i UNIVERSIDADE TECNOLÓGICA FEDERAL DO PARANÁ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TECNOLOGIA A FRAGMENTÁRIA HISTÓRIA DA FÁBRICA DE MÓVEIS MARTINHO SCHULZ: tradição e modernidade na produção artesanal com fibras de Curitiba. MARIUZE DUNAJSKI MENDES Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Tecnologia. Programa de Pós-Graduação em Tecnologia, da Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Orientador: Prof. Dr. Gilson Leandro Queluz CURITIBA NOVEMBRO 2005 ii MARIUZE DUNAJSKI MENDES A FRAGMENTÁRIA HISTÓRIA DA FÁBRICA DE MÓVEIS MARTINHO SCHULZ: tradição e modernidade na produção artesanal com fibras de Curitiba. Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Tecnologia. Programa de Pós-Graduação em Tecnologia, da Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Orientador: Prof. Dr. Gilson Leandro Queluz CURITIBA NOVEMBRO 2005 Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da UTFPR – Campus Curitiba M538f Mendes, Mariuze Dunajski A fragmentária história da fábrica de móveis Martinho Schulz : tradição e modernidade na produção artesanal com fibras de Curitiba / Mariuze Dunajski Mendes. – Curitiba : UTFPR , 2005. xiii, 210 f : il. ; 30 cm Orientador : Prof. Dr. Gilson Leandro Queluz Dissertação (Mestrado) – UTFPR. Programa de Pós-Graduação em Tecnologia. Curitiba, 2005. Bibliografia : f. 202-208 1. Indústria de móveis – Brasil. 2. Mobiliário – História. 3. Artesanato. 4. Desenho industrial. 5. Artesões. 6. Tradição. 7. Inovações tecnológicas. 8. Schulz (Fábrica) – História. I. Queluz, Gilson Leandro, orient. II. Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Curso de Pós-Graduação em Tecnologia. III. Título. CDD : 684.10981 CDU : 684.4 iii “O artesanato corre junto com o tempo, e não quer vencê-lo. O artesanato não quer durar milênios nem está possuído pela pressa de morrer logo. Transcorre com os dias, flui conosco desgasta-se pouco a pouco, não busca a morte nem a nega: aceita-a. O artesanato nos ensina a morrer e assim, nos ensina a viver”. (Octavio Paz) iv Dedicatória Aos meus amores e companheiros de todas as horas: Edison, Rafael e Gabriel. v Agradecimentos À Universidade Tecnológica Federal do Paraná e ao Departamento Acadêmico de Desenho Industrial. Ao Programa de Pós-Graduação em Tecnologia – PPGTE, pela acolhida e pelo espaço para reflexão e aprendizado. A todos os professores que participaram desta caminhada, contribuindo com seus valiosos conhecimentos para possibilitar estas reflexões e a todos do corpo técnico-administrativo (em especial à Lindamir) pela prontidão em nos auxiliar nas horas difíceis. Ao Prof. Dr. Gilson Leandro Queluz, por ter a disposição e muita paciência de me receber como orientanda, sendo mais do que um orientador um amigo, pronto para partilhar seus conhecimentos e ampliar minhas reflexões, questionando, conduzindo por caminhos que se mostraram tão ricos de possibilidades e estimulando a percepção dos múltiplos olhares sobre a história e as pessoas. Às Profas. Dras. Ângela Brandão, Marília Carvalho e Virgínia Kistmann por contribuírem para o processo de amadurecimento destas reflexões. Aos amigos que contribuíram com incentivo, conversas e idéias. Com carinho especial à Marilda, pela amizade de tantos anos e pelo incentivo desde o início deste caminho, acreditando até mesmo no que eu não acreditava. À Luciana que me despertou para o mundo das imagens. Às “meninas” do departamento de Desenho Industrial, pelo apoio e amizade. Aos entrevistados, Sr. Darci Ferro, Silvano Túlio, Eromir Stival, Geraldo Stival, Aparecido, Izair Zanotti, Antônio Levino, Erico Meissner, Dario Marcolla, que tão gentilmente me receberam em suas casas e por seus depoimentos possibilitaram que este trabalho se concretizasse. Em especial ao Sr. Armando Túlio que me recebeu como amiga, compartilhando seus conhecimentos sobre o trabalho artesanal e a vida. Com muito carinho para toda a minha família, que me apoiou em todas as horas. À minha mãe e meu pai que conseguiram, com muita luta, me proporcionar os estudos. A eles devo este momento. À Sandra, que com muita paciência e carinho “segurou todas as barras” em casa para me ajudar. Ao Edison, meu companheiro e grande amor da minha vida, que há mais de 20 anos vem me ajudando, compartilhando e dando apoio em todos os momentos, refletindo comigo, sendo a pessoa que mais participou desta pesquisa e sem quem ela não aconteceria. Aos meus filhos queridos, Rafael e Gabriel, que com tanto carinho ajudaram, compreendendo os momentos de ausência da mãe e me fortalecendo com palavras, abraços e brincadeiras. Muito Obrigada !!!! vi SUMÁRIO LISTA DE FIGURAS.....................................................................................................viii LISTA DE TABELAS.......................................................................................................xi RESUMO...........................................................................................................................xii ABSTRACT......................................................................................................................xiii INTRODUÇÃO..................................................................................................................14 CAPÍTULO 01.................................................................................................................. 18 OS MÚLTIPLOS OLHARES E VOZES: UMA TENTATIVA DE ABORDAGEM METODOLÓGICA. CAPÍTULO 02.................................................................................................................. 32 A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NACIONAL E PARANAENSE A PARTIR DAS HIBRIDAÇÕES CULTURAIS E DAS TENSÕES ENTRE AS TRADIÇÕES E MODERNIDADE. 2.1 - Tradição e Modernidade...........................................................................................32 2.2 - Culturas, Multiculturalismo e Identidades................................................................38 2.3 - A construção da identidade da Nação brasileira.......................................................44 2.4 - A construção da identidade Regionalista Paranaense...............................................49 2.5 - A modernização do Estado do Paraná e da cidade de Curitiba.................................58 CAPÍTULO 03...................................................................................................................65 A PRODUÇÃO MOVELEIRA ARTESANAL EM CURITIBA 3.1 - O conhecimento tecnológico e o fazer artesanal.......................................................65 3.2 - O Artesanato..............................................................................................................71 3.3 - O artesanato moveleiro com fibras em Curitiba........................................................80 3.3.1 O processo de imigração na cidade de Curitiba e a formação das comunidades locais 3.3.1.2 - Os Italianos. 3.3.1.2 - Os Alemães. 3.4 - O percurso do artesanato moveleiro do Paraná........................................................89 3.4.1 - O móvel artesanal de fibras de Curitiba e a modernização.............................101 vii 3.5 - O Artesanato e o Mobiliário...................................................................................105 3.5.1 - As permanências e transformações na trajetória do móvel brasileiro.............105 CAPÍTULO 04.................................................................................................................115 IMAGENS E PROPAGANDAS DAS FÁBRICAS DE MÓVEIS ARTESANAIS DO PARANÁ, NAS DÉCADAS DE 30 E 40 DO SÉCULO XX. 4.1 - A aproximação das teorias de análise de imagens na interpretação das relações entre texto e imagem presentes nas propagandas veiculadas pelas fábricas de móveis artesanais do Paraná e a sua contextualização no cenário da modernidade......................................116 4.1.1 Os modos de viver e os móveis do início do século XX: as imagens dos anúncios publicitários e o consumo dos móveis..............................................................................124 4.2 - As relações entre texto e imagem nas propagandas veiculadas pela fábrica de móveis de Martinho Schulz, nas décadas de 30 e 40....................................................................128 CAPÍTULO 05..................................................................................................................150 RELAÇÕES DE PRODUÇÃO E CIRCULAÇÃO DOS ARTEFATOS DA FÁBRICA DE MÓVEIS DE MARTINHO SCHULZ. 5.1 - O fragmentário histórico da fábrica de móveis Martinho Schulz, de 1930 a 1970.................................................................................................................................150 5.2 - A estrutura física da fábrica de móveis Martinho Schulz.......................................156 5.3 - Relações de trabalho na fábrica de móveis Martinho Schulz.................................159 5.4 - Tecnologias e matérias–primas empregadas na fábrica de móveis Martinho Schulz..............................................................................................................................168 5.5 -Criação, produção e circulação dos produtos da Fábrica de Móveis Martinho Schulz..............................................................................................................................182 CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................................192 REFERÊNCIAS...............................................................................................................202 ANEXOS...........................................................................................................................209 viii LISTA DE FIGURAS FIGURA 1: Martin Schulz, proprietário da Fábrica de Móveis Martinho Schulz................20 FIGURA 2: Representações de ícones da Identidade Paranaense. Respectivamente: estilização do pinhão por Lange de Morretes, 1930; o Semeador, de Zaco Paraná, 1925; capitel e estudos de colunas de João Turin, da mesma época..............................................................................54 FIGURA 3: Pranchas do plano Agache, de 1940. Representam o planejamento em espiral de expansão das ruas da cidade e do projeto para o Centro Cívico...............................................60 FIGURA 4: Maquete do Centro Cívico....................................................................................61 FIGURA 5: Prédio da Biblioteca Pública e o mural da praça 19 de dezembro, obras projetadas para o centenário da Emancipação Política do Paraná.............................................................62 FIGURA 6: Confecção das cestas italianas na comunidade de Santa Felicidade....................86 FIGURA 7: Imagens das ferramentas trazidas pelos imigrantes italianos nas suas bagagens para o Brasil............................................................................................................................. 92 FIGURA 8: Cestos de vime produzidos pela família Stival.....................................................94 FIGURA 9: Roupeiros de vime e carrinhos de boneca produzidos pela família Stival...........95 FIGURA 10: Moisés e Berços de vime produzidos pela família Stival...................................99 FIGURA 11: Poltrona Concha...............................................................................................102 FIGURA 12: Cama Patente....................................................................................................109 FIGURA 13: Os estudos do designer Sérgio Rodrigues para a Poltrona Mole......................111 FIGURA 14: Interior da loja Artesanal..................................................................................112 FIGURA 15: Anúncio veiculado de ambiente produzido por Móveis Schulz.......................118 FIGURA 16: Catálogo de móveis artesanais em fibras de uma empresa alemã....................119 FIGURA 17: Anúncios veiculados em revistas de São Paulo, no final do século XIX e início do XX, utilizando a caricatura como elemento de divulgação................................................121 FIGURA 18: Anúncio da fábrica de móveis de vime Darcie e Cia, de Curitiba....................122 FIGURA 19: Estação da luz em São Paulo, retratada em cartão postal.................................123 FIGURA 20: Lembrança com o dirigível, 1938.....................................................................123 FIGURA 21: Anúncio de móveis, da fábrica da viúva José Wenz........................................125 FIGURA 22: Anúncio de uma fábrica de móveis do Paraná.................................................126 FIGURA 23: Anúncio publicado em uma revista de divulgação de serviços e produtos, com textos e fotografia referentes à fábrica de móveis de Martinho Schulz.................................131 FIGURA 24: Carrinho “tipo Brasil”, de molas duplas..........................................................133 ix FIGURA 25: Anúncio publicado em uma revista de divulgação de serviços e produtos, com textos e fotografia referentes à fábrica de móveis de Martinho Schulz.................................134 FIGURA 26: Ambiente da Belle Époque, de uma residência do Rio de Janeiro...................135 FIGURA 27: Charge do “O Olho da Rua, n.09, 14/10 1911..................................................136 FIGURA 28: Foto do catálogo de Móveis Schulz, demontrando a introdução dos cenários ligados aos ícones da modernização.......................................................................................138 FIGURA 29: Anúncio publicado em uma revista de divulgação de serviços e produtos, com textos e fotografia referentes à fábrica de móveis de Martinho Schulz.................................139 FIGURA 30: Fotografia do modelo apresentado no catálogo de Móveis Schulz..................140 FIGURA 31: Cena urbana da cidade do Rio de Janeiro, no início do século XX.................141 FIGURA 32: Anúncio publicado em uma revista de divulgação de serviços e produtos, com textos e fotografia referentes à fábrica de móveis de Martinho Schulz.................................143 FIGURA 33: Anúncio publicado em uma revista de divulgação de serviços e produtos, com textos e fotografia referentes à fábrica de móveis de Martinho Schulz.................................144 FIGURA 34: Capa de catálogo alemão do início do século XX.......................................... 146 FIGURA 35: Anúncio dos produtos da fábrica de Móveis de Martinho Schulz.................. 147 FIGURA 36: Carrinhos de bebê e de boneca da fábrica de Martinho Schulz.......................148 FIGURA 37: Ambiente apresentado em anúncio de 1943, mostrando móveis de estilo moderno................................................................................................................................ 149 FIGURA 38: Anúncio da “Fábrica Joinville” de Martinho Schulz...................................... 151 FIGURA 39: Stand na Exposição Industrial de 1932, retratando um ambiente com móveis em vime de Martinho Schulz ..................................................................................................... 152 FIGURA 40: Fotografias de uma papeleira e uma bolsa de vime, produzidas pela fábrica de Martinho Schulz.................................................................................................................... 155 FIGURA 41: Foto da fachada da loja e fábrica de Móveis de Martinho Schulz, apresentada em um anúncio........................................................................................................................158 FIGURA 42: Tacho para cozimento das fibras naturais........................................................ 169 FIGURA 43: Natalino Túlio, artesão de Santa Felicidade, fundador de Móveis Túlio, utilizando o rachador para abrir as hastes de vime................................................................ 171 FIGURA 44: Laminadora de vime da fábrica de Martinho Schulz....................................... 172 FIGURA 45: Furadeira horizontal produzida para Móveis Schulz, adaptada para o trabalho artesanal................................................................................................................................. 173 FIGURA 46: Lixadeira feita em madeira, produzida pela indústria Seiler para Móveis Schulz.................................................................................................................................... 174 x FIGURA 47: Cadeiras feitas em vime, com armação de ferro maciço, produzida na década de 50 por Móveis Schulz.............................................................................................................176 FIGURA 48: Catálogo de poltronas produzidas por Móveis Schulz.....................................177 FIGURA 49: Técnica de envernizamento com o uso de pistola............................................178 FIGURA 50: Móveis feitos com cordel produzido pela fábrica de Móveis Schulz..............181 FIGURA 51: Cadeira de rodas para portadores de necessidades especiais, fabricada por Móveis Schulz........................................................................................................................183 FIGURA 52: Página de um catálogo de Martinho Schulz com produtos numerados..............................................................................................................................185 FIGURA 53: Página com alguns produtos constantes no catálogo de Martinho Schulz, com códigos de identificação.........................................................................................................186 FIGURA 54: Página de um catálogo alemão, da S,C&C, com produtos e tabela de características e preços...........................................................................................................187 FIGURA 55: Página de um catálogo de Martinho Schulz com produtos numerados, em uma composição sugerida para ambientação dos mesmos............................................................188 FIGURA 56: Fotografia de um catálogo de Martinho Schulz, composto por uma montagem com vários produtos feitos pela fábrica.................................................................................190 FIGURA 57: Anúncio da Fábrica de Móveis Cerello, de São Paulo.....................................198 xi LISTA DE TABELAS E QUADROS TABELA 1 - Entrevistados.....................................................................................21 QUADRO 1 - Tensões presentes no ofício artesanal..............................................77 xii RESUMO O objetivo desta pesquisa foi resgatar pelas memórias individuais e coletivas, através de depoimentos e imagens, a percepção dos artesãos sobre as relações de trabalho e o percurso histórico do móvel artesanal com fibras em Curitiba. A reconstrução desta fragmentária história partiu das análises da fábrica de móveis artesanais com fibras de Martinho Schulz, que foi representativa das tensões entre a tradição e modernidade e das hibridações sociais e culturais ocorridas a partir da imigração Européia no Paraná, sendo estas refletidas e refratadas nas esferas da produção, circulação e consumo dos artefatos artesanais. Para falar sobre o mobiliário artesanal com fibras, partimos da intenção de ir além do estudo dos materiais, dos meios, da produção e das técnicas, mas de compreender as relações sociais, históricas, culturais e tecnológicas envolvidas na produção e circulação dos artefatos em um determinado contexto, e principalmente como estas relações foram percebidas e interpretadas através das memórias de quem vivenciou este processo, que expressa a nossa cultura e identidade. As fontes utilizadas como referência foram não só os documentos e textos, mas principalmente as imagens, fotografias e anúncios publicitários encontrados sobre a fábrica, analisados em um diálogo permanente com os depoimentos dos artesãos que vivenciaram as permanências e transformações ocorridas frente às demandas capitalistas e à tentativa de inserção de processos industriais na confecção dos móveis artesanais da fábrica de Móveis de Martinho Schulz. Palavras-chave: História do Mobiliário; Artesanato e Design; Tradição e Modernidade; Antropologia Urbana; Fábrica de Móveis Schulz. xiii ABSTRACT The objective of this research was to rescue for the individual and collective memories, through depositions and images, the perception of the craftsmen on the work relations and the historical passage of the craft’s furniture with staple fibers in Curitiba. The reconstruction of this fragmentary history, left of the analyses of the plant of furniture with fibers of Martinho Schulz, that was representative of the tensions between the tradition and modernity occurred from the social and cultural mixing with european immigration in the Paraná, being these reflecting and refracting in the spheres of the production, circulation and consumption of the crafts devices. To speak on the furniture with fibers, we leave of the intention to go beyond the study of the materials, the ways, the production and them techniques, but to understand social, historical, cultural and technological the relations involved in the production and circulation of the devices in one determined context, and mainly as these relations had been perceived and interpreted through the memories of who it lived deeply this process, that express our culture and identity. The used sources as reference had been not alone the documents and texts, but mainly the images, photographs and announcements advertising executives found on the plant, analyzed in a permanent dialogue with the depositions of the craftsmen who had lived deeply the occurred permanences and transformations front to the capitalist demands and the attempt of insertion of industrial processes in the confection of the craft’s furniture of the plant of Furniture of Martinho Schulz. Key-words: Furniture’s History; Crafts and Design; Tradition and Modernity; Schulz’s Furniture’s Factory; Urban Anthropology. 14 INTRODUÇÃO O móvel da casa nos remete ao aconchego, à família, aos desejos e às memórias. A casa da avó..., a casa assombrada..., a casa dos sonhos. Como coloca Bachelard, em sua poética do espaço: Porque a casa é nosso rincão do mundo. É, diz-lhe com freqüência, nosso primeiro universo. É realmente um cosmos. (Bachelard, citado por VERÍSSIMO, BITTAR, 1999, p. 9). Dentro das casas, são os móveis que dão vida e definem os espaços, os usos, os estilos e o sentir de quem vive nelas. Estudar o móvel artesanal com fibras em minha dissertação foi gratificante e instigante, pois este tema nos leva a discutir não só os aspectos materiais da produção moveleira, mas a memória deste processo, que também expressa a nossa cultura e identidade. Falar sobre o mobiliário é muito mais do que conhecer os materiais, os meios, a produção, as técnicas... É compreender as relações sociais, históricas, culturais e tecnológicas envolvidas na produção e circulação dos artefatos em um determinado contexto, mas, principalmente como estas relações são percebidas e interpretadas através das memórias de quem vivenciou a realidade do período envolvido nas análises. Segundo Artigas, pioneiro da produção moveleira nacional, ... o que importa em relação ao móvel é recuperar o afeto especial que o homem brasileiro sempre teve pela madeira, redescobrir as origens, nos nomes das essências vegetais buscar os significados do móvel. Só assim sairemos de nossas raízes, partiremos para o plano universal da forma moderna e, depois, reencontraremos na nossa própria terra os principais elementos que compõe o passado do nosso gosto (Depoimento de João Batista Vilanova Artigas a Maria Cecília Loschiavo, 1980, citada por: CALLS, 2003). A natureza e nossas origens, passado e presente, tradicional e moderno, nacional e global, são elementos que narram a trajetória e dão significado ao mobiliário nacional. Os móveis artesanais que utilizam as fibras naturais fazem parte desta história, desde as origens, nas redes que os índios teciam para dormir, às concepções contemporâneas, que resignificam estes valores e os incorporam ao capital. 15 Para compreender esta produção de significados que envolvem o fazer do móvel artesanal, foi importante pensar nas tensões entre a tradição e a modernidade; o local e o global e as mesclas interculturais resultantes das imigrações do final do século XIX e início do século XX, que geraram hibridações sociais, políticas, econômicas e culturais que são expressas na produção de móveis da região até hoje. Neste sentido, o problema que norteou esta pesquisa foi: Perceber através das memórias das experiências cotidianas e da análise das imagens, como os artesãos que vivenciaram a construção do processo artesanal moveleiro com fibras em Curitiba perceberam as permanências, transformações e quais as representações da modernidade envolvidas nas esferas da produção e circulação dos artefatos artesanais? As análises foram situadas principalmente no período compreendido entre as décadas de 30 a 70, do século XX, pois foi nesta época que se estabeleceram as fábricas pioneiras deste tipo de mobiliário, entre estas, a fábrica de móveis de Martinho Schulz, que se destacou no trabalho com fibras, sendo considerada uma referência para as demais, como ícone da “perfeição” e “modernidade” da produção. Os proprietários desta indústria buscaram a transformação do modo de produção, com características de manufatura artesanal, para uma produção aos moldes industriais capitalistas, inserindo e divulgando os produtos em um novo contexto de mercado. Assim, os objetivos desta pesquisa foram: Resgatar pelas memórias individuais e coletivas, através de depoimentos e imagens, a percepção dos artesãos sobre as relações de trabalho e o percurso histórico do móvel artesanal com fibras em Curitiba. Analisar as tensões entre a tradição e modernidade e as hibridações ocorridas nas esferas da produção e circulação dos artefatos, na fábrica de móveis artesanais com fibras de Martinho Schulz. Para tentar atingir estes objetivos, utilizei como fontes não só os documentos e textos, mas também as imagens, fotografias e anúncios encontrados sobre a fábrica, em diálogo constante com depoimentos dos que vivenciaram estas transformações frente às novas demandas capitalistas. Na tentativa de viabilizar a abordagem por este viés, foi fundamental uma aproximação entre as questões teóricas, entrevistas e imagens envolvidas na produção de sentidos sobre o fazer artesanal de Curitiba, em uma (re) construção mediada por um diálogo permanente. Para possibilitar estes encontros (e desencontros), a definição da metodologia foi 16 uma etapa que exigiu aprofundamento, portanto, considerei importante relatar minha opção de método de pesquisa no capítulo 1 da dissertação. No capítulo 2, tentei aprofundar as questões teóricas das áreas dos conhecimentos envolvidos, através de leituras que viabilizaram o entendimento de como os conceitos e tensões da tradição e modernidade dialogam entre si e perpassam as questões envolvendo as culturas, principalmente no que diz respeito às hibridações culturais e ao multiculturalismo. Também a leitura crítica sobre “formação” da identidade brasileira e paranaense proporcionou a compreensão das conseqüências destes discursos no cotidiano, nas memórias e na produção material das comunidades. No capítulo 3, as questões sociais, culturais e tecnológicas envolvidas no artesanato foram analisadas nas suas múltiplas dimensões, como conhecimentos construídos coletivamente, mediados pelo trabalho. Assim, entendendo o fazer artesanal como passível de construir e transmitir conhecimentos tecnológicos pode-se considerar a sua inserção na modernidade e analisar permanências e rupturas com os valores de suas tradições. Neste sentido inseri considerações acerca de conceitos sobre o artesanato e as três esferas que estão envolvidas neste campo de trabalho: da produção, circulação e consumo, e como, através destas, os artefatos se inserem no mundo capitalista. No capítulo 4 busquei analisar imagens de propagandas das fábricas de móveis artesanais, veiculadas nas revistas de publicidade nas décadas de 30 e 40, em diálogo com os depoimentos dos artesãos e as teorias das imagens. Para analisar a inserção das indústrias de móveis artesanais no contexto histórico definido, no processo de modernização das metrópoles, destacamos a importância das imagens e propagandas em um novo modo de ver e de ser visto. Para compreender este contexto, fiz algumas análises das posturas adotadas pelas indústrias artesanais de móveis em Curitiba, principalmente de Móveis Schulz, que estão refletidas e refratadas nos anúncios publicitários da época. O capítulo 5 procura apresentar a fragmentária história da Fábrica de Móveis Schulz, embasada nas análises feitas, tentando compreender as relações tecnológicas, os meios de produção, os materiais utilizados e o trabalho envolvido nas três esferas do fazer artesanal: a produção, circulação e consumo dos artefatos, bem como as tensões entre a tradição e modernidade representadas nesta indústria. Nas considerações finais tentei fazer uma indicação de alguns percursos e opções de trabalho das indústrias moveleiras com fibras em Curitiba, à luz dos conceitos e análises das tensões entre a modernidade e tradição; o local e o global e as hibridações 17 culturais e de trabalho, ocorridas nas três esferas do artesanato, ressaltando a esfera do consumo como fundamental para a significação do fazer artesanal. Também refleti sobre a atualidade desta questão, no momento em que hoje há a retomada de valores da produção artesanal como uma estratégia para “agregar valor” aos produtos. Para concluir esta apresentação da dissertação, gostaria de ressaltar que esta pesquisa proporcionou um aprendizado enorme, pois, com os artesãos entrevistados e seus familiares, detentores de tanto conhecimento, aprendi muito. Não só sobre a produção artesanal, mas sobre a vida, respeito às tradições familiares, respeito às pessoas e à natureza, fonte de trabalho e sentido de vida para estes artesãos. Com as “mamas” italianas aprendi, além de segredos e receitas culinárias, segredos e receitas de viver bem em família, de luta e força para seguir em frente. Aprendi como se planta o vime, a uva, como se faz o trançado das fibras entre tantas outras maravilhas, tão generosamente compartilhadas por estas pessoas muito queridas, alegres e fortes, sempre prontas para falar e ouvir. 18 CAPÍTULO 1 OS MÚLTIPLOS OLHARES E VOZES: UMA TENTATIVA DE ABORDAGEM METODOLÓGICA. Pensando na abordagem metodológica a ser adotada para trilhar este caminho de pesquisa, percebi a dificuldade de trabalhar com as diferentes formas possíveis de aproximação com as comunidades de artesãos. Esta preocupação pode ser descrita pelo que apresenta Nestor Garcia Canclini, fazendo analogias para compreender a amplitude necessária nas análises sociais, dizendo que: o antropólogo chega à cidade a pé, o sociólogo de carro e pela pista principal, o comunicólogo de avião. Cada um registra o que pode, constrói uma visão diferente e, portanto parcial. Há uma quarta perspectiva, a do historiador, que não adquire entrando, mas saindo da cidade, partindo do seu centro antigo em direção a seus limites contemporâneos (CANCLINI, 1989, p. 21). Definir qual a postura, ou quais são as posturas a serem adotadas pelo pesquisador, suas implicações sócio-políticas, e conseguir a partir das fontes analisadas compor pelas diferenças uma noção do que foi o processo de consolidação da produção moveleira artesanal no Paraná, significa tentar sintetizar, sem reificar, uma multiplicidade de olhares: dos antropólogos, sociólogos, historiadores e dos principais agentes destas memórias, os trabalhadores. A metodologia adotada foi uma tentativa (longe de ser plenamente alcançada) de buscar estes enfoques, na interação entre o tema e os envolvidos no processo, buscando compreender pelas memórias, através de múltiplos olhares, as fronteiras que se mesclaram gerando uma pluralidade de valores e significados para a formação das comunidades e das identidades de Curitiba. A partir desta problematização, para contextualizar o tema da pesquisa, iniciei a coleta de dados através de fontes diretas e indiretas, utilizando referências bibliográficas, imagens e entrevistas sobre as fábricas de móveis artesanais de Curitiba. Situando o universo a ser pesquisado, de acordo com estes levantamentos iniciais sobre a produção moveleira local, a região geográfica delimitada foi a cidade de Curitiba, incluindo, além da região central, o bairro de Santa Felicidade, Campo Magro e Lamenha Pequena, que hoje formam uma região apontada como referência no trabalho com fibras, se constituindo em um dos maiores pólos moveleiros do Paraná. Este local conta com o 19 trabalho de mais de três mil artesãos, que plantam e tramam as fibras naturais, além de serralheiros e marceneiros, que fazem as estruturas e detalhes para os móveis. Também foi incluído neste universo o bairro São Francisco, próximo ao centro da cidade, por ter abrigado a fábrica de artefatos em fibras de Martinho Schulz, um dos pioneiros da produção moveleira. Para iniciar a pesquisa de campo, uma das dificuldades encontradas foi em relação às possíveis formas de aproximação e abordagem junto à comunidade, para não transformar uma possível interação em expropriação de saberes. Como propõe Martins, o ideal quando vamos interagir com uma comunidade é nos inserirmos pedagogicamente no contexto pesquisado ou de trabalho, compartilhando informações. Pesquisar ensinando o que sabe e aprendendo o que não sabe (MARTINS, 1997, p.19 e 20). Para efetivar esta interação, compreender e poder interpretar os significados da produção artesanal, à luz do referencial teórico construído, utilizei a história oral1 e a análise de imagens2 como fontes para a coleta de dados, em um esforço de construção conjunta de conhecimentos. Os suportes visuais utilizados (catálogos e fotos) possibilitaram aos artesãos que participaram do processo, através do diálogo, evocar as memórias sobre a produção, a circulação e o consumo dos artefatos artesanais em questão. Este processo envolve o desvendamento dos fatos pelas memórias individuais, revelando também as memórias e conhecimentos construídos coletivamente. A tentativa de reconstruir a fragmentária história da Fábrica de Móveis Schulz possibilitou tentar entender a trajetória do móvel artesanal com fibras de Curitiba. Cada detalhe, as especificidades, as personalidades individuais e ao mesmo tempo coletivas, representaram o caso como uma peça fundamental para compor as análises do “microcosmo de um extrato social inteiro em um determinado período histórico” (GINZBURG, 1989). Portanto, para desenvolver as pesquisas com a comunidade de artesãos, recorri à abordagem interpretativista, em uma tentativa de “compartilhar significados profundos em acontecimentos particulares” (MOREIRA, 1995, p.31). 1 Sobre a história oral, vários autores a utilizam em suas análises, tendo sido introduzida nos estudos sociológicos no início do século XX, foi retomada como metodologia nos trabalhos de Paul THOMPSON, na década de 60. A história oral é utilizada “mais do que um fim em si mesma, como um método capaz para a produção de interpretações sobre processos históricos referidos a um passado recente” (SANTOS, 1999, p.15).Significa uma metodologia que permite dar voz àqueles que não têm uma história escrita. 2 Este tema será aprofundado no capítulo 4 da dissertação. 20 A fim de resgatar os significados revelados pelas memórias, utilizei entrevistas 3 abertas , para através das narrativas das histórias da comunidade e dos relatos das técnicas, buscar o enriquecimento das análises. As narrativas são depoimentos4 colhidos a partir de duas gerações de artesãos de Curitiba, filhos e netos dos imigrantes, uma vez que os artesãos imigrantes que vieram da Europa já faleceram. Para facilitar a compreensão e reconhecimento dos entrevistados nas narrativas e depoimentos referenciados na pesquisa, na página seguinte apresento uma tabela com os nomes, fotos5, a profissão principal e as datas das entrevistas realizadas. Começo apresentando na foto abaixo um dos artesãos imigrantes citados, Sr. Martin Schulz (já falecido), protagonista das narrativas por ter sido proprietário da Fábrica de Móveis de Vime e Junco Martinho Schulz, foco principal das análises desta pesquisa. Figura 1: Martin Schulz, proprietário da Fábrica de Móveis Martinho Schulz. Fonte: Arquivo da família, sem data. 3 Como aponta Michael Hall, citado por Antonio C. de A. Santos: “Entendemos, mais precisamente que as entrevistas da história oral mostram menos a experiência direta dos informantes do que o resultado do trabalho que a memória faz com esta experiência” (SANTOS, 1999, p. 14). 4 Os depoimentos são entendidos como narrativas dos entrevistados, dirigidas a partir de uma indagação do entrevistador. Há neste diálogo uma interação e trocas. O conjunto de depoimentos pode auxiliar a compor a história de vida de uma comunidade (SANTOS, 1999, p. 17). 5 Algumas fotos não foram incluídas na tabela a pedido dos entrevistados ou por impossibilidade de registrá-las. 21 TABELA 1 - Entrevistados. Entrevistado Profissão Local Data Artesão. Um dos primeiros funcionários contratados por Móveis Túlio. Atual professor de trançado. Curitiba Novembro/2004, fevereiro/2005 MARCOLLA, Dario Proprietário da extinta fábrica de móveis Marcolla. Curitiba Abril de 2005 MEISSNER, Erico Administrador. Itapoá/SC Junho de 2005 Artesão. Antigo funcionário de Móveis Túlio. Curitiba Setembro Artesão. Curitiba 2004 Junho de 2005 FERRO, Adarcísio Sócio-proprietário de Móveis Martinho Schulz. NORONHA, Aparecido PEREIRA, Antônio STIVAL, Eromir STIVAL, Geraldo TÚLIO, Armando Antigo funcionário de Móveis Schulz. Atual funcionário de GS Móveis. Artesão. Proprietário da Movime. Curitiba Junho e setembro de 2004 Artesão. Proprietário da GS Móveis Curitiba Junho de 2005 Artesão / Administrador. Curitiba março e junho de 2005 Curitiba Abril de 2005 Curitiba Junho de 2005 Proprietário de Móveis Túlio. TÚLIO, Silvano Artesão / Administrador. Proprietário de Móveis Túlio. ZANOTTI, Izair FONTE: Autora. de Artesão. Antigo funcionário de Móveis Schulz. 22 Os depoimentos dos artesãos foram fundamentais, pois possibilitaram compreender o processo de formação das indústrias artesanais de móveis com fibras em Curitiba, suas histórias, as relações de trabalho, as técnicas utilizadas, a tradição e a modernização dos processos. Para esta pesquisa, escolhi como universo de entrevistados os artesãos que participaram ou tinham memórias do início da produção de móveis artesanais na região de Curitiba. A princípio foram ouvidos os membros das famílias Stival e Túlio6, ambas de origem italiana, que são apontadas nos relatos históricos, como por exemplo, da pesquisadora Altiva Pilatti Balhana7, como as que mais tiveram destaque na produção artesanal com fibras em Curitiba e no Brasil. As primeiras entrevistas foram feitas com representantes da segunda e terceira geração destas famílias de artesãos, bem como com funcionários antigos das empresas formadas a partir dos pioneiros em Santa Felicidade: Armando Túlio e Ângelo Stival. Estes têm a memória do trabalho em família, o domínio de técnicas tradicionais e do histórico do início da produção moveleira, sendo que participaram desta transição da produção da cestaria para o móvel. Estes artesãos, além de dominar as técnicas e criar os produtos, gerenciavam os negócios. A maioria deles já se aposentou, tendo passado o comando das empresas para seus filhos, que possuem características de administradores, não exercendo mais a função de artesãos, como os pais. Normalmente comandam uma equipe de trabalho que inclui mestresartesão, que são os responsáveis por repassar as técnicas para os que se iniciam no artesanato. Estes relatos abriram caminhos inesperados para a seqüência da pesquisa. Os diálogos com os artesãos considerados pioneiros na produção artesanal moveleira em Curitiba, apontaram para outras fábricas que segundo estes depoimentos, foram precursoras da produção do mobiliário artesanal. Entre estas estavam as fábricas de Marchioro, Marcolla, e de Martinho Schulz, considerado como o mais expressivo representante da época do início da produção moveleira no Paraná. Este último foi apontado pelos depoimentos como responsável por ter introduzido novas tecnologias e relações de trabalho, alcançando 6 Além destes depoimentos, tive várias conversas com artesãos que ainda estão trabalhando nas fábricas citadas, e que, apesar de não serem menos importantes, não foram registradas por razões diversas. 7 A pesquisadora Altiva Pilatti Balhana fez um estudo muito bem embasado sobre o processo de assimilação dos italianos de Santa Felicidade, no livro “Santa Felicidade: um processo de assimilação”, de 1958, que foi premiado e serviu para difundir esta colônia e fortalecer também a produção local, dando visibilidade aos atores sociais e às técnicas envolvidas. No texto a autora relata as tradições trazidas pelos primeiros imigrantes, tanto na alimentação, manifestações culturais, processos familiares, bem como as técnicas de cestaria, desde a colheita do vime, tratamento e trançado das fibras. As narrativas e documentação fotográfica são fontes riquíssimas para quem pretende estudar esta comunidade e seus costumes (BALHANA, 1958). 23 qualidade em uma linha muito variada de produtos, projetando o setor artesanal de Curitiba como referência para outros Estados. Assim, em uma segunda fase de coleta de depoimentos, conversamos com um dos sócios desta empresa, Erico Meissner e com funcionários que trabalharam para Martinho Schulz. Para realizar as entrevistas foi preciso muita insistência e persistência, pois estes artesãos, que sempre tiveram os seus conhecimentos desvalorizados por não serem academicamente sistematizados, acreditam que seus depoimentos são sem importância. Um dos entrevistados, Sr. Geraldo Stival (Geraldo Stival, entrevista, junho de 2005), comentou em uma conversa telefônica que estava aposentado e que só seu filho poderia nos falar algo, não considerando ter nada importante para discutir. Entretanto, depois de muitas tentativas consegui entrevistá-lo, sendo introduzida em um universo do qual é profundo conhecedor – sua fábrica. Fui levada até a unidade fabril, em Campo Magro, aonde pude conversar com as pessoas que trabalham as fibras, conhecer o processo de produção, além de encontrar artesãos mais antigos que representaram um elo para chegar até Erico Meissner, um dos proprietários da fábrica de Móveis Schulz, que até este momento pensava que já poderia ter falecido. A partir desta abertura, entrevistei o Sr. Antonio Pereira (entrevista, junho de 2005), antigo trabalhador de Móveis Schulz, atualmente funcionário de Geraldo Stival. Sr. Antônio me recebeu em sua casa, e em meio à entrevista, conheci sua família, podendo perceber qual o universo cotidiano deste trabalhador. Mostrou trabalhos que executa em casa “nas horas de folga”, o que levou a perceber na prática o fato apresentado por CANCLINI (1997), quando diz que muitas vezes o universo do lazer e trabalho se fundem para os artesãos. Outro artesão, Sr. Izair Zanotti prontamente me atendeu na sua fábrica, aonde trabalha com o entalhe e torneamento de peças de madeira, atividade ainda relacionada com o fazer artesanal. Este artesão demonstrou um profundo ressentimento com a falta de incentivo à atividade artesanal e a frustração de ver seu sonho de mais de 40 anos acabar, uma vez que nenhum membro de sua família demonstra interesse em continuar seu empreendimento. “Isto morre comigo” (ZANOTTI, entrevista, junho de 2005). O Sr. Erico Meissner, descendente de alemães que vieram para o Brasil depois da primeira guerra mundial, um dos proprietários de Móveis Schulz, hoje vive no litoral de Santa Catarina, tendo abandonado o ramo artesanal, e, aos seus 80 anos, vem se dedicando, como diz: “a aproveitar o resto da vida” (Meissner, entrevista, junho de 2005). Tendo sido apontado pelos depoimentos de seus antigos funcionários como arrojado e inventivo, 24 pudemos comprovar este seu perfil em pequenos detalhes, como: adaptações feitas em sua casa, no carro, em meticulosos dispositivos que cria. Segundo disse, estas invenções são para “passar o tempo”, não pode deixar de estar “bolando algo” (Meissner, entrevista, junho de 2005). Forneceu declarações importantes, apesar de renegar totalmente o passado envolvendo o artesanato, guardando uma mágoa muito grande desta época e especialmente da situação que o levou a encerrar as atividades, que segundo seu relato foi devido a governo e às instituições fiscais – “uns chupins que te sugavam o sangue” (Meissner, entrevista, junho de 2005). Não demonstrou muito envolvimento familiar ou afetividade tanto pelo seu sócio e sogro, Martinho Schulz, quanto pela fábrica. Entretanto, nos forneceu documentos e relatos sobre o processo de produção, circulação e consumo dos artefatos, que foram valiosos para a recomposição desta história não escrita. Já com um perfil bem diferente, os proprietários da Fábrica de Móveis Túlio, Armando e Silvano Túlio, nos receberam prontamente em suas casas e colocaram à disposição todo o material que possuíam sobre a Fábrica de Móveis Schulz, além de fornecer relatos apaixonados sobre a produção artesanal e sua história. Estes netos de imigrantes italianos se mostraram profundamente emotivos e passionais, cultuando a família e as relações da comunidade à qual pertencem. O Sr. Armando Túlio tem formação superior em administração e musicoterapia e escreve mensalmente em uma coluna de um jornal local sobre a história e a tradição dos imigrantes italianos. Também é artista plástico, retratando em suas telas as cenas do cotidiano que guarda em sua memória, como as “nonas”, os carroções e o trabalho das pessoas da comunidade. Com o Sr. Armando, além de ter oportunidade de entrar na fábrica, conhecer os funcionários e o trabalho artesanal, também tive acesso ao seu mundo privado, ou seu “refúgio”, como chama sua chácara, aonde guarda as lembranças de outras épocas, como os carroções antigos, máquinas e garrafas do último vinho que produziu com seu pai, que compartilha com os amigos. Lá também planta o vime para experiências e “lida” com os animais para “fugir da rotina urbana”, já que o dia-a-dia é estressante, tendo administrado uma fábrica com quase cem funcionários, enfrentado problemas que quase resultaram no seu fechamento em 2001 (Armando Túlio, entrevista, março de 2005). Convidou meus filhos para tirar leite da vaca, pescar no lago e conhecer as carroças antigas, fato que demonstra o valor que dá à família e a estas práticas que herdou dos ancestrais. O Sr. Silvano Túlio me recebeu em sua residência, compartilhando juntamente com sua esposa, Sra. Estela, as memórias sobre a época em que trabalhou com o artesanato. 25 Mostrou fotografias, como de seu casamento, que compuseram parte do livro: Santa Felicidade: um processo de assimilação, de Altiva Pilatti Balhana (1958), que segundo ele, narra muito da história de sua família e retrata os costumes dos imigrantes, suas comidas, festas e trabalho. Pudemos perceber nesta conversa o quanto as mulheres tiveram um papel fundamental no processo da cestaria, sendo responsáveis por determinadas etapas da produção, como o acabamento. Também as “nonas” enfrentavam uma hora e meia de viagem em desconfortáveis carroções para chegar em Curitiba e vender as cestas e produção agrícola da Colônia (Silvano Túlio, entrevista, abril de 2005). O Sr. Adarcísio Ferro, um dos primeiros funcionários não pertencentes à família a trabalhar com os Túlio, também me recebeu em sua residência, compartilhando as memórias sobre início da produção moveleira artesanal e os significados do artesanato e das fibras para a comunidade. Contou das tradições, se emocionando às lágrimas ao rememorar a época difícil que foi o começo da produção em Santa Felicidade. Com ele tive aulas de trançado, aprendendo algumas tramas e princípios do trabalho com o vime. O Sr Adarcísio, ou “Darci”, como prefere ser chamado, é um profundo conhecedor das técnicas de trançado tendo trabalhado para a “Fundação Cultural de Curitiba” como instrutor de cestaria e atualmente possui uma pequena fábrica aonde faz trabalhos de trançado, principalmente de materiais sintéticos. Acredita que se o governo incentivasse mais, poderia repassar este conhecimento para muitos jovens, que com o devido estímulo e apoio continuariam a tradição, além de ter novas oportunidades de trabalho e se inserirem socialmente (Darci Ferro, entrevista, novembro de 2004). Enfim, participar do cotidiano das pessoas, entrando em suas casas e espaços de trabalho, conhecer seus costumes, provar suas especialidades, como o vinho e a comida e aprender o trançado das fibras, possibilitou uma percepção dos saberes que resultaram nesta pesquisa. Apesar de não sistematizado, o saber dos artesãos representa um repertório de conhecimentos tecnológicos, que sem este diálogo interativo ter sido estabelecido, jamais seriam possíveis de compartilhar. Este compartilhamento de significados no cotidiano (MOREIRA, 1995), que MARTINS (1997) apresenta como uma inserção pedagógica, mediada por um entendimento traduzido pelas memórias, considerando os artesãos atores e autores da história narrada por eles (BAKHTIN, 1995), possibilitaram a construção conjunta da trajetória da Fábrica de Móveis Martinho Schulz. 26 As diversas vozes: do artesão, do administrador, do empreendedor, dos empregados, dos patrões e dos comerciantes, presentes muitas vezes até na mesma pessoa, serviram para compor na interação dos discursos a riqueza deste cenário múltiplo e único. Para pensar na construção destes encontros, das múltiplas vozes, do presente, passado, memórias e culturas, mediados por um diálogo permanente, na produção de sentidos, recorri à idéia da heteroglossia bakhtiniana, buscando nas trocas e entendimentos compreender dialogicamente os enunciados construídos pelas memórias individuais e coletivas dos membros da comunidade, considerados autores e atores da história (BAKHTIN, 1995). Considerei sempre que a consciência individual é construída socialmente, historicamente e de forma coletiva, ou seja, como explica BAKHTIN, para haver comunicação, os indivíduos compartilham de signos que adquirem significados em um determinado grupo social, a partir de repertórios ideologicamente construídos e revelados pela palavra. “As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios [...] A palavra é capaz de registrar as fases transitórias mais íntimas, mais efêmeras das mudanças sociais” (BAKHTIN, 1995, p.41). A linguagem é uma forma de interação social que não deve ser dissociada das bases materiais que a envolvem, da época e contexto específico de produção. Para compartilharmos destes signos, foi importante conhecer os repertórios específicos do grupo pesquisado, mergulhando na sua história e modo de vida. Compartilhei dos espaços domésticos dos artesãos mais antigos, que entre cafezinhos e taças de vinho, relembraram de como seus pais colhiam, plantavam e produziam o vinho, os alimentos e a importância da cestaria para estas atividades. Estes momentos de compartilhamento com as famílias me aproximaram dos artesãos, proporcionando o acesso a fotos, documentos, objetos pessoais da família, além de ter acesso livre nas fábricas ainda existentes, o que permitiu a reconstrução conjunta de uma história não escrita, mas memorizada. Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje as experiências do passado. A memória não é um sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do passado, ‘tal como foi’, e que se daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representação que povoam nossa consciência atual (BOSI, 1987, p. 17). 27 Estas lembranças, que são construções de sentido no presente, apontam como principal mediador da prática artesanal o trabalho. Pelas relações de trabalho, suas transformações, pelas tecnologias envolvidas, através das lembranças das ferramentas e máquinas antigas ainda guardadas, bem como das formas de comercialização dos artefatos, estas memórias e mesmo os esquecimentos narram a trajetória histórica do fazer artesanal nas comunidades. O universo do discurso sobre as técnicas de produção foi ampliado pela comunicação interativa entre a pesquisadora e a comunidade pesquisada, sempre considerando que influenciamos, podemos transformar e sermos transformados na relação. Ao interpretar o passado através das memórias presentes, foi possível reconstruir parte da trajetória histórica do grupo e, inclusive, dar indícios sobre o futuro almejado. Esta compreensão, pela qual passa a análise das pesquisas nas Ciências Sociais, a fazem diferir das Ciências Naturais, que buscam a explicação dos fatos. Compreender significa um “sentir em conjunto com os outros os significados das ações humanas” (FARACO, 2003, p.41). Isto envolveu a valorização do cotidiano e o desenvolvimento de um repertório do gênero peculiar da esfera do grupo com o qual estive interagindo. São os conteúdos temáticos, os estilos próprios e as entonações dadas às palavras nos discursos que os transformam em um “contexto de sentido para a pessoa”. (BAKHTIN, 2003, p. 407). Neste contexto, a chave para as entrevistas foi o diálogo, considerando o entrevistado como um “Outro” na conversa, que responde e espera réplicas, numa relação de alteridade. Devemos interagir com as pessoas das comunidades, jamais reificá-las, considerálas como um objeto que está sendo analisado, mas sim como entes pensantes, falantes, atuantes e criadores (BAKHTIN, 2003, p. 407). Os diferentes discursos sociais mantêm vivas as estruturas das classes e é nas lutas de classe que os discursos monologizantes8 perdem a força, garantindo a sobrevivência das comunidades. Isto só ocorre nas estruturas sociais organizadas, aonde, para Bakhtin, “o signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes”. A compreensão dos significados envolve o entendimento de posições contraditórias e complementares, sendo a palavra a expressão do momento vivido, “como produto da interação viva das relações sociais” (BAKHTIN, 2003, p. 66). 8 Discurso monologizante, segundo Bakhtin, é aquele baseado em forças centrípetas, que querem ser sempre a palavra final. Ou seja, é um discurso centralizador que reifica o “outro” (BAKHTIN, 2003). 28 Na interação com os artesãos, procurei sempre ter em mente que as culturas 9 populares , principalmente no Brasil, são geralmente de tradição oral, com poucas referências escritas e catalogadas. As tradições e técnicas são repassadas oralmente pelas gerações, ou transcritas por intermediários que dão as suas interpretações às falas, ou seja, são as vozes da cultura dominante falando sobre as populares, portanto, procurei sempre o contato direto com as fontes, através das entrevistas, sendo que estas também foram sistematizadas de acordo com a minha visão de mundo, o que não deixa de ser uma interpretação. Quando as informações são de fontes secundárias, os intermediários repassam a sua visão dos fatos, devemos fazer o confronto com outras posições e contextualizá-las historicamente. Na análise dos discursos, para tecer as conclusões, levei em consideração as entonações e os significados dados às palavras pelo cotidiano do entrevistado. Indo além da fala, estes sentidos dados aos enunciados e até mesmo os gestos, representam sentimentos expressos e que são muito importantes nas análises. Muitas vezes os silêncios, as ausências, as pausas, são mais importantes e têm um significado maior do que o dito. Também o conhecimento foi situado, entendido como um ato sócio-histórico, que ocorre nas fronteiras entre os gêneros discursivos, primários e secundários10, sempre em tensão, mas sempre se mesclando. A seqüência do trabalho de pesquisa demonstrou as hibridações decorrentes do processo de produção artesanal, nas trocas de experiências culturais, materiais, mas principalmente dos conhecimentos tecnológicos envolvidos na produção artesanal. Estes conhecimentos foram construídos coletivamente a partir das experiências individuais e coletivas, gerando uma riqueza de possibilidades, expressas através do trabalho. No campo de estudo do artesanato, que envolve conhecimentos tradicionais e populares, que muitas vezes são apropriados e reinterpretados pela classe dominante, recorri como norteadora à idéia de BAKHTIN, da “circularidade das culturas”, considerando as culturas em constante diálogo, hora em conflito, hora se hibridando11. 