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Brasília - Maio, 2011
A Esquerda Morreu,
Viva a Esquerda
Cristovam Buarque
Índice
A Esquerda Morreu, Viva a Esquerda............... 5
A ESQUERDA MORREU..................................... 5
Reconhecer a morte da esquerda............................ 7
Entender as causas.................................................... 10
a) O avanço técnico indutor de necessidades......... 10
b) A natureza egoísta dos homens.......................... 12
c) Limites ecológicos................................................. 14
d) A globalização excludente.................................... 15
e) A dessemelhança da espécie................................ 16
f) O mundo terceiro-mundo..................................... 17
g) A natureza do consumo....................................... 18
h) Apego à espiritualidade........................................ 19
i) A perda do sentimento da utopia......................... 19
VIVA A ESQUERDA.............................................. 20
As bases do desafio intelectual............................ 22
a) Aceitação da morte............................................... 22
b) Crença na utopia................................................... 22
c) Política sem cinismo.............................................. 23
d) Capacidade de se indignar................................... 24
e) Defesa dos excluídos............................................. 25
f) Respeito à diversidade........................................... 26
g) Respeito ecológico................................................. 27
h) Manifesto intelectual............................................. 27
Duas bandeiras para a esquerda do país................. 29
No Brasil não foi diferente......................................... 29
Uma esquerda do país e do povo........................... 35
Partido do Futuro.................................................... 39
1.Lado e Rumo.........................................................
2.Dez pontos para esquerdizar o Socialismo........
3.Precisamos Avançar..............................................
4.As cores da Economia que defendemos............
5.Rejuvenescer o partido.........................................
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41
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46
49
Que Partido precisamos para o Brasil
que desejamos............................................................ 51
I – Desenvolvimento sustentado e baseado no
conhecimento....................................................
II – Democracia completa.......................................
III – Igualdade de acesso universal aos bens e
serviços essenciais.............................................
IV – Nova Mentalidade..............................................
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A Esquerda Morreu, Viva a Esquerda
A ESQUERDA MORREU
D
esde 1980, em todo o país nos quais chegou ao
poder, a esquerda caminhou para a direita. Os
primeiros anos de governo representaram para
a esquerda de cada um desses países o que a queda do
Muro de Berlim representou para a esquerda mundial. Um
sentimento de frustração, de desânimo, de que a esquerda
morreu. Mas para outros, o sentimento é de que a “direitização” da velha esquerda está forçando o nascimento de
uma nova esquerda.
Não há vácuo de poder; também não de idéias. Quando são necessárias, elas nascem no instante em que outras
morrem. No final do século XX, morreu um conjunto de
idéias que criticavam a realidade social e formulavam alternativas para construir uma utopia. Havia o sentimento de
que essas idéias tinham-se tornado desnecessárias, e não
precisavam ser substituídas. A esquerda morrera.
Mas mantinha-se a necessidade de crítica e de busca de
alternativas. Logo, uma esquerda morrera e outra nascera.
A esquerda só morreria realmente se, além da superação
das idéias que ela representava, tivesse morrido também
a necessidade delas; desaparecido a razão de sua necessidade. Mas não desapareceram o descontentamento com a
realidade social nem o sonho de um futuro diferente.
Se olharmos ao redor, depois da chamada morte da esquerda, veremos que houve uma frustração com a forma
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com a qual ela se apresentava, com os modelos que ela formulava, com o mundo que ela tentava construir, mas não
desapareceu a necessidade de idéias, modelos e sonhos
alternativos à realidade na qual ela funcionava. Persiste a
exigência de idéias que sirvam de base para um mundo diferente. Por isso, morreu uma esquerda, mas outra nasceu
imediatamente, embora sem contornos claros e sem ser
percebida.
Vinte anos depois do começo da morte da esquerda
e do chamado “fim da história”, a humanidade não tem o
que comemorar com a vitória da direita. O começo do século XXI mostra um modelo econômico e social irresponsável
no uso da ciência e da tecnologia, imoral na distribuição da
renda, indecente nos cuidados com o planeta. Uma humanidade que se divide em uma apartação mais brutal do que
a desigualdade social, e que se transforma rapidamente em
dessemelhança biológica; que aquece a Terra e destrói a
vida no planeta; que sofre de um vazio existencial preenchido com o consumo da droga ou com a droga do consumo;
que se vê ameaçada pelo motim do terror em escala global; que cria uma cultura sem estética, voltada para o imediatismo do mercado; que vive uma migração internacional
caótica, enfrenta epidemias descontroladas diante de uma
ciência e tecnologia sem compromisso nem regras éticas,
um mundo submetido a uma superpotência arrogante que
tenta se apropriar dos recursos naturais e impor sua cultura,
religião e um pensamento que se arroga único.
Nunca antes a esquerda foi tão necessária. Ao contrário
de matar a esquerda, o quadro histórico do começo do século XXI demanda a esquerda e a fermenta. Por isso, morreu a esquerda, nasceu a esquerda.
Mas ela demora a se definir, a se espalhar e assumir uma
forma minimamente hegemônica. Essa demora se agrava
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porque os políticos de esquerda caíram na negação de seus
erros ou no adesismo à direita, e os intelectuais abandonaram as crenças ou desistiram de mudá-las, seus olhos deslumbrados com os novos valores e as ofertas da direita, ou
fechados para não ver os erros da esquerda.
As idéias sociais não nascem na cabeça dos intelectuais que refletem sobre o presente, mas nos pés do povo
que caminha nas ruas em direção ao futuro. Elas não são
inventadas, brotam da necessidade de entender a realidade, criticá-la, desenhar sonhos e formular caminhos para
construí-los. Aos intelectuais descontentes com o mundo,
crentes da exigência de alternativas, cabe a tarefa de explicitar literariamente o que o imaginário coletivo percebe em
sua marcha para gerar uma esquerda que substitua a que
morreu.
Reconhecer a morte da esquerda
Antes da morte do rei não se pode gritar “viva o rei”. O
nascimento de uma nova esquerda exige o reconhecimento
da morte. Muitos ainda se recusam a reconhecer o fracasso
dos modelos teóricos e das práticas políticas aos quais o
costume chamou de esquerda a partir dos meados do XIX.
Uma esquerda que nasceu dos sonhos vagos da revolução
francesa, que se explicitou a partir das idéias dos socialistas
utópicos e principalmente das marcas firmes da racionalidade marxista e de suas variantes.
Mas a realidade mostra que tanto as características intelectuais da esquerda quanto seus sonhos morreram diante
dos rumos tomados pela humanidade a partir do final do
século XIX.
A esquerda no século XX morreu por, pelo menos, doze
razões:
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Moral – fracassou a implementação do projeto utópico
da esquerda, especialmente nos países do Leste Europeu.
Por mais que se tente concentrar na figura de Stalin, a desumanidade do Gulag soviético foi produto da esquerda. E
esse foi um exemplo extremo, mas não o único. A ponto
de chegarmos ao final do século XX com a idéia de que socialismo era igual à repressão política, em vez de vermos o
socialismo como símbolo da liberdade individual.
Política - com exceção da URSS e dos movimentos de
libertação nacional e de Cuba, não houve vitórias políticas
substanciais conduzidas pelas forças de esquerda. As vitórias da esquerda se limitaram à conquista da independência
e à derrota de ditaduras, mas esses também são objetivos
de forças nacionais de direita.
Social - mesmo que as maiores vitórias do socialismo
tenham sido o atendimento de necessidades sociais essenciais a todos, tais necessidades não foram abolidas, como
aconteceu em muitos dos países capitalistas; as conquistas
foram limitadas pelas restrições ao avanço técnico ou econômico, no caso da saúde e da habitação, e pela restrição à
liberdade individual, no caso da educação.
Consumo - se fracassou socialmente em parte, a esquerda fracassou totalmente no atendimento das demandas de
consumo, matando-as por incompetência técnica por meio
da proibição, ou concentrando seu atendimento a pessoas
escolhidas.
