a ética dos gregos e a estrutura dialética do conceito de direito

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JOSÉ MARCOS RODRIGUES VIEIRA
A ÉTICA DOS GREGOS
E
A ESTRUTURA DIALÉTICA
DO CONCEITO DE
DIREITO
Em homenagem ao Prof. Gerson de Brito Melo Boson
SUMÁRIO
PREÂMBULO ....................................................................................................................................................... 2
A ÉTICA RELIGIOSA ......................................................................................................................................... 3
SÓCRATES: NEGAÇÃO DE NEGAÇÕES .................................................................................................... 6
PLATÃO: IDÉIA E ASPIRAÇÃO .................................................................................................................... 14
ARISTÓTELES: REALIDADE E VALOR EM SI.......................................................................................... 25
CONCLUSÃO ..................................................................................................................................................... 53
BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................................................. 59
2
PREÂMBULO
Segundo a concepção grega, a Ética compreende todos os padrões de
comportamento, e
assim o direito, a moral e o costume. A moral romana dela
divorciou-se, como se fosse marcadamente distinta.
Na Ética grega estão, genericamente, os critérios de julgamento dos atos
humanos. São dela as idéias de “bom” e “mau”, “justo” e “injusto”, “permitido” e
“proibido”, presentes no homem e na sociedade: vista sob este aspecto tem-se a “éticafenômeno”.
–I–
Ao lado da “ética-fenômeno”, enfrenta o homem a explicação dos
comportamentos, sistemática, sob observação e especulação. Esta pode ser chamada a
“ética-ciência”.
Advertindo-se que a ciência não se reduz e não se confina a seu
conteúdo, tem-se que a proposição sobre existência das normas não pertence ao
sistema lógico em que estas mesmas se encontram.
– II –
Pela vez primeira, o não observar-se a necessariedade desta última
asserção gerou a ausência de distinção entre a idéia mais complexa de justiça e a mais
simples e primitiva da divindade. É que a timidez primitiva emprestava um valor
exacerbado aos mitos, à poesia, às suposições, às quimeras, às falácias e, sobretudo, ao
ente mais sólido – a religião – certamente a mais antiga de todas as formas de
regramento de conduta.
3
O evolver do pensamento humano assinalou a passagem gradativa da
metafísica religiosa para a metafísica empírica,
contrapondo-se à especulação, a
observação. Primeira síntese dessa transição, à parte todos os complementos futuros, o
“idealismo” platônico, ligado à religião, daria lugar ao realismo aristotélico, ligado à
ciência.
Examinar essas duas filosofias, confrontá-las, conhecendo-lhes as
origens e as conseqüências, será nada mais nada menos do que fazer uma exposição
de todas as correntes, todos os sistemas e sub-sistemas filosóficos. Extremos de tal
bifurcação, colocar-se-á a Escolástica, ao lado de Platão, na metafísica religiosa: e o
Positivismo, ao lado de
eqüidistante
Aristóteles, na metafísica empírica. Termo intercalar,
e isolado, seria a metafísica pura, noutras palavras,
Kant: “se
se
representasse a evolução mental da humanidade por uma linha, em um de cujos
extremos se encontra a definida predominância de idéia religiosa, e no outro o da idéia
positiva, o solitário de königsberg estaria no centro”1.
A ÉTICA RELIGIOSA
É verdadeiro que o marco inicial da idéia jus-filosófica remonta à
veemente reação à fertilidade das fantasias da metafísica religiosa: as escolas jônica,
itálica e eleática tinham-se excluído mutuamente.
–I–
Em ligeiro retrospecto, pode-se afirmar que a primeira expansão do
pensamento grego deu-se em Mileto, um empório, uma cosmópolis que conciliou
tendências do Oriente e do Ocidente. Fosse outro povo, talvez sucumbisse às
1
BUNGE , Carlos Octávio. “El Derecho”. 7.ed. Buenos Aires: Espasa Calpe S/A, 1934, p. 21. Ensaio de uma
Teoria Geral, Livro Primeiro – As Escolas de Ética, Parágrafo Segundo – O Positivismo Moderno e a
Informação Científica.
4
influências de ordem variada, mas o grego utilizou as influências exógenas para
construir a ciência com qualidades próprias.
A primeira indagação da escola jônica, fundada por Tales, é, com seus
companheiros Anaximenes e Anaximandro, de ordem cosmológica e cosmogônica, a
matéria e a evolução da matéria, a natureza em seu aspecto estático; a origem do
cosmos (de onde vêm o mundo e os seres?), o modo de formação do mundo. Atribuem
a um princípio material único a origem de todas as coisas: a água, para todos os seres
vivos, segundo Tales. Não há apelo a qualquer elemento extraterreno e a explicação,
ainda não filosófica, do universo é pela razão. A sua vez, Anaximandro vê na origem,
o caos: desconhece-se o porquê de sua afirmação, já que só restaram fragmentos de
sua obra. Em impulso de regresso, Anaximenes vê no ar, a origem de todas as coisas.
Considerados em conjunto, Tales, Anaximandro e Anaximenes são
materialistas. E a natureza é ainda estudada apenas no estático: é só de Heráclito, em
primeiro lugar, a preocupação com “o quê vamos ser?”, o “devenir”. As coisas não
são, estão sendo. É genial a observação, apenas não indica as causas, a finalidade, o
móvel dessa mudança. De outro lado, expõe a harmonia dos contrários, novamente
sem indicação da causa. A moral de Heráclito esbarra no absoluto, onde não há nem
bem nem mal, pois, para que haja um, há de existir o outro a priori. Já de Heráclito, em
sua política, assalta a divisão em classes sociais, os mesmos opostos em harmonia no
conjunto. (Para Hegel, que sentiu sua influência — o que também sucedeu com
Leibnitz — é ele o mais profundo dos pré-socráticos).
Empédocles não explica a origem das coisas por um elemento único, mas
por quatro entidades (ar, água, terra e fogo), de que as outras são combinações.
Intuição que ditaria as bases da química.
Anaxágoras, fugindo à explicação das coisas pela razão ou por princípios
materiais, entrevê o sobrenatural, o “nous”, o espírito, criador, organizador. Mereceria
o elogio de Aristóteles.
5
– II –
A escola itálica foi funda por Pitágoras de Samos, à influência recebida
em suas viagens. Fê-lo em Cortona, na parte da Itália chamada “Grande Grécia”, já
que a tirania de Polícrates o impedisse de doutrinar em Samos, advindo daí o nome da
escola. Certo que tenha visto a possibilidade de tradução dos fenômenos em
expressões numéricas (teoria dos números), o maior mérito, por sobre a escola jônica,
é o de ter alcançado a filosofia moral, matemática e idealista. Pouco se conhece de
seus seguidores, na obediência cega do “ele disse”.
– III –
A escola eleática encerra o embrião de toda a alta metafísica. Fundada
por Xenófanes, opõe-se ao argumento de Heráclito, com Parmênides, para quem as
coisas são fenômenos ou aparências, enquanto a realidade é o nômeno. Parmênides
distinguia, assim, duas ordens de conhecimento, o sensível e o racional, sendo a
imagem a representação sensível das coisas e a idéia a representação intelectual. O
ser é tudo que existe, mas, na realidade, somente a idéia de ser, porque as imagens são
ilusões. Em última análise, só há a idéia.
Das disputas entre os metafísicos de Eléa e os físicos da Jônia, nasceu a
dúvida. E uma filosofia cética, a sofística, pela qual se podia
sustentar,
indiferentemente, o pró e o contra, por isso que todas as idéias são defensáveis.
– IV –
Verdade seja que a dúvida, exatamente, precedeu aos sofistas, sua
concepção é a negação categórica: opostos tanto à religião quanto à metafísica, para
6
eles não há o que não seja relativo ao homem, inexistente o absoluto. Tratam do direito
e da moral, abandonando a verdade e a virtude.
A ética da filosofia grega historicamente se remete à crítica às negações
de PROTÁGORAS e GÓRGIAS. Pelo menos foram os sofistas que exerceram o
primeiro momento de emancipação, ultrapassando a crença dogmática e abrindo a
porta à especulação, ao conhecimento científico. É o que se poderia dizer
“benemerência indireta”, criando a precaução e a prevenção contra dois dogmatismos,
o jônico e o itálico.
Trasímaco, de Calcedônia, viu na justiça apenas o interesse do mais
forte.
Os sofistas não se interessam pelo cosmos, sua origem e evolução, mas
pelo homem e a sociedade. Inspiram uma “República” e, consequentemente, uma
“Política”. “Bem” e “Verdade” seriam simples criações da mente. As coisas são para o
homem segundo as suas sensações , do que resulta serem as idéias sempre relativas..
Nada existe. Se existe, não se conhece. Se existe e se conhece, não se pode expressar.
Ainda, o homem é ditoso na sua maldade, na proporção de que possa praticar o mal
impunemente (Trasímaco).
Suas negações transformar-se-iam em ilusões, como as que eles
próprios(sofistas) assinalavam. O primeiro degrau da filosofia grega é a negação das
negações.
SÓCRATES: NEGAÇÃO DE NEGAÇÕES
Quem quer que se detenha sobre a figura e o pensamento de Sócrates
perceberá o nebuloso de sua obra não escrita e o desajeitado de sua própria pessoa,
apresentadas contraditoriamente pela crítica.
7
Desde quando se dispôs a estudar a filosofia, Sócrates combateu os
sofistas (e é, para alguns, o último sofista, ou, como para outros, um sofista
consumado). Combateu os sofistas, usando de processos semelhantes. Fazia-se de
aprendiz, de estranho às matérias, sutilmente desferindo-lhes perguntas, capciosas.
Insensivelmente conduzia-os a penitenciar-se de seus erros e a admitir a incongruência
de suas assertivas. O método socrático é dialético, desenvolve-se em dialógos e se
baseia na contradição do adversário _____ sofístico, por conseguinte. Celebrizou-se a
“ironia socrática”, consistente na indagação aparentemente ignorante de uma coisa. Já
a “maiêutica” (referindo-se à profissão de sua mãe, Sócrates fazia a parturiência da
idéia) era o processo para instruir seus discípulos, como Platão, Alcebíades e Aristipo,
através de perguntas fazendo com que eles próprios analisassem seus pensamentos. E,
de pergunta em pergunta, provava que a virtude é passível de aprendizado (por meio
do discurso, da dialética). Seria a virtude a prática das qualidades que extremam o
homem como animal racional. O homem é relativamente mau ( e não precisamente),
uma vez que, conheça o bem e o mal, agirá de outro modo. Tomou como base de sua
doutrina a máxima “conhece-te a ti mesmo”, do oráculo de Delfos. Não renunciou à
vida (e a sua moral, por isso, não se identifica com a da Índia e da China), mas
pretende a reforma das massas.
–I–
Tudo o que se sabe sobre ele está nos testemunhos de Platão e
Xenofonte, que o enaltecem, e de Aristófanes, que o escarnece. É do cotejo entre essas
duas versões que se lhe extrai a estatura e a fisionomia.
A “Defesa de Sócrates” revela, no “Exórdio” , admirável síntese sobre a
justiça, como virtude:
“......Venho ao tribunal pela primeira vez aos setenta anos
de idade; sinto-me, assim, completamente estrangeiro à
linguagem do local. Se eu fosse de fato um estrangeiro,
sem dúvida me desculparíeis o sotaque e o linguajar de
8
minha criação; peço-vos nesta ocasião a mesma tolerância,
que é de justiça a meu ver, para minha linguagem — que
poderia ser talvez pior, talvez melhor — e que examineis
com atenção se o que digo é justo ou não. Nisso reside o
mérito de um juiz; o de um orador, em dizer a verdade 2.
Seu fim é de todos conhecido: bebeu a cicuta, cumprindo pena de
morte. Acusado de desordeiro, corruptor e introdutor de deuses, sua vida foi
paradoxal; moralista (ao que Aristóteles remete toda a filosofia socrática), não teria
praticado a moral ...
Sócrates recomendava a temperança e a moderação em tudo; fundava a
independência no desinteresse e no desapego (deveres para conosco); deveres para
com os outros seriam a justiça, a observância da lei.
À acusação de Meleto, respondeu Sócrates que, se todos melhoram a
mocidade, menos Sócrates, sobejam os benfeitores. E que, se aos cavalos quem os
sabe melhorar é apenas um ou são poucos, os adestradores, e a maioria, quando trata
de cavalos e os monta, vicia-os. Que, se há cidadãos prestimosos e cidadãos daninhos,
é melhor habitar entre os primeiros. Que não haverá quem queira receber de seus
companheiros antes danos que benefícios. Que se Sócrates faz o mal — e o faça por
querer — então deveria aguardar danos e querê-los para si mesmo, pois os maus
sempre acabam fazendo algum mal. Que, então, ou Sócrates não corrompe, ou, se o
faz, o faz sem querer. Que, por isso, não sobejam os benfeitores, nem Meleto se
preocupa em encontrá-los.
Para Sócrates, o caminho da virtude e da felicidade é o conhecimento de
si, e a força de dominar as próprias paixões — no que consiste a coragem, o valor
moral.
2
PLATÃO. “defesa de Sócrates”, in “Os Pensadores”. Abril Cultural, tradução de Jaime Bruna, dezembro de
1972, p.11.
9
Responde ainda Sócrates a Meleto, que, das duas, uma: ou não creria em
deus algum, ou em deuses diversos, diferentes. Que quem crê em coisas humanas, crê
no homem. E, se em poderes demoníacos, também em demônios. Que quem crê em
filhos de deuses (demônios) admite os deuses.
Ora, a missão de Sócrates, teve-a ele do oráculo, na resposta de que não
havia ninguém mais sábio do que Sócrates. Se não cresse nos deuses, não levaria a
sério a assertiva. Teve de discutir com os sábios e provar-lhes a inferioridade. Foi ter
aos políticos, aos artesões e aos poetas, os senhores de alguma sabedoria.
Percebia que, antes de considerar as possibilidades de vida e morte
(o êxito sofístico), deve o homem verificar apenas esse aspecto: se os seus atos são
justos ou injustos, se revelam brio ou covardia. Temer a morte seria o mesmo que
supor-se sábio quem não o é, supondo saber o que não sabe. Na alternativa com males
conhecidos, não se deve temer a prática do desconhecido, apenas por não se saber se
será um bem. Dos haveres, pois, não vem a virtude, mas desta vêm todos os outros
bens.
