Suavidatambém,elenãoavêmaiscomo umcaminho,mascomoumaestrada:comoumalinhaquelevadeum pontoaoutro,dopostodecapitãoaopostodegeneral,doestadodeesposa aoestadodeviúva.Otempodeviverestáreduzidoaumsimplesobstáculo queéprecisoultrapassarnumavelocidadecadadiamaior. Ocaminhodaestradatambémencerraduasnoçõesdebeleza.Quando Pauldiziaquehaviaumalindapaisagemnumcertolugar,queriadizer:se vocêpararoseucarroali,veráumlindocastelodoséculoXVcercadopor umparque;ouentão:existeumlago,ecisnesnadandoemsuasuperfície espelhadaqueseperdenohorizonte. Nomundodasestradas,umabelapaisagemsignifica:umapequena ilhadebeleza,ligadaporumlongocaminhoaoutraspequenasilhasde beleza. Nomundodoscaminhos,abelezaécontínuaesemprevariada;acada passo,elanosdiz"Pare!". Omundodoscaminhoseraomundodopai.Omundodasestradasera omundodeseumarido.AhistóriadeAgnèsacabanumcírculo:domundo doscaminhosaomundodasestradas,eagoranovamenteaopontode partida.PoisAgnèsseinstalanaSuíça.Suadecisãojáestátomada,eépor issoqueháduassemanaselasesentetãocontínuaeloucamentefeliz. Atardejáestavaavançadaquandoelavoltouparaseucarro.No momentoexatoemquegirouachavenaignição,oprofessorAvenarius,de calçãodebanho,aproximou-sedapequenapiscinaondeeujáoesperava naáguaquente,agitadaporviolentosturbilhõesquejorravamdesuas paredessubmersas. Éassimqueosacontecimentossesincronizam.Cadavezqueumacoisa acontecenolugarZ,umaoutratambémacontecenoslugaresA,B,C,D,E. "Enomomentoexatoemque..."éumadasfórmulasmágicasque encontramosemtodososromances,umafórmulaquenosenfeitiçana leituradosTrêsmosqueteiros,oromancepreferidodoprofessorAvenarius, aquemdigoàguisadecumprimento:—Nesteprecisomomento,enquanto vocêentranapiscina,aheroínadomeuromanceenfimgirouachaveda igniçãoepegouaestradaparaParis. —Maravilhosacoincidência,disseoprofessorAvenariuscomvisível satisfação,emergulhounaágua. —Evidentementenomundoacontecem,acadasegundo,milharesde coincidênciasdessegênero.Sonhoemescreverumgrandelivrosobreisso: umaTeoriadoacaso.Primeiraparte:oacasoregendoascoincidências.A classificaçãodosdiversostiposdecoincidências.Porexemplo:"No momentoprecisoemqueoprofessorAvenariusmergulhaparaexporsuas costasaosturbilhões,noparquepúblicodeChicagoumafolhamortacaide umcastanheiro."Eisumacoincidênciadeacontecimentos,maselanãofaz nenhumsentido.Naminhaclassificaçãoeuadenominocoincidênciamuda. Masimaginesedigo:"nomomentoexatoemqueaprimeirafolhamorta caíanacidadedeChicago,oprofessorAvenariusentravanapiscinapara massagearascostas."Afrasetorna-semelancólica,porquevemoso professorAvenariuscomoummensageirodooutono,eaáguanaqual mergulhanosparecesalgadadelágrimas.Acoincidênciaprovocouno acontecimentoumsignificadoimprevisto,éporissoqueachamode coincidênciapoética.Maspossotambémdizer,comofizaovê-lo:"O professorAvenariusmergulhounapiscinanomomentoprecisoemque Agnès,emalgumlugarnosAlpes,punhaseucarronaestrada."Essa coincidêncianãopodeserdenominadapoética,porqueelanãodánenhum sentidoespecialàsuaentradanapiscina,maséumacoincidênciaassim mesmomuitopreciosaeeuachamocoincidênciapúntica.Écomoseduas melodiasseunissemnumamesmacomposição.Conheçoissodesdea infância.Umgarotocantavaumamúsica,umoutroumaoutramúsica,e elescombinavamtodasduas! Masexisteaindaumoutrotipodecoincidência:"OprofessorAvenarius enfiou-senometrôemMontparnassenomomentoexatoemqueláestava umabelamulhersegurandoumalatavermelhadepediresmolas."Temos aíumacoincidênciageradoradehistórias,especialmentecaraaos romancistas. Fiz,então,umapausa,esperandoincitá-loamecontarmaissobreo encontronometrô;maselesecontentouemcurvarascostas,paraexpor bastanteseulumbagoàmassagemdaáguaondulada,edeuaentender quenãoestavanadainteressadonoúltimoexemploqueeudera. —Nãopossomedesfazerdaideia,disseele,dequenavidahumanaa coincidêncianãoéregidapelocálculodasprobabilidades.Querodizercom issoquemuitasvezessomosconfrontadoscomacasostãoimprováveisque nãotêmnenhumajustificativamatemática.Recentemente,estavaandando porParis,numaruainsignificantedeumbairroinsignificante,encontrei umamulherdeHamburgoqueviaquasetodososdiashávinteecinco anos,equeperderacompletamentedevista.Entraranessaruapor engano,haviadescidodometrôumaestaçãoantesdaminha.Quantoà mulher,vieraaParispassartrêsdiasetinhaseperdido.Haviauma probabilidadeemumbilhãodenosencontrarmos! —Entãoqualéométodoquevocêadotaparacalcularaprobabilidade dosencontroshumanos? —Vocêconheceummétodo? —Não.Elamento,respondi.Écurioso,masavidahumananuncafoi submetidaaumaenquetematemática.Tomemosporexemplootempo. Sonhoemfazerumaexperiência:aplicareletrodosnacabeçadeum homemecalcularqualaporcentagemdesuavidaqueeleconsagraao presente,queporcentagemàslembranças,queporcentagemaofuturo. Destaformapoderíamosdescobriroqueéohomemnasuarelaçãocomo tempo.Oqueéotempohumano.Ecomcertezapoderíamosdefinirtrês tiposhumanosfundamentais,segundooaspectodotempoquefosse dominanteparacadaum.Voltoaosacasos.Oquepodemosdizerdesério sobreosacasosdavida,semumapesquisamatemática?Sóisso,quenão existematemáticaexistencial. —Matemáticaexistencial.Excelenteachado,disseAvenariusperdido emsuameditação.Depoisdisse:—Dequalquermodo,queeletivessetido umachanceemummilhãoouemumtrilhãodeacontecer,oencontroera perfeitamenteimprovável,eaprópriaimprobabilidadefazseupreço.Pois amatemáticaexistencial,quenãoexiste,colocariamaisoumenosessa equação:ovalordeumacasoéigualaseugraudeimprobabilidade. —Encontrarinesperadamente,emplenaParis,umabelamulherque nãosevêhámuitosanos...digocomumarsonhador. —Eumeperguntoemquevocêsebaseiaparainterpretarqueelaera bonita.Elatomavacontadosvestiáriosdeumacervejariaquenaquela épocaeufrequentavatodososdias,evieraaPariscomumgrupode aposentadosparaumaexcursãodetrêsdias.Quandonosreconhecemos, olhamo-noscomembaraço.Eatécomumcertodesespero,omesmoque teriaumjovemaleijadoqueganhasseumabicicletanumarifa.Todosdois tivemosaimpressãodeterrecebidodepresenteumacoincidênciamuito preciosamasperfeitamenteinútil.Pareciaquealguémcaçoaradenóse sentimosvergonhaumdiantedooutro. —Essetipodecoincidênciapoderíamoschamardemórbida,eudisse. Masemvãomepergunto:emquecategoriaqualificaroacasopeloqual BernardoBertrandrecebeuseudiplomadeburrototal? Avenariusrespondeucomseuarmaisautoritário: —SeBernardoBertrandfoipromovidoaburrototaléporqueeleéum burrototal.Oacasonãotemnadaavercomessaocorrência.Havianisso umaabsolutanecessidade.MasasleisimplacáveisdaHistóriadequefala Marxnãoseimpõemcomnecessidademaiordoqueessediploma. Ecomoseminhaperguntaotivesseaborrecido,eleficouempéna águacomtodasuaestaturaameaçadora.Eutambémmepusdepéefomos nossentarnumbardooutroladodasala. Tínhamospedidodoiscoposdevinhoedadooprimeirogole.Avenarius continuou: —Noentanto,vocêbemsabequecadaumdemeusatoséumatode guerracontraSatânia. —Éclaroquesei,respondi.Porissopergunto:porqueirritar-se precisamentecomBernardoBertrand? —Vocênãocompreendeunada,disseAvenarius,aparentemente cansadodeverificarqueeunemsempreentendiaoqueelejáme explicaradiversasvezes. —ContraSatânianãoexistenenhumalutaeficazeracional.Marx tentou,todososrevolucionáriostentaram,enofinaldascontaselase apossoudetodasasorganizaçõesqueinicialmenteeramdestinadasa destruí-la.Todoomeupassadoderevolucionárioacabounumadesilusãoe hojesómeimportaestapergunta:oquepodefazeraqueleque compreendeuaimpossibilidadedetodalutaorganizadaracionaleeficaz contraSatânia?Sóexistemduassoluções:oubemseconformaedeixa entãodeserelemesmo,oubemcontinuaacultivarsuanecessidadeíntima derevolta,eamanifestadevezemquando.Nãoparamudaromundo, comoMarxdesejavaoutrorajustificadamenteeemvão,masimpulsionado porumimperativomoralíntimo.Ultimamentepenseimuitasvezesem você.Eimportanteparavocêtambémexpressarrevolta,nãoapenaspor romancesquenãopodemlhetrazernenhumasatisfação,maspelaação! Queroquehojevocêfinalmentejunte-seamim! —Mascontinuonãocompreendendo,respondi,porqueumimperativo moralíntimolevou-oaatacaruminfelizapresentadorderádio.Querazões objetivasolevaramaisso?Porquevocêoescolheu,enãoaoutro,como símbolodeburrice? —Proíbo-lheempregaressaestúpidapalavrasímbolo!Disse Avenariuslevantandoavoz.Essaébemamentalidadedasorganizações terroristas!Essaéamentalidadedospolíticosatuaisquenãosãomaisdo quemalabaristasdesímbolos!Desprezodomesmomodoaquelesque penduramumabandeiranasuajanela,eaquelesqueaqueimamnas praças.Bernardo,ameusolhos,nãotemnadadesímbolo.Nadaparamim émaisconcretodoqueele!Euoescutofalartodasasmanhãs!Sãosuas palavrasqueinaugurammeudia!Elemeirritacomsuavozefeminada,sua afetaçãoesuasbrincadeirasidiotas!Tudoquedizmepareceinsuportável! Razõesobjetivas?Nãoseioqueissosignifica!Euopromoviaburrototal, inspiradonaminhaliberdadepessoalmaisextravagante,maismaldosa, maiscaprichosa! —Éissoquequeriaouvirvocêdizer.VocênãoagiucomooDeusda necessidade,mascomooDeusdoacaso. —Acasoounecessidade,agrada-meparecerDeusaseusolhos, respondeuAvenariuscomvozbranda.Masnãocompreendoporque minhaescolhaosurpreendetanto.Umtipoquebrincademodotãoidiota comseusouvintesequeconduzumacampanhacontraaeutanásiaé incontestavelmenteumburrototal,enãovejorealmentequempoderiame contestar. AsúltimaspalavrasdeAvenariusmedeixarampetrificado. —VocêconfundeBernardoBertrandcomBertrandBertrand! —EstoufalandodoBernardoBertrandquefalanorádioequeluta contraosuicídioeacerveja! —Massãoduaspessoasdiferentes!Opaieofilho!Comoéquevocê podeconfundirnumasópessoaumredatorderádioeumdeputado?Seu erroéumexemploperfeitodoquechamávamosaindahápoucouma coincidênciamórbida. Avenariusficoudesconcertadoporuminstante.Masnãodemoroua responderedisse:—Receioquevocêestejaseconfundindocomsua teoriadacoincidência.Meuerronadatemdemórbido.Estáclaro,eleevoca aocontráriooquevocêchamavacoincidênciapoética.Opaieofilho tornaram-seumburrodeduascabeças.Nemavelhamitologiagrega jamaisinventouumanimaltãoextraordinário! Depoisdeesvaziarnossoscopos,fomostrocarderoupanosvestiários, deondetelefoneiparaorestauranteparanosreservarumamesa. OprofessorAvenariusestavacolocandoumameiaquandoAgnès lembrou-sedestafrase:"Umamulherpreferesempreofilhoaomarido." Agnèsouvirasuamãedizerisso(emcircunstânciasquedepoisesquecera) quandotinhadoze,trezeanos.Osentidodessafrasenãoficaclaroanão serquelheconsagremosummomentodereflexão:dizerqueamamosA maisdoqueBnãoécomparardoisníveisdeamor,issoquerdizerqueB nãoéamado,poisseamamosalguém,nãopodemoscompará-lo.Oamadoé incomparável.MesmonocasodeamarmosaomesmotempoAeB,é impossívelcompará-los,senãologodeixamosdeamarumdosdois.Ese declaramospublicamentepreferirumaooutro,nãosetrataparanósde confessaratodomundonossoamorporA(poisbastariaentãodizer"amo A!"),trata-sedefazerentender,comdiscriçãomascomclareza,queBnos éinteiramenteindiferente. ApequenaAgnès,claro,eraincapazdeumaanálisedessas.Certamente suamãecontavacomisso:elasentianecessidadedeseabrir,masqueria evitaraomesmotemposefazerentendercompletamente.Ora,apesarde serincapazdecompreendertudo,acriançaadivinhouqueaobservação eradesfavorávelaseupai.Aseupai,queelaamava!Tambémnãose sentiuabsolutamenteenvaidecidadeseroobjetodeumapreferência,mas simentristecidaqueseprejudicasseoamado. Afraseficougravadaemsuamemória;Agnèsprocuravaimaginaro quesignificavaconcretamenteamaralguémmaiseoutromenos;nacama, enrolava-senascobertaseviaessacenadiantedeseusolhos:seupai estavadepédandoamãoasuasduasfilhas.Emfrentealinhava-seum pelotãodeexecuçãoqueapenasesperavaumaordem:Preparar!Fogo!A mãefoiimplorarperdãoaogeneralinimigo,queconcedeu-lheodireitode poupardoisdostrêscondenados. Destaformaelacorreantesdocomandantedaraordemdeatirar,tira suasfilhasdamãodopaie,apavorada,leva-asemboracorrendo. Conduzidapelamãe,Agnèsviraacabeçaemdireçãoaseupai;vira-setão obstinadaedecididamente,quesenteumacâimbrananuca;vêqueseu paiaseguetristementecomosolhos,semamenorrevolta:estáresignado comaescolhadamãe,porsaberqueoamormaternalsuplantaoamor conjugaiequecabeaelemorrer. Àsvezes,elaimaginavaogeneralinimigoautorizandoamãeasalvar umsóinimigo.NãoduvidavaumsegundoqueamãesalvariaLaura. Imaginava-sesó,aoladodopai,emfrenteaosfuzisdossoldados.Elalhe apertavaamão. Nesseinstante,Agnèsnãoseimportavaabsolutamentecomsuamãee suairmã,nemmesmoasolhava,mesmosabendoqueelasseafastariam rapidamenteequenemumanemoutraseviraria!Napequenacama Agnèsrevirava-senascobertas,lágrimasquentessubiam-lheaosolhos,e elasesentiatomadadeumafelicidadeindizívelporqueseguravaseupai pelamão,porqueestavacomeleeiriammorrerjuntos. SemdúvidaAgnèsteriaesquecidoacenadaexecução,seasduas irmãsnãotivessembrigado,nodiaemqueviramopaidebruçadosobre umapilhadefotosrasgadas.OlhandoLauragritar,lembrou-sequeessa mesmaLauraadeixarasócomopaidiantedopelotãodefuzilamentoe afastara-sesemsevirar. Derepentecompreendeuqueadesavençadelaseramaisprofundado quepensava;éporissoquenuncamaisfezalusãoaessadisputa,comose temessecolocaronomenoquedeveriaficarsemnome,edespertaroque deveriaficaradormecido. Então,quandosuairmãafastou-sechorandoderaiva,deixando-a sozinhacomopai,pelaprimeiravezsentiuumaestranhasensaçãode cansaçoaoconstatarcomsurpresa(asconstataçõesmaisbanaissão sempreasmaissurpreendentes)queteriaamesmairmãtodasuavida. Elapodiatrocardeamigos,mudardeamantes,podiasedivorciardePaul sequisesse,maisnãopodiademodoalgummudardeirmã.Emsuavida, Lauraeraumaconstante,eeraaindamaisfatiganteparaAgnèsporqueas relaçõesdelas,desdeocomeço,pareciamumacorrida:Agnèscorriana frente,suairmãvinhaatrás. Àsvezeselatinhaaimpressãodeserumpersonagemdeumcontode fadasqueconheciadesdeainfância:aprincesa,acavalo,tentaescaparde umperseguidormalvado;temnamãoumavassoura,umpenteeumafita. Quandojogaatrásdesiavassoura,umaespessaflorestaseergueentre elaeomalvado. Dessaformaelaganhatempo,masomalvadologoreaparece;elajogao pente,quelogosetransformaemrochedospontudos.Equandomaisuma vezeleestánosseuscalcanhares,eladesenrolaafita,queseespalhacomo umgranderio. DepoisAgnèssótinhanamãoumúltimoobjeto:osóculosescuros.Ela jogou-osnochão,eoscacosdevidrocortanteasepararamdeseu perseguidor. MasagoraelatemasmãosvaziasesabequeLauraéamaisforte.Elaé maisforteporquefazdesuafraquezaumaarmaeumasuperioridade moral:sãoinjustoscomela,seuamanteaabandona,elasofre,tenta suicidar-se;enquantoqueAgnès,queviveumcasamentofeliz,jogano chãoosóculosescurosdesuairmã,ahumilha,efecha-lheaporta.É, depoisdocasodosóculosquebradospassaramnovemesessemsever. AgnèssabequePauladesaprovasemdizer-lhenada.SofreporLaura.A corridaaproxima-sedofim.Agnèssentearespiraçãodesuairmãlogo atrásdelaesabequefoiderrotada. Seucansaçoécadavezmaior.Nãotemmaisamenorvontadede correr. Nãoéumaatleta.Nuncaprocurouumacompetição.Nãoescolheusua irmã.Nãoqueriasernemseumodelonemsuarival.NavidadeAgnès, essairmãeratãofortuitaquantoaformadesuasorelhas.Agnèsescolheu tantosuairmãquantoaformadesuasorelhas,etemdecarregaratrásde siemtodasuavidaumacasosemsentido. Quandoerapequena,seupailheensinaraajogarxadrez.Umadas jogadasaencantara,aquelaqueosespecialistaschamamroque:ojogador deslocaduaspeçasaomesmotempo:colocaatorreaoladodacasadorei, efazpassaroreidooutroladodatorre.Essamanobraagradava-lhe muito:oinimigojuntatodasassuasforçasparaatacarorei,ederepenteo reidesapareceanteseusolhos:elemudadecasa.TodasuavidaAgnès sonharaumajogadadessas,esonhavacadavezmaisàmedidaqueseu cansaçoaumentava. Depoisqueseupaimorreradeixando-lhedinheironaSuíça,ialáduas outrêsvezesporano,sempreparaomesmohotel,etentavaimaginarque ficariaparasemprenosAlpes:poderiaviversemPaulesemBrigite?Como saber?Asolidãodepassartrêsdiasnohotel,essa"solidãoexperimental", nãolheensinavagrandecoisa."Irembora!"ressoava-lhecomoamaisbela dastentações.Massefosseparasempre,nãoficarialogoarrependida?É verdadequedesejavaasolidão,masaomesmotempoamavaseumaridoe suafilhaepreocupava-secomeles.Exigirianotíciasdeles,sentiria necessidadedesabercomoiam.Mascomofazerparaficarsó,longedeles, eaomesmotemposerinformadadeseusatosegestos?Ecomoorganizar suanovavida?Procurarumoutroemprego?Tarefadifícil.Nãofazernada? Sim,eratentador,masderepentenãoteriaaimpressãodeestar aposentada?Aopensarnisso,seuprojetode"irembora"parecia-lhecada vezmaisartificial,forçado,irrealizável,semelhanteaumadessasilusões utópicasquealimentamosquandosabemosbemnofundodenósmesmos quenãopodemosfazernadaenadafaremos. Edepois,umdia,asolução,veiodoexterior,amaisinesperadaeamais banal.SeupatrãoabriraumafilialemBerna,ecomoeranotórioqueAgnès falavaalemãotãobemquantofrancês,tinham-lheperguntadoseaceitaria dirigirtrabalhosdepesquisaemBerna.Sabendoqueeracasada,não contavammuitocomsuaconcordância;elaossurpreendeuatodos: respondeu"sim"semhesitação;surpreendeu-seasimesma:esse"sim" quepronunciarasemreflexãopréviaprovavaqueseudesejonãoerauma comédiaquerepresentavaparasimesma,porbrincadeiraedabocapara fora,masalgumacoisasériaereal. Avidamenteessedesejoaproveitaraaocasiãoparasetransformar, finalmente,desonhoromânticoqueera,emalgodeinteiramenteprosaico: umfatordepromoçãoprofissional.Aoaceitarooferecimentoquelhe faziam,Agnèssecomportaracomoqualquermulherambiciosa,sebem queninguémpudessedescobrirnemdesconfiardesuasverdadeiras motivaçõespessoais.Desdeentãotudoficouclaroparaela:nãohaveria maisnecessidadedetestesnemdeexperiênciasenãoeramaisnecessário imaginar"oqueiriaacontecerseacontecesse"...Derepenteoqueela desejavaestavaalieficousurpresadesentirumaalegriatãopuraesem mistura. EraumaalegriatãoviolentaqueAgnèssentiu-seenvergonhadae culpada. NãotevecoragemdecontaraPaulsuadecisão.Porissofoiumaúltima vezparaseuhotelnosAlpes.(Daíemdianteteriaumapartamento próprio:quernosarredoresdeBerna,quermaislongenamontanha.) Duranteessesdoisdias,queriarefletirsobreummeiodedizertudoa BrigiteeaPaul,parapoderpareceraosolhosdelescomoumamulher ambiciosaeemancipada,apaixonadaporsuaprofissãoeseusucesso, quandonuncaforaassim. Jáeranoite;faróisacesos,Agnèsatravessouafronteirasuíçaeentrou naauto-estradafrancesaquesempreaamedrontara;disciplinados,os bonssuíçosrespeitavamasleis,enquantoqueosfrancesesexpressavam compequenosmovimentoshorizontaisdecabeçasuaindignaçãodiantede quemquerquepretendessenegarodireitodelesàvelocidadee transformavamseuspasseiosemcelebraçõesorgiásticasdosdireitosdo homem. Sentindofome,decidiuquepararianumrestauranteounumhotelna beiradaestradaparajantar.Asuadireitatrêsgrandesmotosa ultrapassaramcomumabarulheirainfernal;àluzdosfaróis,os motociclistasapareciamcomumaroupasemelhanteaosmacacõesdos astronautas,oquelhesdavaumaspectodecriaturasextraterrestrese desumanas. Nesseprecisomomento,enquantoumgarçomsedebruçavasobre nossamesarecolhendoospratosvaziosdaentrada,euestavadizendoa Avenarius: —Namesmamanhãemquecomeceiaescreveraterceirapartede meuromance,ouvinorádioumanotíciaquenuncapodereiesquecer.Uma moçafoiparaumaestradanomeiodanoite,sentou-seevirouascostas paraoscarros. Comacabeçaentreosjoelhosesperavaamorte.Omotoristado primeirocarrodesviounoúltimominutoemorreucomsuamulhereseus doisfilhos.Osegundocarrotambémacabounumavala.Depoisum terceiro.Amoçanãotevenada. Levantou-se,foiemboraeninguémnuncasoubequemera. Avenariusdisse: —Querazões,aseuver,podemlevarumamoçaasentar-senuma estradanomeiodanoiteparasedeixaresmagar? —Nãotenhoideia,eudisse.Masapostoquetinhaumarazão derrisória. Oumelhor,umarazãoque,defora,nospareceriaderrisóriae inteiramentedespropositada. —Porquê?—PerguntouAvenarius.Levanteiosombros. —Nãoconsigoimaginarnenhumarazãomaior,comoporexemplouma doençaincurávelouamortedeumentequerido,paraumsuicídiotão horrível. Numcasoassim,ninguémescolheriaessefimhorrívelarrastandopara amorteoutraspessoas!Apenasumarazãodesprovidaderazãopode levaraessehorrordespropositado.Emtodasaslínguasqueprovêmdo latim,apalavrarazão(ratio,reason,ragione)temdoissentidos:antesde designaracausadesignaafaculdadedereflexão.Assim,arazãoenquanto causaésempreentendidacomoracional. Umarazãocujaracionalidadenãoétransparentepareceincapazde causarumefeito.Ora,emalemão,arazãoenquantocausasechamaGrund, palavraquenadatemavercomaratiolatinaequedesigna primeiramenteosolo,depoisumfundamento.Dopontodevistadaratio latinaocomportamentodamoçasentadanaestradapareceabsurdo, descabido,semrazão,noentanto,temsuarazão,querdizerseu fundamento,seuGrund.Nofundodecadaumdenósestáinscritoum Grund,queéacausapermanentedenossosatos,queéosolosobreoqual sedesenvolvenossodestino.Tentoaprenderemcadaumdemeus personagensseuGrundeestoucadavezmaisconvencidodequeeletema característicadeumametáfora. —Suaideiameescapa,disseAvenarius. —Pena,éaideiamaisimportantequejámeveioaoespírito.Nesse instanteogarçomchegou,trazendoonossopato.Omolhoestavadelicioso, enosfezesquecercompletamenteaconversaqueacabávamosdeter.Só depoisdeuminstanteAvenariusrompeuosilêncio: —Oquevocêestáescrevendoexatamente? —Nãoéreproduzível. —Pena. —Porquepena?