Igualdade - mesmo quebrando privilégios de classe, a
esquerda não conseguiu eliminar a desigualdade, eliminou
apenas a transmissão hereditária da desigualdade, pois os
que entravam no partido ou cumpriam tarefas especiais definidas pelo Estado tinham o direito de chegar às camadas
privilegiadas.
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Ecológica - além de não ter sido previsto pelos teóricos
do século XIX, e de ter sido uma bandeira inicialmente recusada pela esquerda e desprezada pelos regimes socialistas,
o problema ecológico é uma das causas fundamentais do
fracasso da esquerda, que ainda não soube formular um
modelo de desenvolvimento livre da triste arrogância do antropocentrismo.
Histórica - o modo como o império soviético foi desfeito, com o sopro do frágil movimento sindical na Polônia
e das idéias religiosas de um Papa em Roma, da ousadia
nacionalista dos povos da Federação da URSS, muito mais
do que das ameaças pelo Ocidente, deixará uma marca de
fracasso da esquerda que ficará registrado na história da
humanidade por séculos.
Conjuntural - a queda do muro de Berlim e o espalhamento do neoliberalismo e do pensamento único tiveram
grande impacto sobre a esquerda no Ocidente, provocando radicais mudanças ideológicas nos partidos socialistas
em cada país europeu, na América Latina, e também nos
poucos países que resistem com governos de esquerda em
mutação, como na China, no Vietnam e em Cuba.
Espiritual - o equívoco de vincular a utopia social a uma
suposta utopia racional que negaria a espiritualidade fracassou em todos os lugares, na medida em que o pensamento
materialista não conseguiu matar, nem mesmo diminuir, a
ânsia de espiritualidade que existe no ser humano.
Existencial - a esquerda fracassou também no plano
existencial, ao deixar de criar o novo homem que prometia
no começo do século XX. Salvo nos momentos de enfrentamento nacional, como na URSS durante a segunda guerra,
no Vietnam durante a guerra de independência, o homem
socialista soviético continuou egoísta. Mesmo em Cuba,
onde aparentemente o espírito nacional parece prevalecer,
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é difícil ter convicção que esse espírito nacional teria prevalecido sem a ameaça externa do império norte-americano.
Alguns países capitalistas, como o Japão, por razões culturais, conseguem ter um homem mais social do que conseguiram os regimes de esquerda.
Intelectual - a esquerda perdeu o debate teórico que
busca explicar a evolução da civilização e para qual direção
esse processo deve evoluir.
Emocional – a esquerda deixou de mobilizar multidões
e despertar os jovens que hoje preferem usufruir do status
quo e se concentrarem na busca do prazer individual oferecido pelo consumo, pela direita, no lugar do prazer da luta
pela revolução, oferecido pela esquerda.
Entender as causas
Os fracassos da esquerda indicam que ela morreu, mas
a construção da nova esquerda exige que se entenda a causa: uma autópsia intelectual, política, cultural.
a) O avanço técnico indutor de necessidades
A esquerda surgiu, ainda na Assembléia da Revolução
Francesa, como um sonho anti-monarquista, popular, anticlerical, libertário do poder feudal. Nada racional, apesar de
anti-clerical e influenciada pelo Iluminismo. Com o socialismo utópico, como seria chamado depois, evoluiu no século
XIX como o sonho libertário em busca dos direitos proletários contra a burguesia e visando construir uma utopia
social. De Robespierre a Proudhomme, houve um aumento
da racionalidade e a descoberta da utopia.
Mas foi com Marx que o socialismo consolidou o sonho
utópico e optou decididamente pela racionalidade.
Marx não só lançou a idéia do comunismo como meta,
mas também explicou por que esta utopia era uma ten-
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dência inevitável do projeto humano. Para ele - e ele tinha
razão - o avanço técnico provocaria uma falência natural
do capitalismo, porque os capitalistas, lutando entre eles
pelo mercado, usariam técnicas cada vez mais modernas,
que aumentariam a produção e baixariam o preço de seus
produtos até chegar à abundância total e a taxa de lucro
cair a zero. O próprio capitalismo construiria o comunismo,
graças à marcha segura e inevitável do avanço técnico nas
mãos de capitalistas concorrendo entre eles. O egoísmo de
cada capitalista levaria à generosidade do socialismo.
Nada conseguiria evitar o fim do capitalismo. O movimento operário e comunista tinha a simples tarefa de apressar esse fim.
Marx tinha razão. O avanço técnico era o motor que
fez surgir o capitalismo, mas era também o motor que levaria à sua destruição. No entanto, ele não poderia imaginar,
porque isto só ocorreu depois de sua morte, que o avanço
técnico mudaria seu propósito no final do século XIX e nas
primeiras décadas o século XX.
No tempo de sua vida, o avanço técnico ocorria dentro
da fábrica, era um instrumento de aumento da produtividade, forçaria a queda do lucro e reduziria naturalmente as
necessidades, construindo um mundo de abundância para
todos pelo crescimento da produção. Era o tempo do otimismo no papel do avanço técnico.
Nem ele nem nenhum dos utopistas do século XIX poderiam imaginar que a criatividade humana trocaria sua preocupação com o aumento da produtividade para atender às
necessidades por produtos já conhecidos, pela preocupação com a invenção de novos produtos que criariam novas
necessidades. O avanço técnico mudou de paradigma no
final do século XIX, e passou de redutor de necessidades
a indutor de necessidades. Com isso, deu fôlego ao capi-
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talismo, ofereceu uma dinâmica permanente à economia
capitalista e condenou a esquerda à asfixia.
No século XX, a esquerda tentou combinar o sonho libertário do século XVIII com os sonhos utópicos e racionais
do século XIX e a tentativa de atender à demanda de consumo criada no século XX. Não poderia funcionar.
A esquerda do século XX morreria de qualquer maneira,
porque quis pertencer ao século XX quanto ao consumo, e
manter-se no século XIX quanto às características do avanço técnico da fábrica, que elevava a produtividade e reduzia
as necessidades.
b) A natureza egoísta dos homens
A característica de um sistema fora de seu tempo decorreu, em grande parte, do tradicional equívoco da esquerda
de considerar o ser humano como animal social, que vê vantagens na associação com os outros, como se o egoísmo
não fosse parte intrínseca da natureza humana. A esquerda,
que se dizia racional nas análises sociais, baseou-se em idealismo ao ver a natureza humana como solidária e social, e
não individual e egoísta.
Como resultado, baseou suas propostas em um ser humano que não existe. Isso não poderia durar para sempre.
Para executar um sistema contra a natureza egoísta, foi necessária a sua imposição autoritária contra a própria natureza humana. Solidariedade imposta autoritária e artificialmente contra o liberal egoísmo natural.
Estudos da natureza humana mostram não só que o
lado egoísta é uma característica do animal-homem, mas
também que esse egoísmo, se bem administrado, é uma
qualidade, pois é o resultado da consciência de sua individualidade. A esquerda repudiou não apenas o egoísmo,
mas também o individualismo e o existencialismo, vistos
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como pecado e não como instrumentos de libertação e realização social.
O individualismo, essa outra face do egoísmo, é o que
nos diferencia dos outros animais, e é também o que nos
faz construir mais do que eles, outros animais. O existencialismo é a realização legítima do projeto pessoal, único, que
representa a pessoa estar viva e por tão pouco e imprevisível tempo. Esmagar o direito individual é desumano, antinatural, autoritário e, portanto, não de esquerda, mesmo se
a intenção for construir a utopia social.
No lugar de símbolos de perversão, o individualismo e o
existencialismo devem simbolizar humanização. Obviamente, uma humanização do indivíduo que, nas mãos da direita,
traz consigo um desumanismo, eleva o indivíduo e rebaixa a
humanidade. A religião, o judaísmo-cristianismo-islamismo,
resolveu isso estipulando a cobrança da solidariedade no
presente em troca do máximo interesse individual da vida
eterna para cada um, afirmando que para merecer o Céu
era preciso ser solidário na Terra. Uma espécie de adiamento do uso individualista do tempo nesta vida, para recebê-lo
com a infinita taxa de juros da eternidade.
