“PARATODOS”: da banda que passa ao leite que se derrama

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE FLUMINENSE DARCY RIBEIRO
Programa de Pós-Graduação em Cognição e Linguagem
LUCIANA FERREIRA TAVARES
CHICO BUARQUE “PARATODOS”:
da banda que passa ao leite que se derrama
Campos dos Goytacazes
2012
LUCIANA FERREIRA TAVARES
CHICO BUARQUE “PARATODOS”:
da banda que passa ao leite que se derrama
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Cognição e Linguagem da
Universidade Estadual do Norte Fluminense
Darcy Ribeiro, como parte dos requisitos para
obtenção do título de Mestre em Cognição e
Linguagem.
Orientadora: Prof.ª Dra. Arlete Parrilha Sendra.
Campos dos Goytacazes
2012
FICHA CATALOGRÁFICA
Preparada pela Biblioteca do CCH / UENF
009/2012
T231 Tavares, Luciana Ferreira
Chico Buarque “Paratodos” : da banda que passa ao leite que se
derrama / Luciana Ferreira Tavares -- Campos dos Goytacazes, RJ, 2012.
140 f.
Orientador: Arlete Parrilha Sendra
Dissertação (Mestrado em Cognição e Linguagem) – Universidade
Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Centro de Ciências do
Homem, 2012
Bibliografia: f. 129 - 140
1. Música Popular Brasileira. 2. Buarque, Chico – Crítica e
Interpretação. 3. Linguagem Musical. I. Universidade Estadual do Norte
Fluminense Darcy Ribeiro. Centro de Ciências do Homem. II. Título.
CDD
–
781-630981
LUCIANA FERREIRA TAVARES
CHICO BUARQUE “PARATODOS”:
da banda que passa ao leite que se derrama
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Cognição e Linguagem da Universidade Estadual do Norte
Fluminense Darcy Ribeiro, como parte dos requisitos para
obtenção do título de Mestre em Cognição e Linguagem.
Aprovada em 30 de março de 2012.
COMISSÃO EXAMINADORA:
_______________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Arlete Parrilha Sendra
Universidade Estadual do Norte-Fluminense Darcy Ribeiro – UENF
Orientadora
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Eduardo Batista de Sousa
Universidade Estadual do Norte-Fluminense Darcy Ribeiro – UENF
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Joel Ferreira Mello
Centro Universitário Fluminense (UNIFLU): Campus II – Filosofia de Campos
_______________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Luciana Affonso Gonçalves
Fundação Educacional de Macaé – FUNEMAC
A meus pais. E a Philippe,
filho querido.
AGRADECIMENTOS
A todos que contribuíram para a realização deste trabalho, fica expressa aqui a
minha gratidão, especialmente:
À Professora Arlete Parrilha Sendra, pela orientação, pelo aprendizado e apoio em
todos os momentos necessários.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Cognição e Linguagem da
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro.
Aos meus colegas de classe, pela rica troca de experiências.
Aos bibliotecários, pela ajuda incondicional.
Aos meus queridos alunos do Colégio Estadual Dom Otaviano de Albuquerque,
pelo incentivo.
Ao professor Márcio, pelo carinho e generosidade.
Ao professor Frederico, pelos ensinamentos filosóficos.
Ao meu irmão, pela paciência.
A minha mãe, farol da minha caminhada.
Ao meu pai falecido, pela teimosia herdada.
Ao meu amigo Roberto, pela dedicação.
A minha amiga Rita, pelo companheirismo.
Ao meu amigo Tetsuo, pela solidariedade.
A minha amiga Ingrid, pelo desprendimento.
Ao meu filho, pela paz.
Festa Imodesta
(Caetano Veloso)
Minha gente era triste e amargurada
Inventou a batucada
pra deixar de padecer.
Salve o prazer, salve o prazer!
Numa festa imodesta como esta
vamos homenagear
todo aquele que nos empresta a sua
testa construindo coisas pra se cantar.
Tudo aquilo que o malandro pronuncia
que o otário silencia
toda festa que se dá ou não se dá
passa pela fresta da cesta e resta a vida.
Acima do coração que sofre com razão
a razão que volta no coração
E acima da razão a rima
e acima da rima a nota da canção
bemol natural sustenida no ar.
Viva aquele que se presta
a esta ocupação:
Salve o compositor popular!
(HOLLANDA, Chico Buarque de.
Literatura Comentada. São Paulo:
Abril Educação, 1980, p. 8).
RESUMO
O presente trabalho examina a trajetória histórico-social da Música Popular Brasileira –
MPB – e a “canção literomusical” de Chico Buarque. Pretendemos, através de uma visão
hermenêutica, demonstrar que a sonoridade brasileira teve seus primeiros acordes com o
ritmo africano que, em múltiplos desdobramentos, vem compondo nosso cenário musical.
Nosso enfoque será a música popular – Chico Buarque de Hollanda (1944) –, sua
linguagem híbrida, seu resgate de diversos momentos musicais, sua brasilidade e seu
contexto pós-moderno. Em extensão metodológica, destacaremos a contribuição da música
popular para a realização da proposta Modernista (1922) de atualização da cultura
brasileira. Enfatizaremos a análise das canções buarqueanas, sua tessitura de aderência:
palavra e melodia, conjuntamente. Utilizaremos também, como procedimento para
pesquisa, o aporte descritivo das obras: “A banda” (1966), “O velho Francisco” (1987),
“Paratodos” (1993), “Sonhos sonhos são” (1998), Estorvo (1991), Leite Derramado (2009),
ou seja, trabalharemos a linguagem voltada para o texto verbal e a voltada para o texto
musical. Objetivamos assim, estabelecer um diálogo entre música e arte, dentro da vertente
histórico-cultural, gadameriana, portanto, uma heterogeneidade de vozes do passado e
interlinguagens cancionais que se abrem para o futuro.
Palavras-chave: Música Popular Brasileira. Chico Buarque. Linguagem Híbrida.
Brasilidade.
ABSTRACT
The present study examines the historical-social trajectory of the Popular Brazilian Music
– PBM – and the song lyrics by Chico Buarque. We intend, through a hermeneutic view, to
show that the Brazilian sonority had its first chords with the African rhythm which, by
multiple unfoldings, has been compounding our musical scenery. Our focus will be the
popular music – Chico Buarque de Hollanda (1944) –, its hybrid language, its rescuing of
various musical moments, its Brazilian sense and its post-modern context. In
methodological length, we will highlight the contribution of the popular music to the
holding of the Modernist proposal (1922) of the Brazilian culture updating. We will
emphasize the analysis of the Buarqueanas’ songs, its weaving adherence: word and
melody, jointly. We will also use, as a procedure for research, the descriptive support of
the pieces of work: “A banda” (1966), “O velho Francisco” (1987), “Paratodos” (1993),
“Sonhos sonhos são” (1998), Estorvo (1991), Leite Derramado (2009), that is, we will
work on the language toward the sonorous text and the verbal one. We will object to
establish a dialog between music and art, within the historical-cultural side, Gadamer’s
one, therefore, a heterogeneity of past voices and song inter-languages which open
themselves to the future.
Key-words: Popular Brazilian Music. Chico Buarque. Hybrid Language. Brazilian.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
Compassos iniciais buarqueanos............................................................................................9
CAPÍTULO 1
Um Percurso Musical: dos lundus à sonoridade buarqueana...............................................18
CAPÍTULO 2
Alinhavando o texto, costurando a prosa.............................................................................39
CAPÍTULO 3
O menino Francisco e a banda.............................................................................................62
CAPÍTULO 4
Chico Paratodos....................................................................................................................76
CAPÍTULO 5
Sonhos sonhos são estorvo...................................................................................................92
CAPÍTULO 6
Ainda sobrou o leite nas memórias do meu coração..........................................................107
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Modulação em trechos de buarque.....................................................................................124
REFERÊNCIAS ................................................................................................................129
INTRODUÇÃO
COMPASSOS INICIAIS BUARQUEANOS
Esta dissertação tem como intenção fundamental revisitar a trajetória históricosocial (XVII-XX) da Música Popular Brasileira – MPB – e a “literomusicalidade” de
Chico Buarque. A relevância do tema se impõe por ser um resgate dos diversos momentos
musicais e por serem esses momentos, em mão dupla, presenças de nossa brasilidade que,
paralelamente, a retroalimentam. Uma brasilidade que não está atrelada a (uma) identidade
nacional, mas – como sublinham Renato Cordeiro Gomes e Heloísa Buarque de Hollanda
(1999) – um relato das cidades nas cidades, sem privilégios de regionalidades, ou seja, a
coexistência de múltiplas culturas urbanas no espaço a que chamamos, urbano: das cidades
centralizadas às multifocais, policêntricas, onde se desenvolvem outros novos centros.
Por compreendermos a simbiose cidade/cultura, cada vez mais flagrante nos
estudos culturais, elegemos o espaço verbo-musical buarqueano como texto representativo
do entrecruzamento histórico de raízes populares e eruditas. A hipótese defendida, neste
trabalho, nos remete a esta dupla estética: a popular – voltada para um diálogo com o povo,
trazendo à tona as raízes do Brasil, como em “Paratodos”, de 1993 e a erudita – voltada à
leitura verticalizada de sua obra no que tange à sua disposição poética e o seu desenho
melódico, o que podemos verificar em “A banda”, de 1966, prefácio de sua identidade
musical.
Utilizaremos como aporte teórico a hermenêutica gadameriana (2008), por
entendermos que ouvir nossa consciência histórica − que nos chega através de uma
pluralidade de vozes nas quais reverbera o passado −, revivifica a essência da tradição. A
investigação histórico-moderna mediada por nossas experiências permite que ouçamos
outras vozes − que mesmo silenciadas, ressoam do passado e ressoam o passado. Em nosso
roteiro metodológico, também privilegiamos conceitos semióticos − desenvolvidos por
Charles Sanders Peirce sob a abordagem de Lucia Santaella (2005) − como passaporte para
penetrarmos na linguagem verbo-musical.
Nossa pesquisa será desdobrada em seis capítulos – momentos – que apresentam,
respectivamente: um panorama sobre a criação, consolidação e disseminação de uma
prática cancional no Brasil; a obra artística de Chico Buarque de Hollanda; uma reflexão
sobre a aderência entre melodia e letra na música “A banda” de 1966; uma análise sobre a
aderência entre melodia e letra na música “Paratodos,” de 1993; a influência da música
“Sonhos sonhos são” (1998) no romance, Estorvo (1991); a influência da música “O velho
Francisco” (1987) no romance, Leite Derramado (2009) − a incorporação das
manifestações verbo-musicais no contexto-pós-moderno.
Procuramos fazer uma visita aos temas, discussões e transformações realizadas em
torno das raízes da música popular, mais precisamente entre a vertente do samba e da bossa
nova, identificando a sonoridade de Chico Buarque de Hollanda. Tendo como referências
as obras de Luiz Tatit, Affonso Romano de Sant’Anna, José Miguel Wisnik e José Ramos
Tinhorão, procuramos dar continuidade às pesquisas desenvolvidas no âmbito literário
rumo a uma fenomenologia musical.
Para identificarmos a sonoridade de Chico Buarque de Hollanda foi feito um breve
histórico sobre a origem do samba, sua evolução e inter-relacionamento com a música
estrangeira – o jazz – e, consequentemente, a criação de um ritmo genuinamente brasileiro
– a bossa-nova – que engajada no contexto pré e pós-1964, adquiriu a forma e a estrutura
das canções de protesto.
Ressaltaremos que com o impulso dado à indústria fonográfica, o samba perdeu sua
vertente crítica e carnavalesca, ganhando assim, um aspecto intimista em que o tema do
amor passa a ter um caráter sentimental; por isso, o samba dessa fase era conhecido por
samba-canção. Esse período fez com que o samba se tornasse matéria-prima do tipo
exportação.
Mostraremos que em meados de 1950 – em decorrência da evolução natural do
samba-canção – surgiu uma nova batida rítmica, descontínua, nos redutos da classe média
carioca. Sob a influência de Tom Jobim (1927-1994) e João Gilberto (1931), a bossa-nova
passou a definir uma nova maneira de tocar.
Focaremos que a bossa-nova não é a negação da música popular anteriormente
realizada no Brasil, à medida que apenas decantou a canção brasileira de qualquer
característica muito acentuada, até mesmo dos procedimentos virtuosísticos da música
norte-americana, reprogramando em seu artesanato impecável de violão e voz a gênese de
todos os estilos, passados e futuros.
Seguindo essa proposta, retrataremos que após o período inicial (1958-1962), as
músicas da bossa-nova − temática leve e intimista − modificaram seu repertório e passaram
a acompanhar o contexto político da época. Instaurando-se assim, o estado de contestação,
conhecido como corrente de “samba participante.” Essa nova tendência da bossa-nova –
político-social – contribuiu com o ideal de renovação ideológica, justamente por sua
possibilidade de penetração nas massas.
Demonstraremos que a música popular contribuiu para realizar a proposta
Modernista de atualização da cultura brasileira. Dentro de um projeto literário, a
originalidade do Modernismo possibilitou uma experimentação formal, usou de uma
linguagem de prevalência inventiva, visualizou uma concepção crítica do real, documentou
uma autenticidade nacional e um substrato de consciência ideológica, elementos que
viriam confluir e atuar, em coesão poética, junto à MPB.
Salientaremos que a música popular, a partir de 1922, inaugura uma nova fase,
devido, justamente, à interinfluência com o Movimento Modernista. Desse contato,
surgiriam múltiplas linguagens – conforme a divisão didática de Affonso Romano – que
convergeriam para dois tipos de disposições poéticas:
a) Poética do Centramento: constituída pela mimese consciente voltada para a
cópia da realidade e pela paráfrase. Nessas configurações poéticas o
sobredeterminante é o referente externo, tanto a oralidade da tradição
quanto dos escritos. As duas se definem como uma transcrição do real e
acham-se envolvidas com a ideologia na qual se centram e a qual procuram
reproduzir especularmente num universo de infinitude-fechada. A
linguagem que se desdobra nesse universo fechado é a linguagem do
Mesmo;
b) Poética do Descentramento: representada pela mimese inconsciente e pela
paródia. Elas são um corte com o real. O referente é aprisionado. A mimese
se apodera da tradição escrita e dela se afasta, procurando uma nova sintaxe,
ordenando-a de modo diferente da realidade. A linguagem que se desdobra
nesse universo aberto é a do Outro.
Pautaremos no princípio – já defendido por Teixeira Coelho em sua obra, Moderno
Pós Moderno (2001) – que qualquer análise sobre obras artísticas contemporâneas precisa
ser integral e não parcial. Não considerar o período modernista como um fato cultural e a
modernidade como a consciência deste fato, é compreender o moderno pela metade,
reivindicando apenas um dos polos da modernidade, o da inovação, deixando de lado o
outro, sem o qual a modernidade não vinga: o da tradição. Por isso, reivindicaremos as
estruturas didáticas de Affonso Romano – já citadas anteriormente – para embasarmos
nossa hipótese defendida: Chico Buarque opta por uma dupla estética: de um lado, entra
em contato com o imaginário popular através do ritmo e da história, como pano de fundo
de suas narrativas musicais; de outro, pela riqueza melódica e contextualização de sua
letra, bem como o universo ficcional de seus romances, atinge a esfera da erudição.
Operando nesses dois campos, simultaneamente, as obras artísticas de Chico
Buarque invadem a esfera popular sem, contudo, apelar para os meios de comunicação de
massa − generalização do kitsch, do mau gosto e do vulgar, ainda que tragam um estado
geral de desestetização − e, tão pouco, perfazem uma arte, altamente, estetizada, onde
apenas o intelectual possa apreciá-la. Nesta simbiose, a obra projeta-se como o espaço da
diferença, portanto, da democracia, abarcando um diálogo da convergência de leituras
diversificadas e diversificáveis.
Essa tendência estética buarqueana encontra amparo no discurso pós-moderno de
decomposição da arte áurica por uma nova cultura, em prol de uma hibridização em que o
elevado e o popular instruem-se mutuamente. O universo pós-moderno não é de
delimitação, mas de mistura, de celebração de cruzamento, do híbrido, do pot-pourri.
Assim, o pós-moderno figura como um índice de mudança crítica na relação entre
tecnologia avançada e o imaginário popular.
Nessa perspectiva pós-moderna, podemos inferir que a visita ao mundo popular era
uma constante desde os tempos de Anacleto de Medeiros (1866-1907), Chiquinha Gonzaga
(1847-1935) e Ernesto Júlio de Nazareth (1863-1934) e ainda persistiu com todo vigor nas
partituras de Villa-Lobos (1887-1959) que conviveu com chorões, seresteiros e sambistas
de sua época, apenas confirmando a tradição da via erudito-popular. A celebração do
cruzamento sociocultural, a mistura de ritmos e melodias já marcava a posição de alguns
artistas na ambiência vanguardista e, numa leitura hermenêutica, pós-vanguardista.
Será neste cenário, que enfatizaremos a análise das canções buarqueanas, sua
linguagem híbrida, seu discurso circular: a palavra, a história e o ser. Obra que gravita,
poeticamente, na linguagem e se mimetiza nesse painel literário. Literatura esta, que recria
uma nova realidade na tessitura da escrita contemporânea, tornando-se um texto plural.
Aliando-se ora ao eu da enunciação do texto musical, ora ao eu da enunciação do texto
narrativo, entre a realidade subjetiva e a objetividade crítica, o artista Chico projeta, na
diversidade de temas e personagens, um universo para todos: do ritmo à melodia, do
popular ao erudito, a leitura de suas obras perfazem uma heterogeneidade sociomusical.
Por incorporar as fronteiras artísticas de outrora num novo âmbito cultural ampliado,
ajuda-nos a reavaliar nossas antigas categorias críticas e avaliativas (fundadas
precisamente na radical diferenciação entre o modernismo e a cultura de massa) numa
perspectiva menos funcional.
Nossa ideia básica partiu de uma interpretação contextualizada da música brasileira
que, desde o século XVII, vem desenvolvendo um modo de dizer singular em suas
canções. Entre o lundu, de origem fincada nos batuques e nas danças que os negros
trouxeram da África e aprimoraram no Brasil, e a modinha, cujo caráter melódico evocava
trechos de operetas europeias – um gênero apontando para os terreiros e o outro para os
salões do século XIX – constituiu-se a canção do século XX. De modo que um estudo
analítico torna-se necessário para que possamos compreender a poiesis musical de Chico
Buarque de Hollanda. Poiesis nascida de uma musicalidade pensante, configuradora de
uma discursividade literária constituidora de um fazer cultural onde história e ficção
interagem para dar voz à imaginação. A metáfora que constitui o procedimento literário
buarqueano − fundamento mimético ou recriação de uma nova realidade − opera-se no
signo literário articulador de uma realidade vivencial: o repensar do ser do homem, suas
buscas e descaminhos: o velar e des-velar de seu caminhar errante.
As obras potencializadoras de memórias e deflagradoras de uma narratividade lírica
será o espaço privilegiado que vestirá sua melodia e seu texto ficcional para falar do
extremamente essencial – “o tempo”. Nada melhor do que a música que é, antes de tudo,
uma arte do tempo.
No sentido de esclarecer o tema que move nosso pensar, bem como gravita nas
manifestações artísticas buarqueanas acima citadas, estruturamos os capítulos de nossa
pesquisa da seguinte forma:
Capítulo 1: “Um Percurso Musical: dos lundus à sonoridade buarqueana” –
buscaremos esclarecer que a criação de um ritmo brasileiro aconteceu, no
século XVII – com a chegada dos africanos. Ritmo que invadiu todos os setores
urbanos da sociedade da época e se manifestou sobre a forma de um gênero
musical: os lundus. Mostraremos como se difundiram as modinhas, no século
XVIII – acompanhadas pelo fundo rítmico dos batuques e das inflexões da fala
cotidiana – e seu intercâmbio cultural. Identificaremos a disseminação, no
século XIX – com o aparecimento do gramofone – de uma prática cancional,
impulsionando os sambistas a compatibilizar a entoação da fala ao canto,
convocando a melodia entoativa das frases para produzir ênfase no fluxo
discursivo, sem outro tratamento especial que não o exigido pelo texto verbal e,
por último, apontaremos a consolidação, no século XX, das matrizes da bossa
nova, revolucionando, esteticamente, a música artística, com a elaboração da
harmonia;
Capítulo 2: “Alinhavando o texto, costurando a prosa” – constitue-se de um
diálogo com a vida e a obra de Chico Buarque de Hollanda, seus primeiros
contatos na adolescência com o violão e o rádio, a aproximação com seus
eternos parceiros musicais, a influência da literatura em suas composições e os
reflexos da figura paterna em sua escritura. Os princípios norteadores de Sergio
Buarque de Hollanda – a existência e seu termo enquanto acontecimento
histórico – acompanham a escrita buarqueana como possibilidade de reencontro
com o passado e com o presente no instante da sucessão dos fatos envolvidos e
enovelados por uma narrativa que teima em reconhecer no encantamento da
palavra os limites precários da própria vida. Precisaremos analisar o processo
de criação buarqueano, seu funcionamento, sua relação com o tormento, a
angústia e a insônia. É nesse turbilhão de emoções fortes que ele tece a matériaprima da sua criação. O elo entre o abismo e a salvação. Transcreveremos os
depoimentos de Chico Buarque sobre seu processo criativo a fim de que
possamos revelar a sua concepção criativa: escrever é diferente de compor. A
dicotomia entre o Chico Buarque escritor e o Chico Buarque compositor − uma
realidade no processo criativo do artista;
Capítulo 3: “O menino Francisco e a Banda” – trataremos da canção, “A
banda” (1966), pelo viés mítico, como espaço da consolidação intersubjetiva
propiciada pelo autor-cantor para a agregação dos afetos. Ressaltaremos que a
expressão simbólica cria a possibilidade da visão retrospectiva e prospectiva,
pois determinadas distinções não só se realizam por seu intermédio, mas ainda
se fixam como tais dentro da consciência. O que uma vez foi criado, o que foi
salientado do conjunto das representações, não mais desaparece se o som verbal
lhe imprime o seu selo, conferindo-lhe um cunho determinado. Nesse sentido,
nossa leitura englobará a aderência da melodia à letra, demonstrando que Chico
Buarque se utiliza de um ritmo popular – a marchinha – como elemento
simbólico da comunhão coletiva, mas a enriquece, musicalmente, ao enfatizar,
na tessitura da canção, sofisticadas melodias que, coadunadas ao texto verbal,
configuram instantes, harmoniosos.
Capítulo 4: “Chico Paratodos” – focaremos a influência da música “Paratodos”
(1993) como símbolo do imaginário coletivo onde o compositor utilizando-se
de um ritmo regional – o baião – descreve a herança musical de seu povo,
considerando o espaço de experiência do passado na reinscrição do horizonte
de expectativa do futuro, de modo a projetar, pela sequência de acordes
musicais, o entrelaçamento de diferentes gerações. Ressaltaremos que a história
baseia-se no fato de que somos afetados pela história e afetamos a nós mesmos
pela história que fazemos, pois nossa ego-história, é justamente esse vínculo
entre a ação histórica e um passado herdado que preserva a relação dialética
entre horizonte de expectativa e espaço de experiência. A música será a
mediação aberta para se pensar essa herança musical de recepção do passado,
vivência do presente e futuro inacabado na trajetória cancional buarqueana;
Capítulo 5: “Sonhos sonhos são estorvo” – focaremos a influência da música
“Sonhos sonhos são” (1998) em seu romance, Estorvo (1991), demonstrando
que as metáforas utilizadas por Chico Buarque
linguísticos de modo a romper
desestabilizam os signos
as convenções ideológicas operadas na
linguagem, possibilitando uma desconstrução do significante. Nesse sentido,
nossa investigação englobará o des/cobrir as múltiplas camadas de sentido que
permeiam este invólucro narrativo. Percorreremos nesta obra, a técnica
romanesca utilizada por Chico Buarque, o olho mágico – seu caráter especular
– como característica presente da escolha de uma perspectiva estética, que
medeia, respectivamente, na estrutura cíclica da narrativa a deformação da
imagem processada: processo de inversão, ou melhor, fusão dos contrários.
Dispondo desse poder inquietante de lidar com as palavras, as utiliza como sua
matéria, não apenas desentranhando sua musicalidade, mas extraindo dela o
máximo de possibilidades, em seu jogo recíproco com as demais; e, por fim,
Capítulo 6: “Ainda sobrou o leite nas memórias do meu coração” – trataremos
da narrativa e do ato de recontar, que geralmente se encontra fragmentado e
disperso em diversas formas, sob as quais estão os rastros da memória. Desse
modo, pretendemos enfatizar as memórias afetivas experienciadas pelo
narrador-personagem
de
Leite
Derramado,
enquanto
modo
de
autocompreensão de sua história e de seu tempo. Dentre as várias
interpretações hermenêuticas de tempo, nos concentraremos no tempo da
narrativa ficcional, isto é, um tempo que pode ser estendido pela cadeia da
memória e prolongado pela imaginação porque contar a história de uma vida
verídica ou fictícia que um sujeito conta de si mesmo é apenas, uma identidade
narrativa. Nosso entendimento sobre tempo se insere nos fundamentos
filosóficos de Paul Ricoeur.
Acreditamos que o ritmo da linguagem e a melodia das palavras revelem o
significado último de todo ser de linguagem, fundamento de todo dizer poético: a verdade
do homem, a verdade da obra literária buarqueana. Apesar de sabermos que toda obra de
arte é inacabada, confiamos que a nossa leitura, embora relativa, ultrapasse os objetos que
estão mais além das palavras. E o que está além das palavras é o texto, texto este que não é
composto apenas de linhas, mas também das entrelinhas, dos seus vazios, da
discursividade, do vigor de ler.
Ler Chico Buarque é acompanhar sua capacidade de se transportar, de não ter pele,
de viajar e entrar no outro. Sem vontade de estabelecer limites rígidos entre fantasia e
verdade, alça voo no corpo dos personagens que vai criando em sua obra. Obra que vem
acompanhando a mutação do ciberespaço cultural, delineando o desaparecimento de uma
atmosfera ingênua e impregnada de esperança – que as letras dos anos 60 projetavam no
horizonte – ao surgimento de uma melodia recorrente, como a indicar um tempo presente
sufocado e instantâneo, que se autoconsome no liquidificador de imagens que vão sendo
permutadas e embaralhadas até o transtorno total de seu espaço pós-moderno.
Espaços vinculadores desses mal-estares, aflições e ansiedades típicos do mundo
contemporâneo – resultante do gênero de sociedade que oferece cada vez mais liberdade ao
preço de cada vez menos segurança. Mal-estares que nasceram da liberdade, em vez da
opressão. São estas, as características presentes nas narrativas ficcionais buarqueanas – a
capacidade de simplificar a desnorteante complexidade, selecionar um grupo finito de atos
e personagens na infinda multiplicidade, reduzir o infinito caos da realidade a proporções
intelectualmente manejáveis, compreensíveis e evidentemente lógicas, apresentar o
contraditório fluxo de acontecimentos como uma narrativa com um enredo interessante de
se ler –, que parecem talhadas sob medida para os descontentamentos pós-modernos: das
aflições e sofrimentos dos homens e mulheres, aturdidos pela escassez de sentido,
porosidade dos limites, incongruência das sequências, volubilidade da lógica e fragilidade
das autoridades.
Pretendemos, ao final desta pesquisa, poder considerar que as obras verbo-musicais
buarqueanas problematizam em sua produção artística, a condição humana, no que ela tem
de mais inquietante: o ser humano à procura da verdade, tentando redimensionar sua
presença enquanto ser pensante e desse modo, poder escapar da experiência nadificadora
de ser pensado, conferindo, em sentido amplo, significado atemporal e, em sentido estrito,
profunda comunhão com a angústia emergente da contemporaneidade.
CAPÍTULO 1
UM PERCURSO MUSICAL: DOS LUNDUS À SONORIDADE BUARQUEANA
A presença dos africanos no Brasil, início do século XVII, trouxe para o nosso país
o vírus da escravidão – vírus que como teias envolveu a terra brasiliense – que dele ainda
não se libertou. Arrancados de sua geografia física e humana, esses homens, tentaram
reconstruir sua identidade perdida nos estranhos cenários da terra desconhecida. Perdendo,
compulsoriamente, alguns elos de suas práticas cotidianas, pela dança e com a dança
invocavam pelo canto e com o canto suas entidades espirituais, e com elas revitalizavam
seus batuques, orações que os irmanavam na religião, alimentavam sua resistência e os
faziam produtores de alegria. Cantando, os negros elevavam suas vozes a seus deuses. E
cantando, amenizavam o banzo que os envolvia. Desde sempre, cantar torna a vida mais
leve, torna mais suave a dor de viver. Esta presença – marcada pelo canto e pela dança –
penetrou pelos largos espaços da Casa Grande, ora tornando-se objeto descartável de uso e
de abuso, ora elemento alavancador da economia “dos coronéis”.
Segundo Luiz Tatit (2004:22), foi dos batuques voltados para o lazer, mas ainda
repletos de signos religiosos e canto responsorial1, que nasceram as principais diretrizes da
sonoridade brasileira. Vendo lascividade no gingar dos corpos, esses ritmos e sua
coreografia incomodaram os costumes europeus. Foi em tempos de Inquisição, que a
umbigada tem sua origem: dança com a finalidade estrita de antever, com representações
alegóricas, as cenas amorosas que sucedem à cerimônia do casamento.
Pode-se observar que da energia da terra aos gestos sublimes, o que se verifica
nesses quinhentos anos de Brasil, é um distanciamento das celebrações e uma maior
aproximação com o corpóreo, ou seja, o corpo que coreografava os rituais aos deuses,
coreografava também os rituais de seus apetites carnais.
Na história da música brasileira, é passível de visualização um ethos musical,
resultante de uma qualidade mimética e de uma potencialidade ética, onde a capacidade de
infundir ânimo e potencializar virtudes do corpo preponderou sobre a instância do espírito.
Essas considerações nos remetem à relevância do poeta barroco, Gregório de Matos
Guerra (1636-1695) e sua produção híbrida entre literatura e expressão oral – retratando
1
Espécie de diálogo de uma voz solo com o coro (Expressão empregada por J. R. Tinhorão, Os Sons dos
Negros no Brasil, São Paulo: Art Editora, 1988, p. 46).
aspectos religiosos, satíricos e jogos obscenos2 da cidade de Salvador e de outros centros
urbanos e rurais do Recôncavo –, dando mostras de que um gênero inusitado, ainda
embrionário, se formava no Brasil.
Para Tinhorão (1998:75), a contribuição do poeta barroco é imprescindível para a
leitura desse momento. Foi através de seus versos, que tivemos informações sobre os mais
diferentes tipos de diversões e danças dos primeiros núcleos sociais de vida urbana do
Brasil3, demonstrando, assim, o intercâmbio de influências coreográfico-musicais,
comprovadamente verificado entre Brasil e Portugal, como podemos inferir pela
chansoneta:
Ao som de uma guitarrilha,
que tocava um colomim [curumim, menino índio]
vi bailar na Água Brusca
As Mulatas do Brasil:
Que bem bailam as Mulatas,
que bem bailam o Paturi!
Não usam de castanhetas,
por que cós dedos gentis
fazem tal estropeada,
que de ouvi-las me estrugi:
Que bem bailam as Mulatas,
que bem bailam o Paturi.4
Pela descrição dessa dança de mulatas, podemos inferir que, naquela época, já se
dançava – na área rural – castanholando com os dedos. A característica do estalar de dedos
própria do fandango ibérico, apontada no sexto verso5 como paturi, remete-nos à
umbigada, vista em festas de Salvador – em homenagem à Nossa Senhora do Amparo.
Essas danças reunidas fariam surgir no século XVIII, o lundu. 6
Apoiando-nos ainda em Luiz Tatit (2004:25), diremos que em meados do século
XVIII, assistia-se à “cancionalização” dos batuques africanos fortalecida, nas rodas
musicais, pelo aumento da participação de mestiços e brancos das classes menos
2
Usamos a palavra “obsceno” em sua etimologia: obs-cena – o prefixo nos traz o sentido semântico de fora;
em obsceno, lemos aquilo que está fora da cena, fora do campo conceitual do consenso sociocultural. (cf.
entendimento da professora Arlete Sendra Parrilha).
3
“Núcleos sociais, ainda estreitamente ligados à área rural não apenas pela proximidade dos limites, mas pela
sobrevivência, na própria cidade, de roças e até de engenhos” (cf. TINHORÃO, J. R. História Social da
Música Popular Brasileira. São Paulo: Ed. 34, 1998, p. 73).
4
Ibidem, p. 76.
5
Para atender às discussões em torno da MPB, se suas letras são constituídas de versos, nesse caso poesia, ou
se essas mesmas letras devem ser vistas como composições musicais, usaremos, neste caso, ora versos, ora
linhas.
6
Ritmo de frases curtas e sincopadas que deram origem a dois tipos de canções: o lundu de salão (que os
compositores de escola transformariam ainda no século XVIII em quase árias de ópera) e o lundu popular dos
palhaços de circo e cançonetistas do teatro vaudevilesco, de fins do século XIX e início do século XX (cf.
TINHORÃO, J. R. op. cit., p. 103-106).
favorecidas. Sem perder o fundo rítmico dos batuques, agora havia, também, a melodia do
canto para descrever o sentimento amoroso, melodias, muitas vezes, convertidas em
refrãos. Esse batuque, em termos de relações qualitativas, era envolvido em fluxos de
energia:
(...) acumulação, descarga e recuperação. Assim, a acumulação ou arsis
caracteriza-se por um aumento de tensão ou excitação que prossegue até um
determinado momento, quando o limite máximo de tensão é atingido, ocorrendo
a descarga ou thesis. Esta é seguida de uma fase de relaxamento ou stasis, que
prepara uma nova fase de acumulação, e assim sucessivamente. Esse movimento
cíclico só é possível pela operatividade de uma lei, a lei do ritmo (COKER apud
SANTAELLA, 2005:172). (grifos do autor)
O primeiro caso de influência de um artista brasileiro em setores da sociedade
portuguesa deu-se com Domingos Caldas Barbosa7, autor e intérprete de lundus e
modinhas8. Este artista representou a configuração do tripé9 – ritmo, melodia e inflexões
românticas – sobre o qual veríamos erigir, no século XX, a canção popular, que invadiu
através dos meios de comunicação de massa todas as faixas sociais. Essas características
atravessaram o oceano e foram se exibir em Lisboa:
Nós lá no Brasil
A nossa ternura
A açúcar nos sabe,
Tem muita doçura.
Oh! se tem! tem.
Tem um mel mui saboroso
É bem bom, é bem gostoso.
Ah manhã, venha escutar
Amor puro e verdadeiro,
Com preguiçosa doçura,
Que é Amor de Brasileiro.10
7
Filho do português Antônio de Caldas Barbosa e de uma escrava angolana alforriada, Antônia de Jesus.
Domingos Caldas Barbosa nasceu em terra carioca em 1740. Morreu no dia 9 de novembro de 1800, no
palácio do Conde de Pombeiro, em Bemposta, Lisboa, sendo sepultado na igreja de Nossa Senhora dos Anjos
(cf. SEVERIANO, J. Uma história da música popular brasileira: das origens à modernidade. São Paulo: Ed.
34, 2008, p. 13-16).
8
“A modinha teria nascido como gênero de canção erudita em meados do século XVIII em Portugal, como
variante das modas portuguesas que se integravam à categoria geral das cantigas e, após sua banalização
durante o Império por músicos de fora, professores, virtuoses, comerciantes e biscatistas, principalmente
vindos na esteira das companhias líricas, acabaria por vir a confundir-se, às vezes integralmente, com a
melódica geral da popular” (cf. ANDRADE, Mario de. apud TINHORÃO, J. R. op. cit., p. 126-127).
9
“Suas peças baseavam-se num aparato rítmico oriundo dos batuques, suas melodias deixavam entrever
gestos e meneios da fala cotidiana, e, finalmente, suas inflexões românticas, expandindo o campo de tessitura
das canções, introduziam certo grau de abstração sublime” (cf. TATIT, Luiz. O século da canção. Cotia:
Ateliê Editorial, 2004, p. 27).
10
HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 61.
Anunciava-se a consolidação de um gênero que vinha se formando desde o
encontro dos portugueses com o povo africano ao país. A obra de Domingos Caldas
Barbosa é considerada, por Jairo Severiano, o marco zero da música popular brasileira.
Seguindo um provável percurso de formação da Música Popular Brasileira – MPB11
–, temos, no século XIX, a figura emblemática de Francisca Edwiges Neves Gonzaga
(1847-1935), mais conhecida como Chiquinha Gonzaga, pioneira entre os artistas a levar o
choro12 para o piano. Foi ela, também, a responsável pela introdução do maxixe13 nos
palcos dos teatros, a bordo da revista musical “A Corte na Roça”, de 1885 – primeira
opereta com música escrita por uma mulher a ser encenada nos palcos brasileiros. Essa
atividade acabaria por se tornar a vertente mais importante de sua obra, consolidando seu
prestígio musical. Chiquinha Gonzaga deixou mais de trezentas composições, das quais
podem ser destacadas – o tango "Gaúcho” (1897), a opereta “Forrobodó” (1911), a canção
“Lua Branca” (1912), a marcha-rancho14 “Ó abre alas”. Com esta marcha composta em
1899:
Abre Alas,
Que eu quero passar
Eu sou da Lira,
Não posso negar
Ô Abre Alas,
Que eu quero passar
Rosas de Ouro é quem vai ganhar15,
Chiquinha antecipou, em quase vinte anos, a prática de se fazer música para o carnaval.
Aliás, a visita ao mundo popular, que já era uma constante desde os tempos de Anacleto de
Medeiros16 (1866-1907), ainda persistia com todo vigor em suas partituras: união do choro,
11
Convencionamos que a referência à Música Popular Brasileira será feita nessa pesquisa como MPB.
Pode-se assim dizer que os nossos choros primitivos eram polcas tocadas à moda brasileira, ou seja, polcas
que incorporavam a síncope do batuque. Paralelamente, evoluiu de música dançante para música
virtuosística, feita para ser ouvida e apreciada (cf. SEVERIANO, J. op. cit., p. 34).
13
Descendendo ainda do tronco habanera-tango espanhol, adaptado à sincopação afro-brasileira, e com seu
aparecimento ocorrido na década de 1870, o maxixe entrou para a história como a primeira dança urbana
brasileira (cf. Ibidem, p. 30-31).
14
Foi em 1927, com Moreninha do pioneiro Eduardo Souto (1882-1942), gravada por Frederico Rocha, que
a marcha-rancho ganhou autonomia como gênero praticado por compositores profissionais. SOUZA, Tárik
de. Melodias elaboradas em meio à folia carnavalesca. Disponível em: <http://cliquemusic.uol.com.br/
materias/ ver/ marcharancho>. Acesso em: 29 mar. 2011.
15
GONZAGA, Chiquinha. Ô Abre Alas. Disponível em: <http:// www.letras.com.br/chiquinha- gonzaga/o abre-alas>. Acesso em: 27 mar. 2011.
16
Filho de uma escrava liberta, Anacleto de Medeiros começou na música tocando flautim da Banda do
Arsenal de Guerra do Rio de Janeiro. Aos 18 anos foi trabalhar como aprendiz de tipógrafo na Imprensa
Nacional, e ao mesmo tempo matriculou-se no Imperial Conservatório de Música. Nessa época já dominava
quase todos os instrumentos de sopro, e tinha especial preferência pelo saxofone. Fundou, entre os operários
da tipografia, o Clube Musical Gutemberg, iniciando aí sua função de organizador de conjuntos musicais.
12
seresta17 e o samba de sua época, confirmando uma música de via erudito-popular (TATIT,
2004:21).
Da mesma forma que a música, as danças importadas, também, foram submetidas
ao processo de nacionalização e fundidas por nossos músicos populares a formas nativas
de origem africana, conhecidas pelo nome genérico de batuque. Foi assim que, na década
de 1870, nascia o tango18 brasileiro, o maxixe e o choro, ao mesmo tempo em que se
abrasileirava a técnica de execução de vários instrumentos, como o violão, o cavaquinho e
o próprio piano. Parentes próximos, os três gêneros, teriam em comum o ritmo binário e a
utilização da síncope afro-brasileira, além da presença da polca19, em sua gênese.
Em meio a esta síncope afro-brasileira, podemos depreender que o samba não
existiria se antes não tivesse existido o maxixe, o lundu e as múltiplas formas de samba
folclórico, praticadas nas rodas de batuque. A síntese de todas essas influências culminou
no samba urbano carioca, gênero musical binário, sincopado, fixado por compositores
populares. O samba nasceu, pode-se dizer, em agosto de 1916, no quintal da casa da baiana
Hilária Batista de Almeida (1854-1924), a Tia Ciata20 (SEVERIANO, 2008:69).
Segundo o historiador Edigar de Alencar, no livro Nosso Sinhô do Samba, uma
roda de batuqueiros, integrada por Donga (1890-1974), Sinhô (1888-1930), Germano
Lopes da Silva (1885-1933) e a própria Tia Ciata (1854-1924), criou, em noites sucessivas,
uma composição chamada “O roceiro”, que Donga (Ernesto dos Santos) registrou com o
título de “Pelo telefone” (1916):
O chefe da folia
Pelo telefone manda me avisar
Que com alegria
Não se questione para se brincar
Ai, ai, ai
É deixar mágoas pra trás, ó rapaz
(DE MEDEIROS, Anacleto. Biografia. Disponível em: <http: //www.wikipédia.org/wiki/_de_Medeiros>.