9 O artesanato normalmente está situado no campo de discussão das culturas populares, apesar de , como procurarei demonstrar na pesquisa, ser apropriado pelas classes dominantes e muitas vezes ser resignificado.Entretanto, os trabalhadores do setor são geralmente representantes das classes populares, compartilhando, portanto dos códigos e significados destas classes. 10 Os gêneros primários são os da ideologia do cotidiano (relação direta com os contextos mais imediatos) e os gêneros secundários são dos sistemas ideológicos constituídos (filosofia, religião, arte, educação formal). Os dois gêneros não devem ser considerados hierárquicos. Um não deve sobrepujar o outro e nem serem abstraídos de suas esferas originais. (FARACO, 2003, p.117). 11 O termo hibridação ou hibridização é usado por muitos autores, entre eles HALL e especialmente CANCLINI, para designar as mesclas interculturais que ocorrem não só no sentido das mesclas raciais (mestiçagem) ou dos sincretismos religiosos (simbólicos), mas todas as formas de interações ou “esfregamentos” entre as culturas, bem como nos conflitos sócio-cultuais (CANCLINI, 1997, p. 19). 29 Este referencial foi aplicado por vários autores em suas análises históricas, como, por exemplo, GINZBURG 12, pois enriquece as reflexões e as análises, por considerar as culturas populares e as dominantes dialogando e interagindo em uma influência recíproca. GINZBURG (1989), em sua obra evidencia a importância da retomada das idéias de Marx sobre a luta de classes13, a mediação do trabalho em toda a produção social, a divisão da sociedade pelas posições no sistema de produção, o que deliberadamente hierarquiza valores, considerando a cultura da elite como superior. Este ponto foi uma preocupação constante em minhas análises para não reificar nem desvalorizar os relatos dos artesãos, detentores únicos de um saber tecnológico do campo artesanal. Além dos relatos obtidos pelas entrevistas, as imagens relacionadas aos artefatos nos revelaram aspectos fundamentais para a pesquisa. Os artefatos e as imagens não são elementos fechados em si, adquirem sentido quando vinculadas ao contexto em que são produzidos, estando em constante diálogo. Assim, este encontro de imagens, teorias e depoimentos, podem revelar os aspectos sociais, culturais e tecnológicos que são importantes para compor as análises e a construção simbólica sobre o cotidiano das comunidades. As fontes das imagens adotadas na pesquisa foram: os livros e publicações existentes sobre o artesanato e mobiliário paranaense; catálogos e fotografias dos móveis produzidos pelas fábricas de móveis artesanais de Curitiba; anúncios destas fábricas veiculados em revistas do Paraná, nas décadas de 30 e 40 do século XX; os depoimentos colhidos através de entrevistas com os artesãos e administradores das fábricas. As fotografias analisadas foram disponibilizadas pelos familiares das fábricas Túlio e Stival, que além de fotos de sua própria produção, possuíam muitas fotos da fábrica de móveis Schulz, que eram utilizadas para demonstração e venda. As fotografias não estão datadas, não sendo assim possível precisar o período em que foram produzidas. Entretanto, a maioria está com o carimbo da empresa e com a identificação por números e séries dos artefatos. 12 No livro “O queijo e os vermes”, GINZBURG narra a trajetória de Menocchio, um moleiro que é preso e queimado pela inquisição. O moleiro é um caso único, pois articula um diálogo entre as culturas subalternas e dominantes em um discurso advindo das tradições populares, mesclado às referências das leituras às quais teve acesso em sua época. O diálogo articulado entre as culturas subalternas e dominantes, em um discurso advindo das tradições populares, ressalta que a história não deve se preocupar só em estudar as personalidades individuais das celebridades e dos reis, mas também dos cidadãos comuns, que também são responsáveis pela construção da mesma.Como metodologia, GINZBURG recorreu à análise das fontes bibliográficas às quais Menocchio teve acesso na época, graças à invenção recente da imprensa e à reforma, aos relatos do próprio personagem à inquisição, que apesar de serem redigidos por intermediários, representam o depoimento dele sobre as suas idéias, e constantemente recorre aos dados sobre o contexto histórico e social do período em questão (GINZBUG, 1989). 13 Para aprofundamentos, ler MARX, Karl. O capital, v.1. São Paulo: Abril Cultural, 1983. 30 Os catálogos que consegui reunir são: um da Fábrica de móveis Schulz e dois de origem alemã, de duas fábricas distintas: a Masterbüch e Schmetzer. Um provavelmente é do ano de 1928 e outro de 193214. Nas análises conjuntas com os artesãos percebemos que estes catálogos alemães, bem como os da fábrica de móveis de Martinho Schulz, foram por muito tempo utilizados como amostras de modelos para confecção nas indústrias artesanais de Curitiba, nos revelando processos de hibridação nos aspectos formais da produção. Quanto aos anúncios publicitários, as fontes foram periódicos paranaenses de propaganda, das décadas de 30 e 40, por serem as décadas em que se instalaram as primeiras fábricas de móveis do Paraná e por ter maior número de propagandas relativas ao Móveis Martinho Schulz. Os periódicos consultados foram: o “Anuário Propagandista Sul do Brasil”15, dos anos 1932, 33, 34, 35, 36, 37; “Livro Azul da Cidade de Curitiba”16 de 1936, 37, 38, 39, 40, 42, 43; Revista “Illustração Paranaense”17 de 1933; “Indicador Comercial Paranaense”18 de 1933; “Folhinha Propagandista ‘Sul do Brasil’”19, de 1930, 1932 e “Monitor Commercial”20, de 1937. Os catálogos e álbuns com fotos de produtos feitos na época da implantação da produção de artefatos artesanais com fibras em Curitiba foram analisados pela mediação da memória das famílias que participaram deste momento de construção de uma identidade local ligada ao artesanato. Nesta pesquisa refleti muito sobre as relações entre a imagem e o texto, fazendo um breve percurso por algumas correntes teóricas da imagem, em especial da fotografia, para a coleta, seleção e análise das imagens utilizadas como referência. A interpretação de imagens foi uma das etapas fundamentais desta pesquisa, pois resgatou a memória e a tradição da comunidade, permitindo retratar os processos de produção artesanal e as suas transformações. As fotografias são uma narrativa viva e trouxeram à memória imagens passadas, que os envolvidos no processo evocaram e concretizaram pela fala, durante a observação e conversas sobre o material existente. 14 Esta datação é aproximada, com base em um carimbo de Martinho Schulz e anotações feitas na capa dos catálogos. 15 “Anuário Propagandista ‘Sul do Brasil’”. Curitiba: Herbert van Erven. 16 “Livro Azul da Cidade de Curitiba”. Curitiba: Max Roesner & Filhos Ltda. 17 “Illustração Paranaense”. Curitiba: J.B.Groff. 18 “Indicador Comercial Paranaense”. Curitiba: J. Pereira de Moraes. 19 “Folhinha Propagandista ‘Sul do Brasil’”. Curitiba: Herbert van Erven. 20 “Monitor Commercial”. Curitiba: Associação Commercial do Paraná. 31 As imagens revelam a dinâmica cultural e, assim como os textos, podem ser considerados “artefatos culturais”, permitindo a análise da história, a construção das identidades, as transformações sociais e os processos de hibridação interétnica que compuseram a comunidade (SAMAIN, 1998). As imagens e os artefatos são a memória de um processo social, construído em interação. As fotos transpõem o tempo, unindo o passado e o presente pelos significados preservados na memória das comunidades, uma vez que nosso mundo visual não se atualiza o tempo todo e o cérebro armazena o “meu” mundo visual. Nesta pesquisa, com bases antropológicas, trabalhei com as memórias, individuais e coletivas, busquei utilizar um método de coleta e análise de dados que considerasse toda a diversidade e individualidade dos envolvidos. Um método sugerido por Caldarola, citado por Feldman, é a investigação colaborativa, que consiste na interpretação das imagens e idéias pelos próprios sujeitos. Esta participação revela metaforicamente os conceitos atribuídos à imagem, revelando nas interpretações os aspectos fundamentais das estruturas de significados e suas transformações ao longo do tempo. Segundo uma artesã entrevistada por Feldman, a “fotografia faz falar. Rende uma fofoca” (FELDMAN, 1998, p.203). As imagens selecionadas foram apresentadas a vários artesãos que tiveram algum contato com as fábricas pioneiras e, sendo discutidas e analisadas, nos permitiram traçar, a partir das interpretações feitas pelos envolvidos, algumas compreensões pessoais sobre este processo histórico de consolidação de uma rede de trabalho artesanal e das hibridações existente no trabalho artesanal com fibras em Curitiba. Para interpretar os dados levantados e imagens, como um diálogo permanente, adotei os princípios da teoria Bakhtiniana, atribuindo continuamente os sentidos aos sujeitos envolvidos, respeitando a pluralidade de vozes sociais21 e os discursos passados e futuros dos atores – autores, sempre em modificação (BAKHTIN, 2003, p. 414). Este trabalho de pesquisa permitiu, pela própria metodologia adotada, construir o processo de pesquisa conjuntamente, portanto, a terceira pessoa utilizada a partir deste momento da narrativa, inclui todas estas pessoas, autores e atores, que possibilitaram que esta idéia se concretizasse. 21 Vozes sociais são “complexos semiótico-axiológicos com os quais um determinado grupo diz o mundo” (BAKHTIN, 2003 ). 32 CAPÍTULO 02 A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NACIONAL E PARANAENSE A PARTIR DAS HIBRIDAÇÕES CULTURAIS E DAS TENSÕES ENTRE AS TRADIÇÕES E MODERNIDADE. 2.1 - Tradição e Modernidade Para compreender o artesanato em suas múltiplas dimensões, com toda a riqueza que envolve este tema, alguns conceitos são importantes para perceber as contradições e hibridações presentes no trabalho artesanal. As relações entre local e global; cultura da elite e culturas populares; tradição e modernidade perpassam a discussão das três esferas envolvidas no artesanato: da produção, circulação e consumo dos artefatos. Neste ponto, para iniciar um percurso teórico pelas questões da modernidade e tradição e da construção das identidades da Nação e das regionais, consideramos importante apontar uma distinção bakhtiniana das perspectivas de longa temporalidade e de curta temporalidade, que iremos adotar como referência para pensar as questões históricas e para nossas análises sobre o artesanato e modernidade. A curta temporalidade nos permite entender os aspectos e as teorizações imediatas. A longa temporalidade é fruto de reflexões maiores, muitas vezes “dispersa, difusa, heterogênea e não necessariamente contínua, se estende no tempo, isto é, não começa com as teorizações de hoje, nem nelas se esgota” (FARACO, 2003, p. 127). Principalmente quando nosso objeto de estudo é algo ligado às tradições, como o artesanato, a análise a partir do conceito de longa temporalidade nos permite compreender como as gerações constroem um conhecimento que é repassado e transformado nas relações com os outros, com o espaço e com o tempo. BAKHTIN relaciona este tempo com o espaço, no que chama de “cronotopo”, que implica em uma “indissolubilidade de espaço e de tempo (tempo como a quarta dimensão do espaço)” (2002, p. 211). O cronotopo pode ser entendido como uma materialização do tempo no espaço, assim, são ligados a contextos que vão determinar a sua duração, as permanências e as transformações. Considerando as periodizações históricas, o autor considera que pode haver um grande cronotopo englobador e vários cronotopos que “podem se incorporar um ao outro, coexistir, se entrelaçar, permutar, confrontar-se, se opor ou se encontrar nas inter-relações mais complexas. O seu caráter geral é dialógico” (BAKHTIN, 2002, p. 336). 33 Assim, partimos do pressuposto ao analisar as identidades, as relações de produção e circulação dos artefatos, os estilos dos móveis, de que todas as relações sociais, econômicas e históricas estão profundamente imbricadas entre si e ligadas pela longa e curta temporalidade. “As atividades conhecem recorrência, mas também têm dimensões novas em cada contingência. Para compreendê-las (e para envolver-se nelas de modo significativo), é fundamental estabelecer contínuas inter-relações entre o que recorre e a singularidade; entre o dado e o novo; entre o arquivo e o acontecimento (evento); entre a memória e o momento” (FARACO, 2003, p. 114). A aproximação do espaço e tempo, utilizada por Bakhtin na análise literária, foi construída a partir da prática agrícola e do trabalho (inclusive o artesanal), que antes da inserção no modo capitalista de produção, possuía uma dimensão de tempo ligada aos ciclos da vida, ao ritmo da natureza, ao tempo real e cotidiano e não ao tempo abstrato medido pelas horas e pelos calendários. Este tempo, ligado aos acontecimentos em um lugar, é um tempo folclórico e idílico. Segundo BAKHTIN, “a vida idílica e os seus eventos são inseparáveis deste cantinho concretamente situado no espaço onde viveram os pais e os avós, e onde viverão os filhos e os netos. [...] Mas a série da existência das gerações, localizada nesse pequeno mundo limitado no espaço, pode ser infinitamente longa” (2002, p.333 e 334). O tempo idílico pode ser pensado no artesanato, que em um determinado contexto histórico e social, acaba sofrendo atenuações dos seus limites temporais, diluídos ao longo das gerações, estabelecendo um “ritmo cíclico” de longa duração (BAKHTIN, 2002, p. 334). O mundo capitalista busca romper esta integridade da existência idílica, separando as pessoas, massificando, mecanizando e parcelando o trabalho. O tempo orgânico é contraposto ao tempo fragmentado e abstrato da vida regrada pelo capitalismo (BAKHTIN, 2002, p. 336). O artesanato, por sua característica de ter muito forte a presença do cronotopo idílico, ao se inserir no mundo moderno capitalista acaba mantendo características da manufatura e das tradições, que pelo tempo cíclico, são repassadas e permanecem. São estas permanências e ao mesmo tempo as transformações ocorridas pelas hibridações e inovações, que caracterizam o artefato artesanal. Autores, como BERMAN, apontam estas tensões que caracterizam a modernidade e as relações com o capitalismo. Segundo este autor, “[...] ser moderno é viver uma vida de paradoxo e contradição [...] é fazer parte de um universo no qual, como disse Marx, ‘tudo que é sólido se desmancha no ar’” (BERMAN, 1986, p.26). A modernidade é multifacetada, contraditória e descontínua. Um processo de tensão contínua no qual são 34 articuladas as alegorias, fantasmagorias criadas pelo sistema capitalista (PESAVENTO, 1997, p.41). O moderno, para HABERMAS (1990), se constitui em uma nova temporalidade, sendo um projeto não concluído, inacabado, e, portanto, com um grande potencial de desenvolvimento dentro de si mesma. Representa uma pluralidade de tempos e de possibilidades. Não podemos pensá-la “como um quadro único, mas com perspectivas pluralistas, que possam abranger a fragmentação e a interação entre o tradicional e o moderno” (QUELUZ E QUELUZ, 2000, p.64), entre as diversas culturas em conflito, frente às novas tecnologias de produção, gerando novas relações simbólicas. Estar na modernidade, para HOBSBAWM representa pensar em uma conjunção do Estado, cultura, tecnologia e capital, sendo articulados sempre objetivando o desenvolvimento capitalista (HOBSBAWM, 1984). Assim, desde que o Estado começa a articular a idéia de Nação, bem como nas construções dos regionalismos, para afirmar a modernidade dos estados nacionais, esta aproximação entre tecnologia, cultura e capitalismo passa a ser articulada via intelectuais ou instituições22. Outra questão que está presente na modernidade, mas que não iremos nos deter profundamente nesta pesquisa é a da globalização23, pois, as “descobertas” e a colonização promovem intercâmbios não só econômicos, mas culturais, compartilhando nas contradições, diferenças e alianças, os bens materiais e simbólicos, modificando as estruturas sociais dos envolvidos no processo. Apesar de não ser um fenômeno recente, reordenando-se ao longo do tempo, intensifica-se a partir do final da segunda guerra mundial, devido aos grandes avanços tecnológicos e principalmente comunicacionais, que expandem as fronteiras, aumentando as mesclas interculturais. A globalização foi pensada como um projeto universal liberal, baseado em um modelo desenvolvimentista traçado pelos grandes líderes mundiais, que a pensavam como um estágio aonde todos iriam chegar, assim categorizando os países em “adiantados e atrasados”. Este projeto de modernidade imaginava, por exemplo, que os mitos seriam substituídos pelo saber científico e o artesanato pela industrialização, entretanto, o que percebemos, a partir de uma visão atual mais complexa, é que há a transformação dos bens simbólicos e econômicos, mas nunca sua supressão (CANCLINI, 1997, p. 22). 22 Sobre este assunto, da construção da Nação e dos regionalismos, trataremos na seqüência do trabalho. Para aprofundamentos na questão da globalização os referenciais indicados são: IANNI, Octavio, 1996; HALL, Stuart, 2003; CANCLINI, Nestor G., 2003; SANTOS, Milton, 1996. 23 35 Em especial para a América Latina, este processo de globalização assume características peculiares. Não podemos encará-la como um processo homogeneizador, ditado por regimes colonizadores da época das conquistas ou pelo imperialismo norte-americano atual, mas como uma hibridação multiétnica, sendo a mesma um conjunto de, ao mesmo tempo, homogeneização e fragmentação articulada do mundo, reestruturando diferenças, mas nunca as suprimindo (CANCLINI, 2003, p.4). A globalização, analisada por um viés econômico, permite a aproximação, ou exclusão, dos cidadãos pelo consumo, que é definido por CANCLINI, como um “espaço que serve para pensar, onde se organiza grande parte da racionalidade econômica, sócio-política e psicológica das sociedades” (CANCLINI, 2001). Neste sentido, a construção da identidade nacional, bem como da paranaense, como uma afirmação regionalista, passa pela disputa de interesses em manter, como afirma BOURDIEU, citado por OLIVEN, a divisão do mundo social, político, econômico e simbólico. Por isso, é fundamental nesse processo a construção e organização da memória para preservar os interesses e posições dos grupos sociais ou comunidades (OLIVEN, 1992, p. 19). A tradição é uma discussão presente, tanto no que se refere à construção das identidades, quanto à construção da idéia de modernidade no Brasil, pensado como uma Nação. A importância desta discussão, como coloca OLIVEN, é que para a construção da identidade é “preciso invocar antigas tradições (reais ou inventadas) como fundamento ‘natural’ da identidade nacional (ou regional) que está sendo criada [...] dando uma imagem à comunidade abrangida por ela”. No caso dos regionalismos, o apelo é para as semelhanças que os “unifica” dentro das diferenças em relação à nação (OLIVEN, 1992, p.15 e 16). Assim, falar em modernidade, como cita LE GOFF, significa pensá-la como algo inacabado, em dúvida e sujeito a críticas. Modernidade e tradição estão muito próximas, ligadas pela memória e história, uma vez que: O “moderno”, à beira do abismo do presente, volta-se para o passado. Se por um lado recusa o antigo, tende a refugiar-se na história. Modernidade e moda retro caminham lado a lado. Este período que se diz e quer totalmente novo, deixa-se obcecar pelo passado: memória, história (LE GOFF, 1990, p. 198). 36 A memória social que podemos chamar de tradição, pode ser, conforme citamos, inventada. A construção destas memórias pode ser articulada pelos intelectuais dos grupos em questão, pelo Estado ou pelos meios de comunicação. Como afirma CANCLINI, muitas vezes “os projetos modernos se apropriam dos bens históricos e das tradições populares”, para fazer desta tradição um elemento constituidor e unificador da sociedade, renovando a hegemonia política. Os patrimônios culturais são apresentados como alheios ao projeto modernizador, portanto, “menos suspeito para garantir a cumplicidade social” (1997, p. 160). Entretanto, este “todo unificado” é uma abstração, assim como o conceito de nação, pois não existe uma manifestação que se mantenha homogênea, inalterada e pura ao longo da história. As vontades coletivas promovem uma dinâmica que pode recuperar, manter ou renovar as tradições, reorganizando os elementos, articulando as diferentes práticas, que adquirem novos significados e relevância. (HALL, 2003 b, p.260). Para SCOTT, há esta dinâmica na tradição, não implicando em algo fixo, mas em um repertório de significados, uma “relação dialógica com o ‘outro’”. É antes um reconhecimento do caráter encarnado de todo discurso. ‘É um tipo especial de conceito discursivo, na medida em que este desempenha uma tarefa distinta; busca compor oficialmente, dentro da estrutura da sua narrativa, uma relação entre o passado, a comunidade e a identidade. Ela depende do conflito e da controvérsia. É um lugar de disputa e também de consenso, de discurso e de acordo (SCOTT citado por HALL, 2003 b, p.74 e 93). Assim, quando falamos sobre tradição e modernidade, as consideramos como uma construção a partir dos ideais, utopias e imaginários do povo, nas relações que ocorrem nas fronteiras, não necessariamente no interior ou as extrapolando, mas nas práticas concretas das “comunidades” que as legitimam. Estas fronteiras podem ser também do tempo, pois a tradição é um constante renovar e reinterpretar o passado, que pode ser recente, como fala ORTIZ: Normalmente, quando falamos de tradição nos referimos às coisas passadas, preservadas ao longo da memória e na prática das pessoas. Imediatamente nos vêm ao pensamento palavras como folclore, patrimônio, como se essas expressões conservassem os marcos de um tempo antigo que se estende até o presente. Tradição e passado se identificam e parecem excluir radicalmente o novo. Poucas vezes 37 pensamos como tradicional um conjunto de instituições e de valores que, mesmo de uma história recente, se impõe a nós como uma moderna tradição, um modo de ser (ORTIZ, 1994, p. 207). A tradição é um processo de reestruturação constante na interação do local com o global, nos conflitos, no multiculturalismo, na relação do tradicional com o moderno, sendo que, na modernidade, são as “culturas híbridas” que redefinem os “conceitos de nação, povo e identidade” (HALL, 2003). Este hibridismo, para HALL não consiste em uma mescla racial, mas em um “processo de tradução cultural, agonístico uma vez que nunca se completa...”, ou como sugere BHABHA, exemplificado pelo autor, o hibridismo significa um Momento ambíguo e ansioso de... transição, que acompanha nervosamente qualquer modo de transformação social, sem a promessa de um fechamento celebrativo ou transcendência das condições complexas e até conflituosas que acompanham o processo...[Ele] insiste em exibir... as dissonâncias a serem atravessadas apesar das relações de proximidade, as disjunções de poder ou posição a serem contestadas; os valores éticos e estéticos a serem “traduzidos”... (HALL, 2003 b, p.75) A concepção de hibridismo é fortemente relacionada à idéia de modernidade e às negociações culturais das diferenças. Apesar da tentativa de uma homogeneização, forjada pelos discursos de “nação” e da “globalização”, as comunidades multiculturais, por terem suas características particulares, desconstroem, resignificam e transformam estes discursos, constituindo seus espaços próprios de luta e resistência. Assim, para as comunidades a hibridação não significa um “declínio pela perda de identidade. Pode significar [...] o fortalecimento das identidades existentes pela abertura de novas possibilidades” (LACLAU citado por HALL, 2003 b, p. 87). Esta colocação nos remete ao que CANCLINI argumenta quando diz que: “Esta incerteza em relação ao sentido e ao valor da modernidade deriva não apenas do que separa nações, etnias e classes, mas também dos cruzamentos sócio-culturais em que o tradicional e o moderno se misturam”. São as novas possibilidades que se abrem e fazem com que haja uma reestruturação econômica e simbólica, além de uma reformulação da “cultura de trabalho frente às novas tecnologias de produção sem abandonar as crenças antigas” (1997, p. 18). Deste conceito de uma modernidade inacabada, sempre em um processo de transformação e permanência, especialmente nos países da América Latina aonde há uma 38 “mescla de memória heterogênea e inovações truncadas” (CANCLINI, 1997, p. 20), partimos para considerar a resignificação do artesanato na modernidade. Acreditamos que para o artesanato, a forma de continuar existindo e de ser uma prática transformadora frente ao mundo capitalista é se inserindo na modernidade, ou, transitando pela tradição e modernidade (são as “entradas e saídas da modernidade”) (CANCLINI, 1997). O processo artesanal de móveis, a partir do final do século XIX, se insere neste cenário de contradições, hibridações, manutenção das tradições e de inserção na modernidade e nos conflitos e aproximações entre o local e o global. São nestas mesclas multiculturais que se desenvolve, resiste e se transforma o fazer artesanal a cada momento. Estes recortes que constituem a tradição, modernidade e nação são importantes para discutir a construção das identidades, como demarcação de fronteiras e espaços, como referencial de resistência a uma homogeneização, mas sempre em um processo de transformação e hibridação, tanto através das práticas cotidianas individuais, como das relações simbólicas coletivas. Estas construções simbólicas e hibridações se operam no real e no imaginário social, pela atribuição de significados às ações humanas. A cultura é uma das formas de expressão e contestação destes significados construídos, sendo expressos pelas várias etnias, comunidades, nações, nas múltiplas relações de identidades, mesmo dentro de um mesmo grupo. Pensar sobre “as” culturas e o multiculturalismo ajuda a entender as identidades e suas relações. 2.2 - Culturas, Multiculturalismo e Identidades. Para compreender a história da produção moveleira artesanal de Curitiba é importante apresentar os conceitos de cultura nos quais nos baseamos para pensar o artesanato paranaense no período abordado e as relações desta produção com o conhecimento tecnológico transmitido pelo fazer artesanal. Tendo como base a definição de GEERTZ sobre cultura, a entendemos como sendo um “universo imaginativo” com o qual temos ou não familiaridade. Para não traçarmos uma definição reificadora, devemos considerá-la, não como uma realidade posta, mas em uma construção e reconstrução de significados, sendo que, como o autor discorre: 39 O homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo estas teias e a sua análise; portanto não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura de significado (GEERTZ, 1989, p.4). Assim sendo, para o autor, a cultura é um entrelaçamento de signos interpretáveis, e não apenas fatos sociais, comportamentos, instituições ou processos isolados, mas um contexto no qual podemos descrever todo este conjunto com densidade. O conceito de cultura “denota um padrão de significados transmitido historicamente incorporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas, expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens se comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e sua atividade em relação à vida” (GEERTZ, 1989, p.66). Estes símbolos ao serem compartilhados adquirem significados distintos, para os indivíduos ou para a coletividade, assim como para quem faz parte desta cultura ou para quem tenta compreendê-la. Os valores que são incorporados historicamente alteram as possibilidades de leituras de mundo, sendo a tradição uma das formas de referência cultural. De acordo com as análises de HALL, podemos definir cultura, por duas formulações: a que “relaciona cultura à soma das descrições disponíveis pelas quais as sociedades dão sentido e refletem as suas experiências comuns, recorrendo às “idéias”, considerando a cultura um processo histórico compartilhado, que não exprime a idéia de acumulação ou de “ápices” no desenvolvimento de significados comuns. A segunda ênfase é mais antropológica, que define a cultura como um conjunto de “práticas sociais”, ou como um “modo de vida global”, sendo a teoria da cultura “o estudo das relações entre elementos em um modo de vida global” (HALL, 2003 b, p.135 e 136). A cultura, entretanto, deve ser analisada não só no contexto simbólico da sociedade, mas nos conflitos que possibilitam a mobilidade social, pelas lutas de classes e interações culturais, pois, segundo Santos, não é algo natural, não é uma decorrência de leis físicas ou biológicas. Ao contrário, a cultura é um produto coletivo da vida humana (...) Cultura é um território das lutas sociais por um destino melhor. É uma realidade e uma concepção que precisam ser apoiadas em favor da luta contra a exploração de uma parte da sociedade por outra, em favor da superação da opressão e da desigualdade (SANTOS, 1996, p.45). Neste terreno das múltiplas influências, interações culturais e lutas de classes se constituem as culturas populares, que, antes de serem apenas o que as massas consomem, ou o conjunto de “coisas” que o povo faz, podem ser definidas como “as formas e atividades cujas raízes se situam nas condições sociais e materiais de classes específicas, que estiveram 40 incorporadas nas tradições e práticas populares”, em uma tensão contínua com a cultura dominante24. (HALL, 2003 b, p.257). Esta definição nos leva a pensar no caráter histórico e dialético das culturas, pois é nas contradições das classes populares e do bloco dominante que se dá a luta de classes, e, através de alianças, o popular se impõe como resistência e luta, estando, portanto, as culturas sempre em transformação. A posição de CANCLINI, é que o capitalismo busca apropriar-se das heranças culturais, resignificando a função das práticas de produção de objetos culturais para dominar. Reduz o “étnico ao típico”, separa a base econômica do simbólico e rompe a unidade entre a produção e o consumo e entre o indivíduo e sociedade (CANCLINI, 1983). Ns interações e contradições entre local e global e entre as classes dominantes e oprimidas, entre tradição e modernidade, que se constroem as identidades, que como exemplifica CASTELLS, “até podem originar-se de instituições dominantes, mas somente os atores sociais a internalizam e constroem o seu significado ao redor desta internalização” (citado por KISTMANN, 2001, p. 45). A sociedade paranaense, por ser uma construção multicultural, internalizou uma identidade híbrida, a partir dos caboclos, índios, negros, portugueses colonizadores e dos imigrantes que aqui chegaram, caracterizando o artesanato paranaense como tendo sido construído a partir desta mescla das identidades locais e globais. Portanto, consideramos importante compreender o que significa o termo multiculturalismo, que apesar de ser uma discussão recente, pode ser aplicada para analisar os processos de formação da identidade paranaense, a partir das imigrações européias, pois vários fatores, tanto de assimilação de outras culturas, como de manutenção das tradições das origens, contribuíram para esta formação híbrida e multicultural de nossa sociedade. O termo multiculturalismo define um processo sempre em construção, não sendo assim uma doutrina ou uma única estratégia política. É um termo “substantivo, [que] refere-se às estratégias e políticas adotadas para governar ou administrar problemas de diversidade e multiplicidade gerados pelas sociedades multiculturais,[...]significando a filosofia específica ou a doutrina que sustenta as estratégias multiculturais”. Já o termo 24 Para compreender os processos de apropriação dos saberes e tradições das classes populares pelas classes dominantes, que buscam a hegemonia pela descontextualização e resignificação das práticas sociais, dissociando o econômico e o cultural para dominar, ler CANCLINI, 1983. Segundo o autor, esta perda do domínio econômico leva à perda de propriedade simbólica. Neste conflito multicultural, as culturas populares “se constituem por um processo de apropriação desigual dos bens econômicos e culturais de uma nação ou etnia, pela compreensão, produção, reprodução e reelaboração simbólica das suas relações sociais, compartilhando condições gerais de produção, circulação e criando as suas próprias estruturas” (p.42). 41 multicultural “descreve as características sociais e os problemas de governabilidade apresentados por qualquer sociedade na qual diferentes comunidades culturais convivem e tentam construir uma vida em comum, ao mesmo tempo em que ‘retêm’ algo de sua identidade ‘original’” (HALL, 2003 b, p.52). Segundo o autor, há na verdade diversos multiculturalismos, cada qual com suas formas de entender as questões multiculturais. O multiculturalismo conservador [...] ao insistir na assimilação da diferença às tradições e costumes da maioria. O multicultuaralismo liberal busca integrar os diferentes grupos culturais o mais rápido possível ao mainstream, ou sociedade majoritária, baseado em uma cidadania individual universal, tolerando certas práticas culturais particularistas apenas no domínio privado. O multiculturalismo pluralista, por sua vez avaliza diferenças grupais em termos culturais e concede direitos de grupos distintos a diferentes comunidades dentro de uma ordem política comunitária ou mais comunal. O multiculturalismo comercial pressupõe que se a diversidade de indivíduos de distintas comunidades for publicamente reconhecida, então os problemas de diferença cultural serão resolvidos (e dissolvidos) no consumo privado, sem qualquer necessidade de redistribuição do poder e dos recursos. O multiculturalismo corporativo (público ou privado) busca “administrar” as diferenças culturais da minoria, visando os interesses do centro. O multiculturalismo crítico ou “revolucionário” enfoca o poder, o privilégio, a hierarquia das opressões e os movimentos de resistência. Procura ser “insurgente, polivocal, heteroglosso e antifundacional” (GOLDBERG, citado por HALL, 2003 b, p. 53). Estas formas de entender as questões multiculturais denotam a dificuldade de definir as identidades a partir de um único conceito. As análises podem ser realizadas sob diversos enfoques e é difícil não correr o risco de reduzi-las ao puramente étnico, ao particular ou ao nacional, como identidade homogênea. O termo multiculturalismo, utilizado por Hall, denota a idéia desta pluralidade de significados, que podem ser apropriados por diferentes grupos, para legitimar interesses distintos. Apesar de, como falamos, ser um termo e estudo recente, o multiculturalismo pode ser fonte para se pensar desde o processo de colonização, como um produto de conquistas e de dominação, assim como para entender a tentativa do colonizador tentar “inserir o colonizado no ‘tempo homogêneo vazio’ da modernidade global, sem abolir as profundas diferenças ou disjunturas de tempo, espaço e tradição” existentes entre as culturas. Também as imigrações e os deslocamentos, por motivos políticos, de trabalho, climáticos, guerras, exploração entre tantos outros, produzem as sociedades “étnica ou culturalmente ‘mistas’” (HALL, 2003 b, p. 55). A articulação das identidades dos imigrantes europeus frente à realidade imposta pela vinda ao Brasil, reflete persistências e ao mesmo tempo adaptações. A formação das comunidades étnicas, citando o Paraná como exemplo, representaram sob certo aspecto 42 uma forma de reprodução dos costumes, estabelecendo uma identidade grupal expressa pelos costumes e hábitos das comunidades formadas (de italianos, alemães, poloneses, japoneses, entre outras) e de transformação pelos contatos culturais. Pelo caráter das cidades modernas, globalizadas (entendendo este termo em um sentido histórico e amplo), as migrações e as relações colonialistas, de uma globalização desigual, tem gerado culturas aparentemente homogêneas, mas ao mesmo tempo ressaltando as diferenças, que são traduzidas como “minorias étnicas”. Estes grupos formam comunidades, que refletem uma identidade grupal, estabelecendo limites demarcados destas comunidades 25 , que possuem costumes, língua, manifestações culturais, principalmente na casa e família, que mantêm elos de origem e continuidade (HALL, 2003, p. 65). Entretanto seria ingênuo imaginar que estes grupos também não estejam redefinindo seus valores tradicionais, no próprio universo familiar pela interação com outras realidades socais. As ciências sociais e humanas, de modo geral, definem o multiculturalismo por um viés construtivista, considerando seu caráter histórico, “polifônico, imaginário e híbrido”, sendo as identidades construídas não mais por limites territoriais ou pelo resgate folclórico das tradições, mas “em relação com os repertórios textuais e iconográficos gerados com os meios eletrônicos de comunicação e com a globalização da vida urbana”. As concepções fundamentalistas, de nações puras, etnias ensimesmadas, com cultura homogênea, diferentemente das demais nações, são defendidas nos discursos das autoridades e se necessário, militarmente, sendo ahistóricas e gerando preconceito e exclusão social dos desiguais (CANCLINI, 2001, p.144 a 148). Narrar a trajetória da construção da identidade brasileira e da paranaense significa pensar sobre conceitos de multiculturalismo e do que é identidade, uma vez que o Brasil e a América Latina são formados pela confluência de vários povos. Os indígenas, os colonizadores portugueses e espanhóis, os escravos africanos e os imigrantes de várias nacionalidades construíram identidades plurais e uma nação híbrida culturalmente. 25 Isto se torna muito claro quando são realizados os estudos etnocêntricos, que traduzem as manifestações culturais e as relações sociais de comunidades como: os indígenas, os negros, os imigrantes, etc., analisando estes grupos como tradicionais, fechados e resistentes, a partir de uma perspectiva de uma identidade nacional única. Corre-se o risco de acentuar, por detrás deste discurso de desigualdades, as questões “raciais”. 43 As identidades abrangem múltiplas dimensões, na interação de muitas áreas do conhecimento para seus estudos e, por serem uma relação viva, envolvendo aproximações, conflitos, hibridações e transformações, torna-se um conceito “demasiadamente complexo, muito pouco desenvolvido e muito pouco compreendido na ciência social contemporânea para ser definitivamente posto à prova” (HALL, 2002, p.8). A identidade cultural é uma percepção que passa necessariamente pelo reconhecimento de si mesmo e de si no outro. “O eu só afirma-se como eu, quando sai de si próprio e projeta-se no outro, ou seja, a identidade passa pela diferença” (KISTMANN, 1995, p.97) e pelas semelhanças. Esta “identidade contrastiva” constrói na relação “eu e o outro”, a afirmação pelo contraste, pela diferenciação, pois “o semelhante é inofensivo, inócuo. É o diferente que encerra risco, perturba, [mostrando,] assim [que] a diferença está na base de todas as classificações, discriminações, hierarquizações sociais. Em outras palavras, não se precisam as diferenças para fins de conhecimento, mas para fundamentar defesas e privilégios” (MENESES citado por CORREA, 2003 p.21). Estas tensões acabam constituindo um universo simbólico de grupos, que permeados pela emoção, se identificam com objetivos que dão significado ao real (KISTMANN, 1995 p.100). Nestas relações as identidades podem ser reforçadas, como forma de resistência e luta contra o processo de globalização e a hegemonia, fortalecendo ou formando novas identidades locais, ou, como estratégias para encobrir a diversidade, num discurso homogeneizador, favorecendo a manipulação e dominação. Para compreender a construção das redes de trabalho artesanal, resultando em hibridações, tanto das identidades, das tradições, como de conhecimentos tecnológicos de comunidades próximas e distantes, do local com o global, consideramos também dois fatores: a modernidade, que está relacionada com a construção das identidades das comunidades, da nação e com a implantação de novas formas de produção e divulgação dos artefatos; e a globalização, como um projeto mundial imaginado pelas elites dominantes, que possibilita contatos e hibridações materiais e simbólicas entre as culturas. Apreender e compreender a dimensão cultural das estruturas sociais consiste em dar voz aos atores que participam ou são excluídos deste processo. É considerar os conflitos sociais e o multiculturalismo como chaves destas análises. O local, nas suas diferenças, garante a sobrevivência do global, sendo hoje entendido como uma pluralidade e não como uma unidade, ou seja, a racionalidade, ainda em vigor, “tem uma nova perspectiva, 44 mais abrangente, sem, no entanto, eliminar as diferenças existentes entre os diferentes grupos sociais” (BECK, citado por KISTMANN, 2001, p.26). As nações se constituem assim, em um espaço para a construção da articulação destas diferenças, não em uma unidade nacional, mas sob a perspectiva de hibridações, tanto locais, como em políticas de interação com a economia mundial. Segundo IANNI, os Estados Nacionais se articulam mundialmente a partir de uma aldeia global, cujos modelos são articulados de acordo com recursos científicos e tecnológicos que são disponibilizados pelas economias dominantes (IANNI, 1996). Neste sentido, são construídas políticas nacionais para criação e valorização de uma identidade nacional, tanto no sentido de unificar o discurso da “nação”, bem como para a colocação dos produtos nacionais no mercado interno e externo, pela tentativa da integração do local com o global. 2.3 - A construção da Identidade da Nação Brasileira A invenção das tradições26, que remonta a longas datas, é um princípio fundador da idéia de Nação e dos regionalismos, buscando a “indissolúvel ligação secular do processo da vida de gerações com uma localização circunscrita” (BAKHTIN, 2002, p. 336). Assim, os mitos fundadores da Nação forjam uma identidade comum, reforçando o sentimento de pertencimento a uma tradição idealizada como coletiva. A questão da cultura e da identidade nacional possui duas dimensões: uma externa, subordinada às diferenças, principalmente em contraste com os países do “primeiro mundo” e outra interna, que busca uma identidade nacional. A construção simbólica da identidade nacional pode ser feita a partir de grupos específicos, reforçando as múltiplas identidades existentes, ou através de discursos oficiais, criados para institucionalizar padrões que homogeneízem o sistema, subordinando as diferenças regionais e étnicas em nome de uma pretensa unidade nacional. 26 Para definir o termo “invenção da tradição”, usamos o conceito de HOBSBAWM, que diz que: “Por tradição inventada entende-se um conjunto de práticas normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição o que implica automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta–se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado” (HOBSBAWM, 1984). 45 Nas narrativas sobre a constituição das identidades, tanto da Nação, como do Paraná, podemos perceber a presença nos discursos dos mitos baseados na raça, natureza e do patrimônio como formadores de uma unidade que dissimula as contradições sociais expressas tanto nos patrimônios materiais como nos imateriais. Para CANCLINI, “esse conjunto de bens e práticas tradicionais que nos identificam como nação ou como povo é apreciado como um dom, algo que recebemos do passado com tal prestígio simbólico que não cabe discuti-lo” (1997, p. 160). Assim, os bens naturais, as construções históricas e inclusive o saber e bens populares (“folclore”), foram valores incorporados pelos dirigentes para criar uma origem mítica de um “ser nacional” (1997, p. 161). As autoridades se intitulam guardiãs da memória nacional e responsáveis por sua preservação. A preservação das tradições, reais ou inventadas, são referências de identidades construídas para legitimar a modernização. Assim: A memória coletiva está ligada a um grupo relativamente restrito e portador de uma tradição, aproximando-se do mito e manifestando-se através da ritualização dessa tradição. Já a memória nacional refere-se a uma entidade mais ampla e genérica (a nação), aproximando-se mais da ideologia e, por conseguinte, estendendo-se à sociedade como um todo e definindo-se como universal (OLIVEN,1992, p.20). O discurso sobre a cultura nacional e Estado envolve relações de poder, representando uma produção de sentidos sobre a Nação, que são perpetuados nas narrativas oficiais e incorporados à memória coletiva de acordo com os interesses de grupos envolvidos com o Estado. Na verdade esta “cultura nacional” não pode ser pensada como unificada, mas plural, como um “dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade de identidade” e considera as nações modernas como sendo todas híbridas culturais, formadas por várias raças, etnias e culturas (HALL, 2002). A história do Brasil começou a ser “inventada” pelos portugueses, a partir de 1500, para difundir uma ideologia que fundamentasse os interesses de quem detinha o poder, no caso, os europeus. Foram representações construídas histórica e culturalmente, e de tal forma enraizadas no imaginário da sociedade, que transformaram um mito em realidade. O “Mito Fundador”, segundo CHAUÍ, representa uma repetição, às vezes com novas roupagens, de um “passado como origem”, para solucionar pelo imaginário o que não é resolvido na realidade. Como coloca a autora, são estas representações ideológicas que levam algumas pessoas a afirmar que: 46 Os índios são ignorantes, os negros são indolentes, os nordestinos são atrasados, os portugueses são burros, as mulheres são naturalmente inferiores, mas, simultaneamente, declarar que se orgulha de ser brasileiro porque somos um povo sem preconceitos e uma nação nascida da mistura de raças [...] Se indagarmos de onde proveio esta representação e de onde ela retira sua força sempre renovada, seremos levados em direção do mito fundador do Brasil, cujas raízes foram fincadas em 1500 (CHAUÍ, 2004, p. 8 e 9). As ideologias dominantes se apropriam destes mitos construídos, e de acordo com o momento histórico e as conveniências, os reordenam, usam de novas linguagens e valores, repetindo-os indefinidamente. Existem “semióforos”27 construídos pelo poder político, sendo o fundamental a idéia de ‘Nação”, como o elemento integrador da sociedade. Esta idéia de nação surge, segundo HOBSBAWM (1998), na “era das revoluções”, quando a necessidade do capitalismo em conter os conflitos e a divisão social e econômica das classes, levam o poder instituído a construir a ”idéia nacional”, unificando a sociedade em um contexto inicial único, de respeito às origens, língua, raça e pela “invenção das tradições”, critérios de definição da nacionalidade. O processo histórico de construção da “identidade nacional ” é negado, sendo a “nacionalidade algo imemorial e destino necessário da civilização(...)” (CHAUÍ, 2004, p.29). A história do Brasil era uma história já escrita, fundamentada na Bíblia, que nos seus escritos profetizava um paraíso a ser “descoberto”. Esta idéia de algo que nunca existiu antes da descoberta, o espaço e tempo ‘vazios’, permitiu aos portugueses justificarem a servidão dos índios como algo natural, dos planos divinos, que colocavam os colonizadores como superiores e legitimavam a exploração, pois segundo o profeta Isaías, deveria haver um “só rebanho e um só pastor” (CHAUÍ, 2004, p.75). Também a escravidão dos negros que substituíram o trabalho indígena quando estes fugiram do litoral para os sertões, é justificada pelo direito de escravizar quando um povo é vencido em guerra. Enfim, toda forma de dominação é perfeitamente justificável pelos mitos dos colonizadores. O mito fundador brasileiro sempre destacou a Natureza e Deus como elementos fundadores e identificadores da sociedade, reforçando esta idéia de naturalização das relações nos discursos, história oficial, hinos e heróis nacionais. 27 Semióforos são signos carregados de força simbólica, dando significação à existência da sociedade, como algo comum a todos, único, relacionando o visível e o invisível e assegurando uma unidade indivisa (CHAUÍ, 2004). 47 No caso da identidade brasileira, ORTIZ argumenta que em um período, que o autor situou de no final do século XIX e início do século XX, a questão da identidade nacional esteve relacionada basicamente com dois parâmetros: o meio e a raça, que servem como base para interpretar a nossa cultura. Assim, os cientistas e intelectuais da época utilizam-se das teorias européias, a partir de Comte, de Darwin e de Spencer para, baseados em questões biológicas e evolucionistas, categorizar a sociedade. O “subdesenvolvimento” do Brasil é uma questão raciológica, que legitima a realidade posta na época. Estas teorias por um lado “justificam as condições reais de uma nova república que se implanta como nova forma de organização político-econômica, por outro possibilitam o conhecimento nacional projetando para o futuro a construção de um Estado brasileiro” (ORTIZ, 2003, p. 30 e 31). O autor segue colocando que a questão do branqueamento da população através da imigração européia é uma questão ideológica, uma vez que de acordo com a postura raciológica dos cientistas sociais da época, o desenvolvimento do Brasil e a saída deste estágio de “inferioridade” frente ao primeiro mundo esbarravam na existência de três raças: a negra e a indígena, consideradas inferiores e a branca (evoluída), que na visão oficial deveria ser a maioria. No período entre as guerras mundiais, com a necessidade imposta de modernização e de mudanças políticas no cenário nacional, a “fábula das três raças” passou a ser construída ressaltando a identidade nacional pela mistura destas raças, gerando o mito da mestiçagem cultural - o Brasil-cadinho (DA MATTA, 1984). Neste período o tema da mestiçagem perde as especificidades na diluição das diferenças em nome da brasilidade, encobrindo assim os conflitos raciais. Como o trabalho é o valor fundamental do período do Estado Novo, e além do branco, as duas raças: os índios e negros também colaboram para a construção da Nação, o mito das três raças busca resolver este conflito, pois todos fazem parte da unidade nacional. “O que era mestiço torna-se nacional” (ORTIZ, 2003, p. 41). O despertar nacionalista foi consolidado no período do Estado novo (1937 a 1945), quando foi lançado o programa de veiculação oficial do Estado, a “Hora do Brasil”, divulgando as notícias de interesse do governo e na música “Aquarela do Brasil”, que canta as belezas naturais e o espírito trabalhador, pacífico e miscigenado do povo brasileiro, forjando o “caráter nacional”, que passou a ser introduzido nos discursos, já que o desenvolvimento almejado na época seria em cooperação entre capital e trabalho, com a intermediação do Estado (ORTIZ, 2003, p.38). 48 Este período foi importante na economia nacional28, fortalecendo a indústria nacional e utilizando a propaganda como instrumento de divulgação dos produtos. É nesta época que encontramos a maior quantidade de anúncios referentes às fábricas de móveis no Paraná, em especial dos Móveis Schulz, foco de nossa pesquisa. Na década de 50, o modelo desenvolvimentista, especialmente a partir de 1958, com Juscelino Kubitschek e seus ideais de industrialização do país, passamos da ideologia de “caráter nacional” para “identidade nacional”, exaltando o “verde-amarelismo”, nas festas populares, como no exemplo da vitória na copa do mundo de futebol de 1958, transformado em evento nacional. Durante o período da Ditadura militar (1964 a 1985). A idéia de “Brasil Grande” abre espaço para os investimentos internacionais visando à modernização do país. As três tarefas auto delegadas pela ditadura foram: o desenvolvimento nacional; a integração nacional e a segurança nacional (ORTIZ, 2003, p. 41). Os conflitos culturais devem ser harmonizados pelo ideal do “nacional”, tendo como elemento chave a tradição, considerada como um patrimônio, de valores, tanto espirituais como materiais, acumulados historicamente, devendo ser preservada, pois é este passado que define a identidade brasileira. Esta cultura a ser preservada, a cultura popular, deve ser resguardada de influências estrangeiras e da cultura de massas. O Estado é o guardião da memória nacional, sendo responsável por preservá-la através dos órgãos de Segurança Nacional. A diversidade cultural brasileira e os regionalismos devem ser respeitados, mas, sempre dentro de uma dimensão formadora de uma identidade nacional universal, de unidade e de harmonia na diversidade da Nação. Esta ideologia da unidade e neutralidade encobre os conflitos e os antagonismos sociais (ORTIZ, 2003). As questões do popular e do nacional, estão sempre vinculadas à temática da formação da identidade nacional. As culturas populares são apropriadas e reelaboradas simbolicamente pelos intelectuais a serviço do Estado para se converterem em símbolos da “manifestação de brasilidade”. Portanto, a Identidade Nacional, como um projeto unificador é um discurso, uma abstração que passa longe das particularidades e da diversidade das culturas populares. O Estado conserva características de detentor do poder, sendo verticalizante e autoritário, muitas vezes legitimando a divisão de classes e naturalizando nos discursos 28 Sobre o período abordado neste item, compreendido do início dos discursos de modernização e industrialização nacional, até a década de 70, iremos abordar especificamente os aspectos relativos à modernização do Paraná e de Curitiba no item 2.5 da dissertação. 49 oficiais as formas de violência. As contradições e conflitos sociais são vistos como nocivos e vão contra a ideologia da “identidade nacional”, de um povo ordeiro e de unidade nacional indivisa. Como afirma CANCLINI, esta instituição “do que você é”, como um representante da sua identidade nacional ou regional, é “um delírio bem fundamentado” (Dukheim, citado por Canclini, 1997, p. 193), “um ato de magia” (Bourdieu, ib.idem). É um ato perverso que o leva a naturalizar a cultura como incorporada ao seu ser, como um “herdeiro” de uma base cultural. “A única coisa que você não pode fazer, afirma o tradicionalismo quando o obrigam a ser autoritário, é desertar de seu destino” (CANCLINI, 1997, p. 193). 