Mas a esquerda, prisioneira do materialismo, queria
proibir o individualismo, oferecendo em troca somente a
ilusão da realização em um projeto histórico. Isso não poderia durar muito. Sem a fé em outra vida, oferecida pela
religião, jamais pela política, renunciar ao individualismo era
anti-natural, como oferecer a utopia do lado de dentro de
uma vitrine que não se pode romper.
A esquerda não soube construir um sistema social que
defendesse os interesses coletivos e, ao mesmo tempo, respeitasse os interesses legítimos, naturais e eficientes dos indivíduos, combinando esse individualismo com um papel
social.
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Para complicar, muitos dos que defendiam o ser social
para justificar suas políticas eram absolutamente individualistas na sua vida pessoal e política. Alguns líderes de esquerda se comportaram, na sua prática política, de modo
tão individualista quanto os políticos de direita. Nos momentos normais foram igualmente individualistas; nos momentos heróicos, encontramos fortes valores coletivos tanto
na esquerda quanto na direita.
c) Limites ecológicos
Talvez mais do que os demais aspectos, a descoberta e
a consciência dos limites ecológicos ao progresso industrial
são causa fundamental da morte da esquerda tradicional.
Mais ainda do que a direita, a esquerda representa um pensamento otimista do projeto civilizatório conduzido pelo
avanço técnico. Ao longo dos últimos dois séculos, vários
intelectuais de direita mostraram um pensamento pessimista quanto ao futuro da humanidade, mas nenhum pensamento de esquerda era pessimista no longo prazo.
A esquerda é otimista no seu âmago, e vincula esse otimismo ao avanço técnico. Assim, quando nos anos 70 surgiu a consciência ecológica e sua vertente crítica ao avanço
técnico, a esquerda ficou, de início, do lado dos poluidores,
não do lado dos Verdes. Em muitos casos, o movimento
ecológico foi visto com desconfiança pela esquerda, como
um movimento conservador, descrente do poder humano.
Nos meios intelectuais da esquerda, artigos sobre a
questão ecológica eram recusados, porque a idéia de limites ecológicos era vista como uma invenção do imperialismo
para impedir a libertação e o desenvolvimento dos países do
Terceiro Mundo. A ciência e a tecnologia como sinônimos
de progresso ilimitado impediram que a esquerda percebesse o risco que provocavam sob a forma de depredação
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ambiental. Somada a esse impedimento ideológico, a ortodoxia prisioneira do pensamento construindo uma realidade
do século XIX fracassava em adotar a nova realidade da luta
de classes entre gerações, devido à depredação do patrimônio natural da humanidade.
Se seguir as propostas da civilização industrial, seja pelo
lado da direita ou da esquerda, o progresso técnico do século XX e seu consumismo levarão a um desequilíbrio ecológico de conseqüências desastrosas para a vida no planeta.
A utopia -capitalista ou socialista - esbarrou nos limites ecológicos e não soube se reciclar, incorporando esses limites
como parte do seu projeto civilizatório. A realidade mostrou que a esquerda estava errada, ao deixar de formular
um projeto que incorpore as “propostas verdes”como parte
de um único discurso utópico, e não apenas como vertente
de um movimento social.
d) A globalização excludente
A esquerda do século XX é filha da revolução industrial, e observa o mundo, na crítica e na proposta, pelo lado
do proletariado. O que ela não podia imaginar é que, ao
invés de evoluir para o socialismo, o capitalismo nacional
e imperialista evoluiria para a apartação global e nacional:
transformando os trabalhadores do setor moderno dos beneficiários do consumo supérfluo e aliados dos capitalistas,
que assistem à exclusão das massas.
No primeiro momento, sob a proteção das fronteiras
nacionais, os trabalhadores dos países desenvolvidos se
aliaram aos capitalistas de seus países para usufruírem os
benefícios do capitalismo, utilizando-se para isso das diversas formas de colonialismo e imperialismo. Em um segundo momento, de forma similar ao apartheid sul-africano,
uniu os trabalhadores brancos contra as massas excluídas.
15
Um movimento claramente explicado pelas leis marxistas de
luta de classe, pelo qual trabalhadores brancos defendiam
seus privilégios econômicos, sob a proteção da fronteira racial, contra os negros que, pelas leis de mercado, poderiam
se apropriar de parte daqueles benefícios.
Atualmente, no lugar das fronteiras raciais ou nacionais,
a economia capitalista absorve parte dos trabalhadores do
setor moderno, não importa de que país, graças aos bolsões
da modernidade global em todos os lugares do mundo, e
dentro de cada país surgiu um nova fronteira social, que separa os trabalhadores dos excluídos. O próximo passo será
a implantação de uma fronteira biológica que, mais do que
separar, fará os seres humanos dessemelhantes, pelo uso
privado da biotecnologia e das técnicas médicas.
A evolução mostrou que a luta de classes entre trabalhadores e capitalistas, que Marx e a esquerda sempre colocaram como o motor da história, transformou-se em uma luta
triangular, entre trabalhadores e capitalistas, de um lado, e
as massas excluídas de outro. A mais valia entre o capital e
o trabalho adquiriu uma feição triangular, na qual algumas
vezes capital e trabalho se apropriam do produto repartido
entre eles, ao mesmo tempo em que marginalizam as massas excluídas, destruindo o planeta e sacrificando as gerações futuras.
E, para surpresa da esquerda, os trabalhadores do setor
moderno apóiam esse progresso excludente em escala global.
A esquerda que vai nascer deverá entender essa nova
realidade da luta de classes triangular em um presente bipolar, intertemporalmente.
e) A dessemelhança da espécie
O otimismo da esquerda ao longo dos séculos tinha
base concreta para afirmar que, graças ao avanço técni-
16
co, o mundo caminhava para a igualdade entre os seres
humanos. No entanto, o que se vê como coroamento do
projeto civilizatório da sociedade industrial é a humanidade
caminhando para sua ruptura biológica; o agravamento da
desigualdade, que chega à dessemelhança, entre os seres
humanos: o progresso técnico, apropriado pela parte rica
da sociedade, capitalistas ou trabalhadores, montou um sistema de avanço científico e tecnológico capaz de diferenciar
os seres humanos, não só de acordo com a apropriação do
produto da economia, mas também por suas características
físicas, sua inteligência, saúde, esperança de vida.
Nessa nova realidade, na qual o avanço técnico que
construía igualdade também constrói dessemelhança, a esquerda não consegue se orientar. E não consegue aceitar a
idéia de que os trabalhadores do setor moderno, sua base
social, se separam e até se opõem aos interesses das massas,
em função dos limites naturais e dos interesses de classe.
f) O mundo terceiro-mundo
Uma das bandeiras da esquerda mundial era a independência nacional identificada com o fim do colonialismo. E
a independência de cada país seria o primeiro passo para
que ele se desenvolvesse e, em conseqüência, sua riqueza
se distribuísse entre sua população.
O século XXI chegou com todos os países independentes
politicamente, mas nunca o colonialismo foi tão forte, nem
o desenvolvimento tão excludente. O mundo que, esperavase, seria composto de países independentes e desenvolvidos
e justos, todos parte de um Primeiro Mundo capitalista e
desenvolvido ou de um Segundo Mundo socialista e desenvolvido, chegou ao começo do século XXI como um imenso
Mundo-Terceiro-Mundo, dividido em Países-com-Maioriada-População-de-Alta-Renda e Países-com-Maioria-da-Po-
17
pulação-de-Baixa-Renda, com os ricos de todos os países
formando um Primeiro Mundo Internacional dos Ricos, separado por uma Cortina de Ouro de um Arquipélago de
Pobres, um Gulag Social espalhado pelo planeta.