Sócrates baseia a virtude na devoção e na piedade. De outro lado
identifica o “bom” ao “belo”. Crê na existência de um Deus superior, autor e
conservador do universo, ao lado de deuses subalternos, seus ministros, igualmente
invisíveis em si e somente visíveis em suas obras. (A alma humana participa da
natureza divina e é imortal). Admite a consciência, voz interior que julga as ações
humanas. Identifica o saber à virtude. Saber é justamente o conhecimento do que se
deve fazer e perfeito sábio é o que não ignora a sua ignorância (o que, para alguns
críticos, conduz ao ceticismo).
Quanto à Política, Sócrates distingue a realeza (regida por leis) da tirania
(capricho do governante). Admite a aristocracia ou o governo da república pelos
amigos das leis; a plutocracia – governo dos ricos; a democracia – poder pertencente a
todo o povo.
10
– II –
O maior mérito de Sócrates é a descoberta do valor ético da introspecção,
a moral reflexiva. A dialética vinha, assim, tomar o lugar da revelação religiosa.
A virtude, ou Sabedoria, produz o valor (coragem) e a temperança (domínio de si
mesmo). Questione-se que ele ainda usou a inspiração divina. Mas a divindade para
Sócrates já era adiantada, muito distante da que se via nas obras épicas de Homero ou
na poesia de Hesíodo. E, na discussão com Trasímaco, na “República” de Platão,
demonstra que a concepção de justiça do sofista está “de cabeça para baixo”.
Sócrates procurou desvencilhar-se do subjetivismo e do relativismo dos
sofistas, para tanto criando um sistema ético substantivo à base de teoria de valores de
verificação objetiva. Somente seu utilitarismo, feito móvel da virtude, subtrai na
prática a mesma beleza dos dados estruturais do sistema ético. Platão, na “República”,
transmitiria, como de Sócrates, a sua teoria da justiça. Sócrates é o porta-voz dos
diálogos platônicos e não se sabe até que ponto o discípulo está a reproduzir-lhe o
pensamento, somente expresso nas discussões orais com os atenienses.
– III –
Se os sofistas confundiam as idéias de “justo” e “legal”, já Sócrates fala
em leis escritas e não escritas (ou universais). Justiça, para Sócrates, não é só a
obediência às leis, senão que também o sentimento
do justo. Legalidade e
Superlegalidade, diga-se agora. Imaginava como leis não escritas as que tem vigor em
todos os países, que trazem o castigo da transgressão e que partem de um legislador
superior a toda a sabedoria humana.
Sobre a origem do direito, perguntou-se a Sócrates se os deuses erigem
em leis as coisas justas, ou as diferentes do justo. Respondeu que os deuses só podem
querer as coisas justas. Segundo os “Memoráveis” de Xenofonte, Sócrates, aliás,
11
parece não admitir que o justo coincida por exato com a vontade dos deuses,
obrigados, do mesmo passo, a obedecê-la.
É profunda a convicção moral de Sócrates. O que é mau é porque não se
sabe. A moral é perfeitamente apreensível, pode ser ensinada.
É
Sócrates
o
descobridor
dos
“conceitos”.
Ele
alcança
este
descobrimento aplicando aos preceitos morais o método dos geômetras. Para estes, as
figuras são as formas simples de todas as formas sensíveis dos objetos. Sócrates faria o
mesmo como mundo moral. Reduz as ações e formas de conduta a um número certo de
virtudes: a justiça, a moderação, a temperança, a valentia. Dizer “o que é” é para os
gregos o encontro da razão, a razão suficiente, que aperceba todo o objeto. o “logos”—
que, no latim é o verbum. O que, com seu método, faz Sócrates é pedir aos atenienses
o “logos, a razão, a “ratio essendi” das coisas. Exatamente o que hoje se chama
“conhecimento”, ou “conceito”.
Quanto à justiça, Sócrates buscava o exemplo, a autenticidade. Queria
exprimi-la por atos, por demais prezá-la. Revelava, de si e originariamente, em todos
os lugares e situações, a equidade, a benevolência, a obediência, salvo às ordens
ilegais. “Chamado por Meleto perante os tribunais, longe de seguir o costume dos
acusados, que, malgrado o proibirem as leis, tomam da palavra para ganhar o favor
dos juizes, adulá-los e dirigir-lhes súplicas, e assim muitas vezes se fazem absolver,
não quis de tal guisa infringir as leis: posto facílimo lhe fora lograr a absolvição,
preferiu morrer dentro da lei a transgredi-la pra viver”3.
É expressiva a conversa de Sócrates com Hípias de Eléia. Ouvia Hípias
dizer Sócrates da dificuldade em encontrar-se quem ensine a justiça, quando
interrompeu sua exposição para asseverar que não passava de repetição das mesmas
lições. Dito por Hípias que sempre procuraria dizer coisas novas sobre temas mesmo
3
XENOFONTE. “Memoráveis”, trad. de Líbero Rangel de Andrade, através da versão francesa de Eugène
Talbot. São Paulo: Abril Cultural ,1972. Livro IV, Cap. IV , p. 151.
12
revisitados, indaga o mestre de quantas maneiras poderia responder a quantas letras há
na palavra Sócrates. O que prova que o contraditor não o faria sempre. Para Hípias,
apesar disso, a justiça lhe renderia ensejo de inovar. Mas não só de inovar, senão que
de fazê-lo sem merecer contradita. Diz, então, Sócrates, que a descoberta é grande e
que por certo faria os juízes deixarem de dividir seus votos, os cidadãos de contestar
por amor aos seus direitos, de processar-se uns aos outros, etc. Ao pedido de Sócrates
de que lhe revelasse o invento, Hípias obtempera que nunca se ouviu a opinião de
Sócrates, que apenas interroga e refuta, não expõe. Sócrates deixa claro que define a
justiça por atos antes que por palavras. Diz, por fim, que justo é o que é legal. Que é
justo obedecer às leis e injusto desobedecê-las. Hípias convém, mas pretende a não
identificação, porque possam as leis ser derrogadas. Diz, então, o mestre que censurar
as leis, porque possam ser derrogadas, seria o mesmo que condenar-se os soldados
pelos atos de guerra porque possa ao cabo concluir-se a paz. Que o Estado onde os
cidadãos são mais submissos às leis é também o mais venturoso na paz e invencível na
guerra. Que a harmonia social que se deseja não é a que imponha tenham todos os
mesmos gostos, as mesmas preferências, mas a que decorra da obediência de todos às
leis. Que os inimigos preferirão negociar o armistício com o Estado cujos cidadãos
tenham o mais fundo respeito às leis. Que daquele que obedece às leis se quer ser tanto
mais amigo quanto menos inimigo. Que a obediência às leis é o meio mais certo de
não ser vencido nos tribunais e ganhar os processos. Que então o que é legal é justo e o
que é justo é legal. Que as leis não escritas existem. Indagado Hípias sobre quem as
estabeleça, di-lo que os deuses, já que nem todos os povos vizinhos falam a mesma
língua, além de que, em todo e qualquer povo, o respeito aos deuses seria a primeira
lei. Sócrates pergunta se o respeito aos pais não é, também, uma lei universal,. Hípias
convém, Sócrates indaga ao contraditor se a proibição de promiscuidade de pais com
filhos não é também lei universal. Hípias não a vê emanada dos deuses, já que alguns
povos a transgridem. A resposta de Sócrates é a de que violações há, e muitas outras.
Mas a das leis estatuídas pelos deuses acarreta uma punição fatal, ao passo que a das
leis humanas, pela fuga ou pela violência pode-se forrar de pena. A proibição de
procriar os pais com os filhos é lei da natureza e carrega o castigo da doença dos
frutos. Indaga, por último, Sócrates se o reconhecimento aos benfeitores não é também
13
uma lei universal. E, se há transgressões, como adverte Hípias, se também a punição
não é inexorável, tanto que a ingratidão provoca o ódio. Admite então Hípias que as
leis que trazem consigo a punição dos que as infringem são de origem divina. Que,
então, os deuses só podem estabelecer leis justas. Arremata o diálogo Sócrates, em que
os deuses, portanto, querem que o justo seja o mesmo que o legal.
Para Sócrates, a cada cidadão compete um dever no Estado, o único
dever para o qual, de nascimento, revela disposição. É a virtude da ordem e da
harmonia, não só no mundo interior, mas também no social, na vida privada e nos
negócios públicos. Cada um tem de si a moral. Fazendo-o raciocinar, ele o descobre.
Saber é ser bom. Ser bom é ser justo. A moral, e nela a justiça, é a sabedoria.
Instrumento lógico, a dialética demonstra não se confundirem a ciência e seu
conteúdo.
Só que o interesse primordial da filosofia socrática era a moral. Diria
Aristóteles que ele viu a moral, não o conjunto da natureza. Ou, no máximo, que viu a
natureza sempre pelo lado moral e através da ética.
Não é de estranhar-se que a filosofia grega se estude antes e depois de
Sócrates. É ele o divisor de águas. Bastou-lhe, ironicamente, a dialética, tão exercitada
pelos sofistas. Mas ele descia fundo à razão das coisas. Interessava-lhe demonstrar, o
que fez, o valor da introspecção. Valor ético. A virtude, una, malgrado sua
diversidade, é a busca daquele valor. Sua filosofia moral, avessa à política, exatamente
exauriu os princípios para a atuação política, os objetivos ético-políticos. O primeiro
filósofo, substituindo a revelação pela introspecção, assentou, com anterioridade,
noções ou “conceitos”, definitivos, absolutos. A explicação dos problemas do universo
e o estabelecimento de critérios éticos que lhe estejam à base foram e fizeram a
depuração das religiões. Como se deu na Grécia, o temporal e o espiritual uniam-se
originariamente, sendo a pólis uma comunidade religiosa e política ao mesmo tempo.
Como ocorre com todos os fenômenos históricos, as religiões naturais, da revelação,
deram lugar a religiões culturais, cuja depuração e idealização engendrou os conceitos
14
filosóficos. Sócrates estabelece a troca da idéia teológica do Deus criador, por outra, a
do pensamento criador. Deixou de lado as duas concepções antecedentes, a física, dos
jônicos, a matemática, dos pitagóricos, sob o uso de um processo introspectivo. Pela
dialética, concretou as idéias dispersas e multifárias, reduzindo-as a elementos
precisos.
Sua profunda convicção ética, aliás moral, e uma primeira idéia, em troca
do desatino anterior, a idéia do “conceito”, toma-a o divino Platão.
PLATÃO: IDÉIA E ASPIRAÇÃO
À parte os cínicos e os cirenaicos –— aqueles preocupados
exclusivamente com a moral, caindo num rigorismo exagerado de que sairiam, depois,
os estóicos; estes, os cirenaicos, inteiramente voltados à metafísica, em indevida
tolerância duas exacerbações parciais do pensamento socrático — o verdadeiro
discípulo foi PLATÃO. Em todas as suas obras, o fundador da Academia expõe o
pensamento do mestre, que se faz personagem de seus Diálogos.
Deleitava-se Platão na dialética de Sócrates. Guiado pelo velho tavão
(nome que Sócrates dava a si mesmo), cresceu de curiosidade, atingindo a análise.
Pela beleza literária de suas obras, vieram-nas na integralidade.
–I–
Para Platão, o princípio intelectual, ou das idéias puras, é o fundamento e
a essência de todas as coisas. As formas da sensibilidade não são mais que simples
aparências. O ajustamento da conduta à idéia pura atrai a divindade, representando a
mais bela e nobre virtude. Amor e Bem se confundem num único e superior ideal
humano. Há quatro graus ou manifestações do Amor: primeiro, o mais baixo, que se
15
devota a um corpo harmonioso; segundo, às formas sensíveis, em geral terceiro, à
beleza interior, à beleza da alma de alguém; quarto, o mais alto, à Sabedoria, ao Ser
em geral, à idéia universal e primeira. A forma sensível do Bom é o Belo.
Eis a conexão grega de ético e estético, manifesta na arte, e no “amor platônico”.
Distingue três seres intelectuais, os “eidos”, os “archetypos” e o
“nomenom”. As “idéias” têm, para Platão, a importância que a filosofia moderna
dedica ao que chama de “leis”, correspondendo às “categorias” de Aristóteles. Os três
entes ou entidades intelectuais resumem as generalidades possíveis. As idéias não são
meras representações intelectuais, não são formas abstratas do pensamento, nem
puros conceitos lógicos, mas o real, o que existe fora das sensações, o nômeno,
próprias da razão e insitas à alma, base universal do pensamento. Os seres naturais, os
indivíduos, o particular, são “fenômenos”, são reproduções ou aparência dos
arquétipos, os “nômenos” ou realidades. O fenomenal depende do tempo e do espaço,
é contigente. O nomênico é absoluto e não relativo. No sensível, tem-se o símbolo. No
inteligível, tem-se o invariável, a verdade.
Platão amplia o uso do “conceito”, que recebe de Sócrates. Torna-o meio
para o conhecimento em geral. E soma à idéia de conceito, a idéia de “ser”, a de
Parmênides. É este o arcabouço de sua teoria das idéias. “O que Sócrates se ocupasse
dos objetos éticos e não da natureza em geral , buscando naqueles objetos éticos o que
têm de geral, e encaminhando sua reflexão principalmente às definições, induziu
Platão, que o seguia, a opinar que a definição tinha como objeto algo distinto do
sensível”. É aqui a união entre o método socrático de buscar o “logos”, com a idéia
parmenídica de que o ser não é o sensível; e essa união dá por resultado a metafísica
de Platão, que culmina em sua famosa teoria das idéias...” 4.
Abandonando-se o
conhecimento do
mundo externo, pois
os
conhecimentos entre fenômenos são relativos, encontrar-se-á um mundo sem
4
MORENTE, Manuel García, citando a Aristóteles, in “Lecciones Preliminares de Filosofía”, Universidade
Nacional de Tucuman, Facultad de Filosofia y Letras, Biblioteca Filosófica, Editaorial Losada, S.A. Tercera
Edición. Buenos Aires: Imprenta López – Peru, 666, 1943. p. 89-90.