2.4 - A construção da Identidade Regionalista Paranaense Assim como ao nível nacional, também nos Estados as culturas populares e suas especificidades são apropriadas e resignificadas pelas elites, em uma tentativa de construção de um discurso de uma identidade que seja unificadora e totalizadora. Estas construções que são denominadas de identidades ou memórias regionalistas precisam ser “moldadas a partir de vivências cotidianas” (OLIVEN, 1992, p.26). A construção dos regionalismos, dentro do Brasil, tem a função de tornar as diferenças combináveis em um processo de homogeneização local, “se utiliza estas diferenças na construção de identidades próprias”. Tornando os interesses comuns, homogêneos, são escamoteadas as questões sociais, políticas e econômicas dos grupos específicos (OLIVEN, p.16). Neste projeto de constituição da unidade regional, vários membros pertencentes às áreas políticas e artísticas do Estado nascente engajaram-se na procura de discursos e signos que afirmassem a imagem do Paraná como soberano. No Paraná a necessidade de afirmação como província emancipada fez com que se acentuassem os argumentos regionalistas, havendo a construção deliberada de uma identidade cultural, no momento da emancipação política dentro do quadro nacional, datada da segunda metade do século XIX. Naquela ocasião, precisava-se de um suporte ideológico que desse unidade à província nascente, incentivando o desenvolvimento econômico e político da região. Para que houvesse uma coesão dos interesses da população local, bem como o interesse de outros povos do exterior em colonizar as terras paranaenses, criou-se um 50 discurso ufanista que serviu para afirmar o Paraná como um Estado independente (PEREIRA, 1998). Estes argumentos de uma identidade regionalista foram apontados como marcos propagandistas para a atração dos imigrantes a partir da década de 70 e 80 do século XIX. É o discurso da “paranidade” que foi sendo construído para criar uma identidade simbólica regional. A partir da chegada dos imigrantes, estes passaram a compor esta idéia de uma identidade, calcada em “três elementos básicos: clima, terra e homem” (TRINDADE, 1997). A política de atrair imigrantes estrangeiros foi uma estratégia para o “branqueamento” ou “caiamento” da população, pois a figura dos negros, que estavam associados ao atraso representado pela escravidão, não se adequava aos ideais de progresso, sendo necessário apagar estes vestígios, atraindo imigrantes “trabalhadores e morigerados” (WACHOWICZ, 2002). Em Estados como São Paulo, esta política originou-se pelo desequilíbrio no sistema dos latifúndios de café, que se baseavam no sistema de produção para a exportação, dependendo do trabalho escravo para mantê-lo. Com o fortalecimento da idéia abolicionista e o impedimento do tráfico externo a partir da lei Eusébio de Queiroz, de 1850, a economia nacional foi afetada e, internamente, os contingentes de escravos foram remanejados pelas províncias. Assim, a oligarquia paulista projetou políticas para que os governos das províncias do Brasil incentivassem a adoção do trabalho livre com a entrada da mão-de-obra européia (WACHOWICZ, 2002). No Paraná, além de objetivar a povoação das terras, com a escassez de escravos, desviados principalmente para os cafezais de São Paulo, do Vale do Paraíba e para a região aurífera de Minas Gerais, houve uma carestia de mão-de-obra na produção de alimentos para a subsistência da população e exportação para os outros Estados do país. Assim, a atração dos imigrantes foi uma forma de conseguir trabalhadores para a agricultura, pois, havia o preconceito dos paranaenses aqui já instalados, que consideravam pouco valorizado o trabalho agrícola, preferindo trabalhar na colheita da erva mate ou como tropeiros. (WASCHOWICZ, 2002). O governo de Lamenha Lins, no Paraná, criou teorias que garantissem o sucesso das políticas de imigração: financiando as despesas iniciais; oferecendo terras mais próximas da capital ligadas por estradas, com escolas e capela, e facilitando a comercialização dos produtos agrícolas produzidos. As famílias de imigrantes, na sua maioria europeus, que vieram povoar as terras paranaenses, foram assentadas no chamado cinturão verde, na 51 periferia de Curitiba, surgindo as seguintes Colônias: Santa Cândida (1875), Órleans (1875), Santo Inácio (1876), Rivieira (1876), D. Augusto (1876), D. Pedro (1876), Lamenha (1876) e Tomás Coelho (1876), com aproximadamente 3300 pessoas, quase todas de origem polonesa. As características muito próximas de sua terra de origem favoreceram a adaptação. Já no litoral os núcleos não tiveram o mesmo sucesso, tendo muitos imigrantes, na maioria italianos, se transferido para a capital, surgindo assim as localidades de Colombo, Santa Felicidade, Piraquara e colônia Dantas (hoje Água Verde) (WASCHOWICZ, 2002, p. 150 a 152). Antes do Paraná se tornar província, poucos imigrantes se fixaram, apenas em torno de uma centena de alemães que foram para a região de Rio Negro (1829); franceses para a colônia Tereza no Ivaí (1847) e suíços, franceses e alemães (1852), na colônia Superagui, em Guaraqueçaba. Os primeiros fluxos de imigrantes vindos para a região de Curitiba e arredores, na verdade são reimigrantes, vindos da colônia Dona Francisca, em Joinvile (1854) e do litoral paranaense, entre 1830 e 1870, criando novas colônias nos arredores da cidade e repovoando as já existentes. A partir do final do século XIX e início do XX, o fluxo começou a ser deslocado mais para o interior pela saturação da região de Curitiba, fundando então as colônias nas áreas rurais, como nos Campos Gerais. Apesar disto, ainda surgiram algumas colônias, como a Afonso Pena, dos poloneses (1911), dos alemães menonitas, na região do Boqueirão (1930) e algumas dos japoneses (1940 e 1960) (BALHANA, 2002, p. 400, 401). Como aponta BALHANA, o Presidente da província do Paraná, em 1881, José Pedrosa, ressaltava a importância da entrada dos imigrantes, não só para a lavoura, mas para participar da edificação de obras públicas: O governo deve estabelecer proximidades de povoações que por seu grau de prosperidade ofereçam ocupações remuneradas aos mesmos, quer em serviços de lavoura, quer nos diferentes misteres industriais, ou cumpre-lhe colocá-los nas localidades onde, por conta dos Estado, executem-se obras importantes, em condições de aproveitarem os novos braços introduzidos no país (...) aqui na capital, noto que a colonização já vai excedendo dos limites naturais, isto é, a capacidade do mercado e a demanda de braços para os diferentes misteres da população. Se a empresa da viação férrea não vier alargar esses limites, faltará em breve lugar para maior número de imigrantes (BALHANA, 1969, p. 181). O Paraná ainda na primeira república era conhecido como um local de passagem dos tropeiros, sem uma origem heróica, ou, “um mito fundador”. Com os ideais republicanos de unidade pelo federalismo, cada Estado da Nação, de acordo com sua força, poderia progredir, de acordo com os modelos modernizadores, baseados na constituição 52 Norte-Americana. Este novo modelo econômico era alicerçado no positivismo de Comte e no desenvolvimento pela ciência e técnica. Assim, a construção das identidades, além de envolver uma construção política, também teve um viés cultural, já que as tradições das comunidades e as questões simbólicas envolvidas foram importantes para a consolidação da sociedade moderna. Para afirmar o desenvolvimento nacional pelo federalismo, a cultura popular e os regionalismos foram utilizados nos discursos para promover os Estados da Nação como forças do progresso. Para promover o desenvolvimento e a modernização dos Estados, foi necessário uma política que os fortalecesse no cenário nacional. Como coloca Pereira, as identidades regionais29 são construídas nesta época, como: o Gauchismo no Rio Grande, Mineiridade em Minas Gerais, Bandeirantismo em São Paulo e o Paranismo no Paraná, para garantir privilégios pela força da unidade regional (PEREIRA, 1998, p. 53). Nos termos de BOURDIEU, as identidades regionais estão relacionadas com os conflitos, as lutas para a “conservação ou transformação das relações de forças simbólicas e dos lucros correlatos, tanto econômicos como simbólicos (...) ligados às manifestações simbólicas (objetivas ou intencionais) da identidade social” (citado por OLIVEN, 1992, p.19). Os conceitos da construção da identidade paranaense nos quais nos apoiamos, considerando os discursos ideológicos de uma memória e identidade oficial, são referenciados principalmente no trabalho de PEREIRA (Paranismo: O Paraná Inventado, 1998), que considera a identidade paranaense uma construção a partir de mitos forjados pelo Estado, articulados por intelectuais, sendo o principal “forjador de mitos”, Romário Martins. O saber científico é a chave para entrar na modernidade, por isto os intelectuais, como no caso de Romário Martins, são os eleitos para pregar o ufanismo modernizador. A industrialização, urbanização, encontros literários e artísticos são incentivados pelo governo para construir a identidade deste moderno Estado Republicano. Baseado neste ideal de modernização surgiu em Curitiba, no ano de 1927, o Centro Paranista, inaugurado por Romário Martins, para “promover o progresso e civilização do Estado”. Este centro visava congregar todos aqueles que queriam abraçar a causa paranista, principalmente os escritores, artistas e políticos. O movimento paranista tinha como missão criar um imaginário regional integrador, por meio da cultura. Neste sentido, os imigrantes colaboraram como aglutinadores de uma identidade cultural baseada nas tradições e culturas de suas nações de origem (TRINDADE, 1997, p. 70). 29 A definição de região depende do recorte metodológico que fazemos, sendo aqui considerada a unidade integradora o Brasil, e as regiões os estados da Federação. 53 O movimento simbolista na literatura e o modernista nas artes plásticas, criaram símbolos e construíram um imaginário para as origens do Estado do Paraná, pelas lendas e heróis regionais. Eram considerados heróis todos aqueles que mesmo não nascidos aqui, tenham dedicado trabalho para o crescimento e demonstrado afeição pelo Estado. Estes eram os verdadeiros “paranistas”. Grande destaque foi dado, então, para os imigrantes, que adotaram o Paraná e que segundo a visão destes historiadores da época, foram os empreendedores da modernização, industrialização e desenvolvimento regional. As lendas da Fundação da cidade de Curitiba por faiscadores de ouro, que se fixaram na região do Atuba e que solicitaram a ajuda de um índio da tribo Tingüi para localizar a melhor posição para a nova cidade, incorporaram a figura dos habitantes primitivos à história oficial. Segundo a lenda foi o índio que fincou a lança na região aonde hoje é a Praça Tiradentes, sendo ali o marco zero da cidade. O nome da cidade, de logradouros públicos, dos rios da cidade, são de origem indígena. Os mitos nativistas foram narrados pela literatura paranista, sendo seu principal divulgador Dario Velozo e o principal veículo de divulgação destes ideais, a Revista “Illustração Paranaense”, do início do século XX. Estas lendas, inventadas, fazem um elo de ligação entre a raça branca (europeus colonizadores) e os índios das tribos locais. São as pessoas de “boa índole e coragem”, que fazem um vínculo com um futuro modernizador (PEREIRA, 1998, p. 131 a 134). A dimensão estética também foi um importante meio para a criação de uma identidade paranaense. Artistas plásticos foram responsáveis por criar símbolos que representassem uma comunidade de sentidos para a identidade regional. O imaginário social foi construído a partir de símbolos da natureza, que eram o elo fundante da unidade e grandiosidade do Paraná, sendo o pinheiro o principal deles, explorado exaustivamente em todas as obras dos artistas locais. Os principais expoentes foram João Turin, Zaco Paraná, Lange do Morretes e João Guelfi. Estes artistas estilizaram e estudaram as mais diversas aplicações do pinheiro, pinha e pinhão, tanto na escultura, quanto na arquitetura e pintura. A proposta de urbanização das cidades paranaenses incluía desenhos do pinhão nas calçadas, colunas de prédios públicos, além das esculturas de Turin, inspiradas nos cânones renascentistas, de índios e heróis republicanos, espalhadas em todas as praças e os imigrantes, retratados em pinturas e esculturas, como o Semeador, escultura de Zaco Paraná, feita como uma homenagem dos imigrantes poloneses ao Estado que os acolheu (PEREIRA, 1998, p. 135 a 158). 54 FIGURA 2: Representações de ícones da identidade Paranaense. Respectivamente: estilização do pinhão por Lange de Morretes, 1930; o Semeador, de Zaco Paraná, 1925; capitel e estudos de colunas de João Turin, da mesma época. FONTE: GUINSKI, 2002, p. 106 a 110. Os projetos de urbanização eram grandiosos e vale lembrar que os aparatos tecnológicos exerciam espetacular fascínio, representando o ideal modernista. Os grandes espetáculos, como as sessões de cinema, as máquinas se movimentando nas feiras agropecuárias, os parques de diversão, representavam a urbanização e o futuro almejado para a população do Paraná, sendo, portanto, sempre divulgados e valorizados. As exposições eram montadas como um “elogio à magia das artes mecânicas”, um elogio da técnica (PEREIRA, 1998, p. 55). Ângela Brandão, por exemplo, procura demonstrar que estes espetáculos ofertados pela convivência no lazer e no cotidiano, pela luz elétrica, os bondes, os cinematógrafos, as “fábricas de ilusões”, soam como uma “preparação didática” para a mecanização do ritmo do trabalho, até se antecipando à industrialização propriamente dita. São performances técnicas, de ilusão e encantamento, “aos moldes de uma estética futurista”, ligadas a transformações invariavelmente atribuídas à técnica, que eram aplaudidas pelos curitibanos como espetáculos da modernidade (BRANDÃO, 1994, p.110). São as ideologias do liberalismo e desenvolvimentismo, que segundo CANCLINI, pensavam em uma compartimentalização maniqueísta que acabaria com “as crenças e os bens tradicionais. Os mitos seriam substituídos pelo conhecimento científico, o artesanato pela expansão da indústria, os livros pelos meios áudio-visuais de comunicação”(1997, p. 22). Este discurso de modernização foi corrente principalmente na virada do século XIX para o XX, sendo mais acentuado como uma apologia ao progresso, nos anos 50 (do século XX), não só no estado do Paraná, mas em todo Brasil, quando começam os planos de urbanização das metrópoles. 55 No Paraná, pelo fato de ter um passado ligado ao Estado de São Paulo, a partir da Emancipação em 1853 acontece um processo de construção e desconstrução da identidade dos paranaenses que passou a ser forjada por um discurso histórico e da literatura, baseado na utopia paranista, nos remetendo à idéia da “invenção das tradições” de Eric Hobsbawm. O passado construído pelos paranistas é glorioso e povoado de heróis, predominantemente brancos e estrangeiros, que amaram o Paraná e lutaram para garantir a unidade do Estado, construindo assim o ideal do futuro, também glorioso e progressista. O maior forjador destes mitos, Romário Martins, teve seu caminho ufanista compartilhado por outros autores, que atualizaram estas discussões em suas obras e relatos históricos para afirmar o Paraná como Estado emancipado. Esta visão mitológica que criticamos, foi adotada também por historiadores como Temístocles Linhares, Wilson Martins e em alguns aspectos por Ruy Wachowski, que narram a história paranaense a partir destas construções feitas por Romário Martins. Estas visões são muitas vezes construções específicas, reducionistas, que ignoram propositalmente os elementos históricos, culturais, assim como humanos, vistos como representantes de uma tradição escravagista, exaltando os imigrantes e deixando de lado, portanto, os negros, índios e caboclos, considerados atrasados, não se encaixando nos ideais de modernidade do Estado. A história passa a ser construída, para autores como Linhares e Martins, entre outros, a partir da vinda dos imigrantes europeus, considerados os modernizadores e empreendedores de uma nova era de progresso. Segundo estes autores, a identidade do povo paranaense, assim como do povo brasileiro, é construída na interação de várias etnias, que convivem harmonicamente. Os imigrantes italianos, alemães, poloneses, entre outros, vieram povoar e modernizar as extensas áreas do território paranaense, na época praticamente inexploradas. WILSON MARTINS em sua obra “Um Brasil Diferente”, de 1955, diz ser o Paraná a terra dos “não brasileiros”, “dos europeus”. Assimilação é a palavra–chave destes conceitos, que integram o imigrante e o meio “sem traumas”. O imigrante é considerado o construtor da sociedade burguesa e comerciante paranaense, sendo enfatizado a etnia alemã, por ser considerada pelo autor como a mais dinâmica de todas, apesar de ser em número menor que os poloneses e ucranianos. O autor é taxativo em sua afirmação: Assim é o Paraná. Território que do ponto de vista sociológico, acrescentou ao Brasil uma nova civilização original, construída com pedaços de todas as outras. Sem escravidão, sem negro, sem portugueses, e sem índio, dir-se-ia que a sua definição humana não é brasileira. Inimigo dos gestos, espetaculares e das expansões temperamentais, despoja de adornos, sua história é de construção modesta e sólida, e 56 tão profundamente brasileira que pode, sem alarde. Impor o predomínio de uma idéia nacional a tantas culturas antagônicas. [...] Assim é o Paraná. Terra que substitui o sempre estéril heroísmo dos guerreiros pelo humilde e produtivo heroísmo do trabalhador cotidiano e que agora, entre perturbada e feliz se descobre a si mesma e começa, enfim, a se compreender (MARTINS, 1955). Este discurso excludente e preconceituoso sobre o processo de modernização, teve na figura do imigrante, o responsável pela construção da urbanização e técnicas econômicas modernas. A obra de Temístocles Linhares, “Paraná Vivo”, também é um exemplo da exaltação do imigrante, sendo considerado como o que inaugura a vida no estado do Paraná pelo trabalho (LINHARES). A sociedade rural foi tratada no livro de LINHARES por capítulos diferenciados por setores econômicos (pecuária, mate, café, madeira, cereais, mineração...), destacando a importância da mecanização da produção para geração de excedente para exportação para outros estados, favorecendo a burguesia local (PAZ, 1990, p.155). Os direcionamentos desta obra literária podem ser sintetizados por duas frases do autor: Todas as coisas passam, e só são belas porque passam. O conhecimento do passado só importa quando nele se encerra alguma antecipação. O passado que nos interessa, só o foi em função do presente e do futuro. (Temístocles Linhares, citado por PAZ, p. 153) A negação do passado é articulada nestas narrativas históricas “forjadas”, deixando de lado todos aqueles que formaram verdadeiramente nosso Estado, “inventando” uma história projetada ao futuro, representada pelos imigrantes europeus. Os índios, negros e caboclos que não representavam este “progresso”, foram, portanto, excluídos da história oficial e tratados como entes “abstratos” em um cadinho de culturas, cabendo a estes a pior posição social, à margem das atividades produtivas (IANNI, 1966). As imigrações modernas, que ocorreram no período pós–primeira guerra mundial, foram mais estruturadas e financiadas por instituições internacionais, criando núcleos de colonização mais organizados, principalmente de alemães e holandeses. Também os povos do oriente, como árabes, libaneses e os japoneses vieram em grande número, aumentando a diversidade étnica. Para Wachowicz, o Paraná é provavelmente o “maior laboratório étnico do Brasil”. “Estes imigrantes representados pelas novas gerações praticamente integraram-se à sociedade brasileira, uns mais, outros menos, todos, porém, dando sua colaboração para a transformação da cultura original luso-brasileira” (WACHOWICZ, 2002, p. 156 e 157). 57 Estas discussões sobre a importância dos imigrantes na construção da identidade paranaense nos remetem às colocações de CHAUÌ e ORTIZ sobre a construção do mito do Brasil mestiço, da harmonia entre as raças e do branqueamento da população. Como citamos, o elemento racial negro é excluído da historiografia, como se fosse inexistente. Para a inconsistência deste fato nos chama a atenção BALHANA, pois na povoação paranaense e em especial na curitibana, algumas fontes como documentos, retratos e pinturas da época, nos mostram estatísticas de um número significativo de negros, sendo estes desconsiderados nas narrativas oficiais sobre a cidade (BALHANA, 2003; MARTINS 1999, p.51). Quanto à vinda dos imigrantes para o Paraná e os conflitos étnicos que haviam, IANNI em seus estudos aponta para o fato de que no processo de formação do capitalismo no Brasil, a criação do proletariado foi baseada na lei das vantagens do mais forte sobre o mais fraco, assim, o negro, devido à sua condição de ex-escravo, “foi preterido em benefício do imigrante” (IANNI, 1966, p. 18). Também entre os imigrantes que vieram, foram criados obstáculos e divisões, sendo que os que chegaram primeiro ao Paraná, especialmente os alemães, procuraram manter privilégios e poder, e devido à saturação do mercado regional nas atividades mais especializadas, como na indústria e comércio, os poloneses, ucranianos e italianos foram dirigidos para os “cinturões verdes”, para trabalhar na agricultura. Estas relações capitalistas, que são baseadas nas estruturas de classes, compõem ideologias raciais, e que, pelos estereótipos criados, dividem hierarquicamente os homens (IANNI, 1966). Estes estereótipos que legitimaram a exploração são reforçados constantemente, inclusive por historiadores, que narram em suas obras a construção “sem traumas” da sociedade paranaense. Os imigrantes tiveram um passado negado em favor da construção do futuro do Paraná, sendo citados pela convivência harmoniosa das múltiplas etnias não aculturadas, sendo esta característica demonstrada como diferenciadora do povo paranaense. O Paraná é representado como sendo um Estado formado por um povo trabalhador e ordeiro que acolhe a todos e respeita as identidades das origens dos imigrantes. A construção da identidade paranaense, baseada neste modelo, vem sendo repetidamente incorporada nos discursos que os governantes adotam, apresentados em slogans como: “O Brasil marcou encontro no Paraná” (governo Bento Munhoz da Rocha, década de 50, século XX); além de uma seqüência mais atual: “Paraná aqui se trabalha” (governo Paulo Pimentel, anos 60); “Paraná de todas as gentes” (governo Ney Braga, nos anos 70); “Paraná: Um estado de amor pelo Brasil” (governo Requião, anos 80). 58 Enfim, esta identidade “forjada” ou “inventada”, de um povo multiétnico, trabalhador, ordeiro e harmonioso, com raízes no movimento de consolidação da emancipação política do Paraná e nos ideais paranistas, vem sempre sendo reafirmada nos discursos oficiais de vários governantes do Estado (TRINDADE, 1997). Estas construções ideológicas se perpetuam, passando a ser a história oficial, narrada de forma sempre excludente nas entrelinhas. Como coloca DaMatta, para narrar a identidade do Brasil, devemos discutir não só os dados quantitativos, os números, baseados nos conceitos de modernização e economia, mas também os dados qualitativos, ou as relações entre as pessoas. Significa analisar não só a nação (como uma coletividade homogênea), mas a sociedade, em todas as suas manifestações familiares e culturais. E é isto que faz, segundo o autor, o “brasil” (das possibilidades humanas), “Brasil” (combinação e relacionamento especial destas possibilidades universais) (DAMATTA, 1984). 2.5 - A Modernização do Estado do Paraná e da Cidade de Curitiba Nas três primeiras décadas do século XX, as rendas das plantações de café e a diversificação para outros setores que se desenvolviam, principalmente o industrial, levou os governos a pensarem em uma reestruturação da sociedade urbana, relativizando as “concepções ruralistas de país” (SILVA, 2000, p. 51). Com o Estado Novo foi instalado um período autoritário, encerrando nos discursos os ideais da “Nação, ordem e progresso”, havendo a centralização política, em detrimento da autonomia dos Estados (MENDONÇA, 2001, p. 47). Após a revolução de 1930, a política implantada voltou-se para uma intervenção saneadora do país, “articulada com as idéias de modernização, nacionalismo e urbanização”. Os planos de urbanização das metrópoles, traçados entre as décadas de 30 e 50, foram uma conseqüência desta diversificação de atividades, dentre elas a indústria, serviços e imobiliária, movimentadas pelo enriquecimento dos setores agrícolas ligados ao café e erva mate, havendo a necessidade de expansão dos espaços urbanos, interligando-os com os suburbanos e o meio rural (SILVA, 2000, p. 51 e 52). As grandes metrópoles são construídas como ícones de grandiosidade e progresso, ostentando nos grandes monumentos e no planejamento urbano o ideal de um país em construção. O ufanismo da técnica e do progresso forjou as identidades a partir de um modelo da industrialização e exaltação do trabalho. 59 A exposição industrial do Paraná, de 1932 (sobre a qual iremos abordar alguns aspectos no capítulo 4), foi um exemplo da divulgação e valorização das indústrias como modernizadoras e representativas do progresso do Estado30. O Estado durante o governo do ditador Vargas, tomou para si a responsabilidade de forjar este modelo de modernização, expresso na urbanização das metrópoles. Assim também os interventores estaduais, como no caso do Paraná com Manoel Ribas (1932 a 1945), passam a orientar políticas públicas para apoiar o Estado Novo e o desenvolvimento nacional. Como exemplifica Maclóvia da Silva, neste período o interventor buscou, na capital: a “racionalização e modernização burocrática (colaboração financeira para o plano da cidade, ampliação do quadro funcional da prefeitura), infra-estrutura (ligação de Curitiba com o Norte do Estado), educação (construção de escolas profissionalizantes em Curitiba), fomento à industrialização (indústria do papel) e colonização (concessão de terras)” (SILVA, 2000, p. 52). O governo de Manoel Ribas procurou colonizar as regiões Norte, Oeste e Sudoeste do Estado, estimulando o plantio de café em pequenos lotes, com estrutura familiar de trabalho. Esta economia faz emergir uma nova elite no Norte, gerando rendas e arrecadação pública que possibilitaram aos governantes Manoel Ribas (1932 a 1945), Moysés Lupion (1947 a 51 e 1956 a 61) e seu opositor Bento Munhoz da Rocha Netto (1951 a 56) se tornarem conhecidos como os agentes da modernização no Estado do Paraná, devido à aplicação destes recursos na urbanização das cidades (MAGALHÃES, 2001, p. 51). Os prefeitos de Curitiba que foram contemporâneos a estes governantes, também traduziram na capital os ideais de modernização, acompanhando o surto desenvolvimentista, fortemente ligado ao setor agrário. No início da década de 40 foi contratada a assessoria de uma empresa sob a supervisão do urbanista francês Alfred Agache, que elaborou um plano urbanístico para Curitiba, implantado em 1943, que, com as devidas relativizações, foi seguido pelos demais 30 Sobre estas constituições dos Estados “modernos” e “desenvolvidos”, segundo CANCLINI, representaram apenas a organização de algumas áreas da sociedade para promover um “desenvolvimento subordinado e inconsistente; fizeram de conta que formavam culturas nacionais e mal constituíram culturas de elite, deixando de fora enormes populações[...]”. Os populismos incorporaram nos discursos estes excluídos, mas “sua política igualitária na economia e na cultura, sem mudanças estruturais, foi revertida em poucos anos e se diluiu em clientelismos demagógicos”. Neste contexto “a modernidade é vista então como uma máscara. Um simulacro urdido pelas elites e pelos aparelhos estatais” para forjar a unidade regional promovendo o progresso (1997, p.25). 60 prefeitos, da cidade sendo reestruturado por uma seqüência de planos implementados pelos “agentes” das transformações, até Ivo Arzua31. O projeto original era em forma de uma espiral, que se expandia partir da praça Tiradentes, destinada ao desenvolvimento de uma zona comercial, crescendo em direção aos bairros, prevendo áreas especializadas para o lazer, comércio, administração, indústria, abertura de novas ruas e criação das perimetrais para o descongestionamento do anel central. FIGURA 3: Pranchas do plano Agache, de 1940. Representam o planejamento em espiral de expansão das ruas da cidade e do projeto para o Centro Cívico. FONTE: GUINSKI, 2002, p. 138 e 139. Também foi prevista a implantação do Centro Cívico e a verticalização da capital para comportar o aumento demográfico, já que a cidade cresceu de aproximadamente 50.000 habitantes, em 1900, para 180.000 moradores em 1950 (GUINSKI, 2002). Segundo SILVA, os elevados preços do café, entre 1946 e 1954, impulsionaram o desenvolvimento das classes médias da população paranaense, ligadas às indústrias de transformação do produto e os comerciantes ligados a este setor, bem como do setor ervateiro, que eram as principais fontes que faziam movimentar a indústria e comércio do Estado. Os governantes que comandaram a máquina administrativa neste período, destacando o governo de Bento Munhoz da Rocha, buscaram o planejamento da Capital, em conjunto com os prefeitos que administraram Curitiba. As principais ações eram direcionadas pela continuidade do Plano de Urbanização de Curitiba, implantado desde 1943, tendo como 31 Em 1962 foi eleito o prefeito Ivo Arzua, que esteve à frente da prefeitura até 1966, sendo um dos “agentes” da revisão do Plano Agache, que gerou o “embrião” do atual Plano Diretor da cidade de Curitiba, sendo, por esta iniciativa, lembrado como uma referência da população curitibana sobre a transformação urbana da cidade (SANTOS (a), 1999, p.83). 61 novas diretrizes: o desenvolvimento de áreas mais afastadas da cidade, pavimentação das principais vias de tráfego e organização do transporte coletivo (SILVA, 2000, p. 104 e 105). Um dos marcos da modernização de Curitiba se refere aos eventos da comemoração do Centenário da Emancipação Política do Paraná, em 1953, que gerou uma série de referências espaciais, que assinalam um contexto que foi incorporado nas memórias, como o início da transformação de Curitiba. O governo Bento Munhoz da Rocha produziu um ato voluntário de ruptura com o passado, marcado pelos monumentos construídos e os festejos de entrada em um novo tempo. No governo de Bento Munhoz da Rocha, foram construídos o Teatro Guaíra, a Biblioteca Pública do Paraná e o Centro Cívico, com uma “arquitetura mais moderna, novas técnicas e novos materiais” (SILVA, 2000, p. 118). O projeto para o Centro Cívico teve a participação de Sérgio Rodrigues no projeto do prédio para as secretarias, que originalmente teria 30 andares, dos quais apenas 10 foram erguidos. FIGURA 4: Maquete do Centro Cívico. FONTE: CALS, org., 2000, p.215. A expansão espacial da cidade e o “progresso”, representados pela industrialização, são também apresentados em uma exposição em um pavilhão especialmente construído no bairro Tarumã para as comemorações do centenário de Emancipação. Estas obras, a pavimentação da cidade e a concepção do Centro Cívico como um cartão de visitas, visavam marcar a entrada em uma “outra temporalidade”, de uma “outra cidade”, que se transforma e se moderniza (SANTOS, 1999). 62 FIGURA 5: Prédio da Biblioteca Pública e o mural da praça 19 de dezembro, obras projetadas para o centenário da Emancipação Política do Paraná. FONTE: GUINSKI, 2002, p. 157 e 160. Os planos urbanísticos32 traçados eram medidas racionalistas e técnicas, baseadas em planejamentos elaborados por uma equipe responsável por definir a destinação dos espaços públicos. Na gestão de Ney Braga como prefeito de Curitiba (1954 a 1958), o exprefeito de São Paulo e urbanista Prestes Maia o assessorou, sugerindo a construção de um mercado atacadista que atendesse as zonas mais afastadas da cidade, com grandes armazéns e depósitos, ligado pelas vias de acesso e sistema de transporte coletivo. Surgiu assim o Mercado Municipal de Curitiba, que por manobras políticas e interesses empresariais, foi um espaço destinado à venda de produtos para as camadas médias e altas da população, uma espécie de “shopping center” aos moldes americanos, adaptado à concepção da época de mercado. Os espaços públicos eram planejados para atender o consumo de acordo com as camadas da população a que seriam destinados, assim, nas zonas mais retiradas eram criados outros centros comerciais, como o do bairro Portão, Bacacheri e Santa Felicidade (SILVA, 2000, p. 122 e 123). A expansão da cidade e do Estado, impulsionada pelas rendas da cafeicultura, da erva mate e pelo conseqüente crescimento industrial, gerou um novo mercado consumidor, aumentando a demanda pela construção imobiliária e conseqüentemente por produtos para o lar, como os móveis. A visão do Estado como modelo agrícola é relativizada nos governos de Ney Braga (1961 a 65) e Paulo Pimentel (1966 a 71), passando a afinar os discursos com a política nacional, do Estado como indutor da industrialização. 32 Para esclarecimentos sobre estes planos, sua concepção, concretização e conseqüências sociais e econômicas, consultar a tese de Maclóvia da Silva, 2000, cujo título é: Plano de urbanização de Curitiba - 1943 a 1963 - e a valorização imobiliária. 63 Para atingir estas metas, os governos lançam mão de programas de infraestrutura básica, rodovias, energia elétrica, as voltadas para o bem estar da população, como na educação pública, não só “acadêmica”, mas profissionalizante (MAGALHÃES, 2001, p.72 a 77). Estes governos que foram ligados ao período de ditadura (Ney Braga, Pimentel e Jayme Canet Junior), aderiram aos princípios tecnocráticos do regime autoritário, e apesar dos avanços tecnológicos da economia, intensificou-se o empobrecimento das camadas inferiores da população, excluídas do “milagre econômico” e alienadas do processo político pelo monopólio das informações (MAGALHÃES, 2001, p.80 a 84). A modernização de Curitiba é percebida e apreendida de formas diferentes, sendo estes vários olhares que dão significado ao que foi e ao que é a cidade. Como fala Antônio Santos, a cidade “é muito mais do que a paisagem produzida em pedra, concreto, ferro, vidro, asfalto, madeira, mais que os discursos que se produzem sobre ela: a cidade é tudo aquilo que é percebido e interpretado como cidade” (SANTOS (a), 1999, p. 10. Grifo do autor no original). É neste contexto, da cidade de Curitiba e do Estado do Paraná em um processo de modernização (de 1930 a 70 aproximadamente), que se desenvolvem a indústria de móveis artesanais locais. Ney Braga é tido como quem iniciou a aproximação de Santa Felicidade (região suburbana neste período) de Curitiba, por alianças políticas, que segundo relatos do artesão Darci Ferro, também resultaram no desenvolvimento da indústria artesanal local, pela divulgação dos produtos dentro do estado do Paraná e nacionalmente. Quando o Ney Braga foi prefeito de Curitiba, ele fez um contato político com a família Túlio, e eles se deram bem. Aí ele começou a ligar Curitiba com Santa Felicidade, porque não existia uma ligação ali. Era tudo via carrocinha naquela época, e não via rádio, televisão, o turismo. Hoje Santa Felicidade tem os restaurantes, naquela época não existia restaurante. Não existia esta ligação, então Ney Braga fez esta ligação com o que? Fez a ligação com o ramo do artesanato. E aonde que ele mandava? A família Túlio morava bem em frente à igreja, que era um marco, uma referência do local. – Em frente à igreja tem uma fábrica, vocês vão lá e digam que eu que mandei! E aí os irmãos do Ney Braga passaram a freqüentar a casa da família Túlio, e começou este conhecimento com gente importante da época. [...] Eles tinham este contato com os políticos. Aí o Ney Braga se elegeu governador, vinham os políticos do Rio de Janeiro, fazer uma visita no Paraná. O que ele fazia? Ele levava o pessoal no Túlio, dizia: - Olha, tem uma fábrica de vime lá, vamos conhecer. Aí começou a se expandir. Ele começou a vender pro Rio, pra São Paulo, pra fora... (Entrevista, Adarcísio Ferro, entrevista, fevereiro de 2005). 64 Também foi nesta época que funcionou a fábrica de móveis de Martinho Schulz, que, acompanhando as mudanças sociais, urbanas e econômicas, inicia transformações nas práticas de produção artesanal manufatureira, se inserindo em mercado mais globalizado, industrializado e aos moldes capitalistas, para atender às novas demandas de consumo. No próximo capítulo tentaremos contextualizar estas transformações e permanências, representadas na tradição artesanal e nos processos de modernização da produção moveleira artesanal com fibras na cidade de Curitiba. 65 CAPÍTULO 3 A PRODUÇÃO MOVELEIRA ARTESANAL EM CURITIBA 3.1 - O Conhecimento Tecnológico e o Fazer Artesanal Para falar sobre a produção moveleira artesanal de Curitiba, além dos conceitos da formação das identidades e das contradições inerentes à produção artesanal, como local e global; tradição e modernidade faz-se importante enfatizar o papel do artesanato no mundo capitalista e as tecnologias envolvidas no trabalho artesanal. Pretendemos discutir neste item o que entendemos como tecnologia, conhecimento tecnológico e artesanato para compreender as hibridações e as práticas artesanais refletidas e refratadas no trabalho com fibras na região de Curitiba. Devido às suas características de transmitir ou reelaborar tradições, através das práticas sociais mediadas pelo trabalho, em nossa pesquisa ressaltamos que o artesanato é passível de transmitir conhecimentos tecnológicos. A tecnologia e a memória interagem com a cultura, sendo “textos de cultura”, com possibilidades de “alteração e permanência”, havendo “múltiplas formas de apropriação e transcriação da tecnologia”, não se limitando a determinismos (QUELUZ, 2000 b, p. 12 e 14). A tecnologia assume um papel fundamental na sociedade moderna, pois como um processo de produção, fundamentado no trabalho, pode ser transformadora e, ou transformada nas relações sociais. DICKSON considera a tecnologia como uma linguagem que provoca ações sociais (citado por BASTOS, 1997, p.08). É também uma ação política, pois envolve interesses no controle dos instrumentos, que garantem a manutenção da hierarquia social e do sistema capitalista de acúmulo de riqueza para as classes dominantes. As relações de poder são construídas a partir de discursos que reificam a tecnologia e dividem o mundo entre os que detêm a tecnologia e os que a consomem, institucionalizando a dominação pelo uso das técnicas. Historicamente a fragmentação do saber, separando a teoria e a prática, o intelectual e o manual, afastam o homem da compreensão global do processo produtivo para a dominação. 66 Para MARX (1973), a divisão manufatureira utiliza a ciência como um “meio para produzir riqueza”, incorporando o saber do trabalhador ao capital, desqualificando a massa dos trabalhadores e qualificando uma minoria, estabelecendo assim a divisão do trabalho. Este saber é incorporado às máquinas, para objetivar a dominação. Esta prática reducionista, juntamente com os mitos e ideologias que sustentam o sistema capitalista, legitimou as desigualdades, criando um abismo entre classes sociais. Esta visão prevaleceu principalmente no séc XIX, período da Revolução Industrial, quando foi iniciada a automação dos processos, sendo que a necessidade era de produzir em massa, para desenvolver o capitalismo. A tecnologia, neste contexto de consolidação do capitalismo industrial, é entendida como o uso de máquinas, ferramentas e materiais para executar as tarefas da produção. Entretanto, o conceito de tecnologia vai além de ser puramente o uso de técnicas para a produção de artefatos, mas sim uma construção social e histórica, em que o conhecimento científico aliado à técnica (o saber fazer), interage com a cultura, podendo construir uma nova realidade. Existem múltiplas “dimensões que nem sempre são consideradas quando se fala em tecnologia”, mas que devemos levar em conta quando pretendemos analisar a produção, inserida nas práticas sociais, no contexto aonde está se desenvolvendo (CARVALHO, 2003, p.20). A história do desenvolvimento dos seres humanos está marcada pela busca do conhecimento e o aperfeiçoamento das técnicas para obter os fins desejados e dominar a natureza. Vale ressaltar dois aspectos importantes deste processo: ele não é linear, ou seja, cada civilização, grupo ou etnia estabelece seu próprio ritmo e também nem sempre são as novas técnicas que determinam as mudanças, mas sim também as mudanças sociais podem inovar as técnicas (CARVALHO, 1998). As construções deterministas da tecnologia são aos poucos abandonadas, pois se percebe que os sentidos atribuídos aos objetos passam longe da eficiência racional que muitas vezes é projetada para o seu uso. Os significados simbólicos e o uso dos artefatos adquirem novas dimensões quando incorporados nas culturas. Como exemplifica Claude Fischer, o telefone que foi projetado com um fim estritamente comercial, passou a ser uma forma de tecnologia de sociabilidade (FISCHER, citado por QUELUZ, 2000 b, p. 46). Uma das definições de tecnologia que usaremos nestas reflexões sobre o artesanato se baseia na concepção utilizada por RUY GAMA (1986, p.185 a 188), que entende a “tecnologia moderna” como “a ciência do trabalho produtivo”, conceituando 67 moderna como sendo contemporânea ao capitalismo e o trabalho produtivo como sendo o que gera mais-valia, ou um valor excedente ao capital, na forma de mercadoria33. Consideraremos a tecnologia em suas múltiplas dimensões: sociais, econômicas, culturais e, sobretudo na importância do trabalho em relação com as tecnologias. Estes conceitos estão apoiados na concepção de MARX sobre as relações de trabalho e o sistema capitalista34. Para Marx, o trabalho humano, é antes de tudo ... um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano com sua própria ação impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo, braços e pernas, cabeça e mãos, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana (MARX, 1973). Este processo é, entretanto, idealizado e previamente concebido, sendo isto o que diferencia o homem dos outros animais, pois o trabalho não é só atividade produtiva, mas também aplica e gera conhecimento. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construção dos favos de suas colméias. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu o favo na sua cabeça, antes de construí-lo em cera. No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador, e portanto, idealmente. (MARX, 1973). A tecnologia deve ser analisada sob vários aspectos, e segundo GAMA (1986), pode ser representada pela figura de um tetraedro composto pelas seguintes variáveis: 1. Tecnologia do trabalho: Atividade material orientada por um projeto, na qual o homem modifica a natureza e a si mesmo pelo trabalho. 33 Segundo BRYAN (1997), citando Marx, o processo de trabalho é antecedido por uma operação de compra e venda da força de trabalho que ocorre no mercado. O capitalista, proprietário dos meios de produção e de subsistência, compra do trabalhador o direito de usar a sua capacidade de trabalho por um determinado período de tempo. O processo de trabalho transforma-se em processo de extração de trabalho vivo dessa capacidade de trabalho que irá transformar os elementos materiais, produtos de trabalho passado, possuído pelo capitalista, em novos produtos. Como processo vinculado ao modo capitalista, no final do processo terá um valor de troca, superior ao investido no produto... O processo de trabalho é, portanto nessas condições, ao mesmo tempo, processo de produção de valor excedente (mais valia). 34 Para aprofundamentos, ler Marx, K. O capital. Livro 1. Vol. 1. 68 2. Tecnologia dos materiais: Estudo científico das matérias primas. 3. Tecnologia dos meios. São os objetos de trabalho, como instrumentos, máquinas, energia, exercendo ação sobre os materiais. 4. Tecnologia básica ou praxiologia. Conjunto de disciplinas e técnicas que dão apoio a outros elementos da tecnologia. É a ciência aplicada em uma relação dialética entre a teoria e a prática. Estes elementos definidores da tecnologia apresentam uma possível visualização para as análises da produção artesanal, entendendo esta como um ofício a partir do qual o homem idealiza um produto a ser elaborado através do trabalho. Na materialização desta idéia ou projeto, utiliza-se dos meios, que são os instrumentos, ferramentas e máquinas para transformar a matéria-prima (como as fibras, por exemplo) em produto. A transformação de idéias e materiais em formas só pode acontecer a partir de conhecimentos tecnológicos que são aplicados pelo trabalhador no processo. Dentre os fatores de análise da tecnologia não podemos esquecer dos fatores simbólicos, culturais, sociais, políticos e econômicos que envolvem o processo, que estão permeados desde a concepção do produto até chegar ao consumidor, havendo no percurso uma atribuição de valores aos artefatos. A tecnologia é antes de tudo uma construção de saberes a partir dos conhecimentos dos trabalhadores e demais envolvidos no processo produtivo. Neste sentido, a “tecnologia está assim intrinsecamente presente tanto numa enxada como num computador [...]” (CARVALHO, 2003, p. 20) As relações de comunicação promovem a circulação de saberes, que poderão “gerar novas tecnologias, alterando processos e produtos” (BASTOS 1998, p.29), em um processo de inovação que é essencialmente criativo e demanda novas posturas. Como agentes de transformação, o resgate do papel fundamental dos indivíduos no processo, deve valorizar a questão cultural e a memória individual e coletiva, pois como afirma LE GOFF, a “tecnologia é também memória e acontecimento vivido, único e finito, lembrado a cada passo que é implementado e se constitui necessariamente como uma chave para tudo que veio antes e depois” (LE GOFF, 1990). O resgate do valor da experiência do trabalhador, nas dinâmicas dos grupos, a transformam em elemento de “interface” na construção da tecnologia a partir das práticas. A valorização do conhecimento do trabalhador, segundo BASTOS, estimula o exercício da 69 reflexão e da experimentação para a solução de problemas, como em um “laboratório de conhecimento” (2000 b, p. 84). Na convivência, os grupos sociais compartilham no dia-a-dia formas de compreender a realidade, adquirindo experiências para realizar determinadas tarefas e resolver dificuldades cotidianas. Estas experiências, compartilhadas socialmente, geram conhecimentos que são passados entre os membros do grupo e perpassam as gerações. Os conhecimentos, que envolvem crenças, mitos e técnicas são construídos pelo grupo, que passa a incorporá-los no cotidiano (BASTOS, 2000c, p. 15). O conhecimento popular, chamado de empírico, senso comum ou conhecimento “tácito”, é desprezado pela academia, sendo legitimado apenas quando sistematizado e cientificado pelas classes dominantes. Esta hierarquização de saberes visa o controle do fazer dos trabalhadores, desmerecendo seus conhecimentos para a dominação e exploração pelas classes dominantes. Neste sentido, LERMAN afirma que a categoria “conhecimento tácito” é inexistente, já que a própria categorização destes conhecimentos, denominando-os de “tácitos”, já carrega uma forma de discriminação, de hierarquização de saberes, como se fossem de segunda ordem, ou menos importantes (1993). Sobre o conhecimento técnico, FERNANDES35 o toma como equivalente de sentidos com o termo artes, “não opondo o termo de ciência e de artes por este designando-se todo o trabalho profissional cujos métodos e processos decorrem de conhecimentos científicos basilares com isso equivale a dizer que o termo artes adquire aqui um significado mais geral que dá ao termo artes o mesmo ou equivalente sentido do vocábulo técnico. A nossa expressão ‘artes populares’, equivaleria à moderna ‘tecnologia popular’” (FERNANDES, 1973, p. 12). Esta aproximação do artesanato e da tecnologia ainda é por vezes pouco definida, gerando confusões e imprecisões conceituais, que hierarquizam saberes e estratificam os papéis sociais. Como cita BASTOS, todas as pessoas, independentemente de terem passado pela academia, possuem, criam, interferem e acrescentam conhecimento à sua realidade. A 35 Loureiro Fernandes, que estudou o folclore e artesanato paranaense, assinala em seus textos o valor da “cultura popular” que, segundo Câmara Cascudo citado pelo autor, “é o saldo da sabedoria oral na memória coletiva”. Esta cultura que é expressa pela sabedoria do povo, é um patrimônio passado pela experiência e pela comunicação das gerações sucessivas (FERNANDES, 1973, p. 20). Defende o estudo científico e sistematizado desses saberes nas universidades, sendo que a partir de seus ideais e conceitos teóricos, foi estruturado no ano de 1968, o Museu de Arqueologia e Artes Populares, em Paranaguá, concebido para fixar “um roteiro evolutivo de técnicas”, enfatizando a “tecnologia popular”. Este folclorista tem uma visão evolucionista, considerando o artesanato, pré-industrial, como uma fase que seria superada pela industrialização, daí a necessidade de preserválo no museu para a apreciação das gerações futuras(1973, p. 9). Realmente, este saber pode não existir da mesma forma que existia, entretanto, continua a existir, assumindo outras características. 70 ausência de conhecimento sistematizado não os impede de utilizar técnicas eficientes no seu trabalho e na vida cotidiana. É este conhecimento “que dá significado para a prática profissional dos atores sociais, que vivem nas mais diferentes dimensões culturais de uma sociedade estratificada em classes sociais” (BASTOS, 2000c). Sendo a tecnologia, no conceito de GAMA, a ciência do trabalho produtivo, acontece muitas vezes deste conhecimento ser apropriado pelo capital, que esvazia a atividade humana de significados, desapropriando o saber do trabalhador, visando unicamente à produção de acúmulo para o capitalista. Este conhecimento é estratificado de acordo com os papéis definidos para serem desenvolvidos socialmente, passando por questões de gênero, raça e classes. A classe dominante desenvolve um repertório de informações que deve ser adquirido para manter as funções estabelecidas para cada segmento social. Esta hierarquia discrimina, em alguns países de forma explícita, como nos Estados Unidos, Europa, que escancaram as questões raciais e em outros lugares, como no Brasil, conforme exposto por DAMATTA, não existe discriminação desde que cada grupo saiba e fique no seu lugar, obedecendo a uma hierarquia velada (1984, p.46). Nos estudos de gênero, autores como LUBAR descrevem estas hierarquias como uma invenção da industrialização americana, sendo o universo da produção tendenciosamente definido só como a cultura material, mais especificamente representada pelas ferramentas. O “homem” é capaz de transformar a natureza (feminina) pelo uso da tecnologia, esta associada às máquinas. São as “metáforas mecânicas”, sendo considerado mais tecnológico tudo o que o que é feito por “homens”, preferencialmente “brancos” e das “classes mais altas” (LUBAR, in: MOHUN and HOROWITZ, 1998, p. 19). A esfera da produção é eminentemente masculina, quanto mais a que envolve tecnologias “de ponta”. O conhecimento tecnológico presente no trabalho das classes operárias muitas vezes é entendido como aquele não expresso pela voz, desarticulado, em oposição ao conhecimento teorizado, ou expresso articuladamente pelas elites. Entretanto este conhecimento tecnológico, longe de ser desarticulado, representa um repertório de habilidades desenvolvido historicamente em determinados contextos sociais, fundamentais na produção dos artefatos, principalmente no setor artesanal (LERMAN, 1993). Conforme colocam alguns autores, como SHAPIN, não podemos considerar o conhecimento dos trabalhadores como sem voz, uma vez que ele possui seus próprios códigos de transmissão nas suas representações, como os artefatos produzidos, ações, desenhos e palavras, que são formas de comunicação (citado por LERMAN, 1993). Muitas vezes a 71 escolha de repertórios, que nos predispõe a determinadas leituras das informações, podem desqualificar ou tirar o verdadeiro significado do conhecimento produzido em contextos específicos, desrespeitando as retóricas da comunicação dos grupos. Desta forma, estes conhecimentos construídos coletivamente nas suas múltiplas dimensões são conhecimentos tecnológicos, pois além do uso das máquinas e ferramentas, representam uma multiplicidade de maneiras de conhecimentos, de talentos múltiplos, transmitidos historicamente por outras vias, que não só a escrita. Tirar do “pedestal” a palavra escrita e o pensamento lógico significa “dar voz” ao conhecimento construído histórica e socialmente pelo povo através do trabalho e da vida (LERMAN, 1993). A tecnologia é uma ação social e como tal se expressa no cotidiano das pessoas, nas dimensões materiais e simbólicas (culturais), sendo o artesanato uma destas fontes de manifestação. 3.2 - O Artesanato O artesanato, por estar relacionado com a construção de conhecimentos tecnológicos, repassados através das práticas cotidianas, mediadas pelo trabalho e aplicadas socialmente e historicamente é uma das formas de expressão mais significativas da cultura material e imaterial. No Brasil, a conceituação de artesanato apresenta concepções distintas que tanto podem defini-lo como: expressão estética e artística, por vezes considerado como irmão pobre das artes; como manifestação cultural pura das classes subalternas, ligadas ao folclore, sendo usado no período do Estado Novo como um elo construtor do discurso da nacionalidade brasileira; a visão de órgãos oficiais que o entendem como uma atividade de pequenos empreendedores no exercício de atividades manuais, visando socializar os indivíduos excluídos, qualificando-os para atuar neste segmento (FURTADO, 1994). Um dos autores paranaenses que se dedicou a estudar o artesanato, Loureiro Fernandes, apresenta os trabalhos artesanais como “ofícios mecânicos desta indústria caseira, que numa perspectiva histórica, admite-se que é o início da atividade industrial em nosso país” (1973, p. 15). Sobre a definição de artesanato, segundo abordagens no 3º Simpósio dos professores de universitários de História, realizado em 1965, em São Paulo, o autor apresenta: 72 De maneira geral entende-se por artesanato: “atividade rústica elaborada por uma pessoa ou um grupo reduzido que se incumbe da tarefa em todas as fases, sem a divisão do trabalho. Cada produto que se faz é único, com difícil reprodução perfeita. O artesão exerce ofício por conta própria, só ou com ajuda da família ou de alguns poucos companheiros. Trata-se de forma característica de transformação de matéria prima de sociedades não evoluídas, de pequena concentração populacional, sem intercâmbio com outras. O subsistir do artesanato em sociedades mais complexas, de tecnologia avançada, numerosas e em muita comunicação com outras, com intenso grau de comercialização, é apenas um caso de contemporaneidade de formas não contemporâneas [...]