Éumasorte.Hojeemdiaaspessoasvãoemcimade tudoquefoiescritoparatransformaremfilme,emdramadetelevisãoou emdesenhoanimado.Jáqueoessencialnoromanceéaquiloquenãopode serditosenãoporumromance,emtodaadaptaçãosóficaoquenãoé essencial.Quemquerquesejasuficientementeloucoparahojeainda escreverromances,deve,sequiserprotegê-loscomsegurança,escrevê-los demaneiratalquenãopossamseradaptados,emoutraspalavras,que nãopossamsercontados. Elenãoeradessaopinião: —PossocontaravocêcomomaiorprazerOstrêsmosqueteirosde AlexandreDumas,quandovocêquiser,edepontaaponta! —Soucomovocê,gostodeAlexandreDumas,disseeu.Noentanto lamentoquequasetodososromancesescritosatéhojeobedeçamdemaisà regradaunidadedeação.Istoé,queestejamfundamentadosapenas numasequênciacausaideaçõeseacontecimentos.Essesromances parecemumaruaestreita,aolongodaqualospersonagenssão perseguidoscomchicotadas.Atensãodramáticaéaverdadeiramaldição doromance,porquetransformatudo,mesmoasmaisbelaspáginas, mesmoascenaseasobservaçõesmaissurpreendentes,numasimples etapaquelevaaodesfechofinal,ondeseconcentraosentidodetudoque precede.Devoradopelofogodesuaprópriatensão,oromanceseconsome comoummontedepalha. —Escutandovocê,dissetimidamenteoprofessorAvenarius,tenho medodequeseuromancesejachato. —Deve-seentãoconsiderarchatotudoquenãoéumacorrida frenéticaparaodesenlacefinal?Aosaborearestacoxadepato,seráque vocêsechateia? Vocêseapressaparaofinal?Pelocontrário,vocêquerqueopatoentre emvocêomaislentamentepossívelequeseusaborseeternize.O romancenãodeveserparecidocomumacorridadebicicleta,massimcom umbanqueteondeseservemmuitospratos.Esperocomimpaciênciaa sextaparte.Umnovopersonagemvaisurgirnomeuromance.Enofim dessasextaparteeledesaparececomochegou,semdeixartraço.Elenãoé acausadenadaenãoproduznenhumefeito.Éjustamenteoqueme agrada.Seráumromancenoromance,eahistóriaeróticamaistristeque jáescrevi.Atévocêficarátriste. Avenariusguardouumsilêncioembaraçado,depoismeperguntou gentilmente:—Equalseráotítulodoseuromance? —Ainsustentávellevezadoser. —Masessetítulojáestátomado. —Sim.Pormim!Masnaépocameenganeidetítulo.Eledeveria pertenceraoromancequeestouescrevendoagora. Continuamosemsilêncio,atentossomenteaogostodovinhoedopato. Enquantomastigava,Avenariusdeclarou:—Naminhaopiniãovocê estátrabalhandomuito.Deveriatomarcuidadocomsuasaúde. BemquesabiaondeAvenariusqueriachegar,masfinginãoperceber, saboreandomeuvinhoemsilêncio. Depoisdeumlongomomento,Avenariusrepetiu:—Achoquevocê estátrabalhandomuito.Deveriatomarcuidadocomsuasaúde. —Tomocuidado,respondi.Voufazerregularmenteexercíciosdepeso ehalteres. —Éperigoso.Vocêcorreoriscodeterumataque. —Édissomesmoquetenhomedo,eudisse,elembrei-medeRobert Musil. —Vocêdeviaeracorrer,correrànoite.Voumostrar-lheumacoisa, disseelecomumarmisterioso,desabotoandosuacamisa.Presoemvolta doseupeitoedesuabarrigaimponenteviumcuriosoobjetoque lembravavagamenteoarreiodeumcavalo.Embaixoeàdireita,ocinto prendiaumacorreiadaqualpendia,ameaçadora,umafacadecozinha. Felicitei-oporseuequipamento,masparadesviaraconversadeum assuntoquejáconheciabastante,orientei-oparaoúnicocasoqueme interessavamuitoesobreoqualestavacuriosoemsaberumpoucomais: —QuandovocêencontrouLauranocorredordometrô,elareconheceu vocêevocêareconheceu? —Sim,disseAvenarius. —Gostariadesabercomovocêsseconheceram. —Vocêseinteressaporbobagenseascoisassériasoaborrecem,disse elecomumardecepcionado,abotoandodenovoacamisa.Vocêparece umavelhafofoqueira.Levanteiosombros. Continuou:—Tudoissonãoénadainteressante.Antesdeentregar-lhe odiplomadeburrototal,tinhamcoladofotografiasdelenasruas. Querendovê-loemcarneeosso,fuiesperá-lonohall,noescritórioda rádio.Quandosaíadoelevador,umamulhercorreuparaeleebeijou-o. Depoisresolvisegui-los,emeuolharcruzoualgumasvezescomoda mulher,demodoqueminhacaradeveterlheparecidoconhecida,apesar delanãosaberquemeuera. —Elalheinteressou?—Avenariusbaixouavoz: —Devoconfessarquesenãofossemeuinteresseporela,nuncateria concretizadooprojetododiploma.Projetoscomoessetenhoaosmilhares, masamaiorpartedasvezesnãopassamdesonhos. —É,seidisso,aprovei. —Masquandoumhomemseinteressaporumamulher,faztodoo possívelparaentrar,aomenosindiretamente,emcontatocomela,para tocardelongenoseumundo,parabalançá-lo. —Resumindo,seBernardotornou-seumburrototal,foiporqueLaura lheinteressou. —Talvezvocênãoestejaenganado,disseAvenariuscomumar pensativo,eacrescentou:—Háqualquercoisanessamulherquea transformanumavítimacerta.Éprecisamenteoquemeatraíanela. Quandoavinosbraçosdedoismendigosbêbadosefedorentos,fiquei entusiasmado!Quemomentoinesquecível! —Bem,atéaíconheçosuahistória.Masqueriasaberoqueaconteceu depois. —Elatemumtraseiroabsolutamenteextraordinário,continuou Avenariussemseimportarcomminhapergunta.Quandoestavanocolégio seuscolegasdeviambeliscá-lo.Imaginoquecadavezquefaziamissoela davaumgritoagudocomsuavozdesoprano.Essesgritoseramadeliciosa antecipaçãodeseusorgasmosfuturos. —É,falemosdisso.Conte-metudooqueaconteceu,quandovocêa arrastouparaforadometrôcomoumsalvadorprovidencial. Avenariusfingiunãoouvirnada. —Aosolhosdeumesteta,prosseguiuele,seutraseirodeveparecer muitovolumosoeumpoucobaixo,oqueéumpoucoincômodo,poissua almaquervoarparaasalturas.Mas,paramim,todaacondiçãohumana resume-senestacontradição:acabeçaécheiadesonhos,eotraseirouma âncoraquenosprendenochão. AsúltimaspalavrasdeAvenarius,sabeDeusporquê,ressoavam melancolicamente,talvezporquenossospratosestivessemvaziosenão houvessemaisvestígiosdopato.Maisumavezogarçominclinou-separa tiraramesa. Avenariuslevantouacabeçaparaele: —Vocêtemumpedaçodepapel? Ogarçomestendeu-lheumtíquetedecaixa,Avenariuspegouacanetae fezumdesenho. Depoisdisse:EisLaura:suacabeçacheiadesonhosolhaparaocéu. Masseucorpoéatraídoparaaterra:otraseiroeosseios,também bastantepesados,olhamparabaixo. —Écurioso,disse,efizumdesenhoaoladododele. —Quemé?perguntouAvenarius. —SuairmãAgnès:nelaocorposeelevacomoumachama,masa cabeçacontinuasempreligeiramentebaixa:umacabeçacéticaqueolha paraochão. —PrefiroLaura,disseAvenariuscomvozfirme,depoisacrescentou: — Masoqueprefiromaisdoquetudosãomeuspasseiosnoturnos.Você gostadaigrejadeSaint-Germain-des-Près? Fizsinalquesim. —E,noentanto,vocênuncaaenxergourealmente. —Nãoestouentendendo,disseeu. —Háalgumtempo,desciaaruadeRennesemdireçãoaoboulevard contandoonúmerodevezesquetinhatempodelevantarosolhospara Saint-Germainsemserempurradoporumtranseuntemuitoapressado,ou derrubadoporumcarro.Conteiumtotaldeseteolhadas,quemevaleram umamancharoxanobraçodireito,porqueumrapazimpacientemedeu umacotovelada.Umaoitavaoportunidademefoiconcedidaquandome plantei,cabeçaparaoalto,exatamenteemfrenteàentradadaigreja.Mas sópodiaverafachada,numaperspectivaemcontre-plongéemuito deformante.Dessasolhadasfugazesoudeformadasguardeinaminha memóriaumaimagemaproximadaqueparecetãopoucocomaigreja quantomeupequenodesenhodeduastorresseparececomLaura.A igrejadeSaint-Germaindesapareceu,etodasasigrejasdetodasas cidadesdesapareceram,comoaluadesaparecenumeclipse.Aoinvadiras ruas,oscarrosreduziramascalçadasondeseamontoamospedestres.Se queremseolhar,vêemoscarroscomopano-de-fundo;sequeremolhara casaemfrente,vêemoscarrosemprimeiroplano;nãoexisteumsóângulo emquenãosevejamcarros,nofundo,nafrente,doslados.Seutumulto onipresente,comoumácido,devoratodososmomentosdecontemplação. Porcausadoscarros,aantigabelezadascidadestornou-seinvisível.Não soucomoessesmoralistasestúpidosqueficamindignadoscomosdezmil mortosanuaisnasestradas.Pelomenos,issofazbaixaronúmerode automobilistas.Masmerevoltocomofatodoscarrosteremeclipsadoas catedrais. OprofessorAvenariuscalou-se,depoisdisse: —Bemqueestoucomvontadedecomerumpedaçodequeijo. Osqueijosfizeram-meesqueceraigreja,eovinhoevocouemmima imagemsensualdeduasflechassuperpostas: —Tenhocertezadequevocêaacompanhoudevoltaequeelao convidouparasubirparaoapartamentodela.Confidenciou-lhequeeraa mulhermaisinfelizdomundo.Aomesmotempo,seucorposedissolvia comsuascarícias,estavasemdefesaenãopodiamaisreternemas lágrimasnemaurina. —Nemaslágrimasnemaurina!exclamouAvenarius.Queesplêndida visão! —Depoisvocêfezamorcomela,elaoolhavadefrenteesacudiaa cabeçarepetindo: —Nãoévocêqueeuamo!Nãoévocêqueeuamo! —Oquevocêestádizendoémuitoexcitante,disseAvenarius,masde quemvocêestáfalando? —DeLaura! Elemeinterrompeu: —Éabsolutamentenecessárioquevocêfaçaexercício.Acaminhada noturnaéaúnicacoisaquepodedistraí-lodesuasfantasiaseróticas. —Estoumenosarmadodoquevocê,disse,fazendoalusãoaoseu arreio.Vocêbemsabequesemequipamentoadequadoéinútilnos lançarmosemtalempreitada. —Nãotenhamedo.Oequipamentonãotemtantaimportância.No começotambémnãoopossuía.Tudoisso,disseelemostrandoopeito,éum requintequemeexigiumuitosanosdepreparo,efuilevadoaissomenos porumanecessidadepráticadoqueporumcertodesejodeperfeição, puramenteestéticoequaseinútil.Porenquanto,vocêpodesecontentar comumafacadebolso.Apenasénecessáriorespeitaraseguinteregra:o dafrentedoladodireitonoprimeirocarro,odafrentedaesquerdano segundo,odetrásdoladodireitonoterceiro,enoquarto... —...odetrásdoladoesquerdo... —Errado!DisseAvenariusmorrendoderir,comoumprofessor maldosoquericomaratadeumaluno. —Noquarto,todosquatro! RiporuminstantecomAvenariuseelecontinuou: —Seiquehámuitotempovocêestáobcecadocomasmatemáticas,de modoquevocêdeveriarespeitaressaregularidadegeométrica.Eua imponhoamimcomoumaregraincondicionalquetemduplosentido:por umlado,elaconduzapolíciaparaumapistafaisa,jáqueaestranha disposiçãodospneusfurados,aparentementecarregadosdeuma significaçãoespecial,apareciacomoumamensagem,comoumcódigoque ostirasesforçavam-seemvãoemdecifrar;massobretudo:respeitando essageometria,introduzíamosemnossaaçãodestruidoraumprincípiode belezamatemática,enosdiferenciávamosradicalmentedosvândalosque riscamoscarrosecagamnacapota.FoinaAlemanha,hámuitotempo,que acerteiosdetalhesdomeumétodo,numaépocaemqueacreditavaainda serpossívelorganizarumaresistênciaàSatânia. Frequentavaumaassociaçãodeecologistas.Paraaquelaspessoas,o supremomalcausadoporSatâniaéadestruiçãodanatureza.Nãofosse issopoderíamosatécompreendê-la.Tinhasimpatiapelosecologistas. Propusquecriássemosequipesencarregadasdefurarospneusdurantea noite.Semeuplanotivessesidoaplicado,garantoquenãohaveriamais carros.Nofimdeummês,cincoequipesdetrêshomenstornariamseuuso impossívelnumacidadedetamanhomédio! Expus-lhesmeuplanonosmenoresdetalhes,todomundopoderia aprendercomigocomoseconduzumaaçãosubversivaperfeitamente eficaz,indecifrávelpelapolícia.Masessescretinosmetomaramporum provocador!Vaiaram-meeameaçaramcomseuspunhos.Duassemanas depois,pegaramsuasgrandesmotos,seuspequenoscarroseforamfazer umamanifestação,emalgumlugarnafloresta,contraaconstruçãodeuma centralnuclear.Destruíramumaquantidadedeárvoresedeixaramatrás desi,porquatromeses,umfedorinsuportável.Entãocompreendiquehá muitotempojáfaziampartedeSatânia,eacabaram-semeusesforçospara tentartransformaromundo.Hojenãorecorromaisàsantigaspráticas revolucionáriasanãoserparameuprazerpuramenteegoísta.Correr pelasruasdenoitefurandopneuséumaalegriaenormeparaaalmaeum excelenteexercícioparaocorpo.Umavezmaisrecomendo-oavocê vivamente. Vocêdormirámelhor.EnãopensarámaisemLaura. —Umacoisameintriga.Suamulheracreditamesmoquevocêsaiade noiteparafurarpneus?Nãodesconfiaquevocê,comessepretexto,está escondendoaventurasamorosas? —Vocêesqueceumdetalhe.Euronco.Issomepossibilitadormirem quartoseparado.Souodonoabsolutodeminhasnoites. Elesorriaeeusentiaumavontadegrandedeaceitarseuconvitee prometeracompanhá-lo:porumladosuainiciativameparecialouvável; poroutrosentiagrandeafeiçãopormeuamigoegostariadesergentilcom ele.Massemmedartempodeabriraboca,elechamouogarçomepediua conta;depoisdisso,aconversatomouumoutrorumo. Comonãosesentiatentadapornenhumdosrestaurantesqueviaao longodaestrada,continuouseminterromperaviagemeseucansaço aumentavacomafome.Jáeramuitotardequandoelafreouemfrentede ummotel. Nãohavianinguémnasala,anãoserumamãeeseufilhodeseisanos, queoravinhaficarnamesa,oracorriaemcírculossoltandouivos. Elapediuomenumaissimplesenotouumbonecocolocadonomeioda mesa.Eraumhomenzinhodeborracha,umbonecodepropaganda.O homenzinhotinhaocorpogrande,aspernascurtaseumnarizverde monstruosoquelhedesciaatéoumbigo.Engraçado,pensouela,egirando afiguranasmãosobservou-amuitotempo. Imaginouquesedavavidaaohomenzinho.Umavezdotadodealma, semdúvidaelesentiriaumavivadorsealguém,comoAgnèsfazianaquele momento,sedivertisseemtorcerseunarizverdeeemborrachado.Logo nascerianeleomedodoshomens,poistodomundoiriaapertaressenariz ridículo,eavidadohomenzinhonãoseriasenãomedoesofrimento. SentiriaeleumrespeitosagradoporseuCriador?Ser-lhe-iagratopor elelheterdadoavida?Dirigiria-lheoraçõesdiárias?Umdia,alguémlhe estenderiaumespelhoedesdeentãoiriadesejaresconderseurostoentre asmãos,porquesentiriaumaterrívelvergonhadiantedaspessoas.Mas nãopoderiaescondê-loporqueseuCriadorofabricaradetalmodoque nãopodiamexerasmãos. Agnèspensava:écuriosoimaginarqueohomenzinhoteriavergonha. Seráeleresponsávelporseunarizverde?Aocontrário,nãolevantariaele osombroscomindiferença?Não,nãolevantariaosombros.Teria vergonha.Quandoohomemdescobrepelaprimeiravezseufísico,nãoé nemindiferençanemraivaquesenteemprimeirolugarecommaior intensidade,masavergonha,umavergonhafundamentalque,comaltose baixos,mesmoatenuadapelotempo,oacompanharáavidainteira. QuandoAgnèstinhadezesseisanos,foificarunsdiasnacasadeuns amigosdeseuspais;nomeiodanoiteficoumenstruadaemanchouo lençoldesangue.Demanhãcedo,aoconstatarisso,foitomadadepânico. Semfazerbarulho,foicorrendoatéobanheiro,esfregouolençolcomuma toalhaembebidaemáguacomsabão;nãoapenasamanchaaumentoumas Agnèssujoutambémocolchão;sentiu-semortalmenteenvergonhada. Porquesentiavergonha?Todasasmulheresnãotinhamumciclo menstrual?TeriaAgnèsinventadoosórgãosfemininos?Seria responsávelporeles?Éclaroquenão.Masaresponsabilidadenãotem nadaavercomavergonha.SeAgnèstivesseentornadotinta,porexemplo, estragandoolençoleotapetedeseusanfitriões,issoteriasido constrangedoredesagradável,maselanãoteriatidovergonha.A vergonhanãotemporfundamentoumerroquecometemos,masa humilhaçãoquesentimosemseroquesomossemotermosescolhido,ea sensaçãoinsuportáveldequeessahumilhaçãoéevidenteparatodos. Nadadeespantososeohomenzinhodenarigãoverdetemvergonhade seurosto.MasentãooquedizerdopaideAgnès?Eleerabonito! Sim,era.Masoqueéabelezadopontodevistamatemático?Existea belezaquandoumexemplarétãosemelhantequantopossívelaoprotótipo original.Imaginemosquetenhamospostonocomputadorasdimensões mínimasemáximasdetodasaspartesdocorpo:entretrêsesete centímetrosdecomprimentodonariz,entretrêseoitodealturadetesta,e assimpordiante.É feioohomemcujatestamedeseiscentímetroseonarizapenastrês. Feiúra:caprichosapoesiadoacaso.Numhomembonito,ojogodosacasos escolheuumamédiadetodasasmedidas.Beleza:prosaismodamédia exata.Nabeleza,maisaindaquenafeiúra,manifesta-seocaráternãoindividual,não-pessoaldorosto. Emseurosto,ohomembonitovêoprojetotécnicooriginal,talqualo desenhouoautordoprotótipo,eeletemdificuldadeemacreditarque aquiloquevêsejaumeuinimitável.Demodoquesentevergonha, exatamentecomoohomenzinhodonarizverde. Quandoseupaiestavaagonizante,Agnèsficousentadaaoladoda cama. Antesdeentrarnafasefinaldaagoniaelelhedisse: —Nãomeolhemais,eforamasúltimaspalavrasqueouviudele,sua últimamensagem. —Elaobedeceu;inclinandoacabeçaparaochão,fechandoosolhos,só segurousuamãoeapertou-a;deixouquepartisse,lentamenteesemser visto,paraomundoondenãoexistemrostos. Pagouacontaedirigiu-separaocarro.Ogarotoquegritavano restaurantecorreuaoseuencontro.Agachou-sediantedela,comobraço estendido,comoseestivessearmadocomumapistolaautomática.Imitando ostiros:"Bang,bang,bang!"eleacrivavadebalasimaginárias. Elaparou,curvou-seàalturad«eleedissecomumavoztranquila: —Vocêéidiota? Eleparoudeatirareaencaroucomseusgrandesolhosinfantis.Ela repetiu: —Éclaroquevocêéidiota. Umacaradechorodeformouorostodogaroto: —Voucontaràmamãe! —Vai,vaifazerintriga!DisseAgnès.Sentou-senovolanteepartiucom todadecisão. Estavacontentepornãoterencontradoamãe.Imaginava-agritando, balançandoacabeçadadireitaparaaesquerda,levantandoosombrose assobrancelhasparadefenderacriançaofendida.Éclaroqueosdireitos dacriançaficamacimadetodososoutrosdireitos.Naverdade,porquesua mãepreferiuLauraaAgnès,quandoogeneralinimigolheconcederaa graçaparaapenasumdostrêscondenados?Arespostaeraclara:preferiu LauraporqueLauraeraamaismoça.Nahierarquiadasidades,orecémnascidoficanotopo,depoisvemacriança,depoisoadolescente,esó depoisohomemadulto.Quantoaovelho,eleficaomaispróximodochão, bemembaixodessapirâmidedevalores. Eomorto?Omortoestáabaixodaterra.Portantomaisembaixoainda doqueovelho.Ovelhoaindavêreconhecidostodososdireitosdohomem paraele. Omorto,aocontrário,osperdenomesmoinstantedesuamorte. Nenhumaleioprotegemaisdacalúnia,suavidaparticulardeixadeser particular;ascartasqueseusamoreslheescreveram,oálbumcom lembrançasquesuamãelhedeixou,nadadisso,nadalhepertencemais. Poucoapouco,nodecorrerdosanosqueprecederamsuamorte,opai destruíratudoatrásdesi:nemmesmodeixararoupanosarmários, nenhummanuscrito,nenhumanotadeaula,nenhumacarta.Tinha destruídotodososseustraços,semqueninguémsoubesse.Sóumavez, poracaso,otinhamsurpreendidodiantedaquelasfotosrasgadas.Masisso nãohaviaimpedidoqueeleasdestruísse.Nãosobraranenhuma. EracontraissoqueLauraprotestava.Combatiapelosdireitosdosvivos, contraasexigênciasinjustificadasdosmortos.Poisorostoque desapareceráamanhãsobaterraounofogonãopertenceaofuturo morto,masapenasaosvivos,quesãofamintosequetêmnecessidadede comerosmortos,suascartas,seusbens,suasfotos,seusantigosamores, seussegredos. Masopai,pensouAgnès,tinhaescapadoatodos. Pensavaneleesorria.E,derepente,veio-lheaideiadequeeleforaseu únicoamor.E,erainteiramenteclaro:seupaiforaseuúnicoamor. Nomesmomomento,grandesmotosaultrapassaramdenovonuma velocidadelouca:aluzdosfaróisclareavaassilhuetasdebruçadassobre osguidons,carregadasdeumaagressividadequefaziatremeranoite.Era omundodoqualqueriafugir,fugirparasempre,tantoquedecidiusairda auto-estradanocruzamentoseguinte,paratomarumaestradamenos movimentada. EstamosnumaavenidadeParischeiadeluzesedebarulho,enos dirigimosparaaMercedesdeAvenariusestacionadaalgumasruas adiante.Maisumavezpensávamosnamoçaquesesentaraumanoitena rua,acabeçaescondidanasmãos,esperandoseratropelada. —Tenteiexplicar-lhe,disseeu,quenofundodenósseencontra,como causadenossosatos,aquiloqueosalemãeschamamGrund,um fundamento;umcódigoquecontémaessênciadenossodestino;eesse código,penso,temacaracterísticadeumametáfora.Amoçadeque falamoscontinuaincompreensívelsenãorecorrermosaumaimagem.Por exemplo:elaandapelavidacomonumvale;acadainstantepassapor alguémelhedirigeapalavra;masaspessoasaolhamsemcompreendere seguemseucaminho,porqueseexpressacomumavoztãobaixaque ninguémouve.Éassimqueaimaginoeestoucertodequeéassimqueela tambémsevê:comoumamulherqueandanumvale,nomeiodepessoas quenãoaouvem.Ouentãoumaoutraimagem:elafoiaodentista,asalade esperaestálotada;chegaumnovopaciente,vaidiretoparaapoltrona ondeelaseinstalouesentaemseusjoelhos;nãoofazdepropósito,mas simplesmenteessapoltronalhepareceuvazia;elaprotesta,afasta-ocom osbraços,grita: —Afinal,senhor!Nãoestávendoqueolugarestáocupado?Soueu queestousentadaaqui! Masohomemnãoaescuta,instalou-seconfortavelmenteemcimadela econversaalegrementecomaquelesqueesperamsuavez.Essasduas imagensadefinememepermitemcompreendê-la.Seudesejodesuicídio nãoeracausadopornadadeexterior.Estavaplantadonosolodoseuser, cresceunelalentamenteedesabrochoucomoumaflornegra. —Admitamos,disseAvenarius.Masfaltavocêexplicarporqueela decidiusematarnaquelediaenãoemoutro. —Comoexplicarodesabrochardeumaflornumdiatalenãonum outro? Suahorachegou.Odesejodeautodestruiçãocresceralentamentenela eumbelodiaelanãoresistiumais.Asinjustiçasquesofreráeramaté leves:aspessoasnãorespondiamaoseucumprimento,ninguémlhe sorria;quandoestavanafilanocorreio,umamulhergordadera-lheum empurrãoepassaraàsuafrente;eravendedoranumagrandelojaeseu chefedeseçãoaacusaradenãotratarbemasclientes.Milvezesquisera serevoltar,dargritosdeprotesto,massemnuncadecidirfazê-lo,porque tinhaumfiodevozquesumiasoboefeitodaraiva.Maisfracadoqueos outros,sofriacontínuasofensas.Quandoomalatingeohomem,repercute sobreoutros.Éoquechamamosbriga,desordem,vingança.Masofraco nãotemforçadeespalharomalqueseabatesobreele,suaprópria fraquezaohumilhaemortifica,diantedelaficaabsolutamentesemdefesa. Sólherestadestruirsuafraquezadestruindo-seasimesmo.Foiassimque amoçacomeçouaimaginarsuaprópriamorte. Avenarius,aoprocurarsuaMercedes,percebeuqueseenganarade rua. Voltamosparatrás. Continuei: —Amorte,talcomoadesejava,nãoseassemelhavaa umdesaparecimentomasaumarejeição.Umarejeiçãodesimesma.Em nenhumdiadesuavida,nenhumapalavraquedisseradera-lhesatisfação. Comportava-seatravésdavidacomoumfardomonstruosoquedetestava edoqualnãopodiasedesfazer.