16
contingências, de leis imutáveis. O conhecimento, portanto, é o elevar-se, através da
dialética, do discurso, da discussão, do terreno das teses em conflito, à intuição do
mundo supra-sensível, onde as idéias se fazem as unidades sintéticas. Idéias que,
ainda, constituem unidade ontológica da significação, da consistência, da essência,
enquanto, por outro lado, unidade existencial.
O homem procura as coisas que julga boas: o amor, a glória. Uma vez
alcançadas, verifica a virtude, no sentido humano, como mera ilusão. Assim só há uma
coisa verdadeira que deve ser perseguida, a divindade, a idéia transcendental. Não
obstante o “Theos” platônico tenha diversos modos de ser concebido, no fundo ele se
amolda à nossa idéia de Deus: é a idéia perfeita, pensamento de pensamento, abstração
de abstração. E essa abstração de abstração é real.
– II –
Reconhece Platão três partes na alma: a que conhece (razão), a que sente
(coração), a que deseja (apetite). A tais partes correspondem três virtudes principais: a
Sabedoria, o Valor e a Temperança. As virtudes existem em separado, mas se
relacionam. Daí a Quarta e última virtude, equilíbrio e harmonia das outras três: a
Justiça.
Sobre a divisão da alma em uma parte racional e uma irracional, diria
Aristóteles: Sócrates “tinha costume de considerar as virtudes como ciências, coisa que
não é possível; porque todas as ciências supõem conhecimento, e este se encontra na
parte inteligível da alma. De modo que todas as virtudes, segundo ele, se encontram na
parte racional da alma. O resultado é que ao considerar as virtudes como ciências
deixa de lado a parte irracional da alma, e portanto, não considera a paixão e o
hábito ... Logo veio Platão, que dividiu a alma em duas partes; racional e irracional, e
teve razão ao proceder assim, assinalando virtudes adequadas a cada uma delas. Até
aqui esteve no certo; a partir deste ponto desviou-se; porque mesclou o estudo da
17
virtude com o do bem, o qual não é justo, por não ser adequado. Porque estudando a
verdade das coisas não devia haver considerado também a virtude por não existir nada
comum entre ambos”5.
Todas as idéias, para Platão, derivam de uma idéia superior a todas elas,
a idéia do bem. Não há dúvida de que se recordou das lições de Sócrates. Tanto assim
que coloca toda a sua metafísica, toda sua ontologia, noutras palavras toda a sua
filosofia a serviço dessa idéia. E, sendo a idéia do bem a dominante, também no
mundo sensível, o Estado, que assume o papel diretor, há de confinar-se o mais
possível com a idéia do bem.
“A República” e “As Leis” consomem grande parte de seu trabalho, no
escopo de dar a conhecer o Estado ideal.
– III –
Era Platão um aristocrata e tinha viva convicção da desigualdade natural
dos homens. Os homens de ouro foi quem ele encontrou como governantes da
comunidade ideal: os filósofos, porque, enquanto a filosofia e o poder governamental
não se unirem, o mal não terá fim no Estado. Eis, como a crítica observa, o erro da
teoria política platônica, sabido que os filósofos mandam mal.
Cada classe deve limitar-se estreitamente a suas funções específicas.
Cuidar do que é seu e não intrometer-se é agir com justiça. A justiça platônica é a
virtude de saber escolher e bem realizar uma função na sociedade.
Platão fez ética política e metafísica política, porque a tese principal é a
do Estado perfeito. A Justiça é virtude individual e também virtude social. Como
virtude individual, é ela o elemento unificador, o princípio coordenador e diretor, no
5
ARISTÓTELES. “Grande Ética”. Buenos Aires: Editorial Tor, 1942. p. 6-7.
18
amplo sentido socrático de harmonia e equilíbrio. Como virtude social, é ela o
princípio diretor entre as classes que compõem a cidade, a pólis. Tais classes são
também três, como as partes da alma: os filósofos, os guerreiros e os artífices. O
Estado ideal é o moralmente melhor.
É de Platão e sua moral acadêmica o evolver intelectual e ético do
indivíduo diante das autoridades constituídas, religiosas e políticas. O Estado que “A
República” revela é muito mais executivo, porque há em Platão um como desdém pela
lei. O governo é da inteligência livre dos melhores cidadãos. Concebeu a Justiça sem
lei. O direito – está no seu “O Estadista” – sobretudo o legislado, corresponde a
abstração e simplificação extrema, sem atenção às diferenças da personalidade
humana. Platão poderia, portanto, ser a matriz do cristianismo. O Amor e o Bem se
confundem no ideal. Platão dá fundamentos filosóficos ao conceito de valor ético do
amor universal. Na teoria de Platão o Amor se ajunta à Inteligência, cuja parte abstrata
e metafísica é a própria virtude socrática.
A aproximação do moral ao intelectivo, a identificação entre ética e
sabedoria, como se a sabedoria engendrasse invariavelmente a virtude, pode ser o erro
de Sócrates e Platão. Apesar de Platão ter sentido a nostalgia do absoluto, vale-se do
valor ético da introspecção, que vinha de Sócrates. A teoria das idéias não dá a
explicação das relações, da participação, da “metaxis” do fenômeno em relação ao
nômeno. Foi o que faria ver Aristóteles, que também refuta a idéia de hierarquia, que
Platão admite entre as idéias, quando as idéias mesmas são só o que há,
platonicamente.
Platão apresentou um realismo das idéias. Do mesmo modo como seu
sistema filosófico não poderia ter por objeto a virtude, porque o sujeito não põe a coisa
que, a seu turno, existe em si e por si, também não consentiria a passagem do
fenomênico, porque visto à maneira de Heráclito, ao nomênico, de Parmênides.
Ausente a explicação das participações daquele neste, o necessário à coerência lógica
19
seria admitir-se um número infinito de idéias, para assim preencher-se, sem
dificuldade, a busca do espaço vedado.
Analise-se, agora, a República, notam-se os seguintes característicos: a
dominância da ciência no ensino da virtude; a coincidência entre a educação e a
política; a intervenção do Estado nos negócios particulares; o desdém pelas leis e pela
liberdade; a aristocracia; o feminismo; a divisão da sociedade em classes; o
comunismo; a religião como meio de educação; o organicismo, a feição patriarcal.
Como o Estado não era, entre os antigos gregos, comunidade apenas política, mas
também religiosa, as questões morais últimas estariam estreitamente ligadas à Política.
Para Platão, a Política é ciência e é arte. Não era novidade, desde Sócrates, o moral
superar as demais indagações: o Estado alcança, em Platão, o primeiro plano dos
temas filosóficos. Mas não se lhe assalta a pergunta “que é o Estado?”, porque não se
compreendia, entre os gregos, comunidade de vida a ele estranha. Indagação outra, a
de “como deve criar-se o Estado?” é que ocupou o filósofo e, como derivado da
ciência e da arte, Platão supôs o Estado ideal, a Utopia de Platão, dir-se-ia. Só no
último decênio de sua vida, ao fracasso da tentativa de estabelecimento da comunidade
ideal em Siracusa, Platão orienta de novo seu pensamento, de modo a admitir que a
discricionariedade seja limitada pela lei. Seu Estado ideal requereria homens que
raramente se encontram. A alternativa prática seria o “Estado legal”, o que se vê na
última obra, “As Leis”.
Preocupa-se, assim, Platão, com as questões políticas. No “Político”,
encontra-se, à maneira de exemplo de suas preocupações, a discussão da forma de
governo: “... A forma correta de governo é a de apenas um, de dois, ou de quando
muito alguns, se é que esta forma correta possa realizar-se ... E quer governem a favor
ou contra a vontade do povo; quer se inspirem ou não em leis escritas; quer sejam ricos
ou pobres, é necessário considerá-los chefes, de acordo com o nosso atual ponto de
vista, desde que governem competentemente por qualquer forma de autoridade que
seja ... Entre todas as constituições, esta será absoluta e unicamente a exata, na qual
os chefes seriam possuidores da ciência verdadeira e não de um simulacro de ciência; e
20
esses chefes, quer se apoiem ou não em leis, quer sejam desejados ou apenas
suportados, pobres ou ricos, nada disso assume a menor importância na apreciação
desta norma exata ... É claro que, de certo modo, a legislação é função real; entretanto
o mais importante não é dar força às leis, mas ao homem real, dotado de prudência ...
É que a lei jamais seria capaz de estabelecer , ao mesmo tempo, o melhor e o mais
justo para todos, de modo a ordenar as prescrições mais convenientes. A diversidade
que há entre os homens e as ações, e por assim dizer, a permanente instabilidade das
coisas humanas, não admite em nenhuma arte, e em assunto algum, um absoluto que
valha para todos os casos e para todos os tempos ... Ora, em suma, é precisamente este
absoluto que a lei procura ... para a qual ... não parece necessário considerar os
pormenores dos casos individuais, formulando, para cada pessoa, prescrições
especiais; ao contrário, ... é necessário ver as coisas de um modo geral, estabelecendo,
para a maioria dos casos e das pessoas, preceitos que sejam úteis para o corpo em
geral ... Jamais seria capaz, promulgando decretos gerais, de aplicar, a cada indivíduo,
a regra exata que lhe convém ... Mas quando essas leis, escritas ou não, editadas para
um ou outro desses rebanhos humanos que, repartidos em cidades, aí vivem sob as leis
de seus respectivos legisladores, se referem ao que é justo ou injusto, e o legislador
competente ou outro que lhe seja igual, volta atrás, deve-se interditá-lo de modificar
essas primeiras prescrições? Tal interdição não seria, nesse caso, pelo menos tão
ridícula quanto a primeira? ... Seria melhor dizer que o chefe pode ... lançar mão da
persuasão ... livrar-se delas (as leis escritas), desde que governe utilmente ... É nisto
que reside a verdadeira fórmula de uma administração correta da cidade, segundo a
qual o homem sábio e bom administrará os interesses de seu povo ... Da mesma forma
como o piloto, longe de escrever um código, mas tendo sempre sua atenção voltada
para o bem do navio e seus marinheiros, estabelece a sua ciência como lei e salva tudo
o que com ele navega, assim também, de igual modo, os chefes capazes de praticar
esse método realizarão a constituição verdadeira, fazendo de sua arte uma força mais
poderosa do que as leis ... Os chefes sensatos podem fazer tudo, sem risco de erro,
desde que observem esta única e grande regra: distribuir em todas as ocasiões, entre
21
todos os cidadãos, uma justiça perfeita, penetrada de razão e ciência, conseguindo não
somente preservá-la, mas também, na medida do possível, torná-la melhor ...” 6
– IV –
Platão, como visto, estabelece identificação entre moral e política, cujo
fim não é outro senão o de educar os cidadãos para a sabedoria, para a virtude perfeita,
tanto que, se o fim do homem é viver conforme a virtude, não é diferente o fim do
Estado, por ele simplesmente visto como um homem maior. Os cidadãos, partes do
corpo, subordinam-se inteiramente ao fim da cidade. Para a cidade fica, portanto, o
direito pleno sobre o que respeita ao cidadão. É por isso que, “A República”, preconiza
a destruição da família: os filhos não devem conhecer os pais; o amor (curiosa
contradição no filósofo do amor) dos pais pelos filhos deve ser banido da República.
A sua república ideal atropela o direito de propriedade, causador de danos e abusos.
Reduz-se a mulher a simples cidadã, com deveres apenas em face do Estado,
submetendo a eles o que possa ligá-la ao lar, ao marido, à família, aos filhos. Sua
educação há de repetir a do homem, pois suas funções são as mesmas. Deve ela
praticar os mesmos exercícios e também servir nas milícias. Só lhe resta uma única
função peculiar, a de dar novos cidadãos ao Estado, função também pública, já que,
antes de serem seus, são filhos do Estado, sobre os quais ela não exerce direitos nem
deve distingui-los das outras crianças. O casamento, a família, são inteiramente
nocivos ao interesse público. Ao lado do comunismo econômico, admite o sexual.
(Para Aristóteles, tal é uma fanatismo político e filosófico: erro em política, em moral
e em psicologia). A união de homem e mulher é regulamentada. A população do
Estado deve ter um número fixo. Admite e propõe o infante exposto, tais os ilegítimos,
os disformes, os filhos de pais velhos ou de pais perversos.
O ponto alto de sua doutrina política é a parte em que trata a manutenção
de um Estado. Examina as formas adulteradas de governo. Conclui que a única forma
PLATÃO – “Político” (“As diversas formas da Constituições”, “O Verdadeiro Chefe acima das Leis”),
tradução de Jorge Paleikat e João Cruz Costa, in “Diálogos”. São Paulo: Abril Cultural ,1972. p. 249 a 253.
6
22
de conservar os governos é a sabedoria. Pretendia, portanto, fazer sábios todos os
homens e, a todos os sábios, virtuosos.
Pois bem, o fim do Estado (o “homem maior”) é viver conforme a
virtude, cuja síntese é a Justiça. Não bastava provar que o Estado é uma necessidade
ética, do que já havia justificativa nas teorias religiosas. A justificação ética do Estado,
que começara com Sócrates, tem sua primeira carta de princípios em Platão, que a
coloca ante o indivíduo. Desde o raiar do pensamento grego, imaginou-se, acima e
independentemente do direito positivo, um direito que advém das supremas exigências
da natureza. Deixando de lado as tentativas dos precursores ou até mesmo o drama da
Antígona de Sófocles, tem-se, já em Sócrates, entre os seus “conceitos”, o de direito
natural. Platão também concebe a Justiça como, de suas “idéias”, a idéia absoluta e
independente da vontade divina. Os céticos e os sofistas negavam essa primeira idéia
do direito, o direito natural, crendo que o direito podia, como vimos, considerar-se o
mero direito do mais forte, portanto não sendo tal.
–V–
Para sustentar o direito, pela primeira vez, nos Diálogos sobre o martírio
jurídico de Sócrates, Platão, que tinha na prudência e na justiça a mais bela forma de
pensamento7 , procura demonstrar que o direito (e seus fundamentos) é regra por
evidência matemática, não só em decorrência do arbítrio, mas pela natureza. Repete-o
no “Estadista”(Politikos), na “Constituição”(Politeia), nas “Leis” (Nomoi).