. Na perspectiva histórica admite-se que o artesanato é o início da atividade industrial” (Inglésias, Francisco, citado por FERNANDES, 1973, p. 16). Divergindo com alguns aspectos desta definição, entendemos que há sempre uma reestruturação e transformação do popular, que se insere no moderno, hibridando suas práticas, o que ocorre com as festas e o artesanato. Entretanto, não devemos encarar este processo em um sentido evolutivo, como se estas manifestações fossem desaparecer e as práticas tradicionais, ao modernizar-se, tornarem-se completamente industrializadas. Há uma coexistência, que iremos perceber se fizermos as análises focadas nos processos e não só nos produtos, contextualizando-as na lógica das relações sociais (CANCLINI, 1997, p. 213). A constituição do projeto de modernidade carrega em si uma tendência a construir uma “oposição maniqueísta” entre: moderno e tradicional; culto e popular; hegemônico e subalterno, estando o artesanato situado como uma prática tradicional, das classes populares e subalternas. Estes confrontos são, segundo CANCLINI, uma separação artificial, que devemos refutar, já que servem para legitimar as posições dos excluídos do processo, naturalizando-as (1997, p. 206). Uma primeira questão do nosso trabalho é analisar o artesanato dentro de uma dimensão sócio-econômica, o que, para ORTEGA, condiciona o seu “status”. Assim, o autor apresenta distinções do artesanato popular e do não popular, determinadas por condicionantes que dividem também a sociedade em classes, de forma hierarquizada e manipulatória. Para ORTEGA, existem contextos que vão gerar elementos diferenciadores do artesanato popular e o não popular, nas dimensões da produção e circulação dos artefatos, sendo estes conformados por: a) o acesso à matéria prima; b) a disponibilidade de equipamentos e ferramentas; c)a infra-estrutura da oficina; d) a organização da produção; e)as técnicas artesanais; f) conhecimentos complementares. A maior ou menor presença destes elementos, assim como o seu controle e domínio, tem marcado incidências no processo de produção quanto a: 1) o volume de produção; 2) a qualidade da produção; 3) as 73 oportunidades de renovação e experimentação de materiais, técnicas e desenhos; e 4) o rendimento na relação de capital e trabalho. Elementos diferenciadores da circulação que estão constituídos por: a) as relações com os intermediários; b) os recursos humanos e financeiros disponíveis para investir na circulação; c) a capacidade de resposta (em quantidade e qualidade) ante as demandas; d) a promoção e/ou a publicidade. Igualmente, a presença ou ausência dos elementos enumerados, incidem de distinta maneira no processo de circulação: 1) o controle nas decisões dos preços e condições de preço e venda; 2) a estabilidade e/ou a ampliação dos circuitos de intercâmbio; e 3) o prestígio e o reconhecimento da produção artesanal entre os consumidores36 (ORTEGA, s/d, p. 128). Estas considerações de Ortega nos parecem fundamentais, pois a produção moveleira artesanal está assentada nestas categorizações que determinam o “status” ou “categorias” das empresas (ORTEGA, s/d). As menores, chamadas pelos artesãos entrevistados, de “fundo de quintal”, não possuem acesso a muitos destes elementos citados. Na esfera da produção não têm acesso a: equipamentos e infra-estrutura. Na esfera da circulação são condicionados por regras impostas por intermediários, não tendo acesso direto aos consumidores, dependendo de atravessadores; não têm recurso para investir em divulgação dos produtos; não conseguem atender às demandas do mercado. Na esfera do consumo, são anônimos para quem compra os produtos, não tendo, portanto, o prestígio e reconhecimento junto aos consumidores. Estes pequenos produtores “populares” são considerados pelos artesãos das indústrias maiores como responsáveis pelo descrédito do setor, pois competem por preços, com uma qualidade muitas vezes inferior. O que acontece é que hoje tem muito desemprego, aqui em Campo Magro, foi feito um cálculo, existe três mil artesãos trabalhando com vime. E...cada um tentando fazer mais barato...que quer dizer que a qualidade cada vez vai diminuindo. Então por isso que o vime desvalorizou. A pessoa vai tentando fazer cada vez mais barato, mais barato. Então tem vime em toda esquina (Eromir Stival, entrevista, junho de 2004). Agora, hoje, o grande câncer, dá pra chamar assim (...), é um copiando do outro. Então hoje só existem três fábricas aqui em Santa Felicidade que investem em cima de um móvel, gerenciado, com conforto. O restante, só copiam, copiam e copiam... Então não querem investir, a maioria é tudo informal, nem firma têm. Contratam o artesão para trabalhar, mas firma que é bom, não têm. Aí eles não se dedicam, não tentam melhorar a empresa deles, só copiam o móvel. Viu que vendeu, vão lá e copiam, e normalmente fazem a cópia, na maioria, mal feita. Não tem conforto nem nada. Este é o grande problema de Santa Felicidade e Campo Magro (Aparecido Noronha, entrevista, setembro de 2004). 36 Tradução da autora. 74 Entretanto, o destino destes artesãos categorizados como “populares”, não é permanecer neste status indefinidamente, mas tendo acesso a alguns dos itens apontados como condicionantes desta posição, podem romper estas barreiras e passar a outra categoria (não evolutivamente). As pequenas fábricas de “fundo de quintal”, citadas na entrevista como sendo um “câncer”, estão nesta condição por não possuírem recursos para aplicar estes elementos diferenciadores que poderiam fazê-las ascender a outro “status”. Na fábrica de móveis Schulz, de 1930 a 1970, os proprietários investiram na produção buscando a qualidade e diversidade dos artefatos e na circulação das mercadorias. Os elementos diferenciadoras da fábrica de Móveis Schulz, que visavam inseri-la no mundo capitalista, foram: O controle da produção, sempre introduzindo novos materiais, máquinas e gestão dos processos, para alcançar a qualidade e a quantidade da demanda do mercado. Na circulação, investindo na propaganda, vendendo direto aos consumidores, por ter exposições permanentes e produzir catálogos para a venda através de uma rede de representantes. No consumo, definindo uma clientela elitizada. A valorização do produto artesanal, na esfera do consumo, para Ortega também pode ser forjada, ou “inventada” na esfera da circulação, através da utilização de discursos elaborados por teóricos do setor ou pela publicidade, podendo inserir um produto no mercado com um “status” de: arte popular, artesanato conceitual, artesanato utilitário, industrianato, ou tantas outras distinções adotadas para fragmentar e falsear o significado da produção dos artefatos (ORTEGA, s/d.). O autor emprega uma distinção que também consideramos importante, que é o Artesanato Tradicional, entendendo o mesmo como “uma resultante histórica dos processos de articulação (hibridação) dos distintos componentes culturais incorporados a essas manifestações, através dos quais um grupo, uma comunidade ou setor objetiva e expressa seu sentido de pertencimento a uma história cultural compartilhada” (ORTEGA, s/d, p.129) Por este mesmo viés, VIVES define o artesão tradicional como o que tem valores, técnicas e signos comuns ao sistema cultural ao qual pertence. Suas técnicas são a expressão da existência coletiva do grupo ao qual pertence, sendo um “intérprete das técnicas tradicionalmente conservadas” (VIVES, 1983, p.133). Estas técnicas não são conservadas no sentido de fossilizá-las ou inseri-las em um museu para a contemplação, mas sim transitar entre o moderno e o tradicional, transformando as práticas, sem suprimi-las. É o caso da cestaria de Santa Felicidade, que surgiu de uma necessidade do grupo e até hoje faz parte de seu repertório cultural e econômico. O artesão tradicional domina os meios de produção e é capaz de transformá-los pela criação de novos produtos utilizando as técnicas herdadas. 75 Na definição do que é artesanato, um dos problemas apontados por Novelo, citado por ORTEGA é que: A diversidade de critérios para definir o artesanato se deve a se falar delas como resultado e não como processo. A necessidade de explicar o processo de produção do artesanato adquire maior importância posto que um dos critérios mais utilizados para a definição do conceito destaca o papel do trabalho manual na elaboração do produto(...) Deste modo apareceu como uma questão fundamental o estudo das formas de produção do artesanato, isto é, a maneira como os indivíduos, como produtores se apresentam ante seu objeto e seus instrumentos de trabalho; as relações que se estabelecem entre aqueles no processo de produção e o produto resultante. Assim, se conheceria não somente as diferentes formas de organização do trabalho na produção dos artesanatos, como também o tipo de produto que emana destas formas, de acordo com o trabalho incorporado 37 (ORTEGA, s/d., p. 142). Compartilhamos do entendimento que como ponto de partida para os estudos da cultura material, representada nos artefatos produzidos pelo homem, é preciso entender os artefatos como produto do trabalho, não só no sentido de objetos utilitários, mas como sendo mediadores de ações humanas, que “condicionam a interação entre sujeito e sua realidade” (SANTOS, 2000. p. 52). Enquanto forma de expressão e de trabalho, o artesanato além de cumprir uma função simbólica e econômica, desempenha por meio dos artefatos e suas relações, um papel profundo de reelaboração de sentidos, podendo ser condicionado pelo contexto social, ou até mesmo interferir, modificando-o. Como aponta CANCLINI, na relação entre o artesanato e o mundo capitalista, existem “funções psicossociais [de]: construir o consenso e a identidade, neutralizar ou elaborar simbolicamente as contradições” (CANCLINI, 1983, p.51). O recorte feito nas análises sobre o folclore e o artesanato, que ressaltam os produtos em detrimento dos “processos e agentes sociais que os geram, pelos usos que os modificam, leva a valorizar nos objetos mais a sua repetição que sua transformação” (CANCLINI, 1997, p. 211). A maioria dos trabalhos, pesquisas, políticas culturais, turísticas e até mesmo os museus, objetivam a “conservação” e o “resgate” das culturas, entendendo estas práticas como a “essência da identidade”, defendendo que as tradições não devem ser mudadas. É preciso então pensar em outras formas de análise, que considerem as interações 37 Tradução da autora. 76 entre a tradição popular, as indústrias culturais e a cultura de elite, considerando também o “desenvolvimento atual do mercado simbólico e das ciências sociais” (CANCLINI, 1997, p. 214). Nas pesquisas e trabalhos que envolvem o artesanato, muito além das características físicas do produto artesanal, é importante considerarmos as dinâmicas envolvidas nos três aspectos fundamentais de sua existência: a produção, circulação e consumo (CANCLINI, 1983, p.51). Nestas três etapas é que se pode perceber o que o artesanato significa para a comunidade, quais são os conhecimentos técnicos envolvidos, quem o produz, como os significados atribuídos na produção entram na esfera da circulação e como são recebidos pelo consumidor. Este encontro das esferas da produção e do consumo, também são adotadas por outros autores em diferentes posições teóricas, como por exemplo, LUBAR, que nas suas abordagens de gênero analisa o consumo como algo ideologicamente direcionado. Os anúncios publicitários e os sistemas de venda elegem o universo doméstico como feminino, direcionando as vendas de produtos do lar para as mulheres. Para o universo masculino os “aparatos” tecnológicos são alvo das propagandas, a exemplo dos automóveis. As esferas da produção e consumo também são dissociadas, sendo a produção uma esfera masculina e o consumo uma esfera feminina. As diferentes percepções e significados simbólicos apresentados em estudos de caso, como os de LUBAR, demonstram que há uma aproximação entre as esferas da produção e consumo, sendo as tecnologias definidas na negociação de valores e significados construídos entre produtores e consumidores (LUBAR, in: MOHUN and HOROWITZ, 1998, p. 19). Como apontado por QUELUZ, “a relação entre usuário e tecnologia pode ser vista a partir da questão do consumo. A importância desta abordagem aparece no conceito de RUTH COWAN, de “junção do consumo”, ou seja, a fronteira entre consumo e produção onde as tecnologias são difundidas”. Os autores também exemplificam estas aproximações em outras áreas, como: nas artes, religião, literatura, nas indústrias, no artesanato (QUELUZ, 2000b, p. 16). Enfim, a tecnologia dialoga com a produção e consumo, adquirindo significados diversos, dependendo dos contextos em que se desenvolve. No artesanato, as considerações de CANCLINI sobre as esferas da produção, da circulação e do consumo, assim como as tensões entre a tradição e a modernidade que perpassam estas esferas, atribuindo significados, são apontadas também em estudos de ORTEGA. 77 A representação no esquema a seguir demonstra resumidamente o seu ponto de vista sobre as tensões existentes no ofício artesanal popular, diante de forças de resistência e transformação, de acordo com os contextos locais e globais (ORTEGA, s/d). QUADRO 1: TENSÕES PRESENTES NO OFÍCIO ARTESANAL. CONTEXTO LOCAL Tradição CONTEXTO GLOBAL Relação dominação/ subordinação Modernidade Ofício artesanal Padrões técnicos e estéticos seculares Mercados restringidos, semicontrolados pelos produtores Desaparecimento dos consumidores naturais FORÇAS DE RESISTÊNCIA Produção Circulação Consumo Mudanças/ Inovações técnicas e estéticas Ampliação dos mercados controlados por intermediários Aparição de novos e heterogêneos consumidores CAMPO DE TENSÕES FORÇAS DE TRANSFORMAÇÃO FONTE: ORTEGA, s/d., p.187. Tradução da autora. Ao analisarmos a produção moveleira artesanal, à luz destas relações, percebemos as múltiplas dimensões presentes no ofício artesanal e como estas se articulam para preservar e transformar os sistemas simbólicos das comunidades envolvidas. Estas tensões presentes no ofício artesanal popular, apontadas por ORTEGA, representam, conforme já mencionamos, construções legitimadoras de “status” no campo do 78 artesanato e que só serão emancipadoras e inclusivas, se as analisarmos nas fronteiras, ou seja, considerando a fluidez, as hibridações e as interações que transformam e mantêm o artesanato. Na esfera da produção, ORTEGA aponta a tensão entre os padrões técnicos e estéticos seculares, em oposição às inovações e mudanças. Acreditamos que discutir o artesanato como um processo de produção, dissociando as dimensões econômicas e simbólicas presentes no fazer artesanal, que muitas vezes é apresentado apenas como materialização da expressão cultural de uma comunidade ou como artefato utilitário, excluindo da sua produção a dimensão do saber tecnológico que é construído historicamente e socialmente pela intermediação do trabalho dos artesãos, é o que acaba legitimando as divisões e fragmentações que enfraquecem o setor. Não há um afastamento entre o conhecimento do artesão e as inovações. Como cita CANCLINI, as culturas populares se desenvolveram e transformaram, incorporando as inovações e acompanhando o desenvolvimento moderno, sem, contudo, suprimir as práticas culturais populares tradicionais (1997, p. 215). Estas divisões ou categorizações normalmente apresentadas são representações ideológicas ou emocionais que nos remetem às distinções que também contestamos entre: classe erudita e popular; cultura e cultura popular; arte e arte popular, que são meramente formas de legitimar pelas diferenças, as desigualdades. Como argumenta Marcel Duchamp com relação à valoração da arte: “Quero dizer simplesmente que a arte pode ser boa, ruim ou indiferente, mas que, qualquer que seja o epíteto empregado, devemos chamá-la arte: uma arte ruim é de todas as formas arte, como uma emoção ruim segue sendo uma emoção (ORTEGA, s/d. p.144). Os discursos sobre a importância do artesanato na sociedade e as categorias valorativas, nos remetem ao que foi apontado por CANCLINI (1983), quando afirma que o artesanato e as festas populares subsistem para permitir a expansão do capitalismo, desempenhando a função de reproduzir a divisão social e a divisão do trabalho. Com um número imenso de excluídos dos postos de trabalho convencionais, com carteira assinada e vínculos empregatícios, o setor artesanal tem sido apregoado pelos órgãos oficiais como uma saída para o desemprego, como fonte geradora de renda, inserindo socialmente os indivíduos. Este cenário analisado na década de 80 no México, também pode ser aplicado, com os devidos cuidados por tratar-se de outro contexto, ao início da produção artesanal em Curitiba. Segundo os artesãos, muitas famílias que se dedicavam à produção agrícola e à cestaria, passaram, a partir da década de 50, a fabricar cadeiras, berços e outros móveis para 79 diversificar a produção e inserir todos os membros das famílias na produção e circulação dos artefatos. Esta inserção dos tradicionais cesteiros em uma nova realidade mostra que o artesanato não se fossiliza, sem incorporar novas técnicas de produção. Neste processo de inserção de novas práticas, é importante que os artesãos detenham o poder de decisão quanto às três esferas do processo: na produção, agregando valores culturais da sua comunidade; na circulação, atribuindo o valor de troca, não sendo apenas reprodutores e espectadores passivos do ciclo capitalista; e no consumo, conhecendo o destino de seus produtos e a destinação ou uso pelos consumidores. A inserção na modernidade pode acontecer, renovando as práticas, sem, contudo abandonar as tradições e os rituais ancestrais. Interagir com outras realidades e modernizar-se podem levar à “prosperidade econômica e reafirmação simbólica. Nem a modernização exige abolir as tradições, nem o destino fatal dos grupos tradicionais é ficar de fora da modernidade”. Uma reestruturação dos “vínculos entre o tradicional e o moderno, o popular e o culto, o local e o estrangeiro” são formas de integrar-se na modernidade, através de uma mobilidade facilmente assimilada pelos artesãos, sem, contudo perder suas raízes (CANCLINI, 1997, p. 239 e 240). Este fato é exemplificado pelo autor, quando teve contato com uma comunidade oaxaquenha (no México), que se dedicava à tecelagem. Os tecelãos conversavam em zapoteco, sua língua de origem enquanto assistiam televisão e, quando foram questionados por CANCLINI sobre os motivos de suas tapeçarias com imagens de obras de Miró, Picasso e Klee, os mesmos responderam que foi uma proposta de turistas que trabalhavam no museu de Arte Moderna de Nova Iorque, que passaram por lá em 1968. Mais tarde este artesão realizou exposições destes seus trabalhos na Califórnia. Sobre este episódio, Canclini coloca que: Em meia hora, vi aquele homem mover-se com fluência do zapoteco ao espanhol e ao inglês, da arte ao artesanato, de sua etnia à informação e aos entretenimentos da cultura massiva, passando pela crítica de arte de uma metrópole. Compreendi que minha preocupação com a perda de suas tradições não era compartilhada por esse homem que se movia sem muitos conflitos entre três sistemas culturais (CANCLINI, 1997, p. 242). Fato semelhante foi observado nas entrevistas feitas com os artesãos de Santa Felicidade, como no caso de Armando Túlio, um dos proprietários da fábrica de Móveis 80 Artesanais Túlio, que além de ter as memórias e preservar as tradições artesanais dos imigrantes italianos que chegaram no final do século XIX (apesar de ter nascido no Brasil), como o plantio, coleta, preparo e trançado do vime, articula artigos em um jornal da comunidade local ressaltando estes valores, também se expressa pelas artes, sendo artista plástico, músico, poeta e fez cursos superiores na área de musicoterapia e de administração. É apontado pelos funcionários como um exímio artesão de fibras, preservando a tradição do trabalho artesanal, mas também como inovador, com capacidade para criar produtos novos e inseri-los no mercado local e internacional. Seu irmão, Silvano, declarou que ele “é um gênio”, capaz de circular por várias esferas culturais (entrevista, abril de 2005). Sem deixar de se inserir na modernidade, o processo social, os laços da família e comunidade, a identidade simbólica e a tradição ancestral são fontes para “resgatar”, valorizar, mas acima de tudo reconhecer na própria comunidade os “símbolos de identidade que propiciam a sua coesão, e desde que as classes populares urbanas consigam converter estes ‘resíduos’ do passado em manifestações ‘emergentes’, contestatórias”, poderão levar a libertação ao controle econômico e cultural da sua produção (CANCLINI, 1983, p.110). A partir da idéia de que as culturas existem num processo de hibridação e reelaboração contínuo, suas formas de expressão simbólica também se modificam, e o artesanato vai se renovando. Da mistura entre processos industriais e conceitos artísticos, a cada dia encontra-se diferentes produtos artesanais, que não se restringem a classificações pré-existentes. Por isso, em vez de se usar classificações estanques, é preciso buscar os significados do artesanato no complexo caminho que ele percorre, na produção, circulação e consumo, bem como nas técnicas ou recursos utilizados para sua criação. 3.3 - O Artesanato moveleiro com fibras em Curitiba 3.3.1 - O processo de imigração na cidade de Curitiba e a formação das comunidades locais Conforme apresentamos no capítulo 2, a identidade da comunidade de Curitiba foi uma construção que exaltou as imigrações, principalmente dos europeus, como origem da identidade do povo paranaense. Estes grupos são provenientes de imigrações que se situaram principalmente na segunda metade do século XIX até a metade do século XX. Segundo relata NADALIN, no período da revolução industrial européia, os camponeses foram deslocados dos campos para as cidades com promessas de melhoria de 81 vida no trabalho assalariado nas fábricas. Os artesãos urbanos, que trabalhavam no sistema de manufaturas artesanais, ou pré-industriais, empobreceram por não poderem concorrer com as indústrias, que massificavam o processo produtivo e fragmentavam o trabalho para se apropriar dos conhecimentos tecnológicos do trabalho, desagregando as corporações de ofício. Encontrando condições de trabalho desfavoráveis nas grandes cidades, muito aquém do esperado, o proletariado foi pauperizado. Estas condições desfavoráveis causaram descontentamento e a busca por uma vida melhor, que foi vislumbrada além-mar, por uma promessa de uma “terra nova”, sonho acalentado na oferta de uma vida melhor aos imigrantes que aqui chegassem (NADALIN, 2001, p. 62). No Brasil, a necessidade de povoar o território nacional, romper com o sistema latifundiário, introduzir novas técnicas de produção agrícola e a política de “branqueamento” da população, conforme já relatamos, abriram o caminho para a entrada destes imigrantes no país. Como aponta IANNI, estes imigrantes europeus foram destinados especialmente aos Estados do sul e São Paulo e em menor número para o Rio de Janeiro e Espírito Santo. Naturalmente a entrada de trabalhadores europeus e seus familiares não se deveu apenas à atração exercida pelas oportunidades abertas na cafeicultura, no artesanato e na indústria. Em concomitância, nas nações da Europa, ocorriam transformações econômicas, sociais e políticas de profundidade, propiciando a liberação de habitantes das zonas agrícolas. A forma pela qual se realizava a industrialização na Itália, Alemanha, na Rússia, bem como as mudanças sociais e políticas que ocorriam também na Polônia, na Espanha e em Portugal, etc. não permitiram a absorção de toda mão-de-obra disponível ou sub empregada. [...] Por estas razões a imigração européia pode iniciar-se e crescer (IANNI, 1966, p. 100). Os imigrantes encontram no Paraná (especialmente em Curitiba e nos planaltos) condições favoráveis à adaptação em um país diferente, como a terra, clima e favorecimento do governo local para a instalação. A diversidade étnica e cultural dos povos da Europa que chegaram ao Paraná fez que para resistirem a uma aculturação ou homogeneização, buscassem formas de preservar suas tradições de origem nas comunidades aonde se fixaram. O termo “comunidade”, como explica HALL, “reflete precisamente o forte senso de identidade grupal que existe entre estes grupos” que vieram ao Brasil (2003, p.65). O mundo para esses homens e mulheres eram os limites da comunidade a que pertenciam e dentro da qual as desavenças e os atritos eram resolvidos, sempre 82 visando a coesão do grupo; seu ideal econômico era a auto-suficiência, ‘ a organização social e familiar estritamente local e a mentalidade tradicional e mágica’ (ALVIN, in: SEVCENKO, 1998, p.229 e 230). Assim, neste momento, quando falamos em comunidades de imigrantes, retratamos este forte sentimento de pertencimento a um grupo específico, de uma identidade da origem que os agregue. Os italianos, alemães, poloneses, ucranianos, asiáticos e tantos outros grupos tentam preservar as suas tradições de origem para resistir a um processo de homogeneização, mas, ao mesmo tempo as mesclas culturais foram ocorrendo, formando nas trocas, conflitos e hibridações as identidades dos paranaenses (IANNI, 1966). Podemos analisar as várias identidades do paranaense imigrante pelo viés do multiculturalismo. Para os brasileiros eles eram “estrangeiros”, entre eles havia distinções, pelas profissões: “artesãos”, “trabalhadores da lavoura”, “operários”; pelas etnias: “alemães”, “poloneses”, “russos”, “italianos”; pelas classes sociais e de prestígio. Enfim, as múltiplas identidades, muitas vezes em uma mesma pessoa, produziam, nos conflitos e hibridações, novas identidades individuais e coletivas. Os conflitos existentes anteriormente na Europa, como entre os poloneses e alemães, continuaram a serem reproduzidos no Brasil. Constantes hostilizações e demonstrações de preconceito tornavam a convivência difícil. Estas relações de preconceito levavam à exploração dos poloneses pelos alemães, que tinham a maioria dos comércios locais, vendendo os produtos mais caros para os poloneses. Também com relação aos negros, caboclos e indígenas ocorria o mesmo. Os estereótipos construídos sobre o imigrante polonês tido como: “inclinado ao alcoolismo; exacerbadamente religioso; sempre loiros; dados preferencialmente aos trabalhos braçais, rudes e, por conseguinte, intelectualmente inferiores; dado ao acasalamento com negros” foram fundados em um contexto histórico no qual já havia um sistema dominante instalado. Surge daí uma doutrina de inferioridade moral e intelectual, baseada em fundamentações completamente abstratas e generalistas. O termo “polaco” na sua origem foi tomado como pejorativo ao imigrante que não era mais polonês e nem brasileiro. Era considerado um “negro do avesso” (IANNI, 1966, p. 54 e 55). As relações de poder em jogo fizeram com que fosse criada esta condição de inferioridade para garantir as ocupações alcançadas pelos alemães e uma imobilidade social, já que o ritmo de crescimento de Curitiba não comportava a entrada de novos fornecedores de 83 serviços especializados. Assim, os poloneses foram deslocados para as atividades agrárias e para o trabalho como empregados nas empresas já existentes (IANNI, 1966). Nas relações de trabalho acontece o mesmo com os negros e caboclos, sendo que o fato de serem considerados inferiores e ignorantes legitimava aos imigrantes se apropriarem dos conhecimentos técnicos destes, tanto na construção das suas moradias (por desconhecerem as madeiras locais), bem como nas técnicas de plantio (onde os nativos os introduziram nas técnicas das queimadas para o preparo das terras) (ALVIN, citado por SEVCENKO, 1998, p.268 a 274). A partir de análises apenas de evidências (não há fatos comprovados), IANNI percebeu que a nova configuração da cidade de Curitiba causa uma saturação do mercado de trabalho, fazendo com que os postos fossem ocupados preferencialmente por membros da mesma etnia dos empregadores, expulsando os mulatos e negros. O autor cita o ramo das “artes e ofícios”, no qual a participação dos negros e mulatos38 , em 1900, era insignificante, perdendo terreno para os estrangeiros, principalmente os alemães e italianos (IANNI, 1966, p.182 e 183). Os processos de assimilação, multiculturalismo ou as hibridações resultantes dos contatos entre as etnias são reproduzidos nas redes de produção moveleira artesanal com fibras, aonde podemos perceber que as principais indústrias do setor, no início eram de propriedade dos grupos pertencentes às primeiras etnias a chegar em Curitiba. No estudo da produção moveleira com fibras naturais, como o vime, a taboa, junco, cipó, palha de milho, entre outras, percebemos as comunidades que mais participaram na construção do processo produtivo foram os italianos e os alemães. Estes hibridizaram as tradições e técnicas trazidas da Europa com as técnicas de cestaria já existentes em Curitiba, representadas pelos trançados dos índios, caboclos e portugueses. As demais etnias, como os poloneses e ucranianos também conheciam as técnicas do trançado, sendo fornecedores de produtos, como as cestas39, feitas na época da entressafra, ou eram empregados nas fábricas de móveis. Quanto aos indígenas, aos afrodescendentes ou aos caboclos que também possuíam o conhecimento da cestaria, há uma invisibilidade nos relatos do início do século, quando muito sendo apenas citados como possíveis colaboradores. 38 Para aprofundamentos sobre as questões raciais e a exclusão e inclusão do negro na economia paranaense, assim como dos poloneses, indicamos a leitura de Octavio Ianni, Raças e Classes Sociais no Brasil (1966). 39 A “cesta polaca”, feita de vime branco, a “cadeira polaca”, feita com taboa trançada, são referências ainda hoje presentes no repertório dos artesãos locais. Entretanto, vamos focar nossas pesquisas nas etnias que mais fortemente migraram para a produção moveleira com fibras, que foram os italianos e os alemães. 84 Entretanto, por questões de sistematização desta pesquisa, conforme já apontamos, relatamos neste momento a formação das comunidades de artesãos italianos e alemães, ficando os estudos das demais para aprofundamentos futuros. 3.3.1.1 - Os Italianos Como relata BALHANA, os primeiros imigrantes italianos chegaram em Paranaguá em janeiro de 1876, encontrando várias dificuldades até a consolidação das colônias no Estado. As famílias foram instaladas por funcionários do governo em Porto de Cima e São João da Graciosa, no litoral do Paraná e passados poucos meses, os primeiros problemas de adaptação começaram a surgir. O calor, a água lamacenta, a terra que não se adequava às atividades agrícolas desejadas aterrorizavam os colonos. A “luz” para uma provável mudança veio com os tropeiros que cruzavam o litoral em direção a São Paulo. Através deles, os colonos descobriram a existência da pequena Cidade de Curitiba, onde o clima e as terras eram mais parecidos com o Europeu. Valendo-se do direito de mudar de endereço pelo menos duas vezes, diversas famílias se organizaram e solicitaram ao governo a mudança. Com suas economias adquiriram um grande pedaço de terra salubre para o cultivo à margem da cidade, região conhecida por Taquaral (por ser rodeada de taquaras - bambus), pertencente aos irmãos Arlindo, Antonio e Felicidade Borges (BALHANA, 1958). A primeira compra foi feita em conjunto, ao preço de 80 mil réis o alqueire, na região entre a Casa Comparim e o Rio Vu (afluente do rio Cascatinha), na entrada da colônia, a cerca de oito quilômetros da cidade. A terra foi dividida em lotes e distribuída por sorteio entre as famílias de Giovanni Alberti, Francesco e Luigi Boscardim junto a Luca Latini, a viúva Madalena Benato, Francesco Comparim, Calisto Cumin, Giuseppe Dalla Stela, Giovani Luca e sobrinho, Bortolo Muraro junto a Santo Cuman, Giácomo Breda e Giovanni Casagrande, Giovanni Menegusso, Giovanni Poletto e Basílio Bacalfi, Antônio Paolin, Giuseppe Pavanello, Sebastiano Taliaro com Giuseppe Vendramin, e Bortolo Slompo com Pietro Volpe, conforme relato do Padre Giusepe Martini. Logo que chegaram, os colonos já semearam a terra com o milho. Enquanto esperavam a primeira colheita se arranjavam como podiam, alguns com a ajuda de brasileiros que ofereciam hospedagem ou comida, outros improvisando barracões (BALHANA, 2002). Ainda em novembro de 1876 chegou outra leva de imigrantes italianos que se estabeleceram na outra parte da colônia, em terras compradas de Paulo França, João de Freitas 85 e de um alemão cujo sobrenome era Wolf. Eram as famílias de Antônio e Valentino Bosa, Antonio Dallarosso, Domenico Valente, Celestino Zanotto, Andréa Bertapelli, Domenico Zonato, Dionísio Maestrelli, Bortolo Villanova, Agostinho Túlio, Francesco Travenzoli, Giovanni Decarli e Clemente Tabarim. Numa região que corresponderia hoje aos bairros Cascatinha, Santa Felicidade, Butiatuvinha, São João, parte de São Braz e Lamenha Pequena. Estava se formando a Colônia de Santa Felicidade (BALHANA, 2002). Estes imigrantes originários principalmente da região do Vêneto, Itália, dedicaram-se à cultura vinícola e de cereais como o milho e outros, utilizados para consumo próprio e para abastecer a região que se encontrava em um período de “carestia”. A produção que mais se destacou na comunidade foi a do vinho, tornando-se uma prática regional importante, tendo algumas famílias já passado do processo totalmente artesanal, da origem, para o industrial, inclusive utilizando uvas de outras regiões como o Rio Grande do Sul, que possuem características melhores, dando mais qualidade ao vinho produzido (BALHANA, 2002). A plantação das vinhas necessitava do vime para fazer as amarrações das videiras, tendo todo produtor alguns pés da planta, que se adaptava bem à região de solo argiloso e úmido. Estes vimeiros fizeram ressurgir a tradição, que já trouxeram dos ancestrais, de produção de cestarias, a princípio para atender as necessidades domésticas, como relata Armando Túlio, neto de imigrantes. Então ele (avô - Armando Túlio) trouxe o vime com a intenção de primeiro amarrar as parreiras. Os brotos são tirados e se amarrava a parreira. Também é um processo ecologicamente perfeito, porque depois ele decompõe e cai, não estrangulando a haste. Ao passo que se fazia isso no Rio Grande do Sul, há pouco tempo e com plástico e ele permanecia ali estrangulando a haste, cortando a circulação da seiva, então está se voltando a plantar o vime com essa finalidade. Então ele trouxe com a finalidade de primeiro amarrar a parreira, segundo fabricar cestos para a época de verão, época das colheitas, para a colheita das coisas, porém aqui tinha muitas carrocinhas que iam a cidade para vender o produto, e nessa ida a cidade com as cestas, os curitibanos viam as cestas, então eles pediam de onde vinha, quem fabricava e assim começou. (Entrevista com Armando Túlio, março de 2005). As características artesanais de produção se mantiveram, mas novas técnicas de produção foram introduzidas, novos materiais agregados, originando os sistema de produção moveleira local. “O progresso que atingiu a cestaria de vime, em Santa Felicidade, deve ser inserido nas transformações gerais sofridas pelas colônias, na medida do entrosamento da sua economia na estrutura econômica metropolitana de Curitiba” (BALHANA, 2002). 86 FIGURA 6: Confecção das cestas italianas na comunidade de Santa Felicidade. FONTE: Balhana, 1958, p. 98. As primeiras famílias italianas a trabalharem com o vime, nas cestarias, foram: em Santa Felicidade os Bartapelle, Túlio e Stival; na Água Verde e arredores os Marchioro e Marcolla, que foram os pioneiros no mobiliário. Segundo relatos de Armando Túlio, os Túlio e Stival foram funcionários dos Marchioro por um tempo, aprendendo com estes as técnicas de produção de mobiliário com fibras, que foram incorporadas pelos artesãos de Santa Felicidade na produção de cadeiras, berços e baús (Armando Túlio, entrevista, março de 2005). O fato de possuir inúmeras pequenas fábricas, chamadas “de fundo de quintal” (que ainda são geralmente de estrutura familiar) e fábricas maiores, com organização gerencial, vários funcionários contratados, práticas arrojadas de inserção no mercado e comercialização, fizeram Curitiba e a Região Metropolitana transformarem-se em referência na produção moveleira com fibras. A fábrica de Móveis Túlio, contou com mais de 100 funcionários registrados, em uma unidade fabril completa, envolvendo todas as etapas do processo produtivo, desde a confecção das estruturas dos móveis, trançados e acabamentos, além de ter uma área própria para o plantio e preparo do vime, escritório e loja para a comercialização de seus produtos. A fábrica abastecia tanto o mercado interno como atendia a exportação de móveis artesanais para os Estados Unidos e Europa. No momento (2005), enfrenta alguns problemas e se mantém funcionando com seis artesãos contratados e alguns terceirizados. 87 Os imigrantes, na maioria colonos, de origens simples, ligados à lavoura, a partir do envolvimento com as técnicas artesanais, constituíram legados econômicos e de tradição que são repassados às demais gerações. O processo de formação da identidade da comunidade de italianos em Curitiba consolidou-se em um contexto de hibridação com a terra de acolhida, mas ao mesmo tempo com o forte sentimento de pertencimento e manutenção do referencial simbólico de uma nação distante, a Itália, que une os imigrantes locais pelas tradições herdadas, mantidas e repassadas de geração a geração. Como afirma BALHANA, estes processos de assimilação com a realidade brasileira não fizeram os colonos italianos perderem seus padrões culturais, mas, é formado um “patrimônio cultural comum a ambos os grupos” (1958, p. 233 e 234). 3.3.1.2 - Os Alemães. Outra etnia que vamos apresentar brevemente, por fazer parte de nossos estudos, é a alemã. As colônias alemãs que foram formadas no Paraná, a partir de 1830, em uma primeira etapa e posteriormente em 1850, pela reimigração de alemães, principalmente da Colônia Dona Francisca, de Joinvile, tiveram uma característica mais urbana que a dos italianos, poloneses e ucranianos que vieram para o Paraná. Isto não significa que os alemães não tenham se fixado no interior também, pois muitas colônias formadas em Rio Negro, Ponta Grossa, Palmeira, Lapa e mais recentemente, em 1951, na de região Entre Rios, em Guarapuava, tiveram características tipicamente rurais, sendo que seus membros se dedicaram à produção agrícola, pecuária e de produtos derivados. Também não significa que estes imigrantes não tenham passado pelas mesmas dificuldades dos demais com relação à terra e à cultura, entretanto, a forma como ocorreu a imigração, com o apoio de sociedades civis estruturadas, garantiu alguma amenização do processo de organização social e econômica dos imigrantes. As sociedades alemãs no Brasil visavam não só promover a corrente imigratória, mas prestar auxílio e proteção aos recém chegados (IANNI, 1966, p. 100) Altiva Balhana, baseando-se em estudos de Romário Martins, coloca o elemento germânico como precursor no comércio e indústria curitibana, ressaltando o espírito empreendedor, associativista (precursores dos primeiros sindicatos e cooperativas) e 88 modernizador, pois foram responsáveis pela construção dos primeiros edifícios comerciais, indústrias e teatros da cidade (BALHANA, 2002, p. 403). No início do séc XX, todas as três fábricas de bebidas gasosas e de brinquedos, as duas casas de artefatos de couro, as duas fábricas de cola, as cinco fundições, as duas fábricas de meias, as duas casas de instrumentos de música, a única casa de carimbos de borracha, as únicas fábricas de tecidos, de fósforos, de pianos e a única tinturaria pertenciam à colônia germânica. Somados a estes estabelecimentos, a maioria dos açougues, cervejarias, charutarias, colchoarias, olarias, ferrarias, casa de louças e ferragens, marcenarias, curtumes, moinhos, ourivesarias, estúdios fotográficos, padarias, serrarias, serralherias, também estavam nas mãos da comunidade germânica, sem contar as atividades nas quais os alemães não eram preponderantes (BALHANA, 2002, p. 403). A este respeito, FOUQUET cita em seu livro como pioneiros na construção da industrialização do Paraná, as famílias alemãs: Müller, que fundou a indústria de artigos de ferro Marumby; a Essenfelder, com os pianos; Schrappe, que iniciou a Impressora Paranaense; Johnscher com uma rede de hotéis; Stellfeld no ramo farmacêutico; os comerciantes e industriais como Hauer, Hatscbach entre outros nomes (FOUQUET, 1974, p.151), além de Martinho Schulz, do ramo moveleiro artesanal, que iremos abordar na pesquisa. Ressalvamos o que já foi apresentado por IANNI (1966), e apontado anteriormente, que este pioneirismo dos alemães no setor industrial e de serviços é devido, em partes, por terem sido os primeiros a se instalar no Paraná. Em suas análises, FOUQUET demonstra que estes imigrantes fundaram no Paraná sociedades, como, em 1884 a “Sociedade Beneficente dos Artífices”, entre outras ligadas a vários fins sociais. No ano de 1902, dos aproximadamente 865 artífices, profissionais autônomos, industriais e comerciantes de Curitiba, 342 eram alemães (40 %). Esta associação dos alemães, em um sistema de ajuda, iniciou-se no período de imigração, que era financiada pelo governo e em parte pelas associações, prolongando-se pelos anos seguintes como alternativa de garantir ajuda e lazer para os imigrantes e descendentes (FOUQUET, 1974, p. 38). Novos imigrantes vindos do velho mundo encontravam, portanto inúmeras possibilidades de se fazerem úteis e remediar uma situação. Ainda que muitos não tivessem o preparo adequado, em padrões europeus de operários e mestres, o que sabiam já era suficiente para que pudessem atender à sempre crescente demanda, sem restrições de ordem “sindical”, não precisando apresentar o emblema de classe e com condições para transmitir a seus descendentes os segredos do ofício. Cultuavam, outrossim, a consciência de seu valor e de sua personalidade social, como prova a Associação Beneficente dos Artesãos em Curitiba (FOUQUET 1974, p. 145). 89 Vale recordar que o começo da profissionalização do artesanato está fortemente ligado às imigrações, tendo o colono além de se dedicar à lavoura, exercido uma prática artesanal, como ferreiro, torneiro, carpinteiro, marceneiro, entre outras. Isto acabou incorporando-os ao comércio e à indústria e tornado-os futuros empresários. Segundo CARNEIRO, pelo recenseamento de 1872, havia mais de mil alemães em Curitiba, representando quase um quinto da população. Em dados mais exatos, seriam 1384 estrangeiros na cidade, entre os quais 1154 alemães, 176 de nacionalidades diversas e 54 portugueses, sendo os demais (quatro quintos da população) não definidos pelo autor (CARNEIRO, 1955, p.10-11). Nas pequenas atividades artesanais prevalece, igualmente, o elemento imigrante. Veja-se a relação de concorrentes à Exposição Provincial de 1866, segundo catálogo elaborado pelo Doutor Muricy. Aí figuram peças de mobiliário, talvez exemplares “pés de cachimbo” feitos em cabiúna, expostos por Guilherme Erbert, outros por Maurício Scwarts e por Gottlieb Wieland.[...] Trinta anos antes só havia um marceneiro em Curitiba, agora concorrem à exposição nove exímios artistas (CARNEIRO, 1955, p. 17) Por esta narrativa percebemos o destaque ao imigrante alemão como precursor da movelaria artesanal local e a importância das premiações nestas exposições, das quais mais tarde Martinho Schulz irá participar. 3.4 - O percurso do artesanato moveleiro do Paraná A cestaria pode ser indicada como uma precursora no artesanato local. É uma das técnicas que mais se destacam na vida dos povos, por estar diretamente ligada às suas tarefas diárias. Servindo como elemento fácil de ser transportado, foi de grande utilidade para os povos nômades. Assim como a cerâmica, o cesto é um dos recipientes mais utilizados pelas culturas ancestrais (antes da introdução dos materiais sintéticos na fabricação). De acordo com a tradição social e cultural as técnicas de cestaria sobrevivem e se transformam. No litoral paranaense a cestaria foi bastante evidente, constituindo-se em um “denominador comum, um dos elementos identificadores da cultura dos povos”, sendo ainda hoje em uma fonte de trabalho para as comunidades locais. Esta prática está fortemente vinculada com a pesca, que é a principal fonte de renda local, e à produção da farinha da 90 mandioca, aonde são utilizados “tipitis”40, gamelas, cestas e peneiras de taquara trançada (NUNES, 1973). A cestaria típica do litoral paranaense é utilitária, feita a partir de elementos vegetais locais, que são: a taquara, cipó, junco (que no litoral é uma espécie semelhante à taboa, que dá no brejo, e não um tipo de cipó como conhecemos), o piri (uma espécie de junco) e a palha de milho (NUNES, 1973). A técnica difere da dos italianos, pois normalmente o tissume é de forma radial e o cesto se estreita na boca.41 Com relação ao período colonial, CARNEIRO aponta em suas pesquisas que a primeira manifestação cultural européia no Paraná foi a jesuítica, havendo um “hiato”42 entre a tradição dos colonizadores do litoral e este breve período missionário. O autor coloca que neste período poucos artesãos conseguiam sobreviver de seu trabalho, portanto não se fixaram no Estado (CARNEIRO, 1955). As residências de Curitiba, segundo relatos de viajantes, eram simples e praticamente sem mobílias. Como narra Romário Martins, a partir de um autor não identificado, em 1834, Nem calçamento, nem iluminação, nem vidraças (depois de contar que bois e cavalos costumavam comer sal no largo da Matriz...). As janelas das melhores casas tinham postigos, algumas; rótulas raríssimas; os palacetes tinham empanadas, que eram um quadro de madeira coberta com pano de algodãozinho. Os casebres tinham à porta de entrada, à guisa de reposteiro, uma esteira pendente, de taquara. As casas não eram assoalhadas; as melhores tinham raras peças forradas. A mobília das boas salas consistia em uma mesa de pinho, bancos, tamboretes e uma cômoda enfeitada por uma bandeja pintada e dois castiçais de prata, com velas de Vera, resguardadas por grandes mangas de vidro. A rede era lugar de honra (CARNEIRO, 1955, p.7-8). O fato das casas serem desprovidas de mobiliário e adornos também se reflete nos espaços públicos, sendo que “o próprio mobiliário das sessões da Câmara, consistia apenas em simples tamboretes, mais tarde substituídos por cadeiras de palhinha...” (CARNEIRO, 1955, p. 6). o artesanato de Curitiba, segundo Daniel Pedro Muller (citado por Saint’ Hilaire) se compunha de um marceneiro, onze carpinteiros, oito serralheiros, dois seleiros, oito ourives cinco oleiros, um pedreiro e tantos oficiais de outros ofícios, e logo explica que certamente eram os escravos que faziam estas tarefas mais pesadas (CARNEIRO, 1955, p. 9). 40 Tipitis são cestos cônicos, feitos de taquara, para escoamento do líquido venenoso da mandioca. Para maiores detalhes sobre a técnica de produção artesanal de mandioca, ver FERNANDES, 1996. 41 Para aprofundamentos, ler NUNES, 1973, p. 103 a 123. A autora apresenta a classificação, esquemas e fotos da forma de confecção das cestas. 42 Devemos ressalvar que esta afirmação é de certa forma excludente por desconsiderar os nativos e moradores da região. 91 O padrão estético e artesanal começa se modificar, como relata o autor, a partir da vinda dos imigrantes alemães da Colônia Dona Francisca, imputando a estes a transformação e início da formação artística do Estado. Estes imigrantes vieram no Governo Provincial do Presidente Zacarias, Beaurepaire e Pádua Fleury que transformaram a “habitual pacatez do planalto”. Os novos serviços instalados exigiram novas casas, novos mobiliários e para isto, novos artesãos (CARNEIRO, 1955, p. 10). Segundo este autor, para o Paraná o imigrante representou o modernismo, que “nada mais é do que a ambientação européia que predominou em nosso meio, contrastando com o colonialismo que imperava nas outras cidades brasileiras”, imputando a estes o “futuro da província” (CARNEIRO, 1955, p.12). Coloca como um marco do novo artesanato a reconstrução da Catedral Metropolitana de Curitiba. A antiga Catedral era uma construção colonial, sendo demolida e substituída por uma obra, cuja pedra fundamental foi lançada em 1876, sendo concluída anos mais tarde. O autor segue em seu discurso enumerando todos os costumes introduzidos e os personagens alemães destas transformações43. Quanto às famílias de imigrantes italianos, conforme já expusemos anteriormente, vieram da Itália para o Paraná atraídos pela política de imigração desenvolvida no Paraná do século XIX. Estas famílias instalaram-se primeiramente na região de Porto de Cima e devido às condições desfavoráveis encontradas neste local vieram para a Cidade de Curitiba, fixando residência na Colônia de Santa Felicidade. No litoral tiveram contato com os habitantes locais, principalmente com os caboclos, o que representou uma primeira forma de hibridação cultural. Desde o momento da chegada dos imigrantes nas colônias, a principal atividade exercida foi a agricultura familiar de subsistência, com o cultivo de vários tipos de alimentos, bem como da uva para a fabricação do vinho. Os primeiros imigrantes aqui fixados escreviam para suas famílias na Itália, para que quando novos imigrantes viessem, trouxessem com eles, além de mudas de plantas nativas da Europa, sementes diversas, utensílios para a cozinha e ferramentas, como: serrotes, podões, machados, facas pontudas, enfim, seus instrumentos de trabalho (ALVIN, in: SEVCENKO, 1998, p. 247). Esta bagagem que vinha com os imigrantes era para adaptar a prática de origem, tanto de plantio como de trabalho às condições locais. Estas ferramentas eram normalmente de suas ocupações como artesãos, sendo mais tarde incorporadas ao trabalho no 43 Os relatos com os nomes das famílias estão no discurso de Newton Carneiro, proferido no Instituto e Educação em Curitiba, publicado em 1955. 92 Brasil. Assim, muitas famílias puderam “abandonar o trabalho na lavoura e trabalhar como pequenos artesãos na colônia”, ascendendo socialmente (SEVCENKO, 1998, p. 246). FIGURA 7: Imagens das ferramentas trazidas pelos imigrantes italianos nas suas bagagens para o Brasil. FONTE: SEVCENKO, 1998, p. 246 Por volta do ano de 1890, iniciou–se a produção da cestaria em vime juntamente com outros colonos da região. A comercialização destas cestas que as famílias faziam, surgiu a partir do seu uso para colher, armazenar a produção da lavoura e para outros usos domésticos. Os demais colonos que não possuíam a técnica do artesanato passaram a encomendar a cestaria produzida. Segundo relatos de BALHANA, sobre a cestaria de Santa Felicidade: O artesanato de Santa Felicidade divide-se em duas categorias: a cestaria grosseira e a cestaria fina e de móveis. Em cada uma destas o vime é tratado de maneira distinta. Na cestaria grosseira, o vime e utilizado inteiro, isto é, na sua forma arredondada natural, ao passo que na cestaria fina e de moveis, o vime é rachado ou fendido (1958). (...) São numerosas as classificações sobre a cestaria, quer baseadas nas técnicas do trançado, como fundadas nas formas dos recipientes. Segundo a técnica do trançado, a cestaria de Santa felicidade enquadra-se na classificação genérica do tipo entrelaçado. E ali somente ocorrem duas formas fundamentais do entrelaçado: o trancado cheio, que é mais comum, e o trancado aberto, utilizado quando se deseja obter uma peca de maior efeito. Distingue-se ainda por pertencer ao gênero do trançado que a terminologia francesa designa por “clayonne”, a inglesa por “wickerwork” e a italiana por “graticcia”. Aliás, é a técnica de trançado característica da cestaria européia que tem, como peculiaridade, a posição fixa dos elementos que constituem o urdume, em relação aos elementos móveis da trama. 93 Comumente se distingue em uma peça de cestaria cinco partes: o fundo, o corpo, a barra, o cabo e a tampa. Necessariamente porem nem todas as cestas possuem tampa. A forma do fundo é subordinada àquela do cesto, apresentando tantas variantes quantas são as formas sob as quais se apresentam os cestos. Em Santa Felicidade aparecem, com maior freqüência, as formas redonda e oval. Para ambas, qualquer que seja o tamanho de cesto, o seu trabalho é iniciado pelo sistema da disposição das primeiras hastes do vime em forma de cruz (crose) e muito raramente pelo sistema de molde (stampe) (BALHANA, 1958, p.96, 97 e 98). A autora segue em seu livro, “Santa Felicidade, um processo de Assimilação” (1958), descrevendo toda a técnica da confecção das cestas, suas dimensões, materiais e tipos de trançado em detalhes, com as ilustrações e fotos das etapas envolvidas, terminando esta narrativa descrevendo quais os artefatos produzidos e a posição de prestígio que o artesão tem na comunidade: Ainda há uma cesta de tamanho bem menor, é a cestinha de quilo (cestele di chilo), usadas pelas colonas que diariamente vêm à cidade com suas carrocinhas, e que dela se utilizam para medir a uva que vendem de porta em porta, por ocasião da época da vindima, bem como para outros produtos. A cestinha de quilo mede comumente cerca de 24cms. de comprimento, 13cms. de largura e 9cms. de altura. Qualquer que seja o tamanho desse tipo de cesta é empregado o mesmo número de varões no seu trançado, desde o fundo até o arremate final. A espessura das hastes de vime é que regula a dimensão maior ou menor da peça a ser confeccionada. Outras peças de cestaria são também executadas pelos cesteiros de Santa Felicidade, tais como, cestos, balaios, roupeiros, berços, cestos com tampa, cestinhos de fantasia para flores, presentes, e outras. O cesteiro, mor parte das vezes, homem simples do campo, procura também embelezar a obra do seu trabalho, não só pela variedade de formas, como no colorido das peças. Emprega na decoração da cestaria o vime tingido, sendo que as cores preferidas são o vermelho, o verde o azul e o amarelo. Antes de empregarem as tinturarias químicas modernas, usavam os cesteiros de Santa Felicidade recorrerem à tinta amarela fornecida pela raiz da “ueta spinella”, ou seja, a “berberis vulgaris”. Também costumam obter efeitos decorativos os mais diversos com o emprego intercalado do vime descascado e do vime ainda com casca. Em Santa Felicidade, algumas famílias há várias gerações se vêm dedicando ao trançado do vime, atividade que ocupa pais e filhos, cria e define posição social e econômica dentro da comunidade. O cesteiro é um elemento que tem vida econômica próspera, ele ganha com o seu trabalho mais do que o comum na lavoura, ou pelo menos corre o risco menor do que aqueles outros colonos que se dedicam exclusivamente à agricultura. Também pela técnica do seu artesanato, goza o cesteiro entre os seus concidadãos, de posição destacada que lhe dá o seu trabalho independente, no qual, além do sustento próprio e da família, ele encontra motivos de inspiração e beleza, uma vez que a cestaria expressa, sobretudo, um sentido de arte na atividade humana (BALHANA, 1958, p. 103,104 e 105). Os relatos da autora, de 1958, apresentam não só as técnicas, mas todas as relações envolvidas na produção desta comunidade: sociais, culturais e econômicas. Além de valorizar as tradições e documentar as técnicas, muitos artesãos entrevistados atribuíram a ela, pelos seus estudos, o reconhecimento do potencial e a ascensão econômica de Santa Felicidade. 