Acesso em: 15 jan. 2012).
17
No plano da nascente música popular urbana dirigida às camadas sociais mais amplas, começava a se
formar, um movimento de interesse romântico dos eruditos pelas manifestações consideradas do povo;
resultando assim, no aparecimento da modinha seresteira (cf. TINHORÃO, J.R. op. cit., p. 135).
18
Gêneros binários, muito populares na Espanha e na América Latina, no século XIX. O tango andaluz e a
habanera cubana têm provavelmente origem em cantos remotos da África do Norte, levados pelos árabes para
a Espanha e pelos negros para a Cuba (cf. SEVERIANO, J. op. cit., p. 27).
19
Em meados do século XIX, chegou ao Brasil a polca, forma de música dançante que, juntamente com a
valsa, predominaram nos salões do mundo inteiro até os primeiros anos do século XX (cf. Ibidem, p. 26).
20
Mãe-de-santo respeitada, Hilária foi confirmada no santo como Ciata de Oxum, no terreiro de João Alabá,
na Rua Barão de São Felix, onde também ficava a casa de Dom Obá II e o famoso cortiço Cabeça de Porco
(cf. Moura, Roberto. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. FUNARTE, 1983, p. 20).
Ai, ai, ai
Fica triste se és capaz e verás21
É desse momento, o samba-enredo, criado sobre um tema histórico ou outro
previamente escolhido pelos dirigentes da escola para servir de enredo ao desfile no
carnaval; o samba-choro, de maior complexidade melódica e harmônica, derivado do choro
instrumental; e o samba-canção, de melodia elaborada, temática sentimental e andamento
lento, que teve como primeiro grande sucesso “Linda flor” (1928), de Henrique Vogeler,
Marques Porto e Luiz Peixoto, gravado em 1929 pela cantora Araci Cortes22(1904-1985).
Também nessa fase nasceu o samba dos blocos carnavalescos dos bairros do
Estácio e Osvaldo Cruz e dos morros da Mangueira, Salgueiro e São Carlos, com
inovações rítmicas que ainda perduram. Nessa transição, ligada ao surgimento das escolas
de samba, destacaram-se os compositores Ismael Silva23 (1905-1978), Nílton Bastos24
(1899-1931).
Ainda centrando-nos na magia da batucada, não poderíamos esquecer, Heitor dos
Prazeres (1898-1966), o compositor que lançou o samba de breque25 “Eu choro” (1933).
Esse tipo de samba atingiu toda sua força cômica nas interpretações de Moreira da Silva26
(1902-2000), cantor ainda ativo na década de 1990, que imortalizou a figura maliciosa do
sambista malandro.
21
SANTOS, Ernesto dos. Pelo Telefone. Disponível em: <http://letras.terra.com.br/donga>. Acesso em: 01
abr. 2011.
22
Nascida no Estácio, foi criada pela madrinha muito severa; cresceu e mudou-se com a família para o
Catumbi, aonde teve como vizinho um rapaz negro que tocava flauta, Pixinguinha, o fundador do grupo Oito
batutas. Por iniciativa própria começou a cantar em vários teatros da cidade, tornando-se conhecida pela voz
de timbre soprano e o jeito personalista de cantar. O reconhecimento veio com a música “Que Pedaço”, de
Sena Pinto (1923), e em seguida outro sucesso, “Jura”, de Sinhô (1928). (CORTES, Araci. Biografia.
Disponível em: <http://www.wikipedia.org/wiki/Araci_Cortes>. Acesso em: 15 jan. 2012).
23
Ismael Silva, o bamba do Estácio, começou ainda na adolescência a frequentar rodas de samba e a compor.
Como era talentoso, suas composições logo começaram a se espalhar pela cidade. A parceria de Ismael Silva
com Chico Buarque lhe rendeu fama e ao último, exclusividade do repertório do primeiro. (cf. SEVERIANO,
J. op. cit., p. 121-122).
24
Nilton Bastos era mecânico do Arsenal de Guerra e compositor. Além dos conhecidos sambas, feitos com
Ismael Silva, é autor de “O destino Deus é quem dá”, sucesso lançado por Mario Reis, em 1929. (cf. Ibidem,
p. 124).
25
A principal característica do estilo é a pausa no acompanhamento acentuadamente sincopado para uma
intervenção declamatória do intérprete. (Samba de breque. Definição. Disponível em:
<http://www.wikipedia.org/wiki/Samba_de_breque>. Acesso em: 15 jan. 2012).
26
Considerado o criador do samba-de-breque, Moreira da Silva iniciou sua carreira em 1931, com “Ererê” e
“Rei da Umbanda”. Em 1992, foi tema do enredo da escola de samba Unidos de Manguinhos. Em 1995
gravou "Os três Malandros In Concert" com Dicró e Bezerra da Silva, aos 93 anos de idade. Em 1996, foi
tema do livro Moreira da Silva - O Último dos Malandros. Com 98 anos de idade, ainda se apresentava em
shows. Participou do histórico disco de Chico Buarque de Holanda, a "Ópera do Malandro" de 1979, fazendo
dueto
com
o
próprio
Chico.
(DA
SILVA,
Moreira.
Biografia.
Disponível
em:
<http://www.wikipedia.org/wiki/Moreira_da_Silva>. Acesso em: 15 jan. 2012).
O partido alto27 também ressurgiu entre os compositores das escolas de samba dos
morros cariocas, já não mais ligado à dança, mas sob a forma de improvisações feitas
individualmente, alternadas com estribilhos conhecidos e cantados pela assistência.
Caminhando na esteira das raízes brasileiras, nesse momento ainda, começava a
tocar e a compor, profissionalmente, o jovem Pixinguinha, Alfredo da Rocha Viana (18971973), que iria se tornar um ícone de nossa música popular, na primeira metade do século
XX. Normalmente reconhecido "apenas" por ser um flautista de alta virtuose, era também
compositor, como nos confirma a música, “Carinhoso” (1917):
Meu coração, não sei por quê
Bate feliz quando te vê
E os meus olhos ficam sorrindo
E pelas ruas vão te seguindo,
Mas mesmo assim foges de mim28
Tomando por base as pesquisas de Severiano (2008:77) e Tinhorão (1998:254-255),
a marchinha de carnaval surge, na década de 1920, passando a dividir a hegemonia da
canção carnavalesca com o samba. Ao contrário deste, oriundo das camadas mais humildes
da população, a marchinha de carnaval foi uma invenção da classe média. As marchinhas,
nessa época, saíam dos palcos da Praça Tiradentes para o sucesso popular, amparadas
apenas na repercussão dessa produção para as revistas. 29
Já a história das orquestras populares30 brasileiras, primeira metade do século XX,
Severiano (2008:193) nos diz que os personagens principais, dessa época, foram
Pixinguinha (1897-1973) e Radamés Gnattali (1906-1988). Ambos criaram os padrões
básicos de arranjo para a MPB, servindo seus trabalhos de paradigma para os músicos
nacionais que pontificaram nas décadas de 1930 e 1940. Pixinguinha apreciava os metais e
Radamés, as cordas.
Nesse cenário erudito-popular, temos a presença do compositor brasileiro, Heitor
Villa-Lobos (1887-1959), cujo convívio com os exímios chorões do Rio de Janeiro,
27
As reuniões, como as que patrocinavam a baiana Tia Ciata, denominavam-se ‘partideiros’, isto é, de gente
que se dedicava ao ‘partido alto’ – a expressão provém da alta dignidade desse samba, cultivada por minorias
negras. (cf. CESAR, Ligia Vieira. Poesia e política nas canções de Bob Dylan e Chico Buarque. São Paulo:
Novera, 2007, p. 85).
28
ROCHA VIANA, Alfredo da. Carinhoso. Disponível em: <http://www.letras.terra.com.br/pixinguinha>.
Acesso em: 04 abr. 2011.
29
O Teatro de Revista foi, em seus tempos áureos, uma forma de espetáculo cômico-musical em que se
mesclava a sátira política e social com a exploração de um humor livre, malicioso e a exibição generosa da
plástica das atrizes (cf. SEVERIANO, J. op. cit., p. 54).
30
A origem das orquestras populares remonta aos costumes do século XVIII, com os barbeiros músicos. Com
o desaparecimento desses músicos, as bandas militares assumiram a função de principal difusora da música
instrumental, marcial e popular (cf. Ibidem, p. 47-48).
levava-o a considerar o folclore rural, como a fonte por excelência para sua inspiração
nacionalista. O compositor de obras clássicas, absorvia sobretudo, o “nacionalismo
universal” de Stravinsky (1882-1971), sabendo transpor essa abstração para o contexto
brasileiro. Com uma vasta produção, Villa-Lobos criou suas melhores peças – “Noneto”
(1923), “Rudepoema” (1926), “Choros” (1928), “Bachianas Brasileiras” (1930) –,
alinhavando temas musicais de nosso folclore.
Valendo-se de melodias entoativas (entre o choro e a modinha), Villa-Lobos atingia
soluções admiráveis no campo harmônico: do ritmo de batuque à oralidade inscrita nos
coros (TATIT, 2004:36-37). Com o tempo, desenvolveu uma linguagem própria e
inconfundível, criando uma síntese entre o panorama erudito europeu e os temas musicais
de nosso folclore brasileiro. Gilberto Freyre viria a considerar que esse compositor teria
concentrado em si, a essência da música nacional:
Direi que, no caso de Villa-Lobos, ele parece ter sido influenciado, como
carioca, em grande parte, por impactos sociais, e direi que esses impactos sociais
se tornaram nele sócio-musicais. É um assunto para um estudo detalhado do que
se pode chamar, ao lado de uma sócio-linguística, uma sócio-musicalidade. [...]
Vamos imaginar que, como sócio-músico, ele começou a absorver em si
influências sócio-musicais vindas para um morador, como ele, quando
plasticamente jovem, de um Rio de Janeiro, capital na época do Brasil, como
sons não abstratamente sons, porém sons sociais confluentes, que viessem a
confluir nele, carioca, dando-lhe uma perspectiva trans-carioca, ultra-carioca,
pan-brasileira. Villa-Lobos foi, decerto, assim, sócio-músico, um dos maiores
compositores que o mundo tem visto um pan-brasileiro supremo, não só carioca,
não só do sul do Brasil, mas um pan-brasileiro que chegou a compreender os
Brasis mais remotos, os mais remotamente gaúchos, os mais remotamente
amazônicos.31 (grifos do autor)
Esse panorama de renovação musical, iniciado no período anterior, contribuiu,
decisivamente, para que acontecesse a “Época de Ouro” (1929-1945), constituída pelos
artistas da geração de 30. Destacam-se os compositores Ary Barroso (1903-1964), com
“Aquarela do Brasil” (1939)
Brasil, meu Brasil brasileiro
Meu mulato inzoneiro
Vou cantar-te nos meus versos
O Brasil, samba que dá
Bamboleio que faz gingá
O Brasil do meu amor
Terra de Nosso Senhor
Brasil! Brasil! 32
31
apud GUÉRIOS , Paulo Renato. Heitor Villa-Lobos e o ambiente artístico parisiense: convertendo-se em
um músico brasileiro. Revista Mana [online], Rio de Janeiro, vol.9, n.1, p. 81-108, 2003.
32
NESTROVSKI, Arthur (Org). Lendo Música, 10 ensaios sobre 10 canções. São Paulo: Publifolha, 2007, p.
130.
Lamartine Babo (1904-1963), com a marchinha carnavalesca “História do Brasil” (1934)
Quem foi que inventou o Brasil?
Foi seu Cabral!
Foi seu Cabral
No dia vinte e um de abril
Dois meses depois do carnaval
Depois
Ceci amou Peri
Peri beijou Ceci
Ao som...
Ao som do Guarani!33
e Noel Rosa (1910-1937), com “Conversa de Botequim” (1935)
(...)
Uma boa média que não seja requentada
Um pão bem quente com manteiga á beça
Um guardanapo,
E um copo d'água bem gelada
Feche a porta da direita
Com muito cuidado...
Que não estou disposto
A ficar exposto ao sol
Vá perguntar ao seu freguês do lado
Qual foi o resultado do futebol34
O primeiro entrou para o meio musical tocando piano em cinemas e orquestras.
Escolheu o samba como principal meio de expressão, dando-lhe novas formas em um
processo de sofisticação que culminou em obras-primas como “Na Baixa do Sapateiro”
(1938) e “Aquarela do Brasil” (1939); o segundo, surgido, também, no final da década de
20, dedicou-se, especialmente, à marchinha, podendo ser considerado, juntamente com
João de Barro (1907-2006), fixador do gênero; e o terceiro, que revolucionou a poiesis de
nossa música popular, foi Noel Rosa (1910-1937).
Ressalta-se a importância, ainda nesse período, do canto coloquial35 de Mario Reis
(1907-1981). Até o aparecimento desse cantor, predominava entre nossos cantores
populares, a escola do bel canto italiano. Era a época do vozeirão, dos tenores e barítonos
de voz empostada, como a voz de Antônio Vicente Filipe Celestino (1894-1968). Isso
acontecia não apenas por razões de gosto ou tradição, mas pela impossibilidade de o
33
BABO, Lamartine. História do Brasil. Disponível em: <http://www.letras.terra.com.br/lamartine-babo>.
Acesso em: 04 abr. 2011.
34
ROSA, Noel. Conversa de Botequim. Disponível em:
<http://www.paixaoeromance.com/conversa_botequim.htm>. Acesso em: 04 abr. 2011.
35
Acreditando que a maneira certa de cantar exigia uma aproximação da língua falada – o que representava o
oposto à eloquência do bel canto – e utilizando ao máximo sua apurada musicalidade e seu perfeito domínio
sobre a divisão do fraseado musical, Mário desenvolveu uma técnica de interpretação que revolucionou nossa
maneira de cantar (cf. SEVERIANO, J. op. cit., p. 112).
indivíduo se fazer ouvir cantando à meia-voz em recintos amplos ou em gravações, no
precário sistema mecânico. Com a chegada ao Brasil, em 1927, da gravação e amplificação
eletromagnética, com seus microfones e alto-falantes, foi superada a necessidade de se
possuir voz forte para gravar ou cantar em público.
Seguindo a trajetória histórico-social da MPB, nos deparamos com Herivelto de
Oliveira Martins (1912-1992). Esse compositor ajudou a consolidar a chamada “Época de
Ouro”, de nossa música popular. Somente no período de 1942-1949, esse artista iria
deslanchar como compositor trágico-romântico. Pertencem à sua grande fase, sambas
carnavalescos como “Praça Onze”, com Grande Otelo (1942); “Laurindo” (1943); “Odete”
(1944), com Dunga. E o samba-canção, “Ave Maria no Morro” (1942):
Barracão
De zinco
Sem telhado
Sem pintura lá no morro
Barracão é bangalô36
Não podemos esquecer a participação do sambista, da década de 40, Wilson
37
Batista (1913-1968). Data de 1929 seu primeiro samba, “Na estrada da vida”, cantado no
palco por Aracy Cortes (1904-1985) e só lançado em disco em 1933, por Luís Barbosa
(1910-1938). Seu repertório não se restringia aos temas românticos. Destacavam-se,
também, os temas voltados para os costumes:
Lá vem o Chico Brito
Descendo o morro
Na mão do Peçanha
É mais um processo
É mais uma façanha
O Chico Brito fez do baralho
Seu melhor esporte
É valente no morro
E dizem que fuma uma erva do norte38
Severiano (2008:165-166) assim comenta:
36
MARTINS, Herivelto. Ave Maria no Morro. Disponível em: <http://www.letras.terra.com.br/heriveltomartins>. Acesso em: 29 mar. 2011.
37
Suas desavenças com Noel Rosa acabaram se transformando em sambas: “Lenço no Pescoço”, “Mocinho
da Vila”, “Conversa Fiada”, “Frankenstein da Vila” (por causa do queixo defeituoso de Noel) e “Feitiço da
Vila”. (BATISTA, Wilson. Biografia. Disponível em: <http://www.letras.com.br/biografia/wilson-batista>.
Acesso em: 29 mar. 2011).
38
BATISTA, Wilson. Chico Brito. Disponível em: <http://www. letras.com.br/wilson-batista/chico-brito>.
Acesso em: 29 mar. 2011.
Esses temas ele desenvolveu com um perfeito sentido de síntese, descrevendo os
traços essenciais de seus personagens e dos ambientes em que os situava. Era
característica em sua técnica narrativa a focalização do protagonista
movimentando-se num quadro vivo, como se fosse uma cena cinematográfica
(...). (grifos nossos)
Nessa turbulência de lançamentos, houve uma divisão do samba-canção em duas
vertentes, a tradicional e a moderna. A tradicional era musical e poeticamente inspirada em
modelos consagrados na “Época de Ouro” (1929-1945), e tinha como expoentes os
veteranos compositores Lupicínio Rodrigues (1914-1974) e Herivelto Martins (19121992). A vertente moderna era, essencialmente, renovadora e propunha novos rumos não
apenas para o samba-canção, mas também para a própria música popular e tinha como
representantes os jovens cantores Dick Farney (1921-1987) e Lúcio Alves (1927-1993).
Enquanto parte considerável da primeira derivou para formas popularescas, a segunda
sofisticou-se, desembocando na bossa nova.
É necessário ressaltar que a geração “pós-Época de Ouro” – a maioria pertencente à
área do samba-canção – tem como figura de destaque, Antônio Carlos Jobim (1927-1994),
compositor de “Matita Perê” (1973):
Manhã noiteira de força viagem
Leva em dianteira um dia de vantagem
Folha de palmeira apaga a passagem
O chão, na palma da mão, o chão, o chão
E manhã redonda de pedras altas
Cruzou fronteira de servidão
Olerê, quero ver
39
Olerê,
cuja personalidade foi formada com influências que iam dos clássicos aos impressionistas,
até as grandes figuras da música brasileira – especialmente, Villa-Lobos. Essa depuração
musical é percebida através da qualidade de suas melodias, finamente elaboradas, muitas
das quais, seguidoras de caminhos inusitados, cheias de resoluções inesperadas,
reveladoras de sua formação erudita. Podemos constatar que
realmente Jobim conheceu as harmonias requintadas que usaria em toda a sua
carreira diretamente na fonte, ou seja, em obras de impressionistas franceses,
como Claude Debussy - outra de suas maiores influências -, enquanto o pessoal
da bossa nova as conheceria em segunda mão, através principalmente de músicos
do chamado cool jazz (SEVERIANO, 2008:340).
Luiz Tatit (2004:49) menciona que, ainda na década de 50, surge João Gilberto
(1931) com um estilo intimista de cantar. Em 1958, este cantor lança o disco “Chega de
39
CARLOS JOBIM, Antonio. Matita Perê. Disponível em: <http://www.letras.terra.com.br/tom-jobim>.
Acesso em: 29 mar. 2011.
Saudade” e instaura o movimento bossa nova40, a primeira reviravolta musical operada,
integralmente, no domínio da canção popular. O movimento configurava a maturidade da
linguagem surgida dos terreiros do início do século e a importância que ela foi adquirindo
na formação social e cultural do país. Além de nomear um gênero musical, um tipo de
samba41,
Vai minha tristeza
e diz a ela
Que sem ela não pode ser
Diz-lhe numa prece que ela regresse
Porque eu não posso mais sofrer
Chega de saudade, a realidade é que sem ela
Não há paz, não há beleza, é só tristeza
E a melancolia que não sai de mim, não sai de mim, não sai
Mas se ela voltar, se ela voltar
Que coisa linda, que coisa louca
Pois há menos peixinhos a nadar no mar
Do que os beijinhos que eu darei na sua boca (...)42
a bossa nova é, como o choro e o samba, um estilo, uma maneira de tocar. Essa maneira de
harmonizar pode ser melhor compreendida na conceituação de Luiz Tatit (2004:49-50):
A bossa nova de João Gilberto neutralizou as técnicas persuasivas do sambacanção, reduzindo o campo de inflexão vocal em proveito das formas temáticas,
mais percussivas, de condução melódica. Neutralizou a potência de voz até então
exibida pelos intérpretes, já que sua estética dispensava a intensidade e tudo que
pudesse significar exorbitância das paixões. Neutralizou o efeito de batucada
que, por trás da harmonia, configurava o gênero samba em boa parte das canções
dos anos trinta e quarenta, eliminando a marcação do tempo forte na batida do
violão. Desfez a relação direta entre o ritmo instrumental e a dança que
caracterizava as rodas de samba. Dissolveu a influência do cool jazz nos acordes
percussivos estritamente programados para o acompanhamento da canção, sem
dar espaço à improvisação. E, acima de tudo, pela requintada elaboração sonora
do resultado final, desmantelou a ideia dominante de que música artística só
existe no campo erudito. (grifos nossos)
O movimento, que nasceu na zona sul do Rio de Janeiro, modificou a acentuação
rítmica original e inaugurou um estilo diferente de cantar, intimista e suave. Para Augusto
de Campos (2008:78), a revolução proposta pela bossa nova era reduzir e concentrar ao
máximo os elementos poéticos e musicais, abandonando todas as práticas demagógicas.
40
A bossa nova ─ projeto inicial de economia e depuração sonora que jamais deixara de falar sobre ‘amor,
sorriso e flor’ ─ passados os cinco anos, foi-se adaptando aos anseios ideológicos da época que conduziam
boa parte da classe artística para os temas de ‘raiz’ e para as reivindicações sociais (cf. LUIZ, Tatit. op. cit.,
p. 180-181).
41
“(...) a forma acelerada de estabilização melódica privilegia os acentos e, portanto, as vogais salientes e
breves, entre as quais percutem intensamente as consoantes, que se reportam em última instância aos velhos
batuques; a forma desacelerada de estabilização deixa que as vogais se alonguem e se expandam no campo
de tessitura, valorizando o percurso melódico em seus desdobramentos progressivos” (cf. Ibidem, p. 43-44).
42
GILBERTO, João. Chega de Saudade. Disponível em: <http://www.letras.terra.com.br/joao-gilberto>.
Acesso em: 04 abr. 2011.
Evoluir no sentido de uma música de câmara adequada à intimidade dos pequenos
ambientes, característicos das zonas urbanas de maior densidade demográfica. Uma música
voltada por assim dizer, para o detalhe e para uma elaboração mais refinada com base
numa temática extraída do próprio cotidiano.
Essa bossa nova, além de João Gilberto e Tom Jobim (1927-1994) atraiu Vinicius
de Moraes (1913-1980), poeta diplomata que influenciou a harmonia musical entre poesia
e letra:
De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento. 43
Marcus Vinitius da Cruz de Mello Moraes (1913-1980) foi o realizador da peça
intitulada, “Orfeu da Conceição” (1954), peça que haveria de determinar sua definitiva
incursão na MPB. Ao lado de Tom Jobim, reformulou a canção brasileira, sintetizando em
sua obra todo um processo de modernização, por muitos iniciado nos anos anteriores. Os
versos do poeta, que se mostrava letrista, iriam refletir nas novas gerações. De forma
especial, a que se destacaria, na era dos festivais televisivos (SEVERIANO, 2008:335).
Considerando as reflexões de Ligia Vieira Cesar (90-91), observaremos que até a
presente época, essas letras retratavam dramas passionais do samba-canção, com uma
temática leve, bem de acordo com o cenário da zona sul do Rio, falando de mar, amor,
garota da praia; entretanto, a partir de 1962, essas composições passam a fazer parte de
uma política engajada, denominada pelos letristas de samba participante. Essas vanguardas
participantes estão presentes nas composições de Zé Keti, João do Valle, Edu Lobo e nas
vozes de Nara Leão e Maria Bethânia.
Assim, após o período inicial (1958-1962), as músicas da bossa nova passaram a
acompanhar os problemas políticos do Brasil, instaurando, portanto, o estado de
contestação, ou melhor, o samba de protesto. Configura-se um período divisor entre as
canções que foram compostas, inicialmente, e que poderíamos chamar de canções
elitizadas da bossa nova (Tom Jobim, Ronaldo Bôscoli, Johnny Alf, Roberto Menescal),
com as que, a partir de 1964, procuraram uma participação mais engajada. Um dos letristas
dessa corrente de samba denominado participante – segundo Tinhorão – seria Ruy Guerra,
que, em parceria com Edu Lobo, justifica essa nova tendência da bossa-nova.
43
MORAES, Vinicius de. Antologia Poética. Rio de Janeiro: A Noite, 1960, p. 96.
Mas foi entre 1965 e 1972 que, a televisão brasileira viveu sua fase de maior
interação com a música popular, através de programas – como “O Fino da Bossa” e
“Bossaudade” – todos produzidos pela TV Record – e uma sequência de festivais de
canções, realizados na maioria pela TV Globo do Rio e a TV Record de São Paulo. O II
Festival da MPB, da TV Record, foi um dos mais concorridos, porque registrou um empate
na primeira colocação.44
É nessa segunda fase da bossa nova, com Edu Lobo, Geraldo Vandré, entre outros,
que esses componentes lançam, nesses festivais de música popular, os primeiros produtos
da canção de protesto.45
Partindo das referências de Sant’Anna (1977:179-180), de seu entendimento sobre
equivalências e identidades entre Música Popular e Poesia Brasileira, poderemos afirmar
que o Modernismo de 1922, ou melhor, seu interesse pelo folclore brasileiro e seu projeto
para recriar o cotidiano das diversas realidades do país estavam, explicitamente,
configurados nos lundus, maxixes e sambas-canções dos formadores das sonoridades
culturais brasileiras.
Os efeitos que os modernistas queriam em seus versos: a plasticidade semântica,
visual e sonora com os vocábulos, o lado prosaico da vida, a forma coloquial sem ransos
elitistas, a forma paródica enquanto suporte crítico, a desmusicalização dos versos
tradicionais e os efeitos pictóricos com as palavras encontravam-se presentes no ritmomelódico da década de 30, 40 e com maior sofisticação, com a Bossa Nova. Tornando-se
mais nítida, na década de 60, quando as identidades ganharam ainda maiores contornos
com o surgimento das canções de protesto social. O futuro utópico, reparador e mítico,
permitiram cantar o samba, restrito como uma das poucas “soluções” para expressar o
pensamento oposicionista ao regime militar.
Nessa atmosfera, surge a figura do compositor e letrista Chico Buarque46 que se
projetara com “A banda”, em 1966. O próprio radicalismo revolucionário da bossa nossa
preparou, de forma paradoxal, o nascimento deste compositor. Como podemos observar:
44
II Festival da Música Popular Brasileira: 1°) “A banda” (Chico Buarque) e “Disparada” (Geraldo Vandré e
Theo de Barros); 2°) “De amor ou paz” (Adauto Santos e Luís Carlos Paraná); 3°) “Canção para Maria”
(Paulinho da Viola e Capinan); 4°) “Canção de não cantar” (Sérgio Bittencourt); 5°) “Ensaio geral” (Gilberto
Gil) (cf. SEVERIANO, J. op. cit., p. 348).
45
Tais canções passam a retratar, embora de uma forma velada e com uma linguagem poética repleta de
nostalgia, ‘o dia que virá’ e o pessimismo de um tempo de silêncio, tempo esse em que o poeta se coloca
como um espectador, testemunhando um período em que não podia cantar. (cf. CESAR, Ligia Vieira. op. cit.,
p. 93).
46
Chico Buarque de Hollanda será aqui referendado ora como Chico Buarque, ora como Chico, ora como
Buarque.
Chico ajuda-nos a entender a música tradicional de antes e depois da bossa nova,
através de uma perspectiva mais crítica, criando um estimulante parâmetro de
qualidade. Ele comprovaria aquela famosa frase de Jorge Luís Borges: ‘O bom
autor é aquele que cria seus precursores’ (CHAMIE apud TÁRIK, 1983:13).
Esse tema foi esclarecido por Chico Buarque em entrevista ao Pasquim, em 1970:
Queria ser bossa-nova, queria cantar igual João. As melodias eram bossa-nova, a
harmonia procurava ser ... tudo imitação. Assisti a um show no Mackenzie onde
apareceu Vinicius com Baden. Tinham acabado de chegar, cantando sambas
novos. Eram sambões, “Formosa”. Me lembro de um comentário de uma cantora
que eu conhecia: torceu o nariz e falou “Aquilo é meio bossa-velha”. Havia
aquele preconceito. Mas comecei a gostar daquilo de novo. Negócio de ir pra
butiquim e cantar todo mundo junto. Não dava mais. A bossa-nova já tinha uns
cinco anos (apud TÁRIK, 1976:16).
Partindo do entendimento que a criação, consolidação e disseminação de uma
prática artística no Brasil se constituíram de um processo de mistura e triagem47, podemos
inferir que a bossa nova se manifesta na atividade de cada compositor ou intérprete em
seus momentos de sofisticação melódica. Mas quando se deseja resgatar uma oralidade
brejeira, emprega-se a base rítmica dos lundus e das modinhas de outrora, erigidas e
reinterpretadas, singularmente, nas composições musicais buarqueanas. O foco de sentido
de suas curvas entoativas48 concentram-se sobretudo em suas finalizações, ou seja, nas
inflexões, que antecedem as pausas parciais ou o silêncio derradeiro, como podemos
constatar em: “Pivete” (1978), “O Meu Guri” (1981), “Pedro Pedreiro” (1965), “Gente
humilde” (1969), “Construção” (1971), “Partido alto” (1972), “Linha de montagem”
(1980). As composições de Chico nos despertam uma sensibilidade musical que vai de
encontro à canção gastronômica. 49
Para Walnice Nogueira (1976:113), a obra de Chico pode ser dividida em duas
vertentes: na primeira está a metacanção, essencialmente lírica, embora possa conter
elementos narrativos. A essa vertente pertencem “Sonho de um carnaval”, “Tem mais
samba”, “A Banda”, “Roda-Viva”, “Olê Olâ”, “Realejo”. Na segunda vertente, a canção é
mediada por um personagem, cheia de estranhos pormenores:“Com açúcar, com afeto”,
“Juca”, “Lua cheia”, “Rita”, “Quem te viu, quem te vê”, “Fica”. As canções, do segundo
47
Expressão empregada por Luiz Tatit.
O segredo do cancionista residiria, assim, na busca de dar às frases melódicas a intenção de suas como que
correspondências no campo da fala: à operação que tem lugar nesta região tensiva, nevrálgica, a este
malabarismo chama-se entoação. (cf. NESTROVSKI, Arthur. op. cit., p. 65).
49
Canção de consumo produzida por uma indústria da canção para vir ao encontro de algumas tendências
que esta individua (e cultiva) no mercado nacional (cf. ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados; trad. de
Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 295-317).
48
tipo, configuram à dicção50 de Noel Rosa, Sinhô, Ataulfo Alves, tendo formas mais
tradicionais.
Para Tárik (1983:17), nenhum outro autor obtém tão largo e influente espectro de
ressônancia popular como Chico: seu repertório atinge dos programas de calouros ao
encasacado espetáculo do Municipal (parcialmente reproduzido no Canecão) com
partituras eruditizadas pelo maestro Isaac Karabtchevski.
Para Augusto de Campos (2008:95), além da poética de Chico, há também a rica
dimensão melódica de suas músicas; seu canto flui, descontraidamente, nas composições
mais simples como nas mais pretensiosas. O intimismo de sua linguagem sugere
igualmente um tratamento musical de câmara, onde a boa articulação do texto, a clareza
melódica e o despojamento interpretativo são aspectos essenciais.
Nas composições musicais de Chico Buarque, nosso passado se essencializa e pode
ser lido em toda a sua diversidade cultural. Seus recursos estéticos de base erudita –
voltados para uma leitura verticalizada de sua obra no que tange à sua disposição poética e
ao seu desenho melódico e de base popular – estão voltados para um diálogo com o povo,
trazendo à tona uma polifonia rítmica que demarca uma formação musical de via dupla, já
operada no século XIX, por compositores instrumentistas, com o intuito de obter uma
significativa obra cancional. Chico transita entre a influência das variações melódicas
jobinianas, como em “Mulheres de Atenas” (1976). Dialoga com a depuração estética de
João Gilberto atrelada ao canto coloquial de Mário Reis – “Vai passar” (1984). Investe nas
peripécias narrativas de Wilson Batista – “Subúrbio” (2006). Duela com a poesia de
Vinicius de Moraes – “Benvinda” (1968) e, recria a singularidade de um Pixinguinha
&Villa-Lobos – “Assentamento” (1997).
A canção buarqueana parece sempre revestida de diversas camadas de sentido que
dão profundidade tridimensional à linha melódica51 (TATIT, 2002:236), como podemos
constatar, através de “Sempre” (2006), texto musical, feito especialmente, para o filme “O
maior amor do mundo”, de Cacá Diegues:
(...)
Eu te contemplava sempre
Feito um gato aos pés da dona
Mesmo em sonho estive atento
Pra poder lembrar-te sempre
50
Expressão utilizada por Luiz Tatit.
Pode-se dizer que o ritmo é o esqueleto que dá suporte à melodia, enquanto a melodia é aquilo que
preenche esse suporte com conteúdo estritamente musical. No sentido físico, a melodia não é senão uma
sucessão de sons, ou melhor, de alturas (cf. SANTAELLA, Lucia. Matrizes da linguagem e pensamento:
sonora, visual, verbal. São Paulo: Iluminuras, 2005, p. 174).
51
Como olhando o firmamento
Vejo estrelas que já foram
Noite afora para sempre52
O texto de Chico provoca no leitor uma atitude reflexiva, convidando-o à
desconstrução do signo poético pós-moderno53, ou seja, a leitura inversa do signo com a
intenção crítica de levantar os procedimentos poéticos nos enunciados, sua condição
sígnica pré-existente, desveladora da exploração da estrutura holográfica do poema que
revela a intencionalidade implícita no projeto da criação (ANAZILDO, 2010:25).
Com o advento das tecnologias pós-modernas, as coisas mudaram radicalmente. A
música ligada à poesia pode agora circular ainda mais ampla e rapidamente do que a
palavra escrita, pois ela tem um alcance, um poder de atração muito maior, principalmente
no Brasil, que tem um público leitor escasso.
Nesse espaço cibercultural, a
ressemiotização dos signos culturais cristalizados – incluindo as formas artísticas e os
objetos poéticos – estabelece por si só, dentro da legitimidade do processo de criação
artística pós-moderna, um novo conceito de originalidade e, consequentemente, de arte.
Nesse espaço cibercultural, devemos reavaliar a prática cancionista. Em virtude de
seu caráter intersemiótico (ao mesmo tempo linguagem musical e verbal – oral e escrita),
esta prática cancionista se situa paratopicamente em relação à própria literatura, pelo
menos em sua dimensão tópica, isto é, institucional ou acadêmica. A canção é, por um
lado, atraída para seu campo gravitacional, por conta de sua interface escrita (a canção é
letra em diversas fases de sua produção); por outro, é repelida em virtude de sua dimensão
não-escrita (melodia). Dada à institucionalização da prática discursiva literária no mundo
ocidental, há controvérsia nos meios literários sobre se a chamada letra de música é ou não
poesia, o que equivale à questão de se ela tem ou não status equivalente à poesia (COSTA
apud FERNANDES, 2004:333).
E o leitor pós-moderno, penetrando nessa camada palimpsesta, descobre um
mosaico híbrido na linguagem artística de Chico:
A hibridização dos recursos e das formas artísticas na criação pós-moderna,
configurada na referenciação, na elaboração intratextual, na montagem figurativa
e na mescla estrutural dos estilos, entre outros, assinala o advento de uma
estética holográfica portadora de uma nova concepção do belo artístico que
reclama o urgente reconhecimento crítico. Essa intenção holográfica da arte pós52
HOMEM, Wagner. Histórias de canções. São Paulo: Leya, 2009, p. 315.
O pós-moderno é um estilo de codificação dupla, isto é, uma arquitetura que adota um híbrido da sintaxe
moderna e da historicista, com apelo tanto para o gosto educado quanto para a sensibilidade popular. É essa
mistura liberadora do novo e do velho, do elevado e do vulgar (cf. ANDERSON, Perry. As origens da pósmodernidade; (trad. de Marcus Penchel). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p.30).
53
moderna permite entender os objetos artísticos de qualquer natureza – verbais,
picturais, musicais, etc. – como um holograma (espécie de fotografia a laser que,
partida em pedaços, tem a propriedade de reproduzir a imagem completa do
objeto em cada um dos seus fragmentos isolados), de modo que cada objeto de
arte reproduziria em si mesmo a criação artística por inteiro, ou seja, o todo de
que é parte (ANAZILDO, 210:24-25).
Uma das camadas desse mosaico, que permeia de profundidade a melodia, está
visceralmente comprometida com o mito, com o drama e as emoções conflituosas próprias
do pensamento narrativo. Num estado de paixão imbricam-se vários programas narrativos
definidores do teor tensivo do texto e seu modo de compatibilização com a melodia
(TATIT, 2002:238). A música buarqueana está fortemente articulada não tanto pela
horizontalidade da sucessão narrativa, mas na verticalidade do simultâneo, própria das
estruturas míticas:
Na sua especularidade complementar, o mito é uma narrativa em que a
imbricação do sucessivo e do simultâneo dá ao sentido uma configuração
cristalina e partitural, e a música (tonal) é uma estrutura sonora em que a trama
discursiva dos elementos ganha direcionamemto mítico. A música e a mitologia
têm origem na linguagem, mas [...] ambas as formas se desenvolveram
separadamente e em diferentes direções: a música destaca os aspectos do som já
presentes na linguagem, enquanto a mitologia sublima o aspecto do sentido, o
aspecto do significado, que também está profundamente presente na
54
linguagem.
Nas canções buarqueanas, há a condensação da temática mítico-amorosa55;
apresentando-se nas frestas em dupla dimensão: no plano da fala e no plano do silêncio. No
primeiro, no plano da fala, ela é muitas vezes usada como encobrimento de ideias. No
plano do silêncio, há um falso ocultamento da linguagem. Por ser contida, rompe diques e
inunda os espaços intersubjetivos. Como podemos verificar nessa passagem da música,
desveladora desses subterrâneos:
O teu corpo em movimento
Os teus lábios em flagrante
O teu riso, o teu silêncio
Serão meus ainda e sempre56
Palavra e silêncio se alternam e se completam e seus sentidos se impõem na busca
pela satisfação amorosa. Satisfação esta que não pode ser obtida sem uma verdadeira
humildade, coragem, fé e disciplina. Mas em uma cultura em que essas qualidades são
54
WISNIK, José Miguel. O som e o sentido. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 164.
No Sonho, no Mito e na Arte está a garantia do imaginar, a reatualização e ritualização de atos pensantes,
construtores da cultura (cf. SENDRA, Arlete Parrilha. Embornal − de ensaios literários para leituras a granel.
Campos dos Goytacazes: Academia Campista de Letras, 2010, p. 216).
56
HOMEM, Wagner. op. cit., p. 315.
55
raras, atingir a capacidade de amar continua sendo uma rara realização. Amar significa
estar determinado a compartilhar e fundir duas biografias, cada qual portando uma carga
diferente de experiências e recordação, e cada qual seguindo o seu próprio rumo. Um
acordo sobre o futuro, portanto, sobre o desconhecido (FROMM apud BAUMAN,
2005:69).
O homem, desde sempre depositado na história, conhece, pelas experiências de
viver, a solidão e o abandono, a fuga e o exílio. Dentro desta história, o homem vive a
finitude e a culpabilidade. Viver é um compromisso, muitas vezes, difícil de cumprir. No
viver está presente a sobrecarga de cada instante, a resistência ao tempo. Exige do sujeito
uma permanente reelaboração de sua interioridade, capaz de acoplar uma nova figuração
subjetiva, cabendo à arte externalizar a interioridade singular de cada sujeito (ARLETE,
2010:154).
Para atingir esse acordo com o singular de cada sujeito, é necessário ter o domínio
da carga melódica e do contraponto da letra, como nos diz Luiz Tatit:
Mais que uma questão de mérito, as criações profundas revelam uma perícia
especial do compositor no sentido de só dizer o que a melodia tem condições de
intensificar. Para isso é necessário um discernimento aguçado na interpretação
das insinuações entoativas e, consequentemente, na escolha de um texto
compatível. Quase todos os grandes compositores tiveram experiências com
criações profundas. Chico Buarque fez delas sua dicção (2002:234).
E Chico, para fazer uso dos interstícios amorosos, acentua o balanceamento
cadencial entre a vogal [a] e a vogal [e] dos morfemas:
Dura a vida alguns instantes
Porém mais do que bastantes
Quando cada instante é sempre57
dilapidando as estruturas linguísticas:
As entidades matemáticas são estruturas em estado puro e livres de toda
encarnação, isentas pois de som e de sentido. As estruturas linguísticas são, ao
contrário das matemáticas, duplamente encarnadas, nascendo justamente da
intersecção de som e sentido, unidos no entanto numa relação instável, porque
nunca se recobrem completamente (as línguas se traduzem indefinidamente sem
nunca dizerem a palavra final nem a palavra primordial, deixando margem a
formas ou expressões limiares, tangenciais (...) (LÉVI-STRAUSS apud
WISNIK, 1989:163).
57
Ibidem, p. 315.