A esquerda da independência nacional de cada país e
da luta de classes internacional entre países ricos e pobres
não sabe como se comportar nessa nova realidade.
g) A natureza do consumo
Tendo surgido antes da reorientação consumista da
civilização, a esquerda preferiu contestar teoricamente o
consumismo como anti-humanista, enquanto na prática
tentava ampliar o consumo para atender à demanda nos
países onde se implantava. Cometeu dois erros: deixou de
reconhecer a busca de consumo, inclusive supérfluo, como
parte intrínseca à natureza humana; e deixou de diferenciar
o consumo supérfluo do consumo essencial.
A procura pelo consumismo, mesmo sendo um elemento alienante, do ponto de vista libertário, é uma razão legitima da realização do ser humano, e deve ser tolerada pela
esquerda, tanto quanto o gosto pela arte ou a realização
espiritual. De certa forma, há um prazer estético e erótico
no consumo. A esquerda libertária e igualitária dos direitos
passou a ser igualitária do consumo e para tanto teve que
reprimir a demanda ou escolher quem poderia consumir.
Perdeu a legitimidade da igualdade por falta de competência, visto que não conseguia atender a todos com a qualidade e a quantidade com as quais o capitalismo conseguia
atender seus ricos, e por falta de ética, já que não adaptava os conceitos de igualdade e de direitos aos tempos de
consumo supérfluo. Seguiu um rumo impossível. Em algum
momento ruiriam as bases do sistema que não realizava o
que defendia.
18
h) Apego à espiritualidade
Poucos equívocos da esquerda foram maiores do que,
ao associar-se à razão e à ciência em contraposição aos mitos e às religiões, repudiar a espiritualidade como uma das
manifestações superiores da raça humana. O resultado dessa opção pelo materialismo em oposição às religiões levou a
esquerda a se isolar das massas e a sofrer grandes rechaços
eleitorais. A recusa à espiritualidade foi uma das causas da
morte da esquerda. Por perda de legitimidade popular.
Além disso, contém um erro conceitual intrínseco, ao
não considerar a espiritualidade como forma de elevação
do ser humano. É um erro e uma arrogância desligar-se da
espiritualidade e das formas alternativas de pensar presentes
ao longo de milênios nas sociedades humanas ocidentais. A
religião deve ser vista como manifestação da espiritualidade, e esta como uma das razões do projeto civilizatório.
i) A perda do sentimento da utopia
Ser de esquerda é olhar o mundo como ele é. Por isso,
não é de esquerda quem não quer ver que a esquerda morreu. Também não é de esquerda quem perdeu a crença
em uma utopia alternativa. Lamentavelmente, uma parte
da esquerda, seduzida ou assustada pelos eventos do fim
da URSS, perdeu o gosto pela utopia e passou a acreditar
no fim da história, na permanência do capitalismo. Outra
parte manteve-se fiel às utopias previamente determinadas,
sem perceber as mudanças das últimas décadas, mantêm
as utopias embalsamadas e impedem o desenho de novos
sonhos utópicos.
19
VIVA A ESQUERDA
Nada indica com clareza quando e como ressurgirá
um novo pensamento consistente de esquerda no mundo.
É possível que se passem décadas. Mas o Brasil é um dos
países com mais probabilidade de ser o berço dessa nova
esquerda.
Diferentemente da imensa maioria dos países do mundo, que se dividem entre os que têm os recursos sem problemas e os que têm problemas sem terem recursos, o Brasil
é um país-síntese: temos todos os indicadores da tragédia
civilizatória e todos os recursos necessários para superá-la.
O Brasil é um retrato da civilização neste começo de século
XXI: integrado economicamente e desintegrado socialmente, liberal nas relações econômicas e depredador nas relações com a natureza, um país cortado pela Cortina de Ouro
que impõe a apartação internamente em suas fronteiras.
Para uma pessoa de esquerda na Europa, a utopia é
um sonho desnecessário, para uma pessoa da África é um
sonho impossível. Para o Brasil, a necessidade de uma alternativa é um imperativo e uma possibilidade. Além disso,
dispomos de massa crítica intelectual capaz de analisar o
modelo de desenvolvimento da civilização e formular alternativas. Finalmente, temos uma liderança política que deve
nos estimular, por ter sido criada pelos sonhos de esquerda
e por prever antes mesmo do fim da URSS que a velha esquerda está moribunda.
Com as necessidades de suas populações atendidas, a
esquerda européia pode esperar sem pressa sob os escombros do Muro. Nós não temos o tempo de esperar, pois os
20
escombros são nossa própria sociedade perversa. Os eleitores da esquerda européia são os trabalhadores beneficiados
pela modernidade; no Brasil, uma imensa parte do eleitorado é constituída por excluídos, pobres, marginalizados do
progresso.
A esquerda européia pode ser de direita por simples
comodismo, a esquerda brasileira só pode ser de direita por
traição ao povo. Por isso, é sobre os militantes de esquerda
no Brasil, que mais pesa a obrigação de fazer renascer a
esquerda.
Na Europa, é possível aceitar a idéia de que a morte da
esquerda pode ser definitiva e que o mundo político de hoje
iguala todos os políticos. No Brasil, isso não pode ser aceito.
A realidade exige que mantenhamos a postura que diferencia direita e esquerda, e o desafio adiante nos obriga a
formularmos uma proposta alternativa. O dilema, portanto,
não é se existe ou não esquerda, mas como nos diferenciamos dos que não são de esquerda.
Mais do que qualquer outra esquerda, a brasileira tem
diante de si dois objetivos:
i. um intelectual, de longo prazo, de não deixar morrer
o sonho de uma utopia pós-capitalista, até mesmo pós-socialista, que vá além da civilização industrial nos modles do
século XIX e XX;
ii.um político, de lutar desde já pela abolição da apartação, construindo no Brasil uma sociedade integrada que
sirva de modelo para a possível construção de uma globalização sem exclusão social.
21
As bases do desafio intelectual
a) Aceitação da morte
O militante de esquerda não estará sendo de esquerda
se não aceitar o sentimento, ao mesmo tempo doloroso e
estimulante, da morte da esquerda na qual nos formamos.
Não é de esquerda quem pensa ser de esquerda porque
não reconhece que a esquerda morreu.
Ser de esquerda é aceitar a dialética das idéias no mundo real. Por isso, para ser de esquerda é preciso aceitar com
naturalidade a morte de uma esquerda para deixar surgir
uma nova esquerda. Na verdade, ser de esquerda é acreditar que tudo está morrendo e renascendo a cada instante.
Não foi esta a primeira vez que a esquerda morreu. O
melhor exemplo é o nascimento da esquerda do socialismo utópico em substituição à esquerda que décadas antes
derrubara a Bastilha, e o nascimento da esquerda de Marx,
que substituiu a esquerda idealista, e de tantas outras que
morreram e renasceram.
b) Crença na utopia
Também não é de esquerda quem perdeu a crença na
necessidade e na possibilidade da utopia. Lamentavelmente, nesse grupo está a imensa maioria dos militantes de esquerda que chegaram ao poder nos últimos anos em muitos países do mundo. Foi o que aconteceu com os partidos
Trabalhista e Socialista nos países europeus. Ao chegarem
ao poder, enfrentarem as dificuldades e perceberem que
seus trabalhadores estão em posições relativamente satisfatórias, assumem que a utopia morreu. Transformam-se
em gerentes do presente, deixam de ser formuladores do
futuro. O mesmo ocorreu com uma ala esquerda do PMDB
22
ao assumir o governo com Sarney, com os do PSDB quando
assumiram com Itamar e Fernando Henrique, e agora, com
alguns militantes do PT, PSB e PC do B, ao assumirem o governo com Lula.
Esquecem-se dos sonhos utópicos.
O grave da perda de utopia não é o fato de ela ser
impossível no momento imediato, porque o presente e o
poder exigem pragmatismo; o grave é o pragmatismo se
fazer como se não fosse algo passageiro, uma exigência dos
limites políticos e financeiros do imediato, e sim uma postura definitiva.