Éporissoquequeriarejeitar-seasi mesma,rejeitar-secomoserejeitaumpapelamassado,comoserejeita umamaçãpodre.Desejavarejeitar-secomoseaquelaquerejeitavae aquelaqueerarejeitadafossemduaspessoasdiferentes. Imaginavaqueempurravaasimesmapelajanela.Masaideiaera ridículaporqueelamoravanoprimeiroandar,eagrandelojaemque trabalhava,situadanotérreo,nãotinhajanelas.Queriamorrer,morrer esmagadaporumgolpebrutalquefizesseumbarulho,comoquando esmagamosasasasdeuminseto.Eraumdesejofísicodeseresmagada, comoacontecequandosentimosnecessidadedeencostarfortementea palmadamãonumlugardocorpoqueestádoendo. TendochegadoemfrentedasuntuosaMercedesdeAvenarius, paramos. —Pelasuadescriçãosentimosquasesimpatiaporela,disseAvenarius. —Seioquevocêquerdizer:seelanãotivesseprovocadoamortede outraspessoas.Masissotambémseexprimenessasduasimagensquedei dela. Quandodirigiaapalavraàalguém,ninguémaouvia. Elaestavaperdendoomundo.Quandodigomundoestoumereferindo aessapartedouniversoquerespondeaosnossosapelos(nernqueseja comoumecoapenasperceptível)edequemtambémouvimososapelos. Paraelapoucoapoucoomundotornava-semudoedeixavadeserseu mundo.Ficavainteiramentefechadaemsímesmaeemseutormento.Pelo menoselapoderiaserarrancadadesuareclusãopeloespetáculodo tormentodosoutros?Não.Poisotormentodosoutrosocorrianomundo queelatinhaperdido,quenãoeramaisoseu.SeoplanetaMartenãofor senãosofrimento,seatésuaspedrasgritamdedor,issonãonosemociona nada,porqueMarteenãopertenceaonossomundo.Ohomemque desprendeu-sedomundoéinsensívelàdordomundo.Oúnico acontecimentoque,poruminstante,aarrancoudeseutormento,foia doençaeamorted«eseucachorrinho.Avizinhaficouindignada:essa moçanãotemamenorcompaixãopelaspessoas,maschoraporseu cachorro.S-echoravapelocachorroeraporqueessecachorrofaziaparte desenamundo,esuavizinhanão,absolutamente;ocachorrorespondiaa. suavoz,aspessoasnão. Continuamosemsilêncio,pensandonainfeliz,depoisAvenanisabriua portadocarroemefezumsinalencorajador: —Vem!Eulevovocê!Vouemprestar-lheumtêniseumafaca!Sabia queseeunãofossecomelefurarpneus,nãoencontrariaoutrocúmplicee ficariasozinho,exiladoemsuaextravagância.Estavaloucopara acompanhá-lo,maserapreguiçoso,esentiaaolongeumvagodesejode dormir,passarametadedanoitecorrendopelasruasmepareciaum sacrifícioimpensável. —Voltoparacasa.Estoucomvontadedeirapé,disseeuestendendolheamão. Elefoiembora.SeguisuaMercedescomosolhos,sentindoremorso comaimpressãodetertraídoumamigo.Depoistomeiocaminhodecasae logomeuspensamentosvoltaramparaaquelamoçaemquemodesejode destruir-setinhadesabrochadocomournaflornegra. Pensei:umdia,depoisdotrabalho,emvezdevoltarparacasaelavai paraforadacidade.Nãovianadaemtornodela,nãosabiaseeraverão, outonoouinverno,seestavaaoladodeumriooudeurnafábrica;na verdadejáhaviamuitotempoqueelanãoviviamaisnessemundo;não tinhaoutromundosenãosuaalma. Nãovianadaemtornodesi,nãosabiaseeraverão,outonoouinverno, seestavapertodeumriooudeumafábrica;andava,eseandavaera porqueaalma,quandoainquietaçãoainvade,exigemovimento,nãopode ficarnolugar,poisquandoficaimóveladorficaterrível.Comoquando vocêtemumadordedente:algumacoisaoobrigaaandaremcírculosem voltadoquarto;nãoexisteumarazãoracionalparaisso,jáqueo movimentonãopodediminuirador,mas,semquevocêsaibaporque,o dentedoloridoimploraquevocêcontinueemmovimento. Portantoelaandavaechegouaumagrandeestrada,ondeoscarros enfileiravam-seunsdepoisdosoutros;elaandavanoacostamento,na beirada,semvernada,perscrutandoapenasofundodesuaalmaquelhe devolviasempreimagensdehumilhação.Nãoconseguiadesviarseuolhar; devezemquandoapenas,quandopassavaatrepidaçãodeumamotocuja barulheiraferia-lheostímpanos,dava-secontadequeomundoexterior existia;masessemundonãotinhaomenorsignificado,erapuramenteum espaçovaziosemoutrointeressesenãopermitir-lheandar,deslocarsua almadoloridadeumlugarparaoutronaesperançadeatenuarseu sofrimento. Jáhámuitotempoelasonhavaemsedeixaresmagarporumcarro. Masoscarrosrodavamcomtodadesenvolturaeelasentiamedo,eles tinhammuitomaisforçadoqueela;nãoviaondearranjarcoragempara atirar-seembaixodesuasrodas.Deveriaatirar-sesobreelas,contraelas,e paraissofaltavam-lheforçascomolhefaltavamquandoqueriagritar contraseuchefedeseçãoquearepreendiainjustamente. Tinhasaídodecasanofimdatarde,agorajáeranoite.Seuspés estavamdormenteseelasabiaqueerafracaparairmaislonge.Nesse momentodecansaço,viuonomeDijonnumgrandepainelluminoso. Nomesmoinstanteocansaçofoiesquecido.Comoseessapalavralhe lembrassealgumacoisa.Esforçava-seemreternamemóriauma lembrançafugaz:tratava-sedealguémdeDijon,ouentãoalguémlhe contaraalgumacoisaengraçadaquetinhaacontecidoemDijon.De repente,persuadiu-sequeseriabomvivernaquelacidade,queseus habitantesnãoeramcomoaspessoasqueconheceraatéentão.Foicomo umamúsicadedançaquetocassenomeiododeserto.Foicomoumafonte deáguacristalinaquejorrassenumcemitério. É,iriaparaDijon!Começouafazersinaisparaoscarros.Masoscarros passavamsemparar,cegando-acomseusfaróis.Amesmasituaçãose repetiasempre,àqualelanãoconseguiaescapar:dirige-seaalguém, chama,fala,gritaalgumacoisa,masninguémouve. Hámaisdemeiahoraquelevantavaobraçoemvão:oscarrosnão paravam.Acidadeiluminada,aalegrecidadedeDijon,aorquestrade dançanomeiododeserto,tornouamergulharnastrevas.Omundose retiravamaisumavezdelaeelavoltavaparaofundodesuaalma,cercada apenaspelovazio. Depoischegouaumpontoemqueumaestradamenorcortavaaautoestrada.Parou:não,osbólidosdaauto-estradanãoserviamparanada:não poderiamnemesmagá-lanemlevá-laparaDijon.Saiudaauto-estradae pegouapequenaestradamaiscalma. Comovivernummundocomoqualnãoseestádeacordo?Comoviver comoshomensquandonãocompartilhamosnemseustormentosnem suasalegrias?Quandonãopodemosserumdeles? Oubemoamoroubemoconvento,pensavaAgnès.Oamorou oconvento:duasmaneirasqueohomemtemderecusarocomputador divino,deescapardele. Oamor:outroraAgnèsimaginaraestetipodeexame:depoisdamorte perguntamsevocêquerdespertarparaumanovavida.Sevocêrealmente amar,vocêaceitaráaideiasócomacondiçãodeencontrarapessoaque vocêamou.Avidaéparavocêumvalorapenascondicional,esóvalena medidaemquepermitequevocêvivaseuamor.Apessoaamada representaparavocêmaisdoquetodaaCriação,maisdoqueavida.Eis aí,claro,umablasfêmiadesdenhosaemrelaçãoaocomputadordivino,que seconsiderasuperioratodasascoisasedetentordosentidodaexistência. Masamaiorpartedaspessoasnãoconheceuoamor,eentreaquelas quepensamconhecê-lomuitopoucaspassariamcomsucessonoexame inventadoporAgnès;correriamatrásdapromessadeumaoutravidasem imporamenorcondição;prefeririamavidaaoamoretornariamacair,de bomgrado,nateiadearanhadoCriador. Senãoédadoaohomemvivercomapessoaamadaetudosubordinar aoamor,resta-lheumoutromeiodeescaparaoCriador:entrarparaum convento. Agnèslembra-sedestafrase:"Retirou-separaoconventodeParma." Aolongodotexto,atéentão,nuncasetratoudenenhumconvento,mas essaúnicafrase,naúltimapágina,énoentantotãoimportantequedela Stendhaltiraotítulodeseuromance;poisafinalidadedetodasas aventurasdeFabricedelDongoeraoconvento:olugarafastadodomundo edoshomens. Antigamente,aspessoasqueestavamemdesacordocomomundoe quenãocompartilhavamcomelenemseustormentosnemsuasalegrias, entravamparaoconvento.Mascomonossoséculorecusa-seaconcederàs pessoasodireitodeficaremdesacordocomomundo,acabaram-seos conventosemqueumFabriciopodiaserefugiar.Nãoexistemmaislugares afastadosdomundoedoshomens.Dissosórestaalembrança:oidealdo convento,osonhodoconvento.Oconvento.Retirou-separaoconventode Parma.Miragemdoconvento.Foiparatornaraencontraressamiragem queháseteanosInêsiaparaaSuíça.Paraencontrarseuconvento,o conventodoscaminhosafastadosdomundo. Lembrou-sedeumestranhomomentovividonaquelemesmodia,no fimdatarde,quandoforapassearpelocampoumaúltimavez.Chegando pertodeumrio,estendeu-senarelva.Ficoumuitotempoassim, imaginandosentiraságuasdorioatravessando-a,levandotodoseu sofrimentoetodasujeira:seueu. Momentoestranho,inesquecível:elahaviaesquecidoseueu,havia perdidoseueu;enissoresidiaafelicidade. Essalembrançafeznascernelaumpensamentovago,fugaz,eno entantotãoimportante(talvezomaisimportantedetodos)queAgnès tentouapreendê-locompalavras: Oqueéinsustentávelnavida,nãoéser,massimserseueu.Graçasa seucomputador,oCriadorfezentrarnomundobilhõesdeeus,esuas vidas.Masaoladodetodasessasvidaspodemosimaginarumsermais elementarqueexistiaantesqueoCriadorcomeçasseacriar,umsersobre quemelenãoexerceu,nemexercenenhumainfluência.Estendidana relva,cobertapelocantomonótonodoriachoquelevavaseueu,asujeira doseueu,Inêsparticipavadesseserelementarquesemanifestanavozdo tempoquecorreenoazuldocéu;agorasabiaquenãohánadamaisbelo. Apequenaestradaquetomaraaosairdaauto-estradaestácalma;ao longe,infinitamentedistantes,asestrelasbrilham.Agnèspensa: Viver,nãoexistenissonenhumafelicidade.Viver:carregarpelomundo seueudoloroso. Masser,seréfelicidade.Ser:transformar-seemfonte,baciadepedra naqualouniversocaicomoumachuvamorna. Andoumuitotempoainda,ospésdormentes,titubeante,depoissentousenoasfaltonomeiodapistadireitadaestrada.Estavacomacabeçapara dentrodosombros,comonariznosjoelhos,e,curvandoascostas,sentia quequeimavamsóempensarqueasexpunhaaometal,aoferro,ao choque. Enroscava-se,afundandomaisseupobrepeitomagroondeseelevava, amarga,achamadeseueudoloridoqueaimpediadepensaremoutra coisaquenãofosseelamesma.Desejavaseresmagadapelochoquepara queessachamaseextinguisse. Aoouvirumcarroaproximar-se,enroscou-seaindamais,obarulho tornou-seinsuportável,masemvezdoimpactoesperadoelasósentiuà suadireitaumsoproviolento,queafezvirar-sesobresimesma.Houveum chiardepneus,depoisumaenormebarulheira;elanãoviunadaporque manteveosolhosfechadoseorostoenfiadoentreosjoelhos,alémdisso ficoupasmadeseveraindavivaesentadacomoantes. Maisumavezpercebeuobarulhodeummotorqueseaproximava; dessavezficouplantadanochãoeochoquesefezouvirbemperto,logo seguidoporumgrito,umgritoindescritível,umgritohorrívelqueafez saltar.Ficoudepénomeiodaestradadeserta;maisoumenosaduzentos metrosviuchamas,enquantoquedeumpontomaispróximocontinuava subindo,deumavalaemdireçãoaocéuescuro,umgritohorroroso. Estegritoeratãoinsistenteetãohorrívelqueomundoemtornodela,o mundoquehaviaperdido,voltouaserreal,colorido,ofuscante,sonoro.De pénomeiodapista,subitamenteelateveasensaçãodesergrande,deser poderosa,deserforte;omundo,essemundoperdidoquerecusava-sea ouvi-la,voltava-lhegritando,eeratãobeloetãoterrívelquequeriagritar porsuavez,masemvão,poissuavozhaviaemudecidoemsuagargantae nãoconseguiafazê-lavoltar. Umterceirocarrocegou-acomseusfaróis.Quisabrigar-semasnão sabiaparaqueladosaltar;ouviuumchiadodepneus,ocarrodesvioue houveumchoque.Então,ogritoquetinhanagargantaafinaldespertou. Davala,sempredomesmolugar,subiaumurroininterrupto,aoqual finalmentecomeçouaresponder. Depoisvirouascostasefoiembora.Foiemboragritando,fascinadapor suavoztãofracapodersoltarumgritotãoforte.Nolugaremquea estradamenorjuntava-seàauto-estradahaviaumacabinetelefônica.Ela pegouoaparelho: —Alô!Alô! Dooutroladodalinhaumavozrespondeu. —Aconteceuumacidente!eladisse.Avozperguntou-lheonde,mas nãopodendoprecisarondeestavadesligouotelefoneevoltoucorrendo paraacidadequedeixarademanhã. Algumashorasantes,Avenariushaviameexplicadocominsistênciaa necessidadedeseguirumaordemestritaparafurarospneus:primeirona frenteàdireita,depoisnafrenteàesquerda,depoisatrásàdireita,depois todososquatro. Maseraapenasumateoria,destinadaaespantaroauditóriode ecologistaseumamigomuitocrédulo.Naverdade,Avenariusprocedia semnenhummétodo. Corriapelaruaedevezemquando,aosabordesuafantasia, apanhavasuafacaparaenterrá-lanopneumaispróximo. Norestaurante,elehaviameexplicadoqueeraprecisodepoisdecada golpecolocardenovoafacanolugar,prendê-lanacinturaecontinuar correndocomasmãosvazias.Porumladoficamosmaisàvontadepara correr,poroutrogarantimosnossasegurança:émelhornãocorrerorisco deservistocomumafacanamão.Ogolpetambémdevesercurtoe violento,nãolevarmaisdoquealgunssegundos. Masora,tantoquantodogmáticonateoria,Avenariusmostrava-se negligentenaprática,semmétodoeperigosamenteinclinadoa improvisações. Depoisdeterfuradodoispneus(emvezdequatro)numaruadeserta, empertigou-seecomeçouacorrerexibindoafaca,desprezandotodasas regrasdesegurança.Ocarroparaoqualsedirigianaquelemomento estavaestacionadonumaesquina.Eleestendeuobraçoquandoainda estavaaquatrooucincometrosdoobjetivo(aindaumdesrespeitoàs regras:eraprematuro!)enaquelemesmoinstanteseuouvidodireito ouviuumgrito.Umamulheroolhavapetrificadadeterror.Deveter aparecidonaesquinanomomentoexatoemqueAvenarius,preparando seualvo,concentravatodasuaatençãonabeiradadacalçada.Ficaram plantadosumemfrenteaooutroe,comoAvenariustambémficou igualmenteparalisadopelosusto,seubraçolevantadoimobilizou-se.Sem conseguirtirarosolhosdessafacaerguida,amulhersoltouumnovogrito. FinalmenteAvenariusrecuperousuacalmaetornouacolocarafacana cintura,embaixodesuaroupa.Paratranquilizaramulher,sorriue perguntou-lhe: —Quehorassão? Comoseessaperguntaativesseassustadomaisdoqueafaca,a mulhersoltouumterceirogritodeterror. Enquantoapareciamalgunsnotívagos,Avenariuscometeuumerro fatal. Seeletivessetornadoatirarsuafacaeativesselevantadocomumar feroz,amulherteriarecuperadoasforçasecorrido,levandoatrásdela todosostranseuntesocasionais.Mas,comoelepôsnacabeçaagircomose nadahouvesse,repetiucomcortesia: —Poderiafazeragentilezademedizerashoras? AoverqueostranseuntesseaproximavamequeAvenariusnãotinha másintenções,pelaquartavezamulherdeuumterrívelgrito,depoiscom umavozfortequeixou-se,tomandoportestemunhastodososquepodiam ouvi-la: —Elemeameaçoucomumafaca!Queriameviolar! Numgestoqueexpressavaumaperfeitainocência,Avenariusafastou osbraços: —Meuúnicodesejoerasaberahoracerta. Docírculoquetinhaseformadoemtornodelesdestacou-seumhomem deuniforme,umagentedapolícia.Perguntouoqueestavaacontecendo.A mulherrepetiuqueAvenariustinhaqueridoviolá-la. Ohomenzinhoaproximou-setimidamentedeAvenariusque, endireitandosuamajestosapostura,declaroucomumavozpoderosa:— SouoprofessorAvenarius! Essaspalavras,assimcomoagrandedignidadecomque forampronunciadas,impressionarammuitooagentedepolícia;parecia inteiramenteinclinadoapediràspessoasquesedispersassemeadeixar Avenariusirembora. Masamulher,inteiramenterecuperadadomedo,tornou-se agressiva:—EmesmoqueosenhorfosseoprofessorKapilarius,gritou, meameaçoucomumafaca! Algunsmetrosadiante,abriu-seumaportaeumhomemsaiuparaa rua. Andavademodoestranho,comoumsonâmbulo,eparounomomento emqueAvenariusexplicavacomumavozfirme:—Nãofiznadaanãoser pediràsenhoraquemedissesseashoras! Amulher,comosepercebessequeadignidadedeAvenarius conquistavaasimpatiadoscuriosos,gritouparaopolícia:—Eleestácom umafacaembaixodaroupa!Escondeu-anaroupa!Umafacaenorme! Bastarevistá-lo! OpolícialevantouosombrosepediuaAvenarius,quasese desculpando: —Osenhorquerfazerofavordedesabotoarsuaroupa?Avenarius ficouuminstantesurpreso.Depoiscompreendeuquenãotinhaescolha. Lentamentedesabotoousuaroupaeabriu-a,revelandoatodoso engenhososistemadecintosquerodeavaseupeitoeaassustadorafacade cozinhapresanacorreia. Oscuriosossoltaramumsuspirodeespanto,enquantoosonâmbulo, aproximando-sedeAvenarius,disse:—Souadvogado.Nocasodeprecisar deajuda,aquiestámeucartão.Sóumapalavra.Vocênãoéobrigadoa responderàsperguntas.Desdeoprimeiromomentodoinquéritoosenhor podeexigirapresençadeumadvogado. Avenariuspegouocartãoepôsnobolso.Opolicialpegou-opelobraço evirouparaaspessoas:—Andem!Andem! Avenariusnãoofereceuresistência.Sabiaqueestavapreso.Desdeque viramagrandefacadecozinhasuspensaemsuacintura,aspessoasnão lhetestemunhavamamenorsimpatia.Comosolhosprocurouohomem quelhedisseraseradvogadoequelhederaocartão.Masohomem afastava-sesemsevoltar:dirigiu-separaumcarroestacionado,depois colocouachavenafechadura.Avenariustevetempodevê-lohesitare ajoelhar-sepertodaroda. NessemomentoopolicialpegouvigorosamenteAvenariuspelobraçoe arrastou-oparaolado. Pertodeseucarroohomemsoltouumsuspiro:—MeuDeus!Etodo seucorpofoilogosacudidoporsoluços. Tornouasubirparacasa,chorando,eprecipitou-separaotelefone. Queriachamarumtáxi.Notelefoneumavozextraordinariamentedocelhe disse:—TáxisParisienses.Porfavor,esperenalinha...,emseguidaouviuseumamúsicanofone,umalegrecorodemulherescomumabateria;no fimdeumlongomomentoamúsicaseinterrompeueavozdocepediu-lhe novamenteparaficarnalinha.Tinhavontadedeurrarquenãotinha paciênciadeesperar,quesuamulherestavamorrendo,massabiaque gritarnãotinhasentido,poisavoznooutroladodofioestavagravada numafitaeninguémouviriaseusprotestos. Depoisamúsicaressooumaisforte,corodemulheres,gorjeios, baterias,edepoisdeumalongaesperaaverdadeiravozdeumamulher, queimediatamentereconheceucomotalpoisnãoeramaisabsolutamente doce,masbastantedesagradáveleimpaciente.Quandodisseque precisavadeumtáxiparaserlevadoaalgumascentenasdequilômetros deParis,avoznãorespondeulogo,equandotentouexplicarqueprecisava desesperadamentedeumtáxi,maisumavezressoounoseuouvidoa alegremúsica,abateria,osgorjeiosdemulheres,depoisnofimdeum longomomento,adocevozgravadapediu-lhequeficassepacientemente nalinha. Desligouediscouonúmerodasuaassistente.Masemvezda assistente,surgiudooutroladodalinhasuavozgravada:umavozalegre, picante,deformadapelosorriso:—Estoucontentequevocêfinalmente tenhaselembradodeminhaexistência.Nãopodesabercomolamentonão poderfalarcomvocê,massevocêmedeixaronúmerodeseutelefone, ligareicomprazerassimquepuder... —Idiota,—disseeledesligando. PorqueBrigitenãoestavaemcasa?Deveriaterchegadohámuito tempo,pensavapelacentésimavez,efoidarumaolhadanoseuquarto, mesmosabendoquenãoaachariaali. Aquemrecorrer?ALaura?Elanãohesitariaememprestar-lheseu carro,masiriainsistiremacompanhá-lo;eissoelenãopodiaconsentir: AgnèsromperacomsuairmãePaulnãoqueriafazernadacontrasua vontade. Entãolembrou-sedeBernardo.Asrazõesdabrigaentreeles pareceram-lhederepenteridiculamentefúteis.Discouseunúmero. Bernardoestavaemcasa. Paulexplicouoqueacontecera,epediu-lheemprestadoocarro. —Estouaídaquiapouco,disseBernardo,enaquelemomentoPaul sentiu-secheiodeamorporseuvelhoamigo.Gostariadebeijá-loechorar emseuombro. EstavafelizporBrigitenãoestaremcasa.Esperavaqueelanão chegasse,queriairsozinhoparapertodeAgnès.Derepentetudohavia desaparecido,suacunhada,suafilha,omundointeiro,sórestavamAgnèse ele;nãoqueriaterceirosentreeles.Nãotinhadúvida,Agnèsestava morrendo.Senãoestivesseemestadodesesperador,nãooteriam chamadodeumhospitaldointeriornomeiodanoite. Suaúnicapreocupaçãodaíparafrenteerachegaratempodebeijá-la maisumavez.Seudesejodebeijá-latornou-seobsessivo.Desejavaum beijo,oúltimobeijo,obeijoterminalquelhepermitiriacapturar,como numarede,aquelerostoqueiriadesapareceredoqualrestariaapenasa lembrança. Sólherestavaesperar.Paulcomeçouaarrumarsuamesadetrabalho, espantando-sedequenummomentocomoessepudessesededicarauma atividadetãoinsignificante.Oqueimportavaquesuamesaestivesseou nãoemordem?Eporquederaumcartãodevisitaaumdesconhecidona rua?Masnãoconseguiaparar:arrumouseuslivrosnumcantodamesa, embolouunsenvelopesdevelhascartasejogou-osnacestadelixo.É assimmesmo,pensou,queohomemagequandoéatingidoporuma desgraça:comporta-secomoumsonâmbulo.Aforçadeinérciadocotidiano procuramantê-lonostrilhosdavida. Olhouseurelógio.Ospneusfuradosjálhetinhamfeitoperderumaboa meiahora.Depressa,depressa,sopravaparaBernardo,nãoqueroque Brigitemeencontreaqui,queroirsozinhoechegaratempo. Nãotevesorte.BrigiteentrouemcasanomomentodeBernardo chegar. Osdoisvelhosamigosabraçaram-se,BernardovoltouparacasaePaul entrounocarrodeBrigite.Eladeixouqueeleguiasseepartiramem grandevelocidade. Viaerguer-senomeiodaestradaumasilhuetademulher, bruscamenteiluminadaporumpossanteprojetor,braçosafastadoscomo numbale;eracomoumaapariçãodeumabailarinapuxandoacortinade umespetáculo,poisdepoisnãohaverianada,edetodaarepresentação precedente,esquecidadeumasóvez,sórestaraessaimagemfinal.Depois sentiuapenascansaço,umcansaçotãoimenso,semelhanteaumpoço profundo,queosmédicoseasenfermeirasacharamqueelaperderaos sentidos,enquantoelacompreendia,esentiacomsurpreendentelucidez, queestavamorrendo.Conseguiaatéespantar-sevagamentepornão experimentarnenhumanostalgia,nenhumamágoa,nenhumsentimentode horror,nadadaquiloqueatéaquelediativesseassociadoàideiadamorte. Depoisviuqueumaenfermeirainclinava-separalhesegredar:—Seu maridoestávindo.Vemvervocê.Seumarido. Agnèssorriu.Porquesorrira?Algumacoisavoltou-lheàmemóriadesse espetáculoesquecido:é,elaeracasada.Depoissurgiuumnome:Paul!Sim, Paul.Paul.Paul.Seusorrisoeraaqueledasdescobertassúbitascomuma palavraperdida.Comoquandoalguémlheestendeumursodepelúciaque vocênãovêhácinquentaanosevocêoreconhece. Paul,elarepetiasorrindo.Osorrisocontinuouemseuslábios,mesmo quandoelaesqueceuacausa.Estavacansadaetudoacansava.Sobretudo, nãotinhaforçasparasuportarnenhumolhar.Conservavaosolhos fechados,paranãovernadanemninguém.Importunadaeincomodada portudoquesepassavaemtornodela,desejavaquenadasepassasse. Depoislembrou-se:Paul.Afinal,oqueaenfermeiradizia?Queele estavachegando?Alembrançadoespetáculoesquecido,doespetáculoque forasuavida,derepentetornou-semaisclara.Paul.Paulestáchegando! Nesseinstantedesejouviolentamente,apaixonadamente,queelenãoa vissemais. Estavacansada,nãoquerianenhumolhar.NãoqueriaoolhardePaul. Nãoqueriaqueeleavissemorrer.Elatinhaqueseapressar. Umaúltimavezrepetiu-seasituaçãofundamentaldesuavida:ela correeéperseguida.Paulapersegue.E,noentanto,elanãotemmaisnada nasmãos. Nemescova,nempente,nemfita.Estádesarmada.Estánua,mal cobertaporumaespéciedelençolbrancodohospital.Ei-laentrandona últimalinhaàdireita,ondenadamaispodevirajudá-la,ondepodeapenas contarcomavelocidadedesuacorrida.Quemserámaisrápido?Paulou ela?SuamorteouachegadadePaul? SeucansaçoficouaindamaisprofundoeAgnèsteveaimpressãode afastar-secomtodarapidez,comoseempurrassemsuacamapordetrás. Abriuosolhoseviuumaenfermeiraderoupabranca.Comoquese pareciaseurosto? Agnèsnãoodistinguiamais.Eestaspalavrasvoltaram-lheà memória:—Lánãoexistemrostos. Aproximando-sedacamaPaulviuocorpocobertocomumlençolpor cimadacabeça.Umamulherderoupabrancaavisou-lhes:—Elamorreu háquinzeminutos. Opoucotempoqueoseparavadosúltimosmomentosde Agnèsexacerbavaseudesespero.Tinhaperdidoporquinzeminutos. Poraproximadamentequinzeminutosperderaarealizaçãodesuaprópria vida,quederepenteficavainterrompidaeabsurdamentetruncada. Parecia-lheque,durantetodasuavidaemcomum,elanuncafora realmentedele,queelenuncaahaviapossuído;equepararealizare terminarahistóriadeamordeles,faltava-lheumúltimobeijo,umúltimo beijoparareter,emseuslábios,Agnèsviva;paraconservá-laentreseus