A elaboração das melodias atreladas à composição da letra, em forma narrativa,
requer uma escuta musical apurada para captar a melodia exata no que o texto propõe a
dizer, configurando, um entrelaçamento harmonioso na composição musical e na
compreensão da espessura da canção por parte do leitor da música de Chico:
A avaliação de um texto musical separado de sua música pode ser válida em
muitos casos, mas será sempre arbitrária ou incompleta. Tanto a composição
como a análise de uma letra podem ser afetadas de várias maneiras pela melodia.
Algumas dessas possibilidades são um certo intervalo ou valor temporal
(duração) que faz com que uma palavra ou frase se destaque, o fortalecimento de
uma ideia ou expressão no movimento das notas musicais, e a preferência por
uma vogal mais alta que corresponda a um tom mais alto. Quando se avalia a
estrutura, o significado e a efetividade poética da letra de uma canção é preciso
considerar como o fluxo das palavras está arrumado para a entonação
harmoniosa e se as características melódicas têm algum efeito notável sobre o
texto (PERRONE, 1988:12).
Esse autor de estrutura musical, basicamente narrativa, (em contraponto ao
impressionismo instrumental da bossa nova) escreveu textos plurais: marchas-rancho –
“Noite dos Namorados” (1966), modinhas – “Até Pensei” (1968), choros –
“Um
chorinho” (1967), serestas – “Realejo” (1967) e “Olé Olá” (1965), sambas – “Ela
Desatinou” (1968) e “Tem mais Samba” (1964), ritmos ultramarinos – “Fado Tropical”
(1972-1973), charleston – “Ai, se eles me pegam agora” (1977-1978), valsas – “Terezinha”
(1977-1978) e baião/rock – “Baioque” (1972); demonstrando-nos que sua identidade
sonora se entrelaça, harmoniosamente, pela junção de melodia e letra. No espaço rítmico, a
polifonia popular, a síncope da matriz musical africana; no espaço melódico e erudito, a
polifonia clássica, a síncope do modelo musical europeu − ambos inscritos no interior da
letra − constituem uma renovação músico-cultural.58
Segundo Muniz Sodré (1998:25), o elemento comum aos diversos gêneros musicais
de origem negra, do jazz norte-americano ao choro e ao samba brasileiro, é a síncope,
recurso musical que se manifestou na música brasileira como uma junção da síncope
melódica europeia com a síncope rítmica africana. Em vista disso, podemos inferir que dá
mesma forma que o negro brasileiro acabou aceitando o sistema tonal, a melodia europeia,
as músicas buarqueanas também o incorporaram, mas desestabilizando-o, através do
contraste polirrítmico. Dessa forma, suas composições musicais apresentam a síncope
como um importante elemento na sua técnica de hibridização. Isto podemos comprovar
pelas palavras de Chico Buarque, no livro, O Som Nosso de Cada Dia: “Procurei frear o
58
A música tem sido a linguagem que mais possibilita a integração do homem com seu tempo. Ela envolve o
homem nas reais dimensões de entendimento com seu meio e faz com que esse homem hodierno conheça as
múltiplas dimensões de seu momento histórico-cultural (cf. SENDRA, Arlete Parrilha. op. cit., p. 177).
orgulho das melodias” (TÁRIK, 1983:13). O tempero dessa mistura de raças e acordes
musicais permitiu uma sociomusicalidade.
Nesse contexto, concordamos com Arthur Nestrovski (2007:59-61) ao concluir que
essa tradição sociomusical tem como correlato semiológico a série de cruzamentos
culturais – batuque de origem africana, melodias europeias e letras urbanas – de que viria a
resultar o samba como gênero musical definido.
O samba, mestiço, depositário de uma tradição de encontros, de formas de
sociabilidade transclassistas e transculturais está, portanto, no cerne do que Chico Buarque
desenvolveu em suas canções, à maneira dos velhos e clássicos compositores como Noel
Rosa e Ismael Silva e remodelada pela bossa nova.
Alinhavando o texto, vamos costurar esta prosa buarqueana.
CAPÍTULO 2
ALINHAVANDO O TEXTO, COSTURANDO A PROSA
O menino Francisco Buarque de Hollanda, nascido no Hospital São Sebastião, no
bairro do Catete, no dia 19 de junho de 1944; coincidentemente quando o Rio se
movimentava ao som de Ataulfo Alves, Mário Lago, Lupicínio Rodrigues, Lamartine
Babo, Pixinguinha, Benedito Lacerda, Herivelto Martins, Ary Barroso, Donga, Ismael
Silva, Dorival Caymmi e muitos outros bambas que, em meados dos anos 40, povoavam as
rádios com sambas e marchinhas de carnaval.
Os dois primeiros anos de sua infância, ele os passa na rua Ronald de Carvalho,
esquina com a Avenida Atlântica, em Copacabana, onde viveu com o pai Sérgio Buarque
de Hollanda (1902-1982) – historiador, crítico literário, bacharel em Direito e jornalista –
a mãe Maria Amélia Cesário Alvim Buarque de Hollanda (1910-2010) e os irmãos Heloísa
(cantora e compositora), Sérgio (professor e economista) e Álvaro (advogado). Mais tarde
ainda viriam Maria do Carmo (fotógrafa), Ana Maria (cantora e ministra da Cultura desde
2011) e Cristina (cantora).
O compositor do amanhã aproveitou como pôde esses dois anos no Rio, porque,
mesmo depois de a família se mudar para São Paulo, rebocada pelo patriarca Sérgio, Chico
nunca mais deixou de se envolver com os encantos da cidade em que nasceu e para onde se
mudaria aos 22 anos.
Aos cinco anos, Chico já se interessava pelo universo da música e colecionava um
álbum de recortes com fotos de cantores do rádio. O menino era inquieto e observador.
Brincava muito com as irmãs, sobretudo com Maria do Carmo (Pii), que vinha logo abaixo
dele e Heloísa (Miúcha) – com quem aprendeu os primeiros acordes do violão – a
primogênita.
A casa da infância em São Paulo era repleta de saraus, histórias e brincadeiras. Mas
o movimento não se dava apenas por causa das crianças. A música deslizava tímida do
piano de sua mãe. Carioca e torcedora do Fluminense, Maria Amélia adorava levar os
meninos – Sérgio, Álvaro e Chico – para assistir aos jogos no Pacaembu, quando o time
carioca se apresentava.
Maria Amélia Cesário Alvim Buarque de Hollanda, ou Memélia, como os netos e
toda a família passariam a chamá-la, apesar de pequena e de aparência frágil, cuidava, com
firmeza da casa para que o marido pudesse trabalhar no escritório, lendo e escrevendo seus
livros. Ajudava-o em suas pesquisas, datilografando seus trabalhos a fim de que Sérgio
Buarque de Hollanda realizasse suas atividades de maneira produtiva.
Os livros de Sérgio Buarque de Holanda ultrapassavam a biblioteca e se
esparramavam pela casa dos Buarques, ocupando até o banheiro. O historiador passava
todo o tempo em sua biblioteca, lendo e trabalhando. Interrompia o trabalho para receber
amigos como Manuel Bandeira, Rubem Braga, Antonio Candido, Fernando Sabino,
Vinicius de Moraes, Afonso Arino entre outros. A imagem mais forte que os filhos
guardaram do pai pode ser observada no seguinte fragmento:
Ele sentado em seu escritório com os óculos na testa e um livro na mão. Era
capaz de acordar no meio da noite com uma ideia nova ou a lembrança de uma
informação preciosa que lera em algum lugar. Deixava a porta aberta do
escritório para acompanhar os movimentos da casa e, sobretudo, para ouvir as
últimas fofocas. E quando queria esfriar a cabeça, lançava mão de uma coleção
de gibis da Luluzinha, que guardava num caixote e adorava ler (ZAPPA,
2008:23).
Para Regina Zappa (2011:26), Sérgio Buarque de Hollanda era um grande
devorador de livros e um homem que viveu plenamente sua época. Tinha a inquietude e a
inteligência que destacou no próprio filho. Escreveu Raízes do Brasil, considerado um dos
livros mais importantes já escritos no país. Criou o conceito do brasileiro como homem
cordial, defendendo que a inimizade pode ser tão cordial quanto à amizade, porque ambas
nascem do coração, da esfera íntima, do familiar, do privado, como quase tudo no Brasil.
Na casa Buarque de Hollanda, uma figura foi de extrema importância para a
consolidação do gosto e da cultura musical de todos os filhos; a babá – filha de índios do
Pará – que trabalhara com a família, quando Beatriz (Miúcha), a primeira filha de Sérgio e
Amélia, tinha 10 meses. Babá era como a chamavam, mas seu nome era Benedita Motta.
Contava para as crianças histórias de mula-sem-cabeça, curupira e saci pererê.
Depois que todos cresceram, Babá continuou na casa, como cozinheira. Sua
importância foi além do cuidado com os meninos. Foi ao som do radinho que ela ganhou
de presente, quando completou 10 anos de casa, que Chico e os irmãos afinaram seu
repertório de sambas e marchinhas. Na área de serviço, a criançada, principalmente
Miúcha e Chico, se aboletava em torno do radinho e passava horas ouvindo e cantando
músicas. Muita coisa se ouvia. Desde Noel Rosa, Ataulfo Alves, música italiana, música
francesa até Dorival Caymmi. São palavras de Maria Amélia:
Chico cresceu numa época em que a música era moda. Em toda festinha, toda
reunião, tinha sempre alguém que pegava um violão e todos cantavam. Havia os
festivais e ele se inscrevia. Por isso, foi-se voltando cada vez mais para a música.
Ele tira a inspiração para suas composições dos sons da vida (ZAPPA, 2008:25).
Entre Rio e São Paulo, uma terceira capital seria palco da infância de Chico (mais
tarde, seu exílio). Em 1952, a família passa a residir em Roma, quando Sérgio Buarque de
Hollanda recebe o convite da Universidade de Roma para compor a cátedra de estudos
brasileiros. Além de aprender o italiano, Chico cursou a escola americana Mary Mount
School, onde aprendeu inglês. A volta de Roma, em 1954, aos 10 anos, fez Chico se sentir
um peixe fora d‘água, uma vez que havia se integrado ao estilo italiano e usava roupas e
sapatos diferentes dos meninos brasileiros. Mas não demorou a se adaptar à rotina das duas
cidades em que crescia. Enquanto o Rio continuava a ser a cidade das férias, São Paulo
moldava seu cotidiano escolar.
Chico cursou o ensino fundamental no Colégio Santa Cruz, um semi-internato para
meninos, dirigido por padres canadenses, no Alto de Pinheiros e, o ensino médio, com
exceção do último ano, que cursou em Cataguazes, para onde foi mandado pelos pais por
desvio de conduta. Acontecimento relatado em Chico Buarque Tantas Palavras:
Ele estava na terceira série ginasial, no Santa Cruz, em 1958, quando, sem se dar
conta, embarcou num movimento religioso, os Ultramontanos, que viria a ser um
dos embriões da TFP, a organização fascista Tradição, Família e Propriedade.
Não estava sozinho: a maioria da turma – dezesseis garotos em vinte e cinco –
também entrou, aliciada por um jovem professor de História Geral, Carlos
Alberto de Sá Moreira, que agia sem o conhecimento da direção do colégio, de
padres católicos progressistas. Os Ultramontanos viviam ancorados na Idade
Média e anunciavam para já o Juízo Final, quando a espada justiceira dos anjos
do Senhor não pouparia mais que uns poucos eleitos (WERNECK, 2006:24-25).
Ainda no tempo do Santa Cruz, Chico viveu experiências de fundo religioso mais
decisivas que os ultramontanos. Assim nos diz Werneck:
Ligando-se a um movimento chamado Organização de Auxílio Fraterno, ele
participou algumas vezes de expedições noturnas como a Estação da Luz, no
centro de São Paulo, sob o comando de um dos professores do colégio, o padre
André. Levava cobertores para os miseráveis que dormiam nas calçadas, e ficou
marcado pela reação daquelas pessoas, que fugiam como animais assustados à
aproximação de quem vinha ajudá-las (2006:27).
Em 1963, entrou para a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de
São Paulo (FAU), mas não se entusiasmou pela prancheta. A faculdade funcionava num
antigo prédio da Rua Maranhão, no bairro de Higienópolis, onde fermentava uma intensa
agitação – Juão Sebastião Bar, reduto paulistano da Bossa Nova criado pelo jornalista
Paulo Cotrim, na rua Major Sertório, bar que sobreviveu de 1962 a 1966. A animação,
naquela roda da FAU, era favorecida por um pessoal de fora, como João do Vale, Taiguara
e Toquinho, este aluno de contabilidade no Mackenzie.
Em 1965, o nome de Chico Buarque já tinha certo significado nos meios musicais
de São Paulo, onde a multiplicação de shows e o borbulhar de novos talentos
prenunciavam a era dos festivais, prestes a começar. O desencadeador dessa agitação foi
um espetáculo organizado no dia 25 de maio de 1964, no velho prédio do Teatro
Paramount, na Avenida Brigadeiro Luiz Antônio. Promovido por estudantes, o evento
chamou-se O fino da Bossa e pôs, no palco, Oscar Castro Neves, Alaíde Costa, Jorge Ben e
Nara Leão. O piloto desse programa, Primeira audição, foi gravado no auditório do
Colégio Rio Branco, em Higienópolis, em 2 de outubro de 1964. Em sua estreia televisiva,
Chico mostrou, entre outras criações, “Marcha para um dia de sol” (1964), acompanhado
por Maria do Carmo (Pii), Ana Maria (Baía), Cristina e uma amiga, Helena Hungria.
No mesmo ano, fez um show, no Colégio Santa Cruz, e mostrou aquela que seria a
sua música número um, ou seja, o marco zero da sua carreira musical: “Tem mais samba”
(1964). Canção feita de encomenda para o musical Balanço de Orfeu. Chico a partir desse
momento, começava a fazer a síntese do que seria a sua obra: reatava os laços com o
samba, sua primeira influência, trazia outras sonoridades da música brasileira, como a
modinha, o choro, a marcha-rancho e as marchinhas, e temperava tudo com as lições da
bossa nova. Assim nos fala o compositor Chico:
As primeiras músicas que fiz não contam e não constam da minha biografia
musical porque eram claramente tentativas de fazer bossa nova. Evidentemente,
imitações de bossa nova. E alguns sambas que gravei no começo da carreira
eram também um pouco pastiches daqueles sambas dos anos 1930, 1940.
Revistos, porque passavam pelo círculo da bossa nova e resultavam talvez em
algo original por causa disso (ZAPPA, 2008:58).
Humberto Werneck (2006:43-44) nos conta que Chico já não era apenas o irmão da
Miúcha quando, no começo de 1965, o escritor e psicanalista Roberto Freire lhe propôs um
desafio: queria que musicasse o poema Morte e Vida Severina, escrito em 1954-55, por
João Cabral de Melo Neto. A peça estreou em São Paulo em 1966 e um ano depois,
recebeu, na França, o 1ºlugar no Festival Internacional de Estudantes (FIE), em Nancy.
O falecido autor de Morte e Vida Severina se deliciou com o improviso que o filho
do amigo, Sérgio Buarque de Hollanda, inseriu no texto. Há no poema uma passagem em
que nasce uma criança e os circunstantes vão levar-lhe oferendas – e Chico teve a ideia de
acrescentar aos presentes uma oferenda adicional, uma cavala-perna-de-moça, peixe
reputadíssimo, em Pernambuco, terra natal do poeta.
Na época em que Roberto Freire lhe pediu músicas para o poema de João Cabral,
Chico estava fazendo sua estreia fonográfica – um falso disco ao vivo, com palmas
aplicadas sobre gravação realizada nos estúdios da RGE, em São Paulo. O compacto
chegou às lojas no dia 6 de maio de 1965. No final do ano sairia outro, com “Olê olá”
(1965) e “Meu refrão” (1965). O carro-chefe desse primeiro disco era “Pedro pedreiro”
(1965) que, a partir daquele momento, fez com que Chico fosse solicitado a cantar onde
quer que aparecesse.
O surpreendente não foi só a boa aceitação da música por parte do público, mas
também a revelação feita por Chico, mais de 40 anos depois:
A canção, na verdade, surgiu da vontade de ser Jorge Ben, de fazer uma música
parecida com as dele. Pedro Pedreiro não tem nada a ver com samba antigo, e era
pós-bossa nova, mas tem a ver com uma coisa que me impressionou muito
naquele tempo, que era violão percussivo do Jorge Ben. Não sabia fazer o violão
dele, mas havia ficado muito impressionado com aquilo (ZAPPA, 2008:62).
Foi também com o ritmo do samba e na cadência da Juventude Universitária
Católica (JUC) que Chico – ainda na faculdade – conviveu com o governo de João Goulart
(1919-1976) e o golpe militar que o derrubou em primeiro de abril de 1964.
Regina Zappa (2011:87-90) nos relata que nessa época, o movimento estudantil foi
ganhando força e as universidades passaram a ser um dos principais focos de resistência ao
regime militar. Nesse clima e durante o tempo em que foi universitário, Chico participou
das manifestações, ajudando a fazer vigília para que a faculdade não fosse tomada,
cantando junto com outros artistas, que se revezavam dia e noite. O Brasil começava a
entrar em um dos períodos mais negros de sua história, com o general Humberto de
Alencar Castello Branco (1897-1967) assumindo o poder.
Humberto Werneck (2006:47) também nos afirma que os primeiros anos que se
seguiram ao golpe de abril de 1964 foram, de qualquer forma, animados por uma intensa
produção cultural. Embora a resistência ao governo tenha começado no dia 1 de março de
1964, por parte da classe artística – principalmente, o pessoal da música e do teatro – a
repressão não se iniciou de forma violenta e o cerco só foi se formando à medida que o
tempo passava. Chico só teve que enfrentar de fato a repressão a partir do Ato Institucional
n°5.
Em 1965, os militares extinguiram os partidos políticos, acabaram com as eleições
diretas para a Presidência da República e começaram a intervir na universidade. Mas a
cena cultural, ao mesmo tempo, dava sinais de grande vitalidade, não faltando reações
explícitas ao progressivo fechamento que se observava no país. Surgia assim, destemida e
vigorosa, a Revista Civilização Brasileira, importante publicação que circularia até o AI-5.
Nesses dois primeiros anos de regime militar, a experiência de Chico com a censura
se limitou à proibição pela Marinha, da canção “Tamandaré”, em 1966. Uma brincadeira
que fez com a figura do almirante Joaquim Marques Lisboa, marquês de Tamandaré,
estampada nas notas de 1 (um) cruzeiro. É o que nos diz Wagner Homem (2009:34): “A
Marinha brasileira entendeu que havia na letra desrespeito à figura de seu patrono, e a
música foi proibida.”
No Brasil, o ambiente cultural e político eram efervescentes. Cultura e política se
mesclavam e as artes dialogavam como nunca na década de 60. O teatro de Arena e de
Opinião cediam seus autores politizados para o Cinema Novo, que fervia, capitaneado por
Glauber Rocha que filmava – Deus e o diabo na terra do sol. A música nesse momento,
começava a se tornar arma política.
Chico abandona a Faculdade e a carreira de arquiteto. A bem comportada bossa
nova começaria, portanto, a dar lugar a uma produção musical diferenciada. Como
podemos perceber pelas palavras de Regina Zappa:
O próprio Vinicius foi artífice da mudança, ao compor com Baden os primeiros
afro-sambas. Era a hora da transição. Chico, que já tinha ficado muito
impressionado com “Pra que chorar”, de Baden e Vinicius, ficou mais ainda
quando os dois passaram a compor músicas como “Berimbau”, na época do
show Opinião, no Rio, e dos espetáculos do Arena, em São Paulo. A cabeça de
Chico, atenta a esse novo rumo, começou a mudar. E a sentir necessidade de
recuperar a memória da música brasileira, sobretudo o samba, que havia sido
deixado de lado em favor da bossa nova (2008:59).
Em 1994, Chico afirmaria em entrevista ao programa Ensaio, de Fernando Faro:
A partir do momento em que Baden e Vinicius compuseram os afro-sambas e
‘Berimbau”, e em que aconteceram o show Opinião, no Rio, e os espetáculos do
Arena, houve, pra nós, ou pelo menos pra mim, a necessidade de recuperar um
pouco essa memória que havia sido radicalmente abandonada com a bossa nova,
mas incorporando tudo o que a bossa nova havia trazido de novo. Ou seja, havia
uma fusão, que é um pouco o que João Gilberto sempre fez, só que João Gilberto
transformava essas canções em canções de João Gilberto, ele era um compositor
daquelas músicas. E eu, que havia abandonado Noel Rosa, Ismael, me permiti
retomar aquilo, mas tocando com o que eu imaginava que fosse a harmonia da
bossa nova. Coisa que eu fui desenvolver mais depois do contato com o Tom
Jobim (ZAPPA, 2008:63-64).
Esse resgate da memória musical brasileira pode ser comprovado tanto em “Pedro
Pedreiro” (1965) quanto em “Olê olá” (1965), quando Chico inaugura o que ele chamou de
linha do samba, com extensas narrativas. A revista O Cruzeiro publicaria: “Há realmente
alguma coisa do Poeta da Vila no autor de Pedro pedreiro, principalmente a mesma técnica
cinematográfica; em ambos, cada composição parece um filme” (ZAPPA, 2008:64).
Já em 1966, Chico resolve fazer uma música para ganhar no festival. Mesmo
incompleta, apresenta “A banda”
59
a Gil e Torquato, que se entusiasmaram. Já amigo de
Nara Leão60, convida-a para defender “A banda” (1966), no Festival de Música Popular
Brasileira – MPB – da TV Record, em São Paulo.
A princípio, ela cantaria sozinha, mas o diretor Manoel Carlos decidiu que Chico
Buarque deveria cantar também. Ficou resolvido que Chico faria uma espécie de
introdução com o violão, cantaria a música toda, e depois Nara entraria com banda, tuba e
tudo, para cantar novamente.
Naquele ano, o país ficou tomado pela “Banda”. Nos primeiros dias, logo depois
de lançado, o disco de Nara com a música vendeu mais de 50 mil cópias. E Chico tornarase aos 22 anos, um popstar. O reconhecimento do compositor da Banda já era tanto que
em 1967, o maestro Lindolfo Gaia61 compôs um poema sinfônico baseado em suas músicas
para apresentar no Teatro Municipal, sob a regência de Isaac Karabtchevsky.
Numa entrevista para o Museu da Imagem e do Som – MIS –, pouco depois da
explosão de “A banda” (1966), Chico reflete sobre seu sucesso inesperado:
Me sinto mal pra burro. Atrapalha um pouco, mas chega uma hora que se está
cheio de compromisso e não se pode fugir. Aí tem que aproveitar a maré que,
financeiramente, para mim é muito importante para garantir um dinheirinho e
ficar mais sossegado. Não sinto prazer em cantar, para falar a verdade. E não
gosto das coisas que estão feitas, quero fazer outras. Por isso, preciso voltar a ter
o tempo que sempre tive, que é o de não fazer nada, que é muito importante para
fazer coisas. Quando a gente está à toa na vida é que acontecem as coisas.
Acontece também de ficar sem fazer nada por um tempo. Uma vez fiquei seis
meses sem fazer nada. Pode ser que um dia seque e eu não faça mais nada. Esse
receio sempre tenho (ZAPPA, 2008:81).
Depois de A banda, Chico lança seu primeiro LP, que trazia na capa o nome do
artista: Chico Buarque de Hollanda, com as músicas de sua primeira fase, “A banda”
59
“A banda” ainda lhe renderia seu primeiro programa de televisão e o primeiro embate com a ditadura
militar. O programa, comandado por ele e por Nara Leão, ia ao ar pela TV Record e chamava-se Pra ver a
banda passar. Já o embate com a ditadura ocorreu quando o governo resolveu usar “A banda” numa
propaganda de alistamento militar. Chico protestou, e a peça deixou de ser veiculada. (cf. HOMEM, Wagner.
op. cit., p. 43-44).
60
Mais que uma intérprete, Nara Lofego Leão foi uma pensadora da Música Popular Brasileira (MPB). Sua
militância musical privilegiava os compositores. Era a eles que buscava e suas músicas que desejava
divulgar. Cantou sempre com inteligência, sensibilidade e convicção. (cf. ZAPPA, Regina. Pra seguir minha
jornada: Chico Buarque. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p.153).
61
O maestro Lindolfo Gaia compôs uma suíte sinfônica reunindo “Olê, olá”, “Pedro pedreiro”, “Sonho de
um carnaval”, “Quem te viu, quem te vê” e “A banda”. Essa apresentação impulsionou Chico Buarque a
declarar emocionado: “era preciso que houvesse essa aproximação entre as músicas clássica e popular.” (cf.
Ibidem, p. 160).
(1966), “Pedro pedreiro” (1965), “Sonho de um carnaval” (1965), “A Rita” (1965), “Olê
olá” (1965), “Meu refrão” (1965), “Madalena foi pro mar” (1965), “Tem mais samba”
(1964); inaugurando assim, oficialmente, a obra de estilo buarqueano.
Seu segundo disco, um long-play, saiu em 1967, demostrando sua capacidade de
passear por estilos distintos como a modinha em “Lua cheia” (1965) e “Realejo” (1967) e a
marcha-rancho de “Noite dos mascarados” (1966). Volta aos sambas novelescos com
“Logo eu?” (1967) ou já buarqueanos, como “Fica”, composta em 1965. E, claro, esse
mesmo disco trazia a clássica, “Quem te viu, quem te vê” (1966):
Você era a mais bonita das cabrochas dessa ala
Você era a favorita onde eu era mestra-sala
Hoje a gente nem se fala, mas a festa continua
Suas noites são de gala, nosso samba ainda é
[na rua62
feita na linha dos sambas de Ataulfo Alves63 (1909-1969), uma das fontes de inspiração
de Chico; além, de Tom Jobim.
Na verdade, Chico só foi conhecer Tom Jobim, em Ipanema, quando foi levado à
casa do maestro por Aloysio de Oliveira, por volta de 1966. Tom Jobim estava vindo de
mais uma viagem aos Estados Unidos, onde já havia gravado uma música instrumental de
sua autoria chamada “Zíngaro” e o disco A certain Mr. Jobim.
Regina Zappa (2008:95), assim comenta: “O contato com Tom o estimulou a ter
aulas de teoria musical”. Chico nunca tivera aulas de violão (e nunca teria dali para frente)
ou de voz, apenas de teoria musical, com Vilma Graça, quando já estava no Rio e antes de
viajar para a Itália, em 1969. Essa parceria com Tom Jobim culminou na transformação da
música “Zíngaro” (1965), rebatizada por Chico na composição: “Retrato em branco e
preto” (1968).
Esse momento tranquilo foi, paulatinamente, substituído pelo conturbado ano de
1968, que concentrou os movimentos de contestação, a revolta estudantil e as mudanças
comportamentais no mundo inteiro, despontando no Brasil uma repressão militar sem
precedentes, desde o golpe de 1964. Esse ano, o fatídico AI-5 que fechou o Congresso e
acabou com as liberdades democráticas.
62
WERNECK, Humberto. Chico Buarque Tantas Palavras. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 151.
Ataulfo Alves de Souza foi um compositor e cantor de samba brasileiro, um dos sete filhos de um violeiro,
acordeonista e repentista da Zona da Mata chamado "Capitão" Severino. (ALVES, Ataulfo. Biografia.
Disponível em: <http:// www.wikipedia.org/wiki/Ataulfo_Alves>. Acesso em: 05 jan. 2012).
63
Começava uma fase em que os compositores, em geral, e Chico, em particular,
sentiam necessidade de resistir à censura e expressar seu desagrado com o regime militar,
fazendo as chamadas “músicas de protesto”.
Apoiando-nos em Anazildo Vasconcelos (2010:32-33) poderemos ressaltar que o
protesto na canção de Chico Buarque resultou da insistência de o compositor referenciar a
proposição de realidade interditada em toda sua produção lírica e, com maior destaque,
após a suspensão do veto político, confirmando o rompimento de sua obra a determinado
contexto circunstancial. Embora a proposição de realidade pressuposta tenha que ser o
segmento histórico imediato do artista, nada impede que o espaço-temporal seja diverso;
criando-se um contexto mais amplo por se tratar de uma referencialidade de cunho
socioexistencial.
Por analogia, recorrendo ao entendimento de Zuenir Ventura (2010:172), diremos
que, hoje, a música de protesto, a música engajada é a música da periferia. Vem de lá esse
movimento de rebeldia. Há toda uma cultura da periferia com características próprias, de
protesto social. Naquela época, a esquerda queria falar em nome da periferia, mas nos
tempos atuais, é a própria periferia que quer levar a todos o seu recado.
Na música “Subúrbio” (2006), podemos verificar que apesar da ausência de
repressão política, Chico mantém seu protesto, ou seja, seus questionamentos em relação à
problemática social brasileira. É pela música, enquanto portadora de uma cultura, que a
voz da periferia revela a sua existência e introduz pelas frestas a sua historicidade. O
subúrbio que, muitas vezes, não figurava nos mapas cresce no ritmo inovador do hip hop
mesclado a rap buarqueano:
Lá não tem claro-escuro
A luz é dura
A chapa é quente
Que futuro tem
Aquela gente toda?64
Segundo nos conta Humberto Werneck (2006:60), em 29 de setembro de 1968, o
final do III Festival Internacional da Canção, a plateia do Maracanãzinho soterrou com
vaias quase unânimes a concorrente “Sabiá”, música que Tom compusera para a soprano
Maria Lúcia Godoy e que, antes de ganhar letra de Chico, se chamava “Gávea”.
64
HOMEM, Wagner. op. cit., p. 319.
Num momento em que se intensificava a radicalização ideológica, grande parte do
público ansiava por canções armadas, como “Pra não dizer que não falei das flores”
(1968), de Geraldo Vandré65 e “Sabiá”, tinha uma manifestação política discreta.
Ainda em 1968, o terceiro LP de Chico foi dedicado ao poeta João Cabral de Melo
Neto e vinha recheado de lirismo como “Januária” (1967), “Desencontro” (1965), “Até
pensei” (1968), “Retrato em branco e preto” (1968), “Carolina” (1967), “Sem fantasia”
(1967). Mas a contundente “Roda - viva” (1967) já era interpretada como uma provocação
ao regime militar. Além de “Funeral de um lavrador” (1966), poema de João Cabral de
forte cunho social musicado por Chico.
A imagem de bom moço, entretanto, já começava a se desfazer mesmo antes de
“Sabiá”, quando Chico sacudiu o “distinto público” com sua primeira peça de teatro, Roda
Viva, que estreou no Rio, em 15 de janeiro de 1968, com uma montagem polêmica e
histórica do diretor do Teatro Oficina, José Celso Martinez Corrêa.
Roda Viva, em sua segunda montagem, em São Paulo, teve militantes do Comando
de Caça aos Comunistas (CCC) invadindo o Teatro Ruth Escobar, junto com a polícia e
espancando artistas e público. Regina Zappa (2008:103) nos informa que em 20 de
dezembro, véspera de Natal, Chico foi levado pela primeira vez para o famigerado
Departamento de Ordem Política e Social66 (Dops). Encaminhado depois, para ser
interrogado no I Exército e em seguida, solto. Após o interrogatório, foi informado de que
deveria comunicar às autoridades militares toda vez que pretendesse sair da cidade. Chico
Buarque, assim se pronuncia:
Nunca fui comunista de pertencer ao partido, talvez para não vir a ser um
anticomunista mais adiante. Sempre tive a ilusão de que as pessoas pudessem se
entender e nada me chateava mais que as picuinhas, as intrigas e as fofocas entre
os diversos grupos da esquerda. Entrei no Centro Brasileiro Democrático
(Cebrade) ─ entidade criada por intelectuais e artistas em 1978 ─ muito por
causa do meu pai, que era um dos vice-presidentes (apud WERNECK, 2006:66).
Sérgio Buarque de Hollanda – um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores
(PT) ─ nunca foi comunista, mas o presidente da entidade, Oscar Niemeyer e o outro vice,
65
Geraldo Pedrosa de Araújo Dias nasceu na Paraíba, em 12/09/1935. Desde cedo, já manifestava seu desejo
de ser cantor de rádio. Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1951 com a família onde conheceu pessoas
ligadas ao meio artístico.(VANDRÉ,Geraldo. Biografia. Disponível em: <http://www.velhosamigos.com.br>.
Acesso em: 15 jan. 2012). 66
O Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), criado em 1924, foi o órgão do governo brasileiro,
utilizado principalmente durante o Estado Novo e mais tarde no Regime Militar de 1964, e tinha como
objetivo controlar e reprimir movimentos políticos e sociais contrários ao regime no poder. (Disponível em:
<http://www.wikipedia.org/wiki/Departamento_de_Ordem_Política_e_Social>. Acesso em: 05 jan. 2012).
o diretor Ênio Silveira, eram militantes notórios. Com isso, o Cebrade foi, frequentemente,
identificado como linha auxiliar do Partido Comunista Brasileiro (PCB).
De 1966 a 1986, Chico produziu pelo menos um disco por ano, com exceção de
1969, o ano do autoexílio italiano.67 Wagner Homem, assim escreve:
Durante 1969, período em que Chico esteve na Itália, continuaram as cassações;
Caetano Veloso e Gilberto Gil, após a prisão, exilaram-se em Londres; em abril a
ditadura aposentou compulsoriamente Vinicius de Moraes; as denúncias de
tortura a presos políticos provocaram até um pronunciamento do papa Paulo VI;
a repressão às manifestações conduziu ao recrudescimento das ações armadas;
em agosto, o presidente Costa e Silva foi vitimado por uma isquemia cerebral, e
uma junta militar assumiu o poder, impedindo a posse do vice, Pedro Aleixo; em
setembro, o Congresso, reaberto, elegeu o general Emílio Garrastazu Médici o
terceiro presidente do regime militar. E, para completar, o Ato Institucional n°14,
de 5-9-1969, reintroduziu a pena de morte, ‘em nome da garantia da ordem e da
tranquilidade da comunidade brasileira’ (...) (2009:82-83).
A situação do país, porém, ia se deteriorando. A família e os amigos telefonavam,
escreviam e o aconselhavam a não voltar. E o que era para ser uma viagem de 10 dias
transformou-se numa ausência forçada do solo brasileiro por 14 meses. O “Samba de Orly”
(1970), com Toquinho, data dessa época. A base com orquestra foi gravada no Brasil por
César Camargo Mariano e, na Itália, Chico colocou a voz. Assim nasceu Chico Buarque de
Hollanda nº4, com “Samba e amor” (1969).
Em 20 de março de 1970, Chico, Marieta e Silvia chegaram ao Aeroporto do
Galeão, sendo recebidos por amigos, fãs, a Torcida Jovem Flu, bandinha e tudo mais,
mostrado pela tevê. Caetano e Gil ainda sofriam o exílio forçado em Londres. Uma das
razões que motivaram a prisão e o exílio de Gil e Caetano teria sido o movimento
tropicalista68. A Tropicália, liderada pelos dois, era provocativa e propunha uma ruptura
com a ideologia dominante na época. Algo impraticável para os militares.
Seguindo o entendimento de Luiz Tatit (2004:203-204) podemos inferir que apesar
dos líderes do movimento afirmarem o entendimento de que a canção brasileira era
formada por todas as dicções – nacionais ou estrangeiras, vulgares ou elitizadas, do
passado ou do momento – sem qualquer tipo de exclusão, ainda assim conduziram um
processo de depreciação dos artistas pouco comprometidos com a causa tropicalista.
67
A escolha da Itália para o autoexílio se deveu a dois fatores: em janeiro de 1969, Chico passara dois anos
de sua infância e, portanto, dominava o idioma; e o sucesso que a gravação de “A banda” pela cantora Mina
fizera naquele país lhe valeu um convite para lançar um disco na Itália pela RCA e fazer um show no Midem,
em Cannes, na França. (cf. HOMEM, Wagner. op. cit., p.77).
68
O Tropicalismo foi um movimento cultural revolucionário e polêmico. Propunha inovações estéticas na
produção cultural brasileira e se transformou na ‘aventura de um impulso criativo surgido no seio da música
popular brasileira, na segunda metade dos anos 1960 (cf. ZAPPA, Regina. op. cit, p. 266).
Essa rivalidade era alimentada pela imprensa que mantinha acalorada a disputa
entre Caetano e Chico Buarque. A rixa só acabou quando um amigo de Chico, Roni
Berbert de Castro, teve a ideia de reunir os dois num Show no Teatro Castro Alves, em
novembro de 1972.
Em 1971, segundo Regina Zappa (2008:107) foi lançado Construção, seu quinto
disco, visceralmente antagônico ao regime em músicas como “Deus lhe pague” (1971) e
“Construção” (1971), político em “Cordão” (1971) e “Samba de Orly” (1971), mas sempre
lírico e delicado em “Olha Maria” (1971), “Valsinha” (1970) e “Acalanto” (1985).
“Cotidiano” (1971) se tornaria uma de suas mais consagradas canções, que seguiria a
trajetória de “Pedro pedreiro” (1965) ao contar histórias da vida comum. O cortante arranjo
de “Construção” (1971), feito pelo maestro tropicalista Rogério Duprat é, até hoje, um de
seus prediletos.
No ano seguinte, Chico participou como ator do filme Quando o carnaval chegar,
de Cacá Diegues, e lançou dois discos: a trilha do filme, que gravou ao lado de Nara Leão,
MPB-4 e Maria Bethânia, e o histórico Chico e Caetano juntos, que traz, entre outras,
“Partido alto” (1972), “Você não entende nada” (1972) e “Bom conselho” (1972); sem
contar as de canto feminino como “Bárbara” (1972/1973), “Esse cara” (1972) e “Atrás da
porta” (1972). Esta última marcou o começo da parceria com Francis Hime.
A capacidade de dar voz a personagens plurais, reveladores da vida coletiva são
uma forte e poderosa marca na obra de Chico. Como ele mesmo nos diz:
Muitas vezes o objeto da música é impreciso porque o próprio sujeito é
impreciso, porque eu não sou eu. A criação musical é muito isso, é sair de você,
do seu mundo. Na época da ditadura, quando se estava centrado em você mesmo,
era a pior fase da criação para mim, como compositor. Porque aí você está muito
eu, eu, eu. Aquilo invade e perturba a sua criação. Isso vai existindo cada vez
menos. Você sai de você. Quase sempre você não é você e eu não sou eu (apud
ZAPPA, 2008:108).
Em 1973, com a peça Calabar, que escreveu com o cineasta Ruy Guerra, Chico,
também, sofreu com a censura. Regina Zappa (2008:108) expõe com detalhes essa
passagem:
Na época, havia uma censura prévia e uma posterior para todos os espetáculos e,
obedientes às regras da ditadura, Chico e Ruy mandaram a peça para que os
censores analisassem. Foi aprovada com cortes, tirando-se palavrões aqui e ali.
Chico e Ruy se juntaram ao ator Fernando Torres e produziram o espetáculo.
Estavam prestes a estrear e marcaram o ensaio geral para a ‘segunda censura’
conferir se os cortes haviam sido feitos. Os censores não apareceram e foram
adiando tanto a ida ao ensaio que os produtores não conseguiram esperar e
acabaram falindo. (...) Para Chico, ‘foi uma proibição branca’. “Vence na vida
quem diz sim” foi totalmente censurada e apareceu na versão instrumental, assim
como “Ana de Amsterdam”. Apesar de tudo, músicas como “Tatuagem” e “Fado
Tropical” nasceram clássicos, junto com “Não existe pecado ao sul do equador”.
Quando fez “Bolsa de amores” (1971),
Comprei na bolsa de amores
As ações melhores
Que encontrei por lá
Ações de uma morena dessas
Que dão lucro à beça
Pra quem sabe
E pode jogar
Mas o mercado entrou em baixa
Estou sem nada em caixa
Já perdi meu lote
Minha morena me esquecendo
Não deu dividendo
Não deixou filhote69
para Mário Reis, também proibida, a censura alegou que se tratava de um atentado contra
a mulher brasileira. Tudo era motivo para censurar as músicas de Chico Buarque –
considerado um símbolo da resistência cultural ao regime.
Ainda na trilha do teatro, Chico havia escrito, em 1975, com Paulo Pontes, Gota
d’água, inspirada em Medeia, de Eurípedes, e transformada em tragédia urbana, em forma
de poema com mais de quatro mil versos. O disco com a trilha sonora da peça saiu em
1977. Em 1978, fez Ópera do Malandro, baseada na Ópera dos mendigos (1728), de John
Gay, e na Ópera de três vinténs (1928), de Bertolt Brecht e Kurt Weill. A peça teve versão
cinematográfica de Ruy Guerra e o disco saiu em 1979, com as músicas “Pedaço de mim”
(1977/1978) e “Uma canção desnaturada” (1979), entre muitas.
Saturado das proibições constantes em suas composições e peças teatrais, resolveu
criar o personagem Julinho da Adelaide, que assinava a composição “Acorda amor”
(1974). Gravou o disco “Sinal Fechado” (1974) com canções de Noel Rosa, Tom Jobim,
Jackson do Pandeiro, Gilberto Gil, Paulinho da Viola e experimentou o personagem
Julinho. E a música passava sem maiores problemas. Essa brincadeira durou um ano
inteiro.
Regina Zappa (2008:110) nos diz que depois de muito fugir da imprensa, Chico,
deu uma entrevista ao jornal Última Hora, em 1974, mostrando ser, sinceramente, um
compositor sem caráter. Entre outras coisas, comentava que fazia ‘copidesque do
cotidiano’ e que Julinho se aproveitava de Chico Buarque na mesma medida em que Chico
se aproveitava dele. O disfarce veio abaixo.