Fonte dessas normas naturais é ainda, originariamente, o mandamento, a
revelação divina. Mas já ocorre a Platão a nítida diferença entre umas e outras regras,
isto é, entre as da “Lex divina universalis” e as da “lex divina particularis”. Veja-se:
“Poderá acontecer ...., que ... as coisas sucedam de tal sorte, que não somente a forma
em si mesma tenha direito a seu próprio nome por um tempo eterno, mas que haja
7
PLATÃO. ob. cit. (“O Banquete”), p. 46.
23
ainda aí outra coisa que, embora não sendo a forma propriamente dita, possua todavia
o caráter desta, e isto em virtude da eternidade de sua existência ... O ímpar, por
exemplo, deve ser chamado sempre por este nome ... Isto ... poderá aplicar-se também
a outra coisa que não é o mesmo que o ímpar em si, mas que apesar disso deve ser
chamada pelo seu nome, ... como o “três”, e muitas outras semelhantes ... O três, o
cinco e a metade dos números, por sua natureza, são tais que cada um deles, embora
não seja o ímpar, sempre é ímpar. e o mesmo com o contrário: o dois, o quatro e a
outra metade inteira dos números não são a mesma coisa que o par, mas cada um
sempre é par ... Não só tais conceitos excluem os seus contrários, mas o mesmo fazem
estes objetos que, sem ser contrários, possuem o contrário; com efeito, eles não
admitem a idéia, contrária à que os informa, mas, ao aproximar-se esse contrário, ou
fogem ou cessam de existir ... Portanto, não são só as idéias que não permitem a
aproximação de seus contrários, mas certas outras coisas, por sua vez, não consentem
também que eles se aproximem ... Serão ... essas coisas cuja existência as obriga a
conter em si não só sua própria idéia, mas também, e sempre a idéia contrária a uma
certa coisa ... Desta forma, pois, é que se determina ... a natureza das coisas, que, sem
serem contrárias, não admitem a presença de seu contrário: o três, por exemplo, sem
ser contrário do ímpar, o fogo o do frio, e assim em muitíssimos outros exemplos ... a
alma jamais aceitará o contrário do que ela sempre traz consigo ... a alma não admite a
morte ... Logo, a alma é imortal ... Se verdadeiramente a alma é imortal, cumpre que
zelemos por ela, ... pois seria um grande perigo não preocupar-se com ela ... Uma vez
evidenciado que a alma é imortal, não existirá para ela nenhuma fuga possível a seus
males, nenhuma salvação, a não ser tornando-se melhor e mais sábia ... Eis, agora, os
mortos chegados ao lugar para onde cada um foi conduzido ... Aqueles de quem se
verifica ... serem incuráveis por causa da grandeza dos pecados que cometeram,
autores de roubos em templos repetidos e graves, de muitos homicídios contra a justiça
e contra a lei, ... — estes recebem a paga merecida ...”8.
8
PLATÃO, Ob.Cit. (“Fédon”), p. 117-128.
24
O mito da revelação religiosa (ou como o mito da caverna, em outra
parte) não afasta os conceitos que aparecem evidentes na teoria filosófica: assim o de
que, por sobre o direito derivado do poder do Estado, está o direito condição natural da
existência humana. Já se apercebera Platão, do que diria Ihering: “Justiça e arbítrio
seriam ... noções correlativas: a primeira indicaria que aquele que tem a missão e o
poder de estabelecer a ordem no círculo dos seus inferiores, se conformou com as
normas a que o reputamos sujeito; e a Segunda, que se afastou delas. Já vimos que esta
obrigação pode ser “jurídica” ou “moral”. Sendo jurídica para o juiz, para o legislador
é apenas moral: a lei domina o juiz, ao passo que o legislador está acima da lei. Aquele
tem por senha jurídica a aplicação da lei, e obra com justiça quando faz essa aplicação
rigorosamente; as injustiças da lei não podem ser levadas à conta de culpas suas, são
da responsabilidade do legislador. para este último, a quem compete criar a lei, a
medida da justiça não se encontra na própria lei: tem ele que descobrir a justiça para a
introduzir na lei”9.
Tenha-se em conta que Platão distinguiu entre o direito positivo e o
direito natural, aí também está a sua distinção de fenomênico e nomênico, sua teoria
dos dois mundos. Distinção bastante distante da moderna, até por hábito histórico.
Já conhecia Platão o valor ético da introspecção, o que até aqui temos
sustentado. A descoberta de Sócrates toma, entretanto, em Platão, um valor
desmedido.
O próprio Platão, já o vimos, é mesmo levado a reagir contra o seu
excessivo idealismo. Já o preocupavam, também, as objeções do genial stagirita.
9
IHERING, Rudolf von. “Zweck im Recht”, trad. de De Meule-naere. Livraria Progresso Editora, Praça da Sé,
26, Salvador-Bahia, , Imprensa Vitória, R.J.J. Seabra, 360, Salvador, Bahia, sub “Definição de Justiça”, 1953.
p. 298-299.
25
ARISTÓTELES: REALIDADE E VALOR EM SI
Admita-se que Aristóteles reestruturou as “idéias” de Platão, não se dirá
que Platão seja exatamente um “idealista”. O
que fez o divino seria o que já se
chamou de “realismo das idéias”. A idéia platônica não é, assim, unidade sintética de
pensamento, mas de existência. O pensamento não imprime as idéias aos objetos para
conferir-lhes unidade ou substantividade, porque as idéias são as únicas realidades que
existem. Aristóteles recolhe de Platão o nômeno e o traz para dentro da coisa sensível
ou fenômeno.
À conexão estreita entre o moral e o intelectivo, que está em Platão, e à
identificação de inteligência e bondade, opõe Aristóteles o poder dos sentimentos, ou
afetos, sobre a conduta e os costumes. Para Sócrates, um tanto diversamente de Platão,
a idealista conjunção do intelectual com o moral retinha um tanto de empirismo, ao
passo que Platão conduzia-se a um perfeccionismo metafísico.
Aristóteles resgata o problema ético de onde o colocaram (no plano
extraterreno) e o examina ao crivo e ao fundamento das necessidades e das
conveniências humanas: é por isso que mais se aproximou da noção concreta da
Justiça ou do direito, fazendo que não exista fora da sociedade, como adiante
analisaremos detidamente.
–I–
Desde Parmênides, é o pensamento necessário à descoberta do ser. Mas
desde ele mesmo, o pensamento não é mais que representação do ser, que é em si e por
si, ou seja, “transcendente”. Platão retirou de Parmênides o método, a intuição
intelectual, dita também razão, pensamento, “nouns; retirou, também a identificação
parmenídica de ser e pensar. Buscou a ele, ainda, a teoria dos dois mundos, sensível e
inteligível, na mesma consideração de que o pensamento não indica o mundo ilusório,
26
mas o real, verdadeiro. Por último, a Dialética. Sobre estes elementos, joga Platão uma
grande força, o “conceito” de Sócrates.
Embora Platão perceba que Parmênides confunde o que é com a unidade
do que é, ou por outra, confunde ser e consistência, existência e essência, todavia,
unindo outra vez existência e essência, ao tentar definir as unidades de essência,
arrimado ao “conceito” de Sócrates, logo, lhes atribui a existência: é Aristóteles que o
percebe.
Aristóteles demonstra, ainda, a desnecessidade da duplicação das coisas,
os dois mundos, porque sobre as idéias se colocaria o mesmo problema das coisas. O
filósofo do Liceu verifica que as idéias, como já vimos, teriam de ser em número
infinito, para que se tivesse a participação ou “metaxis”. Adianta, ademais, a
necessidade inelutável da idéia das relações, inteiramente abandonada pelo sistema
platônico, quando, intuitivamente, também deriva das coisas. Reclama a idéia do não
ser, sem a qual não pode haver a do ser. e refuta o sistema como um todo, porque o
que há em Platão são definições soltas, sem origem, sem causa. A preocupação com o
devir anuncia um retorno à concepção de Heráclito. É a reclamação do movimento,
que Parmênides mantém de todo estranho ao ser, imutável, eterno e único. Por fim,
contesta Aristóteles o transcendentalismo das idéias: as idéias não são outra coisa que
as coisas não sejam.
Aristóteles desmancha a bipolaridade do sensível e do inteligível.
Introduz no sensível o inteligível. A idéia derivada da intuição intelectual não é outra
coisa que não o seja a própria coisa percebida pelos sentidos. A metafísica de
Aristóteles tem uma e mesma unidade existencial e essencial.
27
– II –
Do confronto entre Platão e Aristóteles vê-se: entre a idéia platônica e a
forma aristotélica há uma estreita afinidade, pois que ambas provém do princípio
socrático de que o objeto do saber não é o indivíduo, não é o precário, não é
transitório, não é o contingente, não é o efêmero; — o objeto do saber é o
fundamental, é o que há de fixo, é o universal. Como o universal não pode ser
alcançado pelos sentidos, só há apreendê-lo pelo intelecto. O sentido e a razão se
completam, mas Aristóteles acentua a superioridade da razão. Platão e Aristóteles
invariavelmente admitem que a essência do ser reside na matéria. Já, no que seja essa
essência (a idéia platônica e a forma aristotélica), divergem fundamentalmente. O
divórcio é ainda maior, no que trata de explicar a relação existente entre o particular e
o geral, ou seja, qual o papel da percepção no conhecimento. Para Platão, a idéia existe
a um só tempo fora e acima das coisas. Para Aristóteles, a idéia vive nas coisas e com
elas forma um todo. Para Platão, o espírito é passivo, é um espelho, e a razão tem
somente o poder de evocar idéias percebidas noutra existência (teoria das
reminiscências, no “Phedon”). Para Aristóteles, diversamente, o espírito é ativo e a
razão retira por cima da abstração e da generalização, a forma inteligível. Platão chega
à divindade pela escala das idéias, de tipo em tipo até o arquétipo, suprema causa,
exemplar de toda perfeição e de toda ordem. Aristóteles chega à divindade, do
movimento e da vida dos seres. Pela sua passagem de potência a ato, até o ato puro,
causa final de toda tendência ou motivo.
Ainda como Platão e Parmênides, o que dão os sentidos não é o
verdadeiro ser, mas um ser que carece de explicação, segundo pensa Aristóteles, para
quem do mesmo modo, a explicação do ser problemático das coisas exige o intemporal
e o eterno. (Nisto se resume a apatia ao movimento, já encontradiça em Parmênides e
Platão, passando pelo “problema da tartaruga”, de Zenon de Eléia). De outro lado,
agudo perscrutador dos erros de seu mestre, opera a disjunção entre existência e
essência. Não sem merecer crítica, como a de Morente: “que Aristóteles, ainda que
perceba muito bem o fraco de Parmênides e o fraco de Platão — que consiste em
28
confundir constatemente, ou melhor dito, em fundir constantemente, a essência e a
existência — irá ele mesmo cometer esse mesmo erro. Comete-o em outra forma
completamente distinta: afirmando uma distinção conceitual entre elas, mas
estabelecendo uma função ou distinção real entre a essência e a existência”10.
– III –
Aristóteles procura, em primeiro lugar, a coisa, como a percebemos.
Nesta mesma coisa tal, identifica os elementos: substância, essência e acidente. A
existência, que se vê em Parmênides, é a substância. Para Aristóteles, chamar as idéias
de modelos, de arquétipos, de paradigmas, é nada dizer e, se as idéias
gerais são a
essência das coisas, como quer Platão, de que modo existiriam separadas disso que são
substância e essência? O geral não pode existir fora e ao lado do individual. Aristóteles
investe diretamente contra o idealista: só se pode ter a idéia geral, depois que se
percebem as coisas, o que implica admitir que ela reside nas próprias coisas. No
mundo sensível, a coisa que é, tem uma existência, é uma substância. O que se diz da
substância, da unidade, os predicados que se lhe pode atribuir, são a essência. E, se a
predicação não é já necessária, é o acidente. Tomou Aristóteles a idéia platônica, a
unidade essencial, e a trouxe ao mundo sensível, reunindo os dois mundos. Dissolvida
a dualidade entre o sensível e o inteligível, lança Aristóteles o conceito, o “logos”
socrático ou a “idéia” platônica, na substância, para dar-lhe a possibilidade de
definição, o que faz com que a realidade existencial seja inteligível. E aí mesmo ele
coloca os caracteres que a experiência dá de particulares a cada substância.
– IV –
Aristóteles recolheu a “idéia” de Platão. E quer dar-lhe força, atuação,
objetividade, tanto que a diz, em Platão, inoperante, do que padece por seu
10
MORENTE, Manuel Garcia, ob. cit., p. 101.
29
transcendentalismo. Por isso, Aristóteles distingue ainda nas coisas outros elementos: a
“forma” e a “matéria”. Matéria é, para ele, o de que as coisas estão feitas — seja o que
for, não restrita à acepção da física moderna. Forma, para ele, em homenagem à
geometria que influíra Sócrates e Platão, é o que faz com que a coisa seja o que é,
noutras palavras, que a distingue das demais e a faz unidade, dando sentido a sua
existência. Confunde-se, afinal, com a essência. Eis que a “idéia” de Platão é, em
Aristóteles,a concreção de essência e forma. Demais, para Aristóteles, a forma não é
casual, pertence, iniludivelmente, ao que cada coisa deve ter, eis que lhes dá sentido. O
sentido é o “telos”, a finalidade. A definição das coisas contém a sua finalidade.
Sendo, então , a matéria e a forma os elementos de que resulta a coisa. Aristóteles
aporta à “idéia” platônica a função de responder quanto à origem da coisa. A coisa
vem a ser o que é, porque sua matéria recebe forma (é informada), e uma forma que
lhe dá sentido e finalidade.
A coisa é o que é, já, porque tenha sido feita inteligentemente, porque se
lhe tenha conferido inteligibilidade.
Disséramos, há pouco, que a “idéia” platônica é, em Aristóteles,
concreção de essência e forma. Permita-se-nos num ligeiro reparo. Deveríamos dizer
que o seria; não, exatamente, que o é. Forma, para Aristóteles, não existe sem Matéria.
Daí, que a Substância, unidade existencial, composta de matéria e forma (e também
não há matéria sem forma), é indivisível. A “idéia” platônica é a essência, que
Aristóteles trouxe para o mundo sensível. Seria ela, de acordo com o sistema de
Aristóteles, a forma sem matéria. “Precisamente o erro platônico, segundo Aristóteles,
consiste em dar à forma, ou seja, `a essência, ou seja, à idéia, existência. Mas o geral
não existe; o homem não existe; ... mas o que existe é a união sintética de forma e
matéria “este” homem considerado, que é a substância”11. Advirta-se que, em
Aristóteles não tem sentido a forma sem a matéria, “de modo algum ... a matéria
corresponde à existência e a forma corresponde à essência”12: “a forma sem matéria
11
MORENTE, Manuel García, Ob. cit., pág. 118.