lábios. Amulherderoupabrancalevantouolençol.Eleviuorostofamiliar, pálidoebelo,noentantotãodiferente:oslábios,sebemquesempre pacíficos,desenhavamumalinhaqueelenuncaconhecera.Não compreendiaaexpressãodesserosto.Estavaincapazdeinclinar-see beijá-lo. AoladodeleBrigiteexplodiuemsoluçosecomeçouatremercoma cabeçanopeitodePaul. Eleolhouorostocomaspálpebrasfechadas:nãoeraparaPaulquese dirigiaesseestranhosorrisoqueelenuncavira;essesorrisodirigia-sea alguémquePaulnãoconhecia:elelheeraincompreensível. AmulherderoupabrancaseguroubruscamentePaulpelobraço;ele estavaapontodedesmaiar. SextaParte Omostrador Malacriançanasce,põe-seasugaratetadamãe.Quandoamãea desmama,chupaodedo. Umdia,Rubensperguntouaumasenhora: —Porqueasenhoradeixaseufilhochuparodedo?Elejátemdez anos! Elaficouaborrecida: —Nãovouproibi-lo.Issoprolongaseucontatocomoseiomaterno! Gostariaqueeleficassetraumatizado? Assimacriançachupouodedoatéostrezeanos,idadeemquepassou tranquilamentedodedoparaocigarro. Maistarde,aofazeramorcomessamãequedefendiaodireitodeseu filhoàsucção,Rubenscolocouseuprópriopolegarsobreoslábiosdela; virandoacabeçalentamentedadireitaparaaesquerda,elacomeçoua lamber.Comosolhosfechados,imaginavaestarcomdoishomens. EssapequenahistóriamarcaumadataimportanteparaRubens, porquefezcomquedescobrisseumamaneiradetestarasmulheres: colocavaopolegarsobreseuslábioseesperavaareação.Asqueo lambiameram,semdúvida,atraídaspeloamorplural.Asqueficavam indiferentescomopolegareramdefinitivamentesurdasàstentações perversas. Umadasmulheresquetiveraseuspendoresorgiásticosdesvendados pelo"testedopolegar"realmenteamavaRubens.Depoisdoamor,segurou seupolegaredeu-lheumbeijodesajeitado,quequeriadizer:nomomento queroqueseupolegarvolteaserpolegar,porquedepoisdetudoque imaginei,estoucontentedeestaraquiasóscomvocê. Asmetamorfosesdopolegar.Ouainda:comoosponteirossemovem sobreomostradordavida. Sobreomostradordeumrelógio,osponteirosgiramemcírculo. Ozodíacotambém,comoédesenhadopelosastrólogos,temoaspectode ummostrador.Ohoróscopoéumrelógio.Querseacrediteounãonas previsõesastrológicas,ohoróscopoéumametáforadavida,eassimsendo, encerragrandesabedoria. Comoéqueumastrólogodesenhaseuhoróscopo?Traçaumcírculo,a imagemdaesferaceleste,eodivideemdozesetorescadaum representandoumsigno:Carneiro,Touro,Gêmeos,etc.Emseguida,no círculozodiacal,eleinscreveossímbolosgráficosdoSol,daLuaedossete planetasnoslugaresprecisosondeestavamessesastrosnomomentoem quevocênasceu.Comose,sobreummostradorderelógionormalmente divididoemdozehoras,inscrevesseanormalmentenovenúmeros suplementares.Noveponteirospercorremessemostrador:sãotambémo Sol,aLuaeosplanetas,masdamaneiracomogiramnocéudurantetodaa suavida.Cadaplaneta-ponteiroestáassimincessantementenumanova relaçãocomosplanetas-números,essespontosimóveisdoseuhoróscopo. Aconfiguraçãosingularquetinhamessesplanetasnomomentoemque vocênasceuéotemapermanentedesuavida,suadefiniçãoalgébrica,a impressãodigitaldesuapersonalidade;osastrosimobilizadossobreseu horóscopoformamentresiânguloscujovaloremgraustemumsignificado preciso(positivo,negativo,neutro):imagine,porexemplo,queseuVênus amorososeacheemconflitocomseuMarteagressivo;queoSoldesua personalidadesejafortificadoporsuaconjunçãocomoenérgicoe aventureiroUrano;queasexualidadesimbolizadapelaLuaseja sustentadapeloastrodelirantequeéNetuno,eassimpordiante.Porém, duranteseutrajeto,osponteirosdosastrosvãotocarcadaumdospontos imóveisdohoróscopo,pondoassimemjogo(debilitante,energizante, ameaçador)diversoscomponentesdeseutemavital.Avidaébemassim: nãoseparececomoromancepicarescoondeoherói,decapítuloem capítulo,ésurpreendidoporacontecimentossemprenovos,semnenhum denominadorcomum;éparecidacomessacomposiçãoqueosmúsicos chamamtemacomvariações. Uranomove-senocéunumpassorelativamentelento.Levaseteanos parapercorrerumsigno.Suponhamosquehojeestejanumarelação dramáticacomoSolimóvelnoseuhoróscopo(digamosqueestejama noventagrausdedistância):vocêteráumanodifícil;emvinteeumanosa situaçãoserepetirá(Uranoestandoentãoacentoeoitentagrausdoseu Sol,oquetemomesmosignificadonefasto),masarepetiçãoseráapenas aparente,porquenesseano,nomesmomomentoemqueUranoatacao seuSol,SaturnonocéuseencontrarácomVênusnoseuhoróscoponum relacionamentotãoharmoniosoqueatempestadepassaráporvocêna pontadospés.Comosevocêfosseatingidoporumamesmadoença,mas destavezsendotratadonumhospitalfabuloso,onde,emvezde enfermeirasimpacientes,estariamanjos. Aastrologia,parece,nosensinaofatalismo:vocênãoescaparádoseu destino!Ameuver,aastrologia(presteatenção,aastrologiacomo metáforadavida)dizumacoisamaissutil:vocênãoescaparáaotemade suavida!Issoquerdizerqueseráumaquimeratentarimplantarnomeio desuavidauma"vidanova",semnenhumrelacionamentocomsuavida precedente,partindodozero,comosediz.Suavidaserásempre construídacomosmesmosmateriais,osmesmostijolos,osmesmos problemas,eoquevocêpoderiaconsiderarnoprincípiocomouma"vida nova"logoaparecerácomoumasimplesvariaçãodojávivido. Ohoróscopoparececomumrelógio,eorelógioéaescoladafinitude: assimqueumponteirocompletouumcírculoparavoltaraolugardeonde partiu,umafasetermina.Nomostradordohoróscopo,noveponteiros giramemvelocidadesdiferentes,marcandoatodoinstanteofimdeuma faseeocomeçodeoutra.Emsuajuventude,ohomemnãoestáem condiçõesdeperceberotempocomoumcírculo,masapenascomoum caminhoqueoconduzdiretoparahorizontessemprediversos;não percebeaindaquesuavidacontémapenasumtema;perceberáissomais tarde,quandoavidacompusersuasprimeirasvariações. Rubensteriaunsquatorzeanosquandoumamenina,quedeviatera metadedesuaidade,parou-onaruaparaperguntar: —Porfavor,osenhorpoderiamedizerashoras? Eraaprimeiravezqueumadesconhecidaochamavadesenhor.Ficou encantadoeacreditouestarcomeçandoumanovaetapaemsuavida. Depoisesqueceu-secompletamentedesseepisódio,atéodiaemqueuma mulherbonitalhedisse: —Quandovocêeramoçotambém,nãopensava... Eraaprimeiravezqueumamulherreferia-seàsuamocidadecomo umacoisadopassado.Nesseinstantevoltou-lheaimagemdameninaque outroralheperguntaraahora,ecompreendeuqueentreessasduas figurasfemininasexistiaumparentesco.Eramduasfigurasemsi insignificantes,encontradasporacaso;noentanto,quandoasrelacionou, surgiramcomodoiselementosdecisivosnomostradordesuavida. Colocareideoutramaneira:imaginemosomostradordavidade Rubenssobreumgigantescorelógiomedieval,odePraga,porexemplo,na praçadaVielleVillequeatravesseimilvezesantigamente.Orelógiosoa,e emcimadomostradorabre-seumapequenajanela;saidaíuma marionete,umameninadeseteanosqueperguntaahora.Depois,quando omesmoponteiro,muitolentamente,muitosanosdepois,atingeonúmero seguinte,ossignoscomeçamatocar,apequenajanelareabre-se,esaiuma outramarionete:"Vocêtambémquandoeramoço..." Quandoeramuitojovem,jamaisousaraconfessaraumamulhersuas fantasiaseróticas.Achava-seobrigadoatransformartodasuaenergia amorosaemumafantásticaproezafísicasobreocorpofeminino.Suas parceiras,nãomenosjovens,estavamperfeitamentedeacordocomisso. Lembrava-sevagamentequeumadelas,quedesignaremospelaletraA, duranteoamor,repentinamente,arqueou-sesobreoscotovelose tornozelos,curvacomoumaponte;comoeleestavadeitadosobreela, perdeuoequilíbrioequasecaiudacama.ParaRubens,essegesto esportivoeraricodesignificadospassionaispeloqueficoureconhecidoà suaamiga.Viviaseuprimeiroperíodo:operíododemutismoatlético. Depois,poucoapouco,perdeuessemutismo;achou-semuitoaudacioso nodiaemque,pelaprimeiravez,diantedeumamoça,designouemvoz altaumacertapartedeseucorpo.Aaudácia,narealidade,eramenordo queelepensava,poisaexpressãoqueempregaraeraumdiminutivo carinhoso,umaperífrasepoética.Porém,eleestavaencantadocomsua coragem(surpresotambémdamoçanãolheterimpostosilêncio)e começouainventarmetáforas,asmaisrequintadaspossíveis,parafalar, comumrodeiopoético,sobreoatosexual.Eraseusegundoperíodo:o períododasmetáforas. Naépoca,elesaíacomB.Depoisdohabitualprelúdioverbal(muito metafórico!),fizeramamor.Sentindo-senopontodegozar,subitamenteela pronunciouumafraseondeseuprópriosexoeradesignadoporumtermo inequívocoenãometafórico.Eraaprimeiravezqueouviaessapalavrada bocadeumamulher(outradataimportantesobreseumostrador,diga-se depassagem).Surpreso,eufórico,compreendeuqueessetermobrutal tinhamuitomaischarmeeforçaexplosivaquetodasasmetáforasjamais inventadas. Passadoumtempo,Cconvidou-oàcasadela.Essamulhereraquinze anosmaisvelhadoqueele.Antesdoencontro,elerepetiraparaseuamigo Mtodasassublimesobscenidades(não,nadamaisdemetáforas!)queele tencionavadizeràsenhoraCduranteocoito.Foiumestranhofracasso: antesqueeleencontrasseacoragemnecessária,foielaquemasproferiu. Novamenteficouestupefato.Nãosomenteaaudáciadesuaparceira ultrapassaraasua,mas,oqueeraaindamaisestranho,elaempregara literalmenteamesmaformadefalarqueelelevaraváriosdiaspara aperfeiçoar.Essacoincidênciaentusiasmou-o.Creditouofatoauma telepatiaerótica,ouaummisteriosoparentescodealmas.Foiassimque progressivamenteentrouemseuterceiroperíodo:operíododaverdade obscena. OquartoperíodofoiestreitamenteligadoaseuamigoM:operíododo telefoneárabe.Chamava-setelefoneárabeumabrincadeiraqueelefizera muitasvezesentrecincoeseteanosdeidade:ascriançassentavam-se ladoalado,oprimeirocochichavaumalongafraseaosegundo,quea cochichavaaoterceiro,quearepetiaaoquarto,eassimemseguidaatéo último,queapronunciavaemvozalta,oqueprovocavaumrisogeral diantedadiferençaentreafraseinicialesuatransformaçãofinal.Adultos, RubenseMbrincavamdetelefoneárabecochichandoàssuasamantes frasesobscenas,extraordinariamentesofisticadas;semdesconfiarque participavamdabrincadeira,asmulheresasrepercutiam.EcomoRubens eMtinhamalgumasamantesemcomum(ouamantesqueeles discretamenteserepassavam),podiamtransmitirporintermédiodelas alegresmensagensdeamizade.Umdiaumamulhercochichou-lhedurante oamorumafrasetãoenrolada,tãoimprovável,queRubensreconheceu imediatamenteummaravilhosoachadodeseuamigoenãopôdeseconter; amulhertomouseurisoabafadoporumaconvulsãoamorosae, encorajada,repetiuafrase;aterceiravez,elaarepetiuaosgritos,tanto que,pairandoemcimadeseuscorposemplenacopulação,Rubens percebiaofantasmadeseuamigoàsgargalhadas. Lembrou-seentãodajovemBque,lápelofimdoperíododas metáforas,haviainopinadamenteempregadoumapalavraobscena.Como passardotempo,umaperguntasurgiuemseuespírito:essapalavra,seria aprimeiravezqueadissera?Naépocanãoduvidavadisso.Achavaqueela estavaapaixonadaporele,desconfiavaquequeriacasarcomeleequenão conhecianenhumoutrohomem. Agoracompreendiaqueumhomemdeviaterensinadoaelaprimeiro (diriamesmo,treinado)ausaressapalavraantesqueelapudessedizê-la aRubens. Sim,comopassardosanos,graçasàexperiênciadotelefoneárabe,ele sedavacontadequenaépocaqueelalhejuravafidelidade,Bcertamente tinhaoutroamante. Aexperiênciadotelefoneárabeotransformara:perderaasensação (sensaçãoàqualtodossucumbimos)dequeoamorfísicoéummomento deintimidadetotalduranteoqualdoiscorpossolitáriosseunemumao outro,nummundotransformadoemdesertoinfinito.Deagoraemdiante elesabiaqueummomentocomoessenãotrazmuitasolidão.Mesmono povaréudosChamps-Elysées,eleestavamaisintimamentesódoquenos braçosdamaissecretadasamantes.Poisoperíododotelefoneárabeerao períodosocialdoamor:todomundoparticipa,àcustadealgumaspalavras, doabraçoentredoisseres;semcessar,asociedadealimentaomercado dasimagenslúbricaseassegurasuadifusãoeseuintercâmbio.Então antecipouaseguintedefiniçãodenação:comunidadedeindivíduoscuja vidaeróticaéligadapelomesmotelefoneárabe. Mas,emseguida,encontrouajovemD,detodasassuasmulheres,a maisfalante.Desdequeseencontrarampelasegundavez,confessou-se fanaticamenteonanista,ecapazdechegaraoorgasmocontandoparasi mesmacontosdefadas. —Contosdefadas?Quais?Conte!Ecomeçouafazer-lheamor. Elacontou:umapiscina,cabinesdevestir,buracosnasdivisõesde madeira,osolharesquesentiasobresuapeleenquantosedespia,aporta queseabriasubitamente,quatrohomensnasoleira,eassimpordiante;o contodefadaserabelo,erabanal,eRubensnãopodiasenãosefelicitar porsuaparceira. Masumacoisaestranhalheaconteceranessemeiotempo: quandoencontravaoutrasmulheres,descobrianaimaginaçãodelas fragmentosdesseslongoscontosdefadasqueDlhedescreveraduranteo amor.Àsvezesencontravaamesmapalavra,amesmamaneiradedizer, apesardessaspalavrasedamaneiradedizê-lasseremcompletamente incomuns.OextensomonólogodeDeraumespelhoondeeramrefletidas todasasmulheresqueelehaviaconhecido,eraumavastaenciclopédia,um Laroussedeimagensemodoslascivosemoitovolumes.Nocomeço, interpretouomonólogodeDsegundooprincípiodotelefoneárabe:por intermédiodecentenasdeamantes,anaçãointeiralevavaparaacabeça desuaamiga,comoparadentrodeumacolmeia,asimagenslúbricas colhidasnosquatrocantosdopaís.Maistarde,constatouqueaexplicação nãoeraverdadeira.AlgunsfragmentosdograndemonólogodeDeram encontradosemmulheresqueelesabia,comcerteza,quenãopoderiam tertidonenhumcontatoindiretocomD,nenhumamanteemcomum poderiaterfeitoentreelasopapeldemensageiro. Rubenslembrou-se,então,desuaaventuracomC:prepararaparaela fraseslascivas,masfoielaquemasdisse.Naépocaeleachavaqueera telepatia. Ora,CrealmenteleraessasfrasesnacabeçadeRubens?Mais provavelmente,elaastinhaemsuacabeçamuitoantesdeconhecê-lo.Mas comoosdoispodiamterasmesmasideiasnacabeça?Équeelasdeviam terumafontecomum.Veio,então,àcabeçadeRubensaideiadequeum sóemesmorioatravessatodososhomensetodasasmulheres,ummesmo riosubterrâneocarregandoimagenseróticas.Cadaindivíduorecebeseu lotedeimagens,nãodeumamanteoudeumaamante,comonojogodo telefoneárabe,masdesserioimpessoal(transpessoalouinfrapessoal). Ora,dizerqueorioquenosatravessaéimpessoal,édizerquenão dependedenós,masdaquelequenoscriouequeocolocouemnós,oque querdizer,emoutrostermos,quedependedeDeus,vistoqueéDeus,ou deumdeseusavatares.QuandoRubensformulouessaideiapelaprimeira vezpareceu-lheblasfematória,maslogodepoisoaspectodeblasfêmia evaporou-seeelemergulhounoriosubterrâneocomumaespéciede humildadereligiosa:sentiaquenesserioestamostodosunidos,nãocomo membrosdeumamesmanação,mascomofilhosdeDeus;cadavezque imergianesseriotinhaasensaçãodeconfundir-secomDeusnuma espéciedefusãomística.Sim,oquintoperíodoeraoperíodomístico. AvidadeRubensresumia-se,então,aumahistóriasobreoamorfísico? Comefeitopodemosentendê-laassim;eodiaemqueeledescobriu isso,assinalatambémumadataimportanteemseumostrador. Aindanocolégio,passavahorasnomuseuolhandoosquadros;em casa,pintavaumacentenadeguachesegraçasàscaricaturasquefazia dosprofessorestinhaumacertareputaçãoentreseuscolegas.Desenhavaasalápisparaarevistadosalunosqueerareproduzidaemxerox,ou então,norecreio,desenhava-asagiznoquadro-negro,paragrande divertimentodaclasse.Essaépocapermitiuqueeledescobrisseoqueera aglória:eraconhecidoeadmiradonocolégio,etodos,porbrincadeira, chamavam-noRubens.Comolembrançadessesbelosanos(osúnicosde glória),conservouoapelidodurantetodasuavidae(cominesperada ingenuidade)ohaviaimpostoaseusamigos. Aglóriaterminounovestibular.Queriaprosseguirseusestudosna EscoladeBelas-Artes,masnãopassounosexames.Nãoeratãobom quantoosoutros? Ounãotinhasorte?Écurioso,masnãopossoresponderaessas perguntastãosimples. Comindiferença,começouaestudardireito,botandoaculpadeseu fracassonapequenezdesuaSuíçanatal.Esperandoconcretizaremoutro lugarsuavocaçãodepintor,tentouasorteporduasvezes:primeiro apresentando-sesemsucessonoconcursodaEscoladeBelas-Artesem Paris,depoisoferecendoseusdesenhosadiversasrevistas.Porqueos recusavam?Osdesenhoseramruins?Osdestinatárioseramimbecis?Ou entãoaépocanãoseinteressavapordesenhos?Omáximoquepossofazer érepetirquenãotenhorespostasparaessasperguntas. Cansadodeseusfracassos,desistiu.Pode-seconcluir,certamente(e eraconscientedisso),quesuapaixãopelodesenhoepelapinturaera menosintensadoqueimaginara:enganara-se,nocolégio,quandose atribuiuumavocaçãodeartista.Nocomeçoficoudecepcionadocomessa descoberta,maslogo,comoumdesafio,umaapologiadaresignação ressoouemsuaalma:porqueseriaobrigadoaserapaixonadopela pintura?Oqueeratãolouvávelnessapaixão?Amaiorpartedosmaus quadros,dosmauspoemas,nãonasceporqueosartistasvêememsua paixãopelaartequalquercoisadesagrado,umamissão,umdever(com elespróprios,portanto,comahumanidade)?Suaprópriarenúnciao incitavaaconsiderarartistaseescritorescomopessoasmenostalentosas doqueambiciosas,edaíemdianteevitouconvivercomeles. Seumaiorrival,N,umgarotodamesmaidade,nascidonamesma cidadeeantigoalunodomesmocolégio,foiadmitidonaEscoladeBelasArteselogo,aindaporcima,obtevegrandesucesso.Naépocadoginásio, todomundoachavaqueRubenstinhamuitomaistalentodoqueN.Isso querdizerquetodomundoestavaenganado?Ouqueotalentoéumacoisa quesepodeperderpelocaminho?Comosuspeitamos,nãoháresposta paraessasperguntas.Aliás,nãoéissooimportante:naépocaemqueseus fracassosoestimulavamarenunciardefinitivamenteàpintura(épocados primeirossucessosdeN)Rubenstinhaumcasocomumamoçamuito jovememuitobonita,enquantoNcasava-secomumamoçarica,tãofeia queemsuapresençaRubensficousemar.Parecia-lhequeessa coincidênciaeracomoumsinaldodestino,indicando-lheondeficavao centrodegravidadedesuavida:nãonavidapública,masnavida particular,nãonaprocuradeumacarreira,masnosucessocomas mulheres.Ederepente,oqueaindanavésperalhepareceraumdefeito, revelava-seumasurpreendentevitória:sim,elerenunciariaàglória,àluta peloreconhecimento(lutatristeevã),afimdeseconsagraràprópriavida. Nemmesmoperguntouasipróprioporqueasmulheresseriam"aprópria vida".Issolhepareciaevidenteeindubitável.Estavacertodeterescolhido umcaminhomelhordoqueseucolegaatreladoaumespantalho.Assim sendo,suajovemebelaamigaencarnavaparaelenãosóumapromessa defelicidade,massobretudoseutriunfoeseuorgulho.Paraconfirmar essavitóriainesperada,paramarcá-lacomoselodoirrevogável,casou-se comessabeleza,persuadidodequeiriasuscitarainvejageral. AsmulheresrepresentamparaRubensa"própriavida"e,portanto, nadaémaisurgentedoquecasarcomsualindeza,eassim,aomesmo tempo,renunciaràsmulheres.Eisumcomportamentoilógico,masmuito comum.Rubenstinhavinteequatroanos.Acabavadeentrarnoperíodo daverdadeobscena(foipoucodepoisdessaépocaqueconheceuamoçaB easenhoraC),massuasexperiênciasnãocontradiziamsuaopiniãodeque acimadoamorfísicohaviaoamor,ograndeamor,valorsupremodoqual jáouvirafalarmuito,comoqualsonharamuito,edoqualnadasabia.Não tinhadúvida:oamoreraacoroaçãodavida(dessa"própriavida"queele preferia,àsuacarreira)eéprecisoacolhê-lodebraçosabertosesem compromissos. Comoacabeidedizer,osponteirosdeseumostradorsexualmarcavam agoraahoradaverdadeobscena,masestandoapaixonado,Rubens prontamenteregrediuparaosestágiosanteriores:nacama,ficavamudo, oudiziaàsuanoivacarinhosasmetáforas,certodequeaobscenidade teriatransportadotodosdoisparaforadoterritóriodoamor. Diriaissodeoutramaneira:seuamorpelalindezaolevavadevoltaà adolescência;poispronunciandoapalavra"amor",comojádisseemoutra ocasião,todaaEuropavoltou,sobreasasasdoencantamento,aoestado pré-coital(ouextracoital),aolugarondeojovemWertherhaviasofridoe ondeDominique,noromancedeFromentin,quasecaiudocavalo.No momentoemqueencontroualindeza,Rubensestavaprontoparacolocar nofogoapanelacomosentimentoeesperaromomentoemquefervesse, transformandoosentimentoempaixão.Oquecomplicavaumpoucoas coisaseraaligaçãoquemantinhaemoutracidadecomumaamiga(vamos chamá-ladeE),trêsanosmaisvelhadoqueele,quehaviaconhecidobem antesdesualindeza,ecomqueaindaconviveuporalgunsmeses.Sóparou devê-lanodiaemquedecidiucasar-se.Arupturanãofoiprovocadapor umesfriamentoespontâneodossentimentosdeRubensemrelaçãoaela (logoveremosatéquepontoeleaamava),masporsuaconvicçãodeter entradonumafasedavida,imponenteesolene,ondeafidelidade supostamentesantificariaoamor.Noentanto,umasemanaantesdodia marcadoparaseucasamento(cujoensejoparecia-lheumtantoduvidoso) sentiuporE,abandonada,semamenorexplicação,umasaudade irresistível.Comonuncachamaradeamoresserelacionamento,ficou surpresoemdesejá-latãoardentemente,detodocoração,detodaa cabeça,detodoseucorpo.Nãoaguentandomais,foiaoseuencontro. Duranteumasemana,deixou-sehumilharnaesperançadefazeremamor, pediu,implorou,cumulou-acomseucarinho,comsuatristeza,comsua insistência,maselasólheofereceuapresençadeseurostodesolado;seu corpo,nãopôdenemtocar. Frustradoetriste,voltouparacasanamesmamanhãdodiado casamento. Ficoubêbadoduranteafestae,ànoite,levouajovemnoivaparao apartamentodeles.Fazendo-lheamor,cegopelabebedeiraepelasaudade, chamou-apelonomedaantigaamiga.Catástrofe!Nuncamaisesqueceria osgrandesolhosgrudadosnelecomhorrorizadoespanto!Nesseinstante emquetudodesmoronava,pensouqueaamigaabandonadavingara-see minaraseucasamentodesdeoprimeirodia.Talveztenhacompreendido também,nessebrevemomento,oinverossímildoqueacontecera,a grotescaburricedeseulapso,aburricequetornavaaindamais insuportávelofracassoinevitáveldoseucasamento.Foramtrêsouquatro segundosterríveisemqueficoumudo;depoisderepentecomeçoua gritar:—Eva!Elisabete!Catarina!e,incapazdelembrar-sedeoutros nomesfemininos,repetiu: —Catarina!Elisabete!Sim,vocêéparamimtodasasmulheres!Todas asmulheresdomundo!Eva!Clara!Julieta!Vocêéamulhernoplural! Paulina,Pierrette!Todasasmulheresdomundoestãoemvocê,vocêtemo nomedetodaselas!...eacelerouosmovimentosdoamor,comoum verdadeiroatletadosexo;depoisdealgunssegundos,pôdeconstatarque osolhosarregaladosdaesposaretomavamseuaspectohabitualequeseu corpopetrificadoretomavaoritmocomtranquilizadoraregularidade. Amaneiracomoescapoudodesastrepodeparecerapenasverossímil e,semdúvida,nosespantamosdequeajovemrecém-casadatenhalevado asérioumacomédiatãoestapafúrdia.Masnãoesqueçamosqueosdois viviamsobodomíniodopensamentopré-coital,queseaparentaaoamor absoluto.Qualocritériodeamor-próprioaesseperíodovirginal?Eleé puramentequantitativo:oamoréumsentimentomuito,muito,muito, muitogrande.Ofalsoamoréumsentimentopequeno,overdadeiroamor (diewahreLiebe!)