94 Com relação ao comércio da cestaria, Balhana cita que as famílias passaram a dirigir-se com suas carrocinhas para as feiras de rua que aconteciam na Cidade de Curitiba, na Praça do Largo da Ordem. Nesta época havia o consumo massivo de lenha na cidade, uma vez que os fogões funcionavam à base da queima deste material. Por este motivo, a população de Curitiba procurava os cestos de vime produzidos em Santa Felicidade, que eram resistentes, desempenhando bem a função de carregar a lenha cortada (BALHANA, 1958). Era costume das mulheres, na época, lavar a roupa da família em rios próximos de sua casa, necessitando dos cestos de vime que serviam para transportar as roupas a serem lavadas. Também entre o público consumidor do seu trabalho estavam as padarias e vendas, que utilizavam os cestos para acondicionar e transportar os pães e demais alimentos. Entretanto, essa venda de cestas que se iniciava servia apenas para gerar uma renda de subsistência. FIGURA 8: Cestos de vime produzidos pela família Stival. FONTE: Acervo da família – Eromir Stival Foi a partir deste contato com o artesanato, através da produção mais voltada para as atividades cotidianas, que houve o desenvolvimento desta técnica do vime aplicada em outros produtos. Assim iniciou a tradição do trabalho com artesanato que caracteriza e identifica a Colônia de Santa Felicidade até os dias de hoje. No inicio a matéria-prima mais utilizada no trabalho da cestaria, o vime, era abundante nas regiões banhadas de Santa Felicidade. Os artesãos colhiam o vime que necessitavam para o trabalho e beneficiavam-no em casa. A colheita dava-se no começo do inverno, quando as folhas da planta caem. Depois do beneficiamento o material era 95 armazenado e podia ser utilizado durante todo o ano, até a próxima colheita. A lavoura de alimentos para a subsistência era cultivada paralelamente ao trabalho de cestaria e uma atividade complementava a outra na sobrevivência dos colonos. Desta maneira, os artesãos da colônia viviam envolvidos com o plantio e o desenvolvimento do artesanato, constituindo suas famílias dentro da tradição deste trabalho, sendo que todos filhos ajudavam na produção. Além dos italianos, os poloneses produziam estas cestas com formato diferente e com vime branco, assim chamado porque era colhido em época diferente e trabalhado ainda verde. Estas cestas polonesas eram comercializadas nos estabelecimentos dos alemães e italianos, conforme relatam os artesãos da família Túlio: Mas alguns trabalhavam com cestas, cestaria, cestas polonesas, que eu tenho na frente dos meus olhos até hoje, comprava muito, e vendia bem. Era uma cesta redonda, de um tamanho só. Já os italianos faziam cestas com três tamanhos, uma encaixando na outra [...] (Silvano Túlio, entrevista, abril de 2005) Existem duas formas de processo (de preparo do vime), uma que é colhida em janeiro, enquanto a haste está cheia de folhas, florada, aí a casca não adere à árvore. A casca se desprende naturalmente porque ela está retendo as folhas, ela retém bastante umidade, ela está retendo as folhas então a haste é facilmente tirada com as mãos. A esse vime se dá o nome de Vime branco, os colonos, geralmente os poloneses fazem muito isso (Entrevista com Armando Túlio, março de 2005). O aperfeiçoamento das técnicas de plantio, colheita e o aumento tanto da demanda, quanto dos envolvidos na produção artesanal, com o passar do tempo fez com que além das cestas fossem criados outros produtos. Primeiramente passou-se a produzir cestas para arranjo de flores, revendidas nas floriculturas da Capital. Depois, vieram peças de utilidade doméstica, como baús e cestos para roupa. Atendendo a um modismo da época iniciou-se também uma larga produção de carrinhos de boneca, de variados tamanhos. FIGURA 9: Roupeiros de vime e carrinhos de boneca produzidos pela família Stival. FONTE: acervo de Eromir Stival. 96 Uma das principais características do artesanato de Curitiba é o envolvimento de toda a família na produção, formando unidades fabris familiares. Além das técnicas tradicionais de cestaria foram introduzidas técnicas de produção de móveis, utilizando estruturas de madeira ou cabo de vassoura na confecção. A produção moveleira foi trazida por outro contingente de reimigrantes, vindos do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, que fixaram-se principalmente na capital do Estado do Paraná, como por exemplo, no bairro Água Verde e arredores. Assim, as famílias de Santa Felicidade, apesar da tradição da cestaria, não foram pioneiras no mobiliário com fibras. As famílias conhecidas como precursoras no trabalho moveleiro com vime foram a Marcolla e a Marchioro, ambos reimigrantes vindos do Rio Grande do Sul, já com tradição na produção moveleira artesanal. Juntamente com Martinho Schulz (alemão), estas empresas são as primeiras a serem registradas e tirarem alvarás para funcionamento, anunciando os produtos em veículos de publicidade, já no início do século XX, aproximadamente no final da década de 20 e início da década de 30. Estes artesãos destacaram-se por possuírem, além das fábricas, pontos de exposição e venda de seus produtos, em lojas ou através de representantes que vendiam por catálogo. Além de atender à demanda interna, trabalhavam com exportação para outros Estados e até para o exterior. Nesta época foi constituída uma rede de trabalho entre os artesãos da cidade, terceirizando a produção para cumprir os contratos e atender as encomendas. O senhor Hilário Marcolla, um dos precursores em móveis de vime, que se dedicava a produzir cadeiras, mesas e jogos de sala, por possuir uma “vendinha”, comprava as cestas dos produtores de Santa Felicidade para revendê-las. Dario Marcolla, seu filho relata: Ele (Hilário Marcolla) é de Bento Gonçalves [...] foi lá que aprendeu, trabalhou um ano de graça, para aprender o ofício. [...]. Daí veio uma turma de gaúcho, lá do Rio Grande para cá, inclusive os Marchioro, dono do mini Marchioro que tinha aqui na avenida Iguassu. Meu pai foi entregue aos Marchioro e os tios também, então veio essa turma de gaúcho aqui para Curitiba [...] a firma que meu pai fundou aqui foi em vinte e quatro [...]. O meu pai passou a ser concorrente do Marchiolo. [...] ele foi pra Santa Felicidade, conheceu o Natalino Tulio e eles faziam cestos, inclusive o Silvano (filho de Natalino) fazia cestos e os irmãos dele. E assim o negócio de vime lá por Santa Felicidade foi se expandindo, o negócio de cestas, o meu pai comprava cestas (Entevista com Dario Marcolla, abril de 2005). 97 Assim, as famílias de Santa Felicidade, como a Túlio, Stival entre outras, além das vendas diretas que faziam nas feiras e nas ruas, produziam cestaria para as fábricas de móveis de Curitiba (neste período Santa Felicidade não fazia parte de Curitiba). Cestaria, essas coisas assim, ele mandava fazer fora. Tinha uma família era o José Kikote era lá da Cachoeira, trabalhou muitos anos conosco, até o fim, até comigo também muitos anos, eu me lembro que ele fazia aquelas cestinhas pequenas, hoje ainda às vezes, aparece por aí umas cestinhas redondas[...] Esse foi um dos nossos cesteiros, depois tinha ali perto de Santa Felicidade, onde funciona o restaurante Cascatinha, lá nos fundos tinha uma família do senhor Luiz Costa, com a família dele trabalharam muitos anos para nós[...] Depois de Santa Felicidade, trabalhou também para nós o Natalino Túlio com a família, o Stival também [...], tinha um outro lá Francisquine, mas era mais para os lados de Santa Felicidade, lá para dentro, trabalhou para nós (Erico Meissner, entrevista, junho de 2005). As famílias Marchioro, Marcolla e Schulz, empregaram artesãos de Santa Felicidade, que tinham tradição com a cestaria, mas não dominavam a produção moveleira, formando assim uma nova frente de trabalho para os artesãos daquela comunidade. Fazendo um breve percurso sobre a produção artesanal destas famílias, podemos constatar que além de produzir as peças, também forneciam vime beneficiado para as fábricas locais e exportavam matéria prima para outros Estados do Brasil. Todos tinham a sua própria plantação, sendo, portanto, todos produtores, entretanto acertavam compras anuais com os produtores de vime da região de Santa Felicidade para complementar o estoque quando a demanda era maior. Nesta época, a contemporânea Móveis Cerello, hoje famosa indústria de móveis artesanais de São Paulo, comprava matéria-prima beneficiada das famílias Stival e Túlio, que na Colônia de Santa Felicidade, consolidaram-se como as mais tradicionais e fortes na produção artesanal de artefatos em vime. O Tulio, depois com o crescimento do Silvano, eles entraram com móveis. Até começaram a fazer móveis para nós, quer dizer empalhar móveis para nós, móveis com a armação de ferro e depois o Silvano era muito progressista também, ele era dinâmico, trabalhador, que nem o pai e depois criou força própria e se desenvolveu. Inclusive entrou em contato com uma grande firma de São Paulo: a Anselmo Cerello e eles fizeram sociedade anônima, inclusive eu conheci eles bem também, o seu Cerello, uma grande firma, tradicional, muito antiga, trabalhavam muito naquela época. O Anselmo Cerello com móveis de cana da Índia e também móveis de bambu. O Silvano, eu sei que ele levava vime de Curitiba para São Paulo e depois trazia também móveis lá do Cerello para cá (Meissner, entrevista, junho de 2005). As famílias de Santa Felicidade, predominantemente de imigrantes italianos ligados à produção agrícola, passaram à produção de móveis aproximadamente a partir do final da década de 50 e início de 60. 98 A princípio, pela demanda, além das cestas passaram a serem produzidos cestos maiores para as padarias transportarem os pães, para carregar lenha, roupas, etc. O Natalino Túlio, o patriarca, vamos dizer... começou fazendo cesta, esta cesta italiana, que na época era só isto que se fazia, o vime não era industrializado, não tinha estas coisas de hoje de fábricas de vime com cadeiras, com camas, estantes, com móveis, não era isso. O que era? Era praticamente utensílios, só. Eles faziam as cestas italianas que eram chamadas assim, porque eram cestas de lavar roupa, que na época não existia água encanada, então a roupa se lavava na fonte, onde tinha uma nascente, um rio, ali se fazia um tanque e se lavava a roupa ali. Então, para se sair de casa até o tanque, que era longe, carregava roupa aonde? Na cesta, que era mais fácil, porque ela era leve, tinha um cabo e era mais fácil de carregar. Além da cesta se fazia roupeiro para por a roupa mesmo, faziam alguns berços na época,... Alguns berços para crianças e balaios para pão. Vendia-se muito balaio na época! (Adarcísio Ferro, entrevista, fevereiro de 2005). Posteriormente, na década de 60, na produção de baús e cestas houve a introdução da produção do mobiliário, dentro das técnicas artesanais pertencentes à tradição da família. De início eram produzidas cadeiras, mesas e móveis para áreas de estar em geral. Também eram fabricados berços e moisés para bebês. Neste primeiro momento da produção de móveis as matérias-primas empregadas eram o vime para o trançado e os varões de vime mais grosso ou cabos de vassoura que estruturavam os móveis. Já nesta época a estrutura de ferro começou a ser introduzida em Santa Felicidade pela influência direta de Martinho Schulz, que já possuía um funcionário especialista nestas estruturas, como relata Silvano Túlio: Ele já fazia, mas bem no comecinho. Ele tinha um empregado que se chamava Nickford Chochordini. Ele era de origem Russa, e lá na Rússia fazia essas cadeiras que eles tem no Shultz e nós ficamos amando. Via na vitrine e mandamos comprar cadeira, aquela história. “Espionagem industrial”. Aí quando nós compramos uma cadeira, nós conseguimos lançar aquela cadeira. Aí começou a abrir o leque, aí ele criou cadeira de copa, de piscina, cadeira de sala, aí veio uma infinidade de idéias para a gente (Silvano Túlio, entrevista, abril de 2005). 99 FIGURA 10: Moisés e Berços de vime produzidos pela família Stival. FONTE: Arquivo de fotos de Eromir Stival. Sobre esta época, o senhor Adarcísio Ferro, artesão que trabalhou com a família Túlio desde que instituíram a fábrica de móveis, sendo o primeiro funcionário que não fazia parte da família, comenta: Depois das cestas, o pessoal achou que a fabriquinha caseira não ia mais resolver a situação. Não ia mais resolver porque veja bem, a família era grande. Vamos pegar, por exemplo, a família Túlio. Tinha o Natalino, que tinha os filhos homens, Silvano, Algacir, Armando e Romeu e a Mercedes e Edwiges, mulheres. Uma delas já trabalhava. E o bom da família Túlio, que eles foram, vamos dizer, os pioneiros na área de móveis. É porque o Armando casou com a Irene Bartapelli, e a família Bartapelli também trabalhava com vime. Então os dois sabiam trabalhar. É! (admiração), porque ela também sabia trabalhar com vime !!! (Ferro, entrevista, fevereiro de 2005). Para compreender as relações sociais e econômicas envolvidas no artesanato de Santa Felicidade também se faz necessário refletir sobre a categoria de gênero, que apesar de não ser o objetivo da pesquisa sempre está presente nas narrativasdos artesãos, como no caso da citação acima. Pensar nas aproximações entre gênero e tecnologia, como esclarece BASTOS, significa muito mais do que estabelecer conexões com questões femininas, mas sim, pensar nos “estereótipos [que] são criados e desenvolvidos dentro das convenções e tradições estabelecidas pela sociedade” (CARVALHO, org., 2003, p. 10). As relações familiares de produção eram mantidas pelos casamentos, sendo as mulheres fundamentais na constituição e manutenção dos laços de união familiar e de 100 produção. Percebemos nos relatos que o trabalho da mulher na cestaria foi marcante, principalmente na confecção de cestos e Moisés. Também participavam na esfera da circulação, sendo elas responsáveis por conduzir as “carrocinhas” para o centro da cidade de Curitiba para vender os produtos agrícolas e as cestas, enquanto os homens trabalhavam na lavoura. Sobre o trabalho na lavoura, segundo CARVALHO, vários estudos etnográficos apontaram que há grupos que encaram a lavoura “como uma atividade feminina enquanto no meio rural brasileiro, por exemplo, é tarefa primordialmente masculina” (CARVALHO, org., 2003, p. 16). Estas convenções não são homogêneas nem estáticas, cada sociedade ou grupo as constrói na sua dinâmica social e cultural, ao longo da história. Continuando o depoimento, o Sr. Adarcísio fala da necessidade de transição da manufatura artesanal familiar para a produção aos moldes industrializados. E veja que o Natalino começou a trabalhar com o filho mais velho, depois veio o segundo que era o Romeu e depois tinham mais dois lá atrás que também começaram a trabalhar com vime e começou a ampliar a coisa e aí, puxa vida, não tem como só trabalhar com cesto, balaio, estas coisas, porque não vai ter prá todo mundo. Vamos começar a mudar. E aí que eles começaram a correr atrás de modelos. E aí que entra a história do Schultz. Ele já fazia alguma coisa em móveis. Já fazia algumas cadeiras, já fazia alguma coisa diferenciada, já saindo daquela coisa tradicional, daqueles cestos que todo mundo tinha que ter em casa, que era uma coisa familiar. Que todo mundo usava. Então, eles saíram prá que? Prá indústria. Saíram daquela coisa tradicional (Ferro, entrevista, fevereiro de 2005). Com a passagem do sistema familiar de produção artesanal, para a manufatura industrial, principalmente quando esta prática se tornou a fonte principal de renda, a mulher foi sendo afastada da esfera da produção e circulação do artesanato, pois neste modelo de sociedade capitalista, “ao homem corresponderia o papel instrumental de provedor da família, enquanto à mulher o papel expressivo de responsabilidade pelo bem estar emocional da família”. (CARVALHO, 2003, p. 16). Apesar desta aparente exclusão da mulher no momento da modernização da produção artesanal, mesmo que de forma periférica, a partir de suas casas, elas tiveram um papel importante neste processo de inovação tecnológica. Há uma diversidade de olhares envolvendo estas questões de gênero, e, quando citamos os homens como protagonistas das inovações tecnológicas, devemos refletir sobre estas representações sociais e sempre contextualizá-las. 101 3.4.1 - O móvel artesanal com fibras em Curitiba e a modernização A modernidade foi um projeto que passou do campo político, artístico, intelectual, para o espaço público e o privado. A “inserção” do mobiliário produzido no Paraná e em Curitiba à modernidade teve particularidades, já que havia uma forte tradição da produção de móveis de estilo, ligados aos europeus, sendo muito valorizados e ainda hoje produzidos e consumidos. Assim, quando ao falar dos móveis artesanais, os classificamos como ecléticos, estamos tentando traduzir as transformações e as permanências estilísticas, formais e produtivas que fazem parte desta trajetória, representando as tensões entre a tradição e a modernidade que ainda hoje estão presentes na produção e circulação dos artefatos. O caminho trilhado da produção de cestaria, baús e pequenos objetos, para a confecção dos móveis foi diferenciada para as manufaturas artesanais de Curitiba, não sendo possível estabelecer uma linearidade temporal, já que cada indústria teve o seu tempo de se inserir (ou não) nas novas linguagens e no contexto da “modernidade”. Assim, vamos fazer a princípio uma breve discussão44 sobre as opções de caminhos das indústrias oriundas a partir dos artesãos das famílias tidas como pioneiras em Santa Felicidade, Túlio e Stival45, construindo esta trajetória a partir das narrativas de pessoas ligadas a estas empresas, por laços familiares ou de trabalho. Em Santa Felicidade, as maiores indústrias que participaram do processo de modernização do mobiliário são: Móveis Túlio (da família Túlio), MOVIME (família Stival) e GS Móveis (família Stival). Há outras menores, oriundas das famílias italianas de Santa Felicidade e ainda fábricas localizadas em outros bairros, como Água Verde, que não iremos abordar neste trabalho. Também participou deste processo de modernização, a fábrica de Móveis Martinho Schulz, no centro de Curitiba, à qual dedicaremos os dois últimos capítulos da pesquisa. Uma das inovações no mobiliário local, que possibilitou a introdução dos maquinários no processo artesanal, foi a utilização com mais freqüência das armações em tubos de ferro com a finalidade de estruturar os móveis. Anteriormente eram utilizados o cabo de vassoura, a madeira, o próprio vime mais grosso e eventualmente o ferro maciço (que 44 Esta narrativa, apesar de estar no campo de discussão teórico da pesquisa, só foi possível de ser construída pelas memórias dos artesãos, assim, esta história “não escrita”, justifica neste momento a introdução dos depoimentos no corpo teórico do texto. 45 A indústria de Móveis Schulz, localizada no centro de Curitiba, merecerá atenção especial nos capítulos 4 e 5 da dissertação, por apresentar características específicas, já que passou a inserir práticas capitalistas no seu modo de produção e circulação dos móveis, antes das demais de Curitiba. 102 tornava a peça muito pesada). Os tubos ou vergalhões (ocos), além de facilitar a curvatura, deixavam a peça mais leve, modificando a forma de conceber e executar a produção. Foram introduzidas novas máquinas para auxiliar a curvatura dos tubos, entretanto, ainda conservando as características de uma manufatura artesanal na produção (Armando Túlio, entrevista, 2005). Muitos móveis artesanais começaram a serem produzidos com características mais modernas, tomando partido das estruturas de ferro e dos novos materiais que facilitavam a produção. Um exemplo desta nova tendência é a “cadeira concha” ou “sol”, que foi fabricada primeiramente por Martinho Schulz, aproximadamente a partir da década de 50. A tecnologia de produção desta peça foi difundida entre os artesãos locais, entrando também na linha de produção das fábricas de Santa Felicidade, como de Móveis Túlio e Stival (Darci Ferro, entrevista, 2005). Esta poltrona nos remete à “Poltrona Bowl” produzida por Lina Bo Bardi, no final da década de 40. FIGURA 11- Poltrona Concha. Fonte: Foto da autora Quanto aos materiais utilizados em Santa Felicidade, por volta de 1960, a matéria-prima básica continuava sendo o vime, entretanto seu cultivo já estava declinando na região. Passou-se nesta época a utilizar o junco e outros materiais, naturais ou sintéticos na 103 confecção dos móveis. As empresas continuavam comprando a planta dos produtores locais para fazer o beneficiamento, mas acredita-se que, com a poluição da região, particularmente do Rio Passaúna e principalmente devido ao desinteresse dos produtores que passaram a se dedicar mais à produção dos artefatos do que ao plantio, a espécie foi deixando de ser produzida na região. Além disso, a competição pelo preço da fibra com o Estado de Santa Catarina que se especializou no plantio, desestimulou o cultivo do vime no Paraná. Nos anos 70, a segunda geração de artesãos, líderes das empresas, procurou uma gestão mais profissionalizada de seus negócios. As empresas maiores deixaram de ter uma estrutura familiar, passando a contratar mais funcionários para atender às novas demandas do mercado consumidor. Entretanto, estes proprietários mantêm sempre viva a sua função de artesão, nunca se desvinculando da oficina, utilizando-se das técnicas tradicionais aplicadas a produtos novos, criados para atender o mercado. Nesta época, os irmãos Túlio compraram todos os equipamentos e maquinários da Fábrica de Móveis Schulz (localizada no centro de Curitiba) que havia fechado, além de herdar catálogos de modelos e incorporar artesãos experientes no mobiliário, o que possibilitou diversificar a produção, introduzindo novas tecnologias e materiais, resultando na expansão desta empresa e das demais da região. Devido à grande produção de móveis artesanais na Colônia, a concorrência no mercado trouxe consigo a preocupação em melhorar os produtos em vários aspectos para garantir suas vendas (Eromir Stival, entrevista, 2005). Assim, passou-se a pensar numa maior durabilidade, em questões estéticas e ergonômicas para os produtos. Entretanto, é só a partir da década de 90 que estas empresas começaram a contratar os serviços terceirizados de arquitetos e designers, sendo que poucas possuem um destes profissionais como funcionário efetivo. A busca de características diferenciadoras dos móveis, conferidas pela criatividade dos artesãos e pelo design, são “agregadas” aos artefatos para poder competir no mercado nacional e internacional. O nosso móvel hoje é melhor do que o móvel Paulista. Muito melhor. Nós estamos ganhando na qualidade e na quantidade [...] A qualidade do móvel que sai é um ponto importantíssimo. Mas muito importante, é o design. O design das peças, a anatomia das peças, enfim você tem algumas cadeiras que são bonitas, eu tenho visto ali, eles fazem uma cadeira e eles procuram fazer em quantidade, mas você senta na cadeira e você não se sente bem, você não consegue permanecer sentado. Se deve começar a pensar nesse sentido, porque as pessoas começam a procurar, e dar valor sim a beleza, mas mais valor, ao conforto (Armando Túlio, entrevista, março de 2005). 104 A fábrica de Móveis Túlio teve seu apogeu até aproximadamente o ano 2000, contando nesta época com mais de 100 funcionários, hoje (2005), passa por problemas e apesar de continuar a produção, conta com apenas seis funcionários efetivos, que são os artesãos mais antigos. Estes artesãos atendem a todas as encomendas, executando todas as etapas do processo, por dominarem a totalidade da produção do móvel, bem como todas as técnicas de trançado com as diversas fibras (Armando Túlio, entrevista, março de 2005). A fábrica de Móveis GS (de Geraldo Stival), ainda está em funcionamento em Santa Felicidade, contando com aproximadamente 30 funcionários contratados e outros terceirizados, para os serviços complementares como: marcenaria, tornearia e outros. Além da loja, escritório e seção de acabamentos em Santa Felicidade, tem uma unidade fabril em Campo Magro, aonde são montadas as estruturas, feito o trançado das fibras no corpo dos móveis, lixamento e alguns acabamentos superficiais. Hoje a empresa é administrada por um representante da terceira geração dos imigrantes, Vítor Stival, filho de Geraldo Stival, que gerencia a produção, mas não mais domina as técnicas do trançado, desconhecendo a história destas técnicas. Tem uma designer consultora, Dirce Ayako, que cria linhas de produtos, atendendo ao mercado interno e também à exportação (para os Estados Unidos). As peças exportadas, para competir no mercado internacional, dominado pelos asiáticos, segundo Geraldo Stival, devem ter um apelo ecológico, utilizando apenas produtos naturais na confecção, fato que fez a empresa resgatar o uso das estruturas de vime e apuí 46 (Geraldo Stival, entrevista, junho de 2005). Já a fábrica MOVIME, de Eromir Stival tem uma produção constante e está inserida no mercado voltado para a alta decoração, tendo a partir da década de 90, investido na introdução do trabalho de design para criação de novas linhas. 46 Espécie de cipó que atinge espessuras grandes, de até 4 centímetros ou mais, o que permite que seja torneado e curvado para ser utilizado nas estruturas dos móveis. 105 3.5 - O Artesanato e o Mobiliário 3.5.1 - As permanências e transformações na trajetória do móvel brasileiro Para falar do móvel brasileiro e da produção de mobiliário artesanal paranaense, consideramos importante pensar sobre o percurso e estilos da produção nacional e local, apontando algumas referências para pensar o móvel como produto de hibridações culturais a partir da formação do povo brasileiro e como o mobiliário produz e reflete significações das sociedades em que está inserido. Ressaltamos a importância de pensarmos no conceito de longa temporalidade e curta temporalidade bakhtiniano, citados no capítulo 2, que nos fazem pensar na forma como fluem os estilos do mobiliário, não linearmente, mas tendo fronteiras e limites pouco definidos. Os estilos não podem ser abstraídos “das esferas de quem os cria e usa; isto é, abstraídos da atividade, de suas coordenadas de tempo-espaço...” (FARACO, 2003, p. 115). Estas relações entre tempo-espaço, ou os “cronotopos” é que significam e materializam a produção humana mediada pelo trabalho. Segundo BAKHTIN (2002), nada está definitivamente encerrado e mesmo o diálogo com os séculos passados sempre se restabelece, em uma interação que recupera e transforma os sentidos contextuais esquecidos. Principalmente no artesanato e na produção moveleira podemos perceber esta grande temporalidade que mantém as tradições, atravessada por curtos períodos (como modismos), mas sempre conserva as suas características fundamentais. A produção moveleira com fibras é um exemplo da permanência do artesanato ao longo dos tempos e da sua fluidez no espaço, já que as primeiras citações sobre móveis com fibras na cultura ocidental européia, são sobre uma poltrona encontrada em uma tumba Germânico-Romana, imitando o trançado. Formas similares também foram encontradas representadas em nas ilustrações medievais, sendo, portanto uma forma de produção moveleira com raízes anteriores ao século VI a.C., reinterpretada ao longo dos séculos vindouros, permanecendo até os dias de hoje (LUCIE-SMITH, 1997, p.28). No Brasil percebemos esta fluidez muito fortemente, pois como afirmam VERÍSSIMO e BITTAR, “a produção do espaço arquitetônico de morar é interpretada como resultado de um processo criativo, conduzido pelas necessidades sociais e culturais” (1999, p. 9). No Brasil este processo é muito especial, pois além de ter raízes do modo de viver 106 indígena, recebeu muitas influências dos processos de colonização e imigratórios, que caracterizaram em cada região do país uma multiplicidade de manifestações47. Segundo SANTOS, a produção moveleira nacional está vinculada aos artistas e artesãos que trabalhavam a madeira e o trançado, representados pelos brasileiros, ou pelos artesãos europeus radicados no país (1995). LÚCIO COSTA sistematiza a história do mobiliário nacional basicamente em três períodos, que são apresentados como uma evolução a partir dos modelos europeus: O 1º Período situa-se nos séculos XVI e XVII, caracterizando-se como móveis que possuem “estrutura de aparência rígida, fortemente tracejada e de composição nitidamente retangular”, apesar de apresentar curvas e volutas, estas não alteram o “aspecto essencial do móvel” (COSTA, 1975, p. 198). Neste primeiro momento as casas existentes, além das “ocas” dos índios, eram as moradias dos portugueses, cujas construções geralmente eram feitas de barro e palhas, baseadas nas construções indígenas. As mobílias dos colonizadores eram mínimas, se resumindo a caixas, camas, bancos e raramente mesas e cadeiras, trazidas da Europa ou feitas por artesãos locais. A simplicidade das moradias era marcante neste período. A característica de uma aproximação com a identidade do Brasil, apresentada nestes móveis é a utilização das madeiras locais, como: o vinhático, cedro, jequitibá, jucuiaçá, metaceíba, jacarandá e pau-santo (MANCUSO, 2003). No 2º Período, que está no século XVIII, os móveis ganham movimento, são mais elegantes, amaneirando os desenhos e ganhando acabamento apurado. Este começa com o reinado de D. João V, na metrópole e na colônia coincide com o surto da mineração que desenvolve a região central do Brasil, sendo representada pelo Barroco brasileiro. 47 Para aprofundamentos sobre este assunto, indicamos o trabalho de VERÍSSIMO e BITTAR, “500 anos da casa no Brasil” (1999), que faz uma análise das transformações e permanências do modo de viver das famílias brasileiras e das suas relações sociais, representadas nos ambientes das casas. Os autores abordam o “fenômeno de habitar”, desde as origens às concepções contemporâneas. 107 O 3º Período seria uma retomada da sobriedade e do estilo mais retilíneo. Remetendo ao estilo Neoclássico europeu, representado por exemplo, pelo Louis XVI, Adam e Império, que foram reinterpretados no Brasil (COSTA, 1975) 48. Quanto à modernização do móvel brasileiro, LÚCIO COSTA ao apresentar esta transição com características ecléticas, a coloca como a “confusão contemporânea”. Para o autor, a industrialização (que permitiu a produção seriada) e a demanda do consumo fez com que: ou se reproduzisse em larga escala móveis de estilos históricos; ou levou outros a “inventar” uma “arte nova”, que pode ser um “falso modernismo”, expresso em “móveis geométricos” e “pesadões”; ou gerou modelos uniformizados, mas com boas soluções técnicas, de materiais e acabamentos (LÚCIO COSTA,1975). Relativizando a apresentação linear e evolutiva do autor que colocou o móvel brasileiro como um reflexo tardio dos movimentos europeus, o que podemos perceber no país é que os estilos são muitas vezes mesclados e, entre revivalismos, historicismos, reinterpetações e novas criações, são híbridos, o que não deixa de ser uma forma de caracterizar as identidades do Brasil. Os estilos importados influenciaram o mobiliário nacional, de característica manufatureira, aproximadamente até a década de 30 do século XX, período a partir do qual há uma busca maior pela consolidação da identidade brasileira no mobiliário e a intensificação da industrialização nacional. Para SANTOS, a “renovação” do móvel no Brasil deveu-se a alguns fatores, exemplificados como: “o patrimônio artesanal da madeira; a interrupção das importações motivada pelas duas guerras; a modernização cultural e econômica que abriu definitivamente o Brasil para o século XX, particularmente a modernização da arquitetura; e, finalmente, as relações do design brasileiro com o concretismo” (SANTOS, 1995, p.15). A concepção do mobiliário moderno brasileiro, que em um primeiro momento se aproximou do Art Nouveau e do Art Déco, passou a ser também um “projeto” incentivado por intelectuais, como Mário de Andrade, amante e estudioso de todas as áreas das artes e 48 Com a vinda da corte portuguesa para o Rio de Janeiro e a abertura dos portos, foram importados muitos móveis e objetos domésticos, modificando o interior das residências abastadas, que além de incorporar novos mobiliários, mais luxuosos e de influências mais variadas, passaram a ser ricamente e profusamente ornamentadas. No Brasil o Neoclássico foi um estilo vindo com a missão francesa, no reinado de D. João VI, importando também hábitos e costumes sociais franceses para a corte, que passa a cultuar o luxo e a elegância. Os palacetes envidraçados e a modificações nos hábitos de receber abriram as residências para o exterior, ostentando objetos decorativos e ornamentos requintados (MANCUSO, 2003). O estilo brasileiro D. João VI no mobiliário, recebeu influências do Diretório e Regência da Europa, sendo os entalhes que lhe conferem uma identidade estilística brasileira. Nos móveis são utilizadas madeiras como: cedro, louro, mogno, pau marfim, foram aplicados os torneados miúdos e as curvas elegantes, além das marchetarias em forma de leques, em substituição às incrustações e ornamentos de bronze (LÚCIO COSTA,1975). 108 cultura nacional, que promoveu concursos, encontros e exposições para divulgar o modernismo, inclusive fazendo projetos de móveis modernos para a sua própria casa. Também recebeu contribuições de artistas radicados no Brasil, ligados à fase inicial do movimento modernista, como: Lasar Segal, John Graz, Cássio M’Boi, Gregori Warchavchik, e Theodor Heuberger (SANTOS, 1995, p.19). Uma experiência apontada como pioneira no mobiliário moderno nacional foi a Cama Patente, projeto de Celso Martinez Carrera em 1915, que tem características que remetem ao estilo Art Nouveau49, tendo lançado as bases para o design moderno nacional. Esta cama foi criada como uma alternativa às camas similares de ferro (que eram mais caras), utilizando-se da madeira curvada, técnica que remete à indústria austríaca Thonet50, que iniciou a produção de cadeiras curvadas, em série e estandardizadas a partir de 1850 (MUSEU DA CASA BRASILEIRA, 1997). A produção da cama Patente foi pensada no intuito de criar um móvel mais popular e acessível às camadas da população que não tinham condições para comprar móveis para mobiliar o quarto. Foi apontada como um marco no mercado brasileiro, pela inovação, popularização dos móveis, introdução de novas tecnologias de produção e adaptação de novos maquinários à produção da indústria (SANTOS, 1995, p.38). Os móveis para quarto criados por Carrera partiram dos princípios ligados à industrialização e racionalização dos processos, com aspectos de leveza e simplicidade, sendo representativos da fase inicial da modernização do móvel brasileiro. 49 O estilo Art Nouveau basicamente foi uma revolta contra o historicismo do século XIX. Foi um movimento que aconteceu entre 1890/95 até aproximadamente 1905, iniciando pela contribuição do Arts and Crafts. Visou romper com a inspiração nos estilos passados, o que ocorreu no Neoclássico, tendo como bases o Naturalismo e Simbolismo. Busca na estilização de elementos da natureza as linhas expressivas que levam ao desenvolvimento dos móveis. As formas femininas são exploradas em gravuras e pinturas, simbolizando um jogo de sedução das formas. Alguns representantes deste estilo foram: na França, Emile Gallé e Louis Marjorelle; na América, Louis Tiffany que usou o estanho e vidro nas composições de suas luminárias; na Bélgica Henri van de Velde; na Itália por Ernesto Basile; na Espanha por Gaudí (LUCIE-SMITH, 1997, p. 163 a 166). No Brasil o estilo Art Nouveau teve como difusor o Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, sendo um dos representantes o arquiteto Carlos Ekman (1966-1940), que fez o projeto para a Vila Penteado, em 1902. Nas residências foram introduzidas novas mobílias, como aparadores, cadeiras de vime e cadeiras de espaldar alto, além das chapeleiras nas entradas das casas, com entalhes ao redor do espelho (Museu da Casa Brasileira, 1997). 50 Foi uma criação pioneira e inovadora, nascida em ambiente Biedermeier, com ênfase na simplicidade e praticidade. Esta tendência surgiu por volta de 1830, a partir de experiências de Michael Thonet com a curvatura da madeira em moldes, que com o vapor adquiriam as formas desejadas. A madeira utilizada foi a faia, que possui fibras curtas favorecendo a moldagem. Foi a partir de 1841, na exposição de Coblença, que Thonet divulgou e patenteou suas cadeiras, passando a difundi-las na Europa (LUCIE-SMITH,1997). Neste período, com o avanço nas técnicas industriais de produção, de laminação da madeira, encurvamento e a simplificação dos encaixes, permitiram a industrialização dos móveis que também foram inseridos, na segunda metade do século XIX, em um mercado de massa na América. As formas sinuosas, a flexibilidade e fluidez das curvas obtidas pela adequação dos materiais e técnicas na solução de formas, também podem enquadrar os móveis Thonet como um dos precursores do estilo Art Nouveau. 109 FIGURA 12: Cama patente FONTE: Livro Azul de Curitiba, 1938/39, p. 27. A publicidade51 foi uma estratégia forte para atingir o novo consumidor e convencê-lo a substituir as camas de ferro, que eram apontadas como sendo mais caras, enferrujavam além de tentar mudar o hábito de dormir nas redes. Neste período a publicidade foi muito utilizada pelas indústrias moveleiras para atingir os consumidores, que eram definidos de acordo com um mercado extratificado, motivando-os a participar da “modernização”, modificar seus hábitos “atrasados” e a consumir os produtos industrializados, considerados signos da modernidade. Há no início da modernização no Brasil uma tendência à simplificação e geometrização das formas, com forte influência do estilo Art Déco52, entretanto, com relação ao sistema de produção, apesar da concepção formal e estética modernista, a fabricação dos móveis ainda segue sendo em muitos casos de forma artesanal. Segundo NIEMEYER, só nas décadas de 30 a 50 que há um início da industrialização em substituição às importações dos bens de consumo europeus, que se 51 Iremos abordar este tema no capítulo 4 da dissertação, fazendo uma análise de alguns anúncios de móveis artesanais veiculados no Paraná, nas décadas de 30 e 40. 52 O Art Déco foi um estilo que surgiu no período entre-guerras, juntamente com outros movimentos, como o Expressionismo, o Futurismo, o Cubismo na arte e a Bauhaus no design. Recebeu esta denominação na França, a partir de 1925, depois da Exposição Internacional de Artes Decorativas, aonde foi apresentado como algo novo. A partir da década de 30 passa a ter influências mais marcantes do cubismo e futurismo nos móveis, com uso de linhas angulares abstratas nos motivos, aplicadas também em relógios e cabines de rádios. A versão vulgarizada do cubismo levou ao Déco Popular, estendendo-se a uma camada maior da população, entrando, segundo LUCIE-SMITH, em uma esfera de consumo de massas. Usa dos contrastes das madeiras muito claras e muito escuras e incrustações de materiais como a madrepérola em superfícies que são mais planas. O brilho das madeiras escuras remete à laca chinesa e as mesas de centro mais baixas ao japonismo, que são retratados no Art Déco (1997, p. 170 a 176). 110 intensificou de 1950 a 64, através da internacionalização do mercado que favoreceu a importação de máquinas, equipamentos e tecnologias (2000, p.53). Um movimento importante para a mudança das formas e estética dos móveis foi o concretismo, que levou muitos artistas a ingressarem no campo do desenho industrial, influenciados pela Bauhaus53, que expressava nos artefatos a racionalização e pragmatismo, pensando nas associações entre a arte e a técnica. Um dos concretistas que se dedicou ao design foi Geraldo de Barros (SANTOS, 1995, p.26 e 27). A maioria dos autores da história do mobiliário moderno brasileiro a pensam a partir do eixo Rio/São Paulo, a exemplo de SANTOS, que aponta como um marco na instalação do móvel moderno a criação da loja Casa & Jardim no Rio de Janeiro, que divulgou o móvel moderno, valorizando os artesãos nacionais. Vendia “tudo o que era necessário em uma casa” (1995, p.49). Entretanto, entre os móveis comercializados nesta loja, queremos ressaltar a presença de mobílias e artefatos artesanais em fibras da fábrica de Martinho Schulz, do Paraná, sobre a qual vamos abordar nos capítulos seguintes. Sobre as fábricas ou lojas fora deste eixo, muito pouco se tem registrado ou pesquisado. Dos artesãos modernos, considerados como os que “deram a cara” ao design brasileiro moderno, projetando-o internacionalmente, SANTOS destaca: Joaquim Tenreiro, amante da madeira, pela qual expressa seus sentimentos e emoções, com refinamento técnico e muita sobriedade; Zanine Caldas, que apostou na industrialização como uma forma de baratear os móveis, utilizando no início o compensado como principal matéria prima, passando mais recentemente para a produção de móveis com toras brutas de madeira e Sérgio Rodrigues, que pensou no móvel como uma busca da identidade cultural brasileira (SANTOS, 1995). No Rio de Janeiro Sérgio Rodrigues fundou a Oca, que na visão de CALS, das representantes da produção do setor moveleiro “foi a mais profundamente comprometida com os valores e materiais da terra, tendo manifestado formas e padrões da cultura brasileira, numa 53 No período pós-1ª guerra, o Design passou a ser encarado como um projeto racionalista para reduzir custos, aumentar a produtividade e reconstruir a economia, valorizando o consumo. Na Alemanha, o conceito de criação e trabalho industrial é aplicado para “enobrecer o trabalho com a cooperação da arte, da indústria e do trabalho manual”, visando melhorar a qualidade dos produtos para a exportação (SCHULMANN, 1994, p. 13 a 18). A escola que marcou muito e ainda exerce influência no design industrial foi a Bauhaus, fundada na Alemanha por Walter Gropius. A escola “procurava criar uma arte capaz de alcançar com o mínimo custo, o mais alto nível artístico, ao mesmo tempo em que visava criar objetos destinados a todas as camadas sociais e não reservados a algumas elites”. Buscou resgatar um elo entre as artes e o fazer artesanal, de modo que o artesão pudesse dominar toda a produção (DORFLES, 1978, p. 136). O design alemão deste período foi marcado pelo forte conteúdo técnico e a valorização da funcionalidade. Os dois designers de móveis que provavelmente mais se destacaram na Bauhaus foram: Mies van der Rore e Marcel Breuer, que produziram móveis de metal (LUCIESMITH, 1997, p.177). 111 conseqüência direta das posturas do seu criador” (2000, p. 27). A mistura de elementos naturais, como a madeira (generosa e robusta), couro, fibras e tecidos, aliados ao metal, faz seus móveis carregarem forte simbolismo, revisitando nossa cultura tradicional, aliada à tendência modernista. A mais conhecida obra de Sérgio Rodrigues é a Poltrona Mole, de 1957, feita por encomenda para o fotógrafo Otto Stupakoff, para sentar e se “esparramar”. Foi uma obra que marcou por ter forte referência à cultura material brasileira, com percintas que remetem à rede e trançado do couro que alude ao catre. A estrutura em jacarandá é robusta, em oposição aos pés palito em voga na época (CALS, 2000, p. 50). FIGURA 13: Sérgio Rodrigues sentado em sua Poltrona Mole e os estudos do designer para sua confecção. FONTE: CALS, org., 2000, p.231 e 49, respectivamente. Citamos em especial o arquiteto Sérgio Rodrigues não de forma excludente dos demais designers da época, ou por considerá-los menos importantes, mas pela sua experiência particular que foi a instalação em Curitiba, em 1953, da loja Móveis Artesanal, que visava difundir o móvel moderno no mercado local. Recém formado em arquitetura, decidiu enveredar pelo design de móveis por não acreditar que os padrões ecléticos vigentes se adaptassem à linguagem nacional e ao modernismo emergentes. 112 FIGURA 14: Interior da loja Artesanal. FONTE: CALS, org., 2000, p.22. A loja localizada na Praça Carlos Gomes possuía uma vitrine que permitia vislumbrar o interior, com os móveis arranjados em ambientes modernos. A mesma concorria com as lojas de móveis de estilo, que representavam quase que a unanimidade das vendas neste período. O Paraná, Santa Catarina e o Rio Grande do Sul formavam nesta época um dos maiores pólos moveleiros do mobiliário clássico, de características ecléticas, ligados aos padrões dos imigrantes europeus aqui instalados (CALS, org., 2000, p.21). Estes estilos que ainda hoje têm muita força na produção paranaense coexistem, competem e mesclam-se com os estilos modernos. Na década de 50 o estilo eclético regional, marcado pela influência européia, refletiu o apego e o gosto das pessoas pela tradição, o que demonstra um processo de resistência à aculturação pelos imigrantes. No mobiliário, buscavam a segurança e a estabilidade nos estilos consolidados, sendo, portanto, o processo de aceitação do modernismo aqui no Paraná mais lento e híbrido. Estes estilos híbridos também são encontrados nos móveis da fábrica de Martinho Schulz, resultando no “ecletismo” que percebemos no mobiliário desta fábrica, que apresenta em imagens de catálogos e anúncios várias opções de modelos. Eles nos remetem 113 aos estilos Art Nouveau, Thonet, Biedermeier 54 , Art Déco, Bauhaus, Eclético, o que demonstra que o objetivo da fábrica era atender a vários padrões de demanda de consumo. É interessante a afirmação de CARNEIRO sobre a entrada dos estilos modernos e a resistência que encontram em Curitiba. Curioso é que a decadência, a desorientação estética que ocorreria em quase rodas as cidades brasileiras na segunda metade do século dezenove, sob a influência da Artes Vitoriana e do “Art Nouveau” só atingiu Curitiba alguns decênios mais tarde. Ficamos como que protegidos pelo artesanato imigrante que só vai se abastardando mais tarde no entrechoque com a diversidade de tendências resultantes da vinda de outras correntes imigratórias. Os efeitos negativos só seriam sentidos no começo do nosso século, ao contrário do que ocorreu no Rio, São Paulo e outros centros...(CARNEIRO, 1855, p. 13). Esta característica de considerar o novo como ameaçador e de mau gosto e a demora a aceitar as novas tendências e estilos é apontada por outros autores em relação ao mobiliário de Curitiba, considerado “clássico” e de padrão de produção conservador55. Refletir sobre a modernização dos estilos do mobiliário, especialmente do artesanal, também significa pensar que: “Todo estilo inovador tem que confrontar com a competição dos revivalismos ecléticos, com as cópias e as antiguidades” (LUCIESMITH,1997, p. 166). Cabe ressaltar que este trajeto dos estilos, a pertinência a determinadas épocas e a “modernização” do mobiliário não se apresenta como um processo linear. É cíclico e com fronteiras pouco definidas, havendo a coexistência e reinterpretações dos estilos, de acordo com os contextos aonde são produzidos ou consumidos. Há uma indissolubilidade do tempo com o espaço, como aponta BAKHTIN (2003). 54 O estilo Biedermeier foi talvez um dos desdobramentos mais interessantes do Neoclássico. Surgiu na Europa na primeira metade do século XIX, sendo principalmente difundido na Áustria e Alemanha, como uma reação dos artesãos ao gosto e ostentação relacionados ao estilo Império Francês. Pretendia mobiliar as casas burguesas (classe em ascensão) com uma versão mais simplificada e informal dos móveis de influência do Império, da Regência Inglesa e Louis XVI. Apresenta características mais funcionais, conforto e praticidade, ligados ao modo de vida dos burgueses, mais voltados à vida privada. Usa formas geométricas simplificadas como os prismas e cilindros, sendo os elementos decorativos reduzidos ao mínimo, apesar de ainda guardar uma certa tendência à monumentalidade do móvel. (LUCIE-SMITH,1997; Museu da Casa Brasileira, 1997). Este estilo influenciou a Europa Oriental, Rússia e Escandinávia, assim como o sul do Brasil, pela vinda dos imigrantes alemães e austríacos na segunda metade do século XIX. 55 Devido à proliferação de muitos estilos, inovações no século XIX, representadas pela Revolução Industrial, que gera conflitos de valores e culturais, há a busca de referências mais seguras, que segundo algumas pessoas está no passado, em estilos consolidados, resultando em um hibridismo de estilos nos ambientes e no mobiliário, que atendem a gostos e conveniências diversos. Este “historicismo”, no Brasil resgata elementos do Gótico, Barroco, Rococó, Romantismo, unidos a elementos mais recentes, que são adaptados de forma global e nem sempre harmônica (Museu da Casa Brasileira, 1997). 114 Sobre a modernização do processo de produção do mobiliário artesanal, os artesãos e proprietários de indústrias artesanais que foram entrevistados, principalmente os mais antigos no ramo, repetidas vezes se referiram à Fábrica de Móveis Artesanais de Martinho Schulz como a pioneira da modernização dos processos, das relações de trabalho, das técnicas, pesquisas de materiais, incorporação de maquinários e das estratégias de vendas dos produtos. Assim, resolvemos pesquisar mais a fundo e levantar dados sobre a fábrica de móveis Schulz, que apesar de ter encerrado suas atividades em 1970, ainda hoje faz parte do referencial das principais indústrias de Curitiba, que se espelham em seus produtos, que segundo alguns, nunca foram igualados. Por este motivo, elegemos esta empresa para aprofundar a análise da produção moveleira artesanal e o processo de modernização, apresentando os dados levantados no capítulo 4 e 5 da dissertação. 115 CAPÍTULO 4 IMAGENS E PROPAGANDAS DAS FÁBRICAS DE MÓVEIS ARTESANAIS DO PARANÁ, NAS DÉCADAS DE 30 E 40 DO SÉCULO XX. Neste capítulo iremos tentar trabalhar o diálogo permanente existente entre as teorias sobre as imagens, as propagandas, fotos e catálogos que encontramos sobre as fábricas de móveis artesanais de Curitiba e região sul do Brasil, nas décadas de 30 e 40 do século XX. Em conjunto com os depoimentos buscaremos fazer considerações sobre a história da produção artesanal com fibras, em especial da empresa de Martinho Schulz. Esta foi definida para estas aproximações, por além do fato de ser referência para as demais e apresentar maior regularidade e diversidade de anúncios nas revistas de produtos e serviços da época, ser a que, em nossa análise, melhor representou as tensões entre a tradição e modernidade no fazer artesanal de móveis com fibras em Curitiba. Para conduzir esta pesquisa, como o fundador da empresa, Martinho Schulz, já não é mais vivo, tivemos que recorrer aos relatos de funcionários, do genro e sócio, Erico Meissner e principalmente utilizarmos a análise de imagens, tanto de propagandas, como de catálogos e fotos, para, em conjunto a estas pessoas que têm a memória deste período, construir um fio condutor que nos guiasse pelos caminhos percorridos por esta indústria. Para compreendermos as transformações e permanências na produção e circulação da indústria artesanal moveleira com fibras de Curitiba e da fábrica de Móveis Schulz, além das entrevistas e da consulta à bibliografia existente sobre o assunto, um material que nos facilitou a reconstrução histórica dos processos, técnicas, relações de produção e comercialização das fábricas de móveis artesanais do período em estudo, foram as propagandas, relativas às empresas, veiculadas em revistas de divulgação de produtos, serviços e anuários propagandistas do Paraná e região sul (incluindo São Paulo), assim como as imagens fotográficas e catálogos das empresas. As imagens, em diálogo permanente com as entrevistas e as teorias, se constituíram na principal fonte referencial para a construção simbólica e contextualização das indústrias na época em estudo. Para proceder as análises, partimos das imagens encontradas, contextualizando-as historicamente, socialmente e culturalmente e conversando com os artesãos que as significaram de acordo com suas memórias e percepções. 116 4.1 – Análise a partir de teorias da imagem, das representações da modernidade expressas nos anúncios do início do século XX. No registro e uso das imagens, especialmente nas fotografias, buscamos ter em mente que as mesmas transmitem múltiplos significados que devem ser negociados culturalmente. Tanto quem faz parte da imagem, quem a captura, assim como os receptores (leitores), participam de uma criação conjunta, a partir do imaginário social. Quem produz as imagens, pode: no enquadramento; seleção de cenas; silêncios e ausências, dar eloqüência e evocar a memória individual e coletiva. SAMAIN aponta em suas análises que “as imagens não são uma extensão da realidade, mas sim uma criação interpretativa que é fruto de um imaginário social, que, ao mesmo tempo, engendra outros que podem até mesmo vir a ser transformados em realidade” (SAMAIN, 1998, p.117). Para o autor as imagens estão presentes em todas as formas de comunicação e informação, socializando as representações do imaginário dos indivíduos. Podemos nos deixar sensibilizar pelas imagens como meros expectadores, trabalhar estas imagens modificando-as, ou ainda nos deixar trabalhar pelas mesmas mudando nosso comportamento, o que aumenta a responsabilidade do pesquisador na forma de construir e apresentar as imagens. Esta construção faz com que os suportes visuais nas análises antropológicas se diversifiquem e não sejam excludentes ou complementares, mas enriquecedores pela multiplicidade e diversidade de formas de perceber o objeto de estudo (SAMAIN, 1998, p. 61). O registro e a interpretação de imagens nas pesquisas que envolvem as culturas e o artesanato são fundamentais por aflorar a memória e a tradição das comunidades, permitindo documentar os processos de produção artesanal e as suas transformações. A compreensão das imagens depende da forma de apresentação e da aproximação dos repertórios dos produtores e dos receptores, que são distintos, dependendo do saber adquirido ao longo da vida. O sentido das fotografias é dado na “experiência referencial”, ou seja, a significação da fotografia não está só na relação com o objeto real (referente), mas também na construção do significado baseado na cultura, sendo que ... o princípio do traço por mais essencial que seja, marca apenas um momento no conjunto do processo fotográfico. De fato, a jusante e a montante desse momento de inscrição “natural” do mundo sobre a superfície sensível, existe de ambos os lados, gestos completamente “culturais”, codificados, que dependem inteiramente de escolhas e de decisões humanas (Antes: escolha do sujeito, do tipo de aparelho, da película , do tempo de exposição, do ângulo de visão etc. – Depois: todas a s escolhas repetem-se quando da revelação e da tiragem, em seguida a foto entra nos 117 circuitos de difusão, sempre codificados e culturais – imprensa, arte, moda, pornografia, justiça, família...) (DUBOIS, 1993, p. 51). Para DUBOIS, a “foto é em primeiro lugar índice. Só depois ela pode tornar-se parecida (ícone) e adquirir sentido (símbolo)” (1993, p. 53). Esta posição é adequada às análises sociais, pois neste campo de pesquisa, a imagem fotográfica é entendida como responsável pela produção de uma “síntese peculiar entre o evento representado e as interpretações construídas sobre ele, estando esta correspondência sujeita às convenções de representação culturalmente construídas” (FELDMAN, 1998, p.199). Espaço e tempo também interagem na construção e compreensão das imagens. Entendemos que a fotografia é uma composição do olhar do fotógrafo, do ator social presente na imagem e do leitor, podendo expressar na sua forma de construção “declarações”, que são representações do autor, ou “entendimentos”, na interação na recepção da imagem. Como aponta BAKHTIN, a visão do outro faz parte da imagem numa relação de reciprocidade. A realidade pesquisada sempre é múltipla e a sua compreensão só se dá na relação (1995). As revistas escolhidas para a análise das propagandas e das imagens de móveis artesanais são do início do século XX, mais precisamente na década de 30 e 40, veiculadas no Paraná. Os anúncios selecionados são referentes às fábricas de móveis da região Sul, em especial das fábricas do Paraná que trabalhavam com fibras naturais, como junco, vime e cipó. Estas fontes de pesquisa foram fundamentais para percebermos o foco das empresas anunciantes, suas formas de atuação e produtos ofertados, bem como as relações sociais e as representações simbólicas expressas nas imagens, em diálogo com os textos. As análises das propagandas veiculadas nas revistas paranaenses serviram para percebermos o destaque da fábrica de móveis de Martinho Schulz, que publicou anúncios regularmente nestas duas décadas, sempre mudando as imagens e a forma de apresentação, diferentemente das demais fábricas de móveis, que além de não manterem uma periodicidade, repetiam os mesmos anúncios em todas as revistas analisadas. As análises possibilitaram contextualizar a empresa no cenário local e global, refletindo e refratando, pela imagem e texto escrito, os ideais modernizadores e a tradição presente no fazer artesanal. As fotos dos anúncios, bem como as dos catálogos da empresa apresentam a variedade dos artefatos produzidos, os materiais e técnicas envolvidas na 118 produção, como exemplificado na figura seguinte, de um dos anúncios da empresa, publicado no “Anuário Propagandista Sul do Brasil”, de 1934. FIGURA 15: Anúncio veiculado em revista, com um ambiente produzido por Móveis Schulz. FONTE: “Anuário Propagandista Sul do Brasil”, 1934, p. 264. Como já citamos no capítulo anterior, por não ter sido possível entrevistar o proprietário da empresa, já falecido, o diálogo com os artesãos contemporâneos, a partir de imagens apresentadas, possibilitou a reconstrução do histórico da empresa, sendo que estes relatos também revelaram aspectos fundamentais para analisar as relações tecnológicas e culturais envolvidas no processo de produção, circulação e consumo dos móveis artesanais do início do século XX em Curitiba, podendo ampliar estas análises para o Estado do Paraná. Além das propagandas da fábrica de Martinho Schulz foram analisados os catálogos, que apresentavam as linhas de produtos. Possivelmente estes catálogos foram feitos baseados em outros, importados da Alemanha, encontrados entre os documentos e fotos da empresa. Não tivemos oportunidade de aprofundar esta investigação, entretanto, podemos apontar este fato pelas relações de hibridação presentes tanto na produção, como nas formas de divulgação e comercialização dos produtos. Na figura a seguir, apresentamos o catálogo de móveis artesanais em fibras naturais de uma empresa alemã que trabalhava com exportação, com data provável de aquisição em 1928, segundo uma anotação interna feita a mão. O catálogo está carimbado com o nome da fábrica de Martinho Schulz. 