Ser de esquerda no governo exige o pragmatismo e a
consciência dos limites do presente, mas ela morre quando
o pragmatismo se torna regra permanente, como vem ocorrendo.
Não é de esquerda quem não acredita na marcha da
história, em uma constante evolução da humanidade rumo
a alguns princípios que podem mudar, mas não acabam.
O pragmatismo atual tem muito a ver com a idéia do
fim da história, de que não há mais evolução possível, de
que a história está interrompida e o papel dos movimentos
políticos é administrar o presente.
É possível que estes objetivos mudem, mas suas bases
continuarão: o aumento no grau de liberdade, o fim das
necessidades essenciais, a paz.
c) Política sem cinismo
A observação do quadro, da postura e do discurso da
esquerda no poder, em qualquer país, inclusive no Brasil,
nos leva a concluir que alguns perderam qualquer crença
na necessidade e na possibilidade de se sonhar uma utopia
alternativa, e outros caíram no cinismo.
23
O abandono dos sonhos utópicos, especialmente em
momentos que os limitam, traz uma negação ainda maior
da esquerda, quando seus militantes passam a fazer política
com o cinismo que caracteriza a direita.
Esse cinismo se manifesta de muitas maneiras, como
a política pela política, o poder pelo poder, a aceitação
de todas as jogadas, o abandono de princípios para fazer
alianças. Quando isso ocorre, a esquerda morre. E só renasce quando a política se faz sem a perda do sentimento de
compromisso, de respeito, de militância.
Mas hoje, em muitos países, o cinismo passou a dominar
a prática da esquerda. Rumar do comunismo ao cinismo
foi o caminho de muitos militantes que deixaram a oposição
para o poder. Isso é ainda mais grave quando ocorre com
um militante jovem. Porque na velhice, o cinismo pode ser
uma questão de humor; na juventude, é de caráter.
d) Capacidade de se indignar
Além do cinismo no jogo da política, também mata a
esquerda a indiferença com a qual os problemas da sociedade são tratados quando se chega ao poder. Sem uma utopia alternativa, impossibilitados de resolver os problemas de
imediato, os antigos militantes de esquerda preferem cobrir
a realidade trágica com um espesso véu da tolerância, da
aceitação das aberrações sociais e éticas.
Usam a cegueira social para disfarçar o cinismo político.
Ao chegar ao poder, com a consciência - ou descoberta dos limites do possível, em vez de ajustar o presente à realidade, sem abandonar os objetivos centrais nem perder de
vista os problemas, a esquerda costuma ignorar os problemas, preferido não vê-los a adiar sua solução. Os problemas
do meio ambiente, a infância abandonada, os baixos salários de professores, o desemprego passam a ser tratados
24
como não-problemas. No lugar de manter os objetivos e
ajustar o cronograma de sua execução à realidade política e
financeira, prefere abandoná-los.
Não é de esquerda quem não tem capacidade de indignar-se a cada instante ante a tragédia social, ecológica,
moral e econômica, ante a baixa escolaridade, a desigualdade crescente e a corrupção geral, mesmo quando chega
ao poder.
e) Defesa dos excluídos
A esquerda morre moralmente não apenas por cinismo ou indiferença, mas também pela opção equivocada do
lado a escolher na luta de classes do mundo moderno. O
atendimento de grande parte da demanda dos trabalhadores do setor moderno da economia global levou a esquerda
a fazer uma opção por esses trabalhadores, ignorando as
necessidades do povo excluído.
Por isto é tão difícil ser de esquerda hoje na Europa porque as massas excluídas estão fora de suas fronteiras, o
que leva a esquerda, por força das circunstâncias eleitorais,
a tomar medidas contra imigrantes, em defesa dos interesses de seus trabalhadores.
Nos Países-com-Maioria-da-População-de-Baixa-Renda
que têm um relativo desenvolvimento industrial, como o
Brasil, a esquerda adota as mesmas posições, embora de
forma disfarçada. Não falam em medidas contra as massas,
como a expulsão de imigrantes na Europa, mas defendem
a redução nos impostos de produtos de luxo, para manter seus empregos, mesmo que às custas da redução dos
gastos sociais do setor público. Defendem os interesses das
corporações contra os interesses gerais da sociedade.
Ser de esquerda no Brasil exige uma opção clara por
aqueles que nem trabalhadores conseguem ser: os excluí-
25
dos, construindo uma ponte entre eles e os trabalhadores
do setor moderno.
f) Respeito à diversidade
Em um mundo onde a globalização mata os valores nacionais, ser de esquerda é ser nacionalista. Mas um nacionalismo comprometido com o humanismo, e um humanismo
que respeite a diversidade, longe do mecanismo autoritário e arrogante da pasteurização cultural universal sonhada
com o comunismo e agora imposta pela globalização neoliberal.
Se esse sentimento de humanidade foi sempre uma característica do pensamento e da ação de esquerda, precisa
ser ainda mais agora, quando o mundo se integra em um
projeto planetário. Quando o poder das técnicas permite a
qualquer nação do mundo tomar decisões que repercutirão
no mundo inteiro e ao longo de séculos, ou mesmo milênios.
Ser de esquerda exige respeito ao conjunto de nações e
à necessária diversidade de cada povo. Essa evolução exige
uma nova esquerda. A esquerda tradicional, sobretudo sob
a égide de Marx, imaginava um mundo integrado e unitário, cópia da Europa. Porque a esquerda nasceu com a arrogância ocidental e Marx fazia parte desse mundo, achando
que o projeto da Europa deveria ser seguido em todos os
quadrantes do planeta, desde que sob a forma mais elevada
da civilização industrial, a socialista, e não sob a forma do
imperialismo capitalista.
De qualquer forma, capitalista ou socialista, a imposição
de um padrão civilizatório único é uma forma de imperialismo, se não econômico, cultural.
26
g) Respeito ecológico
Talvez o maior de todos os desafios da esquerda será
formular um pensamento e um modelo de desenvolvimento civilizatório que leve em conta o valor da natureza. A
origem da esquerda no Ocidente e na revolução industrial
fez dela um instrumento do pensamento depredador. Sua
origem no pensamento racional grego e nas religiões judaico-cristãs levou a esquerda a relegar de forma arrogante
qualquer valor à natureza bruta.
Esse pensamento se mostra na teoria do valor, onde
somente o trabalho humano cria valor, e a natureza é vista
apenas como depósito de matéria-prima e do lixo industrial. Se é certo que essa teoria representou um dos maiores
avanços intelectuais e morais da história da humanidade, é
certo também que, frente à realidade do mundo de hoje,
ela é reacionária, não percebe o risco que corre a humanidade diante da crise ecológica.
A esquerda que vai nascer precisa abandonar o antropocentrismo arrogante da história ocidental e construir um
antropocentrismo modesto que construa o projeto civilizatório em comunhão entre homem e natureza.
h) Manifesto intelectual
O desafio intelectual da esquerda exige um manifesto
intelectual cujo roteiro consiste em:
1. Formular uma crítica consistente à realidade perversa
da civilização global em construção neoliberal, mostrando
que ela:
- condena a natureza,
- transforma a desigualdade social em uma dessemelhança biológica,
- implanta o risco do terror de massas,
27
- mata a diversidade,
- impõe um poder autoritário mundial,
- divide o mundo entre PMIR e ASP, PMP-AR e PMP-BR
e em corporações globais, com alcance planetário de cada
uma delas,
- mantém uma luta de classes entre três burguesias - a
empresarial, a especulativa e a trabalhista – todas elas disputando com as massas excluídas.
ii. Formular o entendimento de que é possível uma utopia que:
- atribua valor à natureza,
- respeite à diversidade, mesmo caminhando para a globalização,
- enfrente os problemas do super-poder das técnicas
sem abrir mão dos sonhos libertários,
- defina o conceito de igualdade essencial,
- fortaleça a racionalidade, respeitando a espiritualidade
como um dos objetivos do progresso humano,
- encontre formas de submeter o avanço técnico aos
valores éticos,
- seja capaz de respeitar as leis do mercado, ao mesmo
tempo em que o mercado não vai contra a inclusão social,
- construa uma democracia capaz de manter as nacionalidades e que tenha responsabilidades globais,
- preserve as liberdades individuais sem permitir que indivíduos imponham suas vontades ao povo.