12
MORENTE, Manuel García, Ob. cit., pág. 117-8
30
não é”. É a idéia platônica, é a essência que quis trazer Aristóteles do céu das idéias
platônicas transcendente à terra real das coisas existentes”13.
Os trechos que ora citamos, em que pese o vigor da expressão literária,
estariam, tais os expressos termos, a dar a entender que Aristóteles quis tirar de Platão
o que nele próprio critica: o não ser da forma sem matéria. Daí, sem melhor solução,
termos afirmado que a idéia platônica, repita-se, seria, se transposta tal e qual para o
sistema aristotélico, a concreção de essência e forma. A forma sem matéria, a sua vez,
responde à “substância Segunda” de Aristóteles, o que não existe ou que não tem mais
que existência secundária, de ser predicado ou predicável. É onde Aristóteles não
prova, ainda a termos de seu sistema, como possa a substância ser categoria, ademais
da crítica de Kant. Nas categorias, veremos, quer Aristóteles estabelecer as estruturas
elementares do ser e do pensar. Assim que o primeiro que de algo pode dizer-se é a
substância, o que ele é, menos ainda se obtém no que não tem existência metafísica
plena.
Prosseguindo no desenvolvimento estrutural
da substância, vê
Aristóteles o “real” e o “possível”. A dualidade matéria e forma, assim se resolve: a
matéria tem possibilidade enquanto informada, enquanto receba forma; a forma
imprime realidade enquanto esteja esteja com a matéria. Assim nos dá Aristóteles a
lógica do possível: o real só o é enquanto procede do possível. E o possível não é
contraditório. Eis, de novo, a parmenídica identidade entre ser e pensar, dentro dos
limites do pensamento.
Vê ainda Aristóteles o binômio ato-potência. É o ato o resultado do que
chega a ser. A potência é matéria enquanto vai ser. São idênticas as relações entre
matéria e forma, possível e real e potência e ato, no sentido de terem a mesma posição;
a primeira relação é estática, a segunda é lógica e a terceira, já, dinâmica, na origem
13
idem-idem, pág. 118.
31
das coisas. A passagem de potência a ato é a transformação em substância, é a
realidade.
–V–
Considerado o devir, as substâncias passam a apresentar-se em três
modos. É a divisão em Ontologia (Metafísica), Lógica e Causalidade. Sob este último
aspecto, Aristóteles indica as quatro causas: material, formal, eficiente e final, a que
poderiam corresponder as locuções “de quê”, para a material, e “com quê” , para a
eficiente. A formal e a final, não raro confundem-se, sendo aquela a idéia, a essência,
e esta, o propósito. Aí não se sabe exatamente se o propósito é meio (para um fim
subseqüente ) ou fim. Ora, o relativismo de Heráclito, do vir a ser incessante das
coisas, é combatido pelo stagirita, quando este quer que os sentidos sejam relativos e
quer a inteligência capaz de indicar uma causa única. E aqui se cai, entretanto, numa
sucessão infinita, entre o ser necessário e o ser contingente.
A confusão entre as causas final e formal só lhe ocorre (porque vê a
causalidade fora do tempo) em Deus, onde é necessária. Deus é pensamento de
pensamento e cria só com pensar, porque não está no tempo. Deus é, pois, forma pura,
sem substância, causa final e suprema, eternamente atual e, também, causa formal e
causa final de todas as coisas existentes, e, ademais, ato puro. A existência de Deus se
prova: pelo princípio da causalidade (não há efeito sem causa); pela antinomia (é
impossível série infinita de causas, tendo-se de encontrar uma causa motora, mas não
movida).
Resulta que o mundo sensível é inteligível. As coisas se decompõem em
elementos inteligíveis, e é sempre possível distinguir nelas o ser puro (existência) e o
que lhe está antes, antes que a matéria receba a essência ou forma substancial e se
converta em substância, tal a essência previamente pensada, a “idéia” platônica. As
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coisas tem, assim, existência e essência inteligível, que se juntam na substância. O ser
se identifica ao pensar, como em Parmênides, porque a substância é inteligível.
Aristóteles necessitava da origem inteligente das coisas. Sua Metafísica
encontra, em última indagação, a Teologia. As coisas são inteligíveis na sua existência
e na sua essência. E como não há separar uma e outra, em Metafísica, a inteligibilidade
das coisas em si mesmas (que não está no tempo) supõe que, fora do tempo, se lhes
haja posto inteligência: Deus é, em Aristóteles, a essência de todas as coisas, como sua
causa formal e final. É, portanto, a garantia da identificação entre o sensível e o real.
– VI –
Daí retira Aristóteles a sua teoria do conhecimento. Sendo o
conhecimento a retenção das características essenciais da coisa, ou de características
para cada uma das essências encontradas na substância, terá a seu serviço a abstração e
a generalização, porque assim se traduz a percepção
sensível. A formação dos
conceitos conduz a outra etapa do conhecimento, a aplicação daqueles às coisas e a
remissão desta àqueles. Na introspecção irá buscar-se o conceito adequado a cada
substância e, passo seguinte, formular-se o juízo. E, finalmente, entre os diferentes
juízos, conjugá-los para conclusões a respeito de substâncias novas. Segundo
Aristóteles, a ciência não faz mais que reduzir o composto ao simples: e como esses
trabalhos da ciência se fazem de acordo com dadas formas, leis e raciocínios, deve-se,
em primeiro lugar, estudar a Lógica Formal, do “Organon”, por isso que ele é o
instrumento para todos os conhecimentos.
Com absoluta novidade percebeu Aristóteles que a explicação do ser
problemático das coisas sensíveis está na busca, através e além delas, do intemporal e
eterno. E é assim que dividiu a estrutura do ser em três problemas: a estrutura do ser
em geral, a estrutura da substância e a estrutura da realização (ou causação). Em sua
Lógica, no livro das Categorias, enfrenta o primeiro desses três problemas. Investiga,
aí, os pontos de vista de que se pode encarar o ser em geral e firma deles os conceitos,
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o que resulta, aliás, nos aspectos reais dos mesmos em geral, mais que diretivas
lógicas do pensamento. A identidade parmenídica de ser e pensar exerceu no que há,
talvez, de mais extraordinário em Aristóteles, uma grande influência. Na obsessão de
pôr o pensamento no ser mesmo; olvida a relação de conhecimento.
Predicações lógicas do sujeito, as Categorias são: Substância,
Quantidade, Qualidade, Relação, Lugar, Tempo , Ação e Paixão. E não são só lógicas,
mas ontológicas, já indicam a própria estrutura do pensamento. Enquanto lógicas, são
os predicados mais gerais da formulação de juízos, são os juízos mais universais.
Enquanto ontológicas, são as formas elementares de todo ser, o mínimo de
“informação” que se dá à matéria para que o ser seja. (Dizer que o ser é, como se dá na
categoria primeira, não seria atribuir, não seria predicar, não seria categoria — é uma
das críticas do filósofo de Königsberg. Mas, como as categorias aristotélicas são do ser
e do pensar, o sistema é coerente). É das categorias que nascem o realismo e o
idealismo.
Como, para Aristóteles, a substância é existência e essência, e ainda,
inclui o acidente, cumpre-lhe dar a estrutura da substância. Já vimos que ele decompôs
a substância em “forma”
e “matéria”, depois, sob outro aspecto, em “real” e
“possível”, depois, ainda, em “ato” e “potência”.
Já vimos, também a estrutura da realização, na teoria das causas,
material, formal, eficiente e final.
– VII –
Apanha, assim, o realismo, com Aristóteles, a melhor e a mais perfeita
forma na história da filosofia. Porque nele a Dialética suporta a ramificação e engendra
conceitos estáveis e, não obstante, flexíveis, de maneira a reproduzir as faces da
realidade, a refletir a enorme individualização da realidade mesma. O realismo
34
aristotélico joga o discrímen da inteligibilidade do real e resolve o problema
metafísico, porque na inteligibilidade das coisas está a sua essência. As coisas são o
que são, e expressam, também, sua essência. E todas e cada uma delas estão no
pensamento da divindade, advindo-lhes o ser e a essência, da causa primeira.
Aristóteles parte das coisas e chega necessariamente a Deus. E,
observando diretamente a realidade — diversamente de Platão e de Sócrates —
resolve o problema ético no próprio plano terreno, das necessidades humanas, onde
coloca o próprio Deus, necessidade que decorre da natureza mesma das coisas. Não
utiliza o velho postulado da revelação. É utilitário e eudemonista. Abandona o
perfeccionismo de seus predecessores. É experimental. Aristóteles voa da especulação
lógica e metafísica ao empírico. Apesar de querer o conhecimento do Estado melhor,
pela razão, resolve este último propósito da ciência após recolher a maior soma de
conceitos para o conhecimento da realidade.
Observando a vida dos seres naturais, nota uma ordenação de valores,
uma hierarquia natural, estabelecida e obedecida. Daí, raciocina logicamente. (Já, pela
teoria do conhecimento, Aristóteles é experimentalista; afirmou que nada existe na
inteligência que não tenha passado pelos sentidos. Considera a experiência sensível,
originária dos sentidos, a fonte do conhecimento. Mas que não basta a experiência; é
mister que exista a razão a seu lado. Quê importa o armazenamento de dados ou fatos,
sem as descobertas das relações entre as causas e os efeitos — sem as leis?). Aplica à
Metafísica, a Lógica. Desenvolve, aí, o tipo primordial do raciocínio aristotélico, o
silogismo. Observa a vida do homem em sociedade: para que o indivíduo viva em
comum, é forçoso que se submeta a umas tantas regras. Se, para os seres irracionais, já
surgem certas imposições da coletividade, para os racionais elas se tornam condição
“sine qua non” desta existência: — nasce, assim, o direito, como uma norma, uma
regra da vida social. Daí, a sua definição de justiça: virtude social que consiste no
respeito aos direitos de outrem; mas, com ser uma virtude social, não pode ser relativa
— ela tende para o absoluto.
35
– VIII –
Posta a Justiça como Virtude, encontra Aristóteles, em cheio, o problema
do conhecimento: “por isso, creio que antes de tudo tem-se de explicar quê é a virtude
sem compreender como ou de que provém. Não devemos limitar nosso exame ao
conhecimento do que é, senão estendê-lo a como se deve produzi-la: porque nosso
propósito não é conhecê-la somente, senão ser virtuosos, coisa que nos seria
impossível, não conhecendo de que e como se produz. Naturalmente, é necessário
saber quê é a virtude (por não ser fácil conhecer a origem e forma de sua produção,
não se sabendo o que é, como sucede quanto às ciências) ... Será necessário falar sobre
a Idéia do Bem? ... De nenhuma maneira. E por quê? Porque o fator comum é o que
conseguimos mediante definição ou por indução. Pois bem, o objeto da definição
radica em assentar o fundamental das coisas ... Mas a definição assenta que toda coisa
que for do gênero, tal que seja elegível por sua própria causa, é bem em todos os casos.
E o fator comum em todos os bens é idêntico à definição. E a definição nos indica o
quê é bem, enquanto nenhuma ciência nem arte assenta que seu próprio objeto é bem,
senão que corresponde a outra arte teorizar quanto a isso ... Evidentemente, tampouco
a política tem que ver com o fator comum do bem. Porque não passa de ser uma
ciência entre todas as demais, e já temos visto que a nenhuma ciência nem a nenhuma
arte corresponde considerar o bem como objeto ... É fácil notar em geral que não
corresponde a nenhuma ciência ou arte a consideração do bem em geral. E por quê?
Porque o bem existe em todas as categorias, tanto na substância, como na qualidade,
quantidade, tempo, relação, instrumento, e em todas em geral”14.
Resolve, assim, Aristóteles, o problema do conhecimento quanto à
virtude. Para ele, a Ética é um ramo da Política (confunde, como Platão, moral com
política), “já que não se pode fazer nada nas questões referentes ao Estado, se não se
achar na posse de certos hábitos, ou seja, do bem”15. A esse argumento, acresce que
14
ARISTÓTELES, “Grande Ética”, Ob. cit., pág. 6-11.
15
ARISTÓTELES, “Grande Ética” , Ob. cit. , pág. 5.
36
“ser bom estriba em ser virtuoso”16. E que “o objeto da virtude é o bem, sendo a isto
que ela tende antes que as coisas de que procede”17. Eis as estruturas: do ser em geral,
da substância e da realização. Divide então os bens, no digno, no louvável e nas
potências; em absoluto e relativo; em objeto e não objeto; em perfeito e imperfeito; no
que radica na alma e no externo. Prossegue o raciocínio: ser virtuoso é viver de acordo
com as virtudes. E, como estas são o objeto de ser virtuoso e, já, o objeto delas (as
virtudes) é o bem: teria de ser o bem e o objeto dos bens. Ora, como os bens estão em
relação, onde o perfeito é sempre melhor que o imperfeito, e, por isso, teria de ser a
virtude melhor que ela própria, o que é absurdo; então o que se busca não é a virtude
(objeto último). Buscando o melhor, não se lhe pode considerar como tal, porque não
pode ser melhor que seus componentes. Tanto que o objeto último não é
independentemente destes, mas os é, nada mais, nada menos. E se não é, sem eles, não
é perfeito: não é suficiente. A virtude, em si, portanto, não é perfeita. Demais, se é com
os bens, submete-se, como estes, ao tempo ( e às outras categorias), que é comum a
todas as artes.
Demonstra Aristóteles o ser problemático das coisas sensíveis. Agora vai
resolvê-lo. O bem último e mais perfeito, já comentamos, é o viver virtuosamente.