119 FIGURA 16: Catálogo de móveis artesanais em fibras naturais de uma empresa alemã. FONTE: Catálogo do acervo da família Túlio. Neste período, em todo o Brasil há a busca do desenvolvimento e do progresso para inserir o país em uma nascente economia globalizada, assim, a urbanização das cidades, a industrialização e o “grande fluxo de imigrantes estrangeiros, [acabam] reconfigurando o padrão demográfico e cultural do país” (SEVCENKO, 1998, p.34). No final do século XIX e início do século XX, até a primeira guerra mundial, como coloca SEVCENKO, na Europa e Estados Unidos há uma euforia devido ao crescimento econômico desencadeado pela revolução Científico Tecnológica. Este período conhecido como “Belle Époque” teve um correspondente brasileiro, a “Regeneração”, que é um projeto das elites, que acreditavam que o “país havia se posto em harmonia com as forças inexoráveis da civilização e do progresso” (SEVCENKO, 1998). A instauração de um novo regime, o republicano, e o afã modernizador baseado nos princípios de racionalidade técnica, visavam romper com o passado histórico e as tradições, estabelecendo uma nova ordem e nova visualização das cidades e pessoas. O alvorecer do século XX esboça, sob certo ponto de vista, uma outra modernidade. A expansão do mercado, o aumento da produção, a explosão das técnicas 120 impulsionam uma redobrada intensidade do consumo e do intercâmbio. Os cartazes publicitários exaltam o desejo. As comunicações instigam a mobilidade. Trem, bicicleta, automóvel, estimulam a circulação de pessoas e coisas. Cartões postais e telefonemas personalizam a informação. A capilaridade das modas diversifica as aparências. A foto multiplica a imagem de si. Um fogo de artifício de símbolos que, às vezes, dissimula a imobilidade do cenário (PERROT, citada por QUELUZ, M., 2003, p. 189). Apenas os grupos de elite são beneficiados com este projeto modernizador, sendo as classes populares excluídas destes planos, obrigadas a buscar espaços alternativos de moradia, sendo expulsas dos centros urbanos. Assim, se viram compelidas a buscar formas de expressão cultural de resistência e de inserção nesta “modernidade”. Muitos canais foram utilizados pelo capitalismo para “mascarar” estas relações excludentes, ofertando imagens e artifícios, como exposições, que mostram o sistema como um espetáculo possível a todos. Esta ilusão buscava “uma harmonia social, tendo no proletariado o produtor e cliente desta imagem ofertada” (PESAVENTO, 1997, p. 47). No cenário mundial é a partir do final do século XIX que a publicidade passa a ser um destes artifícios ilusórios, segundo PESAVENTO se referindo ao que BENJAMIN aponta sobre o consumo. A publicidade é o artifício que permite ao sonho impor-se à indústria e é ainda por ela que as pessoas se prendem ao sonho. Tais técnicas de propaganda e publicidade utilizam toda persuasão e as “argúcias teológicas” da mercadoria para se imporem, convencerem, seduzirem. Artifício de sedução social, a publicidade e a propaganda não são pura criação ou arbitrariedade imposta: elas se apóiam em tendências latentes, em desejos manifestos, em inclinações não implícitas, mas detectadas e as manipulam, induzindo ao consumo, à aceitação, ao maravilhamento (PESAVENTO, 1997, p. 49). Esta nova concepção de estimular o consumo pela publicidade foi alavancada no Brasil para divulgar os produtos nacionais. Nas análises de Sevcenko, esta época, da Belle Époque brasileira, (aproximadamente de 1900 a 1920, no período da grande guerra européia), assinalou no país a introdução de novos padrões de consumo, instigados por uma nascente mas agressiva onda publicitária, além desse extraordinário dínamo cultural representado pela interação entre as modernas revistas ilustradas, a difusão das práticas desportivas, a criação do mercado fonográfico voltado para as músicas ritmadas e sensuais e, por último mas não menos importante, a popularização do cinema (SEVCENKO, 1998, p. 37). A divulgação e propaganda através dos meios de comunicação passaram a ser um importante fator que acompanhou o crescimento industrial nacional que se acentuou muito 121 neste período devido à necessidade de criar indústrias para substituir a importação de produtos estrangeiros, abalada pelas guerras internacionais. Nas imagens veiculadas pelos anúncios era ressaltado o poder criativo do homem, o crescente potencial de inovação das indústrias e a capacidade administrativa dos empresários. Exaltava uma idéia de exemplo do sistema de fábricas, conjugado com a ordem e harmonia da sociedade burguesa, além do progresso técnico (PESAVENTO, 1997, p. 49). Às mensagens de venda, segundo Marilda Queluz, são incorporados os desenhos (principalmente as caricaturas) e as fotografias, passando os mesmos a serem o principal chamariz nos anúncios publicitários, que passaram a ter uma veiculação mais regular nas revistas, já a partir de 1860 (QUELUZ, 2003, p.192). FIGURA 17: Anúncios veiculados em revistas de São Paulo, no final do século XIX e início do XX, respectivamente, utilizando a caricatura como elemento de divulgação. FONTE: ‘A Revista”, 2000, p.203 e 204. No início do século XX, a publicidade passou a aproveitar-se dos avanços técnicos da imprensa, responsáveis pela qualidade gráfica das ilustrações e das fotografias, além da exuberante novidade que foi a impressão em cores. Grandes nomes da caricatura e da ilustração foram chamados para conceber anúncios “...Era pitoresca a propaganda nas primeiras décadas do século XX. Ingênuos e adjetivados, tratando o leitor com um formalíssimo “vós” os “reclames” como eram chamados, ofereciam enorme variedade de mercadorias e serviços, de acepipes europeus a vaga de cozinheiras..” (A REVISTA, 2000, p. 203). 122 No anúncio da figura seguinte, de uma fábrica de móveis de vime de Curitiba, no texto: “V. As. Encontrará nesta fábrica qualquer typo de móveis...Queira V. Excia. ter o prazer de fazer uma visita a vossa casa”, percebemos a utilização das formalidades no tratamento e a oferta variada de produtos citadas por “A REVISTA”. Também a exposição das novidades em um ambiente convida o leitor a apreciá-lo, como em uma vitrine. FIGURA 18: Anúncio de uma fábrica de móveis de vime, de Curitiba, Darcie e Cia. FONTE: Livro Azul da cidade de Curitiba, 1938/39, p. 72. Estes anúncios das revistas, formatados como vitrines, nos fazem olhar através deles e vislumbrar as mercadorias como se estivessem dispostas em um ambiente para serem apreciadas. As novidades são ressaltadas pela imagem e pelo texto, que dirigem o olhar para o consumo da mercadoria (QUELUZ, 2000, p. 50). A difusão de novas técnicas, possibilitou pela impressão, a reprodução de imagens fotográficas, através dos processos de “fotolitogravura, a fototipia e a cromofototipia”, popularizando a reprodução das imagens (SCHAPOCHINIK, 1998). Surgem nesta época os cartões-postais utilizados como uma exibição dos ícones arquitetônicos das metrópoles, exaltando a modernidade. Conforme cita SCHAPOCHINIK, foi o fotógrafo suíço radicado no Brasil, Guilherme Gaensly, o primeiro a documentar a modernização de São Paulo, retratando a metrópole nos postais segundo uma visão de modernidade encomendada pelo Estado, a pedido do Conselheiro Antonio Prado. 123 Através de um processo de seleção de imagens, mostra versões europeizadas da metrópole que reforçassem esta visualização progressista e modernizadora da época (SCHAPOCHINIK, 1998). FIGURA 19: Estação da luz em São Paulo, um dos ícones da modernização retratado em cartão postal. FONTE: SEVCENKO, 1998, p.452. As fotos familiares, produzidas em cenários nos estúdios, têm uma característica de preservar para a memória futura as imagens do presente, com uma forte carga emocional embutida, embora muitas vezes sejam simulações que representam símbolos de status e maneiras das pessoas serem vistas como parte integrante da modernidade. FIGURA 20: Lembrança de 1938, colocando as pessoas dentro de um dos símbolos da modernidade, o dirigível. FONTE: SHAPOCHNIK, 1998, p. 447. 124 Assim como as pessoas querem ser vistas, as fotos das propagandas seguem as tendências de mostrar os produtos neste novo contexto capitalista, incitando ao consumo de artefatos representativos da modernidade e urbanização, sendo o mobiliário uma parte fundamental deste novo modo da classe burguesa se relacionar e de ser visto nas metrópoles. 4.1.1 - Os modos de viver e os móveis do início do século XX: as imagens dos anúncios publicitários e o consumo dos móveis As formas de viver e morar refletem e refratam as relações sociais e culturais dos povos frente às representações do contexto da época. A inserção no capitalismo e os ideais de modernidade alteram as relações simbólicas e materiais envolvidos nos artefatos domésticos. Com relação à forma de morar burguesa, os interiores das moradias sofrem alterações, passando a ter cômodos específicos para cada atividade doméstica, como: sala de estar, jantar, cozinha e quartos. Os móveis dos ambientes refletem estes novos padrões de moradia, se diversificando e tendo funções mais específicas, transformando o local privado da burguesia em um refúgio, em oposição ao local público. Estas relações entre os cômodos da casa, devido a esta divisão de acordo com funções específicas: comer, dormir, receber, etc. podem ser percebidas no anúncio a seguir, que foi veiculado em uma revista do Paraná. Nesta propaganda há uma preocupação em ressaltar a importância de “selecionar os aposentos para vossa casa”, como ressaltado no texto que compõe com a imagem do anúncio. 125 FIGURA 21: Anúncio de móveis feitos em cipó e vime, da fábrica da viúva José Wenz. FONTE: Folhinha Propagandista Sul do Brasil, 1932, p.109 Os anúncios das revistas abusavam dos textos exaltando as vantagens e as qualidades dos artefatos, utilizando slogans bastante adjetivados, visando seduzir os consumidores para a aquisição dos produtos das indústrias nacionais, colocadas como símbolos da modernidade e progresso do país. Nestes “reclames”, além dos textos era apresentada uma fotografia de um ambiente composto com artefatos produzidos pela fábrica neste período e alguns objetos decorativos. O uso de fotos era ainda um fato pouco comum, pois os anunciantes ainda tinham o hábito preferencial de apresentar imagens através de ilustrações, como representado na propaganda da figura a seguir, da Fábrica de Móveis Amalfi. 126 FIGURA 22: Anúncio de uma fábrica de móveis, ainda utilizando a ilustração como recurso técnico. FONTE: “Anuário Propagandista do Sul do Brasil”, 1936, p. 248. Cada empresa procurava chamar a atenção para seus produtos principais, entretanto, percebe-se pelos textos que as mesmas se propõem a produzir qualquer tipo de móvel que o cliente desejar. Nas décadas de 30 e 40 há um investimento estratégico das indústrias do Paraná em anúncios publicitários, pois a modernização da cidade, o enriquecimento das elites cafeeiras, do mate e dos industriais instalados no Estado, proporcionou um crescimento imobiliário que, conseqüentemente, aumentou a demanda por mobiliário e demais artefatos para as residências. Focamos nossas análises dos anúncios principalmente nestas duas décadas, por motivos já expostos, entretanto, é importante registrar a mudança ocorrida nos anúncios publicitários nos anos 50, refletindo um novo estilo de vida, do “American way of life”, ditando novos padrões de consumo dos bens industrializados, representativos do “modo moderno” de “ser”, ligado ao “ter”. Estes padrões de consumo são ditados pela moda e divulgados em revistas, pelo cinema, rádio e também pela recém inaugurada televisão. Esta tendência inverte inclusive os padrões de mostrar a sociedade. A imagem da família grande, com um pai trabalhador, uma mãe dedicada ao lar e vários filhos brincando na rua, passa a ser de uma família composta por pai, mãe e dois filhos (de preferência uma menina e um menino). O pai dos anos 50 é um estereótipo dos galãs de Hollywood, representado dentro de um carro possante ou praticando um hobby. A mãe é esquálida, bem arrumada, postada em frente de uma penteadeira cheia de cremes e cosméticos, ou, manuseando um 127 eletrodoméstico, facilitador de sua vida moderna. Os filhos já não estão mais na rua, mas dentro de casa, em frente à televisão. Este “retrato do que se concebe como ‘vida moderna’ é permeado pelo consumo de bens industriais” (MAGALHÃES, 2001, p. 50). Estas representações do consumo ligadas ao gênero têm sido objeto de estudo de muitos pesquisadores, pois estabelecem e reforçam estereótipos que são reproduzidos historicamente e socialmente nas esferas da produção e consumo dos artefatos. Entendemos os artefatos como “mediadores entre as pessoas, e entre estas e a cultura material [assim,] assumem funções (simbólicas, de uso e técnicas, entre outras) e significados particulares para cada indivíduo e sociedade, refletindo e influenciando a construção de seus valores, referências, pensamentos e ações, e contribuindo para a satisfação de suas necessidades” (ONO, 2005). Sendo vinculados ao contexto histórico, cultural e econômico das sociedades, os artefatos podem transformar e serem transformados nas relações de consumo, alterando ou reforçando as questões de gênero56. Nas propagandas de móveis que analisamos, ainda não há a preocupação em introduzir certos ícones “femininos” da modernidade no cenário, como os eletrodomésticos, tidos como os principais “facilitadores” da vida doméstica, entretanto, os móveis e elementos decorativos que aparecem nas fotos são considerados voltados ao público feminino, já que o espaço doméstico é considerado “coisa de mulher” (ONO, 2005). Nas fotos de períodos posteriores, a partir de 1950, aparecem nos catálogos de Móveis Schulz móveis para acomodar, por exemplo, o rádio, um ícone da vida moderna, ocupando lugar de destaque no cenário (figura 50). Considerando estas relações expressas nas propagandas, pretendemos no item seguinte, analisar os anúncios da fábrica de Móveis Schulz, considerando o contexto da época, os recursos tecnológicos disponíveis e as representações da modernidade e do consumo que estão refletidos e refratados nas imagens apresentadas, assim como nos textos e slogans presentes na publicidade dos móveis. 56 Uma pesquisa a ser apontada, por se relacionar diretamente com este tema, foi apresentada pelas pesquisadoras Maristela Ono e Marília Gomes de Carvalho, nos “Cadernos de Gênero e Tecnologia”, nº 1, 2005, p. 9 a 30. 128 4.2 - As relações entre texto e imagem nas propagandas veiculadas pela fábrica de Martinho Schulz, nas décadas de 30 e 40. As análises das imagens, dialogando com os textos e os depoimentos dos artesãos sobre as relações de produção, circulação e consumo dos móveis, à luz do contexto da época (décadas de 30 e 40, do século XX), auxiliaram a compor uma fragmentária, mas representativa narrativa da história do móvel artesanal em Curitiba. Esta reconstrução é possível, pois, as propagandas sempre se referem ao contexto social em que estão inseridas, refletindo e refratando o que está circulando socialmente, bem como reforçando padrões que se quer que sejam consumidos. Quando se fala em pensar o que as propagandas mostram, significa identificar quais são os padrões utilizados nos contextos das propagandas. Contextos que simbolizam através da utilização de signos para representar e compor funções sociais nelas presentes. As imagens das propagandas são representações visuais. O mundo das imagens se divide em dois domínios: O primeiro é o domínio das imagens como representações visuais: desenhos, pinturas, gravuras, fotografias e as imagens cinematográficas, televisivas, holo e infográficas pertencem a este domínio. (...) O segundo é o domínio imaterial das imagens da nossa mente, (...) imagens aparecem como visões, fantasias, imaginações, esquemas, modelos ou, em geral, como representações mentais (SANTAELLA & NÖTH, citado por TROTTA et al., 2003, p. 132). A propaganda assim analisada se compõe de um conjunto de elementos materiais, como: imagens, textos e elementos imateriais: desejos, imaginações, que interagem induzindo ao consumo dos artefatos. Nas análises de propagandas, em geral, os textos e as imagens interagem. Buscamos nas imagens “pistas” para a interpretação dos significados construídos e atribuídos dentro dos contextos particulares e coletivos. Na verdade são considerados, “uma série de contextos no plural (cultural, político, material, e assim por diante), bem como os interesses do artista e do patrocinador original ou do cliente, e a pretendida função da imagem”. As imagens, “dão acesso não ao mundo social diretamente, mas sim a visões contemporâneas daquele mundo” (BURKE, 2004, p. 236). Conforme colocamos no início do capítulo, as imagens tinham uma função muito particular para compor com o texto escrito nas propagandas, sendo mais comum o uso das ilustrações, principalmente das caricaturas. Quando passa a ser utilizada a fotografia, em um primeiro momento a mesma é considerada, como argumenta Dubois, um espelho do real, mimese do meio, uma representação do real, do verdadeiro, um congelamento da memória. A 129 fotografia como mimese, registra um momento que queremos apreender como prova de que existe ou capturar o presente para o vivenciarmos no futuro (DUBOIS, 1993). Acreditamos que este papel da fotografia como testemunho do real, retratando e reforçando a realidade, pode ter sido utilizado para mostrar a qualidade dos produtos, remetendo o leitor a uma relação da imagem fotográfica com seu referente: o móvel produzido pela fábrica e também para evocar a idéia de uma vitrine, expondo os produtos. A fotografia é que assume o papel de registrar a memória e de ser documental, reforçando a noção da veracidade do que é apresentado, sendo, portanto, mais indicada para cumprir este papel do que a ilustração através do desenho. Em suas teorias BAZIN enfatiza esta relação da imagem com seu referente. Segundo o autor a foto transfere a aparência do real para a película. Ela é um índice antes de ser um ícone. A sua “gênese automática” reafirma a existência do passado do objeto retratado (citado por DUBOIS, 1993). Também BARTHES alude a ligação da imagem com seu referente, pela afirmação de que a imagem é “uma mensagem sem código”, uma referencialização. Ela indica que “a coisa esteve ali”, na essência ou como pura denotação (BARTHES, 1990). A foto não é exatamente a cópia do real, mas seu analogon perfeito57. Para o autor a palavra ou o texto escrito racionaliza e enfatiza a imagem. Neste sentido, o texto do anúncio seria um reforço complementar à imagem do ambiente retratado. Para DUBOIS o sentido das fotografias só é dado na “experiência referencial”, ou seja, a significação da fotografia não está só na relação com o objeto real (referente), mas também na construção do significado baseado na cultura. Também acreditamos que este posicionamento é válido, pois muito além de apenas ser uma mimese, um documento que referencia a realidade concreta, a fotografia expressa os significados construídos pelos envolvidos tanto na produção, como na leitura feita pelos receptores no momento da decodificação da mensagem transmitida pela imagem (DUBOIS, 1993). Esta leitura, ou contemplação da imagem revela um traço, uma referenciação excepcional, sugerindo que “quando olhamos uma fotografia, não é ela que vemos, mas sim outras que se desencadeiam na memória, despertadas por aquela que se tem diante dos olhos” (LEITE, citada por SCHAPOCHINIK, 1998, p.460). Para efetuar a análise da imagem deste anúncio, além de nos remetermos às teorias sobre a fotografia e suas relações com os textos escritos, também recorremos ao diálogo sobre as mesmas, com pessoas que participaram destes contextos. Partindo do que 57 Para aprofundamentos sobre o tema ler o artigo de SILVEIRA, Luciana M., em: QUELUZ,Gilson L.[et al.]. Tecnologia e Sociedade: (Im)Possibilidades. Curitiba: Torre de Papel, 2003. 130 coloca FOUCAULT: “o que vemos nunca está no que dizemos” (BURKE 2004, p.43), acreditamos também que: o que dizemos, por vezes, é muito mais do que vemos, portanto, o relato feito pelos artesãos que de alguma forma tiveram contato com a produção da fábrica de móveis de Martinho Schulz nos esclarece aspectos do cotidiano da empresa, suscitando a memória passada, remetendo a outras situações, indo além do “conteúdo verista ou a realidade figurada na fotografia” (SCHAPOCHINIK, 1998, p.459). Buscamos por este diálogo mediado pelas imagens compreender em conjunto os significados atribuídos aos móveis e sua apresentação no anúncio. Na análise das imagens dos anúncios percebemos uma intenção, inicialmente, de mostrar os produtos reais através da fotografia de um ambiente. Os interiores domésticos, nas suas representações (pictóricas ou retratos), sempre apresentaram uma necessidade muito forte do “efeito realidade”, como se fossem instantâneos que nos conduzissem diretamente para aquele lugar no passado (BURKE, 2004, p.107). A primeira análise que faremos é referente a um anúncio da fábrica de móveis de Martinho Schulz, publicado em uma revista de divulgação de serviços e produtos, o “Livro Azul da Cidade de Curityba”, de 1936. O texto presente no anúncio nos revela uma característica das propagandas da época, que é o uso bastante comum e exagerado de slogans para se referir às principais características dos produtos anunciados, fazendo apelo ao consumo pelas características mais marcantes dos mesmos. Com relação à apresentação formal dos anúncios, é difundido o uso de ornamentos e orladuras requintadas os emoldurando, tradição que vem dos passe-partout, usados para valorizar as fotos familiares (SCHAPOCHNIK, 1998, p. 464 e 465). 131 FIGURA 23: Anúncio publicado em uma revista de divulgação de serviços e produtos, com textos e fotografia referentes à fábrica de móveis de Martinho Schulz. FONTE: “Livro Azul da Cidade de Curityba”, 1936, p. 65. O texto apresentado demonstra a intenção de ressaltar a qualidade dos produtos e dos serviços da fábrica, revelado pelo slogan colocado no pé do anúncio: “Não é a maior mais a melhor”. A propaganda tem elementos que nos remetem às características do acabamento esmerado dos móveis, que são citadas ainda hoje, fato que pudemos perceber através das entrevistas realizadas com artesãos que participaram do dia-a-dia da referida fábrica e até por outros que atuam na área, mas não foram contemporâneos de Martinho Schulz. Você se visse não acreditava que era feito à mão (artesanato). Acha que é uma máquina que fez, e não, era tudo de vime feito à mão. Aquilo era arte! Arte! E hoje ninguém faz mais assim, ... igual à dele não ! Bem feito, perfeito!... Aquilo era uma coisa bem feita, você admirava! Você olha e vê que aquilo era uma perfeição! (FERRO, entrevista, novembro de 2004). A qualidade e a modernização dos processos e serviços a que se referiram os artesãos nas entrevistas marcaram por ir além da realidade produtiva e de divulgação dos artefatos dos demais artesãos contemporâneos de Martinho Schulz, em Curitiba. 132 Dentre os novos recursos apontados como fatores que “modernizaram” e “inovaram” a produção de móveis na época, são destacados pelos entrevistados: as técnicas de produção implantadas; a utilização de novos materiais como vernizes especialmente desenvolvidos para as peças e armação de ferro para os móveis; a pesquisa para o plantio de vime, buscando melhor qualidade pela modificação do solo; a mistura de materiais diversos, como vime, junco, cipó, madeira, fórmica e tecidos e a forma de gestão do processo de produção visando à qualidade dos artefatos. É preciso sempre relativizar estes conceitos de modernidade e inovação apontados nas entrevistas e nos textos apresentados. Para entender a modernidade pensamos na mesma não só como estratégias hegemônicas, mas como a reestruturação econômica e simbólica dos cidadãos, imigrantes, trabalhadores, para reformular suas culturas frente a novas tecnologias de produção, sem abandonar as crenças antigas. CANCLINI em suas análises nos aponta que o desenvolvimento moderno não suprime as culturas populares tradicionais, havendo sempre a inovação na tradição (CANCLINI, 1989). Neste sentido, os artesãos de Curitiba, no início do século tiveram uma certa resistência em mudar suas tradicionais formas de produção, que se resumiam basicamente à cestaria. O processo de inserção nos “padrões de modernidade” ditados pelo capitalismo, na época foi incorporado por poucos empresários da área, sendo um deles Martinho Schulz. Este processo de resistência é normal, pois a manutenção da tradição é uma forma de preservar a cultura de um povo. Entretanto, a reformulação e interação com a modernidade se mostraram essenciais para a inserção social e econômica das comunidades de imigrantes, assim, os artesãos de Santa Felicidade, compelidos pelas novas demandas, passaram a buscar novas alternativas de produção, além da cestaria e baús. A variedade de produtos foi colocada como uma vantagem da fábrica Schulz em suas propagandas, oferecendo todos os tamanhos e estilos de carrinhos para bonecas e móveis. Esta característica de criação de uma linha de produtos com vários estilos, tamanhos e materiais pode ser percebida nos catálogos de produtos da empresa, que apresentam uma quantidade enorme de variações e possibilidades de produção, estando representada no anúncio da figura apresentada anteriormente, quando lemos, que na fábrica de móveis Schulz pode-se encontrar “tudo para MOBILIAR vossa residência”. Também o texto da propaganda anuncia as inovações para uma linha de seus produtos, os “carrinhos para crianças typo Brasil”, que passam a ter um diferencial que são as “molas duplas”. 133 FIGURA 24: Carrinho “tipo Brasil”, de molas duplas. Um dos principais produtos da fábrica de móveis Schulz. FONTE: Foto original do catálogo de Móveis Schulz, cedido por Móveis Desigan. Estas molas duplas e outras ferragens utilizadas nos móveis eram importadas ou confeccionadas especialmente para o seu uso, demonstrando a preocupação da indústria em procurar soluções que favorecessem a produção e a inserção dos produtos no mercado de consumo. A ampliação das possibilidades produtivas, tanto pela introdução de novos produtos, que até então se resumiam a cestos, cadeiras, berços e carrinhos de bonecas, como pelo uso de novas tecnologias, como as “molas duplas”, a estrutura de ferro, estratégias na esfera da circulação e demandas estimuladas no consumo, representaram uma modernização para o setor artesanal com fibras de Curitiba. Entretanto, no mesmo anúncio permanece a intenção de manter a tradição de produzir os “já afamados carrinhos para crianças”, que eram representativos de uma tradição que não se pretendia abandonar. Esta questão da tensão entre modernidade e a tradição transparece em todo discurso sobre o artesanato, estando retratada nos anúncios analisados. 134 No texto do anúncio, percebemos a preocupação em valorizar aspectos que são considerados fundamentais na produção da empresa, como a qualidade dos produtos e a valorização do trabalho do artesão e de sua prática no ramo. Com relação à valorização do trabalho, o uso no texto da frase: “pessoal com longos annos de prática neste ramo”, indica que o conhecimento das técnicas e a experiência profissional são fatores fundamentais para a produção dos móveis. FIGURA 25: Anúncio publicado em uma revista de divulgação de serviços e produtos, com textos e fotografia referentes à fábrica de móveis de Martinho Schulz. FONTE: “Anuário Propagandista do Sul do Brasil”, 1936, p. 62. A imagem apresentada na figura acima é uma sala, feita em vime, com a mistura de outros materiais, como a madeira pintada. É muito difícil analisarmos os móveis artesanais inserindo-os em períodos ou em estilos de épocas, pois pelas características de sempre dialogar entre a modernidade e a tradição, acabam tendo uma forma bastante eclética, misturando tendências e estilos, de acordo com os contextos aonde são produzidos e circulam. O ecletismo se apresenta como uma possibilidade para atender as demandas diversas, ofertando artefatos para todos os gostos, por isto há a sensação de mistura de estilos na produção das fábricas de móveis. HESKETT cita o caso da fábrica do Soho, de Boulton, que por volta de 1761 produzia tanto artefatos em massa para atender um mercado da moda, mais volátil e outros e acabamento artesanal mais elaborado para a clientela “mais seleta”. Neste sentido o ecletismo era uma demanda comercial, sendo assim, produzia jarros rococó, candelabros neoclássicos, ou o que o mercado exigisse, exibindo uma grande variedade de opções (HESKETT, 1997, p. 14).Também sentimos nesta vertente a produção “eclética” de Martinho Schulz, que é apresentada nos anúncios. 135 Sobre o ecletismo no Brasil, em uma narrativa traduzida pela memória e o imaginário de uma criança, podemos perceber esta característica eclética presente especialmente nos palacetes da burguesia no início do século, principalmente nos espaços destinados ao convívio social, que deveriam ostentar a posição privilegiada do morador. Assim, o autor, Guilherme de Almeida, demonstra no passeio que faz pelo passado, que percebia os espaços domésticos públicos (aqueles destinados às recepções), ricamente ornamentados, à moda européia, visando a ostentação para o círculo de amizades. Estes salões, que recebiam especial atenção, eram ricamente decorados com móveis de estilo Luís XV e Luís XVI, com cristais, pratarias, cortinas pesadas, papéis de parede, quadros e outros objetos que expressavam simbolicamente o prestígio dos moradores. As “marcas individuais”, da família eram representadas em monogramas das toalhas, guardanapos, ricamente bordados. (SCHAPOCHNIK, 1998, p.495 a 510). FIGURA 26: Ambiente da Belle Époque, de uma residência do Rio de Janeiro, em 1905. FONTE: SEVCENKO, 1998, p. 138. A intimidade e personificação dos cômodos destinados à família exibia pelos objetos decorativos, ornamentos e monogramas nas roupas de banho e de quarto, formas de individualizá-los. Os espaços íntimos eram divididos em femininos e masculinos, com profusão de móveis para diversas funções (SCHAPOCHNIK, 1998). O autor aponta que ocorreu mais intensamente nos anos 30, 40 o início da decadência deste estilo no Brasil, com a introdução do modernismo. Estes refúgios intimistas começaram a ceder lugar aos espaços de convívio socializado. Assim, os móveis antigos, 136 foram substituídos e as louças e pratarias adormecidas nos armários (SCHAPOCHNIK, 1998, p. 511). Para exemplificar esta passagem, Nelson Schapochnik utiliza uma prosa de ficção de Clarice Lispector, que reproduzimos, por considerá-la representativa desta transição. Aos poucos os móveis desertavam, vendidos, quebrados ou envelhecidos, e os quartos se esvaziavam pálidos [...] Da vidraça alta via-se além do jardim de plantas emaranhadas e ramos secos, o longo trecho e terra de um silêncio triste e sussurrado. A própria sala de jantar, o aposento maior do casarão, estendia-se em baixo em longas sombras úmidas, quase deserta: a pesada mesa de carvalho, as cadeiras leves e douradas de uma mobília antiga, uma estante de finas pernas recurvadas, o ar rápido nos trincos lustrosos, e um guarda-louça comprido onde translucidamente brilhavam em gritos abafados alguns vidros e cristais adormecidos em poeira. Sobre a prateleira desse móvel pousava a bacia de louça rosada, a água fria na penumbra refrescando o fundo onde se batia preso um anjo gordo, torto e sensual. Frisos altos erguiam-se das paredes riscando sombras verticais e silenciosas sobre o chão [...] A sala. A sala cheia de pontos neutros. O cheiro de casa vazia (O lar feliz, citado por SCHAPOCHNIK, 1998, p. 511 e 512). Também podemos perceber que os estudos do mobiliário apontam esta transição58 sentida no modo de morar, que diz respeito a uma nova realidade social burguesa, como representativa das classes altas da sociedade, sendo as classes populares muitas vezes excluídas desta modernidade, expulsas das cidades, iniciando-se o processo de favelização. A este respeito, várias charges do “Zé Povo” são analisadas por Marilda Queluz, mostrando o quanto o povo estava perplexo e excluído deste processo de modernização das cidades e mesmo do espaço de morar ou viver no meio social (BASTOS, org., 2000b, p. 58). FIGURA 27: Charge do “O Olho da Rua, n.09, 14/10 1911. FONTE: BASTOS, org., 2000b, p. 58. 58 Ressalvamos o emprego do termo “transição”, não o caracterizando como uma passagem de um estágio para outro mais adiantado, uma vez que sempre há a permanência, sendo que um estilo não suprime o anterior linearmente. 137 Há uma linha nítida que separa o povo do progresso. A figura 27 demonstra os obstáculos que o progresso cria na rua. O povo que passa, desconfia de tudo e observa sem poder se envolver ou opinar, sendo um espectador das mudanças. Entretanto, estas relações são reelaboradas no imaginário das pessoas, que interagem com as novas tecnologias, em múltiplos contextos: temporais, culturais, nos usos e desusos, corroendo com os determinismos tecnológicos (QUELUZ, 2000b, p.65). Sempre são criadas alternativas para desfrutar e viver a “modernidade”. A inserção na modernidade e esta nova forma de ser visto, não mais se afinava com a individualização e ostentação, mas com a moda e com o tempo, cortando os laços com o passado, desejoso de estar sempre se atualizando. É a ascensão da nova burguesia, manifestando-se pelos movimentos artísticos da década de 20, tendo no período Vargas o seu apogeu. É neste contexto que é difundido o estilo Art Déco que representa, segundo Sevcenko, uma condensação dos símbolos da modernidade, como a ciência e técnica, que são traduzidos na decoração em “linhas retas, planos ortogonais, superfícies chapadas, silhuetas mecânicas, metais cromados, plásticos, cores industriais, com temas decorativos sugerindo maquinários, aviões [...], mobiliário mínimo, sóbrio e objetivo” (SEVCENKO, 1998, p. 576). Na imagem abaixo podemos perceber que mesmo que os móveis não tenham características do Art Déco, um destes ícones da modernidade, o avião, está retratado na decoração do papel de parede. FIGURA 28: Foto do catálogo de Móveis Schulz, demontrando a introdução dos cenários ligados aos ícones da modernização. FONTE: Digitalização a partir do original do arquivo de móveis Túlio. 138 Apesar desta tendência modernista, no Brasil o ecletismo prevaleceu refletindo um padrão de vida sofisticado das classes dominantes, misturando estilos de objetos de várias origens: do clássico ao contemporâneo, passando pelo medieval, o renascentista, o neoclássico, o barroco, o orientalizante, o impressionista, o decadentista e o moderno, nesse caldo heterogêneo em que um pouco de tudo neutraliza qualquer contexto e anula qualquer significação precisa, define-se o padrão eclético... (SEVECENKO, p.536 e 537). Nesta época os decoradores são solicitados para tomar partido nas colagens de estilos variados, harmonizando os móveis ecléticos, unindo as posses de várias gerações das elites, com os móveis modernos adquiridos, personalizando e tornando os ambientes mais práticos. Na Europa esta profissão surge ainda antes da primeira guerra mundial (LUCIESMITH, 1997). Por estas características híbridas, especialmente no caso do mobiliário paranaense, entendemos, como aponta LUCIE-SMITH, que o estudo do móvel deve ser feito não isoladamente, mas nas relações com o conjunto dos móveis e o entorno, considerando o contexto de uso. Unir os móveis aos objetos pessoais e às lembranças sobre os ambientes, são as fontes para recompor as histórias (1997, p.13). No Paraná (como Estado Emancipado) 59 , um dos primeiros estilos introduzidos no mobiliário foi o Biedermeier, aproximadamente a partir de 1860, predominando até o final do século. Teve a influência dos imigrantes alemães, sendo na visão de CARNEIRO, como já citado (CARNEIRO, 1955, p. 12). Os móveis de Martinho Schulz apresentam características das tendências européias, especialmente dos móveis alemães, como o Biedermeier. Também o estilo austríaco Thonet, Art Nouveau e Art Déco aparecem representados em seus catálogos, o que nos levou a classificar o estilo de seus móveis, em geral, como eclético. Os móveis produzidos a partir da década de 40 se aproximam da Bauhaus pelas formas e materiais empregados. Estes móveis ecléticos refletem a formação multicultural do estado do Paraná, conforme justificamos no capítulo 2 da dissertação, sendo que a busca por uma tradição consolidada marcou a produção e o consumo do mobiliário. A hibridação das culturas, 59 Estamos aqui apenas fazendo um recorte devido aos objetivos de nossa abordagem, considerando como referência o Paraná como Estado Emancipado, o que ocorreu em 1853. Não desconsideramos os demais estilos anteriores, do século XVIII, nem as manifestações populares regionais, que também contribuíram para formar os estilos do mobiliário paranaense. 139 sistemas simbólicos e produtivos são expressos na produção moveleira local, que também refletem a modernização dos processos e formas e as permanências estilísticas e das tradições (longa temporalidade de BAKHTIN). Na figura a seguir, através do texto, percebemos a importância dada por Martinho Schulz na divulgação quanto aos modelos que constam nos catálogos, com as “últimas novidades neste ramo”, ressaltando que o “estilo moderno” está em sua produção, apresentando uma imagem que é colocada como “um dos últimos modelos da fábrica. FIGURA 29: Anúncio publicado em uma revista de divulgação de serviços e produtos, com textos e fotografia referentes à fábrica de móveis de Martinho Schulz. FONTE: “Anuário Propagandista Sul do Brasil”, 1936, p. 62. Como já apontamos, estas tendências e estilos que compõem o que é o móvel brasileiro e paranaense e principalmente o móvel artesanal, nos mostram que este não possui um estilo definido, mas características de determinados estilos e modismos. Nesta época (década de 30), quando se fala em modernização, esta se apresenta muito mais na tentativa de geometrizar e simplificar as formas, do que nos processos de produção, que continuam sendo artesanais. 140 FIGURA 30: Fotografia do modelo apresentado no catálogo de Móveis Schulz. FONTE: Digitalização a partir do original cedido por Armando Túlio, dos arquivos de Móveis Schulz. Nesta imagem está representada a linha número 75, produzida na década de 30, sendo composta por móveis e acessórios que demonstram uma tendência à geometrização, utilizando cilindros e prismas nos pés e a forma cúbica dos móveis, pouca ornamentação decorativa e utilização de tons claros, mesclados com a madeira pintada de cor escura. O cenário é provavelmente montado em um estúdio fotográfico, devido ao painel de fundo, bastante utilizado nas fotos publicitárias e familiares, para criar uma atmosfera de exterior. As mudanças e tendências deste período, apontadas na propaganda como “móveis modernos”, são ditadas por demandas de consumo, apresentadas pela publicidade e pelas revistas, que na época criavam os cenários que seriam o desejo de posse de quem aspirava se inserir na modernidade. Assim: O objeto do desejo se torna inseparável do desejo do objeto. [...] O ato do consumo se torna assim, ele próprio carregado de uma energia sensual, ao mesmo tempo fetichista e voyerista, marcado pelo gozo de desfilar entre os artigos, ver bem de perto e tocar nos objetos, eventualmente possuí-los e exibi-los a outros olhos cobiçosos (SEVCENKO, p. 603). Para BENJAMIN, este sonho coletivo, ou as “fantasmagorias” são fabricadas pela sociedade burguesa e apresentadas no mundo da circulação e do consumo, projetando 141 para as demais classes um ideal a ser alcançado. Esta construção do imaginário social mascara a dominação e a exploração freqüente do trabalho do proletariado pelo capital (citado por PESAVENTO, 1997, p.35 e 36). Conforme aponta Kistmann, “a publicação de livros e catálogos, assim como a montagem de exposições sobre os produtos de um determinado país, constitui uma forma de invenção de traços culturais” (KISTMANN, 2001, p. 53). Também as exposições60 do final do século XIX e início do século XX, visavam ressaltar as qualidades dos produtos nacionais e a inserção na modernidade, pela variedade das indústrias, principalmente destacando aquelas ligadas à agricultura e pelas máquinas incorporadas na produção industrial e no dia-a-dia das pessoas (PESAVENTO, 1997). Passear pelas ruas das metrópoles, para ver as pessoas, lojas e mercadorias, bem como para ser visto, é uma prática comum da época, tanto da burguesia, como das classes menos favorecidas, que buscavam se comportar segundo estes padrões coletivos e homogeinizadores. Desfilar com as roupas da moda, olhar vitrines e fazer as compras eram desejos comuns a todos. FIGURA 31: Cena urbana do centro da cidade do Rio de Janeiro, no início do século XX. FONTE: “A Revista no Brasil”, 2000, p. 91. Este fascínio pelas vitrines, galerias e casas de moda representa uma questão cultural importada pelas elites, que na época circulavam pela Europa, aonde o vitrinismo era explorado como uma sedução ao consumo. 60 Sobre as exposições universais faremos algumas considerações mais à frente, no capítulo 5. 142 As vitrines começaram a ser uma prática urbana cotidiana associada às esferas da produção e circulação, aproximando o consumidor dos artefatos pela sedução e desejo. Como citado por OLIVEIRA, as vitrines foram encontrando modos para se imporem como estratégias mercadológicas. Seus meios de estruturação discursiva incorporam não só as inovações do mercado em termos de materiais a serem utilizados nos arranjos, mas, sobretudo, empregam novas estratégias manipulatórias [...] a vitrina mantém e lapida a sua função mais elementar , a de estimuladora da entrada do passante no interior da loja, de criação de recursos de sedução para desencadear o início de uma conversa cuja meta é a negociação e finalmente o contrato (OLIVEIRA, 1997, p. 30 e 35). A prática de criar ambientes ou dispor os móveis em vitrines era pouco usual nas lojas de móveis de Curitiba no início do século XX, tanto as que trabalhavam com o vime, como as demais, pois os artesãos normalmente não possuíam um “show-room” montado. Expunham apenas as peças isoladas, “amontoadas” nas fábricas, ou apresentavam as mesmas através de fotografias. A fábrica de Martinho Schulz adota esta prática de visualização dos produtos, montando um show-room e uma vitrine em sua loja. Esta era voltada para a rua, expondo seus produtos, sempre procurando associar toda a linha de um ambiente e acessórios decorativos. Nesta prática percebemos as características particulares da empresa no trabalho com o mobiliário e sua divulgação. 143 FIGURA 32: Anúncio publicado em uma revista de divulgação de serviços e produtos, com textos e fotografia referentes à fábrica de móveis de Martinho Schulz. FONTE: “Livro Azul de Curitiba”, 1942/43, p. 85. No anúncio da figura acima está apresentada a loja e fábrica de móveis, registrada nesta propaganda como Fábrica de Móveis de Martin Schulz, pois segundo relato de Erico Meissner, o proprietário teve problemas legais, o que o fez voltar a utilizar seu nome de origem, e não mais o “abrasileirado” Martinho, como vinha utilizando (entrevista, 2005). Sua fábrica é colocada no anúncio como a “maior indústria do gênero”, enfatizando o fato de ter “exposições permanentes”. Também com relação à forma de apresentação da propaganda, há uma tendência à utilização de recursos de cenografia, criando uma “ambientação ilusória”, para a criação de uma “imagem-memória” de acordo com os propósitos do anúncio. (SCHAPOCHNIK, p. 464 e 465). 144 Na figura a seguir, publicada em uma revista de divulgação de serviços e produtos, o “Anuário Propagandista ‘Sul do Brasil’” de 1935, com textos e fotografias referentes à fábrica de móveis de Martinho Schulz, também podemos perceber esta ambientação de “mobílias diversas”, ressaltando que a fábrica tem um “variado stock” de “mobílias modernas para salas de visita, de jantar, escriptórios, varandas, etc”. Nesta propaganda é valorizado o prêmio recebido pela empresa na “Exposição do Estado do Paraná, com o grande prêmio Brasil e Medalha de Ouro”, conferida à empresa em 1933. Esta exposição, segundo os seus organizadores e jurados, premiou as indústrias representativas da “civilização e progresso” no Paraná. FIGURA 33: Anúncio publicado em uma revista de divulgação de serviços e produtos, com textos e fotografia referentes à fábrica de móveis de Martinho Schulz. FONTE: “Anuário Propagandista Sul do Brasil”, 1935, p. 15. Além do destaque ao prêmio, é demonstrado no anúncio da fábrica de móveis de Martinho Schulz um forte significado referencial presente na fotografia, pela preocupação em ambientar os móveis, mostrando uma linha completa de produtos, simulando um interior de uma residência para o provável consumidor se sentir em casa e ser seduzido pela ambientação. A leitura e a análise da propaganda podem revelar aspectos culturais e históricos importantes para compreendermos significados construídos socialmente e culturalmente, atribuídos à produção moveleira desta fábrica e que foram retratados através do anúncio, fazendo parte da cultura material da cidade de Curitiba desta época. Entretanto, partimos do pressuposto de não adotar a idéia de homogeneidade cultural de uma época e sim, 145 analisar a especificidade deste caso, pois as propagandas analisadas foram produzidas em um contexto específico. Por se tratar de uma fábrica com características híbridas, por pertencer a um imigrante alemão e ter funcionários de outras etnias, devido ao recente processo de incentivo à imigração no país, difere das demais fábricas e da cultura de produção artesanal de Curitiba. O artesanato, de modo geral e em específico o paranaense, é híbrido e complexo, se compondo de signos comuns a várias classes e nações. Este convívio de artesãos com técnicas de produção típicas de seus países de origem, mescladas às técnicas existentes no Brasil, permitiu a criação de uma linha de produtos variada e com diferenciais de produção. O proprietário da fábrica, Martinho Schulz, importava catálogos de móveis de indústrias alemãs, que trabalhavam com a exportação de móveis artesanais em vime, com estruturas especiais e características de desmontabilidade para o transporte marítimo. Neste sentido, podemos perceber a influência européia tanto na produção dos móveis, quanto na execução dos catálogos e materiais para a divulgação dos produtos. Quanto à utilização e importância dos catálogos, HESKETT aponta já no século XVI, na Itália e na Alemanha o surgimento de livros de padrões, que objetivavam atender a demanda de “inovação e de algum traço ou aspecto de artesania que diferenciasse o produto e atraísse o interesse dos consumidores”, já que o aumento das unidades de produção criaram competição no mercado. Estes livros apresentavam coleções de gravuras com motivos decorativos e padronagens especialmente desenhados para o setor têxtil e marcenarias (HESKETT, 1997, p. 11). No século XVIII estes livros foram usados como fontes de referência nas manufaturas, que empregavam artistas ou encomendavam padrões, que eram executados pelos designers. Alguns “empresários comerciais e inovadores” que têm seus nomes ligados a estes modelos difundidos foram: Chippendale, Wedgwood e Boulton, que apesar de não serem designers, compravam a autoria dos desenhos e padrões (HESKETT, 1997, p. 13). Um exemplo desta prática foi a fábrica do Soho, de Matthew Boulton, na qual os livros de padrões Tinham formas de uma multiplicidade de fontes; Boulton freqüentemente pedia emprestado trabalhos de amigos e conhecidos para a feitura de moldes e desenhos. Sua rede de agentes em casa e no exterior também lhe fornecia uma enxurrada de objetos, moldes, livros e esboços; além disto, modelos e desenhos eram adquiridos de artistas proeminentes como John Flaxman e James Wyatt (HESKETT, 1997, p. 14 e 15). 146 Estes livros de padrões se aproximam muito dos catálogos, servindo como difusores de modelos, cumprindo um papel de difusores do design dentro das fábricas. Na fábrica de Martinho Schulz, podemos presumir pelas evidências que os catálogos europeus tiveram forte influência na definição de modelos produzidos, sendo utilizados no mesmo sentido dos livros de padrões do século XVIII. Também por sua vez, os catálogos produzidos por móveis Schulz e as suas propagandas nas revistas passaram a influenciar a produção moveleira com fibras de Curitiba. FIGURA 34 – Capa do catálogo de uma fábrica de móveis alemã, adquirido por volta de 1926, com padrões que provavelmente foram adotados por Móveis Schulz. Fonte: Digitalização pela autora. Dentre os anúncios de Móveis Martinho Schulz, destacamos o apresentado a seguir, que apresenta uma rede de representantes que a loja possuía no Brasil, que segundo relatos de Erico Meissner (entrevista, junho de 2005), distribuíam os móveis por várias regiões, apresentando-os e fazendo encomendas a partir dos catálogos da fábrica. São colocados nesta propaganda, de 1938/39, com igual destaque os móveis “modernos” e a preservação da tradição da confecção dos antigos carrinhos de bonecas e bebês. 147 FIGURA 35: Anúncio dos produtos da fábrica de Móveis de Martinho Schulz. FONTE: “Livro Azul da Cidade de Curityba”, 1938/39, contra-capa. Estes tradicionais carrinhos eram produzidos para a venda em lojas de brinquedos e nos magazines, como a Mesbla e loja Casa & Jardim, que segundo Silvano Túlio, compravam uma quantidade enorme deles e de moisés para comercializar (entrevista, abril de 2005). A quantidade de modelos, conforme apresentada nos catálogos e citado nos depoimentos, era imensa. 148 FIGURA 36: Carrinhos de bebê e de boneca da fábrica de Martinho Schulz. FONTE: Digitalização de imagem do catálogo e móveis de Martinho Schulz, cedido por Armando Túlio. Outro fator importante presente no anúncio anterior é com relação à divulgação dos artefatos. Por possuir uma rede de representantes em vários locais do Brasil foram favorecidos os contatos para comercialização e hibridações nos produtos. Um dos contatos da época (1950), citado pelo Senhor Erico foi com a fábrica de móveis Cerello, de São Paulo, cujo proprietário, Anselmo Cerello, imigrante italiano, fazia trocas com Martinho Schulz, adquirindo peças para vender em sua loja e também trazendo peças para serem vendidas em Curitiba61. Na próxima figura temos uma foto do catálogo da fábrica de Móveis de Martinho Schulz, que é o conjunto número 88, utilizado na propaganda da figura 32. São móveis de características modernas, cujas cadeiras, produzidas na década de 40, apresentam características que remetem à Bauhaus. Apresentam uma simplificação e geometrização das formas e são demonstrados em uma ambientação. Cada componente da linha tem uma numeração, o que facilitava a identificação para a produção. 61 Hoje a Móveis Cerello é uma das mais conceituadas do ramo de produção moveleira com fibras, sendo uma das mais antigas do Brasil, mantendo a tradição da produção artesanal e inovando nos produtos e materiais utilizados. Possui lojas em várias capitais do país e em Miami, nos Estados Unidos. Para informações sobre o histórico e produtos da empresa Armando Cerello, consultar o site: http/ www.assiduita.com.br. 149 FIGURA 37: Ambiente apresentado em anúncio de 1943, mostrando móveis de estilo moderno, feitos de junco. FONTE: Digitalização a partir do original do catálogo de móveis Schulz. Estas imagens apresentadas foram selecionadas entre inúmeras outras que compõem o catálogo de Móveis Martinho Schulz. Procuramos as mais representativas das transformações, tanto estilísticas como produtivas da fábrica, para realizar uma análise em diálogo com os depoimentos dos artesãos, que nos revelaram aspectos importantes sobre as esferas da produção e circulação artesanal de Curitiba e da história da fábrica de Móveis Schulz, que passaremos a abordar no capítulo 5. 150 CAPÍTULO 5 RELAÇÕES DE PRODUÇÃO E CIRCULAÇÃO DOS ARTEFATOS DA FÁBRICA DE MÓVEIS DE MARTINHO SCHULZ. 