O desafio político consiste em:
- construir uma ponte entre os trabalhadores do setor
moderno e as massas excluídas, e ao mesmo tempo em
conviver com o setor empresarial,
- definir programas de ação capazes de sensibilizar a
opinião púbica, especialmente os jovens.
28
2. As metas do desafio político
De todos os políticos de esquerda que chegaram ao poder depois de 1980, Mandela foi o único que entrou e saiu
do governo como líder da esquerda. Porque ele definiu
com clareza seu objetivo: garantir que brancos e negros pudessem andar na mesma calçada. O objetivo da esquerda
brasileira, especificamente do governo Lula, é garantir que
pobres e ricos estudem em escolas com a mesma qualidade.
Duas bandeiras para a esquerda do país
A partir de 1980, todos os partidos de esquerda que
chegaram ao poder foram para a direita. Na França, na Espanha, na Itália, na Inglaterra, em Portugal, todos os programas partidários mudaram para chegar ao poder ou ao
exercício do poder, mesmo quando esses partidos tinham
mantido mais preocupações sociais do que seus adversários
na direita.
No Brasil não foi diferente.
O PMDB, partido que se formou na luta contra a ditadura, reunindo todas as forças de esquerda, tornou-se
rapidamente conservador e descomprometido socialmente
com as massas pobres, na ausência de propostas transformadoras, no estilo das jogadas políticas, na administração
da economia. Tanto que levou seus militantes de esquerda
a formarem o PSDB, partido que, ao chegar ao poder, também se adotou programa conservador.
O PT, que se formou à esquerda do PSDB, e que foi seu
grande crítico, após dois anos no poder dá mostras do risco
de mutação rumo ao conservadorismo nos mesmos moldes: ausência de transformação, estilo de prática política
29
e administração da economia. Se continuarem na mesma
direção nos próximos anos, o PT e os demais partidos de
esquerda que formam o bloco de apoio ao governo se diferenciarão pouco do PMDB ou do PSDB.
Entretanto, a grande diferença resta na militância.
Diferentemente dos demais partidos, aqueles da esquerda, mesmo no governo, têm uma militância com condições de exercer o poder por cima das direções partidárias.
Mas essa militância não parece satisfeita com o rumo de
seus partidos. Há um claro desconforto, que já levou à criação do PSol. Cada partido enfrenta um descompasso entre
sua nação de militantes e seu estado de dirigentes, mesmo
quando o exercício do poder compromete, cala e até vicia
os partidos, em todos os níveis.
Sem um despertar da militância, o rumo do PT será o
mesmo que conheceram os demais partidos de esquerda na
transição do século XX para o XXI. As razões estão, de um
lado, na força e nas amarras da economia global, e de outro na falência das experiências socialistas tradicionais, que
ocorreram simultaneamente a partir de 1980.
Para despertar, a militância de esquerda do PT e dos
demais partidos precisa romper com o amolecimento ideológico e pressionar suas direções, com dois objetivos de
momentos distintos.
E duas bandeiras que se completam ao longo do tempo.
a) Bandeira ideológica: retomada dos sonhos utópicos
Uma das causas da virada à direita dos partidos de esquerda decorre da perda da perspectiva utópica da mudança. As amarras da globalização neoliberal e o fracasso das
experiências socialistas levaram a esquerda a um pragmatismo de curto prazo, à perda da preocupação com o sistema
social e econômico pós-capitalista.
30
A esquerda precisa conservar sua insatisfação com os
princípios do sistema capitalista e voltar a sonhar com um
sistema mais justo e mais eficiente. Apesar de todos os êxitos do capitalismo no atendimento das necessidades dos
seus trabalhadores do setor moderno de cada país rico, ele
está carregado de injustiças e ineficiências: exclui em escala global, aumenta a desigualdade, promove injustiças,
mantém permanente instabilidade, se expande por meio
de sustos, destrói o meio ambiente, desestrutura culturas
e sociedades, mata tradições, provoca violências dentro de
países e entre eles.
O ser humano tem inteligência e sentimento capazes
de formular uma alternativa mais justa, mais eficiente, mais
pacífica e sustentável. A esquerda precisa continuar sendo a
guardiã desse sonho. Mas o sonho na utopia parece morrer
por causa da desilusão com a crise do socialismo e pelo deslumbramento com o poder. Os poucos que ainda parecem
manter aceso o compromisso com uma utopia pós-capitalista continuam presos às palavras de ordem e objetivos
vindos dos socialistas históricos, há mais de cem anos.
Uma utopia formulada em um tempo passado, em um
mundo sem a complexidade dos dias atuais, sem a percepção de que o conhecimento carrega uma dimensão opressora e destrutiva; de que a economia elimina a necessidade
do trabalho e do trabalhador sem libertá-lo, e implanta uma
globalização com apartação, na qual a luta de classe faz
com que trabalhadores privilegiados se beneficiem da exclusão; de que o planeta se encontra dividido socialmente
por uma cortina de ouro, e em processo de destruição ecológica. Um tempo em que a opção ética aceitava sacrificar
a liberdade em busca da igualdade, e a utopia era definida
com as arrogantes lógicas do antropocentrismo quanto e
do eurocentrismo, sem se dar conta da riqueza da diversi-
31
dade cultural nem da necessidade de manter o equilíbrio
ecológico.
O pós-capitalismo, qualquer que seja o seu nome, não
será a repetição do passado, nem do socialismo real, nem
do socialismo imaginado no passado. Ele deverá incorporar
novas dimensões para as quais a política não está preparada, como não está preparada a própria filosofia.
Para a esquerda de hoje, manter acesos os sonhos utópicos significa manter acesa a reflexão sobre si própria, a
busca intelectual de sua definição. Politicamente, não resta
à esquerda mais do que a possibilidade de alguns passos
que lhe permitam caminhar, desde já, em direção a objetivos ainda não definidos para o longo prazo.
b) Bandeira transformadora: o fim da apartação
Se ficarem na elaboração intelectual, os partidos de esquerda permanecerão na esquerda, porém como grupos
pensantes, sem a dimensão partidária. Para manterem a
dimensão política, os partidos precisam ser instrumentos
de ação imediata, revolucionários desde já, ainda que seus
objetivos sejam modestos do ponto de vista das utopias de
longo prazo.
As mudanças ocorridas em escala global no sistema social da humanidade, na passagem de século, amarraram o
exercício do processo político a poucas alternativas. O neoliberalismo deixou para a revolução apenas a possibilidade
de lutar pelo fim do apartheid social, da apartação.
Mandela é símbolo da esquerda não porque construiu
qualquer utopia, mas porque liderou na África do Sul o
imenso salto da abolição do apartheid racial. Seu exemplo
deve servir à esquerda, em cada país, para lutar pelo fim do
apartheid social, a apartação. A bandeira imediata de transformação da esquerda mundial seria a abolição da apartação global construída pela globalização neoliberal.
32
O Brasil é o país onde essa luta apresenta mais urgência
e mais possibilidades, o país que oferece o melhor e mais
concreto desafio à esquerda.
Nos Países-com-Maioria-da-População-de-Alta-Renda,
como na Europa, não se percebe a necessidade combater
a apartação, porque somente uma minoria está excluída, e
em geral de imigrantes estrangeiros. São países com recursos mas sem o problema, portanto sem o desafio histórico
para seus partidos.
Nos Países-com-Maioria-da-População-de-Baixa-Renda,
como na África, percebe-se a necessidade mas não existem
os recursos para enfrentar o problema. São países com o
desafio, mas sem as possibilidades de enfrentá-lo.
O Brasil é um dos poucos países do mundo que dispõe
dos problemas e dos recursos necessários para superá-los.