69
WERNECK, Humberto. op. cit., p. 189.
Em 1974 – afastado do meio musical há nove meses – Chico escreveu a novela
pecuária Fazenda Modelo, na qual os animais compunham uma alegoria do Brasil
ditatorial, como podemos demonstrar através dessa passagem:
Então tomo a roda-gigante, que confunde céu com chão, céu com chão, léu com
cão, daí acelera e dispara e não se vê mais coisa com coisa, se desgoverna, a
gente perde a noção do tempo, do céu e do chão, perde a noção da gente, e
quando susta ninguém mais se lembra de nenhum problema, volta para casa e
dorme feito bicho de pelúcia (2006:39).
Começava a incursão pela literatura e a alternância entre escrever e compor que,
mais tarde, se transformaria no processo de criação buarqueano. Valendo-se do alegórico e
do grotesco com apuro paródico, Chico Buarque oferece-nos o que Affonso Romano de
Sant’anna (1977:20) chama de poética do descentramento: “a mimese se apodera da
tradição escrita e dela se afasta procurando uma nova sintaxe, ordenando-a de modo
diferente da realidade. A linguagem se desdobra nesse universo aberto para o Outro.”
Em oposição a essa poética, temos a representação da mimese consciente, voltada
para a cópia da realidade e da paráfrase – a linguagem do Mesmo. Em entrevista a Marisa
Lira, publicada no Diário de Notícias, Ari Barroso assim nos diz:
Fui sentindo toda a grandeza, o valor e a opulência da nossa terra (...). Revivi,
com orgulho, a tradição dos painéis nacionais e lancei os primeiros acordes,
vibrantes, aliás. Foi um clamor de emoções. O ritmo original, diferente, cantava
na minha imaginação, destacando-se do ruído forte da chuva, em batidas
sincopadas de tamborins fantásticos. O resto veio naturalmente, música e letra de
uma só vez (...) Senti-me outro. De dentro de minh’alma, extravasara um samba
que eu há muito desejara, um samba que, em sonoridades brilhantes e fortes,
desenhasse a grandeza, a exuberância da terra promissora, de gente boa,
laboriosa e pacífica, povo que ama a terra em que nasceu. Esse samba
divinizava, numa apoteose sonora, esse Brasil glorioso (apud NESTROVSKI,
2007:119-120).
A partir desse depoimento, podemos entender porque “Aquarela do Brasil” –
composta em 1939 – ganhou evidências midiáticas como música oficiosa do Estado Novo.
Já as imagens de Buarque ganham outros contornos cinematográficos; por isso,
muitas de suas músicas acabam se transmutando em filmes como “O que será” (1976),
sobretudo na versão “À flor da Terra”, tema do filme Dona Flor e seus dois maridos de
Bruno Barreto, “Meu caro amigo” (1976), endereçada ao amigo Augusto Boal no exílio e
“Vai trabalhar vagabundo” (1973), a pedido do diretor Hugo Carvana.
Na sucessão de discos, o intervalo entre cada um foi ampliando-se, à medida que a
composição se tornava mais elaborada e a literatura ia se plasmando em espaço da criação.
Em meio ao bombardeio da censura, Chico escolheu uma trégua e criou, traduziu e ajudou
a dirigir o musical infantil Saltimbancos (1977), inspirado no conto dos irmãos Grimm “Os
músicos de Bremen”. Chico trabalhou sobre o texto de Sérgio Bardotti e música de Luiz
Enriquez Bacalov, adaptando a história e traduzindo as músicas para a língua portuguesa.
Em 1979 – promulgada no Brasil a Lei da Anistia – não havendo mais a luta contra
a censura, o compositor lançou o disco da Samambaia; as músicas vetadas aparecem de
novo. “Cálice” (1973), “Apesar de você” (1970), “Tanto mar” (1978) – todas entraram
nesse disco. “Angélica” (1977), composta com Miltinho do MPB-4, só entraria no disco
Almanaque, de 1981, no qual gravou também um de seus principais hits, “As vitrines”,
(1981). Gravou o disco Vida com as canções “Eu te amo” (1980), com Tom Jobim, “Mar e
lua” (1980), “Bastidores” (1980), “Vida” (1980) e “Bye bye, Brasil” (1979).
Das escolas de samba do Rio, a Mangueira foi a escolhida. Dedicou seu apreço a
essa escola em músicas como “Piano na Mangueira” (1993), com Tom Jobim, “Chão de
esmeraldas” (1997) e “Estação derradeira” (1987). Foi homenageado com um enredo,
Mangueira despontando na avenida
Ecoa como canta um sabiá
Lira de um anjo em verso e prosa
De um querubim que em verde e rosa
Faz toda a galera balançar
"Hoje o samba saiu"
Pra falar de você
Grande Chico iluminado
E na Sapucaí eu faço a festa
E a minha escola chega dando o seu recado
É o Chico das artes... O gênio
Poeta Buarque... Boêmio (bis)
A vida no palco, teatro, cinema
Malandro sambista, carioca da gema70
contando sua vida na Sapucaí, em 1998. A paixão de Chico Buarque pela verde e rosa
ficou registrada em Cancioneiro Chico Buarque, de Regina Zappa:
Pode ser que esse orgulho exista nas outras escolas. Aconteceu na minha vida
essa história de gostar da Mangueira por causa das músicas, e porque vi a escola
entrar com Monteiro Lobato. E bateu. É assim que as coisas acontecem. Fiquei
próximo da Mangueira e eles preservam muito a sua história. É muito forte
mesmo. Às vezes alguém diz: Está vendo aquela lá? É a Dina. Que Dina? Da
música: A Dina subiu lá no morro pra me procurar..., do samba do Zé Keti. Ela
existe, está lá. Isso é formidável. Tem as ruas, as casas onde os compositores
foram criados. Tudo isso. Tem também a noção que vai se ganhando com o
tempo de que cada coisa que você faz é uma coisa mais duradoura do que
quando se começa (2008:122-123).
70
G.R.E.S. Estação Primeira De Mangueira. Chico Buarque da Mangueira. Disponível em:
<http://www.letras.terra.com.br/mangueira-rj>. Acesso em: 02 dez. 2011.
O mesmo orgulho de ser mangueirense, ele tem em esquadrinhar suas melodias.
Regina Zappa (2008:123) nos relata que Chico nunca escreveu uma letra de música antes
de fazer a melodia. Diz que compõe com a melodia puxando a letra. É guiado pela música.
E raramente fez música para letras de outros compositores. No início, as duas coisas, letra
e música, iam se desenrolando juntas nas suas composições. Com o tempo, ele é cada vez
mais parceiro dele mesmo, fazendo a música para depois pôr a letra.
Dos parceiros de Chico, Tom Jobim era o que mais o intimidava por ser um grande
letrista. Francis Hime, que ele classifica como “parceria aberta”, rendeu trabalhos como
“Atrás da porta” (1972) e “Vai passar” (1984). Com Milton Nascimento, fez “O cio da
terra” (1977); com Gilberto Gil, “Cálice” (1973). Com Sivuca fez “João e Maria” (1977).
A mais extensa parceria até hoje é com Edu Lobo. Parceiros em “Dança da meia-lua”
(1988) e “O grande circo místico” (1983), ou peças como Cambaio (2001) e Corsário do
rei (1985). Edu Lobo vê na trajetória de Chico uma transformação.
Existe uma preocupação dele com a música que é crescente. Preocupação com o
detalhe musical, com a harmonia. Quase todas as músicas foram compostas para
projetos. Sinto um avanço musical do meu trabalho por estar trabalhando com o
Chico. Quando o vi mostrando a letra de ‘Beatriz’, do “Circo místico”, eu no
piano, ele cantarolando e muito inseguro com a letra, não acreditei. Eu, se fizesse
uma letra feito ‘Beatriz’, não ia achar em nenhum momento que alguém pudesse
não gostar. Ela tem detalhes que descobri depois. O negócio, por exemplo, da
palavra chão na nota mais grave e céu na mais aguda. A música tem uma
extensão brutal (apud ZAPPA, 2008:127).
Chico sempre disse que sua vocação literária é anterior à trajetória musical, no
entanto depois que escreveu Fazenda Modelo, em, 1974, só foi retomar o trabalho literário
em 1979, quando fez Chapeuzinho Amarelo:
Amarelada de medo.
Tinha medo de tudo,
aquela Chapeuzinho.
Já não ria.
Em festa, não aparecia.
Não subia escada
nem descia.
Não estava resfriada
mas tossia.
Ouvia conto de fada
71
e estremecia.
Livro-poema – considerado altamente recomendável pela Fundação Nacional do
livro Infantil e Juvenil, no mesmo ano da publicação – sobre os temores infantis.
71
BUARQUE, Chico. Chapeuzinho Amarelo. Rio de Janeiro; José Olympio, 2009.
Em 1990 escreveu Estorvo, que lançou em 1991. O crítico literário, Roberto
Schwarz, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), assinalou que
(...) o protagonista de Estorvo transita entre o universo burguês de sua família e a
marginalidade fluidamente. Além disso, mostra os personagens de todas as
classes conscientes do apelo da imagem na sociedade de hoje. A personagem
principal é ‘não menos anômala e acomodada no intolerável que as faunas do
luxo ou do submundo’. Ricos e marginalizados unidos pela desilusão das utopias
de décadas anteriores e pela erosão da ética. O ‘estorvo’ é de mão dupla: o
protagonista, deslocado da sociedade, que incomoda seus familiares; e o estado
quase anômico desse meio social, no qual ‘Eu’ não encontra onde se encaixar. 72
Em outra crítica, José Cardoso Pires afirma que
Estorvo é, quanto a mim, uma peregrinação alucinada em demanda das raízes
perdidas, através dum percurso existencial povoado de assombro e de solidão.
Aqui todas as funções de equilíbrio das estruturas sociais – família, amizade,
poder – perdem a sua consciência formal logo ao primeiro embate e entram em
ruptura quando o olhar do protagonista (e do escritor) se prolonga sobre elas
(apud Zappa, 2011:390).
Os romances, depois de Estorvo, ocupariam, aos poucos, espaço equivalente ao da
música. Depois desse romance, lançou o disco Paratodos, em 1993. Mas o segundo
romance não demoraria a vir. Benjamim foi publicado em 1995 e as comparações entre os
dois livros aconteceram, inevitavelmente. Augusto Massi, professor de Literatura
Brasileira da Universidade de São Paulo (USP) e diretor editorial da Cosac Naify, em
ensaio para a revista científica Novos Estudos Cebrap, escreveu que a narrativa não linear,
iniciada em flashback, não era uma novidade nos romances de Chico. Estorvo
também não seguia a ordem cronológica. Do modo como o capítulo inicial foi
construído, fica a impressão de sequência no tempo. Porém, ao notar que a figura
vista pelo olho mágico aparece rapidamente mais tarde, é possível perceber que a
situação descrita nas primeiras páginas de Estorvo é na verdade posterior às
cenas que vêm em seguida. Outra semelhança é justamente esse deslocamento
intenso do personagem, que, no entanto, não sai da imobilidade. Ambos os
protagonistas continuam deslocados na sociedade e incapazes de se apossar de
ou atingir alguma meta. São também claramente decadentes, pessoas que já
viveram dias mais gloriosos. Como ex-modelo de publicidade, Benjamim vive a
eterna frustração de ter seu rosto reconhecido, mas apenas pela aparência.73
O terceiro livro de Chico, Budapeste – prêmio Jabuti de melhor Livro de Ficção em
2004 ─ começou a ser escrito em 2001 e só seria lançado em 2003 pela Companhia das
Letras, suscitando comentários entusiasmados, como de José Saramago (ZAPPA,
2008:128): “Não creio enganar-me dizendo que algo novo aconteceu no Brasil com este
livro”.
72
73
ALBERT, André. Narrador em amadurecimento. Revista Bravo, São Paulo, Abril, n.2, 2009, p. 50.
Ibidem, p. 51.
O jornalista André Albert (2009:56), na revista Bravo, também se pronuncia: “de
acordo com a crítica, em alguns momentos, a escrita de Chico teria a qualidade poética de
um sonho dito em voz alta.” Sonhos transformados em filmes: Estorvo, pelas mãos de Ruy
Guerra; Benjamim, pelas mãos de Monique Gardenberg; e Budapeste, pelas mãos de
Walter Carvalho.
Depois de lançar o livro Benjamim em 1995, Chico começou a preparar o disco As
cidades: “Iracema voou” (1998), “Xote de navegação” (1998), “Assentamento” (1997).
No disco Carioca, em 2006, Chico desfia uma extensa lista com nomes de bairros
do subúrbio carioca, em “Subúrbio” (2006), faz uma viagem aos sentimentos juvenis, em
“As atrizes” (2006), a história de um desencontro no tempo, em “Bolero blues” (2006), ao
estado de busca de um amor, em “Renata Maria” (2005) e “Imagina” (1983).
Com o livro Leite Derramado, o premiado romance lançado em 2009, Chico deixa
de lado o músico e retorna a indumentária literária, envolvendo-se, involuntariamente,
numa polêmica em torno dessa premiação. Como o livro não venceu na categoria Melhor
Romance questionou-se a validade de levar o prêmio de Melhor Livro do Ano. Mesmo
causando polêmica, o quarto romance buarqueano rendeu comentários nos principais
meios de comunicação. Heitor Ferraz (2009:10), na revista Bravo, assim se manifesta:
Ao ler o livro, é inevitável pensar no Machado de Assis de Dom Casmurro e de
Memórias Póstumas de Brás Cubas ─ este último por conta do enredo em que
aparentemente não acontece nada e nenhuma narrativa se estabelece como
determinante. É como se o escritor tivesse aproveitado o centenário machadiano
para revisitar aquela obra e reafirmar, a partir de uma nova ficção, em
perspectiva contemporânea, a herança da ideologia escravocrata.
Francisco Bosco, em um artigo, no jornal O Globo, também demarca seu
posicionamento em relação ao romance:
Em Leite Derramado os tempos encontram-se também tensionados, o presente
derruído em oposição ao passado faustoso. E é dessa oposição que ressai uma
dimensão importante no livro e sem precedentes, ao menos com essa insistência
e intensidade, na obra literária de Chico Buarque (...). Leite Derramado é o
tempo perdido e irrecuperável da vida do narrador. Acolhe também uma
dimensão sexual, que remonta a suas identificações com o pai e está diretamente
relacionada a seu destino (apud ZAPPA, 2011:410).
Essa maestria artística incursionada em diferentes setores e segmentos contribuiu
para que os períodos de criação musical começassem a se alternar com longos períodos de
criação literária e os discos, foram se reduzindo aos poucos. Centrando-nos nas reflexões
de Regina Zappa (2008:135), diremos que desde que passou a se dedicar também à
literatura, convivem no mesmo corpo, em tempos diferentes, um escritor e um músico.
Quando escreve assume a personalidade do romancista e abandona a do músico. Quando
compõe, deixa o escritor adormecido e passa a habitar o universo sonoro.
Chico Buarque (apud ZAPPA, 2008:137), assim escreveu: “Comecei a desconfiar
que, enquanto estou me dedicando exclusivamente a uma das duas coisas, por exemplo, à
literatura, o músico não está adormecido. Ele está trabalhando, se exercitando de alguma
forma”.
O andarilho Buarque, sempre disse que não queria repetir o que estava feito, mas
que seu impulso era procurar outros caminhos e tentar descobrir outras formas de dizer
aquilo ainda não dito. O maestro Luiz Cláudio Ramos, que faz os arranjos das músicas de
Chico nos shows e discos, acompanhou a evolução musical e garante ser Buarque o maior
mestre em juntar música e letra. O maestro assim se expressa:
É muito bonito esse aspecto da personalidade dele ─ de se dedicar e não se
acomodar. Antes era tudo mais natural, depois ele começou a procurar mais. O
caminho harmônico de ‘Futebol’, por exemplo, é surpreendente. ‘Dura na queda’
é outro exemplo que dá de música harmonicamente complexa. Essa fase mais
sofisticada começou com ‘Sambando na lama’. Foi quando começou a percorrer
caminhos harmônicos inesperados e interessantes (apud ZAPPA, 2008:140).
A ensaísta Adélia Bezerra de Menezes, professora de literatura da Universidade de
São Paulo (USP) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) – em entrevista
concedida à revista Cult: Chico Buarque em prosa e verso – analisa o momento em que a
obra buarqueana ultrapassa os limites da Música Popular Brasileira (MPB) e passa a
integrar o repertório da poesia brasileira. Segue a transcrição:
Na canção popular letra e música formam um corpo único, entranhadamente
articulado. E a música, sendo por si produtora de significado, ‘reforça’, por
assim dizer, a letra. O próprio Chico, quando perguntado em múltiplas
entrevistas sobre seu processo de criação, fala que palavra e música vêm junto,
uma puxa a outra, apesar de reconhecer uma certa precedência da música. Mas
confessa-se um ‘impuro’ no mundo dos compositores musicais, uma vez que
penderia mais para a letra do que para a música. Mas, se formos pensar bem, em
toda a poesia (refiro-me à poesia escrita) há essa dialética de música e palavra,
ou, em termos valéryanos, de som e sentido. É importantíssimo a sonoridade na
poesia; só que na canção o processo é radicalizado. A canção como que
desentranha e deflagra a musicalidade que a palavra – toda palavra humana –
embute. Por outro lado, a palavra cantada apresenta uma dimensão mais
sensorial: ela nos atinge, ainda mais do que a poesia, no nível dos sentidos. Mais
do que num poema (sobretudo numa leitura silenciosa, de lábios fechados), na
canção a palavra é corpo: modulada pela voz humana, portanto carregada de
marcas corporais; a palavra cantada é um sopro que se deixa moldar pelos órgãos
da fala, trazendo as marcas cálidas de um corpo humano. (...) A palavra cantada
é isso: ligação de sema e soma, de signo e corpo. (...) Por sinal, a articulação
poesia e música se faz na tradição poética desde os gregos, cuja poesia era
cantada. A Ilíada e a Odisséia, por exemplo, eram apresentadas ao público
acompanhadas de melodia. E ‘lírica’ era a poesia acompanhada ao som da lira.
Aliás, o termo grego aedo significa ao mesmo tempo poeta e cantor,
indissociavelmente ligados (2003:54).
Já Starling (2009:20), professora adjunta da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), reforça o entendimento supracitado ao lembrar que no processo de composição
de Chico Buarque, em geral é o som que origina o sentido de uma canção, e não o
contrário. Sua gênese costuma ser melódica; a confecção final da letra vem depois. A
canção é sempre um corpus documental muito característico, por conta de sua natureza
híbrida, ao mesmo tempo verbal e poética, musical e interpretativa, quanto de sua
capacidade para engendrar uma estética singular. De modo que toda canção está a serviço
do locus musical da palavra.
O processo de composição está atrelado ao momento da criação – momento da
insônia – descrito por Chico Buarque:
Na insônia burra você nem sabe como se dorme. Você só quer dormir, fica
pensando: como é que se faz para dormir? Você não sabe, é como se não
soubesse fazer aquilo. Simplesmente não vem, você está cansado, muito
cansado, e o sono não vem. (...)
Quando penso nos períodos da vida em que estive vivendo essa angústia, mas
criando em cima dela, tenho saudades, sinto inveja daquele estímulo. E era
danado, porque aí a angústia se juntava à insônia. Ficava dois, três, quatro, cinco
dias praticamente sem dormir, dormindo muito pouco, muito mal. Até a
exaustão. Mas ao mesmo tempo sabendo que essa insônia, que é barra pesada,
era bem-vinda. Na verdade, nessas horas, eu não quero dormir (apud ZAPPA,
1999:146).
Ainda citando Regina Zappa:
Chico precisa do tormento, se alimenta do tormento, o tormento é necessário, é
vital. E quando o tormento vira criação, aí é o paraíso. Quem está de fora sente
aquela felicidade inacreditável. São, então, os verdadeiros e grandes momentos
de felicidade. No que aflora qualquer ideia, começa o grande prazer, o grande
gozo. Mesmo quando a coisa não está pronta, mas o caminho já está
pavimentado. Aí é o grande barato, são os grandes momentos da pessoa. Tudo
muda, tudo brilha. É quando Chico não dorme, são as grandes insônias, mas as
insônias que ele adora. As boas. O maior tormento para Chico é a não criação. O
tormento total. Poe mais que hoje ele já tenha uma vivência disso, parece que
tem que acreditar também profundamente na angústia para poder sair dela
(1999:147-148).
A dicotomia entre o Chico escritor e o Chico compositor é uma realidade no
processo criativo do artista. Para Chico Buarque, fazer literatura é muito mais solitário do
que compor canções. Como podemos observar pela entrevista concedida à Folha de São
Paulo, em 1994:
O fato de estar solitário escrevendo um livro, que não vai ser apresentado em
público, mas que depois vai ser lido individualmente, me despe um pouco do
sujeito atirado e algo ingênuo que sou como músico. (...) O lado racional, crítico
e seco aflora-se. É o meu lado que não cabe na música, que precisa de outro
veículo.74
Essa dicotomia foi esclarecida por Regina Zappa:
Chico parece ter criado esse revezamento entre os dois universos para ordenar
sua criação, que se expressa nessas duas formas. Ele costuma afirmar que o
escritor não convive com o músico porque o tempo de imersão de cada um é
absoluto. Quando vem o ciclo musical, ele se distancia, naturalmente, da
literatura para poder escrever as letras das canções. Para ele, a literatura da
música popular não tem nada a ver com a literatura dos livros. É outra linguagem
(2011:401).
Marieta Severo75 – mãe de suas três filhas – assim se pronuncia: “Chico se nega a
fazer análise porque acredita que se começar a entender muito os seus mecanismos
internos vai acabar com o mistério da criação” (ZAPPA, 1999:151). Uma inquietação
constante segue seus passos. A angústia da criação se instala com intensidade quando
Chico está vivendo seu lado escritor e, muitas vezes, tem vontade de retornar seu lado
músico. Quando está escritor, o que ameniza o tormento da criação literária são as
caminhadas que Chico Buarque faz todos os dias, pela cidade onde vive – o Rio de Janeiro.
Na reportagem de Glória Silva Nunes para a revista Romance, abril de 1981, Chico
Buarque nos explica a outra face da angústia – a perda da capacidade de criar:
Isso está obviamente ligado ao medo da velhice e da morte. Quando passo um
mês ou dois sem criar, fico muito preocupado, assustado. Não com a minha
imagem e sim comigo mesmo (...) Não durmo bem e passo a ter preocupações de
todo tipo. Tenho uma necessidade pessoal, quase física, de estar fazendo alguma
coisa, estar me ocupando de alguma coisa e estar criando. Sem produzir, sem
realizar algo, sem fazer música, realmente fico insatisfeito, incompleto (...) O
instante da criação é muito solitário (...) são momentos únicos, só meus, mesmo
quando trabalho em parceria. Depois é que eles são discutidos, depois de escritos
no papel (apud ZAPPA, 2011:373).
Voltando ainda a Starling (2009:14-15), acreditamos que o tempo age sobre Chico
Buarque – como na música “Tempo e artista” (1993) – e o artista busca nessa experiência
viva algo que lhe seja próprio e cujo brilho seja eternamente seu: a canção. A tarefa e a
grandeza desse
Buarque é tentar enfrentar o movimento inexorável de finitude que
embosca o indivíduo e intercepta o curso da história, reafirmando que apesar da brevidade
74
TOSO, André. Escrever é diferente de compor. [sobre o processo criativo de Chico]. Revista Bravo. São
Paulo, n.2, 2009, p. 65.
75
Marieta Severo – trabalhava na peça Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come – quando foi
apresentada a Chico Buarque por Hugo Carvana. Ficaram casados por tinta anos, tiveram três filhas: Sílvia,
Helena e Luísa e sete netos. Sílvia tem a filha Irene. Helena é mãe de quatro filhos ─ Francisco, Clara,
Cecília e Leila. E Luísa, a caçula, tem Lia e Teresa (cf. ZAPPA, Regina. op. cit., p. 23-114).
da vida e, consequentemente, da velhice, a canção pode em certa medida entrar na
continuidade do tempo, reconciliar-se com ele e nele fazer sua morada.
Morada que, a todo o momento, reflete a figura paterna na escrita de Chico
Buarque. Na música “Paratodos” (1993), encontraremos nas entrelinhas a escrita de Sérgio
Buarque de Hollanda, como a nos dizer que:
Os objetivos e os desejos de cada um de nós não podem se esgotar somente no
interior de um cenário minuciosa e cuidadosamente calculado para abrigar nosso
mundo doméstico, profissional ou religioso. Para que o Brasil siga mais justo e
mais livre é preciso, ao contrário, que seus habitantes também considerem parte
indispensável da própria vida os pequenos e grandes encontros, a liberdade do
falar um com o outro, a complexa experiência de trocar opiniões sobre alguma
coisa e a convicção de que é preciso entender o país em que se vive como algo
plural, múltiplo e comum a muitos (STARLING, 2009:34).
É, portanto, irmanados por esses sentimentos, que podemos compreender o medo
de Chico ao perder a capacidade de criação – aquilo que o impulsiona numa permanente
mutação, transformando-o, de tempos em tempos, em um novo escritor ou em um novo
músico. Em entrevista a Fernando Eichenberg, na revista Gol Linhas Áreas Inteligentes,
Chico expõe sobre essa sensação de renovação artística:
Às vezes, você tem a impressão de que já falou sobre tudo, todos os assuntos, já
tocou todas as notas, já harmonizou de todas as formas possíveis. Mas você
sempre pode descobrir coisas novas. As músicas que eu compus agora têm pouca
a ver melódica e harmonicamente com o que eu fiz antes (...). Em “Subúrbio”, do
CD As cidades, foi incluída uma sequência harmônica tipo espanhola (apud
ZAPPA, 2011:374).
A maturidade o deixou mais à vontade para compor e escrever de forma elaborada.
Pode parecer paradoxal, mas o tempo, que acalma as necessidades juvenis, reforçou em
Chico o poder de preservar a força e o prazer da descoberta que cada vez mais revela na
sua obra a beleza do amor. O novo CD Chico, lançado em julho de 2011, tem, de fato, esse
clima romântico; talvez pelo seu namoro com a cantora e compositora Thais Gulin. Chico,
no documentário Dia voa, confessa o que motivou o seu novo CD – sua fonte de
inspiração:
Naturalmente, tem que se levar em conta que quando se fala de um amor, você
não é mais aquele garoto, é um senhor de respeito. Tem que reconhecer a beleza
de um amor maduro, sem esquecer o lado de um possível ridículo e o que há de
risível nisso, e você começa a achar graça de você mesmo, de seus sentimentos
juvenis, e isso parece que não tem cabimento, mas tem. É essa possibilidade de
assumir e de brincar com isso, de assumir seu tempo e a idade que você tem e
não ficar se desesperando por causa disso. Eu sempre desconfiava [ele ri] desde
garotinho que ia ficar velho: eu acho que ainda vou ficar. É a melhor coisa ficar
(apud ZAPPA, 2011:415).
Outra fonte criativa – sobre o blues que compôs, “Essa Pequena” (2011), para o
novo CD, Chico – diz respeito as suas primeiras influências musicais. Chico Buarque
prossegue:
Antes de aparecer a bossa nova e João Gilberto, eu ouvia de tudo, ouvia rádio e
rádio tocava tudo. Tinha um grupo de amigos que se reunia para ouvir música
americana. Cheguei a tocar bateria. Ouvíamos não só os grandes músicos de
jazz, mas os grandes cantores, como Ray Charles e Nat King Cole. Depois veio a
bossa nova e aquilo acabou. Virei bossa - novista. Mas essa música toda ficou lá
no fundo. E brincou com o linguajar dos jovens. Volta e meia estou fazendo um
blues. Tipo blues. Nesse disco é tudo tipo. Tipo uma valsa russa, tipo um baião.
É assim. Tipo um disco, tipo um CD (apud ZAPPA, 2011:417).
Pode ser que algum dia seque a fonte de criação, mas até lá Chico Buarque vai
negociando os acordes, gravando primeiro a base, violão, baixo, bateria, piano e voz;
vestindo a canção com metais, cordas, madeira e a vibração do sentimento que altera o
espírito da música. O som das suas palavras reafirmam nossa cultura popular: o samba, o
Carnaval, a marchinha.
A forma poética encontrada por Chico de expressar nossa cultura, onde o
imaginário e a história se coadunam, foi através da banda. Manifestação musical que se
apresenta na construção de um valor e de um sentido singular cuja melodia parece não ir a
lugar algum, pois está sempre retomando o que já apareceu antes, seja no plano das
pequenas unidades – tema –, seja no plano das partes integrais – o que conhecemos como
refrão. Resultado de um momento político que se plasmava em suas canções.
A poesia política de Chico (CESAR, 2007:142) consiste em tornar a realidade
opaca, permanecendo suas ideias independentes da história, para assim essas ideias
poderem explicar essa realidade que lhes é adversa. Chico se propõe a desvendar os
processos reais, delatando o poder de dominação, de exploração do sistema sobre os
dominados, opondo-se à racionalidade histórica da lógica do sistema que consolida as
injustiças sociais, fazendo de sua música, “A banda”, um espaço de paz.
CAPÍTULO 3
O MENINO FRANCISCO E A BANDA
“A banda” (1966)
Estava à toa na vida
O meu amor me chamou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
A minha gente sofrida
Despediu-se da dor
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
O homem sério que contava dinheiro parou
O faroleiro que contava vantagem parou
A namorada que contava as estrelas parou
Para ver, ouvir e dar passagem
A moça triste que vivia calada sorriu
A rosa triste que vivia fechada se abriu
E a meninada toda se assanhou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
O velho fraco se esqueceu do cansaço e pensou
Que ainda era moço pra sair no terraço e dançou
A moça feia debruçou na janela
Pensando que a banda tocava pra ela
A marcha alegre se espalhou na avenida e insistiu
A lua cheia que vivia escondida surgiu
Minha cidade toda se enfeitou
Pra ver a banda passar cantando coisas de amor
Mas para meu desencanto
O que era doce acabou
Tudo tomou seu lugar
Depois que a banda passou
E cada qual no seu canto
Em cada canto uma dor
Depois da banda passar
Cantando coisas de amor76
Chico voltava da Europa e vivia do sucesso de Morte e vida severina. Era julho de
1966. Estava em casa, esperava o almoço, quando veio à cabeça a imagem de uma banda
passando e várias coisas acontecendo. Lembrou-se de a banda da infância que tocava no
terreno atrás da sua casa, na rua Haddock Lobo, em São Paulo. Lembrou-se de a banda da
pequena cidade de Cataguazes, onde, aos 17 anos, ficara no internato. Lembrou-se até da
troca da guarda do Pálacio de Buckingham, que vira em Londres. Teve nesse momento, a
ideia, mas os versos não saiam. Esqueceu o almoço, pegou o violão, um papel e, ali na
76
HOMEM, Wagner. op. cit., p. 40-41.
mesa, “A banda” saiu quase inteira, de estalo. Pensou em deixar a banda tocando para
sempre na rua, mas preferiu tornar as coisas mais reais.
Centrando-nos nas palavras de Caetano Veloso (apud FERNANDES, 2004:30):
“Chico Buarque anda pra frente arrastando a tradição”, compreenderemos que no
mapeamento sonoro buarqueano sempre estiveram presentes o novo e o velho, o
contemporâneo e a tradição. Seu texto sonoro faz emergir da gaveta de nossas lembranças,
a música domingueira das praças (segunda metade do século XIX), que prefacia a
identidade musical de Chico Buarque.
O imaginário de Chico encontra sua essência nas marchinhas militares e, aliado às
suas intenções, esse imaginário constrói no inconsciente coletivo, a história da música
popular. Acompanhando as lembranças de Chico Buarque – os passos iniciais de sua
composição – apreenderemos a matriz de A banda.
Retomando o fio dessa história, Tinhorão (1998:191) nos conta que com a
valorização das bandas de tropas da Primeira Linha e da Guarda Nacional, centenas de
músicos de origem popular encontravam oportunidade de viver de suas habilidades e de
seu talento, dialogando com o povo, através da música de coreto e de festas cívicas, um
tipo de formação instrumental muito próxima das orquestras das elites. E a prova de que a
ação das bandas militares extrapolava, realmente, suas funções estritas reside no fato de
que os próprios civis imitavam sua formação, criando bandas semelhantes para tocar
música de baile ou de coreto de praça.
Foi exatamente pela necessidade de entremear as marchas militares com músicas do
gosto popular que essas bandas de corporações fardadas começaram a incluir, em seus
repertórios, os gêneros mais em voga àquele tempo, ou seja, as valsas, polcas e mazurcas
importadas da Europa para atender aos propósitos de modernidade das novas camadas da
pequena burguesia.
No Rio de Janeiro, essas relações entre as bandas militares e a música popular iriam
ser favorecidas pelo advento do carnaval à europeia, em 1855, por iniciativa do escritor
José de Alencar, numa tentativa de superpor ao Entrudo77 popular, um estilo de
divertimento ao agrado da classe média. Em contraste com a violenta explosão popular do
77
O costume de se brincar no período do carnaval foi introduzido no Brasil pelos portugueses,
provavelmente no século XVI, com o nome de Entrudo. Já na Idade Média, costumava-se comemorar o
período carnavalesco em Portugal com toda uma série de brincadeiras que variavam de aldeia para aldeia. A
partir de 1830, uma série de proibições se sucedem na tentativa, sempre infrutífera, de acabar com a festa
grosseira. Combatido como jogo selvagem, o entrudo continuou a existir com esse nome até as primeiras
décadas do século XX e existe até hoje no espírito das brincadeiras carnavalescas mais agressivas, como a
"pipoca" do carnaval baiano ou o "mela-mela" da folia de Olinda. (Entrudo. Disponível em:
<http://www.wikipedia.org/wiki/Entrudo>. Acesso em: 19 jan. 2012).
Entrudo do povo miúdo, os foliões se reuniam no Passeio Público e passavam a tarde como
se passa uma tarde de carnaval na Itália, distribuindo flores, confete e intrigando os
conhecidos e amigos.
Essa
importância
nacional
assumida
pelas
bandas
militares, ao
serem
democraticamente postas a serviço da divulgação da música popular em discos e
apresentações em lugares públicos, acabaria por traduzir-se na dignidade conferida a seus
músicos. Em 1931, em artigo para a revista Weco, da Casa Carlos Wehers, o funcionário
da editora Djalma De Vincenzi, referendava o prestígio popular das bandas militares:
Certamente que seria de muita conveniência ir aos poucos habituando essa gente
[referia-se ao povo das praças públicas, reunido para ouvir música de coreto] a
apreciar também boas melodias, e assim modificar o juízo de que os concertos
públicos são unicamente para os que têm pelos sambas e maxixes restrita
preferência; e não compreendem a beleza e valores artísticos das obras musicais
de Miguez, Delgado de Carvalho, Barroso Neto, Nepomuceno, Fróes, Francisco
Braga, Francisco Mignone, Lorenzo Fernandes, Assis Republicano, e outros
tantos inspirados compositores patrícios.78
Nesse seletivo filme sedimentado por Tinhorão, encontraremos a trajetória
sociomusical de Chico Buarque. Sem perder o vínculo primeiro da estrutura do samba, das
marchinhas que inspiraram Noel Rosa – “Cidade mulher” (1936):
Cidade notável
Inimitável
Maior e mais bela que outra qualquer
Cidade sensível
Irresistível
Cidade do amor
Cidade mulher79
e os outros compositores da era do rádio, as músicas do filho de Sérgio Buarque são
dominadas ora pela pulsação periódica da batida – ao agrado do público de gosto popular
– ora pelas manobras melódicas ao estilo da bossa nova – ao agrado do público de classe
média comprometido com os valores artísticos das obras musicais – inspiradoras de
Vinícius e Tom Jobim – “Garota de Ipanema” (1962):
Olha que coisa mais linda
Mais cheia de graça
É ela menina
Que vem e que passa
No doce balanço, a caminho do mar80
78
apud TINHORÃO, José Ramos. op. cit., p. 200-201.
MOUTINHO, Marcelo. (Org). Canções do Rio: a cidade em letra e música. Rio de Janeiro: Casa da
Palavra, 2009, p. 51.
80
Ibidem, p. 90.
79
Mas lutando com os limites da linguagem musical e da linguagem verbal, Chico
deixa patente sua busca no desconhecido, no mistério da condição humana. Sua
composição é a própria escritura no domínio do tempo que, liricamente, chancela sua arte
de questionar no silêncio da fresta:
E cada qual no seu canto
Em cada canto uma dor
Depois da banda passar
Cantando coisas de amor81
A convergência de nossa compreensão encontra amparo em Meneses (2002:48-49),
que nos relata que há muito de saudosismo nesse Chico Buarque, saudosismo marcado por
lembranças do ontem. No entanto, seus versos musicais, nessa fase, são caracterizados de
forma nostálgica não porque se utilize de figuras da infância, mas pela postura lírica do
compositor, seu desejo de retorno, a ânsia dolorida por uma volta a uma situação ou a um
espaço que não fazem parte da realidade atual.
Essa volta nem sempre representa um retorno ao passado, podendo comportar
também, a criação de um espaço privilegiado, em que se opera a proposta de um tempoespaço outro – a festa, a banda, o carnaval, a marchinha – onde a fraternidade e o amor
possibilitem a comunhão dos afetos.
Cantando e dançando, manifesta-se o homem como membro de uma comunidade
superior. É justamente isso que os versos de Chico Buarque tentam resgatar, aquela
transição secular do mundo bucólico, imaculado ao citadino, industrial, capitalista, da
constituição da história como progresso. Os versos-rítmicos revelam uma atmosfera de
encantamento. Os versos-melódicos participam da produção de um tempo circular,
recorrente, que encaminha para a experiência de um não-tempo ou de um tempo virtual.
Mas os mesmos versos se deixam reduzir pelo campo harmônico, à sucessão cronológica e
à rede de causalidades que amarra o tempo social comum: “Mas para meu desencanto” /
“O que era doce acabou” / “Tudo tomou seu lugar” / “Depois que a banda passou”.
Dentro desse quadro de profundidade e movimento, a manifestação da linguagem
musical buarqueana é concebida.
Sua música conseguiu fazer com que as palavras
passassem a valer mais pela parte sonora do que pelos seus significados. Suas invenções
artísticas remontam às raízes míticas ─ modo específico de interpretar o mundo e o homem
─ o que nos levou a ressuscitar as palavras de Shopennhauer:
81
HOMEM, Wagner. op. cit., p. 40-41.
Como um pescador no seu barco, tranquilo e pleno de confiança na sua
embarcação, no meio de um mar desmesurado que, sem limites e sem obstáculos,
levanta e derruba montanhas de ondas cheias de espuma, mugindo e bramindo, o
homem individual, no meio de um mundo de dores, permanece sereno e
impassível, porque se apoia confiadamente no principium individuationis. 82
Poderíamos dizer que a confiança inabalável neste princípio, e a serenidade calma
de quem nele se compenetra, encontrou em Apolo a expressão mais sublime, a imagem
divina do princípio de individuação, cujos gestos e olhares nos falam de toda a sabedoria e
de toda a alegria da aparência.
De acordo com Nietzsche (1948:22-34), Apolo aparece-nos, porém, como imagem
divinizada do princípio de individuação, princípio pelo qual se cumprem os desígnios do
Uno primordial, mostrando-nos assim, com gestos sublimes quanto o mundo do sofrimento
é necessário, para que o indivíduo seja obrigado a criar a visão libertadora, porque desse
modo, abismado na contemplação da beleza, o homem permanecerá calmo e sereno,
levado na sua frágil barca por entre as vagas do mar alto. Mas ao lado do sublime há o
êxtase arrebatador – o prazer – que surgirá no indivíduo com todos os seus desvarios e suas
desmedidas, a demonstrar que no fundo do abismo, também, reina Dionísio.
Voltando às fontes, encontraremos também, na República, o estabelecimento e a
defesa da norma que se faz contra dois males: a inovação e o transe dionisíaco.
Para efeito de coesão da pólis, Platão afirma a superioridade dos instrumentos
mono-harmônicos (a lira e a cítara, instrumentos de Apolo) sobre os
instrumentos de muitas harmonias e cordas (a harpa, o bombyx – flauta
elaborada e virtuosística – e o aulos popular, instrumento dionisíaco). (...). Em
contraposição, recomendam-se as harmonias capazes de levar à temperança, ao
heroísmo altivo, à soberana aceitação de adversidade. Muito sintomaticamente
também, numa poética apolínea e antidionisíaca como esta, indica-se a
dominância da poesia sobre a música: ‘o ritmo e a harmonia seguem a letra, e
não esta àqueles.83
É desse modo que compreendemos o ethos musical de “A banda” (1966) como uma
estética plural, entre o sagrado (Apolo) e o profano (Dioniso). O desencadear de uma
sacralidade apolínea, identificada com a voz da ordem, da razão, dos personagens estáveis
no âmbito da sociedade – o homem sério, o faroleiro e a namorada – mescla-se ao aulos
dionisíaco, identificado com a voz dos “não-cidadãos”, das minorias, dos personagens
82
apud FRIEDRICH WILHELM, Nietzsche. A Origem da Tragédia: Proveniente do Espírito da Música;
(trad. de Erwin Theodor). São Paulo: Moraes, 1872, p. 22.