5.1 - A fragmentária história da fábrica de móveis de Martinho Schulz. As imagens apresentadas e analisadas em conjunto com pessoas ligadas à produção da fábrica de Martinho Schulz trouxeram à tona memórias traduzidas pelos depoimentos, que teceram fios, resultando em um tecido que foi construído conjuntamente, ou seja, a trajetória da referida fábrica e em conseqüência, a fragmentária história do móvel artesanal de Curitiba. Conforme relatamos nos capítulos anteriores, o motivo de escolher a fábrica de Móveis de Martinho Schulz como fonte para analisar a história do móvel artesanal de Curitiba foi pelo fato de que, em pesquisa com as demais fábricas ainda hoje existentes, os proprietários e alguns dos funcionários mais antigos, nos remeteram a esta fábrica como sendo a primeira a trabalhar com o móvel propriamente dito, ao contrário das demais que eram conhecidas pela execução da cestaria e pela modernização dos processos produtivos, de divulgação e venda dos artefatos. Entrevistamos um dos proprietários e dirigente da fábrica a partir de 1949, Senhor Erico Meissner, hoje afastado do ramo e aposentado, que foi casado com Edith, filha de Martinho Schulz (já falecidos). Também conversamos com alguns funcionários que trabalharam na década de 50 na empresa, pois os mais antigos também já faleceram, além de proprietários de empresas concorrentes da época. Segundo os relatos do Senhor Erico Meissner (entrevista, junho de 2005), a família Schulz é de imigrantes alemães, que vieram para o Brasil no início do século XX, chegando no porto de São Francisco e se instalando primeiramente em Joinvile. Martin Schulz nasceu em 1908 em Benthen, Alemanha, vindo para o Brasil, ainda menino, juntamente com sua família. Na Alemanha o pai tinha uma hospedaria, mas, como era uma tradição na Europa, sempre se tinha uma segunda profissão para suprir as dificuldades ocasionais da ocupação principal. Assim, o pai de Martin Schulz aprendeu a profissão de artesão de móveis para trabalhar nos meses de inverno, quando a ocupação da hospedaria era pequena. Vindo para o Brasil adotou esta profissão, repassando este conhecimento para seu filho Martin (Meissner, entrevista, junho de 2005). 151 Quando jovem Martin Schulz veio para Curitiba (por volta de 1929 ou 1930, segundo relatos), abrindo uma fábrica de móveis artesanais com fibras naturais, utilizando vime, junco e cipó. Nesta época resolveu “abrasileirar” seu nome para “Martinho Schulz”, nome que utilizamos nos nossos relatos (Meissner, entrevista, junho de 2005). O mesmo nome foi adotado também para a razão social de sua empresa, a partir de 1932, sendo registrada na junta comercial do Paraná em 1937, como Fábrica de Móveis e Brinquedos de Martinho Schulz (Documento de Registro na Junta Comercial do Paraná – anexo 1). Pelos documentos oficiais encontrados, a empresa tem um alvará para funcionamento emitido pela Prefeitura Municipal de Curitiba de 1932 (Alvará de funcionamento – anexo 2). A partir deste ano temos também o início de veiculação de propaganda em revistas da capital, sendo o primeiro encontrado do ano de 1933, no “Indicador Commercial Paranaense”, com o nome de “Fábrica Joinville, de Martinho Schulz”. FIGURA 38: Anúncio da fábrica de Martinho Schulz, nesta época chamada de “Fábrica Joinville”. FONTE: Indicador Commercial Paranaense, 1933. A primeira exposição pública da fábrica de Martinho Schulz foi em dezembro de 1932, promovida pela Associação Paranaense de Imprensa62. Nesta data foi realizada a 2ª Exposição Industrial do Paraná, comemorativa aos 79 anos da Emancipação Política do 62 Uma edição especial da Revista “Illustração Paranaense, de fevereiro de 1933, foi editada, comentando o histórico destas exposições do Paraná, com detalhes sobre a exposição de 1932, incluindo fotos e textos sobre os expositores premiados, entre eles a fábrica de móveis de Martinho Schulz”. 152 Estado. A fábrica Schulz montou um stand com móveis de uma linha para sala de estar, sendo que foi o único expositor de móveis de vime, concorrendo à premiação com outros expositores de mobiliário, como: Móveis Maida, Camas de ferro Schelenker e cia., além de várias indústrias alimentícias, metalúrgicas, de sabão, de cera, de velas, entre outras. FIGURA 39: Stand na Exposição Industrial de 1932, retratando um ambiente com móveis em vime de Martinho Schulz. FONTE: Illustração Paranaense, 1933. Nesta exposição foi ressaltado o perfil “civilizador e progressista” do Estado do Paraná, exaltando a indústria regional como capaz de fazer “tudo quanto se faz em qualquer parte do mundo”. A modernização é representada pela variedade de produtos apresentados e pela capacidade produtora de nossas indústrias, indo muito além dos “produtos nativos” das mostras anteriores. Na chamada inicial do artigo desta edição impressa sobre a exposição, a intenção dos organizadores, de acordo com o texto, é de: “pelos clichês que a seguir estampamos, registrar este progresso” (Illustação Paranaense, 1933). Com respeito às exposições industriais que aconteceram no Paraná, as mesmas são baseadas nas “exposições universais”, que buscaram no final do século XIX, como 153 escreve Pesavento, difundir a idéia de modernidade, mostrando-a como um espetáculo associado ao desenvolvimento industrial (PESAVENTO, 1997). As mercadorias expostas são fetiches impostos pelo sistema capitalista e transformados em sonhos coletivos. Tanto as mercadorias, como as invensões e as máquinas expostas têm um caráter de universalidade tanto pela variedade de itens apresentados quanto pelo número e diversidade dos participantes. As exposições são uma visualização ideológica, associada ao desenvolvimento industrial, que pela socialização das imagens expostas, objetivam um culto ao fetichismo das mercadorias (PESAVENTO, 1997, p.41 a 44). As exposições universais almejavam um consenso pela coletividade, de um projeto social, ou, “seriam em suma, um veículo de construção da hegemonia da classe burguesa, mediatizada pelas práticas consensuais e ideológicas”. Para enfatizar a idéia de construção do projeto capitalista do progresso e da ciência como novas ordens, as exposições tinham como pressuposto que “expor as realizações tecnológicas das indústrias é fazer a síntese filosófica do progresso da humanidade” (PESAVENTO, 1997, p. 48 e 49). Eram espetáculos que ostentavam as maravilhas tecnológicas e industriais, para seduzir e fazer sonhar. Nestes espetáculos, “operários e burgueses contemplam as maravilhas da indústria e da civilização” (Rancière, citado por PESAVENTO, 1997, p. 50). A partir do século XX, estas exposições passam a ser especialmente setoriais, valorizando os produtos das regiões. Assim, com respeito à exposição de 1932 no Paraná, percebemos na publicação sobre a mesma que os textos e imagens utilizadas se complementam para mostrar a progressista indústria paranaense da época, da qual faz parte a Fábrica de Móveis de Martinho Schulz, contemplada com a Medalha de Ouro e o Grande Prêmio Brasil, concedidos pela comissão julgadora do evento (Illustação Paranaense, 1933). A partir desta premiação a fábrica passou a divulgar com mais freqüência os seus móveis nos anúncios de revistas, mantendo veiculação regular pelo menos até 1943 (data que pudemos comprovar pelas nossas fontes). Esta divulgação sempre reforçava o caráter progressista e moderno da produção da indústria, condizente com o ideal da modernidade paranista. Como descrevemos no capítulo anterior, estas construções simbólicas, retratadas nos textos e nas imagens apresentadas nos anúncios veiculados pela empresa reforçam a idéia de modernidade dos produtos, pela inovação de materiais e processos e valorizavam o estilo burguês de viver nas casas. A empresa no início de seu funcionamento estava localizada na Rua do Rosário, número 60, no centro de Curitiba e a fábrica na rua David Carneiro, 300. 154 Posteriormente, por volta dos anos 40, devido às desapropriações para ampliação e modernização do centro da cidade, o proprietário Sr. Martinho Schulz instalou a fábrica e loja juntamente com sua residência, na Avenida Pilarzinho (atual Rua Desembargador Benvindo Valente), ao lado do Cemitério Municipal, no bairro São Francisco, onde funcionou até seu fechamento. Além de atender ao mercado local, no Estado do Paraná, a empresa tinha uma rede de representantes em praticamente todo o Brasil, “do Rio Grande do Sul a Belém do Pará” (Meissner, entrevista, junho de 2005). No caso do mercado internacional, a empresa não trabalhava diretamente com a exportação, mas enviava por outras empresas e por intermédio de viajantes vários objetos em vime e até móveis para a Europa. Aproximadamente a partir de 1949, com a aposentadoria gradual do Sr. Martinho Schulz, seu genro e sócio Erico Meissner passa a ter a função de administrar a fábrica e loja até a liquidação da empresa, em 1970. Segundo alega Erico Meissner, o fechamento aconteceu por ter se tornado muito difícil sobreviver devido às leis implantadas pelo Regime Militar de 1964, sendo necessário contratar um contador para interpretá-las, havendo um excesso de impostos e encargos trabalhistas. Este período, das décadas de 60 e 70, como relatam os artesãos, foi bastante difícil, com uma tendência muito forte a regulamentar, normatizar, tanto as relações de trabalho (pelas leis trabalhistas), como as vendas, exigindo excesso de documentação, notas fiscais, pagamento demasiado de impostos, entre outros procedimentos burocráticos. Estas formas de controle acabaram desestimulando muitos pequenos, como Martinho Schulz, que encerrou as atividades da empresa em 1970. Além deste fator foi mencionado o fato do surgimento dos restaurantes em Santa Felicidade, que aproximaram os turistas do artesanato daquela região, que era mais barato (apesar da qualidade inferior, segundo o entrevistado), tirando parte do mercado consumidor que era formado pelos turistas que passavam pela cidade (Meissner, entrevista, 2005). O Erico tinha uma empresa onde ele tinha todo mundo registrado, ele pagava imposto de tudo, ele não tinha como competir com essa gente (artesãos de Santa Felicidade), não que eles fossem bons no comércio, eles eram uma família, não tinha o encargo social que o Erico tinha e isso foi desanimando ele... a pressão... (Zanotti, entrevista, junho de 2005). Na época em que a fábrica foi fechada (1970), aproximadamente 30 funcionários diretos e outros indiretos, a maioria com mais de 20 anos de trabalho para 155 Martinho Schulz foram demitidos, sendo muitos contratados por outras fábricas de móveis artesanais, na maioria de Santa Felicidade ou abriram suas próprias empresas. Para as outras fábricas foram principalmente os especialistas na confecção de pequenos artefatos, como: cestas, porta-copos, porta-pirex, porta-garrafas, entre outros objetos destinados ao uso doméstico, decoração e itens para restaurantes e comércio em geral. FIGURA 40: Fotografias de uma papeleira e uma bolsa de vime, produzidas pela fábrica de Martinho Schulz. FONTE: Foto da autora. Os funcionários que trabalhavam com os artefatos, tanto no trançado das fibras, confecção das estruturas, fabricação das formas e acabamentos superficiais, como na pintura, levaram estes conhecimentos para as fábricas de Santa Felicidade, que nesta época começavam a atuar na fabricação de uma linha mais diversificada de móveis artesanais. Por volta de 1970 muitas ferramentas, equipamentos, maquinários e formas foram vendidos para o Sr. Silvano Túlio que os incorporou na fábrica de sua família. Também catálogos de produtos e algumas peças foram levadas pelos funcionários de Martinho Schulz que passaram a trabalhar em outras fábricas, difundindo os modelos e as tecnologias de produção dos móveis. 156 5.2 - A Estrutura Física da Fábrica de Móveis de Martinho Schulz A empresa era dividida em unidades, sendo a fábrica e loja em um mesmo endereço, em Curitiba, e uma unidade de produção de vime, localizada em São José dos Pinhais, que comportava uma plantação e maquinário para preparo da matéria-prima, atendendo às necessidades da produção. A fábrica da Avenida Pilarzinho possuía uma estrutura organizada por setores, de acordo com as etapas da confecção dos móveis e dos demais artefatos. Era separada por setores, essa parte de pintura era separada, tinha a parte que fazia assim uma reciclagem nas peças, ali embaixo do porão se guardava também o cipó que vinha da Amazônia. Depois do lado tinha um barracão que era onde era feito o tecido, tecia o vime e fazia o trabalho. (Separado) da parte do acabamento, entre os dois tinha um tanque grande, onde a gente lava os cestos e tal. Depois, mais tarde o Erico construiu uma estufa para secar as cestas, algumas das cestas iam para a estufa, secava, para depois ir para o verniz, então para adiantar, num dia como hoje de chuva, não tinha problema. Porque já tinha um lugar para secar e o serviço dava continuidade (Zanotti, entrevista, junho de 2005). Segundo Antônio Oliveira, que foi funcionário do ano 1955 a 1963, a fábrica era bem grande. Estava dividida em setores, sendo: um setor maior só para o trançado das peças; um setor separado para o lixamento das partes de madeira (por gerar muita poeira); um setor para a aplicação de verniz e acabamento com pintura; uma estufa para secagem das peças; uma área para o preparo da matéria prima, como rachar e laminar o vime; uma estufa para fazer a secagem das peças e um local para fazer a “fumigação” por vezes com vapor de enxofre, utilizado para clarear e amaciar as fibras. Ali tinham várias (sessões). No porão mesmo tinha: sessão de pintura, serra-fita, a lixadeira que era separada, porque faz muita poeira [...] tinha uma parte para passar enxofre no vime também [...] (Pereira, entrevista, junho de 2005). Apesar de apresentar características que apontam para uma divisão racional da produção, com setores separados e parcelamento de funções, coexistiam os processos industriais, que eram apenas uma parte do trabalho e os artesanais, que davam forma aos produtos pelo trançado das fibras. Além do espaço destinado à produção havia uma loja para exposição e venda dos produtos. A loja possuía vários espaços (stands) montados de acordo com os estilos dos móveis e os ambientes da casa a que eram destinados, como: cozinhas, copas, salas. 157 A loja era dotada de uma vitrine de aproximadamente 2 X 3 metros, voltada para a rua, que permitia também ver o seu interior. Era composta com móveis de um ambiente específico, decorado. Como colocaram os entrevistados, esta vitrine era mudada de tempos em tempos para acomodar outro ambiente, bem como o interior da loja era modificado quando “se fazia a limpeza” (Antônio Oliveira, entrevista, junho de 2005). Segundo o proprietário, na loja: tinha que mudar, sempre colocando alguma coisa nova, principalmente nos dias de feriados, quando as lojas estavam fechadas fazia uma bonita exposição aí também! Iluminava por dentro, então de fora dava para enxergar tudo! Isso a gente expõe o conjunto, ia expondo o conjunto (Meissner, entrevista, junho de 2005). Os funcionários também têm a lembrança da vitrine, que era constantemente atualizada para mostrar o que era produzido na fábrica e o interior organizado para criar cenários de ambientes, inspirados nas lojas das grandes metrópoles e as européias. [...] todo dia nós mudávamos aquela vitrine, quando muito a cada dois dias a gente mudava aqueles móveis que ficavam na vitrine. Daí quem passava pela rua no fim de semana via. Colocava para trás também, mas era interessante pra quem ia passar porque era bonito, olhavam a vitrine e na segunda-feira iam lá [...] A loja tinha que estar sempre muito limpa, bem organizada, os móveis eram mudados de um lado pro outro e o cliente que ia lá muitas vezes era um cliente que já conhecia outras lojas na Europa, no Rio de Janeiro, São Paulo e eles queriam manter mais ou menos um padrão para se apresentar bem também (Zanotti, entrevista, junho de 2005). Os artefatos menores que eram produzidos, como cestas, adornos, suportes, etc., eram colocados em prateleiras e separados de acordo com funções a que se destinavam, além de categorizar por níveis de qualidade, dependendo do acabamento ser perfeito ou não (peças de primeira, de segunda ou de terceira) (Erico Meissner, entrevista, junho de 2005). ... tinha uma prateleira só pra cestas, usavam muito naquela época essas cestas italianas, que chamam de cesta de arco, vendeu muito aquilo ali também. Então era tudo bem separado, as prateleiras, tudo separado. Um tipo de mercadoria numa prateleira, um tipo na outra. Os móveis também, o que era sintético ficava num setor, o vime no outro. Os móveis ali vendiam muito, faziam um serviço perfeito (Pereira, entrevista, junho de 2005). Em seus estudos, OLIVEIRA aponta que as vitrines passaram a ter valor fundamental para atrair o consumidor para o interior da loja. A forma de dispor os produtos conduzia o olhar para o interior. Dentro da loja a disposição dos artigos em prateleiras, orienta o trajeto para as compras. “nas prateleiras, a ordenação por classe em que as mercadorias são posicionadas [...] tornadas bem visíveis, as mercadorias de cada tipo parecem predispostas a 158 deixar a prateleira e entrar no carrinho do comprador”. As prateleiras são um “espaço de interação entre o comprador e o produto” (OLIVEIRA, 1997, p. 38 e 39). O fato de possuir “amplas exposições permanentes” e um estoque variado era sempre ressaltado pelos anúncios veiculados pela empresa, conforme ressaltado no anúncio a seguir. A foto apresentada é da segunda sede, localizada na avenida Pilarzinho, bairro São Francisco. Na parte superior era localizada a residência do proprietário. FIGURA 41: Foto da fachada da loja e fábrica de Móveis de Martinho Schulz, apresentada em um anúncio. FONTE: “Livro Azul da Cidade de Curityba”, 1942/43, p. 85. A importância dada às exposições, o cuidado na apresentação das vitrines e a forma de disposição e venda dos artefatos foram destacados como inovadores e diferenciadores no setor moveleiro artesanal do Paraná 159 5.3 - Relações de Trabalho na Fábrica de Móveis de Martinho Schulz A tradição de confecção de móveis foi mais acentuada durante o período da administração de Martinho Schulz, de 1932 até 1957, ano que este se afastou mais da fábrica, mas não saiu da sociedade (Meissner, entrevista, junho de 2005). A partir do período em que Erico Meissner assumiu sozinho a gerência da fábrica, como não era um artesão e sim um administrador, mudou a forma de trabalhar da empresa. Destacamos a partir da sua entrada, a introdução de novas relações de trabalho, na tentativa de inserir a fábrica no mundo capitalista. Há uma inversão de valores, passando a serem mais destacados, ressaltados como elementos de primeira ordem, a inovação, as máquinas e os processos, relegando a secundário o trabalho do artesão. Como citamos no capítulo 2, os conhecimentos construídos coletivamente pelos artesãos, nas suas múltiplas dimensões, que são conhecimentos tecnológicos, representam uma multiplicidade de maneiras de conhecimentos, de talentos múltiplos, transmitidos historicamente por outras vias, que não só a escrita. No momento em que o discurso é deslocado para o uso das máquinas e ferramentas, é colocado no “pedestal” o pensamento lógico e sistematizado, desprezando o conhecimento construído histórica e socialmente pelo trabalhador através do trabalho e da vida (LERMAN, 1993). Neste momento de inserção mais intensa no capitalismo, a empresa de Martinho Schulz passou a ser reorganizada para reforçar as máquinas como centrais. Entretanto, conforme já discutimos, como o processo artesanal sempre mesclou a tradição e a modernidade, apesar de passar a ter setores distintos, os funcionários conheciam todas as etapas do processo, mesmo se especializando em uma delas, não havendo total fragmentação do trabalho. Como apontou HESKETT, na indústria moveleira, apesar da introdução de novas tecnologias, sempre houve uma permanência do trabalho artesanal. Assim, por exemplo, em 1900, apesar das inovações e da industrialização da produção, a indústria Thonet ainda empregava quatro mil trabalhadores para produzir seis mil peças por dia, principalmente pelo fato de que para fazer o encosto e assento de palhinha e alguns detalhes era imprescindível o trabalho dos artesãos (HESKETT, 1997, p.43 e 44). 160 Nas fábricas de móveis com fibras esta é uma tarefa que não tem como ser mecanizada e sempre vai precisar da habilidade do artesão, assim, as etapas do trabalho não são completamente fragmentadas63. Antes de começar uma peça nova, é necessário aos trabalhadores envolvidos se reunirem para discutir como será a estrutura para o trançado a ser feito, bem como quais os materiais e ferragens a serem utilizados. Na fábrica de Móveis Schulz, o trançado de cada peça era executado desde o início até o final pela mesma pessoa, ficando somente a lavagem e a pintura para outro trabalhador fazer. (Antônio Oliveira, entrevista, junho de 2005). É, nós trabalhávamos em, nós chamávamos de banca. Nós trabalhávamos assim num barracão grande, onde trabalhava um funcionário aqui, dois ali, depois trabalhavam outros assim e a gente tinha uma mesinha onde se tinha uns pregos separados, a tua tesoura, o seu martelo, cada um organizava como podia. Uma lata de água para molhar o vime, você molhava no tanque o vime depois você ia para trabalhar e depois você tinha que continuar molhando. No inverno era muito difícil porque o vime resseca muito e você gela as mãos e daí espirra água também da cintura para baixo e você molha os joelhos, trabalha assim molhado. Trabalhar com o vime no inverno é ingrato, você está sempre com a mão molhada (Zanotti, entrevista, junho de 2005). Para cada artesão havia uma espécie de “estação de trabalho”, conforme já citado no depoimento de Zanotti e reforçado por outros depoimentos. Esta “banca” ou “estação” era composta por um banquinho e uma bancada pequena, aonde estava acoplada uma caixinha com todos os instrumentos de trabalho. “Tinha um rachador de vime, um martelo, uma faquinha boa, tesoura, preguinhos nos tamanhos que se usava. Tudo que precisava tava na mão” (Pereira, entrevista, junho de 2005). Era tipo de uma mesinha, onde se tinham as ferramentas, as coisas que eles precisavam. Não precisava muito, porque precisava do material, o cipó, o vime ou a cordinha, esse negócio aí. Depois a armação onde ele trabalhava, que eu posso dizer que ele empalhava, ou então, ele cobria com aquela matéria prima (Meissner, entrevista, junho de 2005). Além dos trabalhadores do quadro da indústria, o trabalho terceirizado e a compra de móveis de outras fábricas eram práticas comuns entre as lojas de móveis artesanais. Sempre que a procura era muito grande, eram contatados os artesãos de Curitiba, 63 É interessante apontar que como reação a um design comercial surgiram movimentos, como no final do século XIX o Arts and Crafts, que teve como inspirador Ruskin, que abominava a divisão do trabalho e queria valorizar a clareza da expressão, o material e o trabalho do artesão. Assim, o Arts and Crafts não queria romper só com o aspecto formal dos móveis, mas principalmente com a maneira como eram feitos pela indústria, que fragmentava as atividades dos artesãos. Morris, outro expoente deste período, desenhou móveis mais simples para o dia-a-dia, com linhas sóbrias, utilizando o assento de palha. (LUCIE-SMITH,1997, p. 132). 161 Santa Felicidade e também os de Joinvile, que tinham um bom relacionamento, pois a família de Martinho Schulz tinham uma fábrica na cidade. Os móveis praticamente não se venciam fazer, eles eram feitos sob encomenda. Então o Erico também fazia um comércio, vinha alguma coisa de Joinvile pra cá e ia algo para lá, no momento eu não me recordo do nome da firma, se eu não em engano era Augusto Hering, que mandava e ele fazia um comerciozinho. Esse Augusto Hering trabalhava bem também, então ele fazia, ele fabricava o móvel (Zanotti, entrevista, junho de 2005). Habitualmente o artesanato de cestarias e de móveis era praticado pelas famílias que se reuniam em uma empresa de estrutura familiar, aonde todos executavam as tarefas de artesãos. Este era o caso das fábricas de Santa Felicidade, que eram fornecedoras desta artigo para Móveis Schulz. Como cita BALHANA com relação à época de sua pesquisa, que aconteceu na década de 50, efetivando-se em 1958: (...) O trancado do vime era ocupação tanto de homens quanto de mulheres, como de crianças. Geralmente é ocupação temporária, efetivada durante o inverno, quando o rigor da estação constrange o lavrador a abandonar os trabalhos do campo. Porém em Santa Felicidade, é ocupação quotidiana, interrompida apenas pela colheita e preparo da matéria-prima. Também nesta, como em outras atividades, afirma-se o principio da divisão do trabalho, aqueles mais pesados são feitos pelos homens, enquanto os mais leves e fáceis são confiados às mulheres e crianças. Tal divisão é necessária, sobretudo, em se tratando de trabalhos que requerem certa habilidade que é adquirida somente com o tempo e o longo exercício (BALHANA, 1958). Nesta narrativa de Balhana percebemos que os estereótipos do que é um trabalho de mulher são reforçados quando se atribui a ela os trabalhos leves e que requerem habilidade. As questões de gênero presentes no fazer artesanal, conforme já citamos anteriormente, são baseadas no patriarcalismo, que define os papéis sociais de maneiras “dicotômicas, hierarquicas, perversas e excludentes”, atribuindo à mulher os afazeres domésticos, ou “as coisas de mulher” (ONO e CARVALHO, 2005, p. 10 e 11). Quanto mais a produção artesanal foi se aproximando da indústria, pela introdução de novas tecnologias, instrumentos e máquinas no trabalho, e, a partir do momento que passou a representar poder e ser a fonte principal de remuneração da família, as mulheres foram excluídas das oficinas. No caso da fábrica de móveis Schulz, não havia mulheres na produção. 162 Com relação às questões do trabalho infantil, notamos que muito cedo os meninos eram introduzidos no trabalho artesanal, geralmente pelos pais, que ensinam a profissão, ou, aqueles que não eram do ramo, colocavam seus filhos nas empresas dos artesãos mais tradicionais para que aprendessem uma ocupação. Esta tradição remete ao que ocorria na época das corporações de ofício, na Europa “pré-industrial”. No período de aprendizado o artesão-aprendiz não tinha registro em carteira, mas, “passado o tempo de pegar prática, era registrado”. No início, “o gerente Sr. Afonso fazia desmanchar e fazer tudo de novo se não tava bem feito, mas era bom, porque assim aprendia mesmo” (Zanotti, entrevista, junho de 2005). Quem ensinava eram os artesãos mais experientes que estavam há mais tempo na fábrica. De acordo com as entrevistas feitas, pudemos perceber que a idade para iniciar o trabalho era precoce, por volta dos 13, 14 anos na maioria dos casos. Tinha quatorze anos quando eu comecei, trabalhei dez anos, trabalhei até os vinte e quatro anos lá. Primeiro eu trabalhava nos serviços gerais, né. Limpando, lavando as peças, depois eu fui trabalhar para tecer cestas. Eu não cheguei a fazer móveis [...] (Zanotti, entrevista, junho de 2005) Pelos anos de experiência se formavam os mestres para as fábricas, que depois ensinavam o ofício para outros jovens aprendizes. As “gerações sucessivas” se colocavam na “posição e aprendizes umas das outras” (THOMPSON, 1998, p. 23). A este respeito, BALHANA analisa as relações entre a prática da profissão e a tradição, que é repassada pelas gerações, necessitando de muitos anos para se tornar um profissional e depois um mestre. O cesteiro, mesmo na execução de cestos grosseiros que parecem não requerer atenção a técnicas e conhecimentos especiais, deve obedecer a certas normas de trançado, sem as quais não poderá realizar um trabalho perfeito. Estas normas são seguidas com fidelidade, tanto pelo aprendizado que o cesteiro realizou junto aos antigos como pela profunda intuição que o orienta na execução harmoniosa do trançado (BALHANA, 1958). Os artesãos que trabalhavam para Martinho Schulz também valorizavam o trabalho dos profissionais do trançado e as técnicas utilizadas. 163 Então fizeram bem feito, o Erico usava um verniz muito bom, para fazer um bom acabamento e era tudo muito limpo, então aparecia [o trançado]. [O produto] era muito bem lavado, então apareciam muito bem os detalhes dos trançados que eram feitos. E eram profissionais que faziam aqui, né. Pessoas que foram treinadas lá dentro. E eram os antigos que ensinavam os novos... (Antonio Pereira, entrevista, junho de 2005). Este conhecimento, que apesar de não ser sistematizado, é repassado de geração a geração, é o maior legado do fazer artesanal. É o conhecimento tecnológico que fundamenta a produção, sem o qual o artesanato não sobrevive. Representa segundo LERMAN, um repertório de habilidades desenvolvido historicamente em determinados contextos sociais (1993). A qualificação dos trabalhadores era um ponto fundamental para a fábrica, que possuía os mestres que ensinavam a técnica, investia em bons equipamentos e matériasprimas de qualidade. Os funcionários depois de contratados (passado o período de aprendizado), recebiam salários equivalentes a aproximadamente cinco salários mínimos de hoje, sendo valorizados pela qualificação obtida com a prática adquirida ao longo dos anos. Sim, porque a senhora viu o trabalho que dá isso daqui para fazer e não é qualquer, não é um operário de salário mínimo que pode fazer isso daqui, isso aqui tem que ser bom. (!) Modelos não é fácil sabe? Tem que ter bons funcionários tem que ter tempo, tem que ter os materiais tudo, sabe? Não é nada fácil (Meissner, entrevista, junho de 2005). Sobre o gerenciamento e o aprendizado do ofício, os trabalhadores apontaram: O interessante na época é que, o patrão podia digamos fazer coisas que hoje não pode, por exemplo, quando eu entrei, eu ganhava, digamos, um salário mínimo, aí quando eles foram me ensinar o patrão disse assim (o patrão já era o Erico, o Martin já tinha saído, ele já estava meio de lado, ele já tinha entregado mais para o genro) [...] Daí o Erico disse para mim: Olha Izair você vai aprender a fazer estas cestas. Então você vai ter seis meses para aprender. Nesses seis meses seu honorário vai baixar para a metade e as ferramentas que você vai usar, eu vou descontar do seu honorário. E eu me apliquei para aprender, então eu ia lá e ele ficava todo o dia. Eu fazia e ele jogava fora. Durante muito tempo tudo o que eu fiz ele jogou fora, sabe? Daí, chegou uma hora que ele achou que estava aprovado. Daí em diante tudo o que eu fazia era aproveitado. Eu acho que eu fiquei uns cinco anos fazendo cestas, daí depois ele me passou para a loja, daí eu fui para a parte comercial (Zanotti, entrevista, junho de 2005). 164 Esta prática exercida, do gerente controlador de tarefas é comum no processo capitalista de produção, conforme aponta THOMPSON (1998), sendo introduzida na Fábrica Schulz por Erico Meissner, na tentativa da modernização da produção. A remuneração nas fábricas maiores, como era o caso da Fábrica Schulz, inicialmente era calculada por tarefas executadas, de acordo com a quantidade qualidade da produção. A supervisão e o controle são elementos fundamentais na prática capitalista, havendo uma preocupação em anotar detalhes da execução de cada peça. Neste ponto, THOMPSON demonstra que em 1700, na Inglaterra já há a entrada na “paisagem do capitalismo industrial disciplinado, com a folha de controle de tempo, o controlador de tempo, os delatores e as multas” (1998, p. 291). Na fábrica de Móveis Schulz havia um “caderninho de tarefas” e o proprietário comenta que: quase não tivemos empregados que trabalhavam por mês ou por hora. Tinha o encarregado da oficina também que ele tinha um bloquinho, que nem nota fiscal, sabe coisa assim..., então tinha o nome dele, o dia o número do talão tudo direitinho e depois a discriminação da peça que foi feita, começo, término, quantas horas levou e com isso aqui o empregado recebia, entregava a peça e recebia, começava a fazer assim, no fim do mês juntava tudo, eu vinha para o escritório e cada peça tinha o seu valor tudo direitinho, todo mundo estava sabendo do preço das peças, eu tinha a lista lá embaixo (Meissner, entrevista, junho de 2005). Com relação a esta prática, THOMPSON diz que com o capitalismo, o tempo que era administrado pelo próprio trabalhador no trabalho artesanal, costumeiramente orientado pelas tarefas, passa a ser medido e dosado pelo tempo do patrão, que o reduz a dinheiro. “O tempo agora é moeda: ninguém passa o tempo, e sim o gasta” (1998, p. 272). Com a aproximação dos sindicatos às fábricas, foram iniciadas novas práticas. Além dos salários mensais vários benefícios foram introduzidos, antecipando as leis que os instituíram. Lá na fábrica eles queriam salário de família e décimo terceiro, quando não havia isso ainda, quer dizer eu criei isso, mas eu fui forçado porque eu tinha pessoal que tinha família, pai de família isso tudo daí, e tive que beneficiar estes, quer dizer... não podia fazer para todos a mesma coisa. Os solteiros, que não eram casados, então não ganhavam salário de família, mas décimo terceiro todo mundo ganhava. Isso ajuda um pouco [...], eu fui o primeiro. Antes mesmo de se tornar lei eu já pagava isso. Tinha todo mundo registrado (Meissner, entrevista, junho de 2005). Por ocasião do fechamento, o proprietário Martinho Schulz e seu sócio Erico Meissner, optaram por liquidar o negócio, saldando todas as dívidas trabalhistas, pagando a indenização de um salário por ano de trabalho e proporcionais dos benefícios aos 165 trabalhadores. Segundo Meissner, poderia ter esperado mais um ano e ter decretado falência, mas não achou justo fazer isto com os funcionários que tinham todos mais de 10 anos de casa, como o Sr. Brandão, que estava na empresa há 35 anos. [...] o único não optante pelo fundo de garantia por tempo de serviço, foi o Ademar Brandão. Daí o dinheiro dele eu depositei no Banco da Província no meu nome e quando fechei a fábrica indenizei todo mundo e o dele eu fui tirar e dei o dinheiro para ele. Devia de ver a alegria! (Meissner, entrevista, junho de 2005). Segundo os funcionários entrevistados, as relações de trabalho estabelecidas e o grau de adequação dos benefícios eram satisfatórios. “O profissional lá ganhava bem [...]. Também era muito certinho com o pagamento, essas coisas, era certinho mesmo” (Pereira, entrevista, junho de 2005). A posição do proprietário como um patriarca provedor, comum nestas empresas de caráter artesanal, era também de certa forma reproduzida na fábrica Schulz, pelo fato dele morar no mesmo lugar onde estava instalada a fábrica e por ter funcionários de vários anos, que traziam seus parentes para trabalhar. Entretanto, por características pessoais, o proprietário não desenvolvia laços de amizade com os empregados, o que o afastava da postura paternalista, também comum nestas empresas que possuíam geralmente uma composição familiar, como as de Santa Felicidade. A imagem formada do Sr. Martinho Schulz era de respeito por sua administração e por seu trabalho, uma vez que era um artesão e tinha o domínio das técnicas de produção, bem como da esfera da circulação das mercadorias. Conseguiu se inserir no mundo capitalista, modernizando os móveis para atender às novas demandas do mercado consumidor e também investiu na divulgação pela propaganda, conforme analisamos no capítulo anterior da dissertação. O proprietário era encarado como “duro”, mas correto. Trabalhador e arrojado. O Martin (Schulz) era um cara com ponto de vista muito arrojado, ele tinha as idéias dele assim, às vezes muito agitado, bravo, assim sabe? Gostava de fumar um cachimbo. Cachimbo não, charuto. Andava sempre com aquele charuto, mas ele era um cara arrojado, trabalhador, correto, muito correto. Os empregados todos trabalhavam satisfeitos porque ele era correto (Zanotti, entrevista, junho de 2005). Quando seu genro entrou na sociedade, O Sr. Martinho Schulz já tinha um grupo de trabalho formado, com artesãos qualificados e a empresa já estava consolidada no mercado, possuindo uma carteira de clientes estável. [...] Todos formados na época do Martin. Quando o Erico pegou essa gente, já estava formado. A empresa já estava montada, o que o seu Erico teve que fazer era dar 166 continuidade aqui. Só que daí o seu Erico modernizou certas coisas, ele era uma cabeça nova, tinha outras idéias (Zanotti, entrevista, junho de 2005). A entrada na empresa do Sr. Erico Meissner, genro de Martinho Schulz, fez com que as relações de trabalho mudassem, pois como não era artesão, desconhendo as técnicas, a estratégia utilizada para se colocar como patrão perante os empregados foi utilizar o discurso capitalista de valorizar a “modernização”, as “inovações” gerenciais, os novos materiais introduzidos e as máquinas que adaptou para o trabalho com as fibras. O meu sogro fez ai uma sala de jantar a senhora não acredita, com seis ou oito cadeiras lindas, para uma mesa oval muito bonita também. Deu luz, tudo aí, lustre grande, foi fantástico! O meu sogro era especialista em móveis, eu não era do ramo não, eu cheguei a aprender um pouquinho, agora eu fui mais, ... vamos dizer... técnico. Eu fazia coisa que eu mesmo aprendia. Artesão não era? Não. Ele era? Ele era, nato, ele saiu da firma em mil novecentos e cinqüenta e sete e peguei sozinho, agora eu tinha mais técnica, o meu sogro tinha pouca técnica de venda, tinha pouca escolaridade como dizem. Eu tinha mais, eu já sabia calcular e tudo ... e eu sou um pouquinho inventor (Meissner, entrevista, junho de 2005). A desvalorização das práticas sócio-ideológicas do cotidiano, como coloca BAKHTIN, é reforçada pelo discurso que separa as esferas dos gêneros primários (do cotidiano) dos secundários (sistemas ideológicos). A fragmentação e a supervalorização das esferas mais elaboradas, situando os conhecimentos tecnológicos dos artesãos como inferiores e o desprezo pelo cotidiano, práticas adotadas na fábrica de móveis Schulz, são estratégias capitalistas para a dominação. Para uma empresa se inserir no mundo capitalista (mercado), é preciso haver uma mudança dos “costumes” 64 incorporados na produção, que no caso do artesanato sempre foram repassados pelas gerações, baseando-se na organização “familiar dos papéis produtivos”. Os limites, a disciplina do trabalho e as inovações do sistema produtivo geralmente são introduzidos pelo empresário capitalista para romper com estes costumes e, pelas regras, legitimar o controle da “vida produtiva do trabalhador”, gerando renda excedente para o capital (THOMPSON, 1998, p. 21). A inovação é mais evidente na camada superior da sociedade, mas como ela não é um processo tecnológico/social neutro e sem normas (“modernização”, “racionalização”), mas sim a inovação do processo capitalista, é quase sempre experimentada pela plebe como uma exploração, a expropriação de direitos de uso 64 THOMPSON faz uma descrição de costume, como sendo transmitido de geração a geração, e desenvolvido sob “formas historicamente específicas das relações sociais e de trabalho”. Assim, os costumes estão ligados à materialidade do trabalhador, e, sendo colocados como algo sem importância no processo capitalista, descontextualizam as ações e desagregam o coletivo, enfraquecendo as classes (1998, p.22). 167 costumeiro, ou a destruição violenta de padrões valorizados de trabalho e lazer (THOMPSON, 1998, p. 19). Assim, pelas inovações e racionalização do trabalho, o empresário Erico Meissner conseguiu o respeito pela dominação no campo intelectual, valorizando as “inovações” introduzidas, a escolaridade formal e considerando o conhecimento técnico do artesão como um elemento de segunda ordem no discurso da produção da indústria. Como relata Ruth Cowan, “quando as indústrias tornam-se mecanizadas e racionalizadas, esperamos que ocorram certas mudanças gerais na força de trabalho: sua estrutura torna-se altamente diferenciada, os trabalhadores individuais tornam-se mais especializados, as funções gerenciais crescem, e o contexto emocional do trabalho desaparece” (COWAN, 1985, p. 197). Sob esta ótica, o relato que faremos a seguir é relevante para perceber que estas construções sobre as tecnologias e matérias-primas, longe de serem neutras, reproduzem as relações capitalistas no fazer artesanal e quase sempre passam desapercebidas pelos trabalhadores, que desapropriados de seu saber técnico, não valorizam o que há de mais importante na produção artesanal: o conhecimento tecnológico, os costumes e a cultura dos trabalhadores, construídos ao longo de suas vidas. 5.4 - Tecnologias e Matérias–primas empregadas na produção dos artefatos na fábrica de Móveis Schulz A matéria-prima principal utilizada na confecção dos artefatos da fábrica de Martinho Schulz era o vime, em várias espessuras, desde aproximadamente um milímetro para as peças mais delicadas, até três a quatro centímetros para as estruturas. A produção do material era em uma área na Colônia Afonso Pena, em São José dos Pinhais, de propriedade da empresa. A área era cuidada por dois funcionários fixos, que colhiam o vime no inverno, tratavam o material, estocando-o em barracões no local. Os feixes eram selecionados de acordo com o tamanho e espessura. De acordo com a demanda da fábrica eram transportados para Curitiba. Nós mesmos produzíamos a nossa matéria prima, tanto é que nós tínhamos a plantação, em Afonso Pena, entre os rios: Marcial e rio Pequeno, limpamos o terreno, fizemos uma barragem grande às margens do rio Pequeno, que subia nas vésperas de chuvas. Sempre chovia, e alagava a nossa plantação. Para não entrar a 168 água do rio ali, nós fizemos uma barragem por todo o rio Pequeno. A nossa plantação também era com irrigação, quando não chovia tínhamos bombas, aí pegamos a água do rio, canalizamos por baixo. O tubo sai para dentro de um poço que nós tínhamos dentro do nosso terreno, que ficava perto do rio e tinha uma bomba possante lá, de onde se tirava água e irrigava toda a plantação. (Erico Meissner, entrevista, junho de 2005). Apesar de ter uma quantidade grande de vimais, ainda era comprado o excedente da produção dos artesãos de Santa Felicidade para complementar os estoques. Foi feita uma pesquisa intensa sobre o vime, procurando melhorar o solo, utilizando areia e adubos, além de comprar mudas melhores para produzir um vime de qualidade. Nós mandamos vir de Caxias do Sul, do Rio Grande do Sul, onde eles tinham vime parece que argentino, tinham várias espécies e nós plantamos tudo, organizava em filas tudo direitinho, tudo bem bonitinho. A nossa plantação podia entrar de automóvel na terra, porque tinha espaço. Podia entrar porque tinha todo o trajeto. (Erico Meissner, entrevista, junho de 2005). [...] nós tínhamos um vime de primeiríssima qualidade [...], eu me lembro que nós íamos lá, porque... tinha um pessoal que trabalhava na chácara. Esse pessoal plantava vime, colhia vime, cozinhava vime e descascava vime; e a gente levava esse vime já cozido para trabalhar. A gente ia lá para medir, para pesar este vime (Zanotti, entrevista, junho de 2005). Neste local era feito também o descasque do vime por um maquinário especialmente desenvolvido para este fim. Este descascador automático de vime, segundo Meissner, se constituía de uma máquina, aonde se introduzia o vime colhido em um orifício que tinha uma regulagem de espessura e o mesmo saía do outro lado descascado, caindo direto em um tanque com água para a lavagem. Depois era secado em uma estufa, estando assim pronto para ir para o estoque ou para a produção na fábrica. Este processo de descasque facilitava o trabalho do artesão, pois como as hastes de vime são cônicas, a máquina deixava a mesma cilíndrica, com espessura uniforme. Este processo só não era possível para as mais finas, que eram descascadas à mão (Meissner, entrevista, junho de 2005). Sobre este processo Meissner relata: Nós tínhamos máquinas, nós só colocávamos dentro e saía descascada do outro lado. [...]Agora essas pequenininhas, esse fininho, não dava para descascar na máquina, era só a mão, tudo a mão, então era tudo manual, era um trabalho danado[...]. Aí veja assim, atrás tinha um tanque grande com água. O vime já caía dentro da água, já era lavado e depois já ia pra estufa. Era tudo bem legal. Tudo classificado por bitola por tamanho, tudo isso. Foi tudo muito bem estudado, nós tínhamos estufas para secar, importamos máquinas da Alemanha com motor a óleo cru, aquele negócio todo, para descascar, para amarra o vime, então tinha uma boa estufa lá também, quer dizer que podia chover. Com tempo bom ou tempo ruim, a nossa produção ia bem. Tem um barracão 169 tão grande lá também, de dois andares onde a gente trabalhava, então o negócio era uma beleza! (entrevista, junho de 2005). Para o cozimento das hastes, havia um “tacho” de ferro, grande, com uma espessura de parede de mais ou menos um centímetro e meio, que era aquecido por fogo na parte inferior, sendo as hastes deixadas em cozimento por aproximadamente duas a três horas, depois da água estar fervendo. Isto que facilita o descasque e ajuda a impermeabilizar o material, pois o mesmo tem o “tanino” embaixo da casca que no cozimento libera substâncias que matam as larvas do cupim e ajudam a proteger o vime contra ataques de fungos. Este processo de beneficiamento também ajuda o material a ficar mais leve depois de seco, sendo ecologicamente correto (Armando Túlio, entrevista, março de 2005). Esta técnica ainda continua a mesma. O tacho para o cozimento das fibras, está ainda hoje em uso, instalado nas dependências da Fábrica de Móveis Túlio, em Santa Felicidade. FIGURA 42: Tacho para cozimento das fibras naturais, instalado nos fundos da fábrica de móveis Túlio, em Santa Felicidade. FONTE: Foto da autora, 2005. Depois de cozido e seco, o vime era selecionado por bitolas e feitos feixes, que eram armazenados no depósito. Conforme citado no depoimento de Armando Túlio, este material podia ficar estocado por anos, desde que não pegasse umidade. 170 A questão ambiental (não colocada com esta terminologia), sempre foi uma preocupação nas tecnologias envolvidas, fato demonstrado pela maioria das indústrias de fibras, como relata Armando Túlio: Nós vimos que o melhor mesmo era o Salix purpúrea [tipo de vime], tinha maior flexibilidade e ele se adaptava melhor às regiões, aos baixios,onde ele era plantado. Que era uma árvore que se adapta bem às matas ciliares, é uma árvore associativa. Este estudo todo, a nossa família fez [...] Nós fazíamos a colheita, o cozimento, depois o descasque. Nós armazenávamos o material. Ele pode ser armazenada por quinze, vinte anos, é um material que não tem tempo, digamos assim[...] o Salix, material desprendido no cozimento é o que faz a aspirina. E a água [do cozimento], quando jogada no rio ela vem a purificar. Ela purifica a água do rio, então é uma vantagem, que quem tem perto digamos assim de mananciais, esse material não polui, ele pode ser muito bem trabalhado sem ter danos ao meio. O material [vime] é fabuloso, o aproveitamento é fantástico. Então nós descobrimos o aproveitamento de tudo. No descasque, a sobra da casca é grande (ele pega trinta por cento), então aquilo que nós deixávamos ele curtindo, ele fermentava e depois era misturado a outros vegetais que estavam em decomposição e nós fazíamos um fertilizante [..]. Era o que se fala hoje: agricultura orgânica. Nós deixamos aquilo se decompor e depois era usado, porque nós plantávamos a couveflor, repolho, tomate, nós tínhamos sempre a horta cheia. [...] Os retalhinhos pequenos que saíam, o que não era aproveitado para fazer fabrico de cortina e coisa assim, era aproveitado para aquecer a caldeira. Então, assim havia um aproveitamento, era uma seqüência total. Por isso que eu digo que é um material espetacular (Armando Túlio, entrevista, março de 2005). Na fábrica de Móveis Schulz, quando a matéria prima chegava, era selecionada segundo o trabalho a ser desenvolvido por cada funcionário. Antes de ser usado, o vime era deixado de molho na água para só depois de amolecido começar o trançado, pois seco tornase muito rígido. O vime pode ser utilizado inteiro, roliço ou em lâminas. Se o trabalho fosse com lâminas, primeiramente se utilizava o rachador, que é um instrumento que divide o vime em 3 ou 4 partes. Ainda hoje este instrumento é um dos mais importantes do trabalho artesanal, sendo utilizado para abrir as hastes antes da laminação. 171 FIGURA 43: Natalino Túlio, artesão de Santa Felicidade, fundador de Móveis Túlio, utilizando o rachador para abrir as hastes de vime. FONTE: Foto de Kosak, in: BALHANA, 1958, p. 96. Quanto a esta etapa, BALHANA relata: Esta rachadura pode ser obtida com as mãos, ou com o auxilio de pequeno instrumento de madeira dura, em forma de pêra, cuja extremidade menor termina em asas, e o “rachador de vime”. Com a ponta de uma tesoura cada haste de vime (stropa) é fendida em três ou quatro partes até a altura de uns 15cm, depois do que, o cesteiro, segurando a haste com a mão esquerda, introduz com a mão direita o rachador de vime no centro daquelas divisões, empurrando para a ponta da haste que se abre em tantas secções (stropa racha), conforme o tipo de rachador utilizado. Para um trabalho de melhor apresentação, é necessário reduzir o vime a laminas bem finas, o que se consegue mecanicamente com máquinas apropriadas (1958). 172 O processo de laminação consiste em passar o vime já rachado entre dois cilindros, com uma lâmina no meio, que separava a capa do miolo das hastes, cmo cita Meissner. Tinha uma máquina que preparava [...] o vime onde ele era primeiro rachado, depois empilhado, laminava aquele negócio todo, ficava prontinho, na medida certa. A máquina laminadora, inclusive essa eu também modifiquei, eu fiz muitas modificações (Meissner, entrevista, junho de 2005). Da laminadora o vime sai dividido em capa e miolo. A capa é a parte externa, mais resistente, “pega lustro” e mais brilho quando se usa o verniz, sendo, portanto, mais utilizada nos móveis. Também é conhecida como “alheassa”, nome de origem portuguesa. O miolo, menos resistente, é utilizado preferencialmente nas cestarias e detalhes que exigem menos resistência da fibra (Armando Túlio, entrevista, março de 2005). FIGURA 44: Laminadora de vime da fábrica de Martinho Schulz, utilizada na fábrica de Móveis Túlio. FONTE: Foto da autora, 2005. Na fábrica Schulz, o vime já vinha rachado e laminado da unidade de São José dos Pinhais, pronto para o artesão usar. O mesmo acontecia com o junco ou cipó, que se preciso já vinha em cordinhas, “acochado”, pronto para ser utilizado. A fábrica possuía ainda uma serra-fita toda feita em madeira, do início do século XX, para serrar as peças de madeira, como portas, tampos, fundos, etc...e uma furadeira horizontal para fazer as furações para os encaixes dos componentes dos produtos, que foi adaptada pelo senhor Schulz, incorporando um motor, sistema que ainda não era 173 utilizado nas fábricas de móveis locais e muito pouco em outras regiões do país, mesmo aonde a tradição moveleira era maior. Vale ressaltar que todas estas máquinas tiveram que ser projetadas pelas fábricas, ou serem adaptadas para o trabalho com as fibras por exigirem rotação e ajustes diferenciados (Meissner, entrevista, junho de 2005). FIGURA 45: Furadeira horizontal produzida para Móveis Schulz, adaptada para o trabalho artesanal, atualmente em funcionamento na fábrica de móveis Túlio. FONTE: Foto da autora, 2005. Entre as máquinas, havia uma lixadeira produzida pela indústria Seiler, de Curitiba, também no início do século XX, especialmente projetada para a fábrica de móveis Schulz. Esta ainda é utilizada pela fábrica de Móveis Túlio, sendo que Armando Túlio declarou em seu depoimento que vendeu uma mais moderna, que tinha comprado, para ficar com esta antiga, pois a mesma se adapta melhor ao trabalho artesanal executado, tendo uma rotação ideal para a produção dos componentes de madeira ou fibras dos produtos artesanais (entrevista, março de 2005). 174 FIGURA 46: Lixadeira toda feita em madeira, produzida pela indústria Seiler para Móveis Schulz, atualmente em funcionamento na fábrica de móveis Túlio. FONTE: Foto da autora, 2005. Na Fábrica Schulz, segundo o Sr. Antônio Pereira, havia um setor especial para o lixamento das peças, por ser um processo que gera muita poeira e pode comprometer o acabamento dos produtos (entrevista, junho de 2005). Além destas máquinas, ferramentas e equipamentos já citados, os instrumentos utilizados eram: o rachador, uma faca ou canivete, para cortar as fibras; uma ponteira ou ponteão, para introduzir as pontas da fibra de modo a escondê-las; martelo para pregar as fibras na estrutura e tesoura. Todos eles continuam a serem utilizados, sendo introduzida apenas a grampeadeira, que passou a ser utilizada para fixar as fibras nas estruturas. O trançado dos móveis era feito a partir de estruturas, que podiam ser de madeira, vime ou ferro. A estrutura de madeira era maciça, podendo ser o pinho (Araucária) para as partes a serem revestidas com as fibras, ou a imbuia, utilizada nas partes torneadas, portas, pés e tampos aparentes. Com o surgimento do aglomerado no mercado, o mesmo foi utilizado para os fundos dos artefatos produzidos ou para os tampos de balcões e mesas a serem revestidos. Os tampos de móveis de cozinha e copa eram revestidos com a fórmica65, que passou a ser utilizada na indústria moveleira em 1920, sendo introduzida no Brasil, através da importação aproximadamente na década de 50 (incentivado o uso pelo plano de expansão 65 Um breve histórico e especificações técnicas do material podem ser acessados no site: http/ www.formica.com. 175 mundial da empresa norte-americana), e incorporada na produção de móveis da empresa Schulz no final desta década. ... a primeira fórmica nem era fabricada no Brasil, era um Alemão Judeu, ele me ofereceu a fórmica, ele chamava “for mica” [...]. Daí com aglomerado também, aglomerado de Eucalipto, nós fazíamos tampos bons, todos dessa grossura sabe, maciços, revestidos com fórmica, fosse redondo, retangular, quadrado, então era um material muito bom. Eu tinha uma copa na minha casa, que eu fiz em mil novecentos e sessenta [...], com um conforto fantástico, eu fiz com seis cadeiras, para uma mesa redonda grande, com fórmica branca, tudo. Ficou muito, muito legal! (Meissner, entrevista, junho de 2005). Este fato demonstra a preocupação de estar sempre utilizando materiais e tecnologias novas para incorporar aos produtos. É uma visão gerencial estratégica que foi apontada pelos demais artesãos como “inovação”, tanto nos materiais, processos, equipamentos, como na divulgação e venda. Uma das “inovações” apontadas foi a utilização da estrutura de ferro na armação dos móveis, até os anos 50 era feita pela maioria dos demais artesãos apenas de madeira ou vime. A estrutura era tratada com um produto anti-ferrugem e isolado pela pintura para não ter problemas com as condições climáticas, já que os móveis eram utilizados em todas as regiões do Brasil, desde as mais frias até as mais quentes e úmidas. Para a confecção das estruturas a empresa tinha um serralheiro, o senhor Constante, de origem polonesa, especialista na confecção destas armações. Entretanto, as armações de ferro, segundo o depoimento de Meissner, foram uma invenção européia, trazida por uma empresa de São Paulo e incorporada pelos Móveis Schulz. [A estrutura] era de ferro, mas tinha que prepara o ferro primeiro. Ele era tratado com ácido. Primeiro lixava, limpava, depois passa ácido, lixa de novo, passa ácido de novo. Depois pinta duas ou três vezes com tinta contra ferrugem, o fundo, depois recebia acabamento, esmalte. Então os nossos móveis com armação de ferro, nunca enferrujavam...( Meissner, entrevista, junho de 2005). 176 FIGURA 47: Cadeiras feitas em vime, com armação de ferro maciço, produzida na década de 50 por Móveis Schulz. FONTE: Foto da autora, 2005. A principal atividade dentro do processo de produção dos móveis artesanais é o trançado das fibras, feito por artesãos experientes, que dão forma aos móveis e demais artefatos. Na parte do trançado o que sobressaía era o talento, criatividade, habilidade e o conhecimento técnico dos artesãos. A partir das estruturas, que eram planejadas pelo senhor Martinho Schulz conjuntamente com o marceneiro ou serralheiro, os artesãos teciam as tramas, criando desenhos variados, inclusive com detalhes coloridos. Mesmo com o uso de máquinas, ferramentas e instrumentos, o fazer artesanal está especialmente caracterizado neste processo, pois o trabalhador é o agente das mudanças, da transformação da matéria prima em produto, utilizando-se das máquinas apenas para estruturar ou dar acabamento aos produtos. A variedade de tramas, trançados e modelos produzidos pelos artesãos era imensa. Milhares de modelos diferentes, entre os pequenos objetos e móveis, que eram numerados, gerando um catálogo com os modelos produzidos, que ainda podiam ser adaptados de acordo com o gosto do cliente. Os catálogos apresentavam estas possibilidades, conforme exemplo da figura a seguir, que apresenta variações de poltronas de uma das linhas. 