Ora, viver é atividade e uso. Será fazer e usar os bens. E se pode dizer, das coisas que
se podem usar e possuir, que o uso é melhor que a posse (que ele supõe). Ademais,
como vivemos pela alma e só pela alma, e podemos viver virtuosamente, a virtude
portanto radica na alma. Agora, como o objeto da virtude é o bem, há de perquirir-se
quais os bens que se encontram na alma. De modo que esses bens são — dir-se-á — a
atividade e o uso da virtude. Mas a virtude é o objeto e o objeto último, isto é, a
virtude em cada uma das coisas produz aquele bem que é a virtude: então o objeto
último é atividade. De outro lado, como objeto último é bem perfeito e, no entanto,
não pode ser outra coisa que as coisas mesmas não sejam, o objeto é o perfeito, só se
encontrará no que é perfeito, suficiente, e que, a seu turno, terá de ter atividade.
16
Idem -idem, ibidem.
17
Idem-idem, pág. 46.
37
– IX –
Volve Aristóteles à alma, onde radica a virtude. Irá procurar, aí, o que
tenha atividade. Alude às duas partes da alma, racional e irracional. Coloca na
primeira: o intelecto, a sabedoria, a prudência, o juízo, a aptidão para aprender, a
memória . E, na irracional: as virtudes, tais a justiça, a temperança, o valor e outros
(hábitos morais) dignos. Buscando, pois, o ser da virtude , quer Aristóteles encontrar
as coisas que radicam na alma, porque destas se faz a virtude. E vê que é preciso que
tais coisas sejam suficientes, para fazer a virtude, sob pena de, em contrário, destruí-la.
É feita a busca do objeto perfeito, e aí está a grande passagem (que Aristóteles diz do
“ethos”, com E breve, para o “ethos”, com E longo, donde a “ética”, a virtude moral):
o objeto perfeito — que ora desce, pelo inteligível, do nomênico ao fenomênico — são
somente as coisas suficientes a acrescentar virtude. Todavia o pretender acrescentar
virtude supõe atividade e já responde ao objeto último. Acrescentar virtude se adquire,
pois, na prática. E a virtude moral exatamente se adquire na prática. Aristóteles pode
afastar algumas entre as virtudes da parte racional da alma, as advindas da natureza,
porque nada do que é por natureza varia com o exercício. Enquanto nenhuma das
virtudes da parte irracional da alma nasce em nós devido à natureza. Verifica, então,
que radicam na alma as seguintes coisas: faculdades, afetos e hábitos.
Aristóteles vai descobrir — e esta é a maior glória de sua Ética — o
valor moral dos afetos. Demonstrará o poder real dos sentimentos sobre a conduta e
sobre os costumes. Sócrates e Platão já se perdem na distância, com sua identificação
do conhecimento do bem com a virtude mesma. É verdade que isto obedece a uma
viva reação contra a amoralidade dos sofistas. Mas sua posição se faz um extremo
ideal, fazendo extraterreno o problema ético. Sobrevive em Aristóteles a metafísica.
Mas ele põe a estrutura dialética do inteligível e, como já dissemos, resgata a virtude
do nomênico, resolvendo o ser problemático do sensível.
38
–X–
Postos o afeto, a faculdade e o hábito, Aristóteles já indica que a virtude
será alguma dessas coisas. Esclarece: os afetos (são os sentimentos) são a ira, o medo,
o ódio, a emulação, o remorso, a lástima, em geral sucedidas de prazer ou sofrimento;
as faculdades são aquilo que permite ter sentimentos (afetos), que nos torna
capacitados a sentir; os hábitos são aquilo de onde estamos em (boa ou má) relação
com os afetos, assim, (diríamos) afetados, ou super-afetados (ou insensíveis). A boa
relação com os afetos, a boa disposição, é o intermédio (entre os hábitos, excesso e
defeito). Retome-se de Aristóteles que as mesmas coisas acrescentam e destróem a
virtude. Cumpria-lhe encontrar as coisas suficientes, isto é, que tenham atividade e
perfeitas ( pois que o bem imperfeito é o que, ainda que se possua, não basta, carece
de algo).
Aristóteles assenta, portanto, que a virtude é um intermédio entre os
afetos, opondo-se o excesso ao defeito e, ambos ao meio. (Daí retiraria Santo Tomás
de Aquino o seu “virtus in medius”). Assim o hábito que expressa boa relação dirigese ao intermédio de tais coisas. É preciso que o meio possua as coisas com que se
relacione, porque o objeto último é o próprio objeto imediato, é o bem.
E, de virtude em virtude, chega Aristóteles à Justiça, o que aqui nos
interessa de perto.
Veremos como vai Aristóteles descobrir e tratar a Justiça. Em primeiro
lugar assenta, definitivamente, que a virtude depende de nós. Refuta Sócrates, quando
este diz que, entre o justo e o injusto, qualquer um opta pelo primeiro. A prova de que
a virtude depende de nós é que a lei pode impô-la — e só pode exigir o humanamente
realizável. Como o humanamente realizável é sempre o ato justo, já a lei está de
acordo com todas as virtudes: a Lei é a Virtude Perfeita.
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É exatamente agora que se vai ter o encontro da Justiça. Viu-se o que ela
é: o justo legítimo ou legal; e também o ato justo (ser justo), que atende também à
situação de quem está só, porque aí já se pode estar na posse das coisas em que está a
virtude, do mesmo modo como se passa no âmbito social, na relação entre os
semelhantes.
– XI –
Consideramos necessário abrir um parêntesis. Temos reproduzido, até
aqui, os argumentos da
“Grande Ética”. Nela quer o stagirita desenvolver sua
Metafísica. Estuda a atividade humana, enquanto, conhecendo, realiza em si mesma as
formas do ser. Mas a Ética é estudo da atividade humana, enquanto, operando, realiza
em si mesma o bem — o que será a linha exata da “Ética a Nicômaco”. Na “Grande
Ética”, que ora examinamos, Aristóteles, metafísico e empírico, parte do fenômeno,
parte da natureza, observa a necessidade e a convivência humanas: todos os homens
tendem naturalmente ao saber; põe o mesmo problema do conhecimento, quanto ao
bem; distingue, a tal respeito, os vários gêneros de conhecimento e o conhecimento
puro ou supremo, o objeto último, o conhecimento da virtude em si, do mesmo modo
como faria na busca do objetivo próprio da “filosofia primeira”. Está, portanto, no
reino da ciência e das formas. Na “Ética a Nicômaco” ver-se-á que o âmbito das
indagações é diverso: dir-se-ia o reino da ação e dos fins. Daí, que, indiretamente, na
“Grande Ética”, Aristóteles apanhe o ser da ação e dos fins, proposição sobre
existência ou não existência ou não existência, que, como já enfatizamos, pertence a
outro sistema lógico, àquele primeiro “reino”, não ao em que elas mesmas assentam.
E, assim, as indagações de resultado, na “Grande Ética”, por estarem no ser, traduzemse num princípio que explique a multiplicidade das formas, do real. Veremos, adiante,
como encontrará o grande filósofo — o bem, a virtude e a Justiça — na “Ética a
Nicômaco”.
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Prosseguindo nossa análise da “Grande Ética”, vimos que ficou patente
que o justo para com o nosso semelhante difere da justiça legal. O justo para com o
semelhante é a justiça nas coisas que lhe dizem respeito (e na posse das quais
estejamos). O justo é, aí, o igual. A justiça é a igualdade de coisas. Estará entre o
excesso e o defeito. Como vimos, porque não se pode possuir nem mais nem menos
das coisas em que está a virtude, o igual é o meio entre o mais e o menos. E, já que a
relação é entre pessoas, o meio é relativo a essas pessoas, bem podendo ser justo não
só o igual, como o proporcional .
É aqui onde Aristóteles revive Heráclito, para quem todas as coisas
mudam sem cessar e nós com elas. Aristóteles vê que as mudanças são relativas e, só
por isso, só por meio delas, não poderíamos ter juízos ou raciocínios. Primeiramente
terá de indagar de quê as coisas da virtude são relativas, isto é, em virtude de que
variam. Ultrapassada esta fase, e descobertas as categorias, formulará os categoremas
e, a seguir, passará a formular e estudar os juízos e, ainda depois de estudados os
juízos em particular, passará ao raciocínio, a deduzir, de silogismo em silogismo (o
tipo primordial do raciocínio aristotélico), o princípio: do mesmo modo de sua
Metafísica.
– XII –
Verifica Aristóteles que devido à natureza ou devido à lei as coisas são
justas. Ora, a Lei é a Virtude Perfeita, o que ele já demonstrou. Então o que varia é o
natural, o que a experiência comprova. E, assim, as coisas que existem na natureza
participam de alteração; e entre elas as coisas justas por natureza. Já visto que não é só
a posse, mas sobretudo o uso, o que dá a virtude das coisas, é pelo uso que elas variam.
Todavia, nem pela variação, deixam as coisas de ser o que são. A justiça natural é,
assim, o justo para a maior parte. É, pois, superior à legal.
Na seqüência, volta o filósofo a que a lei está de acordo com todas as
virtudes. A lei versa todas as coisas em que está a virtude. O injusto é o assim
41
determinado pela lei. E adianta: o injusto e o ato injusto parecem idênticos mas não o
são. O ato injusto é fazer algo injustamente. Supõe conhecimento de causa (a pessoa,
os meios, o propósito), conhecimento das condições do ato justo. Conclui que não será
injusto o ato equivocado e que a probabilidade de não cometer injustiça radica em
desconhecer as causas. (Passou Aristóteles a estudar a substância do justo e, na sua
estrutura, identifica as causas).
Não haverá injustiça, se a ignorância é a causa do injusto, mas haverá se
a ignorância for causa da ignorância (a hipótese do ébrio). Só se escusa a ignorância
devida à natureza (Eis a mesma distinção atual entre o erro de fato e o erro de direito,
inescusável).
Se a injustiça é o desigual e o menos é o prejuízo, como o homem pode
ter menos por sua vontade, o prejuízo pode ser voluntário. Mas não o injusto, já que,
nesse caso, haverá compensações em outras coisas (honra, elogios, amizade, glória).
Refuta Aristóteles a objeção do dissoluto: o dissoluto, posto deseje o mal, não deseja o
prejuízo.( O que faz aí é inverter as provas das primeiras premissas, a exemplo do
antigo dilema — ilegítimo — de Protágoras, inserindo o meio-termo entre os membros
da proposição disjuntiva, afastando os dois silogismos hipotéticos).
Não pode o homem ser injusto consigo mesmo, por não poder ter, em si
mesmo, o mais e o menos, nem poder agir, ao mesmo tempo, voluntária e
involuntariamente. Os atos injustos são, pois, para com os outros. Se cometer injustiça
radica em prejudicar a alguém, voluntariamente, com conhecimento das causas. Se o
prejuízo é o menos da coisa em que está o bem e, pois, em certo sentido, se identifica
com o bem, o injusto saberia que coisa é o bem e que coisa é o mal? Presidida a
análise pelo justo natural, entre as suas condições já se viu que está o propósito. Como
os propósitos são distintos, necessário que as partes da alma pelas quais os
conhecemos, do mesmo passo como se dá, para as sensações, com os sentidos,
também sejam distintas. Porque deliberamos sobre as coisas que dependem de nós, e o
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que está sujeito a variação são os objetos sensíveis, a parte da alma em que radica o
propósito é a relativa aos objetos dos sentidos.
– XIII –
Já se viu que na alma há uma parte que possui a razão, outra irracional. E
que a parte racional encerra duas faculdades, a deliberativa e a de conhecimento.
Agora é acrescentado que a faculdade de deliberação, supondo objeto variável, dirigese ao propósito (dos sentidos).
O propósito é impulso deliberado. Sendo relativo aos bens que sejam
meios e não ao objeto; como as coisas que deixam margem à controvérsia hão de ser,
aí, as possíveis para nós, portanto as do sensível; como o ser das coisas sensíveis é, já,
cambiante, tais coisas, isoladas, não dão o ser do objeto último, até porque, sendo
meios, não são perfeitas. Então o propósito, para dar, como deve, o ser do objeto
último, há de recair, também, sobre coisa perfeita. Esgotadas as coisas da parte
irracional da alma, ao plano desse objeto último, vai-se à parte racional.
Já se viu que sem o conhecimento das causas não há injusto, mas
equivocado. Quem se equivoca julga com erro acerca das condições do ato. Não
formulou correto juízo. Já a virtude depende de nós mesmos, no juízo. Ora, o juízo, já
o vimos, está na parte racional da alma; seus objeto é o sensível, entretanto.
O juízo, pois, só é correto, e se diz que enfrenta devidamente as
condições do justo, quando a parte irracional da alma não impeça que a racional
desenvolva sua própria função. Tal a faculdade de conhecimento, porque a deliberação
só se exterioriza se lhe advém atividade.
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Descobertas as coisas que são e que dão a virtude, as categorias, o
problema do conhecimento é, agora, de formulação de juízos: põem-se de lado as
dissoluções.
O discernimento entre os juízos supõe a razão. É assim que entre as
coisas da parte racional da alma também se vai encontrar o ser da virtude. A virtude,
porém, é ativa, supõe ordenação. De outro lado, as coisas da alma são mais ou menos
perfeitas, subordinando-se umas às outras nessa escala.
– XIV –
Aristóteles demonstrou, portanto, que se chega à virtude pela razão.
Resolve o debatido problema do conhecimento e consegue colocar a virtude como
objeto de conhecimento, o que se fez possível pela correção dos erros de Sócrates e
Platão, através da aposição, no sensível, da estrutura dialética do inteligível. E extrai o
princípio geral: a justa disposição dos afetos pode surgir antes da razão (cita a hipótese
da criança) e, assim, antes dela, podem nascer impulsos dos afetos que tendem ao
justo; intervém, mais tarde, a razão e decidindo do mesmo modo, origina a ação justa.
A justa disposição dos afetos é, pois, o princípio que leva à virtude.
Distinguiu, pois, o justo em si do justo natural. A Justiça aristotélica é,
assim a Virtude Ótima e Perfeita: quem a possui pode usá-la não só nas próprias
coisas, como também em relação às demais pessoas. E seu conceito, que ele aí buscou
pela ampliação e pela crítica prática e empírica, reduz-se a um dúplice conceito de
“igualdade”: a igualdade nas trocas ou compensações e a igualdade de direitos
públicos nos homens livres. O conceito primeiro quase que coincide com o atual
conceito de direito. O segundo se refere à política: onde a igualdade humana deixa de
ser exata, pois o filósofo justifica e recomenda a escravidão.