83
PLATÃO apud WISNIK, José Miguel. op. cit., p. 103.
paratópicos84 (sendo atribuídos a estes, os ritmos considerados não-harmônicos) – a moça
triste, feia e o velho fraco – tornando assim, essa obra semierudita.
A utilização de motivos folclóricos ou rurais pelo compositor Chico tem um sentido
de ancoragem histórica, para que sua produção não se distancie muito das raízes populares
e tenha a chance de ser reconhecida e apreciada pela coletividade. Mas a versatilidade
buarqueana confere ao ritmo popular um tratamento melódico sofisticado.
Aproveitando os ensinamentos de Wisnik (1989:163), diríamos que “A banda”
(1966) por ser uma música tonal85, perde as suas antigas funções rituais, remetidas agora
ao âmbito da contemplação estética, no contexto exclusivo da representação (música de
câmara, adequada a esse novo estado de ritualidade em suspensão). É nesse momento que a
linguagem musical de Buarque, sem ter propriamente uma função ritual e sem ser narrada
por um mito, se investe internamente de estruturas míticas – o seu mito é o da crise e da
reparação da ordem questionada e recomposta.
Concebida como o próprio elemento regulador do equilíbrio cósmico que se
realiza no equilíbrio social, a música é ambivalentemente um poder agregador,
centrípeto, de grande utilidade pedagógica na formação do cidadão adequado à
harmonia da pólis e, ao mesmo tempo, um poder dissolvente, desagregador,
centrífugo, capaz de pôr a perder a ordem social. 86
Neste ponto de vista, os versos musicais buarqueanos tornam-se símbolos não no
sentido do que designam, mas no sentido de que cada um deles gera seu próprio mundo
significativo. A leitura mítica é um deles. Cito Sendra: “O pensamento mítico ao caminhar
para o pensamento lógico vai deixando pelos caminhos pegadas, cujos sentidos, ainda que
fragilizados, testemunham, quando chamados, um passado que se pensa passado, mas se
faz presente como semente originária.”
Se considerarmos “A banda” (1966) na sua especularidade complementar, vamos
encontrar uma narrativa em que a imbricação do sucessivo e do simultâneo dão ao sentido
uma configuração partitural, uma estrutura sonora em que a trama discursiva dos
elementos ganha um direcionamento mítico.
84
Em seu livro O contexto da obra literária: enunciação, escritor, sociedade, Dominique Maingueneau
qualifica a condição de personagens paratópicos os indivíduos ou grupos cuja pertinência à sociedade é
problemática (monstros, mendigos, ladrões). (apud DE FERNANDES, Rinaldo. (Org). Chico Buarque do
Brasil: textos sobre as canções, o teatro e a ficção de um artista brasileiro. Rio de Janeiro: Garamond, 2004,
p. 333).
85
“Enquanto as músicas modais circulam numa espécie de estaticidade movente, em que a tônica e a escala
fixam um território, a música tonal produz a impressão de um movimento progressivo, de um caminhar que
vai evoluindo para novas regiões, onde cada tensão se constrói buscando o horizonte de sua resolução”. (cf.
WISNIK, José Miguel. op. cit., p. 114).
86
Ibidem, p. 102.
Se pensarmos, ainda em contexto grego, nas lendárias harpas eólias, tocadas pelo
vento, combinaríamos a forma apolínea (a lira) e a força dionisíaca (o oceano) como dois
modos representativos de um só evento: “Os golfinhos apolíneos vêm em socorro do
músico, surgindo do abismo oceânico como um princípio de organicidade que permite
flutuar. Dionísio, com a sua força, que domina as formas, transforma os marinheiros, que
pensam submetê-lo, em golfinhos: dando-os a Apolo”. 87
Talvez possamos ver, nesse momento mítico, as notas musicais de Buarque como
sendo os delfins desse oceano sonoro: ponto de apoio e de referência. A articulação entre
elas toma as formas de escalas, repertório de sons inter-relacionados, capazes de gerar
frases melódicas dotadas de sentido.
Partindo da análise acima, podemos observar que no fraseado progressivo de A
banda, as melodias caminham por um fio lógico em que se distinguem claramente o antes e
o depois na linearidade do tempo, mas por possuir fragmentos sonoros recorrentes, transita
pela esfera do mito.
Olhando, panoramicamente, a música de Buarque, observaremos que na tessitura de
sua canção – onde se constitui, se problematiza e se dissolve a grande diacronia – o mundo
da dialética e do romance se autoreferenciam. Assim, tudo se passa como se a música e a
narrativa da banda dividissem entre si a herança do mito e do tempo histórico, ficando uma
com o tecido relacional através do qual se encadeiam os motivos e a outra com os
personagens e a ação.
Esse paradoxo temporal pode ser explicado por conta de determinados fatores:
1. O fato de ser filho de Sérgio Buarque de Hollanda, um dos mais importantes
historiadores e críticos literários do Brasil, teria despertado Chico Buarque a
conhecer diversas formas literárias, pondo-o em contato com a cultura e poesia
medievais;
2. Seu interesse pela cultura popular, em especial a nordestina ─ que em certos
aspectos pode ser considerada descendente da literatura medieval;
3. Também poderia ter influído seu contato com poetas estudiosos da poesia
medieval, como Vinicius de Moraes que recorria às cantigas de amigo. 88
Meneses (apud FERNANDES, 2004:158) nos informa que essa contradição na
figuração do tempo representa um lastro cultural que vai “do tempo cíclico do mito, sob o
signo de Odisseu, que parte de Ítaca e que volta para Ítaca, ao fim de sua odisseia; ao
tempo histórico, sob o signo de Abraão, que parte de sua cidade, Ur, na Caldeia, rumo à
87
88
WISNIK, José Miguel. op. cit., p. 72.
CALADO, Luciana Eleonora de Freitas apud Fernandes, Rinaldo de. op. cit, p. 274.
Terra Prometida, sem retorno, inaugurando o movimento inexorável da história. Imbricamse assim, duas visões, “duas vivências de tempo”: o tempo helicoidal da filosofia grega e o
tempo irreversível do monoteísmo judaico.
Por isso, percebemos que na tentativa de dominar a palavra, a música e os versos
buarqueanos se procuram como se quisessem suprir a falta de um signo total sobre o qual
se deslocam num movimento contínuo, buscando sempre um elo de significação. Nesse
movimento de tensão e repouso, que se desenrola graças à procura permanente de
significações, emergirão trocas sonoras a caminho do campo harmônico. “Pode-se dizer
que no movimento cadencial a crise é introduzida e harmonizada: o sistema se constitui
admitindo o conflito na medida em que este pode ser solucionado dentro do horizonte do
próprio código. O equilíbrio dos intercâmbios entre o poder tensionante e o poder
resolutivo é a marca do estilo clássico” (WISNIK, 1989: 115).
De modo que, pensar as relações entre a música buarqueana e o mito significa
pensar a música como portadora de uma história do sentido (da memória) cindida pela
recorrência do pulso (esquecimento, dissolução do sentido no refrão onomatopaico, na
sílaba rítmica). Aristóteles, em Política, assim escreve:
Palas Atena, a deusa virgem saída diretamente do crânio de Zeus, persona da
sabedoria, da razão e da castidade, defensora do Estado e do lar contra seus
inimigos externos, protetora da vida civilizada e inventora das rédeas que
controlam os cavalos, ao ver sua face refletida num lago, quando tocava o aulos
dionisíaco, estranha seu próprio rosto (inflado pelo sopro) e atira o instrumento
às águas. 89
O aprofundamento da separação entre a música apolínea e a dionisíaca – em “A
banda” – a favor da primeira provocará, com o tempo, a estabilização de uma hierarquia
em que, assim como a música se subordina à palavra, o ritmo se subordina à harmonia; já
que o ritmo equilibrado é aquele que obedece a proporções harmônicas em detrimento dos
excessos rítmicos, melódicos e instrumentais da festa popular.
Além disso, o som da banda também traz uma ilusão momentânea de felicidade a
quem ouve, arrancando as pessoas dos sentimentos de solidão e sofrimento, para o qual
elas retornam quando cessa o som. A lírica buarqueana, segundo Anazildo Vasconcelos
(2010:107), não traça a trajetória do eu-lírico diferençado em sua problemática subjetiva,
mas insere-se na experiência compartilhada da problemática humano-existencial.
89
apud WISNIK, José Miguel. op. cit., p. 105.
A ilusão momentânea a quem ouve o som da banda diz respeito à percepção sonora
que é, por princípio, uma percepção singular. A escuta captura o sensível do som, traço
fugaz da audição, que se esvai com a desaparição do objeto sonoro e o retorno à realidade
circundante. Há, na verdade, uma espécie de experiência sensorial primitiva como se a
música capturasse, por todo o corpo, as figuras míticas de nosso sentir original, agisse
fisicamente. Nossa memória auditiva determina nossa percepção acústica e torna nossa
necessidade interior, com a passagem da música, momentaneamente concretizada. A
música evoca a vida orgânica do nosso corpo. Ela nos atravessa. Isto se dá porque
(...) os sons têm a capacidade de estimular, com grande eficiência, reações
corporais por similaridade ao estímulo apresentado. Essa é sem dúvida a base
fisiológica para a eficiência significante do pulso rítmico. Um pulso sonoro
constante, principalmente nas frequências baixas, pode estabelecer rapidamente
uma ressonância com nossos ritmos corporais inconscientes e provocar
alterações em nosso estado de percepção consciente. (...)90
O verdadeiro teor de uma percepção sonora é inatingível pelo outro e
intransmissível por quem a viveu. Utilizando a linguagem verbal, podemos resgatar parte
dessa experiência, projetá-la na esfera da coletividade e obter certa empatia por
aproximação de experiências. Pela canção parece que essa singularidade faz aproximar as
experiências vividas, individualmente, e o compositor movido pelo fazer criativo,
coletiviza essas vivências. Chico Buarque imprime essa canção-vivência91, esquadrinhada
por pioneiros como Noel Rosa, Ismael Silva, mas sem continuidade desde o alastramento
da paixão pelos boleros e sambas-canções das décadas de 40 e 50 e esquematização dos
conteúdos passionais empreendidos pela bossa nova.
Apropriando-nos da semiótica musical, desenvolvida por Luiz Tatit (2002:20),
diremos que Chico Buarque com “A banda” (1966) enfeixou essas experiências singulares
porque soube projetar na esfera da coletividade os acordes, melodias e ritmos sugeridos
pela alma do seu povo.
Para Sendra (2010:82), na heterogeneidade semiótica de um texto estão presentes
tanto uma consciência natural do homem, elemento isolado, como a cultura, enquanto
inteligência coletiva que vem trazendo sua memória. De modo que a arqueologia do tempo
tecidas pela historiografia e pela literatura popular devem transformar a força da imagem a
seu favor para que empreendam uma cartografia mnemônica do ato de escavar e recordar
90
91
SANTAELLA, Lucia. op. cit., p. 111.
Expressão utilizada por Luiz Tatit. através da filosofia da linguagem. Esse fundamento pode ser compreendido em um dos
fragmentos da Crônica berlinense (1974) onde Benjamin afirma:
A língua tem indicado inequivocamente que a memória não é um instrumento
para a exploração do passado; é, antes, o médium. É o médium onde se deu a
vivência, assim como o solo é o médium no qual as antigas cidades estão
soterradas. Quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir
como um homem que escava. Antes de tudo, não deve temer voltar sempre ao
mesmo fato, espalhá-lo como se espalha a terra, revolvê-lo como se revolve o
solo, pois fatos nada são além de camadas que apenas à exploração mais
cuidadosa entregam aquilo que recompensa a escavação, ou seja, as imagens
que, desprendidas de todas as conexões mais primitivas, ficam como
preciosidades nos sóbrios aposentos de nosso entendimento tardio, igual a torsos
na galeria do colecionador. E certamente é útil avançar em escavações segundo
planos. Mas é igualmente indispensável a enxada cautelosa e tateante na terra
escura. E se ilude, privando-se do melhor, quem só faz o inventário dos achados
e não sabe assinalar no terreno de hoje o lugar no qual é conservado o velho.
Assim, verdadeiras lembranças devem proceder muito menos informativamente
e antes indicar o lugar exato onde o investigador se apoderou delas. A rigor,
épica e rapsodicamente, uma verdadeira lembrança deve, portanto, ao mesmo
tempo fornecer a imagem daquele que se lembra, assim como um bom relatório
arqueológico deve não apenas indicar as camadas das quais se originam seus
achados, mas também, antes de tudo, aquelas outras que foram atravessadas
anteriormente.92 (grifos nossos)
A fotografia desse inventário de achados populares, de raízes culturais onde o
tradicional dialoga com o moderno, indica a geografia sociocultural e cronotópica por onde
transita o brasileiro Chico: da geração da poesia ao futebol, da feijoada à música
carnavalesca, da solidariedade ao bom humor, como se festejasse as labaredas de uma
cidade.
Segundo Marcelo Moutinho (2009:17), uma cidade que evoca em seu epíteto o
verso de uma canção já revela a inequívoca vocação musical. O Rio sempre esteve
presente no cancioneiro de décadas e décadas anteriores. Do início do século passado até
os dias que correm, a cidade foi comentada, criticada e saudada por intermédio da música,
seja com a alusão a suas ruas e seus bairros, seja por meio da crônica de seus personagens.
Ou ainda, e de forma mais direta e global, em odes ou antiodes que descortinam a dor e a
delícia de se viver nele.
Todas essas emoções foram tatuadas na crônica de Carlos Drummond de Andrade –
elogio ao criador da banda:
O jeito, no momento, é ver a banda passar, cantando coisas de amor. Pois de
amor andamos todos precisados, em dose tal que nos alegre, nos reumanize, nos
corrija, nos dê paciência e esperança, força, capacidade de entender, perdoar, ir
92
BENJAMIN apud SILVA, Márcio Seligmann (Org). História, memória, literatura: o Testemunho na Era
das Catástrofes. São Paulo: Editorada Unicamp, 2003, p. 403-404.
para a frente. Amor que seja navio, casa, coisa cintilante, que nos vacine contra o
feio, o errado, o triste, o mau, o absurdo e o mais que estamos vivendo ou
presenciando. A ordem, meus manos e desconhecidos meus, é abrir a janela,
abrir não, escancará-la, é subir ao terraço como fez o velho que era fraco mas
subiu assim mesmo, é correr à rua no rastro da meninada, e ver e ouvir a banda
que passa. Viva a música, viva o sopro de amor que a música e a banda vêm
trazendo, Chico Buarque de Hollanda à frente, e que restaura em nós hipotecados
palácios em ruínas, jardins pisoteados, cisternas secas, compensando-nos da
confiança perdida nos homens e suas promessas, da perda dos sonhos que o
desamor puiu e fixou, e que são agora como o paletó roído de traça, a pele
escarificada de onde fugiu a beleza, o pó no ar, a falta de ar. A felicidade geral
com que foi recebida essa banda tão simples, tão brasileira e tão antiga na sua
tradição lírica, que um rapaz de pouco mais de vinte anos botou na rua,
alvoroçando novos e velhos, dá bem a ideia de como andávamos precisando de
amor (...) 93
Apesar de saudada com entusiasmo por figuras tão díspares, “A banda” (1966) não
fez de Chico a tal unanimidade nacional que se propalava. Havia quem visse no lirismo e
na singeleza da canção um retrocesso, uma postura alienada para uma época que exigia o
engajamento político dos artistas. O que o patrulhamento ideológico chamava de alienado
era, na verdade, uma atitude pensada, conforme o próprio Chico esclareceu em entrevista à
Rádio do Centro Cultural São Paulo:
Quando compus “A banda” eu me lembro que ─ pra não dizer que havia
unanimidade ─ havia, sim, uma discreta condenação por parte da esquerda que
ainda insistia em ouvir o grito do Opinião, o grito de um ‘Carcará’ e tal. A Nara
Leão, aliás, me acompanhou nesse movimento, porque ela também já estava um
pouco cansada dessa tal música de protesto que se fazia então, que não passava
das portas do teatro e que, no fim das contas, era ineficaz. “A banda” era uma
retomada do lirismo, proposital mesmo, porque eu não era tão inocente assim
quanto parecia. Eu tinha um passado ─ também discreto, porque eu era muito
garoto ─ de luta estudantil. 94
Tentando recapitular esse momento, Ligia Vieira (2007:100) nos explica que a
repressão que tomou conta do país, a partir de 1964, focou inicialmente os sindicatos,
partidos políticos, entidades estudantis, não se estendendo às artes. O Teatro de Protesto,
os Centros de Cultura, o Cinema Novo, a Poesia Violão de Rua, a música de vanguarda
puderam, assim, prosseguir livremente, como uma espécie de desafio ao regime. Dessa
forma, a música e as artes passaram a conter o desabafo, a expressar o repúdio ao arbítrio
governamental.
O governo Castelo Branco, até 1968, foi liberal com a arte de protesto e a
intelectualidade da esquerda, desde que desvinculadas suas possíveis manobras com a
classe popular. A esse respeito, comenta Roberto Schwarz: “Cortadas naquela ocasião às
pontes entre o movimento cultural e as massas, o governo Castelo Branco não impediu a
93
94
HOME, Wagner. op. cit., p. 44-45.
Ibidem, p. 46.
circulação teórica nem artística do ideário esquerdista que, embora em área restrita,
floresceu extraordinariamente” (apud CESAR, 2007:101).
Paralelamente a esse contexto, Fernando de Barros (2004:37-41) nos diz que boa
parte dessa energia oposicionista e esquerdizante que irradiava da cultura havia sido
canalizada para a música, desaguando na chamada era dos festivais, a partir de 1965. “Mas
para lá também convergiram, de um lado, disputas e interesses comerciais crescentes entre
emissoras que se profissionalizavam e descobriam o filão do showbiz e, de outro, as
rivalidades entre os novos astros da MPB, que esses mesmos festivais e TVs começavam a
projetar.”
Galvão (1976:93) salienta que, desses festivais, nasceu a Moderna Música Popular
Brasileira (MMPB), apresentando uma proposta nova dentro da tradição. Este projeto tinha
duas faces. No plano musical, implicava numa volta às velhas formas da canção urbana
(marcha, marcha-rancho, modinha, frevo) e da canção rural (moda de viola, samba de roda,
desafio). No plano literário, implicava um compromisso de interpretação do mundo que
nos cerca, particularmente, em suas concreções mais próximas, brasileiras.
A proposta nova da Moderna Música Popular Brasileira (MMPB) residia nesse
compromisso com uma realidade cotidiana, fazendo com que os compositores derrubassem
velhos mitos que se encarnavam em lugares comuns da canção popular, como o sertão, o
morro.
Chico Buarque por ser um dos compositores brasileiros mais sensíveis às
manifestações populares insere-se, portanto, nessa nova proposta. Muitas das suas
composições penetram na natureza do carnaval e no caráter utópico dessa festa popular.
Para Luciana Eleonora de Freitas (apud FERNANDES, 2004:275), o Carnaval,
nesse sentido, não se confunde apenas com a festa mais popular do Brasil. Trata-se antes
de um tempo-espaço em que a comunidade liberta todas as suas repressões, assumindo nas
máscaras e nos disfarces a sua verdadeira identidade.
A respeito da cultura do carnaval e de outras festas populares celebradas na Idade
Média, Bakhtin faz a seguinte análise:
Todos esses ritos e espetáculos organizados à maneira cômica apresentavam uma
diferença notável, uma diferença de princípio, poderíamos dizer, em relação às
formas do culto e às cerimônias oficiais sérias da Igreja ou do Estado feudal.
Ofereciam uma visão do mundo, do homem e das relações humanas totalmente
diferente, deliberadamente não-oficial, exterior à Igreja e ao Estado; pareciam ter
construído, ao lado do mundo oficial, um segundo mundo e uma segunda vida
aos quais os homens da Idade Média pertenciam em maior ou menor proporção,
e nos quais eles viviam em ocasiões determinadas (apud Fernandes, 2004:276).
A felicidade e o riso, projetados na banda, terão esses dois traços marcantes: será
fugaz e sempre relacionado a motivos musicais e próprios da cultura popular – o Carnaval,
a cabrocha, o violão; além disso, terá os olhos voltados para a realidade, para o mundo
oficial e sério.
Essa arte de virar ao avesso às formas de comportamento sério e conservador da
ideologia oficial é uma marca representativa na música de Buarque. “Porém, se os poetas
medievais privilegiavam o ataque à literatura sagrada, em textos impregnados de elementos
grosseiros e obscenos, as paródias do compositor Chico apresentam um caráter político”
embora não percam o tom lírico e trovadoresco (FREITAS apud FERNANDES,
2004:277).
Sant’Anna (apud FERNANDES, 2004:163) analisa “A banda” como se a saída da
rotina, o advento da música e o retorno ao prosaico estivessem assinalados por um
movimento de fechamento ou de abertura dos indivíduos em relação à música que passa.
Vivenciando diferentes momentos geridos e gerados por fatos sociais, o compositor Chico
vai regenerando o tempo e elaborando a paz proporcionada pelo samba, pela marchinha de
carnaval.
Movido por esse sentimento, mobília sua próxima música com restos da delicadeza
quase perdida desse país. Porções inteiras do nosso vivere civile concentradas em versos
que cortam transversalmente a cidade e integram públicos diversos até o limite do
indivíduo comum.
Chico nos convida a ouvir “Paratodos” (1993), guiados pelo som de uma toada com
jeito de serenata, na tentativa de costurar com a melodia o seu modo de pensar o país e o
percurso da história brasileira. As carreiras de todos os cantores populares, instrumentistas
e especialistas na interpretação de canções do século XIX ao século XX vão sendo
traduzidas pelos versos democráticos a que Chico nos submete a fim de que leiamos a
trajetória da obra de cada artista.
Trajetória que se desenvolveu dentro da interação campo-cidade seguindo sempre
representada pelos frevos pernambucanos, pelas marchas, sambas de Carnaval, sambas de
enredo, sambas-canções, toadas, baiões, gêneros sertanejos e canções românticas em geral.
O que essa evolução do processo sociocultural brasileiro no âmbito das camadas
urbanas nos revela – das gerações da Época de Ouro, passando pelos festivais populares
com os tropicalistas, bossa novistas e a Jovem Guarda – é o emblema de um país cordial.
Só compreenderemos a amplitude dessa posição histórica por dois ângulos:
cordialidade-civilidade; o que nos faz lembrar à crítica feita por Sérgio Buarque de
Hollanda ao intelectualismo e à racionalização. Poderemos entender a discussão a partir do
problema de como modernizar-se sem objetivar e reduzir as relações sociais. Isto se
coaduna com a concepção modernista de recuperar no passado a especificidade da cultura
nacional, de forma a relacioná-la e integrá-la – como contribuição particular – ao moderno
e ao universal. De outro lado, outra forma de confrontar a oposição cordialidade-civilidade
é compreendê-la a partir da incompatibilidade entre a cordialidade e a democracia. Neste
caso, o que Chico nos sugere com sua próxima música “Paratodos” (1993) é a
possibilidade de unir os contrários: “um país onde a civilidade não seja sinônimo de
impessoalidade, mas condição de existência do político e de uma sociedade democrática.”
Chico insiste na necessidade de configuração de uma memória pronta para resgatar
– da geração do samba de outrora – o vigor e a continuidade de seus feitos aos novos
sucessores. Sua canção procura exprimir o diálogo do compositor com as raízes musicais,
um diálogo capaz de insinuar que o chão emocional e doméstico em que cada um de nós,
ouvinte, pisa, guarda em si, mais do que imaginamos, uma terra originária e comum a
todos seus habitantes.
CAPÍTULO 4
CHICO PARATODOS
“Paratodos” (1993)
O meu pai era paulista
Meu avô pernambucano
O meu bisavô, mineiro
Meu tataravô, baiano
Meu maestro soberano
Foi Antônio Brasileiro
Foi Antônio Brasileiro
Quem soprou esta toada
Que cobri de redondilhas
Pra seguir minha jornada
E com a vista enevoada
Ver o inferno e maravilhas
Nessas tortuosas trilhas
A viola me redime
Creia, ilustre cavalheiro
Contra fel, moléstia, crime
Use Dorival Caymmi
Vá de Jackson do Pandeiro
Vi cidades,vi dinheiro
Bandoleiros, vi hospícios
Moças feito passarinho
Avoando de edifícios
Fume Ari, cheire Vinicius
Beba Nelson Cavaquinho
Para um coração mesquinho
Contra a solidão agreste
Luis Gonzaga é tiro certo
Pixinguinha é inconteste
Tome Noel, Cartola, Orestes
Caetano e João Gilberto
Viva Erasmo, Ben, Roberto
Gil, Hermeto, palmas para
Todos os instrumentistas
Salve Edu, Bituca, Nara
Gal, Bethania, Rita, Clara
Evoé, jovens à vista
O meu pai era paulista
Meu avô, pernambucano
O meu bisavô, mineiro
Meu tataravô, baiano
Vou na estrada há muitos anos
Sou um artista brasileiro95
95
WERNECK, Humberto. op. cit., p. 403-404.
A ensaísta Starling (2009:13-17) nos conta que Paratodos é um álbum que foi
produzido no momento em que Chico Buarque completava cinquenta anos de idade.
Repleto de referências autobiográficas, o disco expõe também esse lado íntimo e pessoal –
talvez por considerar necessário revelar a mudança e seu tempo de gestação na criação
madura do autor. Na canção título do álbum, o ato de rememorar, mais do que estabelecer
uma genealogia, traduz um esforço de fundação.
Na canção de Chico96, o legado deixado por essa tradição não é uma aquisição, um
bem que se acumula e se petrifica; ao contrário, essa é, principalmente, uma tradição
descontínua, sempre fragmentária, repleta de falhas que a tornam instável e no interior da
qual, as gerações de compositores não coincidem com a ordem natural da história desses
desencadeadores da Música Popular Brasileira (MPB). De modo que, seguir os versos de
“Paratodos” (1993) será recontar essa história coletiva introduzindo um novo significado
ao que já foi esquecido e só assim, será possível construir um vínculo sólido com essa
tradição – entrega consciente de nosso passado.
O percurso de quem se aventura a retecer historicamente o texto dessa experiência
– testemunhal – de um passado histórico é interminável. A promessa do reencontro nunca
se cumpre integralmente. O eidos não pode ser perfurado. Quem se propõe em
desdobrar os compartimentos da memória – afirma Benjamin –, encontra sempre
novos membros, novas varinhas, nenhuma imagem o satisfaz, pois ele
reconheceu que ela se deixa desdobrar; o próprio encontra-se nas dobras: aquela
imagem, aquele gosto, aquele tatear pelo qual nós separamos e desdobramos
tudo; e então a recordação vai do pequeno ao menor e do menor ao mais
diminuto e sempre se torna mais violento aquilo com o que ela se defronta nesses
microcosmos.97
Por isso, se o artista tem como seu centro de gravidade o trabalho com a memória
(ou melhor, o trabalho da memória), a música buarqueana que situa a tarefa do testemunho
no seu núcleo, por sua vez, é a literatura popular par excellence da memória. Para tanto, o
movimento de construção e desconstrução do passado é levado a efeito pelo compositor,
resultando na emergência do fragmentário e do residual como forma de autoproteção da
linguagem, que se expande e se contrai até os limites da sua impossibilidade de tudo
abarcar no espaço do signo.
A memória, como a tradição, diz respeito à organização do passado em relação ao
presente. Nós reproduzimos continuamente memórias de acontecimentos ou estados
96
STARLING, Heloisa Maria Murgel. Uma pátria paratodos: Chico Buarque e as raízes do Brasil. Rio de
Janeiro: Língua Geral, 2009, p.41.
97
BENJAMIN apud SILVA, Márcio Seligmann. op. cit., p. 408.
passados, e estas repetições conferem continuidade à experiência.
Sendo assim, a
integridade da tradição não deriva do simples fato da persistência sobre o tempo, mas do
trabalho contínuo de interpretação que é realizado para identificar os laços que ligam o
presente ao passado (GIDDENS, 1997:82).
Disso procede, no nosso entender, o feliz reencontro entre a tradição cultural
popular nordestina e a memória sonora buarqueana – o baião, elemento rítmico brasileiro.
Essa identificação e reinterpretação do passado em “Paratodos” (1993) nos mostra o
objetivo do artista Chico em promover o traço fundamental da cultura brasileira: o
sincretismo. O compositor se utiliza de um gênero musical surgido da união do maracatu
africano com o fado português para elaborar o seu samba. A linguagem popular adotada
pelo artista aparece como um resgate histórico e de reinvenção da tradição, ou melhor, um
meio organizador da memória coletiva.
Na verdade, a canção de Chico é uma mostra do modo como uma determinada ética
da história atua na construção de uma imagem do passado. Para Márcio Seligmann
(2003:67), “não existe uma História neutra; nela a memória, enquanto uma categoria
abertamente mais afetiva de relacionamento com o passado, intervém e determina em boa
parte os seus caminhos.”
Não por acaso, os caminhos trilhados da música “Paratodos” (1996) evocam o
ofício do historiador e, consequentemente, das raízes buarqueanas. Essa árvore genealógica
está registrada em Buarque – uma família brasileira, de Bartolomeu Buarque de Holanda,
um primo de Chico. Segundo o livro,
José Ignácio Buarque de Macedo, poderoso senhor de engenho do Nordeste,
casou-se, em 1897, com a ex-escrava e analfabeta Maria José Lima, que, já
naquele tempo, elegeu a educação como prioridade da família. Um deles,
Antonio, tornou-se conselheiro e ministro do Supremo. O neto, Manoel Buarque
de Macedo, foi ministro da Agricultura do Império. O nome Buarque de
Hollanda também não existiria se não fosse Cristovão, avô de Chico por parte do
pai, Sérgio. Já adulto, Cristovão, pernambucano, foi fazer o seu registro de
identidade e decidiu diminuir a série de sobrenomes que herdara dos pais: Paes
Barreto Hollanda Cavalcanti Buarque de Gusmão. Foi no seu nascimento que a
família Buarque se uniu à família Hollanda. Cristovão era filho de Maria
Magdalena Paes Barreto de Hollanda Cavalcanti com Manoel Buarque de
Gusmão, que se casaram em 1850. E para encurtar a história, o rapaz se registrou
simplesmente como Cristovão Buarque de Hollanda, mudando a ordem dos
nomes e fazendo uma mistura do Hollanda da mãe com o Buarque do pai a seu
bel-prazer. Quatro gerações depois de Maria Magdalena e Manoel, nascia Chico
Buarque de Hollanda.98
98
ZAPPA, Regina. op. cit., p. 21-23.
Contudo, também é importante lembrar que essa vivência de laços consanguíneos
tem, paralelamente, a de laços afetivos, que diz respeito à própria vida cancional de Chico
Buarque. Um desses representantes que detonam a potencialidade de suas articulações
sonoras foi Antônio Carlos Jobim (1927-1994), maestro soberano, brasileiro, carioca, que
pôs toda a sua criatividade a serviço dos acordes musicais.99
Luiz Tatit (2002:164) identifica na dicção de Tom Jobim, o tratamento do arranjo
orquestral, inteiramente concebido para o piano. Cada acorde contém uma fonte de energia
melódica100 que orienta o sentido do percurso, como se toda a substância protéica da
melodia estivesse armazenada no encadeamento harmônico. 101
Um acorde de Jobim é um dispositivo harmônico que, não apenas reforça a
densidade do solo principal, mas, sobretudo, intercepta a corrente melódica, rompendo sua
previsibilidade e sugerindo outros encaminhamentos até então considerados dissonantes
pelos ouvidos não familiarizados.
Outro ilustre participante dessa genealogia musical, é Dorival Caymmi (19142008). Quando fala de paixão e de seus estados interiores, esse compositor jamais se
dilacera nas tensões da carência. Trata o sentimento com delicadeza e cuidado como se
assim preservasse a integração de seu ser com a natureza. As emoções culturalmente
marcadas, como ciúme, vingança, desprezo não fazem parte de seu estilo. Só aquelas que
brotam espontaneamente em qualquer idade, em qualquer época. Busca a emoção humana
essencial, sem vícios. Declarou diversas vezes que seu sonho era chegar à perfeição de
compor uma Ciranda-Cirandinha que se perdesse no meio do povo (Dorival Caymmi, em
Nova História da Música Popular Brasileira, 1976: 09).
O universo mimético de Caymmi decanta a Bahia, o samba, o mar e o faz com
intenso vigor temático, num ritmo original e fisicamente estimulante. Não tendo, como de
praxe, qualquer formação musical, inventou batidas e toques de violão específicos para a
sua dicção. Com seu texto icônico, sua melodia rodeando a tônica e seu instrumento
99
Acorde é a união de várias notas, em harmonia, formando assim um único som. Em música, uma
consonância (do latim consonare, significando soar junto) é uma harmonia, um acorde ou um intervalo
considerado estável, em relação a uma dissonância que é considerada instável. (Teoria Musical. Disponível
em: <http://www.musicaeadoraçao.com.br>. Acesso em: 18 jan. 2012).
100
Melodia é uma sucessão rítmica, ascendente ou descendente de sons simples, a intervalos diferentes e que
encerram certo sentido musical. A melodia faz a música ter vida. (Teoria Musical. Disponível em:
<http://www.musicaeadoraçao.com.br>. Acesso em: 19 jan. 2012).
101
Harmonia são notas diferentes executadas juntas em conformidade ou em harmonia entre si formando uma
consonância lógica. Sua função é dar vida à música. (Teoria Musical. Disponível em:
<http://www.musicaeadoraçao.com.br>. Acesso em: 20 jan. 2012).
esboçando o arranjo final, cada fragmento de composição já é uma obra completa (TATIT,
2002:106).
Se dirigirmos nosso olhar mais à frente, veremos a face de um artista paraibano que
irrompeu no meio musical carioca: Jackson do Pandeiro (1919-1982). Severiano
(2008:286) nos relata que esse artista se lançou interpretando sacudidos cocos e rojões, os
instrumentos que melhor se adaptavam ao estilo alegre, buliçoso que o distinguia de Luiz
Gonzaga (1912-1989).
Naturalmente, esses cocos e rojões eram estilizações, sem maior rigor
musicológico, dos ritmos folclóricos originais. Segundo alguns especialistas, o rojão é
uma variante do baião em que o cantador narra suas façanhas, contando vantagens. No
caso de Jackson, seu rojão diferenciava-se do baião convencional por ter um ritmo mais
vivo de forte marcação.
Em contínuo contorno de estilos e gêneros musicais, temos o resgate de Ary
Barroso (1903-1964). Pensar em “Aquarela do Brasil” (1939) é exaltar Ary que
(...) foi um dos mais pungentes autores (juntamente com Noel Rosa) da canção
passional surgidos na década de 30. Conhecia o segredo de fazer o texto parecer
experiência pessoal vivida. Com um leve desvio desse imenso potencial
ardoroso, esse compositor engajou-se no samba exaltação, decantando os valores
brasileiros que considerava autênticos. Noção de autenticidade brasileira que,
circunstancial e coincidentemente, atendeu a dois grandes interesses conjunturais
(ao governo de Getúlio e aos planos exóticos de Walt Disney).102
Sant’Anna (1977:201-202) e Tinhorão (1998:304) comentam que “Aquarela do
Brasil” (1939) inscreveu-se como paráfrase: continuação dos padrões ideológicos
dominantes, preservação de uma mesma interpretação dos fatos totalmente facciosa, ainda
que poética. Houve no plano cultural um espírito de aproveitamento das potencialidades
brasileiras que informava a chamada nova política econômica, lançada pelo governo
Vargas, encontrando correspondência nos campos da música erudita com o nacionalismo
de inspiração folclórica de Villa-Lobos e no da música popular, com o samba de exaltação.
Saindo das molduras patrióticas e cívicas, visualizamos em tela, Vinicius de Morais
(1913-1980) que, embora tenha se iniciado na música popular com o fox-trot “Loura ou
Morena” (1932), originariamente, provém da série literária. Vinicius traz para a música
popular uma das contribuições notáveis ─ a recuperação do coloquial carioca.
Sant’Anna (1977:215), em Música Popular e Moderna Poesia Brasileira nos
informa que, em matéria de música, Vinicius procura exercitar-se em todos os gêneros e
102
TATIT, Luiz. O Cancionista. São Paulo: Edusp, 2002, p. 84-85.
ritmos: sambas afro-brasileiros compostos com Baden Powell (“Canto de Ossanha”, 1966 e
“Berimbau”, 1964); as marchas ranchos como “Marcha de Quarta-feira de Cinzas”, 1964,
com Carlos Lira; as canções-recitativos como o “Samba da Benção”, 1964, e as canções e
sambas compostos com Tom Jobim. Mas ainda que seus textos retratem tanto o falar
“moderninho” de Ipanema e o “coloquial” carioca permanece sempre, indisfarçável, em
suas músicas o tom literário de seus valores culturais.
Inventariando o passado, uma nova identidade surge com sua voz rouca:103 o toque
rústico no violão; as cordas graves conduzindo à harmonia; as melodias tristes de
contornos incomuns; os temas da morte e do sofrimento repetidos, obsessivamente; as
imagens e resoluções poéticas insólitas, características que se combinam na obra de Nelson
Cavaquinho (1911-1986), formando um todo único, indissociável, conferindo ao sambista
um lugar especial entre os artistas mais originais da música popular brasileira de todos os
tempos. Contemporâneo dos principais nomes da chamada Era de Ouro da música popular
brasileira (MPB), ao contrário daqueles, permaneceu na condição de marginalizado durante
a maior parte de sua carreira. O cantor e compositor não se preocupava com a
comercialização de suas músicas, preferindo tocar e cantar, como um trovador urbano, nos
bares, pelas madrugadas.
O ritmo de Luiz Gonzaga (1912-1989) também não ficou de fora das
reminiscências de Chico Buarque. Abordar essas revivências, nada melhor do que
Severiano, em Uma história da música popular brasileira: da origem à modernidade, para
celebrar esse encontro. Segue a descrição dos fatos:
Durante o século XIX, criou-se no interior da Bahia uma variante do lundu,
descrita por Pereira da Costa (citado no Dicionário do folclore brasileiro, de
Câmara Cascudo) como ‘uma dança rasgada, lasciva, movimentada, ao som de
canto próprio, com letras e acompanhamento a viola e pandeiro’. Com o passar
do tempo, subvariantes dessa dança espalharam-se por outros estados do
Nordeste, popularizando-se sob o nome ‘baião’, uma corruptela de ‘baiano’,
termo como era conhecida originalmente. Foi a música ligada a essa dança,
também chamada baião, que Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira escolheram
como modelo a ser usado em seus projetos musicais. Preferida para animar os
bailes sertanejos, essa música inspirou também um certo toque de viola,
executado nos intervalos das cantorias de repentistas, base do ritmo adotado na
estilização (2008:280).
A Era do Baião durou, pode-se dizer, de 1946 a 1957, alcançando o auge no triênio
de 1949 a1951. Nesse intervalo, Gonzaga fixou a banda ideal para acompanhá-lo, que se
tornaria o conjunto padrão adotado pelos cultores do baião: acordeão, zabumba e triângulo.
103
Cavaquinho, Nelson. Biografia. Disponível em: < http://www2.uol.com.br/nelsoncavaquinho>. Acesso
em: 15 jan. 2012.
Foi com o “baião” “No meu pé de serra” (1946) que, pela segunda vez, se empregava essa
palavra para designar o ritmo de uma canção na discografia brasileira. A primeira foi usada
por João Pernambucano104 (1883-1947) em sua composição “Estrela d’alva”, cantada em
1930, por Stefana de Macedo105 (1903-1975), no disco Columbia nº5157.
Alfredo da Rocha Vianna Filho ou Pixinguinha106 (1897-1973) – nome que mistura
o dialeto africano "Pizin Din" (menino bom) com "Bexiguinha", por ter contraído bexiga –
foi um dos músicos da fase inicial da Música Popular Brasileira (MPB) que não escapou
dos versos buarqueanos. Com domínio técnico e um dom de improvisação encontrados nos
grandes músicos de jazz, Pixinguinha é considerado um flautista talentoso, além de um
irreverente arranjador e compositor.
Neto de africanos, começou a tocar primeiro cavaquinho, depois uma flautinha de
folha, acompanhando o pai que tocava flauta. Aos 15 anos, já tocava profissionalmente em
casas noturnas, cassinos, cabarés e teatros. Em 1917, gravou a primeira música de sua
autoria, a “Valsa Rosa”, e, em 1918, o choro “Sofres Porque Queres”. Nessa época,
desenvolveu um estilo próprio, mesclava seu conhecimento teórico com sua origem
musical africana, salpicado de polcas, maxixes e tangos. Aos 20 anos, formou o conjunto
Os Oito Batutas (flauta, viola, violão, piano, bandolim, cavaquinho, pandeiro e reco-reco).
Além de ter sido pioneiro na divulgação da música brasileira no exterior, adaptando
para a técnica dos instrumentos europeus a variedade rítmica produzida por frigideiras,
tamborins, cuícas e gogôs, o grupo popularizou instrumentos afro-brasileiros, até então
conhecidos apenas nos morros e terreiros de umbanda107, abrindo novas possibilidades para
os músicos populares.
104
Filho de família muito humilde, semi-analfabeto, ferreiro de profissão, era possuidor de grande talento,
tornando-se exímio violonista já na adolescência. Assim, em 1904, ao mudar-se para então capital do país,
trazia na bagagem, além do inseparável violão, um vasto conhecimento da cultura popular de sua região,
adquirido no interior e na cidade de Recife. Ao mesmo tempo em que apresentava aos cariocas os cocos,
emboladas e toadas de sua terra, enfronhava-se ele mesmo nos segredos do choro. (cf. SEVERIANO, J. op.
cit, p. 242-243).