éumsentimentomuitogrande.Mas,dopontodevistado absoluto,todoamornãoépequeno? Certo.Éporqueoamorparaprovarqueéverdadeiroquerfugirdo razoável,querignorarqualquermedida,quersairdoverossímil,querse transformaremdelíriosativosdapaixão(nãoesqueçamosEluard!),em outrostermos,querserlouco!Ainverossimilhançadeumgestoexagerado sópodetrazervantagens.Paraumobservadordoladodefora,amaneira comoRubensconseguiusesafardoseuproblemanãofoinemelegante, nemconvincente,masnocasoeraaúnicaquelhepermitiaevitara catástrofe;agindocomolouco,Rubensexigiuoabsoluto,oabsolutolouco deamor:efoioqueosalvou. Seempresençadesuaesposamuitojovem,Rubensvoltouaserum atletalíricodoamor,issonãoquerdizerquetenharenunciadopara sempreaosjogoslúbricos,masquequeriacolocarapróprialubricidadea serviçodoamor. Imaginavaqueiaviversócomumamulher,numêxtasemonogâmico, todasasexperiênciasqueconheceracomumacentenadeoutras.Faltava resolverumaquestão:emqueritmoaaventuradasensualidadedeveria progredirnocaminhodoamor?Comoocaminhodeviaserlongo,muito longo,semfimsepossível,mantinhacomoprincípio:frearotempo,não precipitarnada. Digamosqueeleimaginavaofuturosexualcomsualindezacomoa escaladadeumaaltamontanha.Sealcançasseocumenoprimeirodia,o quefarianodiaseguinte?Assim,eraprecisoplanejaraascensãoparaque preenchessetodaumavida.Faziaamorcomsuamulhertambémcom paixão,éverdade,comfervor,masdigamosdemaneiraclássica,evitando asperversõesqueoatraíam(comelamaisaindadoquecomqualquer outra),masdeixavaparamaistarde. Nãoimaginavaqueoqueaconteceupudesseacontecer:deixaramdese entender,irritavam-seumaooutro,ocasaldisputavaopoder,ela reclamavamaisespaçoparaseudesabrocharpessoal,eleseaborrecia porqueelanãoqueriacozinharosovosparaseucafédamanhã,eantes quecompreendessemoqueestavaacontecendoviram-sedivorciados.O grandesentimentosobreoqualpretenderaconstruirtodasuavida desapareceutãodepressaqueRubensduvidavaquejamaisexistira.Essa evaporaçãodosentimento(evaporaçãosúbita,rápida,fácil!)foiparaele algovertiginosoeinacreditávelqueofascinavaaindamaisqueoêxtase amorosovividodoisanosantes. Seobalancetedeseucasamentoeranulo,obalanceteeróticotambém oeracommaisrazãoainda.Dadooritmolentoquesehaviaimposto,não haviapostoempráticacomessaesplêndidacriatura,senãojogoseróticos bastanteinocentes,moderadamenteexcitantes.Nãosomentenãohavia alcançadoocumedamontanha,masnãotinhachegadonemaoprimeiro belvedere.Porissoquisreveralindezadepoisdodivórcio(elanãose opôs:desdequenãodisputavammaisopoder,passaraagostardesses encontros),afimdepôrempráticaaomenosalgumasdaspequenas perversõesqueeleguardaraparaofuturo.Masnãopôdepraticarquase nada,porquedessavezescolheuumritmoapressadodemais,eajovem divorciada(queelequeriaquepassassenumatacadasóaoestágioda verdadeobscena)interpretousuaimpaciênciasensualcomoumaprovade cinismoefaltadeamor,tantoqueasrelaçõespós-matrimoniaisacabaram rapidamente. Ocasamentonasuavidanãotendosidosenãoumsimplesparêntese, estoutentadoadizerqueRubensvoltouexatamenteaopontoondeestava antesdeencontrarsuafuturaesposa;masseriafalso.Depoisdoinchaço dosentimentoamoroso,consideraraseuachatamento,tãoincrivelmente indolorenãodramático,comoumarevelaçãochocante:encontrava-se definitivamentealémdoamor. Ograndeamorqueohaviaextasiadohádoisanosfezcomque esquecesseapintura.Masquandofechouoparêntesedocasamentoe constatoucommelancólicodespeitoqueseachavaalémdoamor,sua renúnciaàartepareceu-lhe,derepente,comoumacapitulação injustificável. Começouaesboçarosquadrosquequeriapintarnoseucadernode notas. Paralogoconstatar,porém,queumavoltaaopassadoeraimpossível. Nocolégio,imaginavaquetodosospintoresdomundoavançavamnum mesmograndecaminho:eraumaestradarealqueiadapinturagóticaaos grandesitalianosdaRenascença,depoisaosholandeses,depoisa Delacroix,deDelacroixaManet,deManetaMonet,deBonnard(ah,como gostavadeBonnard!)aMatisse,deCézanneaPicasso.Nessaestrada,os pintoresnãoavançavamemtropacomosoldados,não,cadaumandava sozinho,masasdescobertasdeunsinspiravamosoutrosetodosestavam conscientesdeabriremumapassagememdireçãoaodesconhecidoque erasuametacomumequeosunia.Depois,derepente,ocaminho desapareceu.Foicomoofimdeumlindosonho:durantealgunsmomentos procuramosaindaasimagensesmaecidas,antesdecompreenderquenão podemosfazerossonhosvoltarem.Entretanto,apesardedesaparecido,o caminhocontinuavanaalmadospintores,representadopelodesejo inextinguívelde"iradiante".Masondeéo"adiante"senãohámais caminho?Emquedireçãoprocuraro"adiante"perdido?Entreospintores, odesejode"iradiante"tornou-seumaneurose;todoscorriamemtodosos sentidos,unscruzandocomosoutrossemparar,comopassantesagitados namesmapraçadeumamesmacidade. Todosqueriamdistinguir-seecadaumesforçava-seporredescobrir umadescobertaqueooutronãoteriaaindaredescoberto.Felizmente,logo aparecerampessoas(nãomaispintores,masmarchands,organizadoresde exposiçõesacompanhadosdeseusagentesdepublicidade)quepuseram ordemnessecaos,edecidiramqualdescobertaeranecessáriaredescobrir emtaletalano.Essereordenamentofavoreceuavendadequadros contemporâneos;elessubitamenteseamontoaramnossalõesdosmesmos milionáriosque,dezanosantes,faziampoucodePicassooudeDali,eque Rubensporessarazãodesprezavacomfervor. OsmilionáriosdecidiramsermodernoseRubensdeuumsuspirode alíviopornãosermaispintor. Umdia,emNovaIorque,visitouoMuseudeArteModerna.Noprimeiro andarhaviaumaexposiçãodeMatisse,Braque,Picasso,Miro,Dali,Ernst; Rubensficouencantado:aspinceladassobreastelasexpressavamum prazerfrenético.Àsvezesarealidadesofriaumestuprograndiosocomo umamulheragredidaporumfauno,àsvezesenfrentavaopintorcomoo touroenfrentaotoureiro.Masnoandarsuperior,reservadoàpintura maisrecente,Rubensencontrou-seemplenodeserto:nenhumtraçodas alegrespinceladas,nenhumtraçodeprazer;desaparecidosostoureirose ostouros;astelashaviambanidoarealidadequandonãoaimitavamcom obtusaecínicafidelidade.EntreosdoisestágioscorriaoLeteu,orioda morteedoesquecimento.Rubensentãodisseasimesmoque,seacabara renunciandoàpintura,foiporumarazãomaisprofunda,provavelmente, queasimplesfaltadetalentoouperseverança:sobreomostradorda pinturaeuropeia,osponteirosmarcavammeia-noite. TransplantadoparaoséculoXIX,oquefariaumalquimistadegênio? OqueseriahojedeCristóvãoColombo,quandocentenasde transportadorasasseguramasrotasmarítimas?OqueShakespeare escreverianumaépocaondeoteatroaindanãoexisteounãoexistemais? Essasperguntasnãosãomeramenteretóricas.Quandoumhomem édotadoparaumaatividadeparaaqualorelógiosoouameia-noite(ou aindanãosoouaprimeirahora),oqueacontececomseutalento?Vaise transformar?Vaiseadaptar?CristóvãoColombosetransformariaem diretordeumasociedadetransportadora?Shakespeareescreveria roteirosparaHollywood?Picassoproduziriahistóriasemquadrinhos?Ou entãotodosessesgrandestalentosseretirariamdomundo,partiriam,por assimdizer,paraalgumconventodaHistória,cheiosdedecepçãocósmica porteremnascidoemmáhora,foradaépocaparaaqualestariam destinados,foradomostradorquemarcavaaépocadeles?Abandonariam seutalentointempestivocomoRimbaud,quecomdezenoveanos abandonouapoesia? Tambémaessasperguntas,nemvocê,nemeu,nemRubensobteremos resposta.ORubensdemeuromanceeraumgrandepintoreventual?Ou entãonãotinhanenhumtalento?Abandonouospincéisporfaltadeforças ou,aocontrário,porqueteveaforçadepercebercomlucidezafutilidade dapintura? Certamente,muitasvezespensavaemRimbaudeemseuforoíntimo gostavadesecomparar(sebemquecomtimidezeironia).Nãosomente Rimbaudabandonouapoesiaradicalmenteesempena,massuaatividade ulterioréasarcásticanegaçãodapoesia:diz-sequesededicavaaotráfico dearmasnaÁfricaeàvendadenegros.Mesmoseasegundaafirmação nãoésenãoumalendacaluniosa,elaexpressabem,porhipérbole,a violênciaautodestrutiva,apaixão,araiva,comasquaisRimbaudse separoudeseupassadodepoeta.SeRubensfoicadavezmaisatraídopelo mundodosespeculadoresedosfinancistas,étalveztambémporquevia nessaatividade(comousemrazão)oopostodosseussonhosdeartista.O diaemqueseucolegaNtornou-sefamoso,Rubensvendeuumquadroque outroraelelhepresenteara.Nãosomenteessavendarendeu-lhealgum dinheiro,masrevelou-lheumbommeiodeganharavida:venderaos milionários(queeledesprezava)obrasdepintorescontemporâneos(de queelenãogostava).Muitaspessoasganhamavidavendendoquadros, semnenhumconstrangimentoemexerceressaatividade. Velásquez,Vermeer,Rembrandttambémnãoforammarchandsde quadros? Rubenscertamentesabiadisso.Masseestavaprontoasecompararao Rimbaudmarchanddeescravos,jamaissecomparariaaosgrandes pintoresmarchandsdequadros.Rubensjamaisiriaduvidardainutilidade totaldeseutrabalho.Noprincípioficouacabrunhadoerepreendeu-sepor seuimoralismo.Masacaboudizendoasimesmo:nofundo,oquesignifica "serútil"?Asomadautilidadedetodosossereshumanosdetodasas épocasestácontidainteiramentenomundotalcomoéhoje.Por conseguinte:nadamaismoraldoqueserinútil. Maisoumenosdozeanosdepoisdoseudivórcio,Fveiovê-lo.Contou suavisitaàcasadeumsenhor:logoquechegou,elepediuqueela esperasseunsbonsdezminutosnasala,sobopretextodeestar atendendootelefonenoquartoaolado,terminandoumaconversa importante.Talvezestivessefingindotelefonar,paraqueelativessetempo defolhearrevistaspornográficasdispostassobreumamesabaixa,em frenteàpoltronaqueelelhehaviaindicado.Fconcluiusuanarrativacom estaobservação: —Seeufossemaisjovem,eleteriamepossuído.Seeutivesse dezesseteanos.Éaidadedasmaisloucasfantasias,aidadeemquenão sabemosresistiranada... Rubensescutaraumtantodistraidamente,masasúltimaspalavraso tiraramdesuaindiferença.Deagoraemdianteseriasempreamesma coisa:alguémpronunciariadiantedeleumafrasequeotomariade surpresa,comoumacensura,fazendo-olembrardealgumacoisaque tivesseperdido,perdidoirrevogavelmente.QuandoFfaloudeseus dezesseteanosedaincapacidadederesistiràstentaçõesquetinha naquelaépocalembrou-sedesuajovemesposaquetambémtinha dezesseteanosnaépocaemqueseconheceram.Lembrou-sedeumhotel nointeriorondeestevecomelaumpoucoantesdesecasarem.Faziam amornumquartoaoladodoquartoocupadoporumamigo. —Elenosouve!cochichouafuturaesposaváriasvezes. —Agora(sentadodiantedeFquecontavaastentaçõesdosseus dezesseteanos)Rubenssedeucontadequenaquelanoiteelahaviadado suspirosmaisprofundosquehabitualmente,haviaatégritado,portanto gritaradepropósitoparaserouvidapeloamigo. Nosdiasseguintes,elahaviarelembradoessanoiteváriasvezes: —Vocêachamesmoqueelenãonosouviu? Naépoca,viranessaperguntaamanifestaçãoapreensivadeseupudor, etentaraapaziguá-la(umatalingenuidadeagoraofaziaenrubesceratéas orelhas!),assegurando-lhequetodosdiziamqueoamigotinhaumsonode pedra. OlhandoparaF,pensavaquenãodesejavaespecialmentefazer-lhe amornapresençadeoutramulheroudeoutrohomem.Mascomoera possívelquealembrançadesuamulher,suspirandoegritandoquatorze anosantesenquantopensavanoamigodeitadodooutroladodaparede, comoerapossívelqueessalembrança,depoisdetantosanos,fizessecom queosanguelhesubisseàcabeça? Disseasimesmo:oamoratrês,aquatro,sópodeserexcitantena presençadamulheramada.Sóoamorécapazdedespertaroespanto,a excitaçãohorrorizadadiantedocorpodeumamulherabraçadaporum homem.Oantigoditadomoralizador,segundooqualocontatosexualsem amornãotemsentido,erasubitamentejustificáveletinhaumnovo significado. Nodiaseguinte,tomouumaviãoparaRomaondetinhadecolocarem ordemalgunsnegócios.Porvoltadasquatrohorasestavalivre.Cheiode umasaudadesemraízes,pensavaemsuaantigaesposa,masnãosónela; todasasmulheresqueconheceradesfilavamdiantedeseusolhosetinhaa impressãodequeficaraemfaltacomtodaselas,queviveracomelasmuito menosdoqueteriapodidoedoquedeveriatervivido.Paraseverlivre dessasaudade,dessainsatisfação,foiàpinacotecadopalácioBarberini (emtodasascidadesvisitavaaspinacotecas),depoisdirigiu-separaa escadariadaPiazzadiSpagnaesubiuatéaVilaBorghese.Sobrepedestais, flanqueandoaslongasaleiasdoparque,estavamcolocadosbustosem mármoredeitalianoscélebres.Seusrostos,imobilizadosnumacaretafinal, estavamexpostoscomoresumosdesuasvidas. Rubenssempreseimpressionaracomoaspectocômicodasestátuas. Sorriu. Depoislembrou-sedoscontosdefadasdesuainfância:ummágico enfeitiçaaspessoasduranteumbanquete;todospermanecemnaposição emqueestavamnaqueleinstante:abocaaberta,orostodeformadopela mastigação,umossoroídonamão.Umaoutralembrança:ossobreviventes deSodoma,Deusproibiu-osdesevirarem,sobpenadesetransformarem emestátuasdesal.EssahistóriadaBíbliamostrasemequívocoquenãohá piorcastigo,piorhorrordoquetransformaruminstanteemeternidade, arrancarohomemdotempoedoseumovimentocontínuo.Perdidonesses pensamentos(esquecidoslogodepois),derepenteenxergou-a!Não,não eraasuamulher(aquelaquedavasuspiros,achandoqueseriaouvidapor umamigonoquartovizinho),eraoutrapessoa. Tudoaconteceunumafraçãodesegundo.Elesóareconheceuno últimomomento,quandoelajáestavajuntodeleequandoopassoseguinte osteriadefinitivamenteafastadoumdooutro.Comexcepcionalrapidezele paroudechofre,virou-se(elatambémreagiu)efalou-lhe. Teveaimpressãodequeeraelaqueeledesejaraduranteanos,deque aprocurarapelomundointeiro.Cemmetrosadiantehaviaumcafécom mesasarrumadasàsombradasárvores,sobumcéuesplendidamente azul.Sentaram-sefrenteafrente. Elausavaóculosescuros.Elesegurou-osentredoisdedos,tirou-oscom delicadezaecolocou-osnamesa.Elanãoreagiu. —Foiporcausadestesóculos,disseele,quequasenãoareconheci. Beberamáguamineral,sempoderdesviaroolharumdooutro.Ela estavaemRomacomomaridoesódispunhadeumahora.Elesabiaque seascircunstânciasopermitissem,teriafeitoamornaquelemesmodia, naqueleminuto. Comosechamava?Qualoseunome?Eleesqueceraeachava impossívelperguntar-lhe.Contou-lhe(comcompletasinceridade)que, duranteotempoemqueestiveramseparados,tinhatidoaimpressãode queestavaàesperadela. Comoconfessar-lhe,então,quenãosabiaseunome? Disse:—Sabecomonósachamávamos? —Não. —Aviolinista. —Porqueaviolinista? —Porquevocêeradelicadacomoumviolino.Fuieuqueinventeiesse nomeparavocê. Sim,eleoinventara.Nãonaépocaemqueaconhecera, muitorapidamente,masagora,noparquedaVilaBorghese,porque precisavadeumnomeparapoderfalar-lhe;eporqueachava-adelicada, eleganteedocecomoumviolino. Oquesabiasobreela?Muitopouco.Lembrava-sevagamentedetê-la vistonumaquadradetênis(eleteriavinteeseteanos,eladezmenosdo queele),detê-laconvidadoumdiaparairemaumaboate.Nadançada épocaohomemeamulherficavamaumpassoumdooutro,se entortavamejogavamosbraçosumdecadavezemdireçãoaoparceiro. Foicomessemovimentoqueelaficougravadaemsuamemória.Oque teriaacontecidodetãoestranho?Oseguinte:elanãoolhavaparaRubens. Então,paraondeolhava?Paraovazio.Todososdançarinosfaziamuma meia-flexãocomosbraçosjogando-osparaafrenteumdecadavez.Ela tambémfaziaessemovimento,masdeumamaneiraumpoucodiferente: quandojogavaumbraçoparadiante,faziacomquedescrevesseuma curva:paraaesquerdacomobraçodireito,paraadireitacomobraço esquerdo. Comosequisesseesconderseurostoatrásdessesmovimentos circulares.Comosequisesseescondê-lo.Adançaeraconsideradaentão relativamenteindecente,eeracomoseamoçaquisessedançar indecentementeescondendosuaindecência. Rubensficaraencantado!Comosejamaistivessevistoumacoisatão amorosa,tãolinda,tãoexcitante.Depoistocaramumtangoeoscasaisse abraçaram.Nãopodendoresistiraumsúbitoimpulso,pousou-lheamão sobreoseio.Tevemedo. Oqueelafaria?Nãofeznada.Continuouadançar,amãodeRubens sobreseuseio,olhandoparaafrente.Comumavozquasetrêmula,ele perguntou: —Alguémjátocouseuseio? Comumavoznãomenostrêmula(eracomoserealmenteroçassemas cordasdeumviolino),elarespondeu:—Não. Amãosemprepousadasobreseuseio,achouesse"não"amaislinda palavradomundoeficouextasiado:parecia-lheveropudor;vê-lode perto,vê-loexistir;teveaimpressãodepodertocaressepudor(aliás,eleo tocavarealmente,poisopudordamoçaconcentrara-seinteiroemseuseio, invadiraseuseio,transformara-seemseio). Porqueaperderadevista?Quebravaacabeçasemencontrar umaresposta.Nãoselembravamais. NoiníciodoséculoArthurSchnitzler,romancistavienense,publicouum notávelromanceintituladoMademoiselleElsa.Aheroínaéumamoçacujo paiendividou-seapontodequasesearruinar.Ocredorprometeuperdoar asdívidasdopaiseafilhaficassenuadiantedele.Depoisdeumlongo debateinterior,Elsaconsente,masseupudorétantoqueaexibiçãodesua nudezfazcomqueelapercaarazãoemorra.Evitemosqualquermalentendido:nãosetratadeumahistóriamoralizadora,dirigidacontraum ricaçomaueperverso!Não,trata-sedeumromanceeróticoqueprendeo fôlego;elenosfazcompreenderopoderqueoutroratinhaanudez:parao credor,significavaumaenormesomadedinheiro,eparaamoçaumpudor infinitoquefazianascerumaexcitaçãopróximadamorte. .NoquadrantedaEuropa,oromancedeSchnitzlermarcaummomento importante;ostabuseróticoseramaindapoderososnofinaldopuritano séculoXIX,masaliberaçãodoscostumesjásuscitavaumdesejo,não menospoderoso,desuperaçãodessestabus.Pudoredespudorse encontravamnumpontoemquesuasforçaseramiguais.Foiummomento deintensatensãoerótica.Vienaviveuissonaviradadoséculo.Esse momentonãovoltarámais. Opudorsignificaquenosproibimosaquiloquequeremos,aomesmo tempoemquesentimosvergonhadequereraquiloquenosproibimos. Rubenspertenciaàúltimageraçãoeuropeiaeducadanopudor.Porisso ficoutãoexcitadoaocolocaramãonoseiodamoçaededeslancharassim seupudor.Umdia,nocolégio,meteu-seescondidonumcorredor,edeuma janelaconseguiuverasmeninasdesuaclasse,comosseiosdefora, esperandoparafazerradiografiadepulmão.Umadelasoenxergouedeu umgrito.Asoutrassecobriramdepressacomsuasblusasecorreram atrásdelenocorredor.Eleviveuummomentodeterror;derepentenão erammaissuascolegasdeclasse,suasamigasprontasabrincareflertar. Emseusrostoslia-seumamaldadecruelmultiplicadapelonúmerodelas, umamaldadecoletivadecididaacaçá-lo.Escapou,maselasnão abandonaramsuaperseguiçãoeodenunciaramàdireçãodocolégio. Enfrentouumaacusaçãodiantedetodaaclasse.Comumdesprezomal disfarçadoodiretorqualificou-odevoyeur. Tinhamaisoumenosquarentaanosquandoasmulheresdeixaram seussutiãsnumagavetae,estendidasnaspraias,mostraramseusseios paraomundointeiro.Andavaabeira-mareevitavaolharessanudez inesperada,porqueovelhoimperativohaviaseenraizadonele:nãoferiro pudordeumamulher. Quandopassavaporumamulherconhecida,porexemplo,amulherde umcolega,queestavasemsutiã,constatavacomsurpresaquenãoeraela quesentiavergonha,masele.Encabulado,nãosabiaparaondeolhar. Tentavanãoolharosseios,maseraimpossível,poispercebemososseios nusdeumamulhermesmoquandoolhamossuasmãosouseusolhos. Assim,tentavaolharseusseiosnuscomtantanaturalidadequantoolharia umatestaouumjoelho.Masnãoerafácil,exatamenteporqueosseiosnão sãonemumatestanemumjoelho.Qualquercoisaquefizesse,parecia-lhe queessesseiosnusqueixavam-sedele,queoacusavamdenãoestar suficientementedeacordocomsuanudez.Tinhasempreaforteimpressão dequeasmulheresqueencontravanapraiaeramaquelasquevinteanos antesotinhamdenunciadoaodiretorporvoyeurismo:tãomaldosasquanto aquelas,exigiamdele,comamesmaagressividademultiplicadapelo númerodelas,quereconhecesseodireitoquetinhamdeficarnuas. Afinal,maloubem,reconciliou-secomosseiosnus,massemconseguir desfazer-sedosentimentodequeumacoisagraveacabavadeacontecer: nomostradordaEuropahaviasoadoahora:opudorhaviadesaparecido. Enãoapenashaviadesaparecido,masdesapareceratãofacilmente,numa sónoite,quepodíamosatépensarquenuncaexistira.Quenãoerasenão umasimplesinvençãodoshomensdiantedeumamulher.Quepudornão erasenãoumamiragemdoshomens.Seusonhoerótico. Depoisdeseudivórcio,comoeudisse,Rubensviu-se definitivamente"alémdoamor".Essafórmulaagradava-lhe.Muitasvezes elerepetia(àsvezescommelancolia,àsvezesalegremente):vivominha vida"alémdoamor". Masoterritórioquechamava"alémdoamor"nãosepareciacomo terrenodefundo,sombrioeabandonado,deumpaláciomagnífico(palácio doamor);não,eleeravastoerico,infinitamentevariadoemaisextenso, talvezmaisbelodoqueoprópriopaláciodoamor.Entreasvárias mulheresquenelemoravam,algumaslheeramindiferentes,outraso distraíam,mashaviaalgumasporquemeraapaixonado.