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– XV –
A “Ética a Nicômaco” corresponde à fase mais madura do pensamento
de Aristóteles, sendo-lhe anteriores a “Grande Ética”, de que fizemos análise, e a
“Ética de Edumo”. Na “Ética a Nicômaco” chega-se mais rápido e mais livremente ao
“objeto último”, que passa a ser, como será visto, a “felicidade” e não a virtude. A
felicidade é o sumo bem que Aristóteles, como veremos, trata desde o início. Só que a
Ética (e nesse exame se diga a “Nicomaquéia”) não é ciência pura, não é metafísica,
senão que a anima a razão prática, tendo como base inquestionável o conhecimento do
fato moral, que ela não cuida mais de conhecer. Não lhe estuda, portanto, o ser, mas o
fazer.
Pode-se resumir a já concisa Ética aristotélica, a que, por antonomásia,
corresponde a “Ética a Nicômaco”. É o que tentaremos fazer, sem quebra do
pensamento, para ressaltar o conceito da justiça e do direito.
Principia o stagirita em que todas as coisas visam a um fim. E, como as
coisas se realizam em atos, todos os atos visam a um fim, Que há casos em que os
próprios são fins (exemplo, a visão). E que outros há em que há certos fins além dos
atos (as coisas práticas, as obras), aí onde as obras são por natureza mais perfeitas que
os atos. Já que diversos são os fins (exemplo, a visão). E que outros há em que há
certos fins além dos atos (as coisas práticas, as obras), aí onde as obras são por
natureza mais perfeitas que os atos. Já que diversos são os fins (porque diversos os
atos), como os atos remontam a uma única faculdade, então os fins das artes
fundamentais são de maior valor que os das dependentes. Assim, se nas coisas práticas
há um fim que se deseja por si mesmo, pelo qual, aliás, se deseja todo o mais, e se nem
toda coisa se pode desejar por outra, sob pena de o desejar tornar-se inútil, tanto que
dirigido ao infinito, resulta que o fim das coisas práticas é o bem, isto é, o sumo bem.
Na hierarquia das artes dependentes às fundamentais, termina por
coincidirem entre si o bem do indivíduo e o da cidade. Já este último é coisa maior,
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que consome o outro, e mais perfeita. Logo a busca do sumo bem é investigação de
natureza política. Esse estudo, portanto, pertence à ciência política, que será mestra de
todas as outras.
Ora, a ciência política se ocupa do que é honesto e justo. De imediato,
nas coisas práticas, se depara o relativo, aos juízos e à razão, o que, para cada
indivíduo, revelará a variabilidade dos fins, valendo como expressão de dificuldade de
ter-se certeza da subsunção ao sumo bem.
Há de ver-se agora qual o fim da Política (qual o bem a que visa),
porque, necessariamente, este será, entre todos os bens práticos, o mais alto. Tal é, na
opinião de todos, sábios ou não, a felicidade. Discordam, entretanto sobre o que seja.
Agora Aristóteles indaga qual o método: se indutivo ou dedutivo (para o encontro
desse sumo bem ). E aqui há crítica a Platão: não há a idéia do bem, porque do bem se
fala na categoria da substância, na da qualidade, na da relação. O que é por si
(substância) existe na natureza antes daquele
da relação (acidente do ente), não
podendo haver idéia comum para todos eles. (No antes está, não só o tempo, como
também a superioridade lógica). Demais, não se fala do bem para todas as categorias,
mas, sempre, para uma única. Mesmo porque não há uma única ciência para todos os
bens, nem na mesma categoria.
– XVI –
Dos bens, como visto, se pode falar em dois sentidos: os que o são em si
e por si e os que são somente úteis. Considerados aqueles primeiros, haverá tantos
quantos se procuram e todos eles chamados indistintamente bens. Ora, se todos
encerram a idéia do bem, ou a idéia é um dos bens por si mesmos, e então é real,
deixando de ser noção comum (generalidade); ou então só ela é bem por si mesmo, o
que inutilizará essa espécie de bens que o são em si e por si, porque não haveria outro
bem fora dela. Daí, necessário esclarecer em que sentido a todos se chama bens. Será
46
ou porque dependam todos de um único bem, ou porque a ele concluam, ou por
analogia. Mas essa discussão será aqui inteiramente estéril: se há o bem que, separado
dos outros, ainda seja tal, ele não poderá jamais ser praticado nem possuído dos
homens.
Se todas as coisas práticas visam a um fim. Se há fins que consomem
outros, então há fins mais perfeitos e menos perfeitos. Essa escala não pode ir ao
infinito, tendo, pois de esbarrar em um bem bastante por si mesmo. Tal é a felicidade,
que sempre se quer por si mesma e nunca por outra coisa. De resto é única e se predica
em comum, ainda às virtudes. A felicidade é bem perfeito, é fim de todas as ações.
Colocado, pois, o conceito de felicidade na obra humana, tem-se de encontrar a
atividade que, em geral, lhe seja peculiar. Será a vida, não a vegetativa, que não a
distingue da de animais, mas a da parte racional. Mas nesta, uma parte é racional
enquanto obediente à razão; outra, porque a possui e pensa. A primeira é a potência, a
Segunda, o hábito. Sendo que nos interessa a existência em ato — porque tal é a coisa
prática — a obra do homem será a atividade do homem segundo a razão. Essa obra
será perfeita, na vida da alma segundo a virtude ótima e perfeitíssima, porque é assim
que se eleva a coisa à perfeição da virtude que lhe é própria, e numa vida perfeita, isto
é, completa, porque se quer que a felicidade seja durável.
Ora, o que conduz à felicidade são as atividades conforme a virtude. Se o
que conduz e realiza a vida humana são as atividades, então a felicidade pode ser
conseguida pelo homem. Assim o político deverá investigar a alma e ver quais as
coisas nela que podem dar o bem último, através, da virtude, isto é, que coisas da alma
serão meio para a felicidade.
Ou as partes racional e irracional da alma são separáveis, ou são
inseparáveis: mas isso aqui é irrelevante, de vez que estamos no plano da atividade. E,
pois, só interessam as virtudes da parte racional.
47
– XVII –
A Dialética de Aristóteles derrota a Psicologia da Academia: demonstra
que a parte irracional não pode ser considerada como, toda, irracional: nem a parte
racional, como inteiramente racional. A ligação entre ambas dá ao apetecer (e o
apetite) e é daí que irá derivar o conceito de virtude.
Há uma espécie de instinto que repugna à razão e que, na prática, a
combate e enfrenta. Assim os impulsos dos que não tem domínio sobre si vão em
contrário do que desejam. Assim como no corpo os ataques de paralisia subtraem
partes ao comando geral, criando partes que respondem mal e que desviam a vontade,
há tais partes na alma. Apenas não se pode explicar porque e de que forma, o que, no
presente estudo, entretanto, seria inteiramente desnecessário. Há, portanto, na alma,
uma parte fora da razão e que se lhe contradiz e opõe. E que, no entanto, participa da
razão: evidência disso é que obedece à razão do homem continente e, mais do que à
deste, à do homem temperante e forte, cujos desejos já estão compostos em completa
harmonia com a razão. Também na parte privada de razão, há dois modos: o da
vegetativa, incomunicável com a razão; o da faculdade de cobiça e de apetecer em
geral, partícipe da razão, tanto que lhe dá ouvidos e segue.
Assim, se se fosse chamar de racional também esta última parte
(irracional que se comunica com a razão), então a parte racional teria dois modos: um
onde é ela, soberanamente, e em si mesma; outro onde se lhe dá voluntariamente
ouvidos e em que, pois, não é perfeita.
Aristóteles consagra, agora, a divisão, semelhante, das virtudes: as
dianoéticas (sapiência, inteligência e prudência); as éticas (liberalidade, temperança).
A exposição, aqui, é mais simples que a da “Grande Ética”, onde é custoso extrair o
princípio geral (o que lá se exige), a partir da análise de cada uma das virtudes da
alma, com sua essência e seus acidentes. Aqui, no terreno prático, com facilidade já se
afasta, por exemplo, a prudência, que na “Grande Ética”, onde é custoso extrair o
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princípio geral (o que lá se exige), a partir da análise de cada uma das virtudes da
alma, com sua essência e seus acidentes. Aqui, no terreno prático, com facilidade já se
afasta, por exemplo, a prudência, que na “Grande Ética” é tida por comum a todas as
demais. Sendo a ética ciência dos costumes, não se dirige a qualidades interiores da
pessoa, senão no que se exteriorize. A ética busca os “hábitos” (ser brando de ânimo
ou temperante). E ainda quando se refira àquelas qualidade pessoais diz delas como
hábito.
A virtude dianoética se produz e se acrescenta pelo ensinamento, sendo
dependente da experiência e do tempo. A virtude ética provém do hábito. Mas, desde
logo, nenhuma delas é da natureza, que não enseja hábitos diversos. Assim, as virtudes
não nos vêm da natureza, nem são contra a natureza: nascem em nós, que, aptos pela
natureza a recebê-las, nos fazemos perfeitos pelo hábito. Ora, das coisas naturais,
temos em nós a potência, sendo os atos que as exteriorizam, posteriores àquela
(exemplo, a visão e os demais sentidos). Mas as virtudes, ao contrário, adquirem-se
pelo uso. E tal se dá se antes tenhamos sido ativos, práticos, a aprender, fazendo, as
coisas que se necessita aprender para fazê-las (exemplo, o justo só se torna tal,
operando coisas justas, o que se repete em todas as demais virtudes).
Os hábitos resultam da prática de atos idênticos., Assim a virtude deriva
da prática dos mesmos atos. A virtude, justa medida da ação, deriva dos atos virtuosos.
E de tal deriva se a prática não é ao acaso, mas por disposição virtuosa, o que envolve
o saber o que se faz, o propósito de fazer o que se faz, bem como a vontade firme, isto
é, a estabilidade do procedimento. Tais condições, à exceção da do saber, não advêm
da aquisão das artes. Não se ensina, pois, a virtude como ciência.
– XVIII –
Ressaibo metafísico e quebra da linha de pensamento, Aristóteles quer
agora dizer o que é a virtude. Afinal de contas, retoma a indagação, porque já
49
demonstrou o que é a virtude, como vimos, resolvendo-a no conceito de ato. Aqui ele
quer ver a virtude não na atividade, mas na imutabilidade, porque demonstrou que ela
decorre do hábito. Por isso irá elaborar as formas de virtude, às quais remeta a mesma
lei do justo meio. Aristóteles tem, aqui, por homenagem a Platão, de resolver,
dialeticamente, a unidade ou multiplicidade das virtudes, para provar que são múltiplas
pelo conteúdo e únicas pela forma.
Aristóteles identifica três coisas que têm origem na alma: afetos,
potências e hábitos, uma das quais será a virtude. Ora, não se diz sermos bons ou maus
pelos afetos nem pelo poder que tenhamos de tê-los (potência), porque neles não está o
propósito, que a virtude supõe (para negá-la quanto aos afetos), ao passo que estão na
natureza, o que não se diz da virtude (para negá-la quanto às potências).
As virtudes são, portanto, hábitos, mas é preciso dizer quê hábitos. Já
porque aperfeiçoa a conduta, a virtude será um hábito porque é feito bom o homem e
boa a sua obra. Mas, de outro lado, como em toda coisa (contínua ou divisível) se
pode tomar o mais, o menos, o igual; e estes, tanto com respeito às coisas mesmas,
quanto em relação a nós. Se em relação à coisa, o meio é conforme à proporção
aritmética, com relação a nós não se dá do mesmo modo. Logo, se a virtude versa os
afetos e as ações, nos quais o excesso é erro, censurado, mas o meio é justo, louvado, a
virtude é certa medianidade, e também se dirige ao meio. Mas como se pode errar de
muitos modos, a virtude é escolha, será o hábito de propor-se o meio para nós,
segundo a razão. Descendo aos casos particulares, da substância, assinala o filósofo
que, às vezes, a virtude pode, sendo o meio, estar mais próxima de um dos extremos
(exemplo, a coragem, mais perto da audácia que da covardia). Assim, achar o “centro
do círculo”, é difícil, só é dado a quem sabe.
Existindo a virtude com relação aos afetos e às ações, já que o louvor, a
censura se atribuem às coisas voluntárias, porque se perdoa as involuntárias,
necessário definir o voluntário e o involuntário. Mas, pela razão de serem escolhidas
no momento em que se fazem, e o fim das ações ser sempre conforme as
50
circunstâncias, passa a ser voluntário o que, noutras, não o fosse. É preciso a
espontaneidade, isto é, que o princípio das coisas esteja em nós, e igualmente o operálas ou não as operar, sendo voluntárias, deste modo, as ações, ainda quando não se
escolhesse o fazê-las por si mesmas, quando, no absoluto, seriam involuntárias. Ao
passo que forçado (inespontâneo) é aquilo que vem de fora, cujo princípio está fora do
agente, que em nada contribui para sua ocorrência.
O propósito é voluntário, mas nem todo voluntário é propósito. Propósito
é o que se faz de improviso. Ademais, do impossível não existe propósito. Do
impossível pode haver a vontade. Mas a vontade é, antes, do fim; o propósito é das
coisas que respeitam ao fim. Porque o propósito é, em geral, das coisas que de nós
dependem. O propósito não é, pois, a opinião, que pode existir a respeito de todas as
coisas. Demais, a opinião se distingue em verdadeira e falsa, diversamente do
propósito, que é bom ou mau, e para nós não importa, no presente estudo, seja o
propósito anterior ou posterior à opinião, mas distingui-los.
A deliberação é sobre as coisas que de nós dependem. Não, assim, pois,
das ciências exatas. E sim nas artes, sujeitas, mais que nas ciências, a incertezas. E,
principalmente, nas que não se vê como se possam concluir, onde não raro, tomamos
conselhos e conselheiros. Mas não deliberamos acerca dos fins, e sim do que diz
respeito aos fins. Senão que, uma vez posto o fim (proposto, aliás), estudamos o como
consegui-lo. O estudo é, pois, para a escolha dos meios, até remontar-se à causa
primitiva, que é a indagação última. De modo geral, embora nem toda pesquisa
(exemplo, a matemática) seja de deliberação, o que é último na resolução é o primeiro
na atuação. Assim as ações são meios para o fim, já que o fim mesmo não pode ser
deliberado. Nem tampouco a coisas particulares, o que é questão de sensação. Pois, se
se quisesse deliberar sempre, ir-se-ia ao infinito. Logo, se o objeto do propósito é o
que podemos deliberar, apetecêmo-nos deliberadamente, com o juízo acerca das coisas
a nós atinentes e pertinentes.