105
Inaugurou a linha de cantoras folcloristas, numa época em que só homens atuavam. Em 1926 apresentouse ao violão, quando esse instrumento ainda estava restrito à então chamada malandragem, no Cassino do
Copacabana Palace. Em 1928 estreou em disco interpretando pela Odeon as canções "Tenho uma raiva de
vancê" e "Sussuarana", ambas de Luiz Peixoto e Hekel Tavares. No mesmo ano, gravou de Catulo da Paixão
Cearense o samba "Leonor" e de Hekel Tavares e Joracy Camargo, a canção "Lua cheia". (MACEDO,
Estefana de. Biografia. Disponível em: <http://www.cantorasdobrasil.com.br/cantoras/estefana_de_macedo>.
Acesso em: 15 jan. 2012).
106
VIANNA FILHO, Alfredo da Rocha. Biografia. Disponível em:
<http://www.biografias.netsaber.com.br> Acesso em: 15 jan 2012.
107
Umbanda é uma religião brasileira formada através de elementos de outras religiões como o catolicismo
ou espiritismo juntando ainda elementos da cultura africana e indígena. A palavra é derivada de u´mbana, um
termo que significa ‘curandeiro’ na língua banta falada na Angola, o quimbundo. A umbanda tem origem nas
senzalas em reuniões onde os escravos vindos da África louvavam os seus deuses através de danças e
Na década de 1940, sem a mesma embocadura para o uso da flauta e com as mãos
trêmulas devido à sua devoção ao uísque, Pixinguinha trocou a flauta pelo saxofone,
formando uma dupla com o flautista Benedito Lacerda. Fez uma parceria famosa com
Vinícius de Moraes, na trilha sonora do filme Sol sobre a Lama, em 1962.
O compositor e letrista, renovador de nossa lírica, cujos versos permaneceriam
como exemplo de poesia popular, foi saudado por Chico. Noel de Medeiros Rosa (19101937) resolveu a equação da canção popular brasileira demonstrando que o samba não era
apenas um gênero, um ritmo ou uma batida.
Segundo Tatit (2002:29), seu samba era uma conciliação de tendências opostas: de
um lado, a complexidade da vivência pessoal e seu relato impreciso e aperiódico, de outro,
a pulsação regular e os apelos reiterativos das melodias visando à memória do ouvinte e à
ginga do corpo. O desafio era fazer samba atingindo a particularidade da experiência com
manobras melódicas, sem perder as constâncias musicais do gênero, sobretudo a pulsação
periódica da batida.
Para Severiano (2008:135), a obra de Noel pode ser dividida em dois abrangentes
segmentos: o amargo, pessimista, que trata das agruras do amor – paixões, ciúmes, traições
– e que é muitas vezes autobiográfico e até confessional; e o alegre, otimista, que faz a
crônica do cotidiano, dos fatos pitorescos, além da exaltação de Vila Isabel, do samba e de
outras bossas.
Outro compositor e violonista que não poderia deixar de figurar nessa majestosa
lista de homenagens, é Angenor de Oliveira (1908-1980). Cartola, como era conhecido, foi
o integrador de uma turma de brigões e arruaceiros que, não por acaso, formaram o Bloco
dos Arengueiros, em 1925. Esse bloco seria o embrião da G.R.E. S Estação Primeira de
Mangueira (RJ). A ampliação e fusão do bloco com outros existentes no morro geraram,
em 28 de abril de 1928, a segunda escola de samba carioca e uma das mais tradicionais da
história do carnaval da cidade.
Mas a melhor maneira de descrever esse artista popular é relendo a crônica –
Cartola, no moinho do mundo – feita por Carlos Drummond de Andrade, publicada no
Jornal do Brasil em 27/11/1980, três dias antes da morte do criador de "As Rosas Não
Falam” (1976):
cânticos e incorporavam espíritos. (Umbanda. Disponível em: <http://www.osignificado.com.br/umbanda>.
Acesso em: 18 jan. 2012).
(...) Esse Cartola! Desta vez, está desiludido e zangado, mas em geral a atitude
dele é de franco romantismo, e tudo se resume num título: Sei Sentir. Cartola
sabe sentir com a suavidade dos que amam pela vocação de amar, e se renovam
amando. Assim, quando ele nos anuncia: “Tenho um novo amor”, é como se
desse a senha pela renovação geral da vida, a germinação de outras flores no
eterno jardim. O sol nascerá, com a garantia de Cartola. E com o sol, a incessante
primavera. A delicadeza visceral de Angenor de Oliveira (e não Agenor, como
dizem os descuidados) é patente quer na composição, quer na execução. Como
bem me observou Jota Efegê, seu padrinho de casamento, trata-se de um distinto
senhor emoldurado pelo Morro da Mangueira. A imagem do malandro não
coincide com a sua. A dura experiência de viver como pedreiro, tipógrafo e
lavador de carros, desconhecido e trazendo consigo o dom musical, a centelha,
não o afetou, não fez dele um homem ácido e revoltado. A fama chegou até sua
porta sem ser procurada. O discreto Cartola recebeu-a com cortesia. Os dois
convivem civilizadamente. Ele tem a elegância moral de Pixinguinha, outro a
quem a natureza privilegiou com a sensibilidade criativa, e que também soube
ser mestre de delicadeza. (...) Cartola soube botar em lirismo a sua vida, os seus
amores, o seu sentimento do mundo, esse moinho, e da poesia, essa
iluminação.108
A crônica de Drummond reafirma nosso entendimento de que a proposta
Modernista (1922) – atualização da cultura brasileira – foi realizada pelo samba e outros
gêneros populares nas décadas de 20 e 30. A linguagem empostada e literária que
acompanhava as modinhas de salão do século XIX foi sendo deixada de lado para
encontrar pouso certo numa linguagem coloquial e lírica de um Cartola, Noel Rosa, entre
tantos outros que encontraram o tom da língua brasileira que os modernistas perseguiram.
Penetrando na intimidade das modinhas de salão, rastreamos Orestes Barbosa
(1893-1966), figura carismática, romântica, jornalista panfletário, poeta, letrista e
frequentador do Café Nice (1928) – reduto dos artistas que construíram a Época de Ouro
da música popular e do rádio brasileiro. O brilho de Orestes Barbosa pode ser esboçado
pelos versos do poema musicado “Chão de Estrelas” (1937):
Minha vida era um palco iluminado
Eu vivia vestido de dourado
Palhaço das perdidas ilusões
Cheio dos guizos falsos da alegria
Andei cantando a minha fantasia
Entre as palmas febris dos corações
Meu barracão no morro do Salgueiro
Tinha o cantar alegre de um viveiro
Foste a sonoridade que acabou
E hoje, quando do sol, a claridade
Forra o meu barracão, sinto saudade
Da mulher pomba-rola que voou
Nossas roupas comuns dependuradas
Na corda, qual bandeiras agitadas
108
DE ANDRADE, Carlos Drummond. Cartola, no moinho
<http://www.algumapoesia.com.br/drummond>. Acesso em: 16 jan. 2012.
do
mundo.
Disponível
em:
Pareciam estranho festival!109
Saindo de um modelo comportado, clássico, aterrissaremos no seu oposto, a
carnavalização da cultura. Nada melhor do que Caetano Veloso (1942) – um dos
fundadores do movimento Tropicalista, integrante do grupo de letristas e músicos
contestadores que se insurgiram contra o consenso geral representado pela classe
dominante ─ para nos apresentar com “Alegria, alegria” (1967) o coração do Brasil:
Caminhando contra o vento
Sem lenço e sem documento
No sol de quase dezembro
Eu vou...
O sol se reparte em crimes
Espaçonaves, guerrilhas
Em cardinales bonitas
Eu vou...110
Para Sant’Anna (1977:239), o Tropicalismo tentou fazer uma crítica da cultura
nacional. O estilo é feito dentro do processo de colagem, colocando em confronto os
elementos mais díspares: a cidade e o campo, a cultura e a natureza, o civilizado e o
primitivo. Confronta Catulo da Paixão Cearense111 (1863-1946) com os caminhões e
aviões. José de Alencar e a garota de Ipanema. Esta visão deixa claro que, os tropicalistas
incorporaram a estética do belo e do mau-gosto, em seus textos musicais, numa visão
carnavalizada de nossa cultura. O texto de Caetano Veloso é essa extensa paródia, isto é, a
manipulação dos dados de sua cultura pelo avesso, fora dos ditames convencionais.
O tropicalismo também teve como figura de destaque, o compositor-cantor Gilberto
Gil (1942). Cantor este que abrange, em sua obra musical, uma ampla dimensão e
variedade de ritmos em suas composições, pertinentes à realidade e à modernidade; da
desigualdade social às questões raciais, da cultura africana à oriental, da ciência à religião.
Formulando, portanto, uma música que incorpora rock, reggae, funk e ritmos da Bahia,
como o afoxé.
Outra figura emblemática do Tropicalismo, foi Gal Costa (1945). Ostentando
vastíssima cabeleira negra e interpretando “Baby” (1968), de Caetano Veloso e “Divino
109
BARBOSA, Orestes. Chão de Estrelas. Disponível em:< http://www.letras.terra.com.br/orestes_barbosa>
Acesso em: 16 jan. 2012.
110
VELOSO, Caetano. Alegria, alegria. Disponível em: < http://www.wikipedia.org/wiki/alegria_alegria>.
Acesso em: 16 jan. 2012.
111
Maranhense de São Luís, morou dos 10 aos 17 anos no Ceará, e mais tarde no Rio de Janeiro, onde
desenvolveu sua bem-sucedida carreira artística. Flautista, cantor, violonista e poeta, cedo começou a
despertar a atenção com seus versos, sua voz e seu violão nas rodas de seresta e modinha que frequentava.
(CEARENSE, Catulo da Paixão. Biografia. Disponível em:< http://cliquemusic.uol.com.br/catulo-da-paixaocearense> Acesso em: 16 jan. 2012).
Maravilhoso” (1968), de Gilberto Gil e Caetano Veloso, seu nome se popularizou. A partir
desses sucessos, exibindo uma afinação e uma expressividade corporal impecáveis, Gal
consagrou-se na década de 1970 como uma cantora de sua geração.
Severiano (2008:426) nos informa que além de Gal Costa, integrou-se ao
movimento Tropicalista, Rita Lee (1947). Cantora e compositora de músicas como “Banho
de Espuma” (1981), “Lança Perfume” (1980), como “Mania de você” (1979), “Chega
Mais” (1979), engendrou melodias fáceis, animadas, dançantes, regadas com letras
maliciosas, bem-humoradas, por vezes sarcásticas, que levaram ao auge o pop-rock
brasileiro.
Tomando por base a manifestação ideológica difundida pelo Tropicalismo112,
podemos compreender, esteticamente, a arquitetura musical de João Gilberto (1931).
Apontado como o criador do ritmo que ganhou o nome de bossa nova, mais
especificamente após o lançamento do seu primeiro álbum, Chega de Saudade (1958), o
músico baiano eternizou a típica batida no violão.
Para Sant’Anna (1977:214), com o início da bossa nova ocorre uma mudança no
ritmo, no arranjo, na letra e na própria voz do cantor. O ritmo modificado pela batida
original de João Gilberto, os arranjos mais eruditos de Tom Jobim, a letra mais direta e
elaborada, enfim, a voz do cantor não mais operística, completavam um novo estilo de
comunicação sonora mais sofisticado. Sob um ponto de vista social, a bossa nova elaborou
a expansão do samba dentro da classe média, realizando um samba mais refinado que se
irradiava de Copacabana, Ipanema e Leblon, reconhecendo a importância dos Festivais
Internacionais da Canção Popular (FIC), que Chico nos presenteia com o compositor Edu
Lobo (1943). Segundo Severiano (2008:361), aprendiz de acordeom desde os 8 (oito) anos,
o jovem músico trocou este instrumento pelo violão aos 16 (dezesseis), justamente quando
começou a frequentar reuniões onde se tocava bossa nova. Embora as canções de estreia
levassem a marca da bossa nova, não era bem este tipo de música que Edu Lobo pretendia
fazer. Suas influências ─ Tom Jobim e Heitor Villa-Lobos ─ musicais o ensejaram a
empregar com maestria modernos e refinados recursos no tratamento de motivos
inspirados na rústica música nordestina, uma característica importante de seu trabalho.
112
Caetano Veloso achava que sua atividade de cantor e compositor devia contrapor algo novo, radical e
inusitado a certas tendências que desaprovava na música pós-bossa nova. Essa ideia, que coincidia com o
pensamento de Gilberto Gil, foi posta em prática no terceiro festival da Record, em 1967, com o lançamento
das composições “Alegria, alegria” (de Caetano) e “Domingo no parque” (de Gilberto Gil), constituindo
assim no marco inaugural de um movimento poético-musical de vanguarda, universalista-popular, logo
chamado de Tropicália ou Tropicalismo. (cf. SEVERIANO, J. op. cit., p. 383).
Ao lado de todos os compositores acima descritos, eis que surge a musa da bossa
nova: Nara Leão (1942-1989). Artista que deixou de lado a bossa nova e resgatou o samba
de morro de Cartola a Nelson Cavaquinho.
Suas músicas estão de algum modo
comprometidas com a realidade social brasileira. Nara se engajou na luta por justiça social
tendo como principal arma, sua canções.
Ligia Vieira (2007:98) nos diz que a partir de 1964, o povo brasileiro, ante a
perplexidade do momento histórico e impossibilitado de manifestar-se politicamente, vê na
música, mais precisamente na bossa nova, o seu escapismo. A bossa nova, após o período
de êxito internacional em que passou de influência do jazz para a influenciadora do jazz,
sofre uma ruptura brusca em sua temática, e a canção de resistência assume uma posição
dominante entre seus compositores.
Sem perder o vínculo com os diferentes momentos musicais e históricos, que nos
deparamos com a linguagem sonoro-existencial, “Carcará” (1964), de Maria Bethânia
Viana Teles Veloso (1946):
Pega, mata e come
Carcará!
Num vai morrer de fome
Carcará!
Mais coragem do que homem
Carcará!
Pega, mata e come
Carcará!
Lá no sertão...
É um bicho que avoa que nem avião
É um pássaro malvado
Tem o bico volteado que nem gavião113
Essa canção, feita por João do Vale (1934-1996), foi interpretada por Nara Leão
pela primeira vez no Teatro Opinião, no Rio de Janeiro, em 1964. No ano seguinte, Maria
Bethânia deu vigor a essa música, fazendo uma analogia entre o pássaro carcará e o
sofrimento do povo nordestino.
Gravitando, ainda, em torno das estruturas musicais, teremos a presença reveladora,
no II Festival Internacional da Canção Popular (FIC), do cantor e compositor, Milton
Nascimento (1942), o Bituca, como é chamado pelos amigos.
Severiano (2008:370) nos relata que as composições de Milton já revelavam as
características básicas de seu estilo, ou seja, um surpreendente aproveitamento da música
113
DO VALE, João. Carcará. Disponível em: <http://www.letras.terra.com.br/joao-do-vale>. Acesso em: 17
jan. 2012.
regional mineira, tratada com os requintados recursos harmônicos da bossa nossa, do jazz e
dos Beatles. Motivos inspirados na tradição das toadas e modinhas, transformados pelo
compositor em sofisticado produto musical.
Outro movimento musical, posterior ao arsenal técnico e artístico trazido pela bossa
nova, foi a Jovem Guarda. Segundo Severiano (2008:399), o ano de 1966 marcou o apogeu
desse movimento, ou melhor, do chamado iê-iê-iê, o ritmo que o caracterizou. O iê-iê-iê
era um subgênero inspirado no rock dos Beatles, temperado por uma mistura com certas
formas da canção brasileira ─ inclusive a bossa, da qual adotou o coloquialismo ─ e que
cultivava letras de um romantismo ingênuo, com salpicos de rebeldia.
Os representantes desse movimento foram Roberto Carlos (1941) e seu parceiro
Erasmo Carlos (1941), que difundiram um projeto dedicado, quase que exclusivamente, à
juventude. “Se agradavam a todos, das crianças aos avós, era em função dos limites de
rebeldia muito bem estabelecidos pelo marketing, com a conivência dos artistas” (TATIT,
2002:186).
Disputando espaço para divulgação de seu trabalho musical, aparece em cena Jorge
Ben (1942). “Apesar de ter um estilo musical diferente e original, Jorge Ben foi adotado
pela turma da bossa nova, fonte da qual bebeu ao se deparar com a força inovadora de João
Gilberto” (ZAPPA, 2011:110).
Severiano (2008:380) nos conta que Jorge Ben transitou pelos mais diversos
territórios da música popular, sempre marcando presença por onde passou. Irrompendo em
cena em 1963, num LP intitulado Samba esquema novo, seus pontos altos eram os sambasmaracatu “Mas, que nada” e Chove chuva”.
Tatit (2002:210-211) comenta que Jorge Bem além do samba, assimilou os signos
apreendidos da história em quadrinhos e do futebol. Ele identifica-se com o lado humano e
justiceiro que permeia as narrativas, extraindo daí inúmeras cenas que reproduz em suas
canções. E quanto à marca do futebol, o malabarismo do cancionista tem muito da arte
desse esporte, sobretudo no momento de junção do texto com a melodia. “Tudo ocorre
como se o texto fosse a bola e a melodia, o gesto físico do jogador.”
Ainda na esteira da originalidade, deparamo-nos com o cultuador do som da
natureza, ou melhor, Hermeto Pascoal114 (1936). Compositor arranjador e multiinstrumentista brasileiro (toca acordeão, flauta, piano, saxofone, trompete, bombardino,
114
PASCOAL, Hermeto. Biografia. Disponível em: < http://www.wikipedia.org/wiki/Hermeto_Pascoal>.
Acesso em 16 jan. 2012.
escaleta, violão e diversos outros instrumentos musicais), nasceu em Alagoas, e se tornou a
atração de diversos eventos importantes, como o I Festival Internacional de Jazz, em 1978.
Se nos remetermos à canção “Morena de Angola” (1980)
que leva o chocalho
[amarrado na canela
Será que ela mexe o chocalho ou o chocalho é
[que mexe com ela
(...)
Será que a morena cochila escutando
[o cochicho do chocalho
Será que desperta gingando e já sai
[chocalhando pro trabalho115
de Chico Buarque, veremos que a interpretação de Clara Francisca Gonçalves Pinheiro116,
mais conhecida como Clara Nunes (1943-1983) representa
não apenas os sons da
natureza, mas a própria recriação mística e mítica desse som. Pesquisadora da música
popular brasileira, de seus ritmos e de seu folclore, conheceu as danças e as tradições afrobrasileiras, a ponto de se converter à umbanda. Foi uma das cantoras que mais gravou
canções dos compositores da Portela, sua escola do coração.
É nesse dialogismo com as tradições afro-brasileiras e os diferentes tipos de sons:
acordeão, zabumba, triângulo, flauta, piano, saxofone, trompete, violão ou baterias de
escola de samba, que Chico Buarque homenageia os cantores, compositores e
instrumentistas brasileiros. Com o intuito de nos dizer que, por meio das peculiares formas
de linguagem, (a verbal e a musical), as canções populares encontraram as mais diferentes
soluções para a ocupação desse lugar rítmico, “onde passam senhas sobre os seus modos
de sociabilidade” (WISNIK, 1989:214).
É através do som, ou melhor, do ritmo do baião que Chico nos convida a reler a
origem dos nossos cancioneiros populares e pelo viés dessa ancestralidade reinaugurar um
horizonte de expectativa cultural. As experiências de identidade compartilhadas em suas
músicas e reimpressas por novos signos culturais nos estimulam a decodificá-los como
“etnificação da cultura.”
Heloísa Buarque de Holanda ressalta que, “hoje se fala mais em cidade do que de
nação. Fala-se mais de cultura carioca, paulista ou pernambucana do que de cultura
nacional como até bem pouco tempo, sintoma que expressa uma certa descentralização da
115
WERNECK, Humberto. op. cit., p. 303.
GONÇALVES PINHEIRO, Clara Francisca. Biografia. Disponível em:
<http://www.wikipedia.org/wiki/Clara_Nunes>. Acesso em: 17 jan. 2012.
116
cena cultural que passa agora a privilegiar a autoafirmação de expressões multiculturais
(apud GOMES, 1999:22-23).
Certamente, a cultura urbana estabelece uma complexidade multicultural, que antes
não se considerava de maneira forte, uma vez que a preocupação era com a construção de
uma unidade nacional. Quero assinalar com isso que os significantes indígenas, africanos,
urbanos, suburbanos e rurais, captados e amplificados pelo olho mágico dos modernistas
de 1922, eram na tentativa de formar, pela diversidade, um espaço geográfico homogêneo.
Por sua vez, o posicionamento em 1960, da Música Popular Brasileira (MPB), pretendiase, justamente, ancorar esse espaço definido.
Segundo Nelson Barros (apud FERNANDES, 2004:341-342), essa visão é
totalmente diferente da espacialização da MPB buarqueana, que procura ancorar-se acima
de qualquer localização regional, temática, dialetal ou social. Mesmo que o Rio de Janeiro
seja, constantemente, referenciado na obra do compositor, esta obra ganha outro perfil,
passando a ser a concretude polifônica e multicultural do espaço a que chamamos urbano.
Para Anderson (1999:116), “a arte de outrora era entendida como uma imagem da
realidade, para a qual a história da arte oferecia uma moldura. Nos tempos
contemporâneos, porém, a arte escapou da moldura. As definições tradicionais não podem
mais abarcá-la, com novas formas e práticas proliferando.” As práticas visuais da cena pósmoderna tem que ser exploradas com o mesmo espírito etnográfico com que se
investigavam os ícones pré-modernos, sem compromisso com qualquer ciência da
aparência bela. Essa transformação cultural, na qual o mercado passa a incluir tudo, é
acompanhada por uma metamorfose social e artística.
Por isso, a convergência das palavras e da música “Paratodos” (1993) criam o lugar
onde se embala um ego difuso, irradiado por todos os pontos e intensidades sonoras, como
se no mesmo Eu do compositor resultassem “Eutros” gestos e imaginários modulados por
tempos e contratempos, pulsões e contrastes de cada arte e de cada histórica de vida.
Para chegar a essa estrutura de sentido, percebida nos arpejos e polifonias da
narrativa musical buarqueana, é preciso captar os percursos discursivos que avançam
retomando sempre sob novas formas aquilo que já foi apresentado, de modo a evidenciar
pela própria sintaxe uma espécie de sentido global da sua canção. É uma leitura que
necessita de uma reconstrução contínua do que está sendo ouvido na borda da linguagem.
Starling (2009:40) assinala que, nos versos de “Paratodos” Chico Buarque retoma
componentes formadores de uma tradição que não é nostalgia elegíaca, mas indicação de
caminho, de uma forma diversa de viver o tempo e conjugar o encanto daquilo que é novo,
único, ainda não experimentado, com a felicidade obtida de algo renovado – “Evoé, jovens
à vista” – uma espécie de contraponto, portanto, à continuidade das vivências
momentâneas, carentes de recordação, próprias à pós-modernidade.
A fragmentação do seu espaço sonoro e a dissolução do horizonte repetitivo dos
seus refrãos correspondem ao fracionamento do tempo musical, numa sequência de
presentes sucessivos de duração variável, pedem ao leitor/ouvinte uma interpretação do
aqui e agora de cada momento. Por isso, as faixas de ondas das diversas cidades
apresentadas se contaminam e se interferem, levadas pela elaboração musical de cada
artista homenageado, instruindo um modo de dizer que, em última instância, espera por
uma nova temática, um novo mundo. E o mundo sempre nos afeta. Interage conosco.
Numa troca mútua de marcas recíprocas. Somos marcados à medida que sofremos seus
efeitos, e o marcamos à medida que produzimos efeitos sobre ele. Portanto, só resta um eu
que vai se modificando a cada momento, com o viver. A escrita é uma forma de petrificar a
modificação de cada momento e o relato de um desconforto... Um “Estorvo.”
CAPÍTULO 5
SONHOS SONHOS SÃO ESTORVO
Para Peirce (apud SANTAELLA, 2005:32), não há pensamento sem signos nem
pouco uma linguagem apenas por meio de símbolos. Há sempre um entrecruzamento de
diferentes matrizes – sonora, visual e verbal – que é constitutiva de todo pensamento, de
modo que a relação de interlocução é fundamental para a constituição do pensamento e da
linguagem, enquanto modalidade simbólica. Como podemos inferir pelo pensamento de
Bakhtin (1992:73-74), “os enunciados não são indiferentes uns aos outros, nem
autossuficientes, cada enunciado é pleno de ecos e reverberações de outros enunciados,
com os quais se relaciona pela comunhão da esfera da comunicação verbal.” Nesse sentido,
tanto Peirce quanto Bakhtin consideram a linguagem fundação primeira de todo discurso.
O verbal é uma das manifestações de um tipo dentre muitos outros tipos de signos.
O signo pode ser tanto uma unidade constitutiva quanto uma complexidade mais vasta sem
limites definidos. Por isso, Santaella (2005:379) nos diz que as linguagens concretizadas
são na realidade corporificações de uma lógica semiótica abstrata que lhes está subjacente,
sustentada pelos eixos da sintaxe na sonoridade, da forma na visualidade e pela
discursividade no verbal escrito. Assim sendo, todas as linguagens, uma vez
corporificadas, são híbridas.
Para compreendermos a linguagem textual dos signos, envolvidos nas múltiplas
camadas de sentido que permeiam a criação, precisamos (des)cobrir a essência que emana
de cada obra artística – “que força o pensamento em seu exercício involuntário e
inconsciente, isto é, transcendental” (DELEUZE apud MACHADO, 2010: 197).
A correlação entre signo e sentido diz respeito a interpretar o que está oculto ou
latente em cada enunciado, seja ele musical, pictórico ou literário. É através dessa
pluralidade de enunciados artísticos que os signos ganham status de qualidades sensíveis e
passam muitas vezes a convergir na sociedade contemporânea numa vertiginosa
multiplicidade de representações contextualizadas.
Para a professora em semiótica, Sendra, em Embornal – de ensaios literários para
leituras a granel, a estruturação sintagmática da obra artística se projeta num jogo de
espelhos:
Um universo mimético que não é, pois, um universo fechado; é antes, um
universo aberto pelo constante dialogar/silenciar dos tempos e das referências, o
do prazer do receptor e o da maestria retórico-poética do emissor. A arte e a
relação desta com os filtros da leitura do receptor são o que mais importa para
que a verossimilhança e a mimese do texto se efetivem (2010: 43).
De acordo com Vasconcelos, a mímesis encontra-se na base de toda produção e
fruição imagética, transcendendo as possibilidades criativas de seu tempo:
[...] a hibridização dos recursos e das formas artísticas na criação pós-moderna,
configurada na referenciação, na elaboração intratextual, na montagem figurativa
e na mescla estrutural dos estilos, entre outros, assinala o advento de uma
estética holográfica portadora de uma nova concepção do belo artístico que
reclama o urgente reconhecimento crítico (2010:24).
Nas palavras de Jamroziak – analista e intérprete da arte contemporânea e pósmoderna – as imagens artísticas se revelam como
[...] prontas para absorver sentidos e significados, enfrentam o espectador
contemporâneo como fantasmas: intrigantes e intensas, embaraçosas e sedutoras
pelo que elas próprias são e pelas cadeias em que podem ser colocadas e em que
aparecem graças a seus criadores e a seus receptores inclinados à interpretação.
[...]
O autor de imagens pós-modernas é um animador ou apresentador, mais do que
criador. [...] A autoria consiste no ato de montar o processo em movimento,
enquanto o processo assim originado não tem em mira algum ponto de
objetivação final numa forma reificada, funcionando, em vez disso, de maneira
livre e desabrida, através de muitos caminhos – e continua incompleto e
aberto...117
Em função dessas considerações, podemos perceber que este recurso estilístico pósmoderno que se opera de maneira híbrida na obra literária – Estorvo118 (2004) – de Chico
Buarque, instaura um novo modo de ver e de se relacionar com o mundo: “Estorvo,
estorvar, exturbare, distúrbio, perturbação, torvação, turva, torvelinho, turbilhão, trovão,
trouble, trápola, atropelo, tropel, torpor, estupor, estropiar, estrupício, estrovenga, estorvo”.
A epígrafe desta obra configura as três matrizes da linguagem à medida que manifesta no
leitor a sugestão do som enquanto ruído, a percepção de uma confusão labiríntica própria
do ambiente onírico e a materialização do elemento insólito119. Esta reconfiguração da
realidade pode ser apreendida por diferentes linguagens, como bem enfatiza Santaella
(2005:19):
1. A linguagem sonora tem um poder referencial fragilíssimo. O som não tem
poder para representar algo que está fora dele. Pode, no máximo, indicar sua
117
JAMROZIAK, Anna apud a BAUMAN, Ziygmunt. O mal-estar da pós-modernidade; (trad. de Mauro
Gama e Cláudia Martinelli Gama). Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 135.
118
O romance Estorvo, de Chico Buarque, terá a seguinte sigla: Est.
119
“Essa explosão do nome e da significação do nome corresponde à extensão de sentido pela qual, no
enunciado metafórico, as palavras satisfazem à atribuição insólita.” (cf. RICOEUR, Paul. A Metáfora Viva;
(trad. de Dion Davi Macedo). São Paulo:Loyola, 2005, p. 432).
própria proveniência, mas não tem capacidade de substituir algo, de estar no
lugar de uma outra coisa que não seja ele mesmo. Essa falta de capacidade
referencial do som é compensada por seu alto poder de sugestão, o que
fundamentalmente o coloca no universo do icônico, onde operam as mais puras
associações por similaridade;
2. Quanto à linguagem visual, sua característica primordial está na insistência
com que imagens singulares, aqui e agora, se apresentam à percepção. Ver é
estar diante de algo, mesmo que esse algo seja uma imagem mental ou onírica,
pois o que caracteriza a imagem é sua presença, estar presente, tomando conta da
nossa apreensão. A linguagem visual é quase sempre figurativa, o que a
categoriza como signo indicial;
3. O que define basicamente a natureza da linguagem verbal é o seu poder
conceitual, a ponto de podermos afirmar que o verbal é o reino da abstração. Isso
corresponde com exatidão às características daquilo que Peirce definiu como
signo simbólico, o universo da mediação e das leis. (grifos nossos)
Segundo Costa (1995:110), a epígrafe de Estorvo é um amontoado de palavras, cuja
significação desconexa aponta para a própria linguagem enquanto objeto de representação.
Linguagem de obstáculos como uma espécie de torvelinho sonoro, gráfico e conceitual,
instância caótica perturbadora da mente humana.
Para Pereira (apud FERNANDES, 2004:113), a escolha de Chico é pelo rápido para
acentuar a falta e, desta forma, aproximar-se de uma linguagem cinematográfica, na qual
tudo acontece com rapidez, numa reprodução da realidade dos grandes centros nas últimas
décadas.
Já Starling (2009:53), percebe a influência da música de Buarque em sua obra
ficcional. A terrível angústia que desenha o clima de absurdo e pesadelo no romance
Estorvo cita, quase naturalmente, o soturno e desesperado cenário onírico de “Sonhos
sonhos são” (1998). Narrativa ficcional que dialoga sonora e verbalmente com um deslocar
de signos pretéritos que tencionam apontar o descompasso entre as raízes brasileiras, o
sentido de pátria e o não-pertencimento pela completa carência política.
O historiador Sérgio Buarque em suas pesquisas científicas – Raízes do Brasil
(1995) – já havia identificado essa incompletude onde fundar uma nação onde só parece
crescer o vazio, criar formas de vida em comum, introduzir a possibilidade de convívio
político a partir das margens; seriam tarefas que nos caberiam implementar efetivamente.
Sugestões que parecem difíceis de realizar diante da leitura de Estorvo (2004) – tradução
mais acabada de quem está à deriva, sem referências, vivendo o reflexo de uma desordem
externa que se mistura ao seu caos interior.
O novo arranjo de “Sonhos sonhos são” (1998):
Sei que é sonho
Incomodado estou, num corpo estranho
Com governantes da América Latina
Notando meu olhar ardente
Em longínqua direção
Julgam todos que avisto alguma salvação
Mas não, é a ti que vejo na colina120
é carregado de dissonâncias como se a canção pretendesse acompanhar o sonho, ou
melhor, o pesadelo de um país que perdeu o prumo no curso de seu projeto de
modernização. A melodia corre lenta e repetitiva, sugerindo um tempo insuportavelmente
vazio como do personagem anônimo de Estorvo (2004) cujo início volta sempre ao fim e
fecha os horizontes. Como a nos mostrar que diante de um país atado às disposições de um
mercado sem limites e indiferente em face ao absurdo da exclusão social, ele, Chico, não
se sente pertencendo totalmente a lugar nenhum121 – um estrangeiro dentro do seu próprio
país.
Em Sérgio Buarque de Holanda, reaparece também a presença fundadora do
desterrado, enfatizada a partir da passagem famosa: “Somos ainda hoje uns desterrados em
nossa terra”.122 Em seus últimos textos sobre literatura colonial, ele já apontava para a
presença dessa figura ainda no século XVIII, aparecendo, de maneira emblemática, na
poesia de Cláudio Manuel da Costa – poeta cujos versos eram atravessados pelo
sentimento melancólico de perceber-se estrangeiro em terra natal.
Assim, constatamos que a literatura buarqueana agrega uma natureza híbrida entre
o ritmo da palavra e a cápsula que a envolve – imagem-signo –, desencadeando radiações
sugestivas derivadas, sobretudo, das forças sensíveis da linguagem. Estas atuam de acordo
com o que se poderia chamar de tons semânticos superiores, quer dizer, significações que
só se encontram nas zonas limites de uma palavra ou se produzem por uma associação
anormal de palavras. O que nos faz lembrar Frye:
A literatura parece ser intermediária entre a música e a pintura: suas palavras
formam ritmos que se aproximam de uma sequência musical de sons numa de
suas fronteiras e formam padrões que se aproximam da imagem pictórica ou
hieroglífica na outra. As tentativas de se chegar tão próximo quanto possível
dessas fronteiras formam o corpo principal daquilo que se chama de escrita
experimental. Podemos chamar o ritmo da literatura de narrativa, e o padrão, a
apreensão mental simultânea da estrutura verbal, de significado ou de
significação. Ouvimos e escutamos uma narrativa, mas quando compreendemos
o padrão total de um escritor “vemos” o que ele quer dizer (apud SANTAELLA,
2005:385-386).
120
HOMEM, Wagner. op. cit. , p. 295.
ZAPPA, Regina. A Volta do Malandro. Revista Alfa, São Paulo, Editora Abril, n.6, 2011, p. 48.
122
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 19.
121
Portanto, não resta dúvida de que as matrizes da linguagem não são puras, operam o
processo da mistura e englobam umas às outras na mais completa variedade de formas e
conteúdos – uma representatividade de interpenetrações e interfaces expressionais.
Podemos desse modo, compreender a plurivalência da linguagem buarqueana –
esse registro contínuo, penetrante, do movimento circular da sua escrita – como uma
manifestação inerente de sua busca por um sentido existencial humano. O artista Chico,
diante de sua angustiante consciência histórica, parte para uma poética da vida
contemporânea, engendrando assim, a épica do instante. Devolvendo o primitivo nexo
entre percepção e expressão, este agenciador do imaginário reconhece na linguagem, –
constituinte ou operante – a inseparável intencionalidade de significar, própria do uso
flexível dos signos. Essa conquista liberatória – condição do alcance simbólico na forma
literária – atesta a existência da obra literária buarqueana como uma fonte abundante de
ressignificações da realidade.
Chico Buarque opta por uma linguagem crítica de cunho social, questionando o
tempo presente – tempo que se contrai no espaço. Delatando o momento atual –, por meio
de signos negativos e repetitivos – este artista da palavra projeta imagens caóticas na
tentativa de evidenciar a despersonalização do homem contemporâneo. O que nos faz
lembrar Valéry (apud MAFFESOLI, 2003:125): “O homem moderno é o escravo da
modernidade”, mostrando que não há nenhum progresso que não se torne completa
servidão.
Em seu engajamento literário, nos apresenta o retrato sem retoques do sistema
dominante (projetos e valores político-sociais capitalistas) que resulta culturalmente, na
proliferação do inconstante, como consciência defectiva do transitório – a era da imagem
do mundo ou do mundo convertido em imagem. Como podemos entrever nessa passagem:
Quando entro no quarto, o menino e a menina estão bem despertos, acocorados
na esteira diante do aparelho de televisão. O menino, de uns sete anos e cabeça
raspada, avista-me sem me ver e retoma o comando do videogame. [...] Não me
importei com as crianças porque pensei que fosse deitar e dormir, mas as minhas
pestanas tremelicam com o reflexo do videogame. Pulsa na tela uma figura
semelhante a um intestino, em cujos tubos correm animaizinhos verdes. Por
algum motivo, esses tubos às vezes se obstruem, obrigando o moleque da cabeça
raspada a se contorcer com o comando das mãos. Em consequência, os
animaizinhos chocam-se uns contra os outros, impelindo-se como bolas de
bilhar e emitindo bips. Também acontece de eles se entalarem nas paredes dos
tubos, numa reação em cadeia que provoca a explosão do intestino,
acompanhada de um alarme e um clarão. Os animaizinhos boíam na tela branca
e o jogo recomeça inúmeras vezes [...] (Est.:27-28). (grifos nossos)
A metamorfose do museu televisivo se aproxima de estilos diferentes, entre os
quais não há passagens nítidas, colocados, porém, em pé de igualdade do ponto de vista
dos valores plásticos, como objetos estéticos, reunidos assim, numa espécie de espaço
transistórico e transcultural do mundo pós-moderno.
A escrita de Chico Buarque objetiva demonstrar que as coisas fundidas entre si,
movem-se e trocam-se à vontade, como um caso particular de desrealização da irrealidade
sensível, pois tal liberdade consiste na evasão das ordens reais, na fusão do irreal das
coisas mais díspares – é o sonho, ou seja, a fantasia superior à realidade. A literatura, por
meio da metáfora, realiza uma transposição daquilo que é objetivo em imagens, que não
existem no mundo real. O sentido enigmático, que se estabelece na narrativa ficcional
buarqueana dá origem ao aparecimento do insolúvel – tentativa de reordenar o real
reduzindo-o ao seu contrário.
Estorvo é a escritura caótica que revela, em última análise, o processo referenciador
do próprio absurdo da condição humana. Nessa confusão labiríntica, configura-se a fuga do
personagem anônimo que como um herói errante às avessas, perambula pela cidade do Rio
de Janeiro. Desde o início da narrativa, ao descrever os locais por onde transita, o
persongem-narrador não faz menção a nenhum topônimo da capital fluminense, mas por
meio das entrelinhas podemos subentender a metáfora em potencial – processo retórico
pelo qual o discurso liberta o poder que certas ficções comportam de redescrever a
realidade. Como podemos observar através deste fragmento: “[...] sumo correndo na
primeira à esquerda [...] eu emboco no túnel, alcanço outro bairro, respiro novos ares [...]
eu subo as encostas, as prateleiras da floresta, as ladeiras invisíveis, com mansões
invisíveis, de onde se avista a cidade inteira” (Est.:11).
Diremos que a escritura tem a missão de redimensionar, revitalizar e preencher
todos os componentes e instâncias que se fazem ausentes na existência solitária do
protagonista. Reside na escritura, a única possibilidade do narrador fazer renascer o
interlocutor em meio a um cenário que instaura uma nova pertinência semântica no nível
do enunciado metafórico. Segundo Ricoeur (2005:455), essa metáfora é proveniente da
torção imposta a essas palavras pelo fazer sentido com o enunciado em sua totalidade.
Podemos ler, em Estorvo, como símbolo do desterro ao qual figura o personagemnarrador, variante do percurso existencial em que viveu o escritor em 1969 – a necessidade
de abandonar o cenário brasileiro em virtude do cerceamento de liberdade e de opinião
imposta pela ditadura militar. O escritor/narrador este, que parece viver a agonia da
opressão do passado à liberdade desmedida e inconsequente dos dias atuais. Essa dialética
manifesta-se em sua produção literária perfazendo uma alegoria123 sobre o Brasil e suas
amarras políticas:
Pode ser que eu já tenha visto aquele rosto sem barba, mas a barba é tão sólida e
rigorosa que parece anterior ao rosto. O terno e a gravata também me
incomodam. Eu não conheço muita gente de terno e gravata, muito menos com
os cabelos escorridos até os ombros. [...] Procuro imaginar aquele homem
escanhoado e em mangas de camisa, desconto a deformação do olho mágico, e é
sempre alguém conhecido, mas muito difícil de reconhecer (Est.:8-9).
Essa alegoria do “desconhecido”
124
tanto pode ser o signo da tortura de outrora
quanto o cerceamento de liberdade – pelo poder paralelo –, nas ruas do Rio de Janeiro.