De uma massa crítica de pensadores e de maturidade política, uma militância inquieta nos partidos de esquerda. Chegamos ao poder com uma aliança dos partidos de esquerda
e com um líder carismático com a qualidade do Presidente
Lula. Uma situação muito parecida com a da África do Sul,
sendo que naquele país o desafio era o apartheid, e no Brasil é a apartação.
Apesar disso, nestes dois anos estamos nos encaminhando para a direita, sem formular um projeto ideológico
de longo prazo nem adotar as medidas imediatas de desapartação social.
Para deixarmos esse quadro e caminharmos para a esquerda, nossa militância precisa assumir a permanência do
sonho e o exercício da reflexão sobre nossos objetivos de
longo prazo, e sentir a urgência de um programa e de ações
imediatas para a construção de uma sociedade sem apartação.
33
A combinação desses dois momentos oferecerá a bandeira que está faltando aos partidos de esquerda, mobilizará suas militâncias, até mesmo permitirá uma aliança
pelas bases entre os diversos partidos, especialmente nos
momentos eleitorais, em função da identidade com o mesmo projeto. Ser de esquerda não é fazer parte de uma sigla
partidária de esquerda. Ser de esquerda é pensar e sonhar
o pós-capitalismo em um futuro distante, é reconhecer que
esse futuro ainda não está desenhado, e lutar hoje pelo fim
da apartação.
A falta dessa bandeira tem feito parte dos partidos migrarem ideologicamente para o pragmatismo imediatista da
direita, e outra ficar no discurso, também de direita, concentrando suas bandeiras na economia: na redução da taxa
de juros e no tamanho do superávit - sem se importar com
as conseqüências ou os beneficiários, nem com os instrumentos necessários para reorientar os recursos que ficariam
disponíveis - e em slogans de mudança do modelo, sem
oferecerem qualquer alternativa viável.
Até recentemente, a esquerda pregava a estatização do
sistema bancário, agora prega a redução dos juros; defendia o planejamento para fazer uma sociedade justa, agora
acredita que o crescimento econômico é o caminho. Nada
diferencia essa esquerda da direita, salvo a falta de compromisso de seus lemas.
A esquerda não se diferenciará da direita mantendo as
mesmas palavras do velho socialismo, nem se submetendo
ao discurso econômico, mas oferecendo urgentemente ao
Brasil a possibilidade de um choque social que permita abolir a apartação.
Nossa bandeira é a abolição da apartação, a derrubada de todos os muros que dividem o Brasil entre incluídos
e excluídos da modernidade, esta barreira que nos separa
34
em blocos sociais não só desiguais, mas diferentes, desde a
época da escravidão. Nossa bandeira é completar a Abolição e a República, que os governos das elites de direita vêm
protelando por 115 anos, e que nós temos a obrigação de
completar.
Ficamos no dilema entre transformar o Brasil, como
deve fazer a esquerda, ou mudar ideologicamente, migrando para a direita, como fizeram os demais partidos de esquerda que chegaram ao poder nos últimos anos.
Este texto não apresenta uma reflexão para o longo
prazo, mas traz para debate uma proposta de um Choque
Social para mudar o Brasil de imediato, com um programa
para a esquerda que não quer virar direita, não quer ficar
prisioneira do passado nem da economia. Não quer ser
direita, nem ser esquerda de mitos, nem ser esquerda de
taxas.
Uma esquerda do país e do povo.
Não há política econômica de esquerda ou de direita,
há política econômica responsável ou irresponsável, competente ou incompetente. A política econômica não precisa de ideologia, mas de caráter: manter-se firme em metas
nacionais, cumprir acordos e não se submeter a pressões
corporativas conjunturais.
Foi a partir do século XIX que o problema social passou
a ser visto como conseqüência direta da economia: a política econômica como planta arquitetônica da sociedade.
Acreditava-se que pelo controle das variáveis econômicas
se construiria a sociedade desejada. Esquerda e direita disputavam ideologicamente o modelo de funcionamento da
economia. O final do século XX mostrou que o desenvolvimento induzido pelas políticas econômicas intervencio-
35
nistas não só deixara de construir utopias, como também
desagregara sociedades, impusera autoritarismo, degradara
o meio ambiente, e que a força do neoliberalismo global
não deixara brechas para gestos ousados na economia. Restava ao campo da ideologia a possibilidade de alterar as
prioridades no uso dos recursos públicos para a execução
de políticas sociais. A ideologia limita-se assim ao espaço da
política orçamentária, em aspectos que não firam os pilares
da política econômica responsável e competente.
Política econômica responsável é aquela que assegura
estabilidade aos agentes econômicos - trabalhadores, empresários, consumidores - e mantém um clima de incentivo
a produção, criação de emprego, renda. Política competente é aquela que combina corretamente as contradições desses objetivos. Baixar a taxa de juros por vontade política é
irresponsabilidade, elevá-la além do necessário é incompetência, mas não é assunto ideológico, de vontade política.
A arena ideológica se limita a definir quem paga os impostos e quem se beneficia deles, e as políticas fiscal e orçamentária. É nisso que se diferenciam direita e esquerda.
A primeira baseia-se na crença de que investimentos criarão renda e que o mercado permitirá o atendimento das
demandas. A esquerda busca justiça social na distribuição
progressiva dos impostos e na prioridade aos investimentos
sociais como forma de atender às necessidades da sociedade.
As amarras do neoliberalismo global não deixam brechas para ousadias na política econômica, mas permitem
mudanças sociais. Nelson Mandela, símbolo da esquerda
mundial, foi um presidente responsável e competente na
política econômica. Mas fez uma revolução social em seu
país ao abolir o apartheid e conseguir que brancos e negros
pudessem andar na mesma calçada. O desafio da esquerda
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brasileira é abolir a apartação e permitir que pobres e ricos
estudem nas mesmas escolas. Essa mudança é possível com
medidas educacionais e política orçamentária, com a federalização da educação básica e a canalização de recursos da
União para esse setor.
O Brasil é um dos raros Países-com-Maioria-da-População-de-Baixa-Renda em que a renda nacional e a carga
fiscal já permitem a realização de um choque de políticas
públicas para superar a exclusão social. Lamentavelmente,
isso não está sendo feito, porque o debate ideológico, dentro e fora do partido do governo, se dá no terreno da política econômica, no lugar da política orçamentária, abandonando os verdadeiros compromissos éticos que deveriam
nortear as bandeiras da esquerda.
Essa visão da economia como objeto de debate ideológico decorre, de um lado, da herança mental de um tempo
em que o Estado dispunha de instrumentos para regular a
economia: o setor financeiro podia ser estatizado, as fronteiras comerciais controladas, o endividamento ainda era
possível; e de outro lado, da cooptação das forças de esquerda como beneficiárias das prioridades do orçamento,
que mantêm o debate no terreno econômico como forma
de adiar perdas de subsídios e privilégios.
No fim de 2004, mais uma vez os governos - federal,
estaduais e municipais - definiram como serão gastos 35%
da renda nacional nas mãos do setor público - R$618 bilhões - sem realizar um debate ideológico sobre quem vai
pagar e quem vai se beneficiar deles, e que Brasil queremos
construir com esses gastos. A Sierra Maestra do século XXI
está nas comissões de orçamento dos parlamentos, e o objetivo da luta não é mudar a política econômica, para que
o Brasil continue igual ou pior, mas a política orçamentária,
para mudar o Brasil.
37
Com os recursos de que o setor público dispõe para
2005 é possível cumprir todas as obrigações de uma política
econômica responsável, manter todos os pilares de uma política econômica competente, e fazer os investimentos necessários para uma revolução na educação brasileira, dobrar
os gastos da União com a educação básica. O quadro abaixo mostra como são poucos os recursos necessários para
fazer dobrar os recursos da União à disposição da educação
básica no Brasil.