51
A vontade, já o disse Aristóteles, é do fim, enquanto o propósito, dos
meios. As ações serão conforme o propósito e voluntárias. Mas, em torno delas, estão
os atos virtuosos. Portanto, a virtude se acha em nosso poder. De nós dependerá fazer
ou não o bem e, assim, sermos probos ou perversos. Ora, se não temos meios de
reconduzir as coisas a princípios que não estejam em nós, então as coisas cujo
princípio em nós está dependem de nós e são voluntárias, a menos que se negue ser o
homem princípio e genitor das ações, Os indivíduos em particular , acerca das coisas
cujo princípio está em nós, afastam a negligência (exemplo, o ébrio), como escusativa.
Afastam, portanto, o de que de nós depende não ignorar. De resto, somos filhos de
nossas ações, principalmente se não somos perseverantes, hipótese em que elas nos
fazem a nós mesmos. Porque os hábitos se adquirem com o cumprir atos. Assim os
vícios que são censurados mesmo que naturais, são os adquiridos, os que dependem de
nós.
– XIX –
Se as virtudes são voluntárias, porque somos con-causas dos nossos
hábitos e, de nossas qualidades depende o fim que nos propomos, voluntários também
serão os vícios. Mas das ações somos senhores, do princípio ao fim, pelo
conhecimento que temos dos particulares em que versam; ao passo que dos hábitos
somos apenas senhores do princípio, refugindo-nos o controle através dos atos
particulares. Mas, de início, os hábitos são, também, voluntários, pela escolha.
Depois que Aristóteles encontra que coisa é a virtude ética, e prova o
seu caráter voluntário, desce às virtudes particulares. Uma, dentre elas, a de que nos
ocupamos, a Justiça: incomparavelmente mais importante que as demais e cujo
significado primário e genérico é o respeito às leis; e, como as leis ordenam o bem da
comunidades e as virtudes que daí derivam e que para aí concorrem, e proíbem as más
ações, pode-se afirmar que é a justiça a virtude ótima e perfeita: perfeita, porque quem
a possui pode usá-la não só nas próprias coisas, senão que também nas relações com os
52
outros. Já, em sentido estrito, vê o grande filósofo que a Justiça é de natureza dúplice:
de um lado a distribuição do divisível entre os cidadãos, justiça distributiva; de outro,
justiça comutativa, a que rege as aquisições e os contratos, e que está na igualdade das
relações. E a justiça corretiva, em que os culpados são tratados como iguais,
irrelevantes as qualidades pessoais. O juiz chega a ser a justiça personificada. O obrar
certamente é meio entre dois vícios: o fazer injustiça e o sofrer injustiça.
Aristóteles descobre também a equidade, que tem lugar quando a justiça
respeita a caso que refoge do comum e da generalidade própria da lei, como correção,
de que a lei, por sua abstratividade, necessita continuamente.
Eis aí o que nos ocupa: a teoria aristotélica sobre a justiça, suscetível de
reduzir-se a um conceito dobrado: de igualdade nas trocas ou compensações, e de
igualdade de direitos públicos nos homens livres. É o primeiro o que se refere ao
direito: Aristóteles chegou, assim, tranqüilamente, ao direito. O segundo dos conceitos
reporta-se à política.
53
CONCLUSÃO
No conceito jurídico está clara a condenação da fraude. No político, a sua
vez, presente está a idéia de igualdade de todos perante a lei, exatamente no moderno
sentido — que se lhe adapte — cristão e democrático, posto que o stagirita acolheu a
justiça e conveniência da escravidão.
A divisão bipartida da justiça, em comutativa e distributiva, é
essencialmente prática, pois que exatamente assinala, com anterioridade histórica, que
as relações de justiça — e assim as relações jurídicas — podem ser de troca ou
distribuição. Aí está o embrião da diferença entre o direito privado e o direito público,
que, por conseguinte, já era conhecida de Aristóteles.
–I–
O que põe termo à exposição de meios para a virtude é a exposição do
direito: Aristóteles percebe sua iniludível vocação a reger a comunidade humana e crê
na sua insubstitutibilidade. Veja-se: “Não basta saber que coisa é a virtude: há mister
tornar-nos bons. Se bastassem os raciocínios, bem devêramos fazer de tudo para
procurarmos muitos. Mas, contudo, eles embora servindo para reafirmar no culto do
belo e do bom os mais nobres e bem-nascidos dentre os jovens, são impotentes no
induzir ao bem e à beleza a grande maioria. Os mais do homens, com efeito, não
obedecem à voz da honra, mas cedem somente ao temor do castigo. Vivendo presa das
paixões, não se entregam a nenhum pensamento acerca da virtude, que sequer
provaram nunca (para Aristóteles, a vida segundo o pensamento é a mais feliz, já que,
mais própria do homem, é a mais perfeita, tendo seu valor em si mesma). Que
raciocínio poderia movê-los? É, portanto, oportuno indagar dos outros meios por que o
homem possa tornar-se bom.
54
Alguns acreditam que os faça bons a natureza; outros, o hábito; outros,
enfim, o ensino (aí Aristóteles sintetiza as correntes filosóficas precedentes. Mas o que
vem da natureza não depende de nós, antes é dado aos verdadeiramente felizes por
certas causas divinas. O ensinamento também não cativa a todos, mas somente àqueles
já preparados pelo hábito, como terreno já disposto para receber a semente: onde a
paixão domina, não se cede à palavra, mas à força.
É necessário que ao ensinamento preceda o bom costume, a fim de
aquele ser frutuoso. Mas ter, por fortuna, desde jovem uma reta educação, é difícil a
quem não tenha sido nutrido sob boas leis. O viver com temperança, constantemente,
não é coisa agradável aos mais, mormente ao jovens. Por isso é preciso que a educação
seja ordenada pelas leis, a fim de que se formem nos jovens os bons hábitos. E não só
os jovens tem necessidade de educação, mas também os adultos, porque a maioria
obedece antes à necessidade e às penas, e não aos raciocínios e à bondade. As leis,
pois, acompanham o homem por toda a vida, e impelem à virtude, os bem dispostos,
com o amor do belo; a quem é escravo do prazer, com a repreensão e com as penas,
segregando da convivência dos outros quem seja de todo incorrigível.
A autoridade paterna não possui tal vigor suficiente para constranger,
nem o tem, em geral, a autoridade dum só homem; tem-no, ao invés, a lei, como
expressão da razão e da sabedoria. Ademais, as prescrições dum indivíduo acordam
facilmente aversão naqueles a quem são endereçadas: a lei, prescrevendo o honesto,
não fica exposta ao ódio de ninguém ... resta sempre verdadeiro que, como em todas as
outras coisas, é competente aquele que possui a ciência, a qual faz parte do universal.
Logo, quem quer fazer melhores os homens, trate-se duma família ou duma
comunidade, deve primeiro tornar-se apto para instituir leis”18.
A Aristóteles, portanto, não basta o ter visto que a Justiça exige que as
coisas sejam distribuídas eqüitativamente aos membros da cidade ou Estado. Ele
pretende que o Direito defenda essa justa distribuição de quaisquer violações. É assim
18
ARISTÓTELES. “Ética a Nicômaco, Ed. de Ouro, 1980, p. 162-4.
55
que, ao lado da justiça distributiva, a cargo do legislador, há outra espécie de justiça
distributiva, a cargo do legislador, há outra espécie de justiça no sistema aristotélico: a
justiça corretiva. Partindo do pressuposto de que a distribuição de direitos e deveres
tenha sido adequadamente feita pelo legislador, fica à justiça garantir, protegendo e
mantendo aquela distribuição contra
os ataques ilegais e, assim, se necessário,
restabelecer o equilíbrio distributivo, restituindo à vítima o que lhe pertencia ou
compensando-a dos prejuízos que sofreu. Do mesmo modo, retirar-se-á, a quem o
ganhou, o enriquecimento ilícito. O princípio de igualdade, na justiça corretiva, é,
então, aritmético, ao passo que o da distributiva é geométrico, atinente às diferenças
individuais. Aritmeticamente, também, atua ou deve atuar a justiça comutativa.
– II –
Entronca no conceito aristotélico de justiça a concepção do “suum
cuique”, de Ulpiano. Dir-se-ia eliminada a idéia de “igualdade”. Mas é inegável a
influência do stagirita, porque o que houve foi simples modificação de forma, ao lado
de nova ênfase. É, pois, aristotélica, no fundo, a definição que se transpôs, de Ulpiano,
para o “Corpus Juris Civilis”, de Justiniano. De igual modo, remonta a Aristóteles, na
origem, o adjutório do “neminem laedere”. A “justiça” romana, cujo conceito se
originou em Cícero, pretenderia orientação diversa, a de afastar a “igualdade”. Mas é
evidente o substrato de que duas pessoas, às quais pertençam as mesmas coisas, devam
receber tratamento igual.
A distinção aristotélica de justiça comutativa e distributiva foi
inteiramente acolhida pelo “doutor angélico”. E, assim como por Santo Tomás de
Aquino, por um grande número de filósofos e sociólogos posteriores. Assim à guisa de
exemplo, Giorgio Del Vecchio acrescenta à igualdade, a bilateralidade, a
reciprocidade, o contracâmbio e a remuneração: fiel, sem dúvida a Aristóteles.
56
Seja como for, o conceito aristotélico de justiça (igualdade) domina até
Stammler e, principalmente, Spencer, com a idéia da liberdade. É que Aristóteles, ao
ver que há homens destinados a ser senhores e outros a servir, chegou a admitir que,
para os servos, a escravidão era benéfica, e chegou a justificar a escravidão, para eles
justa. Mas sua posição com respeito à escravidão já o era com reservas. Ele também
via que ela era concomitante com uma sociedade tecnicamente subdesenvolvida,
superável, entretanto, se resolvido o problema da produção. Eis que, na “Política”,
alude ao tear que tecesse sozinho e ao plectro que, por si só, fizesse vibrar a lira.
Spencer veria a justiça em que todo homem tem a liberdade de querer e
fazer, sob a condição de não ferir idêntica liberdade do semelhante. A liberdade seria o
valor fundamental. Já, para Kant, para quem a liberdade seria o único direito natural,
inerente à idéia de ser humano, o direito representa a totalidade das condições, sem
dúvida, a própria igualdade aristotélica. De Kant se pode dizer, portanto, que seria ele
o divisor de águas, no extremo da oposição e, ao mesmo tempo, preparando o retorno
da liberdade ao conceito de igualdade.
Desde que se assinalou a insuficiência da noção de igualdade, e isto, já,
porque a justiça e o direito requerem um certo descenso à situações individuais (e não
há olvidar que os próprios romanos tinham o “summum jus, suma injuria”), pareceria
falível a noção aristotélica. Não há negar a pertinência do problema e da solução
proposta. Curiosamente, também não há negar a antevisão de Aristóteles: que mostrou,
sendo a lei regra geral que não prevê exceções, casos
em que, singulares ou
extraordinários, deva o juiz (a justiça personificada) corrigir o absolutismo deficiente e
errôneo. Aristóteles viu essa mesma exigência de variabilidade, noutro aspecto,
fazendo por identificar o direito positivo: “o direito não é como o fogo, que arde do
mesmo modo na Pérsia e na Grécia”.
Aristóteles, ainda, sem que tenha, de modo algum, olvidado o direito
positivo, o que, em contrário, acabamos de demonstrar, é quem primeiro vê o justo,
segundo a natureza, e o justo, segundo a lei, todavia na inteireza de que o direito
57
positivo, a lei, é a realização do direito natural, da justiça, imanente ao homem. Porque
é o direito positivo aplicação da idéia universal de justiça às circunstâncias concretas
da vida.
Com Aristóteles, o que temos demonstrado ao longo do presente estudo,
a razão substitui, em definitivo, a revelação. Se o direito só existe porque existe o
homem, o animal político. Se o homem só é tal, porque é racional. É evidente que o
direito é um postulado da razão. Da razão teorética e da razão prática. É ele a própria
condição da existência humana. O direito é a vida, já se disse. É ele a felicidade, causa
final dessa última. É ele, por fim, a essência humana. A aspiração da justiça é a
aspiração humana, sempre presente, de felicidade: opinião, até mesmo, de Kelsen.
Difícil, dificílimo, será encontrar o sistema jus-filosófico que não deite
raízes no pensamento aristotélico. E Aristóteles termina por ser o primeiro jus-filósofo,
jogando sobre a Ética, já debatida por Sócrates e Platão, como dissemos sobre o
demais, a estrutura dialética do inteligível, e fazendo descer a idéia ou ideal de justiça
ao plano do sensível e, portanto, da convivência humana.
Assim, se Sócrates sepultou a amoralidade e Platão ideou a justiça, na
harmonia dos contrários, o primeiro é ainda falto de sistematização, enquanto o
segundo a deduz, e sua forma seria supra-racional. O stagirita induz o direito, que
ascende, assim, do imperfeito das criações humanas ao supremo valor ético que
também aqueles buscam. Só que o direito, de Aristóteles, responde de perto à
necessidade humana. É algo que de nós depende e eis o grande vulto da concepção,
em que o homem, sob o império da razão, que dita o valor moral dos afetos, constrói,
desde as bases, o equilíbrio quiçá tão almejado e imponderável. Eleva-se, por ele, o
homem, à mais alta de suas aspirações, sem descurar a sua natureza, de modo que, por
ele, supre as suas deficiências.
O ser não é outra coisa que as coisas mesmas não sejam. O realismo
aristotélico lança o direito, para todo o sempre, como a mais corriqueira das criações
58
humanas e mais necessária e — por isso mesmo — a maior, a mais perfeita e a última,
resolvendo, com anterioridade e de modo definitivo, a velha antinomia entre o nômeno
e o fenômeno, entre a justiça e a idéia do justo, entre o justo legal e o justo natural.
Porque somente Aristóteles, em primeiro lugar, descobre a aparência de verdade de
seus precessores, que se referem apenas ao “querer”, quando o direito não pertence
unicamente ao conhecimento.
Belo Horizonte, outubro de 1981.
JOSÉ MARCOS RODRIGUES VIEIRA
59
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