Nesse emaranhado de memórias coletivas125 – páginas revividas da nossa História –, o
narrador, pelo olho mágico, revive o Brasil de 64 e o protagonista, redescobre o Brasil - na
estaticidade de outrora ao movimento insólito do Ser, do Mundo e da Vida atual. Essa
imagem-marca (lembrança x esquecimento) assim se constrói:
Agora ele já percebeu que é inútil, que não me engana mais, que eu não abro
mesmo, que sou capaz de morrer em silêncio, posso virar um esqueleto em pé
diante do esqueleto dele, então abana a cabeça e sai do meu campo de visão. E é
nesse último vislumbre que o identifico com toda a evidência, voltando a
esquecê-lo imediatamente. Só sei que era alguém que há muito tempo esteve
comigo, mas que eu não deveria ter visto, que eu não precisava rever, porque foi
alguém que um dia abanou a cabeça e saiu do meu campo de visão, há muito
tempo (Est.:9).
Esse torpor do passado, em paralelo à reconfiguração dessa realidade no presente,
estabelece um ambiente semiótico da nadificação, atuando de modo ambivalente na
consciência do narrador. A vivência radical do vazio impõe-lhe o confronto de duas forças
contrárias. A ele restaria a possibilidade de abandonar a si mesmo. Todavia, caso o fosse,
transformar-se-ia em mais um ser entre tantos outros que pereceram: “[...] Recebo a lâmina
inteira na minha carne, e quase peço ao sujeito para deixá-la onde está [...]” (Est.:151).
123
A alegoria é um diagrama da significação do discurso. A alegoria torna evidente o procedimento - pela
operação sintática - e faz o significado dos termos presentes passar para dentro de outro significado, ausente. (cf. QUINTILIANO, M. F. apud HANSEN, João Adolfo. Alegoria: construção e interpretação da metáfora.
São Paulo: Editora da Unicamp, 2006, p. 43).
124
Durante a ditadura militar, o Dops (Departamento de Ordem Política e Social), o DOI-Coi (Destacamento
de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), bem como o CCC (Comando de
Caça aos Comunistas) operavam a todo vapor; sequestrando e assassinando presos políticos. (cf. HOMEN,
Wagner. op. cit., p. 55-94).
125
“O registro da memória – que é fragmentário calcado na experiência individual e da comunidade, no
apego a locais simbólicos – não tem como meta a tradução integral do passado. Na sociedade dá-se
constantemente um embate entre diferentes leituras do passado, entre diferentes formas de enquadrá-lo.” (cf.
SILVA, Márcio-Seligmann. História, memória, literatura: o Testemunho na Era das Catástrofes. São Paulo:
Editora da UNICAMP, 2003, p. 65-67).
Permanecendo, tem o narrador a experiência única de desfrutar a plenitude de seus
desejos.126 Nesses termos, é o seu caminhar errante que o impulsiona para a sua verdadeira
face guardada na memória: “Abandonei e esqueci isto aqui durante cinco anos. Talvez a
inércia do sítio na minha mente, mais do que a longa estiagem, explique agora essa
claridade dura, a paisagem chapada” (Est.:23). A memória do narrador é a única fonte
capaz de legitimar-lhe o discurso, visto que tudo mais é fragmentado e obscuro:
A insônia verdadeira principia quando o corpo está dormente. Semilesado, o
cérebro não tem boas ideias, e é incapaz de resistir à chegada do homem do olho
mágico, por exemplo, que pode ser um amigo que perdi de vista, e que viria falar
de assuntos vencidos, e que não suportaria a minha indiferença, e que, se fosse
um sonho, arrancaria exasperado a própria barba e não teria queixo,
convertendo-se no proprietário do imóvel que vem cobrar o aluguel. Mas ainda
não é sonho e nada devo ao proprietário, pois minha irmã é avalista, adiantou
seis meses a título de fiança, e quando mamãe morrer, meu quinhão na herança
não paga o que devo à mana, por isso ela pode ter dado meu endereço a um
advogado, um oficial de justiça, um tabelião barbudo no olho mágico. Estou para
ingressar no sonho quando lembro que quem tem meu endereço é minha exmulher; deixei recado na casa dela, uma mensagem formal [...] (Est.:28-29).
Uma obscuridade e um aniquilamento existencial que provoca uma potencialidade
delirante na tentativa de vencer a insônia e se entregar ao sonho. O que nos faz lembrar a
conceituação de sonho por Jung:
O sonho é uma porta estreita, dissimulada naquilo que a alma tem de mais
obscuro e íntimo; essa porta se abre para a noite cósmica original, que continua a
alma muito antes da consciência do eu e que a perpetuará muito além daquilo
que a consciência individual pode atingir. Pois toda consciência do eu é esparsa;
distingue fatos isolados, procedendo por separação, extração e diferenciação; só
o que pode entrar em relação com o eu é percebido. A consciência do eu, mesmo
quando aflora as nebulosas mais distantes, é feita de enclaves bem delimitados.
Toda consciência especifica. Mediante o sonho, inversamente, penetramos no ser
humano mais profundo, mais geral, mais verdadeiro, mais durável, mergulhado
ainda na penumbra da noite original, quando ainda estava no Todo e o Todo
nele, no seio da natureza indiferenciada e despersonalizada. O sonho provém
dessas profundezas, onde o universo ainda está unificado, quer assuma as
aparências mais pueris, as mais grotescas, as mais imorais (1975:360).
Sendo a fragmentação o elo da cadeia narrativa, torna-se inevitável a diluição dos
fatos na consciência subjetiva do narrador, o que lhe possibilita o salto para um mundo em
constante movimento – uma reprodução da realidade dos grandes centros urbanos nas
últimas décadas –, porém a sensação de vazio e de imobilidade ecoam com força nas
fendas de sua escrita.
126
“O desejo que lança o homem para fora de si mesmo o arrasta e faz com que ele transponha os limites
impostos pela razão.” (cf. SENDRA, Arlete Parrilha. op. cit., p. 204).
O homem, assim como o protagonista de Estorvo, vivencia uma situação-limite:
uma cidade repentinamente recebe o impacto da tecnificação, projetando-a num modus
vivendi artificial. A primitiva espontaneidade é adulterada em favor do dinamismo
progressista do século pós-industrial.
De acordo com Nietzsche (apud BERMAN, 2007:32), encontramos uma
explanação em que, tal como em Marx, tudo está impregnado do seu contrário: “[...] Outra
vez o perigo se mostra mãe da moralidade – grande perigo – mas deslocado sobre o
indivíduo, sobre o filho de alguém, sobre o coração de alguém, sobre o mais profundo e
secreto recesso do desejo e da vontade de alguém.”
O que está impregnado do seu contrário gerando uma realidade imprópria e
desconectada se mimetiza na construção linguística e semântica como reconhecimento de
um mundo familiar que se converte em estranheza sensível e de significado invertido:
Eu esperava por ela em casa. Habituei-me sem ela em casa, andava nu, cantava.
Mudava a arrumação da sala, planejava empapelar as paredes. Já gostava mais da
casa sem minha mulher. Sozinho em casa eu tinha mais espaço para pensar na
minha mulher, e era nela fora de casa que eu mais pensava. [...] Um dia ela
propôs a separação. E entendi e disse que ia continuar pensando nela do mesmo
jeito, a vida inteira. Já deixar a casa foi mais difícil. Eu não saberia como me
lembrar da casa. Era dentro da casa que eu gostava da casa, sem pensar (Est.:41).
Hugo Friedrich (1978:206-208) nos relata que a metáfora se transforma no meio
estilístico mais adequado à fantasia ilimitada. A lírica moderna – mutatis mutandis a
literatura – graças à capacidade metafórica fundamental de unir algo próximo com algo
distante, desenvolveu as combinações mais desconcertantes, ao transformar um elemento
que já é longínquo num absolutamente remoto, sem se importar com a exigência de uma
realizabilidade concreta ou, mesmo, lógica. Tais metáforas criam um mundo em antítese ao
mundo familiar. Obscurecem o real para ganhar maior clareza poética. Eis por que o reino
poético tanto quanto o ficcional é o mundo irreal que existe só graças à palavra, ao
discurso.
Mesmo onde a escrita se apresenta de forma suave, possui aquela estranheza cuja
aflição pode ser o desencanto das ruínas da história ou o encanto dos mistérios e da
fantasia de um personagem enigmático e incongruente127 no seu tempo e no seu espaço de
127
O recurso estilístico utilizado por Chico Buarque de Hollanda na construção metafórica do discurso, em
Estorvo, é o que Hansen denomina de Malla afectatio, Inconsequentia rerum ou Incoerência. Observa-se que
na mala affectatio ou incongruência, ocorre uma espécie de contrariedade, não se respeitando as diferenças
específicas que são condição de um conceito proporcionado ou da figuração ordenada. A naturalidade bem
conseguida é, assim, a da alegoria imperfeita, situada a meio caminho entre a autonomia do procedimento
(incoerência) e o fechamento total da significação (enigma). (cf. HANSEN, João Adolfo. op. cit., p. 67-68).
fuga e de procura - muitos brasis se descortinam nas curvas da linguagem e da tensão desta
narrativa neorrealista, como podemos assim observar:
Se eu soubesse que minha irmã dava uma festa teria ao menos feito a barba.
Teria escolhido uma roupa adequada, se bem que ali haja gente de tudo que é
jeito; jeito de banqueiro, jeito de playboy, de embaixador, de cantor, de
adolescente, de arquiteto, de paisagista, de psicanalista, de bailarina, de atriz, de
militar, de estrangeiro, de colunista, de juiz, de filantropa, de ministro, de
jogador, de construtor, de economista, de figurinista, de contrabandista, de
publicitário, de viciado, de fazendeiro, de literato, de astróloga, de fotógrafo, de
cineasta, de político, e meu nome não constava da lista (Est.:58).
Em tempos como esses, o indivíduo ousa individualizar-se. De outro lado, esse
“ousado” indivíduo precisa desesperadamente de um conjunto de leis próprias, de
habilidades e astúcias, necessárias à autopreservação. As possibilidades são ao mesmo
tempo gloriosas e deploráveis. Esses instintos podem agora voltar-se em todas as direções;
ele próprio é uma espécie de caos. O sentido que o homem pós- moderno possui de si
mesmo e da história vem a ser na verdade um instinto apto a tudo. Mas muitas estradas se
abrem a partir desse ponto. Como farão homens e mulheres para encontrar os recursos que
permitam competir em igualdade de condições diante desse tudo? Nietzsche (apud
BERMAN, 2007:33) observa que há uma grande quantidade de mesquinhos e intrometidos
cuja solução para o caos da vida é tentar deixar de viver: “para eles tornar-se medíocre é a
única moralidade que faz sentido”.
Não há mais possibilidade de retomar o passado. A retomada se tornara inviável. O
testemunho de que ali houvera vida se concretiza na única forma possível: a escritura. Esta
é a um só tempo o reduto do fracasso e da redenção. A errância surgirá do confronto entre
o protagonista e a linguagem, atando a destruição à criação, o fim ao princípio. Será a
trajetória errante a condição reveladora desse personagem diante da circularidade do seu
próprio existir: “[...] Sinto que, ao cruzar a cancela, não estarei em algum lugar, mas saindo
de todos os outros” (Est.:23).
Esse dinamismo semântico-discursivo - próprio da metáfora buarqueana possibilita à significância narrativa128 uma ficcionalidade de ganho de sentido e de
referência onde o singular e o universal se entrecruzam entre atos e fatos do Brasil e da
aldeia global:
128
“A narrativa apresenta-se como uma série de elementos mediatos e imediatos, fortemente imbricados; a
distaxia orienta uma leitura horizontal, mas a integração superpõe-lhe uma leitura vertical: há uma espécie de encaixamento estrutural, como um jogo incessante de potenciais.” (cf. BARTHES, Roland apud
SANTAELLA, Lucia. op. cit., p. 322).
Parte desses convidados ocupa as mesas redondas que foram armadas no jardim.
Como não conheço ninguém, tenho liberdade para contornar as mesas e emendar
fragmentos de discursos, discussões, gargalhadas. [...] Posso observar como se
comporta um círculo, como se fecha, como se abre, como um círculo se
incorpora a outro. Vejo circunferências que se dilatam exageradamente, até que
se rompem feito bolhas e dão vida a novas rodas de conversa. Vejo rodas
sonolentas, que permanecem rodas pela geometria, não pelo assunto. Tento
acompanhar assuntos que saem de uma roda para animar outra, e a outra, como
uma engrenagem (Est.:58-59).
Segundo Ricoeur, esse dinamismo semântico confere à significância uma
historicidade, novas possibilidades de significância aberta, encontrando apoio nas
significações já adquiridas. Essa historicidade diz ele,
[...] é conduzida pelo esforço de expressão de um locutor que, querendo dizer
uma nova experiência, procura na rede já fixada de significações um portador
adequado de sua intenção. É então a instabilidade da significação que permite ao
objetivo semântico encontrar o caminho de sua enunciação. De modo que, é
sempre em uma enunciação particular – Benveniste chama de instância do
discurso – que a história sedimentada das significações mobilizadas pode ser
retomada em um objetivo semântico novo (2005:457-458).
Numa época em que os sólidos enunciados particulares de uma história –
paradigmas político-ideológicos do passado – se estilhaçaram quase por completo, o
mundo passa a ser percebido de forma imprecisa, algo desnorteado num estado de
alucinada lucidez. Isto permite ao protagonista-narrador perceber que é ele o incômodo
desse esboço de vida:
[...] Saio do prédio, e logo em seguida fica tudo escuro; penso num dia que se
apagasse a cada minuto. Apoio-me na parede de chapisco, deixo-me arriar
ralando as costas, e sento-me com a cabeça entre as pernas. Convertido em
concha, ouço vozes longínquas, julgo ouvir sirenes. Quando me levanto, posso
estar vendo as coisas mais nítidas do que são. [..] Vejo a multidão fechando
todos os meus caminhos, mas a realidade é que sou eu o incômodo no caminho
da multidão (Est.:114-115).
Se o personagem representa “a metáfora da vida” que se impõe neste ponto da
argumentação é porque o jogo da imaginação e do entendimento recebe uma tarefa das
“Ideias” da razão, às quais nenhum conceito pode igualar-se. Mas lá onde o entendimento
fracassa, a imaginação tem ainda o poder de apresentar a Ideia. É esta apresentação pela
imaginação que força o pensamento conceitual a pensar a mais. A imaginação não é outra
coisa senão essa demanda dirigida ao pensamento conceitual” (RICOEUR, 2005:464-465).
Os demais fatos testemunhados por este sujeito, semelhantemente, não apresentam
uma resposta conclusiva para suas questões, como bem salienta Faria (1999:164-175):
“caracterizando um aspecto sintomático da deformação do olhar que a cidade proporciona,
negando qualquer idiossincrasia para quem está na turba”.
Esse sujeito submerso na metrópole, incapaz de observá-la como um todo, limita-se
à descrevê-la de forma nua e crua, denunciando ao leitor as mazelas do caos urbano, mas
sem proposta alguma que possa solucioná-las; a não ser pela constatação do mesmo: “[...]
O gêmeo diz ‘grandes camarões’, e volta a proteger a erva com as folhas de bananeira,
como quem protege uma criança” (Est.:93).
Se rebobinarmos um quarto de século, até Nietzsche, na década de 1880,
encontraremos outros preconceitos, devoções e esperanças; no entanto, encontraremos
também, uma voz e um sentimento, em relação à vida moderna, surpreendentemente,
similares ao nosso contexto atual. Para ele, assim como para Marx, as correntes da história
moderna eram irônicas e dialéticas: os ideais cristãos da integridade da alma e a aspiração
à verdade levaram a implodir o próprio cristianismo. O resultado constituiu os eventos que
Nietzsche chamou de “a morte de Deus” e “o advento do niilismo”.
Para Portella (1981:30-310), foi uma acrobacia facílima o salto da dessacralização
para a desumanização, da morte de Deus (Nietzsche) para a morte do homem (Foucault). O
homem se viu estigmatizado como um dos anacronismos da sociedade industrial. Michel
Foucault não vacilou em afirmar que em nossos dias não se pode mais pensar senão no
vazio do homem desaparecido. A noção atualizada de arte é, nas mãos dos críticos da
cultura, uma representação valorizada do homem; deste homem que, inegavelmente, se
encontra numa encruzilhada.
A moderna humanidade se vê em meio a uma enorme ausência de valores, mas, ao
mesmo tempo, em meio a uma desconcertante abundância de possibilidades. O mundo é o
espaço em que se produzem os signos; a obra literária é o lugar onde os signos são lidos e
reproduzidos através da função mediadora e criadora do autor, razão por que Castro
(1982:108) reconhece que: “[...] o autor, enquanto agente e celebrador, efetua uma leitura.
O autor é um leitor”.
Por compreender-se o autor como um leitor do mundo, justifica-se a peculiaridade
de cada obra. Da leitura que o autor (sujeito) faz do mundo (objeto), resultará uma ou outra
realidade discursivo-literária. Segundo este ensaísta, esta tensão espetacular de identidade
na diferença e de diferença na identidade projeta-se e reflete-se nos elementos funcionais
que constituem as duas realidades (ficcional e vivencial), através de uma terceira: a
realidade discursivo-literária.
O projeto ficcional, em estudo, registra, de forma indiscutível, que a preocupação
de Chico Buarque se encontra na procura de um sentido para o estar-no-mundo. Esta é a
identidade presente a partir da qual desfila a condição humana, assinalada pela
perplexidade perante um mundo hostil, a demonstrar a impossibilidade do indivíduo, fora
da visão utópica, reconquistar o significado heroico que em tempos outros a epopeia
registrou.
O herói não habita mais o paraíso, simplesmente por não mais haver paraíso. A
constatação de que a existência gloriosa é um projeto irrecuperável não destrói apenas a
figura do herói, mas põe em risco a própria representatividade do indivíduo. A pósmodernidade, sustentada pelo discurso da ciência, suposto reduto da verdade e do poder,
rouba do indivíduo o direito de sentir-se agente da história, para apenas reservar-lhe a
condição de figurante cuja função é compor a cena e preencher os vazios da imensa teia
global e globalizante. Tudo acontece ao redor do indivíduo, mas este nada sabe e nada vê.
Sua existência está à mercê de um poder decisório distante do seu controle. Os intensos
conflitos e as densas paixões cederam ao silêncio, à solidão, ao desencanto e ao absurdo,
assim verificado na cena: “Ela preenche o cheque, e seus cabelos castanhos não me
permitem ver se está mesmo sorrindo, nem se esse sorriso quer dizer que eu sou um pobre
diabo” (Est.:17).
Tais situações mostram como este sujeito é posto à margem, seja pela classe que
detém o poder econômico, seja pela que domina o poder paralelo. Nesse plano social, a
ordem que gera os excluídos é repensada pelo discurso metafórico buarqueano através da
concepção tensional de verdade trazida à luz pela configuração do personagem-narrador.
O ambiente em que vive o personagem é de não pertencimento. Por esse círculo da
enunciação do personagem, a experiência do (não) pertencimento inclui o homem no
discurso e o discurso no ser. A leitura intratextual das amarras costuradas e descosturadas
no discurso fragmentado deste personagem nos possibilita entrever a crítica desvelada de
Chico Buarque diante dessa América Latina pré e pós-64: “o escritor latino-americano nos
ensina que é preciso liberar a imagem de uma América Latina sorridente e feliz, o carnaval
e a fiesta, colônia de férias para turismo cultural” (SANTIAGO, 1978:28).
A posição do escritor – Chico Buarque – é de se utilizar das metáforas discursivas
para desestabilizá-las e desestruturando-as, romper as convenções ideológicas operadas na
linguagem. Essa técnica de inversão semântica buarqueana foi citada por Costa, em Ficção
Brasileira: paródias, histórias e labirintos, que passo a transcrever:
Estorvo contém tão intensamente o recurso da significação invertida das
palavras, que se pode afirmar que existe na obra como que uma poética da
inversão. Essas declarações alteram a lógica semântica da língua e perturbam a
compreensão do sentido do enunciado. Para promover essa diluição paródica do
âmbito normal da linguagem, o narrador apresenta no seu discurso alguns
procedimentos técnico-estilísticos, a exemplo das inversões semânticas e do
experimentalismo com o significante (1995:112-113).
Esse procedimento estilístico buarqueano nos conduz ao pensamento dialéticodiscursivo de Ricoeur (2005:482):
O pensamento especulativo apoia seu trabalho na dinâmica da enunciação
metafórica e a ordena em seu próprio espaço de sentido. Sua réplica só é possível
porque o distanciamento, constitutivo da instância crítica, é contemporâneo da
experiência de pertencimento, aberta ou reconquistada pelo discurso poético, e
porque o discurso poético, enquanto texto e obra, prefigura o distanciamento que
o pensamento especulativo leva ao seu mais alto grau de reflexão. Finalmente, a
duplicação da referência e a redescrição da realidade, submetida às variações
imaginativas da ficção, aparecem como figuras específicas de distanciamento,
quando essas figuras são refletidas e rearticuladas pelo discurso especulativo.
Esse discurso especulativo – latente na obra ficcional de Chico Buarque – nos
projeta para as fraturas dos estamentos sociais brasileiros. A representatividade do
personagem – signo da marginalidade – nos permite considerá-lo um elemento de
fronteira, situado de forma escorregadia entre um passado harmonioso (representado pelo
paraíso perdido do sítio familiar) e um presente dissonante, marcado pela intolerância, pela
falta de diálogo, como pode ser observado nas inúmeras desistências do narrador de
conversar com sua mãe:
Fico desequilibrado, sozinho naquela mesa oval, olhando o mel, o queijo de
cabra, o chá de rosas, pensando na minha mãe. O copeiro traz uma bandeja com
o telefone sem fio; é um aparelho de teclas minúsculas, que dedilho rápido e sem
olhar direito, um pouco querendo esbarrar noutros números. Ouço tocar uma,
duas, cinco vezes, telefone de casa de velho. Mamãe atende mas não fala nada,
nunca fala quando atende ao telefone, porque acha vulgar mulher dizer alô. Eu
digo “mamãe”, e posso senti-la colar o fone na orelha, para travar o tremor da
mão esquerda. O copeiro entra com um carrinho, pergunta “terminou”? e retira
os pratos sem sobrepô-los. Eu repito “mamãe”, mas também não tenho muito
assunto, e o copeiro amassa o guardanapo que eu deixara intato á minha frente,
em forma de canoa. Mamãe não deve ter entendido que era eu, e pouco depois
cai a linha (Est.:18-19).
De modo que não possa ser identificado por seu próprio nome ou por sua função
social, este sujeito tece seu discurso em busca de respostas, nem sempre encontradas.
Imagem das grandes cidades, onde meticulosamente é forjada toda a sorte de
“característica desumana, que faz com que se torne difícil que rostos humanos se
reconheçam” (FARIA, 1999:144).
Essa ausência de rosto nos faz refletir sobre a questão da metrópole tomada como
um lugar situado no limite extremo e poroso entre realidade e ficção, como se suas ruas e
edifícios, atravessados por uma enorme multiplicidade de imagens formassem algo como
um labirinto onírico. Gomes (1999:19-30), assim nos informa: “aceitando [...] o
fragmentário, o descontínuo, e contemplando as diferenças, os discursos contemporâneos
cenarizam e grafam a cidade [...], na busca de decifrar o urbano”.
A desfigurativização e a banalização do eu é facilmente detectada na produção
ficcional buarqueana: “Não lembro se o conheço da televisão, de fotos nos jornais, de
capas de revistas, mas sei que se trata de um homem famoso; alguém que as pessoas
encontram e olham em dois tempos, porque no primeiro a pele parece falsa, e é a fama”
(Est.:134-135).
Essa identidade, formadora de um descentramento do eu pós-moderno, é o que nos
faz retornar a formulação conceitual proposta por Hall:
A identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos
inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do
nascimento. Existe sempre algo imaginário ou fantasiado sobre sua unidade. Ela
permanece sempre incompleta, está sempre em processo, sempre sendo formada.
[...] A identidade surge não tanto da plenitude da identidade que está dentro de
nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é preenchida a partir do
exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros
(2006:38-39). (grifos do autor)
A instauração da dialética da identidade e da diferença, presente na manifestação
literária buarqueana, projeta-se através de uma escrita pensante e pensada em sua
individuação129 ─ a dos poetas que poetizam sobre a linguagem.
129
A individuação significa tender a tornar-se um ser realmente individual; na medida em que entendemos
por individualidade a forma de nossa unicidade, a mais íntima, nossa unicidade última e irrevogável; trata-se
da realização de seu si-mesmo, no que tem de mais pessoal e de mais rebelde a toda comparação. Poder-se-ia
pois, traduzir a palavra individuação por realização de si-mesmo. (cf. JUNG, C. G. Memórias, Sonhos e
Reflexões; (trad. de Dora Ferreira da Silva). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975, p. 355). (Grifos do autor)
CAPÍTULO 6
AINDA SOBROU O LEITE NAS MEMÓRIAS DO MEU CORAÇÃO
Existe algo nas estruturas profundas de nosso pensamento que nos impulsiona a
busca do desconhecido. De modo que é a precedência e a potencialidade constante do nãoser que outorgam à criação o esplendor de sua existência e a vulnerabilidade de sua
verdade. A criação, por isso, oferece-se por definição como aquilo que afirma a liberdade e
que inclui e exprime em sua encarnação a presença de tudo que esteja ausente de sua
essência ou de tudo que poderia ter assumido uma forma radicalmente diversa (STEINER,
2003:143).
A verdade que tanto ansiávamos acontece no que Heidegger chama de destino do
ser. O empenho de nosso pensamento para atingir um ponto modal é a própria errância do
sentido do ser. A partir desta constatação, remetemo-nos ao pensamento de Manuel
Antônio de Castro: “Contínua busca de sua origem, o homem parte em busca do que não
pode ser conhecido” (1982:62).
Num esforço de resgatar a essência da verdade e na esperança de conduzi-la ao
horizonte do humano, este investiga dialeticamente (interioridade/exterioridade) sua
situação no mundo. Trata-se de um movimento permanente, por isso errante, que nos
projeta em devir sempre nebuloso, porque coberto pela cortina que nos impede de perceber
a luminescência da verdade. É o que nos diz Ivo Lucchesi:
Inegavelmente, a trajetória do homem se denuncia contraditória, determinando
para o seu percurso o esforço na tentativa de o homem superar a contradição. Se
o homem estabelece como meta a verdade e apenas vivencia a não-verdade,
então está ele condenado ao fracasso. Qual, pois, a razão da procura, se é a
escuridão seu ponto de chegada? A razão se sustenta pelo impulso de liberdade.
É esta contradição (a busca do inatingível) que confere grandiosidade aos atos
humanos (...). Trata-se de uma tensão permanente entre superação e engano
(falsa vitória e consciência da perda) que, a cada momento, reafirma a errância
em que vê o homem imerso (1987:15). (grifos nossos)
Foi, portanto, por meio da linguagem – tradução de nossos pensamentos – que o
homem pôde expressar seus sentimentos e angústias diante do indizível. Diante desse
conflito, o homem tentou estabelecer um lugar firme para sustentar suas crenças e valores
nas diversas manifestações da sua vontade de verdade. Seus pensamentos se voltaram, a
princípio, para a grandiosidade da vida. Segundo, Charles Bally (1947:20): “No se trata, ya
se ve, de la vida considerada em sí misma, sino de la conciencia de vivir y de la voluntad
de vivir; no de la vida tal como el biólogo se la representa en su realidad objetiva, sino del
sentido vital que llevamos em nosotros mismos”.
Esse complexo movimento formado de desejos e ações que germinam e se
expandem de nossos pensamentos denomina-se o mundo da vida. Um mundo de palavras.
A questão trazida por Nietzsche é que o homem, como um artista do verbo, não se
contentou apenas com a simplificação e esquematização dessas palavras:
(...) e buscou desenvolver um emaranhado significativo que fosse capaz de
substituir as coisas, a pluralidade. Para isto ele precisou esquecer que o que fazia
era criar nomes, e passou a acreditar nos nomes das coisas como “em verdades
eternas.” É a ficção de correspondência entre as palavras e as coisas a base
fundamental em que repousa a construção de um outro mundo. O outro mundo
dos signos é a primeira ficção humana. A linguagem é nosso primeiro outro
mundo (apud MOSÉ, 2005:45-46).
Através desse universo de palavras, o homem manifestou sua vontade de eternizar a
sua existência e descobriu a palavra: felicidade. Assim,
Todos los hombres – disse Pascal – buscan ser felices: no hay excepción.Por
diferentes medios que empleen, todos tienden a esa meta; lo que hace que unos
vayan a la guerra, y que otros no, es ese idéntico deseo, acompañado de
diferentes perspectivas. La voluntad no da jamás el menor paso sino hacia ese
objeto. Es el motivo de todas las acciones de todos los hombres, hasta de los que
se quieren perder (apud BALLY, 1947:23).
Como o caminhar do homem é errante, de idas e vindas, trafegando num deserto
povoado de imagens e sensações, de aproximações e afastamentos, de identidades e
diferenças, ele resolveu empreender, como signo de sua existência, uma obra. Quando o
ser instaura sua obra, o mundo e todas as coisas adquirem sua permanência e sua urgência,
sua distância e proximidade, sua amplidão e estreiteza. Através do fazer do homem, a obra
produz algo que chega a manifestar-se: a matéria de que a obra é feita é posta à vista.
Nesse momento, a arte – produção criativa do homem – nos permite erigir uma abertura
introspectiva, como podemos inferir pelas palavras de Bornheim (2001:210): “a obra de
arte é o templo que nos permite uma inspeção, um olhar para dentro desse mundo”.
“Exatamente como no mistério do livre-arbítrio outorgado por Deus às suas
criações, os artistas liberam no mundo agentes do imaginário e de alguma poeira de préexistência cujo destino subsequente e cuja liberdade de ação terminam por desafiar o
criador” (STEINER, 2003:187).
Por isso, quando lemos uma obra, em especial, romances é porque estes nos
oferecem a agradável impressão de habitar mundos em que a noção de verdade é
inabalável. É na ficção, afirma Humberto Eco:
(...) que procuramos a espécie de certeza e segurança intelectual que o mundo
real não pode oferecer... Lemos romances a fim de localizar uma forma na
informe quantidade de experiências terrenas. Participamos de um jogo, mas dele
participamos a fim de instilar sentido na desordenada profusão de fenômenos
terrenos – procuramos abrigo contra a Angst, essa profunda ansiedade que nos
acossa sempre que desejamos dizer algo a propósito do mundo, com segurança
(apud BAUMAN, 1998:151-152).
Mas apesar do deleite com a leitura experienciada, sabemos que a nossa travessia é
temporária e a linguagem é o reflexo dessa certeza – os personagens morrem no final da
história e o livro volta a se fechar. A felicidade da obra é eterna, entretanto a mortalidade
não é virtual. De modo que a comunicação dessa experiência, na contemporaneidade,
tornou-se líquida e esfacelada, a tradição oral dessa experiência deixou de ser
compartilhada coletivamente. A arte de contar torna-se cada vez mais rara porque ela parte,
fundamentalmente, da transmissão de uma experiência cujas condições de realização já não
existem na sociedade capitalista pó- moderna. Quais são essas condições? Cito Benjamin
(1994:10-11):
a. A experiência transmitida pelo relato deve ser comum ao narrador e ao
ouvinte. Pressupõe, portanto, uma comunidade de vida e de discurso que o
rápido desenvolvimento do capitalismo, da técnica, sobretudo, destruiu. A
distância entre os grupos humanos, particularmente entre as gerações,
transformou-se hoje em abismo porque as condições de vida mudam em um
ritmo demasiado rápido para a capacidade humana de assimilação. Enquanto no
passado o ancião que se aproximava da morte era o depositário privilegiado de
uma experiência que transmitia aos mais jovens, hoje ele não passa de um velho
cujo discurso é inútil.
b. Esse caráter de comunidade entre vida e palavra apoia-se ele próprio na
organização pré-capitalista do trabalho, em especial na atividade artesanal. O
artesanato permite, devido a seus ritmos lentos e orgânicos, em oposição à
rapidez do processo de trabalho industrial, e devido a seu caráter totalizante, em
oposição ao caráter fragmentário do trabalho em cadeia, por exemplo, uma
sedimentação progressiva das diversas experiências e uma palavra unificadora. O
ritmo do trabalho artesanal se inscreve em um tempo mais global, tempo onde
ainda se tinha, justamente, tempo para contar.
c. A comunidade da experiência funda a dimensão prática da narrativa
tradicional. Aquele que conta transmite um saber, uma sapiência, que seus
ouvintes podem receber com proveito. Sapiência prática, que muitas vezes toma
a forma de uma moral, de uma advertência, de um conselho, coisas com que,
hoje, não sabemos o que fazer, de tão isolados que estamos, cada um em seu
mundo particular e privado.
Por conta dessa desagregação do social surge assim, uma tendência das narrativas
contemporâneas em recriar um universo propício para a reconstrução dessa experiência
vivida, solitariamente. O romance parte a procura do sentido da vida, da morte, da história.
Encontramos em Leite Derramado130, de Chico Buarque, a representação simbólica
dessa experiência:
Ás vezes aspiro fundo e encho os pulmões de um ar insuportável, para ter alguns
segundos de conforto, expelindo a dor. Mas bem antes da doença e da velhice,
talvez minha vida já fosse um pouco assim, uma dorzinha chata a me espetar o
tempo todo, e de repente uma lambada atroz. Quando perdi minha mulher, foi
atroz. E qualquer coisa que eu recorde agora, vai doer, a memória é uma vasta
ferida (LD:10).
A partir dos fragmentos de sua memória, o narrador-personagem de Leite
Derramado ─ Eulálio d’Assumpção ─ vai tecendo e reconstruindo, afetivamente131, os
rastros132 não intencionais deixados ou esquecidos num turbilhão de sensações
conflituosas:
Eu gostaria de ter conhecido meu trisavô, gostaria que meu pai me
acompanhasse mais um pouco, gostaria sobretudo que Matilde me sobrevivesse,
e não o contrário. Não sei se existe um destino, se alguém o fia, enrola, corta.
Nos dedos de alguma fiandeira, provavelmente a linha da vida de Matilde seria
de fibra melhor que a minha, e mais extensa. Mas muitas vezes uma vida para no
meio do caminho, não por ser a linha curta, e sim tortuosa (LD:55).
Segundo Heitor Ferraz (Bravo, 2009:12), Chico Buarque é um compositor e literato
de mão-cheia. O narrador de sua nova incursão da literatura é um velho gagá, para lá dos
100 anos, com fumos de nobreza, que relata de um leito de hospital qualquer ─ não se sabe
bem para quem, ora para uma enfermeira, ora para a filha, ora para uns sequestradores ─ a
esgarçada história de sua vida.
É, então, dentro desta estrutura que são desveladas as ações e atitudes que
constituem a problemática existencial deste personagem. Recriando a vida a partir de seu
130
O romance Leite Derramado, de Chico Buarque, terá a seguinte sigla: LD.
A memória liga-se à lembrança das vivências, e esta só existe quando laços afetivos criam o
pertencimento ao grupo e ainda os mantém ao presente. (cf. FÉLIX, Loiva Otero. História e Memória: a
problemática da pesquisa. Passo Fundo: Editora UPF, 2004, p. 39).
132
O rastro não é um signo como outro. Mas exerce também o papel de signo. Pode ser tomado por um signo.
O detetive examina como signo revelador tudo o que ficou marcado nos lugares do crime, a obra voluntária
ou involuntária do criminoso; o caçador anda atrás do rastro da caça; o rastro reflete a atividade e os passos
do animal que ele quer abater; o historiador descobre, a partir dos vestígios que sua existência deixou, as
civilizações antigas como horizontes de nosso mundo. Tudo se dispõe em uma ordem, em um mundo, onde
cada coisa revela outra ou se revela em função dela (LEVINAS apud GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar
escrever esquecer. São Paulo: Ed.34, 2006, p. 113-114).
131
fim, o protagonista, Eulálio d’Assumpção, de Leite Derramado, é construído. Recria a vida
recontando o passado.
Eulálio d’Assumpção reconta o passado para que suas palavras façam sentido. Sua
memória se constitui pelo já-dito que possibilita todo dizer:
(...) recordo cada fio da barba do meu avô, que só conheci de um retrato a óleo.
(...) É com essa gente antiquada que sonho, quando você me põe para dormir. Eu
por mim sonhava com você em todas as cores, mas meus sonhos são que nem
cinema mudo, e os atores já morreram há tempos. Dia desses fui buscar meus
pais no parque dos brinquedos, porque no sonho eles eram meus filhos. (...) Meu
avô foi um figurão do Império, grão-maçom e abolicionista radical, queria
mandar todos os pretos brasileiros de volta para a África, mas não deu certo.
Seus próprios escravos, depois de alforriados, escolheram permanecer nas
propriedades dele. (LD:14-15)
Como na canção “O velho Francisco” (1987),
Hoje é dia de visita
Vem aí meu grande amor
Ela vem toda de brinco
Vem todo domingo
Tem cheiro de flor
(...)
Quem me vê, vê nem bagaço
Do que viu quem me enfrentou
Campeão do mundo
Em queda de braço
Vida veio e me levou133
o passado do protagonista Eulálio d’Assumpção se encontra nos fragmentos de uma vida
que não parece mais existir, perdeu de alguma maneira, nesse vaivém entre condutas
individuais e coletivas, o encantamento com as pequenas coisas que cercam o seu
cotidiano. Dentro da alma do protagonista só restam marcas que passaram pelos sentidos:
(...) preciso dos meus anestésicos, minhas dores no peito voltaram a se agravar,
sinto que desta noite não passo. Se houver algum padre por perto, mande-o vir
me confessar, pois vivo em pecado desde o dia em que conheci minha mulher.
Não sei se já lhe contei como pecava em pensamento até dentro da igreja, no
tempo em que ainda ia à missa, mas sou batizado e tenho direito à extremaunção. Estou mesmo inclinado a crer na vida eterna e faço fé em que Matilde
esteja à minha espera, apesar de no catecismo nunca terem me explicado direito
a ressurreição da carne. (LD:163).
Para Barros Filho (2005:55), desta forma, o passado não age sobre o presente, como
se imagina. Porque não há ação no passado. Porque não há nada no passado. Porque o
passado não é. Só é enquanto presente, porque só o presente é. O passado não convertido
em memória não é. Não é mais. Assim, a refração ─ que nunca conserva ─ pressupõe um
133
HOMEM, Wagner. op. cit., p. 250.
objeto a refratar, uma matéria-prima presente sobre a qual agir. Signos enunciados e
recebidos no passado, reconstruídos em ato, no presente. Atualizados. Refração é
atualização. Uma potência atualizada, que ganha forma, no instante. Enunciar um discurso
é sempre atualizar uma potência discursiva.
Sob esse aspecto, Ricoeur considera que:
Quanto à memória, por um lado, a marca existe agora (o presente do presente),
por outro lado, ela vale pelas coisas passadas que, a esse título, existem ainda
dentro da memória. (...) Por isso, quando recontamos coisas verdadeiras, embora
coisas passadas, é da memória que as tiramos, não as coisas elas mesmas, que
passaram, mas as palavras concebidas a partir das imagens que estão gravadas no
espírito, como marcas que passaram pelos sentidos (apud LEAL, 2002:20).
Os signos deixados pela marca do tempo retornam à obra buarqueana porque,
segundo Zygmunt Bauman (1998:157), “a arte torna acessível, desvenda tudo que é
diferente do habitual”. De modo que o narrador de Leite Derramado encontra disperso em
diversas formas o Brasil e os brasileiros ─ matriz mestiçada, dinamizada por uma cultura
sincrética ─ nas memórias do protagonista Eulálio de A’ssumpção. Nessa confluência, de
discurso histórico e literário os acontecimentos vão se sucedendo, fixando e inscrevendo a
história narrativa e a história efetiva.
Heitor Ferraz (Bravo, 2009:14) nos diz que Chico Buarque procurou refazer uma
história do Brasil vista por um sujeito da elite e já decadente, ainda obcecado por sua
mulher, retratada por ele apenas como objeto de um desejo físico ─ e que aos poucos vai
emergindo como uma vítima do ciúme e do preconceito enraizado no narrador, preconceito
que, como sabemos, continua a gerar conflitos na sociedade brasileira.
Fazendo um entrelaçamento do literário com o histórico-social, do texto com o
contexto, Chico opta assim, por retratar uma história que será contada como um evento,
como se através do protagonista Eulálio d’Assumpção o leitor recordasse e a seu modo
explicasse o Brasil nas cenas e relatos deflagrados em cada capítulo de Leite Derramado:
(...) o dinheiro dos Assumpção sempre foi limpo, era dinheiro de quem não
precisa de dinheiro. Saiba a senhora que ao ganhar do presidente Campos Sales a
concessão do porto de Manaus, meu pai era um jovem político bem-conceituado,
sua fortuna de família era antiga. Não sei se alguma vez lhe contei que meu
bisavô foi feito barão por dom Pedro I, pagava altos tributos à Coroa pelo
comércio de mão-de-obra de Moçambique. Se hoje enfrento privações, em breve
viverei à larga, são contingências de quem costuma lidar com grandes somas.
Ontem mesmo falei com meus advogados, e finalmente está para sair o
ressarcimento pela desapropriação da minha fazenda na raiz da serra. Entra
governo, sai governo, são sessenta anos de um processo contra a União, para
rever uma indenização irrisória que me estipularam à primeira vista (LD:78-79).
É dentro de crenças co-participadas, de vontades coletivas abruptamente eriçadas,
que a memória e a história134 emergirão. Essa é a razão por que, em lugar de um quadro
geral da história brasileira, Buarque compõe compartimentos da história em flash back.