177 FIGURA 48: Catálogo de poltronas produzidas por Móveis Schulz. FONTE: Digitalização a partir do original cedido por Armando Túlio. No acabamento das peças de fibras, depois de serem lavadas e secas em estufa eram lixadas e utilizavam o fogo para queimar algum fio da fibra que ficasse solto (hoje se utiliza o maçarico) e aplicadas várias mãos de verniz. Na seção de envernizamento foi criado um sistema de pintura utilizando a pistola incorporada a um dispositivo criado pelo senhor Erico, que retirava a umidade do ar evitando que se depositasse água na superfície pintada, o que melhorava a qualidade do acabamento. ...com pistola. Daí, por exemplo, tinha o problema da água, eu tive filtros, quer dizer, como é que se chama? Manômetro, barômetro, é nanômetro que mede a pressão, com um filtro que já vem de fábrica, mas não era suficiente porque passava gotículas de água. Eu inventei um filtro que esfriava a água, o ar quando entrava no filtro, ele era esfriado e separava a água do ar e só passava o ar frio daí sabe? Isento de umidade. Esses outros não, porque do compressor o ar sai quente (Meissner, entrevista, junho de 2005). 178 A excelência da qualidade do envernizamento das peças, comentada pelos os entrevistados nos seus depoimentos, era devida a um processo especial, que envolvia várias etapas, muita investigação e pesquisa sobre os vernizes utilizados. Foram feitos contatos com uma empresa do Rio Grande do Sul, que desenvolveu um verniz chamado Militec, que tinha que ser feito a partir de uma mistura, utilizando um endurecedor, portanto não podia ser estocado pronto. Este segredo da fórmula era guardado a sete chaves. Era um verniz todo especial, como é que eles chamavam..., com endurecedor. Não era um verniz comum. Era um verniz especial que a gente tinha que fazer a composição, juntar.[...] Nós isolávamos a madeira com seladora, à base de nitrocelulose. Aplicava primeiro bem lixado, bem lixado mesmo. Depois aplicava a seladora, depois lixava de novo, fazia outra aplicação, depois lixava de novo. Quer dizer, ficava polido que só vendo. Então isso era tudo que dava a diferença, mas custava dinheiro e com isto nós acabamos perdendo o mercado (Meissner, entrevista, junho de 2005). Neste setor de pintura, segundo os depoimentos dos trabalhadores, era utilizada máscara de proteção para não respirar diretamente os químicos do verniz e feito um rodízio das pessoas no trabalho, pelo processo ser prejudicial à saúde. Pelos relatos percebemos que esta tecnologia implementada pela fábrica de Móveis Schulz, de utilizar a pistola acoplada a um dispositivo para retirar a umidade, bem como o uso de equipamentos de segurança pelos funcionários e ambientes apropriados para cada etapa do processo, foram iniciativas do proprietário, mas compartilhadas com os funcionários que decidiam em conjunto a melhor forma de implementá-las. FIGURA 49: Técnica de envernizamento com o uso de pistola, utilizada na fábrica de móveis artesanais MOVIME. FONTE: Foto de Ana Staben, 2004. 179 A inovação e inserção de novas tecnologias ou novos produtos muitas vezes não levam em consideração os sujeitos da comunidade, os trabalhadores, promovendo mudanças sem estabelecer um compartilhamento que os prepare para as mesmas. Assim, muitas vezes estas inovações tecnológicas, por não fazerem parte do repertório cotidiano dos trabalhadores, são desprezadas ou reelaboradas. Para que haja uma aproximação e entendimento, é importante considerar os trabalhadores não como atores, mas como autores do processo de elaboração e produção dos artefatos, em uma construção pedagógica, de trocas, baseada no respeito pelos envolvidos. Assim, percebemos na foto acima, que apesar da importância do uso correto dos equipamentos de segurança, os mesmos não são utilizados na maioria das fábricas ainda hoje, já que esta foto é de uma fábrica de Santa Felicidade, em 2004. O não compartilhamento desta “norma” de segurança leva os funcionários a considerarem-na sem sentido. Nos acabamentos, além do verniz, na Fábrica de Moveis Schulz usava-se o vapor de enxofre que clareava as fibras e o banho de cal, que deixava o vime com uma coloração marrom café. Para aplicar outras cores, era utilizada a pintura com corantes especiais, naturais ou artificiais. Segundo Pereira (entrevista, junho de 2005), esta etapa do clareamento era o trabalho mais ingrato, pois o cozimento das fibras com vapor de enxofre liberava muitos gases. As hastes de vime ficavam a noite toda no enxofre e no dia seguinte quando se abria a porta do quartinho o vapor exalado era muito forte. Entretanto o resultado para o trançado era positivo, pois a fibra ficava macia e mais fácil de trabalhar. [...] tinha uma parte para passar enxofre no vime também, que daí molhava o vime, um quartinho bem fechado, era só com uma porta e sem janela, sem nada. Então ali se passava, esse serviço era meu também, eu fiz muito esse serviço. Passava na água, molhava bem os feixes de vime e punha lá dentro do quartinho, Daí acendia uma lata com enxofre e deixava pousar lá. Pousava queimando o enxofre, queimava lá dentro com o vime molhado, [...] daí ele clareava o vime e amolecia (Pereira, entrevista, junho de 2005). Com relação à matéria-prima básica, além do vime, outros materiais como o junco, cipó e até alguns materiais sintéticos eram utilizados nas tramas. O cipó era trazido do litoral, colhido pelos caboclos da região. Era o cipó timbopeva ou imbé, que são parasitas que crescem no alto das árvores, nascendo a partir de uma matriz e formando vários cordões de cipó. Crescimento igual tem o junco que era colhido na Amazônia e trazido para o sul. Hoje, esta forma de extrativismo está sendo controlada, sendo uma prática que muitas vezes causa a devastação. Para tirar uma matriz com os cipós, 180 que podem estar a mais de 50 metros de altura, os extratores derrubam a árvore para facilitar a colheita (Adarcísio Ferro, entrevista, fevereiro de 2005). Um material alternativo bastante utilizado na fábrica de Martinho Schulz foi uma cordinha de papel Kraft, que era enrolado em uma máquina especialmente comprada para esta função. Não era preciso usar colas nem nenhum tipo especial de acabamento, pois o material era tão resistente que durava anos, mesmo sem tratamento. ... eles descobriram de fazer uma cadeira com o material que era papel [...].Então você veja uma coisa, foi ele que fabricou. Ele tem fabricado milhares e milhares de poltronas daquele material. E eu dizia: mas isso daqui se pega uma chuva desmancha? Que nada! Dura cinqüenta, cem anos aquilo lá. [...] ele que fazia, tinha uma máquina e ele que inventou a máquina para fazer a “coisa” para trançar, a matéria prima (Silvano Túlio, entrevista, abril de 2005). Segundo MEISSNER (entrevista, junho de 2005) ... inclusive eu aperfeiçoei essa máquina também, que o meu sogro (Schulz) tinha essas máquinas, mas não funcionava bem, eu até já te contei né, era de papel kraft, era um papel especial que tinha muita celulose sabe? Então era um papel que a senhora podia fazer um cartucho dele, botar água dentro dele e não furava sabe, era bom. Então esses rolos, essas bobinas, aí eu descobri que tinha que por oito dias em baixo da água, depois tirava da água. Ficava oito dias fora da água, na sombra, empilhado, um em cima do outro para passar umidade e ficar mais ou menos macia. Aí entravam as máquinas. Essas máquinas eu modifiquei também, a máquina não funcionava. [...] era de São Paulo, mas aqui não funcionava bem. Estava com uma cordinha ruim e eu consegui colocar amortecedores e um monte de coisas. Aí pus coisas, modifiquei e consegui fazer uma corda de primeiríssima qualidade sabe, então fizemos móveis de cordinha. Esta tecnologia do “cordel” foi aplicada em várias linhas de móveis, como exemplificado na imagem a seguir. Este papel era trançado como as fibras em uma estrutura de ferro, vime ou madeira. Podia ser tingido ou envernizado, apresentando características que o assemelhavam às fibras naturais. 181 FIGURA 50: Móveis feitos com cordel, material citado como tendo sido produzido com papel Kraft, pela fábrica de Móveis Schulz e aplicado na trama de várias peças. FONTE: Fotografia digitalizada a partir do original cedido por Armando Túlio. A inovação tecnológica é enfatizada como um dos fatores de modernização da indústria, por outro lado, em poucos momentos os funcionários ou o proprietário da empresa ressaltaram o valor do conhecimento técnico e a qualidade do trabalho dos artesãos, deslocando estes valores para os produtos e as matérias–primas utilizadas. A apropriação do trabalho do artesão esvazia de significados seu trabalho, para controlar a produção e gerar a mais-valia (THOMPSON, 1998). Todas as máquinas, tecnologias, materiais e inovações apresentadas, como já discutimos anteriormente, demonstram que para a fábrica de Martinho Schulz se inserir na “modernidade”, passou a incorporar, tanto nos seus discursos, na sua prática cotidiana de produção, assim como na propaganda de seus produtos, os ícones representativos da industrialização, mesmo continuando a ser uma empresa que trabalhava com móveis artesanais. Estas representações da modernidade também estão presentes na esfera da circulação, pelas estratégias de venda adotadas, para inserir os artefatos como mercadorias no mundo capitalista, como tentaremos demonstrar no item seguinte. 182 5.5 - Criação, Produção e Circulação dos Produtos da Fábrica de Móveis Schulz Desde o início de seu funcionamento, em 1930, a fábrica de Móveis Schulz já adotava uma prática de criação, produção, divulgação e circulação de seus produtos que a diferenciava das demais que havia em Curitiba. Na criação dos produtos, além dos inspirados em modelos europeus, o artesão Martinho Schulz tinha uma capacidade criativa muito grande, gerando inúmeros novos modelos (Zanotti, entrevista, junho de 2005). Eles eram projetados diretamente na confecção de um protótipo, como é comum nos projetos de móveis artesanais até hoje. Junto com a pessoa que fazia as estruturas e o trançado, o móvel era pensado e executado. Para testar se estava ergonomicamente adaptado, ou confortável, como os artesãos falam, o protótipo era submetido à apreciação dos próprios trabalhadores, que o experimentavam. Se fosse uma cadeira, sentavam, testavam o conforto, dando suas opiniões para as modificações necessárias. ... tem que testar várias peças. Não está bom, modifica, levanta, abaixa, deixa mais largo, mais curto, né. É tudo pesquisado, tudo direitinho, se não, não dá certo [...] o desenho ele dá a estética, mas o conforto, a funcionalidade tem que ser testado. É que nem no assento do automóvel: faz e depois experimenta. Era testado. Aprovava ou não (Meissner, entrevista, junho de 2005). Desta forma foram criados muitos produtos pela empresa, inclusive móveis para portadores de necessidades especiais, como uma variedade de cadeiras de rodas, adaptadas aos usuários. 183 FIGURA 51: Cadeira de rodas fabricada por Móveis Schulz para portadores de necessidades especiais. FONTE: Fotografia digitalizada a partir da original cedida por Móveis Desigan, dos arquivos de Móveis Schulz. Sobre a criação e produção destas cadeiras especiais, Erico Meissner relembra: (Estas) cadeiras (que) você está vendo aqui para doentes, de rodas, eu fabriquei muitas também. Inclusive eu melhorei ela, aperfeiçoei. (Eram) de acordo com a necessidade do doente. Aí é que está a técnica. Você tem que inventar, tem que criar. Fizemos inclusive com assentos com um tipo de vasilhame embaixo, para pessoas que tivessem incontinência de urina, ou qualquer coisa assim né. Podiam fazer, isso daqui levanta, aquela deita, então podia até dormir em cima da cadeira.Os aros aqui (mostra detalhe da foto), podia trocar. (E essas ferragens) mandava fazer, tinha que mandar fazer sobre encomenda. De acordo com a necessidade fazia. Aí é que a gente levava vantagem de muita gente, porque a gente sabia e os outros não sabiam fazer (entrevista, junho de 2005). A criação de novos produtos pela empresa era feita pensando no processo produtivo, conforme relatado, pesquisando ferragens, mandando produzi-las conforme a 184 necessidade. Este papel que hoje é designado aos designers em algumas empresas, sempre foi exclusivamente dos proprietários das fábricas, que em conjunto com os artesãos, pensam os produtos materializando-os por protótipos para testes. Esta maneira de criar os produtos, segundo ORTEGA é uma característica do artesanato, especialmente do tradicional, que ainda hoje, apesar de algumas empresas possuírem um designer para pensar em novos produtos, praticam a criação conjunta cotidianamente nas fábricas. O desenho industrial é fundamentalmente diferente do processo criativo do artesão. O desenhista imagina primeiro um objeto e depois encontra uma maneira de produzi-lo. Pelo contrário, o artesanato, como muitos artistas trabalha a partir do material e a ferramenta, chegando a um desenho original (ORTEGA, s/d., p. 145). Pelo fato dos próprios artesãos exercerem a função de criação e produção, pela tradição do domínio de todas as etapas do processo produtivo, percebemos nas entrevistas que a maioria dos proprietários artesãos de Curitiba não entende e não aceita, ainda, o trabalho dos designers. Isto ocorre por julgarem que os designers não expressam a forma de pensar e criar os produtos artesanais. O desenho, para os proprietários das fábricas artesanais, “só dá a estética” (Meissner, entrevista, junho de 2005). Muitas “intervenções” realizadas pelos designers junto aos artesãos já levam uma proposta fechada e impõem padrões de trabalho, que não sendo construídos junto à comunidade causam uma tensão e não alcançam seus objetivos, pois estão desconectadas da realidade das pessoas. Pensamos que o que deve ocorrer é a “interação”, nunca esquecendo que o saber tecnológico que os artesãos detêm foi construído historicamente por gerações e que sempre devemos respeitá-lo, nunca impondo o saber acadêmico como superior. A aproximação do designer com as comunidades não deve ser apenas visando a expropriação de conhecimentos para uso pessoal ou das indústrias, nem como intervenções que incorporem valores capitalistas à produção local, mas possibilitando a liberdade de escolha das comunidades em aceitar novos referenciais para sua produção (CORRÊA, 2003). Mesmo as comunidades que aparentemente não possuem uma tradição explícita, guardam as memórias dos antecessores, têm uma história individual e coletiva de trabalho, mesmo que recente, que devem ser consideradas na geração de novas alternativas. Para a maioria dos artesãos a prática e a experimentação é que vão determinar se o móvel apresenta funcionalidade e conforto. Assim, a função do designer é exercida pelo 185 próprio artesão, que pensa o produto, os materiais a serem empregados, qual a função, uso e as relações entre os itens de uma linha. A fábrica de móveis Schulz também trabalhava segundo esta tradição de criação de produtos, não tendo introduzido profissionais especialmente para a criação dos móveis. Era o proprietário que assumia este papel em conjunto com os artesãos, além de se inspirar nos modelos dos catálogos importados. Havia uma prática de criar uma linha de produtos identificada por códigos e numerar cada componente desta linha. Esta prática pode ser percebida na introdução dos catálogos para venda dos artefatos da empresa, conforme exemplificado na figura a seguir, na qual está representado o conjunto número 93, e seus móveis componentes, numerados de 1 a 16. Este conjunto para sala de estar inclui cadeiras, poltronas, cadeiras para bebê, mesa de centro, luminária e batedor de tapete. Estas linhas são apresentadas como famílias de móveis e acessórios, com características formais, design das tramas, acabamentos e materiais semelhantes. FIGURA 52: Página digitalizada de um catálogo de Martinho Schulz com produtos numerados. FONTE: Digitalização de fotos cedidas por Armando Túlio, do arquivo dos móveis Schulz. As vendas dos produtos por catálogos eram feitas por representantes, que apresentavam para os clientes as linhas ofertadas. Esta técnica é uma forma de intensificar as vendas, aproximando o produtor e o consumidor na esfera da circulação dos produtos, mostrando as ofertas existentes e possibilitando ainda ao consumidor gerar outras alternativas 186 a partir destas, o que proporcionava a ilusão de compartilhar a criação. Os representantes atuavam principalmente nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e nas cidades do interior de Santa Catarina e do Paraná. Eram lojas especializadas do ramo ou uma espécie de “caixeiros viajantes”, que divulgavam os produtos em todas as regiões do país. ... o Erico e o Martinho também, eles trabalhavam com representantes, né. Na época era o caixeiro viajante que fazia as vendas. Não é que nem hoje com computador e tal, ele ia até as casas, levava, apresentava e depois ele tinha que me trazer o pedido, né. (Tinha) um catálogo pra trabalhar, uma tabela (de preços), anotava o pedido lá e ele tinha que respeitar a data. Tudo era numerado... (Zanotti, entrevista, junho de 2005). Podemos perceber em alguns dos móveis apresentados na foto abaixo uma ligação com o estilo Art Nouveau, usando o vime ou cipó vergado no lugar da madeira. O processo de curvamento utilizado remete ao criado por Thonet, com o uso das formas para moldar e curvar as fibras. FIGURA 53: Foto de uma página com alguns produtos constantes no catálogo de Martinho Schulz, com códigos de identificação. FONTE: Digitalização de fotografia cedida por Armando Túlio, dos arquivos de Móveis Schulz. 187 As vendas por catálogos geraram uma documentação fotográfica dos produtos, que eram todos numerados, tendo um código que identificava cada peça. Este sistema provavelmente foi inspirado em um catálogo alemão, da empresa identificada pelas siglas S, C&C, aproximadamente do final da década de 20 e início da década de 3066. FIGURA 54: Página digitalizada de um catálogo alemão, da S,C&C, com produtos e tabela de características e preços. FONTE: Digitalização de catálogo cedido por Armando Túlio. Para as vendas dos produtos, além doa catálogos, também havia o sistema de vendas direto na loja, aonde o cliente podia escolher o que queria e levava na hora, ou encomendar pelas fotos e catálogos à disposição no local. Os clientes eram os curitibanos e muito freqüentemente, os turistas. Esta era a principal fonte de vendas da fábrica, que investiu em um espaço de exposições, composto por show-room e vitrine. 66 Entre 1928 e 1932, segundo depoimento de Armando Túlio. 188 Isto era vendido mais assim para turista, o turista vinha aí, comprava, usava. Mais na época de janeiro, fevereiro. Quando terminava o tal do carnaval sumiam os turistas, ou então logo depois, porque era o pessoal que vinha de fora. Tinha as prateleiras com a cestaria e o centro da loja era usado para os móveis. Daí lá a gente atendia toda a clientela que vinha, o curitibano, o pessoal de fora, ele atendia bastante gente de fora, do pessoal, às vezes vinha alguém da Europa também, eu me lembro de uns portugueses que vieram na época. E ela mandou; a senhora comprou umas cestas aqui e mandou pra lá, e ela teve uma resposta que eles não acreditavam que podiam fazer isso no Brasil (Meissner, entrevista, junho de 2005). FIGURA 55: Página digitalizada de um catálogo de Martinho Schulz com produtos numerados, em uma composição sugerida para ambientação dos mesmos. FONTE: Digitalização de fotos de Martinho Schulz.. Os compradores destes móveis eram, além dos turistas de outros Estados e do exterior, principalmente a “elite” curitibana, pois a forma de apresentá-los, a qualidade da confecção, matérias primas empregadas e diferenciais de acabamento os encareciam. As classes mais populares não tinham condições, como os atuais financiamentos, para facilitar as compras destes produtos. Os curitibanos vinham direto. Depois tinha o turista, mais na véspera do feriado e em férias. [...] Era a classe alta. Eles compravam os móveis de vime. Pobre sempre foi pobre. [...] daí tinham aqueles que vinham, viam, adoravam, mas quando olhavam o preço... E não tinha crediário na época, a época não é como agora, agora você compra um móvel de quinhentos reais, em vinte prestações, na época não tinha. Quando muito se era conhecido do patrão, daí podia fazer lá no caderno em duas 189 vezes, mas muitas vezes não eles só vinham, gostavam e não levavam (Zanotti, entrevista, junho de 2005). As fábricas de Santa Felicidade, até a década de 60, ainda não se encontravam no mesmo patamar de produção e divulgação dos produtos, não sendo, portanto, concorrentes diretos. Atendiam principalmente as camadas da população que não eram o público alvo da empresa de Martinho Schulz, ou seja, as “classes populares”. Isto é relatado por Geraldo Stival, dono da GS móveis, que na época produzia móveis de qualidade inferior, para perder menos tempo na produção e poder concorrer com preços mais baixos. A freguesia dele (Schulz) era uma freguesia de alta classe. E a nossa já era uma classe mais baixa. Para o freguês nosso, então, não podia fazer aquelas mercadorias super bem feitas, porque se não, não tinha preço para vender. Tinha que vender mais barato, se não nem vende (Stival, entrevista, junho de 2005). O sistema de vendas direto, utilizado por Martinho Schulz, começou a ser difundido em uma grande empresa européia, a IKEA67, só em 1953. Esta empresa introduziu no lugar dos catálogos, o show-room para vendas diretas aos clientes, que podiam escolher as peças que desejavam e fazer encomendas. Este sistema que foi adotado pela Fábrica de Martinho Schulz, em Curitiba, já na década de 30, era uma prática de comércio pouco difundida no Brasil ou no exterior. Quanto a este sistema de vendas, de escolha dos produtos pelo cliente, ou encomenda a partir do objeto já existente, passível de análise funcional, estética, enfim, tridimensional, Meissner relata: ... eles mesmos que escolhiam tudo lá, depois na saída só montavam a mesa grande com máquinas de calcular e tudo. Papel, papelão, barbante, não dava nem para fazer pacote, levava, na hora todo mundo queria sair na hora [...] Então era uma época de bons negócios para nós. [...] e era tudo manual, a nota dava muito trabalho, era difícil. [...] foi sempre um bom negócio para nós, muito bom (entrevista, junho de 2005). Este sistema de compra permite ao consumidor “atender a si mesmo”, tendo acesso direto ao produto, exposto em prateleiras que funcionam como “vitrina interna da loja”, além de ser local de armazenagem dos produtos (OLIVEIRA, 1997, p. 38 e 39). 67 A IKEA é uma das mais conhecidas indústrias de móveis da Suécia, que sempre foi conhecida pelas inovações, geração de oportunidades e valorização dos produtos por meio do conceito de design. Para conhecer a missão, histórico e linhas de produtos desta empresa, ver site: www.ikea.com . 190 Com relação á quantidade de produtos ofertados pela empresa, além da variedade dos pequenos artefatos como as cestas, porta-pirex, porta-copos, etc., os móveis também possuíam, como relatamos, uma infinidade de modelos, como relata Silvano Túlio: [...] ele fazia muito, ele fazia toda ela, porque ali tem mais de uns oito ou dez mil modelos, é uma coisa impressionante.[...] ele trouxe alguns modelos da Alemanha para fazer aqui, mas ele fabricava todos aqueles modelos, inclusive. Lá ele fabricava tudo aqui no Brasil, só que ele fez com mais perfeição. Por exemplo, o caso do porta-pirex, foi lá, Santa Marina lançou o pirex, naquela época em cinqüenta, quarenta e oito, mais ou menos depois da guerra. Você sabe o pirex você coloca no forno ele fica quente e não podia por na mesa porque manchava a mesa, o calor do pirex. Então ele inventou de fazer um suporte para o pirex. Foi aí que ele fez uma linha, de mais ou menos, eu calculo acho que uns: Oitenta ou cem tipos de portapirex, de todas as maneiras (Silvano Túlio, entrevista, abril de 2005). FIGURA 56: Fotografia digitalizada de um catálogo de Martinho Schulz, composto por uma montagem com vários produtos feitos pela fábrica. FONTE: Catálogo da fábrica de móveis Schulz, cedido por Armando Túlio. Sobre o fato de não exportar os produtos e à quantidade de trabalhos executados, Meissner afirma que a produção era limitada ao material disponível. Segundo ele, a fábrica só não produzia mais porque não tinha material suficiente, mesmo com a compra de outros fornecedores, incluindo o Estado de Santa Catarina. Por este motivo nunca se exportou 191 para a revenda em lojas do exterior, apesar de ter demanda, porque a quantidade teria que ser muito grande e não havia capacidade produtiva do vime ou outras fibras no país (entrevista, 2005). Todas estas relações introduzidas nas esferas da produção, circulação e consumo68 dos artefatos, apontam para a questão da “junção do consumo”, aproximando produtores e compradores, inserindo o móvel artesanal com fibras na sociedade de consumo. A publicidade, que foi amplamente adotada para a divulgação dos produtos da fábrica de Martinho Schulz, foi uma forma de socialização do consumo. As “últimas tendências” para o lar, as “inovações” apontadas, são recorrentes em todos os anúncios da empresa. Há uma atualização do processo produtivo, mas sempre permanecem os valores tradicionais. Atualizam-se nas propagandas as imagens e as linguagens, mas os discursos capitalistas do consumo permanecem. “Corre uma temporalidade cíclica” na publicidade, que como um “caleidoscópio” modifica as formas a partir dos mesmos elementos. “A publicidade muda, sem mudar” (ROCHA, Everardo. Palestra, I Simpósio Nacional de Gênero e Mídia, 2005). Analisar o histórico da fábrica de Martinho Schulz, aproximando as esferas da produção e circulação, possibilitou tentar deslocar a análise do viés econômico, centrado normalmente só na produção. Esta análise buscou também demonstrar o poder que o consumo tem no mercado, o que o torna uma categoria fundamental nas análises sociais e históricas. A história da Fábrica de Móveis Schulz, apesar de ser um caso individualizado de uma empresa, nos possibilitou compreender como as representações da modernidade presentes neste microcosmo foram importantes para refletir também sobre a cidade de Curitiba e suas indústrias, apresentando, mesmo no universo particular, perspectivas que apontam tanto para a interação como para a fragmentação dos conceitos de tradição e a modernidade. 68 As questões sobre o consumo, como: compradores, destinação dos produtos, usos, relações com os usuários, além das questões teóricas sobre esta esfera, não foram possíveis de serem abordadas neste trabalho, podendo vir a ser fontes para outras pesquisas. 192 CONSIDERAÇÕES FINAIS Para tentar atingir o objetivo desta pesquisa, que foi resgatar pelas memórias individuais e coletivas a percepção dos artesãos sobre o trabalho com fibras da fábrica de móveis de Martinho Schulz, e por conseqüência da cidade de Curitiba, desvelando o percurso histórico, as relações simbólicas e econômicas dos artefatos, consideramos algumas tensões existentes no trabalho moveleiro artesanal, que estão presentes tanto no processo de criação, produção, circulação, como no consumo. Tradição e modernidade, local e global, culturas populares e cultura erudita são algumas destas forças de resistência e transformação representadas nos artefatos artesanais, que rearticulam o ofício artesanal, inserindo-o em um contexto social, econômico, político e cultural, de acordo com as conjunturas da época. Estas rearticulações geram as hibridações que caracterizam o fazer artesanal. Analisando o esquema de ORTEGA, apresentado no capítulo 2, que mostra resumidamente o seu ponto de vista sobre estas tensões existentes no ofício artesanal popular, diante de forças de resistência e transformação, de acordo com os contextos locais e globais, percebemos à luz destas relações, que há uma busca pela revalorização do ofício artesanal, em articulações para preservar ou transformar os sistemas simbólicos e econômicos das comunidades envolvidas. A família como unidade e produção representou uma característica marcante até a década de 50, principalmente em Santa Felicidade. O cotidiano das fábricas artesanais era caracterizado pela sucessão de gerações, inserindo toda a família no trabalho cotidiano. Desde o patriarca, as mulheres e os filhos, que desde cedo aprendiam o ofício estavam ligados ao lugar aonde viviam, sendo fortemente unidos pelo pertencimento a este espaço, que segundo BAKHTIN (2002), acaba se fundindo com o tempo em uma longa temporalidade, caracterizando o trabalho artesanal que se mesclava com a vida das famílias. Para poder diversificar, aumentando as possibilidades produtivas para atender às novas demandas de um mercado capitalista, as fábricas passaram a admitir novos funcionários e a introduzir novas tecnologias e formas de gestão às tradições do artesanato. Na fábrica de móveis Schulz, analisada nesta pesquisa, a tradição representada pela técnica de trançado na confecção de artefatos mescla - se com a modernização, na gestão do processo e do trabalho, nos desenhos, formas, materiais e novas tecnologias empregadas nos artefatos. 193 A tradição expressa na técnica do trançado é repassada pelos artesãos através das gerações, de forma não sistematizada, sendo um conhecimento técnico fundamental do trabalho, se mantendo ao longo da existência do móvel artesanal. Podem mudar os materiais utilizados ou as formas e desenhos dos móveis, de acordo com as exigências do consumo, entretanto as formas e padrões básicos dos trançados são mantidos, adaptando-se a estas tendências. As características principais do trabalho permanecem sendo a habilidade manual, as técnicas e a criatividade do artesão. Na gestão da produção, há a inserção de administradores que muitas vezes desconhecem o fazer artesanal, preocupando-se especialmente em organizar as etapas produtivas, introduzir novas tecnologias e estudar possibilidades de promover os artefatos no mercado. No caso da fábrica de Martinho Schulz, a sociedade do Sr. Martinho, artesão que dominava todas as etapas da produção, com Erico Meissner, que não possuía a tradição do artesanato, nos mostrou que as relações de trabalho foram reordenadas para manter o controle dos processos. Nos discursos foram adotadas estratégias capitalistas de controle da produção por tarefas, introdução de novas máquinas e materiais, o que nos depoimentos dos trabalhadores era apontado como uma postura “arrojada e transformadora”. Esta posição dos trabalhadores de desmerecimento de seus conhecimentos tecnológicos, colocando os conhecimentos científicos introduzidos e as máquinas como sendo responsáveis pela qualidade e sucesso dos produtos, reforçam a questão da hierarquização dos saberes presente no sistema capitalista e reproduzida no setor artesanal. Entretanto, a presença do mestre artesão, que é aquele que domina a técnica e do empresário que conhece a “arte” do trançado, são valorizados pelos trabalhadores, que vêm nestes os verdadeiros representantes do setor e responsáveis pela sua sobrevivência. Porque para abrir uma fábrica sem ter experiência nenhuma, é complicado. Se só contratar alguém que sabe trabalhar e você não, aí você é dono de tudo e dono de nada, porque fica tudo na mão do empregado, ele que manda na fábrica e não o dono! Porque ele não entende nada. E todo mundo que se mete em uma coisa que não tem conhecimento nenhum, quebra, porque ele tem que confiar nos outros, nem sempre os outros são confiáveis, e de repente, você quer fazer uma coisa do teu jeito, por exemplo: - Eu quero pintar isto aqui de azul, e você diz: - Não, isto tem que ser verde. De repente você vai discutir e não dá certo. Então, acho que cada um no seu lugar. Então eu acho que o Schulz deveria conhecer alguma coisa (Darci Ferro, entrevista, fevereiro de 2005). Esta consciência do valor do trabalho do artesão e da necessidade da experiência e conhecimento das técnicas na esfera da produção é muito presente no artesanato tradicional, como é o caso do trançado com as fibras. Todas as empresas que visitamos em 194 Santa Felicidade são oriundas da experiência dos “pioneiros”. Como afirmam os entrevistados, pelo menos 90 por cento dos artesãos, donos de pequenas ou grandes indústrias, passaram pelo Túlio, Stival, Schulz ou seus “discípulos”, tendo adquirido conhecimentos e técnicas que hoje aplicam em seu trabalho (Ferro, entrevista, fevereiro de 2005). Também na esfera da circulação, muitas empresas têm se inspirado na forma de atuar de Martinho Schulz, por ter sido pioneiro em Curitiba na venda por catálogos, na montagem de um show-room permanente, por ter participado de exposições industriais, por vender diretamente ao consumidor, mas principalmente por ter definido um público alvo para os seus produtos, que não era o mesmo das demais indústrias, não competindo, portanto, por preços. Estas estratégias foram adotadas por Martinho Schulz a partir das décadas de 30 e 40, sendo hoje retomadas por indústrias locais, como a Raffinato69, GS Móveis e Movime, que são as maiores atualmente funcionando em Curitiba. Optando por trabalhar de forma diferenciada, filiaram-se à ABIMADE (associação brasileira de indústrias de móveis de alta decoração), que é uma associação de logistas de alta decoração, atendendo a um público de “classe alta”, funcionando como uma certificadora que garante aos vendedores e consumidores a qualidade e prazos das indústrias filiadas70. A empresa Raffinato, que foi constituída em 2000, possui um designer que visita as feiras internacionais, observando as tendências do mercado neste segmento, criando todo ano uma nova linha, composta de mais de uma centena de produtos, que são compostos por famílias, como o Móveis Schulz fazia. Trabalha com um administrador que entrou na sociedade como responsável pela gestão da divulgação e comercialização dos artefatos. A Raffinato possui uma loja própria, com exposição de vários ambientes, destinados principalmente às salas e móveis para jardim, além da revenda em lojas de outros Estados, ou através de representantes pela divulgação por catálogos. As novidades e as linhas tradicionais são apresentadas nas feiras do setor moveleiro, principalmente as destinadas a logistas. As estratégias e divulgação também incluem o marketing das novelas, inserindo móveis produzidos pela fábrica nos cenários das casas e programas especiais. É interessante comentar (pela aproximação com a área de design e projeção que têm no mercado de móveis), que algumas empresas européias como a IKEA, apresentam 69 A empresa Raffinato está sendo citada por ser originária da tradição de Santa Felicidade, por seu proprietário, Aparecido de Noronha, ter trabalhado para Móveis Túlio desde os 12 anos, atribuindo a eles seu aprendizado das técnicas de trançado e acabamento dos produtos. Também citou Móveis Schulz como uma referência para todas as indústrias artesanais de Curitiba (entrevista, 2005). 70 Para maiores detalhes, consultar o site: www. abimade.com.br. 195 em seu histórico dados sobre “inovações” introduzidas na circulação e venda de seus produtos, que percebemos que aconteciam aqui no Brasil, na provinciana Curitiba, já na década de 30, nos mostrando como o conceito de modernidade é relativo a um contexto complexo, que não é só de época ou local. Apesar de estar na Europa e fazer parte do “primeiro mundo”, só em 1945 aparecem os primeiros anúncios da IKEA em jornais locais, quando Ingvar Kamprad, fundador da empresa, “viu que vender de porta em porta já não era eficaz, começou a fazer publicidade na imprensa local e introduziu o conceito do catálogo para vendas por correio” (fonte: www.ikea.com). Foi em 1953 (segundo dados do histórico da empresa, divulgados em seu site), que a empresa abre a primeira exposição de móveis em Älmhult, sede da fábrica. “A abertura da loja foi um momento decisivo no desenvolvimento do conceito IKEA. Pela primeira vez, os clientes podiam ver e tocar os móveis antes de os encomendar. Isto foi a solução de um problema” (ib. idem). Como citamos, esta atitude, divulgada pela propaganda da IKEA como pioneira, já tinha sido adotada pela Fábrica de Móveis Schulz, em Curitiba. A IKEA viu-se envolvida numa guerra de preços com a concorrência. A IKEA e a concorrência começaram a baixar os preços, o que ameaçava a qualidade dos produtos. Ao expor os seus móveis, a IKEA podia apresentar os seus produtos nas três dimensões, funcionalidade, qualidade e preço acessível. E as pessoas reagiram tal como era esperado: escolheram os produtos que ofereciam a melhor relação qualidade / preço (fonte: www.ikea.com). Assim, quando falamos em modernidade e inovação, devemos considerar estes conceitos sempre contextualizados, pois não há um tempo linear e homogêneo. O que é inovação em um determinado contexto, pode não ser em outro. Como coloca BAKHTIN, no artesanato há uma longa temporalidade, associada a um contexto histórico e social, que acaba sofrendo atenuações dos seus limites que são diluídos ao longo das gerações, estabelecendo um “ritmo cíclico” que é entrecruzado por inovações e permanências (BAKHTIN, 2002, p. 334). Os conhecimentos tecnológicos tradicionais do trançado, tratamento e acabamentos continuam sendo repassados pelas gerações de artesãos que se tornam mestres com a experiência. Existem inovações nos químicos utilizados para o tratamento e acabamentos, sendo reintroduzidos gradualmente os tratamentos naturais, atendendo às atuais demandas ambientais e sociais, que incentivam procedimentos ecologicamente corretos. A 196 matéria–prima utilizada é a mesma: vime, junco, cipó, além das estruturas em madeira ou metal. Os principais instrumentos para o trabalho artesanal do trançado ainda são: o rachador, o ponteão, a tesoura, o canivete e o martelo. Quanto ao maquinário: a furadeira, lixadeira, a serra e o tacho para ferver as fibras que eram utilizadas por Martinho Schulz, ainda estão instalados e em funcionamento na fábrica Móveis Túlio, de Santa Felicidade. Percebemos nestas permanências que um avanço tecnológico não suprime os estágios anteriores. Loureiro Fernandes, em seus estudos sobre o folclore e as práticas de produção tradicionais, preconizava que ocorreria o desaparecimento do artesanato frente ao processo de industrialização (FERNANDES, 1965). Como aponta CANCLINI citando CARVALHO71: “Não é possível compreender a tradição sem compreender a inovação” (1997, p. 219). A industrialização não aboliu as formas tradicionais de trabalho artesanal, houve sim, hibridações e transformações. No setor artesanal a modernização está em constante interação com a tradição, desta forma, “o moderno se fragmenta e se mistura com o que não é [...] os artesãos continuam fazendo cerâmica e tecidos manuais na sociedade industrial; os artistas usam as tecnologias avançadas e ao mesmo tempo olham para o passado no qual buscam certa densidade ou estímulos para imaginar” (CANCLINI, 1997, p.353). Assim, também no mobiliário com fibras a interação entre as tecnologias modernas e as tradicionais reformulam os aspectos materiais e imateriais dos artefatos, ainda que o mercado “reinvente muitas vezes hierarquias para renovar as distinções entre grupos” (ib idem). Na Fábrica de Móveis Martinho Schulz, apesar da inserção em um modo de produção capitalista, utilizado máquinas, instrumentos, introduzindo inovações no processo de produção, gestão e circulação dos artefatos, não deixa de se caracterizar artesanato, pois, como apontamos ao longo desta pesquisa, o fato de se inserir na modernidade não descaracteriza o fazer artesanal. A tradição do fundador, Martinho Schulz foi repassada aos trabalhadores, de várias origens étnicas, que mantiveram as técnicas de trançado tradicionais, hibrídas, reelaboradas para o novo contexto introduzido a partir da gestão de Erico Meissner. Apesar das inovações, como aponta LUCIE-SMITH, a indústria moveleira costuma ser uma das mais conservadoras. Mesmo com a Revolução Industrial o setor moveleiro conservou características de uma produção artesanal, sendo que cada peça “passa por várias mãos antes de ser completada”. Ainda hoje é difícil de encontrarmos uma produção completamente industrializada neste setor e as “máquinas, apesar de uma série de patentes 71 CARVALHO, José Jorge. O lugar da cultura tradicional na sociedade moderna. Brasília: Fundação Universidade de Brasília, 1989. 197 serem feitas, foram aceitas apenas com relutância” e para a execução de algumas tarefas do processo (1997, p. 137). A reestruturação não é um simples processo formal, sendo carregada de significados e pluralismos que são idealizados por tecnólogos e tecnocratas como dogmas da modernidade (CANCLINI, 1997), mas são constantemente através das memórias e tradições mantidas, que sempre mantêm as permanências nas transformações. Como colocamos, no processo artesanal não existem estágios definidos temporalmente e espacialmente, mas sim determinados por uma série de fatores: sociais, culturais, históricos e econômicos. Atualmente as hibridações decorrentes do processo de globalização, permitem mesclas multiculturais que redefinem estes padrões de tempo e espaço, desterritorializando as culturas. As forças de tensão, de resistência (pelos artesãos) e de transformação (do mercado capitalista), geram nas três esferas: da produção, circulação e consumo dos artefatos, tranformações necessárias, reconfigurando o fazer artesanal, mas não o descaracterizando (ORTEGA, s.d.). Neste processo de hibridações entre as culturas, no caso do artesanato, atualmente há uma especificidade a ser considerada, pois o que seria classificado como artesanato tradicional, “aquele que emprega e transmite em seu trabalho valores, técnicas e signos amadurecidos e aceitos no sistema a que ele mesmo pertence” (VIVES, 1983, p.133), hoje é considerado como uma forma de se inserir no mercado, pois estas formas de trabalho tradicionais, utilizando matérias primas, técnicas e motivos regionais, são consideradas valores dos produtos que os diferenciam do padrão massificado ditado pela industrialização. CANCLINI coloca que é possível para os grupos e comunidades tradicionais se inserirem na modernidade, mantendo suas tradições (1997). Neste sentido, podemos analisar as estratégias adotadas por Móveis Schulz na esfera da circulação dos seus produtos, investindo na divulgação em revistas; produzindo catálogos para as vendas por representantes; mantendo uma exposição permanente em um schow-room, com vitrines para serem apreciados os móveis, como formas de se inserir em um mercado emergente, fruto da ascensão da burguesia cafeeira e do mate, como apontamos no capítulo 3. Estas estratégias são inovadoras para a época no contexto local, pois a propaganda de móveis era pouco difundida no Brasil. Nesses “reclames”, além de ressaltar a produção de móveis modernos, o trabalho do artesão foi valorizado como uma espécie de certificado de qualidade pela experiência de longos anos. Hoje, estas estratégias são retomadas para valorizar o móvel artesanal, sendo divulgada em uma mídia “massiva”, que estimula o consumo pelo apego emocional e simbólico. 198 Na propaganda de seus produtos a Saccaro, a Artefato e a Cerello, que são empresas nacionais de projeção internacional, colocam o trabalho do artesão e a tradição das técnicas como um “valor agregado” aos seus produtos. FIGURA 57: Anúncio da Fábrica de Móveis Cerello, de São Paulo. FONTE: Revista Casa Cláudia, janeiro de 1999. A figura acima nos apresenta um anúncio de 1999, da fábrica de Móveis Cerello, de São Paulo, que foi uma das concorrentes e ao mesmo tempo parceiras de Móveis Schulz, desde o início de seu funcionamento. Na propaganda percebemos a importância dada ao trabalho artesanal e à tradição do ensino das técnicas, pelo texto que diz: “Produzir móveis com a exclusividade de um artesão e com o carinho de um artista. Esta tradição é mantida em nossa fábrica onde artesãos experientes ensinam aos mais novos a técnica da delicada trama do junco”. Também, assim como os anúncios da década de 30, de Martinho Schulz, o tempo que se traduz em experiência, é destacado como um fator importante. Esta relação está na imagem e no texto menor, aonde lemos: “DE MÃO EM MÃO. Robson de Almeida, 20 anos de idade recebe orientação de Antonio Cintra, 30 anos de Armando Cerello” (texto publicitário, Revista Casa Cláudia, 1999). CANCLINI discorre sobre esta especificidade do fazer artesanal, que por suas raízes servem de escape para nossas dúvidas a respeito da modernidade e para suportar as contradições contemporâneas, que provocam “tentações de retornar a algum passado que imaginamos mais tolerável” (1997, p. 166). Esta retomada reflete-se em uma demanda de 199 consumo por bens que nos remetam a este passado e nos propicie um espaço de escape da modernidade, mesmo que de forma intimista, mudando os ambientes domésticos. Este estilo de vida mais próximo da natureza e da simplicidade acaba sendo traduzido em novas oportunidades para o artesanato, em um “resgate” e valorização das técnicas, tradições e simbolismos das comunidades. Em Curitiba, a fábrica GS Móveis vem trabalhando hoje com a exportação, ainda em pequena escala, mas, como coloca o Sr. Geraldo Stival (proprietário da empresa), só tem conseguido competir com os móveis “made in China” pela diferenciação dos produtos. “Já que a matéria prima sintética e o trabalho é muito barato lá na China, Tailândia, Malásia e outros países orientais que concorrem com o artesanato ‘tipo 1,99’. Para concorrer com esse tipo de indústria não é possível tentar se igualar a elas” (entrevista, 2005). A idéia foi passar a utilizar no lugar das armações de alumínio (que são muito caras no Brasil), a tradicional estrutura de material natural (vime ou apuí) e isto acabou tornando-se uma estratégia de divulgação dos produtos, que atendem a um mercado que passa cada vez mais a valorizar estas atitudes “ecologicamente corretas” e o valor cultural e simbólico dos artefatos. Neste sentido, a inserção do design nestas empresas que tentam se colocar em patamares diferenciados de produção e consumo é uma opção que vem sendo adotada por muitos proprietários. Esta interação do design e artesanato deve considerar uma série de fatores, para não acontecer, conforme já refletimos, de “resgatar”, mas não “reconhecer” as sociedades e os valores culturais (CANCLINI, 1997, p. 210). Nos países Latino-americanos podemos caracterizar o Design como sendo um design híbrido, uma vez que é marcado pela tensão entre o moderno (industrial) e o tradicional, e pelas contradições inerentes ao processo capitalista e aos discursos da modernização (CANCLINI, 1998). Os países de “primeiro mundo” regulam o acesso às tecnologias industriais de ponta aos países em desenvolvimento. Nestes países latinos, o design híbrido que circula entre o tradicional e o moderno, se aproxima mais dos saberes e fazeres próprios do artesanato. Segundo CORRÊA (2003), no Brasil a aproximação do Design e do Artesanato surgiu da necessidade de refletir sobre nosso repertório cultural e as tradições, sendo que em alguns casos estes repertórios foram incorporados ao processo produtivo, utilizando-se da organização coletiva dos artesãos, do valor simbólico dos artefatos feitos à mão, dos elementos estéticos, técnicas e grafismos, transferindo estes valores aos produtos industrializados, pela simples apropriação dos saberes tecnológicos populares. 200 Muitas destas aproximações aconteceram na forma de intervenções dos designers junto às comunidades e tiveram caráter estético para “melhorar os produtos”. Outras propuseram a renovação de atividades tradicionais, a utilização de novos materiais ou a criação de novas linhas de produtos. Estas aproximações nos levam a pensar sobre o papel do designer, e passa por questões como: a interação entre usuário e produto; transformação de idéias em formas; satisfação de necessidades; criatividade; expressão de valores culturais; planejamento de processos; entre outros. Enfim, o design se refere a uma diversidade de atividades humanas e “em sua essência, envolve a conceituação e, através do emprego da tecnologia, a materialização de idéias” (FONTOURA, 2002, p.72). Há muitas formas de aproximação já concretizadas entre design e artesanato em Santa Felicidade, entre as quais podemos citar: a consultoria permanente do escritório da designer Dirce Aiako, que trabalha com a GS Móveis; o trabalho de Bernadete Brandão na indústria Movime, que recebeu prêmios por valorizar os produtos, materiais e a tradição regional; o criador de uma linha contemporânea para os móveis Movime, Rodrigo Karam, entre outros profissionais que vêm atuando neste setor. Apesar de serem aspectos importantes e estarem modificando e valorizando a produção e consumo dos móveis artesanais com fibras, neste momento não pretendemos analisar estas interações entre design e artesanato, ficando esta possibilidade como uma sugestão para pesquisas futuras. Outro aspecto que apontamos como alternativa para promover o setor artesanal é a atuação de órgãos como o Ministério da Ciência, Indústria e Tecnologia, através do Centro de Design do Paraná, que dá apoio aos pequenos empresários permitindo aproximálos do trabalho dos designers; o Programa de Artesanato Brasileiro, que tem incentivado estas aproximações, financiando ações que envolvam estas esferas do artesanato e design; do Sebrae; Provopar que vêm atuando com empreendedorismo, associativismo e cooperativismo, para promover Campo Magro e arredores como pólo moveleiro de referência na produção com fibras, além de intercâmbios com instituições de ensino e não governamentais. O artesanato cresce também por estas iniciativas de incremento e apoio à “produção (créditos a artesãos, bolsas e subsídios, concursos, etc.), sua conservação, comércio e difusão (museus, livros, circuitos de venda e salas de espetáculos populares)”, como aponta CANCLINI. Para o autor há alguns objetivos, explícitos e muitos implícitos para que o artesanato se mantenha: “criar empregos que diminuam o desemprego e o êxodo do campo às 201 cidades, fomentar a exportação de bens tradicionais, atrair o turismo, aproveitar o prestígio histórico e popular do folclore para solidificar a hegemonia e a unidade nacional sob a forma de um patrimônio que parece transcender as divisões entre classes e etnias”(1997, p. 217). Entretanto, ainda é preciso muito mais para que as ações de valorização do trabalho artesanal se concretizem, além de preservá-las é necessário entender como estas manifestações estão se transformando, como elas se inserem na modernidade, o respeito e reconhecimento de quem produz os artefatos (que hoje não é só o artesão rural, mas também o urbano) e considerar o aspecto “híbrido e complexo destas relações” (CANCLINI, 1997). Também o consumo se mostrou uma fonte fundamental de análise para perceber a lógica capitalista em relação com a produção artesanal. Pensar qual é o consumidor, quais as relações simbólicas deste com os produtos, que segundo DENIS (1998), chega a ser quase fetichista e quais são significados atribuídos aos artefatos nesta esfera, sendo transformados em objetos de desejo e de status são maneiras de pensar este processo (o que não foi possível aprofundar nesta pesquisa). Pensar no mobiliário artesanal com fibras significou um desafio (estou certa que ainda não concluído), de tentar compreender os valores, costumes, identidades, hibridações e relações de produção e circulação envolvidas neste setor, para promover um debate acadêmico das possibilidades e formas de trabalhar o Design em interação com o Artesanato, promovendo a autonomia das comunidades. Tradição? Inovação? Retorno? Transformação? Acredito que todas estas tensões, presentes na produção, circulação e consumo dos artefatos das indústrias de móveis artesanais com fibras de Curitiba, são valores e estratégias para entrar e sair da modernidade. Não entendendo estas entradas e saídas como mudanças de estado - do artesão ao operário da tradição para a industrialização, mas como um trânsito interminável, de duas mãos, de ir e vir, sempre se renovando e adquirindo novas significações traduzidas pelo trabalho e pela vida. Não há uma palavra que seja a primeira ou a última e não há limites para o contexto dialógico (ele se estira para um passado ilimitado e para um futuro ilimitado). Mesmo os sentidos passados, isto é, aqueles que nasceram dos séculos passados, não podem nunca ser estabilizados (finalizados, encerrados de uma vez por todas) – eles sempre se modificarão (serão renovados no desenrolar subseqüente e futuro do diálogo). Em qualquer momento do desenvolvimento do diálogo, existem quantidades imensas, ilimitadas de sentidos contextuais esquecidos, mas em determinados momentos do desenrolar posterior do diálogo eles são relembrados e receberão vigor numa forma renovada (num contexto novo). Nada está morto de maneira absoluta: todo sentido terá seu festivo retorno. O problema da grande temporalidade (BAKHTIN, citado por FARACO, 2003, p. 52). 202 REFERÊNCIAS A REVISTA NO BRASIL. São Paulo: Ed. Abril, 2000. APPADURAI, Arjun. La vida Social de las Cosas. México: Editorial Grijalbo, 1991. 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Como eram as relações de trabalho (família, empregados,...), se davam bem? 8. Como aprendeu a trabalhar e com quem? 9. Com que técnicas e materiais já trabalhou no mobiliário? 9. Como surgiu a fábrica aonde trabalhou (que é proprietário) e quando? 10. Como foi feita a fábrica, local, espaço, como eram os setores? 11. Qual o tamanho dela? Mudou ao longo do tempo? 12. E as outras fábricas da cidade na época? 13. O que a fábrica produzia? Quais produtos? Quantas peças por mês? Tem fotos ou catálogos? 14. Quem era responsável pelas seguintes etapas do trabalho e como eram? Plantio da matéria prima (época, tempo de cada fibra para desenvolver). Colheita (como se colhia, quantas vezes no ano, aonde). De onde vinha o material? Preparo (secagem, cozimento, equipamentos, local). 210 Estrutura dos móveis (do que era e quem fazia). Trançado das fibras (Aonde aprendeu, como cria padrões, como define os materiais). Acabamento - qual pintura era usada, tratamento, complementos, ferragens? Criação dos produtos - quem criava, definia o tamanho, as formas, era copiado o modelo de algum lugar? Comercialização - quem vendia, aonde, para quem, como era o transporte, tinha registro das vendas, contador (guarda-livros)? Divulgação Consumidor – quem comprava? 15. Havia preocupação com relação à matéria prima, como: qualidade, de onde era retirada, replantio, danos ao meio ambiente? 16. Quem eram os consumidores de móveis artesanais no mercado interno e no exterior (havia exportação)? 17. Qual é a maior dificuldade para o artesão (empresário)? 18. Porque acha que algumas fábricas de móveis com fibras da região fecharam? E a fábrica de Móveis Schulz? 19. O que acha que é preciso hoje em dia para manter o negócio e ter rendimento satisfatório? 20. Na produção dos móveis qual pensa que é a principal exigência? Acabamento Matéria-prima que é feito Visual Conforto Preço Design 21. Quais foram as mudanças que percebeu no trabalho artesanal desde que começou a trabalhar?