Épreciso compreenderessaaparentecontradição:alémdoamor,oamorexiste. Realmente,seRubensempurravapara"alémdoamor"suasaventuras amorosas,nãoeraporinsensibilidade,masporquepretendialimitá-lasà simplesesferaerótica,proibindoquetivessemamenorinfluêncianocurso desuavida. Todasasdefiniçõesdoamorterãosempreumpontocomum:oamoré algumacoisadeessencial,transformaavidaemdestino:ashistóriasque acontecem"alémdoamor",pormaisbelasquesejam,têm consequentementeenecessariamenteumcaráterepisódico. Masrepito:apesardebanidaspara"alémdoamor",paraumterritório doepisódico,algumasmulheresdeRubenssuscitavamneleternura, outrasoobcecavam,outrasotornavamciumento.Querdizerqueos amoresexistiammesmo"alémdoamor",ecomono"alémdoamor"a palavraamorestavaproibida,todosessesamoreseramnarealidade secretose,portanto,aindamaiscativantes. NocafédaVillaBorghese,sentadoemfrentedaquelaquechamavaa violinista,imediatamentecompreendeuqueelaseriaparaeleuma"amada alémdoamor".Sabiaqueavidadaquelajovem,seucasamento,suas preocupaçõesnãoointeressavam,massabiatambémquesentiriaporela umaternuraextraordinária. —Estoulembrandoumoutronomequevoudaravocê.Vouchamá-la avirgemgótica. —Eu,umavirgemgótica? Nuncaachamaraassim.Aideiatinhalheocorridouminstanteantes, quandopercorriam,ladoalado,oscemmetrosqueosseparavamdocafé. Amoçaevocaranelealembrançadequadrosgóticosquehavia contempladonopalácioBarberiniantesdoencontrodeles. Continuou:—Nospintoresgóticos,asmulherestêmabarriga ligeiramentesalienteeacabeçainclinadaparaochão.Vocêtemapostura deumajovemvirgemgótica. Deumaviolinistanumaorquestradeanjos.Seusseiosseviramparao céu,suabarrigaseviraparaocéu,massuacabeça,comoseconhecessea vaidadedetodasascoisas,inclina-separaapoeira. Voltavampelaaleiaondetinhamseencontrado.Ascabeçascortadas dosmortosilustres,colocadasemcimadepedestais,osencaravamcheias dearrogância. Naentradadoparquesedespediram:ficoucombinadoqueRubens viriavê-laemParis:eladeu-lheseunome(onomedoseumarido),o númerodoseutelefone,eindicouashorasemqueestariasozinhaem casa;depoispegousorrindoseusóculosescuros: —Agora,seráquepossotornaracolocá-los? —Pode,respondeuRubens,seguindo-apormuitotempocomosolhos enquantoseafastava. Odolorosodesejoqueexperimentaranavésperadoseuencontro,ao verquesuajovemesposaescapava-lheparasempre,transformou-seem obsessãopelaviolinista.Procurounasuamemóriatudoquelherestara dela,semacharnadaanãoseralembrançadaquelaúnicanoitenaboate. Cemvezesevocouamesmaimagem:nomeiodoscasaisdebailarinos,ela estavabememfrentedele,aumpassodedistância.Olhavanovazio.Como senãoquisessevernadadomundoexteriormassimconcentrar-seemsi mesma.Comosealihouvesse,aumpassodela,nãoRubensmasum grandeespelhonoqualseobservava.Observavaseusquadris,projetados parafrenteumdecadavez,observavasuasmãosqueefetuavamao mesmotempomovimentoscircularesemfrentedosseusseiosedoseu rosto,comoparaescondê-losouapagá-los.Comoseelaosapagassee fizesseaparecerdenovoolhando-senoespelhoimaginário,excitadacom seuprópriopudor.Seusmovimentosdedançaeramumapantomimado pudor,nãoparavamdefazerreferênciaàsuanudezescondida. UmasemanadepoisdeseuencontroemRoma,tinhamum encontromarcadonohalldeumgrandehotelparisiensecheiode japonesescujapresençalhesdavaumaagradávelimpressãodeanonimato edefaltaderaízes.Depoisdefecharaportadoquarto,aproximou-sedela ecolocouumadasmãonoseuseio: —Foiassimquelhetoquei,nanoiteemquefomosdançar.Lembra? —Lembro,disseela,efoicomoumalevebatidanamadeiradeum violino. Elasentiriavergonhacomosentiraháquinzeanosatrás?Betinateria sentidovergonhaemTeplitzquandoGoethetocou-lheoseio?Opudorde BetinanãoseriaapenasumsonhodeGoethe?Opudordaviolinistanão seriaapenasumsonhodeRubens?Serásempreessepudor,mesmoirreal, mesmoreduzidoàlembrançadeumpudorimaginário,queestarálá,com eles,noquartodehotel,envolvendo-oscomsuamagiaedandoumsentido atudoquefaziam.Despiuaviolinistacomoseacabassemdesairdaboate. Duranteoamor,eleaviadançar:elaescondiaorostocomgestosdasmãos eseobservavanumgrandeespelhoimaginário. Comavidezdeixaram-selevarporessaondaqueatravessahomense mulheres,essaondamísticadeimagensobscenasemquetodasas mulherestêmumcomportamentoidêntico,masnasquaisosmesmos gestoseasmesmaspalavrasrecebemdecadarostoindividualumpoder individualdefascínio. Rubensouviaaviolinista,escutavasuasprópriaspalavras,olhavao rostodelicadodavirgemgótica,seuslábioscastosarticulandopalavras grosseiras,esentia-secadavezmaisembriagado. Otempogramaticaldesuaimaginaçãoeróticaeraofuturo:vocême fará,nosiremosorganizar...Essefuturotransformaosonhonuma promessaperpétua(quenãoémaisválidaquandoosamantesvoltamao estadonormal,masque,nãosendonuncaesquecida,torna-sedenovo promessa).Portantoerainevitávelqueumdia,nohalldohotel,elea esperasseemcompanhiadeseuamigoM.Subiramcomelaparaoquarto, beberameconversaram,depoiscomeçaramadespi-la. Quandotiraramseusutiã,elacolocouasmãosnopeito,tentandocobrir seusseios.Elesalevaramentão(estavasódecalcinha)paraafrentede umespelho(umespelhocolocadonaportadeumarmário):elaficoudepé entreosdois,aspalmassobreosseios,eolhou-sefascinada.Rubens constatouqueseMeelesóolhavamparaela(seurosto,suasmãos cobrindoseupeito),elanãoosvia,olhandocomoquehipnotizadaparasua própriaimagem. OepisódioéumanoçãoimportantedaPoéticadeAristóteles.Aristóteles nãogostadoepisódio.Detodososacontecimentos,segundoele,ospiores (dopontodevistadapoesia)sãoosacontecimentosepisódicos.Nãosendo umaconsequêncianecessáriadaquiloqueoprecedeenãoproduzindo nenhumefeito,oepisódioencontra-seforadoencadeamentocausaiqueé ahistória.Comosefosseumacasoestéril,elepodeseromitidosemqueo relatosetorneincompreensível;nãodeixaomenortraçonavidados personagens.Vocêvaidemetrôencontraramulherdasuavidae,na estaçãoqueprecedeasua,umamoçadesconhecidaqueestáaseulado, tomadadeummalsúbito,perdeaconsciênciaedesmaia.Uminstante antesvocênemahavianotado(poisafinaldecontasvocêtemumencontro comamulherdesuavidaenadamaislheimporta!),nessemomentovocê éforçadoalevantá-laecarregá-laporalgunssegundosnosseusbraços, esperandoqueelaabraosolhos.Vocêainstalanobancoqueacabade ficarlivreecomoocarroperdevelocidadeaoaproximar-sedaestação, vocêseafastaimpacientementedelaparacorrernadireçãodamulherde suavida.Apartirdessemomento,amoça,queuminstanteantesvocê carregavanosbraços,éesquecida.Eisumepisódioexemplar.Avidaé assimcheiadeepisódiosquantoumcolchãoécheiodecrinas,masopoeta (segundoAristóteles)nãoéumcolchoeiroedeveafastardeseurelato todososrecheiosapesardavidarealsertalvezcompostaapenasdesses recheios. AosolhosdeGoethe,seuencontrocomBetinafoiumepisódiosem importância;nãosóeleocupavanasuavidaumlugarquantitativamente minúsculo,comoGoethetambémfeztudoparaimpedirqueesseepisódio assumisseumpapelcausaiecolocou-ocuidadosamenteàpartedesua biografia. Ora,éaíqueaparecearelatividadedanoçãodeepisódio,essa relatividadequeAristótelesnãoalcançou:ninguémpodegarantirqueum acidenteepisódiconãocontenhaumapotencialidadecausai,quepodeum diaacordarepôremmarchainesperadamenteumcortejode consequências.Umdia,eudisse,eessediapodechegarmesmodepoisdo personagemestarmorto,daíotriunfodeBetinaquetornou-separte integrantedavidadeGoethe,quandoGoethenãoestavamaisvivo. Podemos,portanto,completarcomosegueadefiniçãodeAristóteles:a priorinenhumepisódioestácondenadoacontinuarparasempre episódico,jáquecadaacontecimento,mesmoomaisinsignificante,encerra apossibilidadedetornar-semaistardeacausadeoutrosacontecimentos, transformando-seaomesmotemponumahistória,numaaventura.Os episódiossãocomominas.Amaiorpartenãoexplodenunca,noentanto, chegaodiaemqueomaismodestopodelheserfatal.Narua,vemuma moçanasuadireção,dirigindo-lhedelongeumolharquelhepareceráum poucoalucinado.Eladiminuiopassopoucoapouco,depoispára: —Évocêmesmo?Hámuitosanosqueprocurovocê!Eseatiranoseu pescoço.Eamoçaquehaviacaídodesmaiadanosseusbraçosnodiaem quevocêiaencontraramulherdasuavida,aqualnessemeiotempose tornousuaesposaeamãedoseufilho.Masamoçaencontradaporacaso, hámuitotempo,decidiuficarapaixonadapeloseusalvador,eoencontro fortuitodevocêsvaiparecer-lheumsinaldodestino.Vailhetelefonar cincovezespordia,escreverácartas,procurarásuamulherparaexplicar queestágostandodevocê,equetemdireitossobrevocê,atéomomento emqueamulherdasuavidaperderáapaciênciaefaráamorcomum lixeiroeoabandonarácarregandoseufilho.Paraescapardamoça apaixonada,quenessemeiotempodesembarcounoseuapartamentocom tudoquetinhanosarmários,vocêprocurarárefúgiodooutroladodo oceanoeéláquemorreránodesesperoenamiséria.Senossasvidas fossemeternascomoadosdeusesantigos,anoçãodeepisódioperderia seusentido,poisnoinfinitotodososacontecimentos,mesmoomais insignificante,tornar-se-áumdiacausadeumefeitoesetransformaráem história. Aviolinistacomquemdançaraquandotinhavinteeseteanosnãoera paraRubenssenãoumsimplesepisódio,umarqui-episódio,atéomomento emqueareviuquinzeanosmaistarde,poracaso,naVillaBorghese. Naquelemomento,deumepisódioesquecido,nasceuderepenteuma pequenahistória,masmesmoessapequenahistória,navidadeRubens, ficouinteiramenteepisódica,semamenorchancedeumdiafazerparte daquiloquepoderíamoschamarsuabiografia. Biografia:sucessãodeacontecimentosqueconsideramosimportantes paranossavida.Masoqueéimportanteeoquenãoé?Comonãosabemos (enemmesmonosocorrenosfazermosumaperguntatãosimplesetão boba),aceitamoscomoimportanteaquiloquenospareceimportantepara osoutros,porexemplo,paraofuncionárioquenosfazpreencherum questionário:datadenascimento,profissãodospais,níveldeestudos, funçõesexercidas,domicíliossucessivos(filiaçãoeventualaopartido comunista,acrescentariamnaminhaantigapátria),casamentos,divórcios, datadenascimentodosfilhos,sucessos,fracassos.Éhorrível,maséassim: aprendemosaolharnossaprópriavidapelosolhosdosquestionários administrativosoupoliciais.Jáéumapequenarevoltainseriremnossa biografiaumaoutramulherquenãoénossaesposalegítima;ouainda, umaexceçãodessassóéadmissívelseessamulherdesempenhouem nossavidaumpapelespecialmentedramático,oqueRubensnãopoderia dizerdaviolinista. Aliás,porsuaaparênciaassimcomoporseucomportamento,a violinistacorrespondiaàimagemdeumamulher-episódio;elaeraelegante masdiscreta,belasemchamaratenção,dadaaoamorfísicomasaomesmo tempotímida;elanuncaincomodavaRubenscomconfidenciassobresua vidaparticular,mastambémevitavadramatizaradiscriçãodeseusilêncio paratransformá-lonummistérioinstigante.Eraumaverdadeiraprincesa doepisódio. Oencontrodaviolinistacomosdoishomensnumgrandehotel parisienseeraexcitante.Entãoostrêsfizeramamoremconjunto?Não esqueçamosqueaviolinistahaviasetornadoparaRubensuma"amada alémdoamor";oimperativoantigodespertounele,ordenando-lhe diminuiroritmodosacontecimentosparaqueoamornãoperdessemuito depressasuacargasexual. Antesdelevá-laparaacama,fezsinalparaqueseuamigodeixasse discretamenteoquarto. Portanto,duranteoamor,ofuturogramaticaltransformoumaisuma vezsuaspalavrasemumapromessaque,noentanto,nuncaserealizou: poucodepois,oamigoMdesapareceudoseuhorizonteeoencontro excitantededoishomenseumamulhercontinuousendoumepisódiosem continuação.Rubensviaaviolinistaduasoutrêsvezesporano,quando tinhaaoportunidadedeviraParis. Depoisaocasiãonãomaisseapresentoue,denovo,aviolinista desapareceuquaseinteiramentedesuamemória. Osanospassarame,umdia,sentou-secomumcoleganumcaféda cidadeondemorava,aopédosAlpesSuíços.Reparouquenamesaem frenteumajovemoobservava.Bonita,abocagrandeesensual(queele teriadebomgradocomparadoaumabocaderã,seéquesepodedizer queasrãssãobelas),pareciasertudooqueelesemprehaviadesejado. Mesmoatrêsouquatrometrosdedistância,seucorpoparecia-lhe agradávelaocontatoe,nessemomento,eleopreferiaaocorpodetodasas outrasmulheres.Elaoolhavatãointensamenteque,semouvirmaisoque seucolegadizia,deixou-secativareimaginoudolorosamentequedentro dealgunsminutos,quandosaíssedocafé,perderiaessamulherpara sempre. Porémnãoaperdeu,porquelogoqueelesselevantaramdamesaela tambémselevantoue,comoeles,dirigiu-separaoedifícioemfrenteonde dentrodepoucotempoalgunsquadrosseriamleiloados.Atravessandoa rua,ficaramporuminstantetãopertoumdooutroqueelenãopôde deixardelhedirigirapalavra.Elareagiucomoseesperasseporissoe começouaconversarcomRubenssemdaratençãoaseucolega,que,sem graça,seguiu-osemsilêncioatéosalãodevendas.Quandooleilãoacabou, encontraram-seasósnomesmocafé. Nãotendomaisdoqueumameiahora,apressaram-seemdizerumao outrooquetinhamparadizer.Masoquetinhamasedizernãoeralá grandecoisa,eeleficousurpreendidocomolentoescoardessameiahora. Ajovemeraumaestudanteaustraliana,tinhaumquartodesanguenegro (quemalsepercebia,razãopelaqualelagostavamaisaindadefalarsobre isso),estudavasemiologiadapinturasobadireçãodeumprofessorde Zurique,e,naAustrália,duranteumcertotempo,ganharaavidadançando seminuanumaboate.Todasessasinformaçõeseraminteressantes,mas davamaRubensumaforteimpressãodeestranheza(porquedançarde seiosnusnaAustrália?PorqueestudarsemiologiadapinturanaSuíça?Na realidade,oqueerasemiologia?),atalpontoqueemvezdedespertarsua curiosidade,elasocansavamdeantemãocomoobstáculosaserem vencidos.Tambémficoucontentedeverameiahoraenfimterminar: imediatamenteseuentusiasmoreavivou-se(poiselaaindalheagradava)e marcaramumencontroparaodiaseguinte. Foientãoquetudodeuerrado:acordoucomdordecabeça,ocarteiro trouxe-lheduascartasdesagradáveis,quandotelefonouparaumescritório tevequeaguentaravozimpacientedeumamulherqueserecusavaa entenderseupedido.Desdequeaestudanteapareceunoumbraldesua porta,seusmauspresságiosforamconfirmados:porquesevestiratão diferentedavéspera?Nospés,enormestêniscinzentos;emcimadostênis, meiasgrossas;emcimadasmeias,umacalçaque,estranhamente,afazia parecermenor;emcimadacalça,umblusão;emcimadoblusão,enfim,ele podiaveroslábiosderã,sempreatraentesmascomacondiçãode abstrair-sedetudooqueestavamaisembaixo. Afaltadeelegânciadeumatalindumentárianãoeraemsimuitograve (nãomudavaofatodequeamoçaerabonita);oquemaisinquietava Rubenseraasuaprópriaperplexidade:porqueumajovemquevai encontrar-secomumhomem,comoqualelaquerfazeramor,nãoseveste demaneiraquepossaagradá-lo?Seráqueelaquerdizerquearoupaé umacoisaexterior,semimportância?Ouentão,aocontrário,elaatribui elegânciaaessasroupaseseduçãoaessesenormestênis?Ouainda,não terianenhumapreçoporessehomemquevaiencontrar? Afim,talvez,deserperdoadocasoesseencontronãomantivessetodas assuaspromessas,eleconfessou-lhetertidoumdiaruim,numtomque tentavaserbrincalhão,eenumeroutudooquelheacontecerade aborrecidodesdeamanhã. Elateveumgrandesorriso: —Oamoréomelhorantídotoparaosmauspresságios! Rubensficouintrigadocomapalavra"amor"',daqualestava desabituado. Oqueelaqueriadizercomisso?Oatodoamorfísico?Ou,então,o sentimentoamoroso?Enquantoelepensava,eladespiu-senumcantodo cômodoemeteu-senacama,abandonando,sobreumacadeira,suacalça delinho,edebaixodacadeira,seusenormestêniscomasgrossasmeias dentrodeles,essestênisquepararamporummomentoemcasade Rubensnodecorrerdesualongaperegrinaçãoentreasuniversidades australianaseascidadeseuropeias. Foiumatodeamorincrivelmentepacíficoesilencioso.Direique Rubensderepentevoltouaoestadodeatletismotaciturno,masa.palavra "atletismo" seriaumtantodeslocada,poisnadasubsistiadasambiçõesdorapaz outrorapreocupadoemprovarsuapotênciafísicaesexual;aatividadea quesededicavampareciaterumaspectomaissimbólicodoqueatlético.Só queRubensnãotinhaamenorideiadoqueseusmovimentos supostamentesimbolizariam:aternura?Oamor?Aboasaúde?Aalegria deviver?Ovício?Aamizade?AféemDeus?Seriatalvezumaoraçãoà longevidade?(Ajovemestudavasemiologiadapintura;maselanão deveriaesclarecerantesasemiologiadocoito?)Elefaziamovimentos vazios,epelaprimeiravezemsuavidanãosabiaporqueosfazia. Duranteumapausa(aideiaveioàcabeçadeRubensdequeo professordesemiologia,eletambém,certamentedeveriafazerumapausa dedezminutosnodecorrerdoseminário),amoçapronunciou(comvoz semprecalmaeserena)umafrasequenovamentecontinhaa incompreensívelpalavra"amor".Rubenspensava:magníficascriaturas femininas,vindasdofundodoespaço,descerãosobreaTerra;seucorpo seráparecidocomodasterrestres,comadiferençadequeseráperfeito, porqueemseuplanetadeorigemnãoexistedoençaeseucorponãotem defeitos.Masseupassadoextraterrestreserásempreignoradopelos homensdaTerraque,emconsequência,nãocompreenderãonadasobre suapsicologia;jamaispoderãopreveroefeito,queterãosobreelas,oque elesdirãooufarão:nuncaadivinharãoassensaçõesdissimuladasatrásde seurosto.Comseresdesconhecidosaesseponto,pensouRubens,será impossívelfazeramor. Depoisvoltouatrás:nossasexualidadeébastanteautomatizada,sem dúvida,paranospermitircopularmesmocommulheresextraterrestres, masseriaumatodeamoralémdequalquerexcitação,umsimples exercíciofísico,desprovidotantodesentimentoquantodelubricidade. Ointervaloacabava,asegundapartedoseminárioiacomeçardaía poucoeRubenstinhavontadededizeralgumacoisa,qualquer despropósitoparaforçá-laaperderoequilíbrio,masaomesmotempo sabiaquenãosedecidiria.Sentia-secomoumestrangeiroobrigadoa discutircomumapessoanumalínguaqueconhecessepouco;nãopoderia nemdizerumdesaforo,poisoadversáriolheperguntariainocentemente: "Oquequisdizer?Nãocompreendinada!"PortantoRubensnãodisse nenhumdespropósitoecommudaserenidadefezamornovamente. Quandosaíramparaarua(semsaberseelaestavasatisfeita oudecepcionada,maselapareciamaisparasatisfeita),eletomaraa decisãodenãorevê-lamais;semdúvidaelaficariamagoada,e interpretariaessasúbitaperdadeafeto(afinaldecontas,eladeveriater notadoatéquepontoeleseentusiasmaraporelanavéspera!)comouma derrotaaindamaisduraporserinexplicável. Sabiaqueporsuacausaostênisdaaustralianadaliemdiante viajariampelomundocomumpassomaismelancólicoainda.Despediu-se, enomomentoemqueeladobrouaesquinadarua,elesentiuabater-se sobreeleapossante,dilacerantenostalgiadetodasasmulheresquetivera emsuavida.Erabrutaleinesperadocomoumadoença,que,semavisar, estouranumsósegundo. Poucoapouco,compreendeu.Nomostrador,oponteiroatingiaum novonúmero.Ouviusoarahoraeviuumapequenajanelaabrir-seno granderelógiomedievaldeonde,movidoporummecanismomiraculoso, saíaumamarionete:eraumamocinhacalçandotênisenormes.Sua apariçãosignificavaqueodesejodeRubensacabavadefazermeia-volta; jamaisdesejarianovasmulheres;sódesejariaasmulheresquejápossuíra; seudesejodaliemdianteseriaassombradopelopassado. Olhandoasbelasmulheresnarua,espantou-sedenãoprestaratenção nelas.Algumaschegavammesmoavirar-sequandoelepassou,masacho quenãoasnotou.Outrora,sódesejavamulheresnovas.Desejava-astão impacientementequecomalgumassófezamorumavez.Comoparaexpiar essaobsessãopelanovidade,essanegligênciaparacomtudoqueera estáveleconstante,essaimpaciênciainsensataqueohaviaprecipitado paradiante,queriavoltar,encontrarnovamenteasmulheresdopassado, repetirseusabraços,iratéofim,explorartudooquenãoforaexplorado. Compreendeuqueasgrandesexcitaçõesencontravam-seagorano passadoeque,sedesejassenovasexcitações,teriadeprocurá-lasno passado. Noprincípio,eleerapudicoesempredavaumjeitodefazeramorno escuro.Noentantoficavasemprecomosolhosbemabertos,afimde perceberaomenosalgumacoisaassimqueumraiodeluzfiltrasseatravés daspersianas. Emseguida,nãosomentehabituou-seàluz,masaexigia.Sepercebesse quesuaparceiraestavacomosolhosfechados,obrigava-aaabri-los. Depois,umdia,constatoucomsurpresaquefaziaamoremplenaluz, masqueseusolhosestavamfechados.Fazendoamor,mergulhavaemsuas lembranças. Noescuro,osolhosabertos. Emplenaluz,osolhosabertos. Emplenaluz,osolhosfechados. Omostradordavida. Elesentoudiantedeumafolhadepapeletentouescrevernumacoluna onomedesuasamantes.Logosofreuaprimeiraderrota.Muitoraras foramaquelasdasquaisconseguiulembraronomeeosobrenome,eem algunscasosnãopodialembrarnemumnemoutro.Asmulheres tornaram-se(discretamente,imperceptivelmente)mulheressemnome.Se tivessemantidouma correspondênciacomessasmulherestalveztivesseretidoseusnomes namemória,porqueteriasidoobrigadoaescrevê-los,muitasvezes,no envelope;mas"alémdoamor",nãosetemohábitodeenviarcartasde amor.Setivessetidoohábitodechamá-laspeloprimeironome,talvez pudesselembrar-se,masdepoisdodesastredasuanoitedenúpcias obrigou-seaempregarsomentenomesafetuososebanais,quequalquer mulheremqualquermomentopodeaceitarsemdesconfiança. Escreveunumameiapágina(aexperiêncianãoexigiaumalista completa),muitasvezessubstituindoosnomesporsinaisqueas diferenciavam("sardas"ou"professora",eassimpordiante),depois tentoureconstituirocurriculumvitaedecadauma.Aderrotafoipior ainda!Nãosabianadasobreavidadelas!Parasimplificaratarefa,limitouseaumaúnicapergunta:quemeramseuspais?Comquaseumaexceção (conheceraopaiantesdafilha),nãotinhaamenorideia,enoentanto essasmulheresdevemnecessariamenteterocupadoumlugar fundamental!Certamenteteriamcontadoaelemuitosobreseuspais!Que valoreleatribuíaàvidadesuasamigas,quandosequerconseguiaos dadosmaiselementaressobreelas? Acabouporadmitir(nãosemalgumconstrangimento)queasmulheres haviamrepresentadoparaeleapenasumaexperiênciaerótica.Agora tentavaaomenosrelembraressaexperiência.Parouporacasonuma mulher(semnome)quenasuafolhahaviadesignadocomo"adoutora".O queaconteceraaprimeiravezquefizeramamor?Reviunaimaginaçãoseu apartamentodaépoca.Malentraram,elasedirigiuparaotelefone;depois, diantedeRubens,desculpou-secomalguémporestarocupadaaquela noitecomumcompromisso inevitável.Riram-sedessadesculpaefizeramamor.Curiosamente, aindaouviaessarisada,masnãoviamaisnadadocoito:ondetinhasido? Sobreotapete?Nacama?Nosofá?Comoelaeraduranteoamor?Quantas vezesencontraram-sedepois?Trêsoutrintavezes?Comodeixaramdese ver?Lembrar-se-iaaomenosdeumapequenapartedasconversas,que deviamterocupadoumasvintehoras,senãoumacentena?Lembrou-se muitoconfusamentequeela,àsvezes,falavanumnoivo(quantoaoteor dessasinformaçõeselecertamenteesquecera).Coisaestranha:onoivofoi aúnicalembrançaqueguardou.Oatodoamorfoientãoparaelemuito menosimportantedoqueaideiaenvaidecedoraefútildecornearum homem. PensouemCasanovacominveja.Nãoemsuasproezaseróticas,das quais,afinaldecontas,muitoshomenssãocapazes,masemsua incomparávelmemória. Quasecentoetrintamulheresarrancadasdoesquecimento,comseus nomes,seusrostos,seusgestos,suasconversas!Casanova:autopiada memória.Emcomparação,quepobrebalanceteodeRubens!Quando,no começodaidadeadulta,renunciaraàpintura,consolou-secomaideiade queoconhecimentodavidaimportava-lhemaisdoquealutapelopoder.A vidadetodosseusamigos,engajadosnaprocuradosucesso,parecia-lhe marcadatantopelaagressividadequantopelamonotoniaepelovazio. Acreditaraqueasaventuraseróticasoconduziriamaocentroda verdadeiravida,davidarealeplena,ricaemisteriosa,sedutorae concreta,queeledesejavaabraçar.Derepenteviuseuerro:apesarde todasasaventurasamorosas,conheciaossereshumanostão precariamentequantoaosquinzeanos.Sempreseorgulharadetervivido