Um desses compartimentos refere-se ao racismo brasileiro que tem como característica
primordial não incidir sobre a origem racial das pessoas, mas sobre a cor da pele.
Darcy Ribeiro (1995:224-225) comenta que prevalece, em todo o Brasil, uma
expectativa assimilacionista, que leva os brasileiros a supor e desejar que os negros
desapareçam pela branquização progressiva. Ocorre, efetivamente, uma morenização dos
brasileiros, mas ela se faz tanto pela branquização dos pretos, como pela negrização dos
brancos. A forma peculiar do racismo brasileiro decorre de uma situação em que a
mestiçagem não é punida, mas louvada. Com efeito, as uniões inter-raciais, aqui, nunca
foram tidas como crime ou pecado. Provavelmente porque o povoamento do Brasil não se
deu por famílias europeias já formadas, cujas mulheres brancas combatessem todo o
intercurso com mulheres de cor. Nós surgimos, efetivamente, do cruzamento de uns
poucos brancos com multidões de mulheres índias e negras.
Para este antropólogo, o aspecto mais perverso do racismo assimilacionista é que
ele dá de si uma imagem de maior sociabilidade, quando, de fato, desarma o negro para
lutar contra a pobreza que lhe é imposta, e dissimula as condições de terrível violência a
que é submetido.
Neste ângulo, os signos que compõem essa sociedade doentia, de consciência
deformada e deformante desentranharão do processo mimético buarqueano. Narrar para
Buarque, é configurar ações humanas específicas, mas é também discorrer sobre
significados, analisar situações e reconhecer fissuras do preconceito nas imagens que não
cessam de perpassar em sua escritura. Como podemos inferir pelas palavras do narradorprotagonista que assim se pronuncia:
Quando amanhã minha cama aparecer vazia, muitos aqui farão o sinal-da-cruz,
pensando o pior. Mas não se aflijam por mim, pois estarei chupando uvas em
Copacabana, numa sala com vista para a praia. Provavelmente em cadeira de
rosas, mas dessas motorizadas, para que eu possa descer a passeio por minha
conta quando bem entender. Resisti um bocado à ideia de morar em edifício de
134
Memória, história: longe de serem sinônimos, tomamos consciência de que tudo opõe uma à outra. A
memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos, e, nesse sentido, ela está em permanente evolução,
aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a
todos os usos e manipulações, suscetível de longas latências e de repentinas revitalizações. A história é a
reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre
atual, um elo vivido no eterno presente; a história, uma representação do passado. (cf. NORA, Pierre. Entre
memória e história ─ a problemática dos lugares; (trad. de Yara Aun Khoury). Projeto História. São Paulo:
v.10, dez. 1993, p. 9).
apartamentos, me parecia promíscuo. Mas afinal me rendi às suas comodidades,
e não hesitem em me procurar dia desses, vou lhes deixar o meu cartão. O
edifício tem lá sua classe, com o hall de entrada metido a art déco, os vizinhos
são discretos, os porteiros limpinhos. Trata-se enfim de um ambiente seleto, e era
natural que me causasse espécie entrar comigo no elevador um grandalhão com
cara de nortista, nariz chato, pele grossa. Indiquei-lhe o elevador de serviço, mas
ele me deu as costas e apertou o botão do meu oitavo andar (LD:141-142).
Entendemos, portanto, que em Leite Derramado não se trata de memória e história,
mas “memória em história”, uma vez que é a memória que dita e a história que escreve. A
narrativa buarqueana, como forma eminente de mnemosyne (deusa da reminiscência),
articula o caráter temporal da experiência humana a fim de revelar no presente135 às
diversas rugas do passado do protagonista:
(...) começo a recapitular as origens mais longínquas da minha família, e em mil
quatrocentos e lá vai fumaça há registro de um doutor Eulálio Ximenez
d’Assumpção, alquimista e médico particular de dom Manuel I. Venho descendo
sem pressa até o limiar do século XX, mas antes de entrar na minha vida
propriamente, faço questão de remontar aos meus ancestrais por parte de mãe,
com caçadores de índios num ramo paulista, num outro guerreiros escoceses do
clã dos McKenzie. Até pouco eu soletrava esses nomes para uma enfermeira, que
me deixou depois de espremer minhas memórias até o bagaço. Mas isso é o que
ela pensa, saibam os senhores que, só da minha mulher, ainda tenho na cabeça
um baú repleto de reminiscências inéditas (LD:185).
Para Leal (2002: 83), o caráter temporal da experiência humana é o ponto para onde
converge o ato de narrar, aquele que supera a clivagem entre o vivido e o cronológico, ou
seja, um tempo ricoeuriano, um terceiro tempo.136 Em nossa língua a história une tanto o
lado objetivo quanto o subjetivo, significa tanto historiam rerum gestarum quanto res
135
A memória para produzir conhecimento histórico, exige, hoje, a instauração de um novo tipo de relação
com o passado. Deve-se em primeiro lugar, afastar-se da ilusão positivista de que o passado é totalmente
cognoscível (...) hoje, ao contrário, sabemos que muitas vezes a voz do passado é inaudível e que muitos
aspectos são inacessíveis e perdidos para o observador. Além disso, sabemos também que o acontecimento
pode apresentar novas dimensões na medida em que o presente projeta novas luzes sobre o passado,
iluminando-lhe dimensões que somente são percebidas pelas luzes oferecidas pelas perguntas do presente.
(cf. FÉLIX, Loiva Otero. op. cit., p. 59-60).
136
Podemos dizer que existem sobre o tempo discursos que se apresentam como inconciliáveis. Um deles é
produzido pelos físicos e o outro pelos filósofos. Ao falar do tempo a física concentra-se no número dos
movimentos naturais dos corpos. Um tempo que é exterior ao humano, supralunar. Suas características são a
mensurabilidade, a reversibilidade, a homogeneidade. Neste tempo natural o vivido pelo homem não é levado
em consideração, não há referência à morte, à finitude, ao anseio por eternidade. Os autores desta vertente
são Platão, Aristóteles, e físicos como Newton e Einstein. Por outro lado, a filosofia aborda o tempo sob uma
outra perspectiva. Aqui o tempo é interior ao humano, sublunar. Dentre suas características destacamos a
incomensurabilidade, a irreversibilidade, a sucessividade, e, principalmente a reflexão. Os autores desta
tradição vão desde Plotino, Santo Agostinho, passando por Bergson, Bachelard, Husserl e Heidegger. Paul
Ricoeur buscará destacar a “capacidade criadora de refiguração do tempo” pela história, na constituição de
um terceiro tempo: o tempo histórico. Segundo Ricoeur, o tempo histórico faz mais do que a mediação entre
o tempo vivido da consciência e o universal da natureza, mas reinscreve o primeiro no último. (cf.
MENDES, Breno. Uma (imperfeita) mediação entre extremos: um panorama sobre as contribuições de Paul
Ricoeur à teoria da história em Tempo e Narrativa. Disponível em: <http://www.historiaehistoria.com.br>
Acesso em: 15 fev. 2012).
gestas; tanto a narrativa histórica quanto o acontecimento, os atos e os fatos. A isso se
acrescenta que a compreensão da experiência humana não se realiza sem a mediação dos
sistemas configuradores de uma cultura. Como podemos inferir por este fragmento:
Quando eu sair daqui, vamos começar vida nova numa cidade antiga, onde todos
se cumprimentam e ninguém nos conheça. Vou lhe ensinar a falar direito, a usar
os diferentes talheres e copos de vinho, escolherei a dedo seu guarda-roupa e
livros sérios para você ler. (...) Minha outra mulher teve uma educação rigorosa,
mas mesmo assim mamãe nunca entendeu por que eu escolhera justamente
aquela, entre tantas meninas de família distinta. Minha mãe era de outro século,
em certa ocasião chegou a me perguntar se Matilde não tinha cheiro de corpo. Só
porque Matilde era de pele quase castanha, era a mais moreninha de sete irmãs,
filhas de um deputado correligionário do meu pai (LD:29-30). (grifos nossos)
Esse fragmento diz respeito a outro compartimento que surge no olhar crítico de
Buarque, o preconceito linguístico. Preconceito esse que, segundo Freyre (2004:220) foi
marcado por uma dualidade de línguas, a dos senhores e a dos nativos, uma de luxo,
oficial, outra popular, para o gasto ─ dualidade que durou seguramente século e meio e que
se prolongou depois, com outro caráter, no antagonismo entre a fala dos brancos das casasgrandes e dos negros das senzalas ─ tornando-se um vício, em nosso idioma, que só hoje, e
através dos romancistas e poetas mais novos, vai sendo corrigido ou atenuado: o vácuo
enorme entre a língua escrita e a língua falada. Entre o português dos bacharéis, dos padres
e dos doutores, quase sempre propensos ao purismo, ao preciosismo e ao classicismo, e o
português do povo, do ex-escravo, do menino, do analfabeto, do matuto, do sertanejo.
Foi nesse espaço de condições socioculturais distintas que o narrador-protagonista
(Eulálio d’Assumpção-branco) relata a história de uma vida que não cessa de ser
refigurada por todas as histórias verídicas ou fictícias que ele conta sobre si mesmo e sua
esposa (Matilde-negra). Essa refiguração faz da própria vida de Eulálio d’Assumpção um
tecido de histórias narradas:
Eulálio d’Assumpção foi casado com a morena Matilde, que começa como filha
de um deputado. Depois, surgem dúvidas sobre sua origem, até tornar-se uma
agregada. Com ela, ele teve uma filha, Maria Eulália, que no momento da
narração já é uma velha curvada com 80 anos. Maria Eulália, por sua vez, casouse com um italiano, Amerigo Palumbo, que rapou as joias da família e a deixou
só, com um filho, Eulalinho. Este virou comunista e morreu nas mãos da
ditadura. Porém, ele também gerou um filho negro com uma ativista de esquerda,
que também morreu. Este filho negro ─ descendente de dom Eulálio Penalva
d’Assumpção, conselheiro do marquês de Pombal ─ também morre, deixando
outro Eulálio, confundindo de vez a cabeça conturbada do leitor (LD:5-195).
A narrativa como modo de emprego da linguagem remete ao ato de recontar, que
quase sempre se encontra fragmentado no tempo porque “o fluxo da consciência possui sua
própria unidade” (HUSSERL apud RICOEUR, 1997:434). Dessa maneira, a história,
enquanto um dos gêneros que compõem o campo narrativo vê-se implicada na correlação
entre a temporalidade da experiência humana (intratempo/vivido) e a narração
(intertempo/cronológico).
O múltiplo da nossa experiência temporal é posto em correspondência com a
capacidade do discurso narrativo de unificar a temporalidade em que o vivido e o
cronológico se misturam de maneira às vezes contraditórias. A réplica dessa bifurcação do
tempo não é nada mais do que o tempo humano enquanto tempo narrado, o produto da
aplicação da narrativa aos paradoxos do tempo. É esse tempo bifurcado que será recontado
por Eulálio d’Assumpção em Leite Derramado. Para narrar essa história, o narradorprotagonista constitui uma forma privilegiada de leitura em retorno dos acontecimentos de
sua vida. Segue a transcrição:
Da babá ao portuguesinho do armazém, todos sabiam que sua mãe, desarvorada,
tinha partido sem deixar um bilhete ou fazer nada. Mas abandonar uma criança
ainda lactante, pequerrucha, de se carregar debaixo do braço, isso não entrava na
cabeça de ninguém, não fazia sentido, não podia ser. Nem de um marido a
mulher abre mão tão facilmente, ela o troca por outro, e às vezes o faz às pressas
porque já vai a ponto de mudar de ideia. Assim como sofre para se desfazer de
um vestido velho, quando renova o guarda-roupa. Para uma mãe largar sua
criança, só mesmo se outra criança a arrastasse pela cintura com a força de um
amante. Por isso, num primeiro momento, cheguei a pensar que sua mãe estava
de barriga, quando fugiu (LD:95).
Segundo Ricoeur (apud LEAL, 2002:27), denomina-se leitura em retorno o
itinerário do fim em direção ao começo, significando que nos colocamos no ponto de vista
da conclusão e recapitulamos as condições iniciais do desenrolar da ação através das suas
consequências terminais.
O desenrolar das ações e acontecimentos vão sendo revelados pelos rastros, ou
melhor, pela imagem-marca ─ coisa presente que vale por uma coisa passada ─ deixada na
memória de Eulálio d’Assumpção. Se tomarmos o caráter imaginário do narrador, sua
tentativa de mediatizar e esquematizar esse rastro, teríamos a complexidade de seus
sentimentos para com Matilde. Ao relatar no leito do hospital a travessia de sua existência,
o narrador transforma seu tempo vivido (passado presente) em tempo sucessivo (futuro
passado), preservando, selecionando, rastreando no arquivo de sua memória o motivo que
levou Matilde a se ausentar do lar. Cito essa passagem:
Perguntei por Matilde, Balbina me apontou o chalé, e já do portão se ouvia
música. Pensei que fosse um maxixe, mas era o tal samba que ela deu para ouvir
todo dia: jura, jura, jura de coração. A porta de casa estava escancarada, e na sala
deparei com Matilde de maiô, dançando com o preto Balbino. (...) A cena foi
ficando insuportável, os dois não queriam parar com aquela dança nojenta, então
dei um pontapé na vitrola de Matilde. (...) Voltei de novo pelo centro da cidade,
onde comprei uma radiovitrola RCA Victor de último tipo e dois álbuns com
vinte e quatro discos de samba. Matilde ficou boba com o presente, voltou às
boas comigo, ela era leve de espírito. Só dias mais tarde se fechou para o mundo,
passou a esconder o corpo sob os vestidos largos que mamãe lhe dera havia
tempo. E hoje saiu sem avisar aonde ia, Matilde nunca foi de sair à noite. Por
isso é natural que eu parta feito um louco atrás dela, mas isso só vai acontecer
daqui a pouco. É esquisito ter lembranças de coisas que ainda não aconteceram,
acabo de lembrar que Matilde vai sumir para sempre (LD:115-117).
Na medida em que o processo da escritura abre ao protagonista e também narrador
a possibilidade do conhecimento, afirma-se-lhe o desejo de busca da verdade,
consolidando, deste modo, a errância (Heidegger, 1970:43): “o espaço de jogo deste
vaivém no qual a ek-sistência in-sistente se movimenta constantemente, se esquece e se
engana sempre e novamente”; como fundamento da existência.
Sabe o narrador que a verdade não se localiza nos limites do existir, menos ainda na
realidade concreta, porquanto esta se encontra esvaziada de sentido, anulada em seus
valores essenciais. Aspira, sim, àquela capaz de impulsioná-la em direção ao encontro
consigo mesmo, razão por que sua preocupação se concentra com o que permanece fixado,
tatuado em sua memória. Por isso, as impressões, as marcas tornam o verbo permanecer
mais importante do que o verbo passar. É pela arquitetura da palavra, uma galeria de
simulacros, que se re/vela e se des/vela o caminhar errante de Eulálio d’Assumpção à
procura do seu ponto de partida:
Passei pelos quartos vazios, ouvia soluços e água escorrendo no banheiro, e
surpreender Matilde a me trair no nosso leito, não sei por quê, me diminuiria
menos que vê-la se entregar de pé a um homem molhado. Cheguei sem fôlego à
porta entreaberta do banheiro, e o que vi foi Matilde debruçada na pia, como se
vomitasse. Por um segundo me ocorreu que pudesse estar grávida, depois vi seu
ombro direito nu, ela arriara uma banda do vestido. Corri para a abraçar,
envergonhado do meu mau juízo, mas ela aprumou o vestido bruscamente e se
esquivou de mim, deixando a torneira aberta. E vi respingos de leite nas bordas
da pia, o ar cheirava a leite, vazava leite no vestido da sua mãe, nunca lhe contei
esse episódio? (LD:135-136)
Sendo seu compromisso único com a linguagem, é a revelação do segredo que se
encontra por detrás das palavras que mais o narrador deseja captar. Todavia, tem ciência de
que não pode empreender a caminhada com os meios já conhecidos. Nesse momento,
emerge do ato criador a face oculta do escritor, a própria energia simbólica do prépensamento, em forma de personagem, cujo nome de origem teutônica se traduz como
sendo a guerreira, a imagem-marca: Matilde. Este é o conflito. O narrador e também
protagonista vê-se diante de uma ambivalência: Matilde é a um só tempo, a matéria-prima
com que ele procura modelar o discurso ficcional e a fonte geradora que comanda seu
processo criador. É dessa ambivalência que nasce a construção estética buarqueana – de
uma rememorização137 afetiva:
Recordei-a envolta no vapor, já me escancarando os olhos negros, recordei seu
sorriso preso nos lábios, seu jeito de encolher os ombros e me chamar para o
outro mundo. Recordei seu movimento de corpo, ao se encostar nos cavalosmarinhos da parede, o sutil balanceio dos seus quadris, e de repente me senti
dotado de uma força que fazia anos já não tinha. Olhei-me, admirado, havia em
meu corpo de velho um desejo por Matilde semelhante ao do nosso primeiro
encontro, acho que nunca lhe contei como a conheci na missa do papai (LD:
138).
Segundo a ensaísta Maria Aliete, “não se trata de uma rememoração orientada pelas
circunstâncias factuais, mas pelas convergências de vetores enraizados no âmbito subjetivo
de cada ser, que incluem memória evocativa, memória reflexiva, memória afetiva,
memória mítica” (1982:108).
É desta forma, que a memória do homem se constrói através do fruto da
transmissão oral viva e da conservação pela escrita; reduto fecundo onde o narradorprotagonista, Eulálio de Assumpção – por meio de suas ressurgências do passado no
presente – vai compartilhar da fragilidade e incerteza de dizer o não-dito: “Muitas vezes de
fato invoquei a morte, mas no momento mesmo em que a vejo de perto, confio em que ela
mantenha suspensa a sua foice, enquanto eu não der por encerrado o relato da minha
existência” (LD:184).
Benjamin (1994:207-208) nos informa que é no momento da morte que o saber e a
sabedoria do homem e, sobretudo sua existência vivida ─ assumem pela primeira vez uma
forma transmissível. “Assim como no interior do agonizante desfilam inúmeras imagens ─
visões de si mesmo, nas quais ele se havia encontrado sem se dar conta disso ─, assim o
inesquecível aflora de repente em seus gestos e olhares, conferindo a tudo o que lhe diz
respeito àquela autoridade que mesmo um pobre-diabo possui ao morrer, para os vivos em
seu redor.”
Para ser fiel a essa semiosfera existencial, o autor não poderia evitar a forma
especular que o romance Leite Derramado – processo semeado em Estorvo – mantém na
137
A rememoração implica uma certa ascese da atividade historiadora que, em vez de repetir aquilo de que se
lembra, abre-se aos brancos, aos buracos, ao esquecido e ao recalcado,, para dizer, com hesitações,
solavancos, incompletude, aquilo que ainda não teve direito nem à lembrança nem às palavras. A
rememoração também significa uma atenção precisa ao presente, em particular a estas estranhas
ressurgências do passado no presente, pois não se trata somente de não se esquecer do passado, mas também
de agir sobre o presente. A fidelidade ao passado, não sendo um fim em si mesmo, visa à transformação do
presente (cf.GAGNEBIN, Jeanne Marie. op. cit., p. 55).
trama da narrativa: um invólucro de desconstruções sígnicas. Tal similitude é em parte
explicável até pelo fato de terem sido escritos pelo mesmo olhar apurado de quem esmera
o próprio trabalho sem desgastá-lo.
Pode-se mesmo afirmar que o olhar é um aspecto recorrente na obra de Chico
Buarque. Nesse, o conflito emerge em preocupação com o debruçar-se sobre si mesmo,
tendência imanente na narrativa contemporânea. Seguem-se, apenas, alguns exemplos,
com a finalidade de ilustrar o que foi exposto:
E se algum dia encontrasse Matilde com outro, mais que olhar Matilde eu
olharia o outro, eu necessitava saber como era esse homem, para dar substância
ao meu ciúme. Eu pensava nesse homem constantemente, muitas noites cheguei
a sonhar com ele, mas ao despertar não conseguia lhe conferir forma humana.
Nem ódio eu podia ter de um sujeito que não me ultrajou, não entrou na minha
casa, não fumou meus charutos, não violentou minha mulher. E pouco a pouco
me dispus a aceitá-lo, procurei imaginá-lo como uma alma delicada, como
alguém que olharia por Matilde na minha falta. Imaginava um homem que se
dirigisse a ela somente com palavras que nunca usei, que tivesse o cuidado de
tocar a pele dela onde eu jamais tocava. Um homem que se deitasse com ela sem
tomar o meu lugar, um homem que se contentasse em ser o que eu não era. De
tal modo que Matilde pensaria em mim sempre que olhasse em torno dele, e em
sonhos nos visse os dois ao mesmo tempo, sem compreender quem era a sombra
de quem. E ao despertar, talvez só se lembrasse vagamente de ter sonhado com o
desenho das ondas em preto-e-branco, no mosaico da calçada de Copacabana.
(...) E onde eu agora caminhava trôpego, trançando as pernas, pois apenas
roçasse um pé nas pretas, cairia no inferno. Acho que o inferno era a doença de
Matilde (LD:164). (grifos nossos)
Observando, cuidadosamente, o percurso de nossa cultura, concluir-se-á que o
contato do homem com seu espaço existencial se faz apoiar numa relação especular, aqui
compreendida nos dois sentidos básicos originários da forma latina “speculum”
(reprodução fiel e investigação) traduzindo-se por “mesmo” e “outro” (a identidade e a
diferença), o que nos remete ao pensamento de Manuel Antonio de Castro: “Ora, espelho
vem do Latim ‘speculum’, donde também se forma o verbo ‘especu- lar’. A busca da
essência do espelho é a busca da essência do especular, e nela do conhecer, do com-nascer,
da verdade” (1979:14).
É com fundamento na estruturação especular do texto narrativo que Chico Buarque
promove a escritura de Leite Derramado. Não é, contudo, a relação sustentada pelo
confronto eu/mundo. Trata-se, isto sim, de um processo dialético em que tudo se articula
no silêncio solitário do ser, de cuja essência emerge a tensão Narrador/Matilde. A realidade
exterior é negada em favor da afirmação absoluta do ser, como caminho único capaz de
efetivamente permitir o re-pensar da existência. É o que nos diz José Fernandes (1983:75):
“a existência do ser do homem é um novelo, cujo fio revela os mistérios do futuro em
direção ao passado, com um segundo de presente. Assim concebida, a existência se erige
no futuro com os pés no passado”.
Desse modo, o espelho não reflete o espaço circundante, porque neste o homem
deixou de ter o papel principal. Impõe-se-lhe como solução a vivência da solidão, na
esperança de encontrar, no ato da criação, o sentido do existir, como o fez o personagem
Eulálio de Assumpção: “Mas você perdeu lances fundamentais da minha vida. Do jeito que
anda relapsa, quando você compilar minhas memórias vai ficar tudo desalinhado, sem pé
nem cabeça” (LD:155).
O que busca o narrador é a apreensão do outro, a diferença. É com este objeto que
ele cria Matilde, uma personagem cuja tarefa consiste também em ser a detentora do ato
criativo, o que reforça a relação especular. Enfim, o processo de construção em Leite
Derramado calca-se no confronto de duas escrituras que se procuram. Consolida-se a
dialética da escritura através da qual a identidade (narrador) permitirá aflorar a diferença
(Matilde) com base única e exclusivamente na linguagem, essência do questionamento:
Aos dezesseis anos, quando deixou o colégio para casar comigo, não tinha
completado o curso ginasial. Estudara piano, como todas as meninas do seu
gabarito, mas tampouco brilhava nessa matéria. Ainda éramos namorados no dia
em que ela sentou ao Pleyel de minha mãe, e me preparei para escutar alguma
peça de Mozart, compositor que ela cantara, ou fingira cantar, na missa de
sétimo dia do meu pai. Mas com mão pesada, ela tocou um batuque chamado
Macumba Gegê, vá saber onde aprendeu aquilo (LD:45).
O processo de assimilação da diferença, do confronto especular que o narrador
mantém com Matilde é tão intenso que ele não se dá conta da transformação. O narrador,
erudito e racional, em oposição a Matilde, popular e sentimental, começa a adquirir novos
matizes. Inconscientemente, o narrador-personagem passa a assumir o discurso da mulher
amada. Assim sendo, dilui-se o contraste inicial entre o pensar (narrador = identidade) e o
sentir (Matilde = diferença). A escritura racional se deixa influenciar pela escritura afetiva:
Eu menino não compreendia o que se passava com meu corpo naquelas horas, eu
tinha vergonha de sentir aquilo, era como se o corpo de outro menino estivesse
crescendo no meu corpo. Pois agora também demorei a atinar comigo, demorei a
acreditar que meu desejo pudesse se restaurar a esta altura da vida, tão forte
quanto nos dias em que Matilde me olhava como se eu fosse o maior homem do
mundo (LD:181).
O que a princípio se mostrava antítese caminha em direção à síntese. A possível
superioridade do criador (narrador) sobre o ser criado (Matilde) pouco a pouco se desfaz,
porque compreende o inevitável buraco negro deixado pela ausência da criatura – Matilde:
Se não fossem meus tremores e câimbras nas mãos, eu preencheria de próprio
punho, com caligrafia miúda, um caderno para cada dia vivido ao lado da minha
mulher. Já depois que ela se foi, meus dias seriam de imenso papel para pouca
tinta, extensos e vazios de acontecimentos (LD:185).
Andando perdido entre as coisas, seus pensamentos são circulares como se algo
emergisse:
Matilde não vinha, não vinha, aos nossos encontros furtivos. Matilde nunca
faltou. E já no limite da minha esperança, eis que ela pisava a relva do jardim na
ponta dos pés, e eu descia com o coração na boca para lhe abrir a porta da
cozinha. E ela se encostava na parede da cozinha, a me arregalar os olhos negros,
mas se calhar essa cena se passava quando ainda nem éramos casados, e não no
tempo das coisas que eu vinha narrando (LD:187-188).
Essa configuração – dimensão da linguagem e da verdade – vivida pelo narradorprotagonista se projeta na ficção: remodelando a experiência do leitor pelos únicos meios
de sua irrealidade e a história o fazendo em favor de uma reconstrução do passado sobre a
base dos rastros deixados por ele (Ricoeur apud Gagnebin, 2006:43).
Rastro e memória, tão evocados por Santo Agostinho e Aristóteles, nos remetem a
proposta do Autor em eleger como tema do seu romance, a solidão. Solidão, corporificada
em memória afetiva, que está sempre em tensão: “entre a presença e a ausência, presença
do presente que se lembra do passado desaparecido, mas também presença do passado
desaparecido que faz sua irrupção em um presente evanescente” (Gagnebin, 2006:44).
Ela, a memória, é o próprio questionamento das ruínas do passado e das feridas não
cicatrizadas do narrador-protagonista – posto em questão. Nesse instante, trava-se um
duelo entre o esquecer – imagem do ressentimento – e o rememorar – evocação da
imagem-marca, guardada no presente. Como podemos depreender das palavras de
Gagnebin:
(...) quando há um enclausuramento fatal no círculo vicioso da culpabilidade, da
acusação a propósito do passado, não é mais possível nenhuma abertura em
direção ao presente: o culpado continua preso na justificação, ou na denegação, e
quer amenizar as culpas passadas; e o acusador, que sempre pode gabar-se de
não ser o culpado, contenta-se em parecer honesto, já que denuncia a culpa do
outro. Mas a questão candente, a única que deveria orientar o interrogatório ou a
pesquisa, a saber, evitar que algo semelhante possa acontecer agora, no presente
comum ao juiz e ao réu, não é nem sequer mencionada (2006:102).
Sendo assim, Matilde – imagem-marca da culpabilidade e da denegação do passado
– será o símbolo evocado para que o narrador-personagem reconstrua o seu presente com
os restos guardados do passado. Segundo, Costa Lima (2009:135):
Ao passo que a memória é retentiva, conservando uma cena do passado, a
evocação (anamnesis) supõe a busca de recuperar o que passou a partir do resto
que se tenha guardado. Quanto à evocação, a presença da imaginação é ainda
mais evidente, pois, para que se efetive, isto é, para que se recupere o que se
esqueceu ou esteve sujeito ao esquecimento, será preciso que se estabeleça uma
associação de idéias, que não se realiza sem imagens.
Para que a anamnesis atue, o narrador-protagonista parte em busca de um lugar.
Em busca de algo até então inapreensível e secreto. Uma realidade desprovida de sentido é
evocada: “Eu só queria convidá-las a dar um pulo em casa, quem sabe Matilde se animava
a deixar o quarto onde se enfurnara. Mas aí já estou trocando as bolas, Matilde não estava
mais em casa, a casa sem ela virou um desmazelo (...)” (LD:187).
É, pois, Leite Derramado a constatação da necessidade imperiosa do narrador
encontrar a origem do sopro capaz de manter-lhe acesa a chama da existência. Existência
esta que consiste em um projetar-se, que varia de acordo com o modo com que o homem se
compreende como ser-no-mundo, podendo ser: “inautêntico – onde o homem se entende a
partir do que ele não é, e autêntico – onde o homem assume seu ser e luta para impor-se tal
como é” (Beaini, 1981:85).
Sabe o autor que o sopro, não provém do espaço exterior, mas do espaço ontológico
preso à raiz da linguagem, para então poder religar-se ao mundo. Acima de tudo, este
romance é o testemunho de uma escritura que reconhece na vida o valor mais supremo.
Não se trata de afirmar a vida no que ela tenha de efêmero ou circunstancial. É a vida
assumida como fundamento possível do questionamento permanente que encontra em
Matilde, a metáfora referenciadora. Como podemos inferir do comentário de Paul Ricoeur:
“Não há metáfora no dicionário, apenas existe no discurso; neste sentido, a atribuição
metafórica revela melhor que qualquer outro emprego da linguagem o que é uma fala viva;
esta constitui por excelência uma instância de discurso” (1983:148).
Está em Matilde o poder que faz o narrador renascer das próprias cinzas. Ambos
unidos pela solidão: “Mas acho difícil, ela já não respondia quando eu batia à sua porta.
Era capaz até de ter destratado a mulher do médico, que nunca mais apareceu para um
banho de mar. Matilde vivia sempre mais reclusa naquele quarto lateral de chalé (...)” (LD:
133).
É a linguagem a fertilizar a língua que, por sua vez, germina o discurso. Reside em
Matilde a face da diferença que se oculta na identidade do narrador. Uma vez desvelada,
torna-se a velar, pois este é o jogo que sustenta a busca da verdade. Este é o fundamento
ontológico da errância:
A própria fisionomia de Matilde, um dia percebi que eu começava a esquecê-la,
e era como se ela me largasse novamente. Era uma agonia, mais eu a puxava pela
memória, mais sua imagem se desfiava. Restavam dela umas cores, um ou outro
lampejo, uma lembrança fluida, meu pensamento em Matilde tinha formas vagas,
era pensar num país e não numa cidade (LD:136).
Nada resta ao narrador senão recomeçar, na solidão absoluta, a viagem em direção
à realidade exterior, razão por que se manifesta esta, em natureza dubitativa. Não há
experiência ou conhecimento que não se origine da dúvida:
Num impulso tomei meu carro e subi a serra, bati à porta de inúmeros sanatórios,
asilos, colônias agrícolas, até num hospício fui parar. Mas ainda que investigasse
todos os hospitais do interior do estado, seria impossível localizar uma paciente
incógnita, de quem eu nem sequer tinha uma fotografia (LD:185-186).
A mensagem do autor é clarificada, no sentido da obrigatoriedade de se resgatar o
significado da vida. É a afirmação inconteste de que não há possibilidade de se preservar a
consciência crítica além de uma prática permanente do questionamento.
Importante frisar que, Chico Buarque transmite tais conceitos sem, em momento
algum, enveredar por um discurso ideológico. Trata-se, a despeito da solidão e da própria
morte, responder a tudo com o poder da criação, com a investigação dialética, a fim de
permanecemos todos de pé, em posição de resistência ou de re(x)istir. É, em ultima análise,
um convite ao leitor, no sentido de superarmos toda a inautenticidade com que nos
defrontamos ao longo da nossa trajetória errante. É nesta simultaneidade do desvelamento
e da dissimulação que se afirma a errância. A dissimulação e a errância, portanto,
pertencem à essência originária da verdade.
Não serão autênticas as transformações profundas na realidade exterior, sem antes
se processarem no ser do homem. Só há autenticidade no agir, quando resultante do
encontro do pensar com o sentir. É nesta perspectiva que lemos a escritura de Chico
Buarque.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
MODULAÇÃO EM TRECHOS DE BUARQUE
As reflexões em torno das obras verbo-musicais buarqueanas, que, ao longo da
dissertação, se constituíram no alvo de nossas atenções, conduzem-nos à possibilidade da
formulação das seguintes inferências:
1ª) A trajetória histórico-social da Música Popular Brasileira – MPB –
configura-se, esteticamente, na produção cancional de Buarque, revelando
assim, um resgate dos diversos momentos musicais e do que esses momentos
trazem de brasilidade. O acervo musical de Chico Buarque é redimensionado a
composições melódicas sofisticadas que são marcadas ora por recursos
estéticos de base erudita – voltados para uma leitura verticalizada de sua obra
no que tange à sua disposição poética e ao seu desenho melódico, ora os de
base popular – voltados para um diálogo com o povo, trazendo à tona uma
polifonia rítmica.
2ª) Encontramos nas músicas buarqueanas fórmulas rítmico-melódicas que não
apelam mais para uma memória entoativa, baseada no pulso dançante, mas para
uma memória da escrita, uma interlinguagem. Suas obras são elaboradas na
aderência entre melodia e letra, conjuntamente, promovendo um diálogo
permanente de som e sentido, onde os acordes africanos são contidos para dar
vazão às melodias, estruturadas em seu projeto de criação mítico-narrativa.
3ª) A hibridização dos recursos estéticos buarqueanos configuram uma leitura
singular por exigir do leitor uma sensibilidade musical – plano de expressão da
melodia – e uma compreensão do texto verbal – plano de conteúdo da letra –
que integram ambos a relação criativa da composição cancional.
E por
integrarem, reciprocamente, o ato de criação, impedem a interpretação
discursiva das duas linguagens, isoladamente, em seus respectivos campos, o
musical e o verbal, considerando que a construção do significante buarqueano é
integrada a uma teia semiótica global e não-global, infragmentável em seu
conjunto literomusical.
4ª) As construções verbo-musicais de Chico nos convidam a tomar parte no
trabalho musical. Esse trabalho, de uma parte é o pensamento; de outra parte, é
a força do material que o encerra. A música é vista, então, como possuidora de
ideologias, como um universo constituído por nós e pela arte. É no seio dessa
imagem de mundo – realidade objetiva –, que Chico Buarque realiza a instância
linguística de enunciação, acessando o inventário mítico-cultural da experiência
humana e o fluxo musical privilegiado de suas recordações.
5ª) Chico Buarque problematiza a condição humana, no que ela tem de mais
inquietante: o ser humano à procura da verdade. Tentando redimensionar sua
presença enquanto Ser pensante e, assim, escapar da experiência nadificadora
de Ser pensado, confere a seu texto significado atemporal e, em sentido estrito,
profunda comunhão com a angústia emergente da contemporaneidade.
Acreditamos ser pertinente destinar as obras Estorvo e Leite Derramado à
classificação de ficção da errância.
6ª) Os projetos, Estorvo e Leite Derramado, destinam-se ao momento de
realização de uma escritura, em ebulição, capaz de reconduzir o homem à
compreensão de si mesmo e do mundo em que se vê inserido. Desse modo, o
universo ficcional se torna, por excelência, o espaço em que se opera, pelo ato
criador, a leitura crítica desse mundo, sempre sustentada pelo vigor da
linguagem.
7ª) O processo de construção da narrativa buarqueana se articula em base na
relação especular. O mundo é apreendido a partir do que o espelho é capaz de
revelar. Uma apreensão da realidade vivencial cujo cerne de observação recai
sobre a existência inautêntica do Homem que, em razão das contingências pósmodernas, tem, por conseguinte, cada vez mais reduzido suas escolhas,
impedindo-o de se aproximar de si mesmo. È, portanto, o flagrante do homem
em estado de incompletude e fragilidade que o projeto do escritor em estudo
registra.
8ª) Chico nos mostra que rememorar o tempo passado e os lugares sentenciados
– de páginas encardidas da nossa História – caracteriza esse gosto inefável por
um tempo sempre e de novo presente, por ser um ontem que se desdobrou no
hoje, em diminuto pedaço de espaço. Espaço que se projeta nas páginas dos
romances de Chico Buarque, a retratar uma poética ficcional da banalidade, que
se instaura, no mundo contemporâneo. Personagens que são aventureiros do
cotidiano, que já não refletem suas esperanças em hipotéticos ideais remotos,
mas se aprazem a viver – na melhor das oportunidades – a vida em sua
imediatez. Apenas o presente e a aceitação do seu destino.
9ª) O projeto ficcional, Leite Derramado, fundamenta sua escritura na
rememoração da experiência vivida. Eulálio d’Assunpção é o narrador
identificado pelo seu objetivo: a busca da verdade. Todavia, esta não deve
emergir, exclusivamente, do momento da criação, mas do confronto discursivosituação. O narrador, um ser aprisionado a um passado marcado por signos
conflituosos, tenta recriar na produção de sua escritura laços afetivos a fim de
se manter enraizado à sua história. A palavra busca ultrapassar os limites
impostos por uma realidade cujo absurdo é seu único significado.
10ª) A denúncia de uma sociedade incapaz de dignificar a existência do
indivíduo constitui-se em outro ponto de fluência no projeto ficcional. O
indivíduo é um ser à margem de um processo social alienante, quadro
responsável pela incomunicabilidade. Reconhecendo a impossibilidade de
identificação com espaço social, o narrador de Estorvo se volta para seu próprio
interior, único reduto capaz de solucionar os seu problemas, num universo onde
real e virtual unem-se formando um amálgama indissolúvel, no qual as
respostas turvam-se diante de olhos submersos na multidão. O espaço social
não é mais palco da epifania. Assim sendo, o herói pós-moderno se consagra
pela beleza da ambivalência. O elemento contraditório que não poderemos
jamais superar dialeticamente. A besta reside no ser e sua alteridade absoluta
está no cerne do próprio fundamento da humanidade – mundos subterrâneos e
monstruosos convivem, mais além, nos transmundos, em outras faces do
mesmo homem.
11ª) Julgando o fazer-literário como processo sustentado pela dialética
escritura-estória, percebemos, nos dois projetos – Estorvo e Leite Derramado –
que o discurso ensimesmado seja também consequência de uma situação
política por que passou o escritor; resquícios de uma trajetória vivida sob o
regime autoritário, o que nos possibilita ler estas produções como estratégia
discursivo-literária. Desse modo, o silêncio e a solidão, por um lado,
questionam a condição humana numa dimensão atemporal, por outro, revelam
certo período histórico, em que ao indivíduo estava vetada qualquer forma de
participação autêntica. O espaço do proibido, ocupado pelas relações de poder,
excluíam a manifestação individual, restando a este, o reduto de uma
consciência fechada, que se operava nas frestas da clandestinidade.
12ª) É importante descobrir o ritmo de uma determinada época. Podemos
caracterizá-lo segundo as especificidades presentes nas obras artísticas.
Trazendo ao nosso propósito esta questão, podemos dizer que a produção
artística buarqueana – em especial, Estorvo – pressupõe um ritmo narrativo que
envolve uma fusão de contrários entre a estabilidade e o movimento, como a
nos dizer que a sociedade atual vive seu momento trágico. Reconhecendo a
brevidade da vida, o personagem assim como o homem, parte para gozá-la ao
máximo. O crescimento e a decadência de cada ser humano e de cada coisa,
social, política, ficcional ou natural, inscrevem-se no ritmo da natureza
universal. É essa narrativa de temporalidade descontínua que encontramos em
nossos dias.
13ª) A relação hermenêutica – existente na memória musical e literária
buarqueana – é circular e se efetua tanto no des-velamento da grafia de sua
escrita – canções e/ou romances – quanto no des-velamento do leitor à sua
própria autobiografia. Esse diálogo intratextual dá-se por uma afirmação ôntica
– identidade do homem consigo mesmo – uma vez que toda linguagem
transcende a essência do texto e percorre a circunscrição do outro. O que se
torna desvelado pela compreensão do leitor ao penetrar no ser que habita esta
obra literomusical, são as manifestações de vestígios do passado em
desdobramento com as moradas do presente que se entrecruzam na grafia do
tempo mnemônico de um eu, presente em cada história.
14ª) Sendo o lirismo um só e inesgotável em suas manifestações, as atitudes
enunciativas só se distinguem em função da imagem do mundo, em constante
transformação. Os aspectos enunciativos pretendem significar o Homem na
relação existencial com o mundo, reivindicando para a arte o importante papel
de fonte produtora de signos. Desse modo, as manifestações artísticas
buarqueanas servem de arcabouço, estrutura permanente, para resgate do
tempo-espaço histórico e mítico do projeto lírico.
15ª) Pautando-nos no pressuposto que a literatura nacional, enquanto espaço
sígnico de permanência da relação existencial do homem com o mundo, não é
uma produção desconexa, que depende da individualidade de seus vários
autores e oscila ao acaso da inventividade de seus protagonistas, que
concluímos: toda literatura buarqueana implica a realização de um projeto
poético, no qual há uma lógica semiótica que estrutura sua manifestação
estética e ideológica.
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