intensamente;masessaexpressão"viverintensamente"eraumapura abstração;procurandooconteúdoconcretodessa"intensidade",não descobriusenãoumdesertoondevagavaovento. Oponteirodorelógiomostrou-lhequedaíemdianteseriaassombrado pelopassado.Mascomoserassombradopelopassado,senãosevêali senãoumdesertoondeoventoperseguealgunsfarraposdelembranças? Issoquerdizerqueeleseráassombradoporfarraposdelembranças?Sim. Podemosserassombradosmesmoporfarrapos.Aliás,nãovamos exagerar;semdúvidanãoselembravadenadadeinteressantesobrea jovemdoutora,masoutrasmulheressurgiamdiantedeseusolhoscom insistenteintensidade. Sedigoquesurgem,comoimaginaressesurgimento?Rubens descobriuumacoisabastantecuriosa:amemórianãofilma,fotografa.O queguardaradetodasessasmulheres,namaioriadoscasos,foram algumasfotografiasmentais. Nãoviasuasamigasemmovimentocontínuo;mesmomuitocurtos,os gestosnãoapareciamemsuaduração,masfixosnumafraçãodesegundo. Suamemóriaeróticaoferecia-lheumpequenoálbumdefotografias pornográficas,masnenhumfilmepornográfico.Equandodigoálbum, exagero,poisnototalRubensnãoguardaramaisdoqueseteouoitofotos; essasfotoserambelas,fascinavam-no,masaquantidadedelasera melancolicamentepequena:seteouoitofraçõesdesegundos,eisaoquese reduziunasuamemóriasuavidaeróticaàqualoutroradecidiraconsagrar todasassuasforçasetalento. ImaginoRubensnasuamesa,acabeçaapoiadanamão,lembrandoo pensadordeRodin.Noquepensa?Resignadocomaideiadequesuavida reduziu-seàexperiênciaerótica,eestaaimagensfixas,asetefotografias, queriaaomenosconfiarqueumcantodesuamemóriaretivesseainda algumapartedeumaoitavafoto,umanona,umadécima.Porissoestá sentado,acabeçaapoiadanamão.Evocanovamenteasmulheres,uma depoisdaoutra,tentandoachar,paracadauma,umafotoesquecida. Nodecorrerdesseexercício,fezoutraconstataçãointeressante:teve amantesparticularmenteaudaciosasemsuasiniciativaseróticasemuito atraentesfisicamente;noentanto,nãodeixaramemsuaalmamaisdoque muitopoucasfotosexcitantes,ounenhumafoto.Mergulhandoagoraem suaslembranças,émaisatraídopelasmulheresquetiveraminiciativa eróticamaisveladaedeaparênciadiscreta:asmesmasquenaépocaele haviatalvezsubestimado.Comoseamemóriaeoesquecimentotivessem, depois,passadoporumasurpreendentetransformaçãodetodososseus valores,depreciandonasuavidaeróticatudoqueforavoluntário, intencional,ostentatório,planejado,enquantoqueasaventuras imprevistasaparentementemodestastornavam-seinestimáveisemsua lembrança. Pensanasmulheresquesuamemóriaassimvalorizou:umadelasjá deveterultrapassadoaidadedosdesejos;omododeviverdealgumas outrastornariaosreencontrosdifíceis.Masexisteaviolinista.Nãoavêhá oitoanos.Trêsfotografiasmentaisaparecemdiantedeseusolhos.Na primeiraelaestádepé,aumpassodele,amãoparadanomeiodeum gestoquepareciaquerercobrir-lheorosto.Asegundafotofixavao momentoquandoRubens,amãopousadasobreseuseio,pergunta-lhe: alguémjáatocouassim,eelaresponde"não"ameiavoz,olhandoem frente.Enfim(essaéafotomaisfascinante),eleavêdepéentredois homensdiantedeumespelho,cobrindocomasduasmãososseiosnus. Curiosamente,nastrêsfotosseurosto,beloeimóvel,temomesmo olhar:fixodiantedela,desviando-sedeRubens. Procurouseunúmerodetelefone,queoutroraconheciadecor.Faloulhecomosetivessemsevistonavéspera.EleveioaParis(dessavezsem nenhumaoutrarazão,veiosóparavê-la)ereviu-anomesmohotel,onde, muitosanosantes,elaficaradepéentredoishomens,cobrindocomas duasmãososseiosnus. Aviolinistaaindatinhaamesmasilhueta,amesmagraçade movimentos,eseustraçoshaviamguardadotodasuanobreza.Noentanto algomudara:vistademuitoperto,suapeleperderatodaafrescura. Rubensnãopodiadeixardeperceberisso,mas,curiosamente,os momentosemquereparavaerammuitobreves,apenasalgunssegundos; logodepois,aviolinistaretomavarapidamentesuaprópriaimagem,tal comoestavadesenhadahámuitotemponalembrançadeRubens;elase escondiaatrásdesuaimagem. Aimagem:Rubenssempresoubeoqueera.Escondidoatrásdascostas deumcolega,haviafeitoacaricaturadeumprofessor.Depoislevantouos olhos:animadodeumamímicaperpétua,orostodoprofessornãose pareciaaodesenho.Noentanto,desdequeoprofessorsaiudeseucampo visual,Rubensnãoconseguiuimaginá-lo(oqueaconteciaaindaagora)a nãosercomoaspectodacaricatura.Oprofessordesapareceraparasempre atrásdesuaimagem. Naocasiãodeumaexposiçãoorganizadaporumfotógrafocélebre,viu afotografiadeumhomemque,numacalçada,levantava-secomorosto cobertodesangue.Fotoinesquecíveleenigmática.Quemeraessehomem? Quelheacontecera?Talvezumacidentebanal,pensouRubens:umpasso emfalso,umaqueda;eapresençadespercebidadofotógrafo.Sem desconfiardenada,ohomemlevantou-seelavouorostonumbistrôem frente,antesdeencontrarsuamulher.Nomesmoinstante,naeuforiade seupróprionascimento,suaimagemseparou-sedeleetomouadireção oposta,paraviversuasprópriasaventuras,cumprirseudestino. Podemosnosesconderatrásdenossaimagem,podemosdesaparecer parasempreatrásdenossaimagem,podemosnosseparardenossa imagem:nuncasomosnossaprópriaimagem.Foigraçasatrêsfotos mentaisqueRubens,oitoanosdepoisdetê-lavistopelaúltimavez, telefonouparaaviolinista.Masqueméaviolinistaseparadadesua imagem?Sabiamuitopoucosobreelaenãoqueriasabermais.Imaginoo encontrodosdoisoitoanosdepois:eleestásentadoemfrenteaela,no salãodeentradadeumgrandehotelparisiense.Sobreoqueconversam? Sobretudomenosavidaquelevam.Poisumconhecimentomútuomuito íntimoostornariaestranhosumaooutro,levantandoentreosdoisum murodeinformaçõesinúteis.Nãosabemmaisdoqueomínimonecessário sobreooutro,quaseorgulhososdeteremescondidosuasvidasna penumbratornandodestaformaseusencontrosaindamaisiluminados, extirpadosdotempo,cortadosdetodocontexto. Envolveuaviolinistacomumolharterno,felizemconstatarqueela certamenteenvelheceraumpouco,masestavaaindapróximadesua imagem. Comumaespéciedecinismocomovido,disseasipróprio:ovalorda presençafísicadaviolinistaésuaaptidãodesempreseconfundircomsua imagem. Ecomimpaciênciaeleesperaomomentoemqueelaemprestaráaessa imagemseucorpovivo. Comooutrora,encontraram-seuma,duas,trêsvezesporano.Eosanos passaram.Umdiatelefonou-lheparaavisarqueiriaaParisdentrodeduas semanas.Elarespondeuquenãoteriatempodevê-lo. —Possoadiarminhaviagemumasemana,disseRubens. —Tambémnãotereitempo. —Então,digaquando. —Nãoagora,elarespondeuvisivelmenteconstrangida,nãopoderei pormuitotempo... —Aconteceualgumacoisa? —Não,nada. Osdoisestavampoucoàvontade.Diríamosqueaviolinistadecidiranão overmais,masnãotinhacoragemdedizê-lo.Aomesmotempo,essa hipóteseeratãoimprovável(nenhumasombrajamaistoldaraseuslindos encontros)queRubensfez-lheoutrasperguntas,paracompreendera razãodesuarecusa.Comoorelacionamentodelesdesdeocomeço baseara-senumatotalausênciadeagressividade,excluindomesmo qualquerinsistência,eleevitavaimportuná-la,mesmoquefossecom simplesperguntas. Assim,terminouaconversa,contentando-seemacrescentar: —Possotelefonarnovamente? —Claro!Porquenão?Elarespondeu.Telefonou-lheummêsmais tarde. —Vocêaindaestásemtempoparamever? —Nãofiqueaborrecido.Vocênãotemnadaavercomisso.Fez-lhea mesmaperguntadeantes: —Aconteceualgumacoisa? —Não,nada. Rubenscalou-se.Nãosabiaoquedizer. —Azaromeu,enfimdisse,sorrindomelancolicamenteaotelefone. —Vocênãotemnadacomisso,possolheassegurar.Nãoécomvocê. Écomigo,nãocomvocê! Rubensachouquepodiaperceberalgumaesperançanessas últimaspalavras. —Masentão,issonãotemsentidonenhum!Temosquenosver! —Não,eladisse. —Seeutivessecertezaquevocênãoquermever,nãodiriamaisnada. Masvocêdizquesetratadevocê!Oqueaconteceu?Temosquenos ver!Precisofalarcomvocê! Malpronunciouessaspalavras,pensou:não,eraportatoqueelase recusavaadaraverdadeirarazão,quasesimplesdemais:nãoqueriamais nadacomele.Erasuadelicadezaqueoconstrangia.Porissonãodevia insistir.Tornar-se-iaimportunoeteriainfringidooacordotácitoque tinhamqueosproibiadeexpressardesejosquenãofossempartilhados. Quandoelarepetiu: —Não,porfavor,elenãoinsistiumais. Desligando,lembrou-sederepentedaestudanteaustralianadostênis enormes.Elatambémforaabandonada,porrazõesquenãopôde compreender. Seaoportunidadetivessesurgidoeleateriaconsoladodamesma maneira: —Vocênãotemnadaavercomisso.Nãoécomvocê.Ecomigo. Compreendeuqueseucasocomaviolinistaestavaterminadoeque nuncasaberiaporquê.Ficarianaignorância,comoaaustralianadaboca bonita.OssapatosdeRubensdeagoraemdianteiriamviajarpelomundo comumpoucomaisdemelancoliadoqueantes.Comoosgrandestênisda australiana. Períododemutismoatlético,períododasmetáforas,períododa verdadeobscena,períododotelefoneárabe,períodomístico,tudoisso estavalongenopassado.Osponteirostinhamdadoavoltadomostrador dasuavidasexual. Encontrava-seforadotempodoseumostrador.Encontrar-seforado mostrador,issonãosignificanemofimnemamorte.Jásooumeia-noiteno mostradordapinturaeuropeia,ospintorescontinuamapintar.Quandose estáforadomostrador,issoquerdizersimplesmentequenãoaparecerá maisnadadenovonemdeimportante.Rubensaindasaíacommulheres, maselashaviamperdidotodaaimportânciaparaele.Aqueviamais frequentementeeraajovemG,quesedistinguiapelospalavrõesque gostavadeintercalarnaconversa.Muitasmulheresfaziamomesmo naquelaépoca.Estavanoar.Diziammerda,estoucagando,caralho,para daraentenderquelongedepertenceremàvelhageração,conservadorae bem-educada,eramlivres,emancipadas,modernas.NãoimpedequeG, assimqueRubensatocou,tenhareviradoosolhosparaotetoecaídonum santomutismo.Seuscontatoseramsemprelongos,quaseintermináveis, porqueGsóconseguiachegaraoorgasmodesejadocomavidez,depoisde esforçosmuitolongos.Deitadadecostas,comatestasuandoeocorpo molhado,elatrabalhava.EramaisoumenosassimqueRubensimaginava aagonia:queimandoemfebredesejamosardentementeterminar,maso fimseprolonga,prolonga-seobstinadamente.Asduasoutrêsprimeiras vezes,tentouapressarofimsussurrandoumaobscenidadenoouvidode G,mascomoelalogodesviasseacabeçaemsinaldedesaprovação,daíem dianteficouemsilêncio.Ela,aocontrário(numtomdescontentee impaciente),diziasemprenofimdevinteoutrintaminutos: —Maisforte,maisforte,mais,mais! Enesseinstanteelesedavacontadequenãopodiamais:tinhalhe feitoamorpormuitotempoenumritmomuitorápidoparapoder redobraraintensidade;virandoentãoparaolado,recorriaaum expedientequelhepareciaaomesmotempoaaceitaçãodeumfracassoe umvirtuosismotécnicodignodeumacondecoração:enfiava profundamenteamãonasuabarriga,efetuavacomosdedospoderosos movimentosdebaixoparacima;escorriaumjorro,eraumainundação,ela obeijava,cobrindo-odepalavrasdoces. Seusrelógiosíntimoseramdeploravelmenteassimétricos:quandoele estavainclinadoàternura,elasoltavaseuspalavrões;quandoelequeria palavrões,elamantinhaumsilêncioobstinado;quandoelenecessitava silêncioesono,elatornava-seternaetagarela. Erabonitaetãomaisjovemdoqueele!Rubenssupunha (modestamente)quenãoeraporcausadesuahabilidademanualqueela vinhatodasasvezesqueeleachamava.Tinhaporelaumsentimentode gratidão,porqueduranteoslongosmomentosdetranspiraçãoedesilêncio queelapermitiaqueelepassassesobreseucorpo,elepodiasonharà vontade,comosolhosfechados. UmdiaRubensteveentreasmãosumavelhacoleçãodefotos dopresidenteJohnKennedy:apenasfotoscoloridas,pelomenosumas cinquenta,eemtodas(emtodas,semexceção!)opresidenteestavarindo. Elenãosorria,não,eleria!Suabocaestavaabertaeosdentesdefora.Não havianadaestranhonisso,asfotografiashojesãoassim,masRubensficou mesmosurpresoaoconstatarqueKennedyriaemtodasasfotos,quesua bocanuncaestavafechada. AlgunsdiasdepoisfoiaFlorença.DepédiantedoDaviddeMiguel Ângelo,imaginouaquelerostodemármoretãosorridentequantoode Kennedy.David,esseexemplodebelezamasculina,derepenteficoucom umarimbecil!Desdeentão,pegouohábitodeplantarmentalmenteuma bocarisonhanosrostosdosquadroscélebres;foiumaexperiência interessante:acaretadorisoeracapazdedestruirtodososquadros! Imagine,emvezdosorrisoimperceptíveldaGioconda,umrisoquelhe desnudasseosdenteseasgengivas! Apesardefamiliarizadocomaspinacotecas,àsquaisconsagravao essencialdeseutempo,RubenstevequeesperarpelasfotosdeKennedy parasedarcontadessasimplesevidência:desdeaAntiguidadeatéRafael, talvezatéIngres,osgrandespintoreseescultoresevitaramrepresentaro riso,emesmoosorriso.Éverdadequeosrostosdasestátuasetruscassão todosrisonhos,masessesorrisonãoéumamímica,umareaçãoimediataa umasituação,éumestadoduráveldorostobrilhandodeeternabeatitude. Paraosescultoresantigoscomoparaospintoresdeépocasfuturas,orosto belonãoeraimaginávelanãosernasuaimobilidade. Osrostosnãoperdiamsuaimobilidade,asbocasnãoseabriamanão serqueopintorquisesseapreenderosofrimento.Osofrimentodador:as mulheresinclinadassobreocadáverdeJesus;abocaabertadeumamãe noMassacredosinocentesdePoussin.Ousofrimentocomovício:AdãoeEva deHolbein.Evaestácomorostoinchado,eabocaentreabertadeixaveros dentesqueacabamdemorderamaçã.AoladodelaAdãoaindaéum homemdeantesdopecado:temorostocalmo,abocafechada.NaAlegoria dosvíciosdeCorreggio,todomundosorri!Paraexpressarovício,opintor tevequesacudiratranquilidadeinocentedosrostos,esticarasbocas, deformarostraçoscomosorriso.Nessequadroapenasumpersonagemri: umacriança!Masseurisonãoédefelicidade,comoaqueexibemosbebês nasfotospublicitáriasparaumamarcadechocolateoudefraldas.Essa criançariporqueédepravada! Orisosósetornainocentecomosholandeses:oBufãodeHalsouseu quadroAboêmia.Poisospintoresholandesessãoosprimeirosfotógrafos; osrostosquepintamsãoalémdobeloedofeio.Demorando-senasalados holandeses,Rubenspensavanaviolinistaepensava:aviolinistanãoéum modeloparaFranzHals;aviolinistaéomodelodosgrandespintoresde antigamente,queprocuravamabelezanasuperfícieimóveldorosto. Depoisalgunsvisitantessecomprimiam:todasaspinacotecasdomundo estavamcheiascommultidõesdepessoas,comoantigamenteosjardins zoológicos;osturistas,nafaltadeatrações,olhavamosquadroscomose fossemferasnumajaula.Apintura,pensouRubens,nãoestámaisemsua casanesteséculo,comonãoestáaviolinista;aviolinistapertenceaum mundohámuitotempoesquecidoemqueabelezanãoria. Mascomoexplicarqueosgrandespintorestenhamexcluídoorisodo reinodabeleza?Rubenspensou:orostoébeloquandorefleteapresença deumpensamentoenquantoomomentodorisoéummomentoemque nãosepensamais.Mas,issoseriaverdade?Nãoseriaorisoesseraiode reflexãoqueapreendeocômico?Não,pensouRubens:noinstanteemque apreendeocômico,ohomemnãori;orisosegueimediatamentedepois, comoumareaçãofísica,comoumaconvulsãoemqueospensamentos ficamausentes.Orisoéumaconvulsãodorostoenaconvulsãoohomem nãosedomina,estandoelemesmodominadoporalgumacoisaquenãoé nemavontadenemarazão.Eraporissoqueoescultorantigonão representavaoriso.Ohomemquenãosedomina(ohomemalémdarazão, alémdavontade)nãopodiaserconsideradobelo. Seanossaépoca,contrariandooespíritodosgrandespintores,fezdo risoaexpressãofavoritadorosto,issoquerdizerqueaausênciade vontadeederazãotornou-seoestadoidealdohomem.Podemosobjetar quenosretratosfotográficosaconvulsãoésimulada,portantoconscientee voluntária:Kennedyrindodiantedaobjetivadeumfotógrafonãoestá reagindoabsolutamenteaumasituaçãocômica,masabremuito conscientementeabocaemostraosdentes. Issoapenasprovaqueaconvulsãodoriso(alémdarazãoeda vontade)foieleitapeloshomensdehojecomoimagemidealatrásdaqual escolheramparaseesconder. Rubenspensa:oriso,detodasasexpressõesdorosto,éamais democrática:aimobilidadedorostotornaclaramentediscernívelcada umdostraçosquenosdistinguemdosoutros;masnaconvulsão,somos todosparecidos. UmbustodeJúlioCésarsecontorcendoderiréimpensável.Masos presidentesamericanospartemparaaeternidadeescondidosatrásda convulsãodemocráticadoriso. VoltouaRoma.Nomuseu,demoroumuitotemponasaladepintura gótica.Umdosquadrosofascinava:umaCrucificação.Oqueelevia?No lugardoCristo,viaumamulherquepreparavamparacolocarnacruz. ComooCristo,nãotinhaoutraroupasenãoumtecidobrancoemvoltados rins.Seuspésapoiavam-senumsuportedemadeira,enquantoos carrascos,comcordasgrossas,amarravamseustornozelosnosbarrotes demadeira.Erguidanoaltodeummonte,acruzeravisíveldetodaparte. Emvolta,umamultidãodesoldados,depessoasdopovoedecuriosos, olhavaamulherexibida.Eraaviolinista. Sentindotodososolharespregadosnoseucorpo,haviacobertoseus seioscomaspalmasdasmãos.Asuadireitaeàsuaesquerdaerguiam-se duasoutrascruzes,cadaumacomumladrão.Oprimeiroinclinava-separa ela,seguravaumadesuasmãose,afastando-alentamentedeseupeito, abria-lheobraçoatéaextremidadedatravetransversal.Osegundo apanharaaoutramãoefaziaomesmomovimentoaofimdoquala violinistaestavacomosdoisbraçosafastados. Durantetodaaoperação,seurostopermaneciaimóvel.Olhava fixamentealgumacoisaaolonge.Rubenssabiaquenãoeraohorizonte, masumgigantescoespelhoimaginárioinstaladoemfrentedela,entreo céueaterra.Vianelesuaimagem,aimagemdeumamulheremcruzcom osbraçosafastadoseosseiosnus.Expostaàimensamultidão,vociferante, bestial,elaestavatãoexcitadaquantotodasaquelaspessoasese observavacomoelesprópriosaobservavam. Rubensnãopodiaafastarosolhosdeumtalespetáculo. Quandofinalmenteconseguiu,pensouqueessemomentodeveriaentrar nahistóriareligiosacomonomedeAvisãodeRubensemRoma.Atéde noiteficousobainfluênciadesseinstantemístico.Jáháquatroanosnão telefonaraparaaviolinista,masdessaveznãoresistiu.Assimquechegou aohotel,pegouotelefone.Dooutroladodalinhaouviuumavozfeminina quenãoconhecia. Perguntounumtomumpoucohesitante: —PossofalarcomMadame...?Edeuonomedomarido. —Sim,soueu,disseavoz. Pronunciouentãooprimeironomedaviolinista;avoz femininarespondeu-lhequeamulherqueeleprocuravaestavamorta. —Morta? —Sim,Agnèsmorreu.Quemqueriafalarcomela? —Umamigo. —Possosaberquem? —Não,edesligou. Nocinema,quandoalguémmorre,logoouvimosumamúsicatriste,mas emnossasvidas,quandomorrealguémqueconhecemos,nãoouvimos nenhumamúsica.Muitorarassãoasmortesquepodemrealmentenos perturbarprofundamente:duasoutrêsnodecorrerdeumavida,não mais.Amortedeumamulherqueeraapenasumepisódiosurpreendeu Rubenseoentristeceu,masnãooperturbou,aindamaisqueessamulher saíradesuavidaquatroanosantesequenaépocaeleseconformaracom isso. Seessamortenãotornavaaviolinistamaisausentedoqueera,no entantoalteravatudo.Todasasvezesquepensavanela,Rubensnãopodia deixardeseperguntaroqueteriaacontecidocomseucorpo.Teriasido postonumcaixãoeenterrado?Teriasidocremado?Lembrava-sedeseu rostoimóvelcomosgrandesolhosqueseolhavamnumespelho imaginário.Viaaspálpebrassefechandolentamente:derepenteeraum rostomorto.Peloprópriofatodesserostosertãotranquilo,apassagemda vidaparaanão-vidaeraimperceptível,harmoniosa,bela.MasRubens depoisimaginouoqueteriaacontecidocomesserosto.Efoihorrível. Gveiovê-lo.Comosempreentregaram-seasuascaríciassilenciosas, comosempreduranteessesmomentosintermináveisaviolinistasurgiuem seuespírito:comosempre,ficavaemfrentedoespelho,osseiosnus,e contemplava-secomumolharimóvel.DerepenteRubensachouqueela estavamortatalvezhádoisoutrêsanos;queoscabelosjáestavam descoladosdocrânioequeasórbitasjáestavamcavadas.Queriaselivrar dessaimagem,senãonãopoderiacontinuarfazendoamor.Expulsoua lembrançadaviolinista,decididoaconcentrar-seemG,emseufôlegoque seacelerava,masseuspensamentosrecusavam-seaobedecerecomoque depropósitopunhamdiantedeseusolhosaquiloquenãoqueriaver.E quandoeles,enfim,resolveramobedecer-lheeparardemostrar-lhea violinistanoseucaixão,elesamostraramnomeiodaschamas,numa posturaprecisaqueeleconheciaporouvirdizer:ocorpoqueimadose empertigava(soboefeitodeumamisteriosaforçafísica)detalformaque aviolinistaseencontravasentadanoforno.Bemnomeiodessavisãode umcadáverqueimandosentado,umavozdescontenteemisteriosaecoava derepente: —Maisforte,maisforte,mais,mais! Rubenstevequeinterrompersuascarícias.PediuaGquedesculpasse suamáforma. Entãopensou:detudoquevivi,sómeficouumafotografia.Talvezela reveleoquehádemaisíntimo,demaisprofundamenteescondidona minhavidaerótica,aquiloquecontémsuaprópriaessência.Talvezsó tenhafeitoamor,nestesúltimostempos,parapermitirqueessafoto reviva.Enomomentoessafotoestáemchamas,eobelorostotranquilose crispa,seretorce,escureceecaiemcinzas. GdeviavoltarnasemanaseguinteeRubensinquietava-se antecipadamentecomasimagensqueoobcecavamduranteoamor. Esperandoexpulsaraviolinistadeseuespírito,sentouantesuamesa,a cabeçaentreasmãos,ecomeçouaprocurarnasuamemóriaoutrasfotos quepudessemsubstituiradaviolinista.Conseguiualgumas,eficouaté agradavelmentesurpresoporachá-lasbelaseexcitantes.Massabia,bem noseuíntimo,quesuamemóriairiaserecusaramostrá-lasquandofizesse amorcomGequeemseulugar,comonumabrincadeiramacabra, empurrariasub-repticiamenteaimagemdaviolinistasentadanomeiode umbraseiro.Tinhaenxergadocerto.Aindadestavez,duranteoamor,teve quepedirdesculpasaG. Elesedisse,então,quenãopoderialhefazermalinterromperpor algumtemposuasrelaçõescomasmulheres.Aténovaordem,comosediz. Massemanaapóssemana,essapausaprolongou-se.Finalmenteumdiase deucontadequenãohaveriamais"novaordem". SétimaParte Acelebração Nasaladeginástica,hámuitotempograndesespelhosrefletiambraços epernasemmovimento;depoisdeseismeses,sobainfluênciade imagólogos,osespelhostambéminvadiramtrêsparedesdapiscina,a quartaostentandoumaimensavidraçadeondesepodiaverostetosde Paris.Estávamosderoupadebanho,sentadosnumamesapertodapiscina ondenadadoresarquejavam.Nomeiodamesaumagarrafadevinho,que eupediraparacelebrarumaniversário. Avenariusnemtinhatidotempodemeperguntardequeaniversário setratava,jáqueestavaabsorvidoporumanovaideia: —Imaginequevocêtenhaqueescolherentreduaspossibilidades. Passarumanoitedeamorcomumabelamulherconhecidamundialmente, umaBrigitteBardotouumaGretaGarbo,comaúnicacondiçãodeque ninguémjamaissaibadisso;ouentãopassearcomelanaavenidaprincipal desuacidadenatal,obraçosobreseusombros,comaúnicacondiçãode jamaisdormircomela.Gostariadesaberaporcentagemexatadonúmero depessoasqueoptariamporumaououtrapossibilidade.Issoexigeum métodoestatístico.Procureialgumasempresasdesondagens,masnãome deramnenhumaresposta. —Nãoseiatéquepontodeve-selevarasériooquevocêfaz. —Tudooquefaçodeveserlevadocompletamenteasério. —Imaginovocê,porexemplo,empenhadoemexporaosecologistas seuplanodedestruiçãodosautomóveis.Vocênãopodeacreditarqueo aceitariam! Fizumapausa.Avenariusficouquieto. —Vocêachaqueiriamaplaudi-lo? —Não,disseAvenarius,nuncapenseiisso. —Então,porqueexpôsseuprojetoaeles?Paradesmascará-los?Para provarqueapesardeseusgestosdecontestaçãoelesfazempartedaquilo quevocêchamadeSatânia? —Nadademaisinútil,disseAvenarius,doquetentarprovarqualquer coisaaosimbecis. —Restasóumaexplicação:vocêquisfazerumabrincadeiracomeles. Masnessecasotambémseucomportamentomeparecesemlógica: afinaldecontas,vocênãoimaginouquealguémiriacompreendê-loe começariaarir! Avenariusfeznãocomacabeçaedissecomumacertatristeza: —Nãoimagineiisso.Satâniasecaracterizaporumaabsolutafaltade humor.Láocômico,emboraexista,tornou-seinvisível.Fazerbrincadeiras nãotemmaissentido. Acrescentou: —Estemundolevatudoasério.Amiminclusive,oqueéocúmulo. —Aocontrário,tenhoaimpressãodequeninguémlevanadaasério! Todomundoquersedivertir,maisnada! —Éamesmacoisa.Quandooburrototalforobrigadoaanunciarno rádioocomeçodeumaguerraatômicaouum'terremotoemParis,faráo possívelparaserengraçado.Talvezestejaprocurandodesdeagora trocadilhosparaessasocasiões.Masissonãotemnadaavercomosentido docômico.Poisoqueécômico,nessecaso,éohomemqueprocura trocadilhosparaanunciarumterremoto.Ora,ohomemqueprocura trocadilhosparaanunciarumterremotolevasuaspesquisasasérioenão temamenordúvidadequeéengraçado.Ohumorsópodeexistirondeas pessoasaindavislumbramafronteiraentreoqueéimportanteeoque nãoé.Hoje,essafronteiraéindiscernível. Conheçobemmeuamigoefrequentemente,sóparamedivertir,imito suamaneiradefalar,façominhasassuasideiaseobservações;noentanto, nãooentendo.Seucomportamentomeagradaefascina,masnãoposso dizerqueocompreendainteiramente.Umdia,tenteiexplicar-lhequea essênciadeumhomemnãoécompreensívelanãoserporumametáfora. Pelobrilhoreveladordeumametáfora.Desdequeoconheciprocuroa metáforaqueodescreva,mepermitindoassimcompreendê-lo. —Senãofoiparafazerumabrincadeira,porqueentãoexpôsseu plano? Porquê? Antesquepudessemeresponder,umaexclamaçãodesurpresanos interrompeu: —ProfessorAvenarius!Masépossível? Vindodaporta,umbonitohomemcomroupadebanho,podendoter entrecinquentaesessentaanos,dirigiu-separanossamesa. Avenariuslevantou-se.Aparentementeemocionados,tantoumcomoo outro,apertaram-seasmãoslongamente. DepoisAvenariusapresentou-o.Compreendiquenaminhafrente estavaPaul. Elesentou-seànossamesa;Avenariusindicou-mecomumgesto amplo: —Vocênãoconheceseusromances?!Avidaestáemoutrolugar.É precisolê-lo!Minhamulherdissequeéexcelente! SubitamenteiluminadocompreendiqueAvenariusnuncalerameu romance:quandoháumcertotempoforçou-mealevar-lheumexemplar, eraporquesuamulhersofriadeinsôniaeprecisavaconsumirnacama livrosaosquilos.Fiqueitriste. —Vimrefrescarminhasideiasnaágua,Pauldisse.—Percebeuentão ovinhoeesqueceuaágua. —Oquevocêsestãotomando? Apanhouagarrafaeleuaetiquetacomatenção.Depoisacrescentou: —Estoubebendodesdedemanhã. Issonotava-se,efiqueisurpreso.NuncapenseiquePaulfosseum bêbado.Pediaogarçomquetrouxesseumterceirocopo. Começamosafalardeumacoisaeoutra.Comdiversasalusõesameus romances,queelejamaislera,AvenariusprovocouPaulafazeruma observaçãocujafaltadecortesiaàminhapessoamedeixouumtanto sentido. —Eunãoleioromances.Asmemóriasparecem-memaisdivertidas, maisinstrutivas.Easbiografias!UltimamentelilivrossobreSalinger,sobre Rodin,sobreosamoresdeFranzKafka.Eumaestupendabiografiasobre Hemingway! Ah!Esseaí,queimpostor.Quementiroso.Quemegalômano,dissePaul rindocomvontade.Queimpotente.Quesádico.Quemachão.Que erotômano.Quemisógino. —Sevocê,comoadvogado,estádispostoadefenderassassinos,eu disse,porquenãodefendeosautoresque,àparteseuslivros,nãotêm culpadenada? —Porquemeirritam,dissePaulalegremente,ebotouvinhonocopo queogarçomacabaradecolocardiantedele. —MinhamulheradoraMahler,prosseguiu.Elamecontouquequinze diasantesqueeletocassepelaprimeiravezsuaSétimasinfonia,trancousenumbarulhentoquartodehotel,edurantetodaanoitetrabalhou novamenteaorquestração. —Sim,eudisse,eraooutonode1908,emPraga.Ohotelchamava-se L'ÉtoileBleu. —Euoimaginomuitasvezesnessequartodehotelentreaspartituras, prosseguiuPaulsemsedeixarinterromper,eestouconvencidodequesua obraseriaumfracassose,nosegundomovimento,amelodiafossetocada peloclarineteenãopelooboé. —Éexatamenteisso,eudisse,pensandonomeuromance.Paul continuou: —Eugostariaqueessasinfoniafossetocadadiantedeumpúblicode grandesconhecedores;primeirocomascorreçõesdosúltimosquinzedias, depoissemelas.Apostoqueninguémpoderiadistinguirumaversãoda outra. Compreenda:écertamenteadmirávelqueomotivoexecutadono segundomovimentoporumviolinosejarepetidonoúltimomovimentopor umaflauta. Cadacoisaestáemseulugar,tudoétrabalhado,pensado, experimentado,nadafoideixadoaoacaso;masessagigantescaperfeição nosultrapassa,ultrapassaacapacidadedenossamemória,nossa capacidadedeconcentração,tantoquemesmooouvintemais fanaticamenteatentonãoperceberádessasinfoniasenãoacentésima partedoqueelacontém,emais,acentésimapartemenosimportanteaos olhosdeMahler! Essaideia,evidentementejusta,deixava-oalegreenquantoeuficava cadavezmaistriste:seoleitorpularumasófrasedemeuromance,não compreenderánada;noentanto,qualéoleitorquenãopulalinhas?Eu mesmonãosouomaiorpuladordelinhasedepáginas? Paulprosseguiu: —Nãocontestoaperfeiçãodetodasessassinfonias.Contestosomente aimportânciadessaperfeição.Essassinfoniasarqui-sublimesnãosão senãocatedraisdoinútil.Sãoinacessíveisaohomem.Sãodesumanas. Sempreexageramossuaimportância.Elasnosderamumasensaçãode inferioridade.AEuropareduziuaEuropaacinquentaobrasgeniais,que elanuncacompreendeu. Vocêdevesedarcontadessarevoltantedesigualdade:milhõesde europeusquenãorepresentamnada,diantedecinquentanomesque representamtudo!Adesigualdadedasclasseséumacidentemenor, comparadoaessadesigualdademetafísicaquetransformaunsemgrãos deareia,enquantoaosoutrosconcedeosentidodoser. Agarrafaestavavazia.Chameiogarçomparapediroutra.Oresultado foiquePaulperdeuofiodoassunto. —Vocêfalavadosbiógrafos,—cochichei-lhe. —Ah!sim,lembrou-se. —Enfim,vocêestavaradiantedepoderleracorrespondênciaíntima dosmortos. —Eusei,eusei,dissePaul,comosequisesseanteciparasob-jeçõesda partecontrária: —Creia-me:domeupontodevista,remexeracorrespondênciaíntima, interrogarex-amantes,convencermédicosatraíremosigilomédico,é nojento.Osbiógrafossãoaescória,eeujamaispoderiamesentaràmesa comeles,comofaçocomvocês.Robespierretambémnãoteriasesentadoà mesacomaescóriaquepilhavaetinhaorgasmoscoletivosdeleitando-se comasexecuções.Massabiaquenadasefazsemaescória.Aescóriaéo instrumentodojustoódiorevolucionário! —OqueháderevolucionárioemodiarHemingway?—perguntei. —NãoestoufalandodoódioporHemingway!Falodesuaobra.Falo dasobrasdeles!Épreciso,enfim,dizeremvozaltaquelersobre HemingwayémilvezesmaisdivertidoeedificantedoquelerHemingway. ÉprecisoprovarqueaobradeHemingwaynãoénadamaisdoqueavida deHemingwaycamuflada,equeessavidaétãoinsignificantequantoade qualquerumdenós.ÉprecisocortarempedacinhosasinfoniadeMahler eusá-lacomomúsicadefundoparaumanúnciodepapelhigiênico.É precisoacabardeumavezportodascomoterrordosimortais.Abatero poderarrogantedetodasasNonassinfoniasedetodososFaustos! Inebriadocomseuprópriodiscurso,levantou-se,ocoponamão: —Querobebercomvocêsofimdeumaépoca. Nosespelhosqueserefletiammutuamente,Paulestavamultiplicado vinteesetevezesenossosvizinhosdemesaolhavamcomcuriosidadesua mãoerguendoocopo.Doishomensquesaíamdaáguadeumtanquecom ondaspertodapiscinatambémseimobilizaramsemconseguirtiraros olhosdasvinteesetemãosdePaulsuspensasnoar.Primeiroacheique eleestavaassimpetrificadoparadarmaissolenidadeaoquedizia,mas depoispercebiumamulherdemaioqueacabavadeentrarnasala:uma mulherdeunsquarentaanos,rostobonito,pernasumpoucocurtasmas perfeitamentedesenhadas,traseiroexpressivo,apesardeumpouco grande,apontandoparaochãocomoumagrandeseta.Foiporcausadessa setaqueareconheci. Elanãonosviulogoedirigiu-separaapiscina.Masnósafixamostão intensamentequenossoolharacaboucaptandoodela.Elaenrubesceu.É bonitoquandoumamulherenrubesce;nessemomentoseucorponãolhe pertence;elanãoodomina;estáàmercêdele;nadaémaisbelodoqueo espetáculodeumamulhervioladaporseuprópriocorpo!Começavaa compreenderporqueAvenariustinhaumfracoporLaura.Repareinele: seurostocontinuavaperfeitamenteimpassível.Essecontroledesime pareciatraí-loaindamaisdoqueoruborhaviatraídoLaura. Elacontrolou-seeaproximou-sedenossamesa.Levantamo-nosePaul nosapresentouàsuamulher.ContinueiaobservarAvenarius.Elesaberia queLauraeramulherdePaul?Parecia-mequenão.Talcomooconhecia, deveriaterdormidocomLauraumasóvezedesdeentãonãoadeveriater vistomais. Masnãoestavaabsolutamentecertodisso,eafinaldecontas,não estavacertodenada.Quandoelalheestendeuamão,inclinou-secomosea encontrassepelaprimeiravez.Laurafoiembora(depressademais, pensei)emergulhounapiscina. DerepentePaulperderatodaanimação. —Estoucontentequevocêsatenhamconhecido,—disse melancolicamente.—Comosediz,éamulherdaminhavida.Deveriame felicitar.Avidaétãocurtaqueamaioriadaspessoasnãoencontranuncaa mulherdesuasvidas. Ogarçomtrouxeumaoutragarrafa,abriunanossafrente,despejou vinhoemnossoscopos,demodoquePaulperdeudenovoofio. —Vocêestavafalandodamulherdasuavida,eusoprei-lhequandoo garçomseafastou. —É,disseele.Temosumbebêdetrêsmeses.Tenhoumaoutrafilhado primeirocasamento.Saiudecasaháumano.Semdizerumapalavrade adeus.Sofricomisso.Ficoumuitotemposemdarnotícias.Hádoisdias voltou,porqueonamoradoadeixou.Depoisdeterlhefeitoumfilho...Uma menina.Carosamigos,tenhoumaneta!Sãoquatromulheresemvoltade mim! Aimagemdessasquatromulherespareciaenchê-lodealegria: —Éporissoqueestoubebendodesdedemanhã.Beboaosnossos reencontros!Beboàsaúdedeminhafilhaedeminhaneta! Doladooposto,napiscina,Lauranadavaemcompanhiadeduas mulheres,ePaulsorria.Eraumestranhosorrisocansado,queme inspiravacompaixão.Parecia-mederepentevelho.Suacabeleiracinzenta, forte,derepentesetransformanopenteadodeumavelhasenhora.Como sequisessesuperarumacessodefraqueza,levantou-sedenovo,como coponamão. Enquantoisso,napiscina,osbraçosbatiamnaáguacomgranderuído. Comacabeçaparaforadaágua,Lauranadavacrawldesajeitadamente, mascomzelo,atécomraiva. CadaumdessesgolpespareciacairnacabeçadePaulcomoumano suplementar:envelheciaaolhosvistos.Estavacomsetentaanos,logocom oitenta,enoentantoempertigava-seerguendoseucopocomoparase protegerdessaavalanchedeanosquecaíanasuacabeça: —Lembro-medeumafrasecélebrequemerepetiamnaminha mocidade,eledissecomumavozderepentecansada.Amulheréofuturo dohomem.Aliás,quemdisseisso?Nãomelembromais.Lenine?Kennedy? Não,umpoeta. —Aragon,—eusoprei. Avenariusdissesemrodeios:—Oquequerdizeramulheréofuturo dohomem?Queoshomensvãosetornarmulheres?Nãocompreendoessa fraseestúpida! —Nãoéumafraseestúpida!Éumafrasepoética!—dissePaul. —Aliteraturavaidesaparecer,easestúpidasfrasespoéticasvão continuarerrandopelomundo?—Eudisse. Paulnãoprestouamenoratenção.Acabavadeenxergarseurosto repetidovinteesetevezesnosespelhos:nãoconseguiatirarosolhosdisso. Virando-sesucessivamenteparatodososrostosrefletidos,dissecom umavozfracaeesganiçadademulhervelha: —Amulheréofuturodohomem.Issoquerdizerqueomundo, outroracriadoàimagemdohomem,irámodelar-sesobreaimagemda mulher.Quantomaistornar-semecânicoemetálico,técnicoefrio,mais teránecessidadedocalorqueapenasamulherpodedar.Sequisermos salvaromundo,devemosnosmodelarsobreamulher,deixar-nosguiar pelamulher,deixarmo-nosinfiltrarpeloEwigweibliche,peloeterno feminino! Comoqueexaustoporessaspalavrasproféticas,Paultinhaganho aindaalgunsdecêniosamais,nomomentoeraumvelhinhofracodecento evinte,centoesessentaanos.Nãopodendonemmaissegurarseucopo, jogou-senumacadeira.Depoisdisse,sinceroetriste: —Elavoltousemmeavisar.EladetestaLaura.ELauradetestaminha filha.Amaternidadetornou-asaindamaiscombativas.Estárecomeçando,a barulheiradeMahlernumasala,abarulheiradorocknaoutra.Está recomeçando,elasmeobrigamaescolher,medirigemultimatos. Começaramumabriga.Equandoasmulheresbrigam,nãoparammais. Depoisinclinou-separanós,confidencialmente:—Carosamigos,não melevemasério.Oquevoudizeragoranãoéverdade.—Baixouavoz comosenoscomunicasseumgrandesegredo:—Foiumasorteenorme queasguerrastenhamsidofeitaspeloshomens.Seasmulherestivessem feitoaguerra,teriamsidotãopersistentesnasuacrueldadequenão sobrarianenhumserhumanosobreoplaneta. Ecomosequisessenosfazeresquecerlogooquedissera,bateucomo punhonamesaelevantouavoz:—Carosamigos,gostariaqueamúsica nuncativesseexistido!GostariaqueopaideMahler,depoisdeter surpreendidoofilhosemasturbando,tivesselhedadoumtapatãofortena orelhaqueopequenoGustavetivesseficadosurdoeincapazparasempre dedistinguirumviolinodeumtambor.Egostariaporfimquesedesviasse acorrenteelétricadetodasasguitarraselétricasequeasinstalassemem cadeirasnasquaisseriampresospessoalmenteosguitarristas. Depoisacrescentoucomumavozquemalseouvia:—Meusamigos, gostariadeestaraindadezvezesmaisbêbadodoqueestou! Eleestavacaídonacadeiraeesseespetáculoeratãotristequenosera impossívelsuportá-lo.Levantamo-nosparadar-lheunstapasnascostas. Enquantofazíamosisso,vimosquesuamulherhaviasaídodaáguae quenoscontornavaparachegaratéaporta.Fingianãonosver. EstariaaborrecidacomPaul,apontoatéderecusar-lheumolhar?Ou elaestariaconstrangidadeterencontradoinesperadamenteAvenarius? Dequalquermaneirasuaposturatinhaalgumacoisadetãoforteetão atraentequeparamosdebaternascostasdePaul,etodostrêsolhamos emdireçãodeLaura. Quandoestavaadoispassosdaporta,produziu-seumacoisa inesperada:elaviroubruscamenteacabeçaparanossamesaelançouo braçoparaoar,comummovimentotãoleve,tãoencantador,tãorápido, quepareceu-nosverumbalãodouradovoardeseusdedoseficar suspensoacimadaporta. LogoapareceuumsorrisonorostodePaul,queseguroufortementeo braçodeAvenarius: —Vocêviu?Viuessegesto? —Vi,—disseAvenarius,oolharfixonobalãodouradoquebrilhavano tetocomoumalembrançadeLaura. ParamimerabemclaroqueogestodeLauranãoeradestinadoao maridobêbado.Nãoeraogestomaquinaldo"atélogo"cotidiano,eraum gestoexcepcionalericodesignificado.SópoderiaserdirigidoaAvenarius. NoentantoPaulnãosuspeitavadenada.Comopormilagre,osanos caíramdoseucorpoeeletornou-seumbelohomemdecinquentaanos, orgulhosodesuacabeleiragrisalha.Olhouemdireçãodaporta,acimada qualbrilhavaobalãodourado,edisse: —Ah,Laura!Ébemdela!Ah,essegesto!Elearesumeporinteiro! Depoisnosfezumrelatoemocionado: —Aprimeiravezquemesaudouassimeualevavaparaa maternidade.Parateracriança,tevequesesubmeteraduasoperações. Tínhamosmedoquandopensávamosnoparto.Paramepoupardetanta emoção,proibiu-medeficarcomelanaclínica.Fiqueipertodocarro,ela dirigiu-sesozinhaparaaporta,echegandonaentrada,exatamentecomo acaboudefazer,virouacabeçaemefezessegesto.Devoltaacasa, sentimehorrivelmentetriste,elamefaziafalta,tantoqueparavoltara sentirsuapresençatenteiimitar,paramimmesmo,obelogestoqueme encantara.Sealguémmevissenessemomentoteriarido.Fiqueidecostas pertodeumgrandeespelho,lanceiosbraçosparaoar,olhandoporcima domeuombroparamesorrir.Fizissotrinta,cinquentavezestalvez,e pensavanela.Eraaomesmotempoelaquemesaudavaeeuqueaolhava mesaudando.Masquecoisaestranha,essegestonãocombinavacomigo. Ficavacomessegestoirremediavelmentedesajeitadoecômico. Levantou-seenosdeuascostas.Depoislançouosbraçosparaoar, lançando-nosumolharporcimadoombro.Sim,tinharazão:estavacômico. Caímosnagargalhada.Oqueoencorajouarepetirogestomuitas vezes.Estavacadavezmaiscômico. Depoisdisse:—Sabem,essegestonãoconvémaumhomem,éum gestodemulher.Comessegestoamulhernosdiz:vem,siga-me,evocê nãosabeparaondeelaconvidaeelatambémnãosabe,masconvidaassim mesmo,convencidadequevaleapenasegui-la.Éporissoquedigo:ou bemamulherseráofuturodohomem,oubemacabaráahumanidade, poissóumamulherpodeguardaremsiumaesperançaquenadajustifica, enosconvidarparaumfuturoduvidosonoqualsemasmulhereshámuito tempojáteríamosdeixadodeacreditar.Todaminhavidaestiveprontoa seguiravozdelas,mesmoquesejaumavozlouca,quandosoutudomenos louco.Masparaquemnãoélouco,nadaémaisbelodoquedeixar-selevar paraodesconhecidoporumavozlouca!Repetiuentãocomsolenidadeas palavrasalemãs:DasEwigweiblicheziehtunshinan!Oeternofemininonos conduzparaoalto! Comoumorgulhosogansobranco,oversodeGoethebatiaasasas sobreaabóbadadapiscina,enquanto,refletidopelostrêsimensos espelhos,Pauldirigiu-separaaportaacimadaqualbrilhavasempreo balãodourado. Finalmente,viPaulsinceramentefeliz.Deualgunspassos,viroua cabeçaemnossadireçãoelançouumbraçoparaoar.Estavarindo.Mais umavez,virou-se:maisumavez,saudou-nos.Edepoisdaúltimae desajeitadaimitaçãodessebelogestofeminino,desapareceuatrásda porta. Eudisse:—Eleexplicoubemessegesto,masachoqueseenganou. Lauranãoconvidouninguémparaseguircomelaparaofuturo,quis apenasfazervocêselembrarqueelaestavaaquiequeesperaporvocê. Avenariuscalou-seeseurostoeraimpenetrável.Eudisseemtomde censura: —Vocênãotempenadele? —Sim,—respondeuAvenarius.Gostosinceramentedele.Éinteligente. Eengraçado.Ecomplicado.Etriste.Esobretudo,nãoesqueça:ajudou-me! —Depoisinclinou-separamim,comosenãoquisessedeixarsemresposta minhacensurasubentendida.—Conteiavocêmeuprojetodepesquisa: perguntaràspessoassepreferemdormirsecretamentecomRita Hayworthoumostrar-seempúblicocomela.Oresultado,claro,jásesabe: todomundo,atéoúltimodospobrescoitados,fingiráquererdormircom ela.Poisaseusprópriosolhos,aosolhosdesuasmulheres,deseusfilhos,e mesmoaosolhosdofuncionáriocarecadaempresadepesquisas,querem passarporhedonistas.Maséumailusãodeles.Cabotinismodeles.Hojeem dia,nãoexistemmaishedonistas.Pronunciouestasúltimaspalavrascom umacertagravidade,depoisacrescentousorrindo:—Excetoeu.E continuou:—Pormaisquedigam,setivessemrealmenteescolha,estou certodequetodasessaspessoas,todas,emvezdanoitedeamor, prefeririamumpasseionapraça.Poiséaadmiraçãoquecontaparaeles,e nãoavolúpia.Aaparência,enãoarealidade.Arealidadenãorepresenta maisnadaparaninguém.Paraninguém.Parameuadvogado,elanão representaabsolutamentenada. Depois,dissecomumaespéciedeternura:—Éporissoqueprometo solenementequenadadedesagradávellheacontecerá;elenãosofrerá nenhumprejuízo:oschifresqueteráserãoinvisíveis.Comotempobom serãoazuis,eserãocinzentosnosdiasdechuva. Eaindaacrescentou:—Nenhummarido,aliás,desconfiariaqueum homemqueviolaasmulherescomumafacanamãosejaamantedesua mulher.Essasduasimagensnãocombinam. —Uminstante,—eudisse.—Eleacreditarealmentequevocêviolou mulheres? —Estoudizendoquesim. —Pensavaquefosseumabrincadeira. —Vocêachaporacasoqueeureveleimeusegredo?—Eacrescentou: —Mesmoqueeutivesseditoaverdade,elenãoteriameacreditado,ese acabasseacreditando,imediatamentedeixariameucaso.Écomoum violentadorqueeuointeresso.Sentepormimesseamormisteriosoqueos grandesadvogadosdedicamaosgrandescriminosos. —Masqueexplicaçãovocêdeuaele? —Nenhuma.Fuiabsolvidoporfaltadeprovas. —Como,faltadeprovas?Eafaca? —Nãonegoquefoidifícil,—disseAvenarius,ecompreendiquenão mediriamaisnada. Deixeipassarumlongosilêncio,depoisdisse:—Pornadanomundo vocêcontariaahistóriadospneus? Elefezquenãocomacabeça. Umaestranhaemoçãotomoucontademim:—Vocêestavaprontoa serpresocomoviolentadorunicamenteparanãotrairojogo. Derepente,compreendiAvenarius:senosrecusamosadar importânciaaummundoqueseconsideraimportante,esenão encontramosnessemundonenhumecoparanossoriso,sónosrestauma solução:tomaromundocomoumbloco,etransformá-lonumobjetopara nossojogo;transformá-lonumbrinquedo. Avenariusjoga,eojogoéaúnicacoisaquelheimportanummundo semimportância.Masessejogonãofaráninguémrir,eelesabedisso. Quandoexpôsseusprojetosaosecologistas,nãofoiparadiverti-los.Foi parasuaprópriadiversão. Eulhedisse: —Vocêbrincacomomundocomoumacriançamelancólicaquenão temumirmãozinho. Éessa!ÉessaametáforaqueprocurohámuitotempoparaAvenarius! Atéqueenfim! Avenariussorriucomoumacriançamelancólica.Depois,disse: —Nãotenhoumirmãozinhomastenhovocê.Levantou-se,tambémme levantei;pareciaquedepoisdasúltimaspalavrasdeAvenariussónos restavaumabraço.Nósnosdemoscontadequeestávamosdecalção,e ficamoscommedodeumcontatoíntimodasnossasbarrigas.Comumriso constrangidofomosparaosvestiáriosondeumavozdemulher,estridente eacompanhadaporumaguitarra,gritavatãoaltonosalto-falantes,que nossavontadedeconversarterminou.Entramosnoelevador.Avenarius dirigiu-separaosegundosubsolo,ondeestacionarasuaMercedes,eeu descinotérreo.Emcincoenormescartazespregadosnohall,cincorostos diferentesmeolhavamarreganhandoigualmenteoslábios.Tivemedoque memordessemesaíparaarua. Aruaestavalotadadecarrosquebuzinavamsemparar.Asmotos subiamnascalçadaseforçavampassagementreospedestres.Penseiem Agnès.Hádoisanos,dia,apósdiaeuaimaginarapelaprimeiravez; esperavaentãoAvenariusnumaespreguiçadeiradoclube.Foiporissoque hojepediumagarrafa.Meuromanceestavaterminado,equeria comemorá-loali,ondenascerasuaprimeiraideia. Oscarrosbuzinavam,ouviam-segritosderaiva.Nessemesmo ambiente,outrora,Agnèsdesejaracomprarumramodemiosótis,uma únicaflordemiosótis;desejarasegurá-ladiantedeseusolhoscomoo últimotraço,quaseinvisível,dabeleza. FIM