Discriminação – Orçamento 2005 – Proposta Revisada R$ bilhões % necessária ao Choque Educacional
Orçamento Total para 2005 (proposta revisada)
1.616,6
0,46
Orçamento Efetivo (descontado R$ 935,3 bi do Refinanciamento da Dívida Pública) 681,31,09
Base para a Revolução na Educação Brasileira (descontados os Orçamentos das Estatais, as Despesas Financeiras,
os Benefícios Previdenciários obrigatórios, as Transferências
Constitucionais Obrigatórias e as Outras Despesas Obrigatórias = R$ 630,90)
50,4 15
Pena que, prisioneira da velha lógica dos interesses corporativos do setor moderno, a esquerda brasileira ignore a
arena ideológica do orçamento. Concentre seu discurso na
disputa pela redução do imposto de renda, e da taxa de
juros e do tamanho do superávit, esquecendo as necessidades do povo, e adiando ações que transformariam o Brasil.
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Partido do Futuro
Cristovam Buarque
39
40
Partido do Futuro
1.Lado e Rumo
O PDT está do lado certo, dos partidos com tradição de
esquerda, formando o governo da Presidenta Dilma, junto
com o PT, PCdoB, PSB, mas, não estamos no rumo certo. O
lado político é uma posição, o rumo político é uma estrada
em direção a um destino nacional.
Em função da crise geral no pensamento social e político, a esquerda perdeu o rumo na construção de uma
nova utopia. Devemos continuar do lado certo, mas com
passos próprios que nos permitam caminhar, independente
dos aliados, olhando o futuro da Nação, dos povos, dos
trabalhadores, dos jovens, das crianças e mulheres.
O primeiro passo para reencontrar nosso rumo, é sermos vanguarda na redefinição do conceito de esquerda:
esquerdizando o conceito de socialismo para adaptá-lo as
exigências atuais; não mais apenas à crise do capitalismo
mas à crise de toda a civilização industrial.
2.Dez pontos para esquerdizar o Socialismo
O que faz uma pessoa ser de esquerda ou direita não
é a maneira como se define em relação ao sistema social e
econômico. É a postura ética, diante dos assuntos do mundo e dos propósitos da sociedade local e da civilização mundial. Esquerda ou direita está na ética. E na ética podemos
considerar dez pontos.
Primeiro: claro que uma delas é corrupção. Não é de esquerda quem é corrupto. Nossos partidos, e sem excluir nenhum, estão cheios de corruptos. Mas eles são infiltrados.
Não são de esquerda. E nós temos que expulsa-los para o
lugar deles, que não é a esquerda.
41
Mas mesmo na corrupção, existem dois tipos. A corrupção no comportamento, aquele que define o roubo para o
bolso de políticos ou para seu partido; ou a corrupção nas
prioridades, aquele que define investimentos nas prioridades para atender a minoria privilegiada, em vez de priorizar
aos interesses das massas. Ser de esquerda é não aceitar
nenhuma dessas corrupções.
Segundo: ser de esquerda é mudar a relação do homem
com a natureza. Há 50 anos não se imagina que esta era
uma preocupação de esquerda. Marx não precisava pensar
em Meio Ambiente mesmo assim ele pensou um pouco.
Não era o problema. Por isso não é de esquerda quem considera que a solução do transporte privado é mais viaduto
para atender os carros privados. No lugar de um melhor
sistema de transporte público. Esta relacionada com a corrupção nas prioridades como também com a postura do
projeto civilizatória em relação com a natureza.
Terceiro: ser tolerante com a diversidade. Isso exige um
aperfeiçoamento no socialismo tradicional, sobretudo sobre
no Leste Europeu. Antes acreditava que o ideal de esquerda
era a igualdade total do homem socialista. Mas o homem
de esquerda tem que ser diverso, não deve ser unitário. Respeitar crenças. A ideia de que ser de esquerda era ser materialista, foi talvez o maior erro dos esquerdistas da política.
Foi não entender Marx; porque quando ele falava de materialismo, era do ponto de vista filosófico de que o concreto
vem antes das idéias. Era colocar a concretude antes do
idealismo de Hegel e de quase todos seus precursores. Dai
acreditaram que ser materialista era um estado de religião.
Religião deve ser vista como uma manifestação da espiritualidade, como a dança, a pintura, a escultura, as artes em geral. Temos de respeitar não só religiosa. Também de opção
sexual, de gênero, étnica. Ser de esquerda é ser tolerante
42
com o outro, respeitar-lo em sua essência. Ser de esquerda
é inclusive tolerar a desigualdade na renda e no consumo,
dentro de certos limites; um piso social e um teto ecológico.
Quarto: é o intervalo da desigualdade. Não há problema
em aceitar que um tenha uma gravata outro não tenha. Um
ter carro e outro não. Mas tem que haver limites. Ninguém
abaixo de um certo nível, graças a uma rede de proteção
social. E ninguém acima de um teto, ninguém consumindo
o que degrada a natureza. É a rede de proteção social e o
limite de proteção ecológica. Dentro desses limites constróise uma escada de ascensão social. Essa escada se chama:
Escola. A escada permite que você chegue acima ou abaixo,
no limite social; e por mais dinheiro que tenha, não consumir além do limite ecológico.
Quinto: Ser de esquerda exige compromisso radical com
a igualdade na saúde e na educação. Não há problema em
ser de esquerda e aceitar que uns tenham gravata e outros
não, que uns tenham roupa bonita e outros não tenham.
Até mesmo que uns tenham uma casa grande e outros uma
casa pequena. Essa desigualdade é problema social. Mas
ser de esquerda é ter uma postura ética. Não é de esquerda
quem aceita a imoralidade do acesso à educação e a saúde
tão desiguais. Não é ético uma pessoa viver mais anos que a
outra só por ter dinheiro no Banco para comprar serviços de
saúde. Não é ético comprar o direito a vida. Não é ético que
uma pessoa tenha o potencial intelectual maior que outra
porque a família, do pai tem dinheiro. Essa é a igualdade
plena, total.
Ainda resiste a ideia de que uma escola ou hospital público se fazem do Estado. Uma nova esquerda deve redefinir: hospital público é aquele onde não há fila para ser
atendido, não há doença ao sair dele, e não há o que pagar
pelo serviço, independentemente do paciente.
43
Sexto: a ideia de publicização. Diferente da tradição estatizante do passado, a nova esquerda deve buscar publicizar no lugar de estatizar.
Sétimo: o respeito ao individuo. O individualismo afirma
conquista libertária.
Surge como uma revolta contra o sistema medieval, que
submetia cada pessoa a tutela feudal na economia; religiosa
na psicologia; senhoril na política. O individualismo tornou
possível a liberdade de cada individuo. Mas o socialismo
tentou tornar o conceito de liberdade, necessariamente individual, para um conceito social, metafísico da liberdade
coletiva. Substituiu o padre pelo líder, a religião pelo partido e sua ideologia, o dono da terra pelo Estado. Matou a
liberdade. A nova esquerda deve recuar para si um conceito
que o liberalismo tenta monopolizar. Mas, percebendo que
o individualismo não é capaz de permitir a administração
dos assuntos planetários e de longo prazo.
Oitavo: a democracia participativa. A democracia puramente representativa não caracteriza o discurso de esquerda. De esquerda é a democracia representativa e também
participativa. Os dois, porque ainda não chegamos à democracia plena direta. do ponto de vista popular. Ainda não é
possível por causa do individualismo que cada um carrega e
do imediatismo de cada um. A democracia exige Parlamento, para pensar o longo prazo, que o individuo nem sempre
pensa. Depois de um crime hediondo, em plebiscito passaria a pena de morte se não houvesse um Parlamento para
dizer: calma, esse crime é uma anomalia, esta proposta lei
carrega distorções, é invisível no longo prazo.
Nono: é a dignificação do trabalho. Isso significa não
permitir certos gêneros de trabalho. Mas também aceitar
que o salário não deve ser necessariamente igual para todos. Quando se paga salário igual para dedicação desigual,
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estamos quebrando a dignificação do trabalho. A dignificação do trabalho exige perceber que o salário deve ser: levar
em conta a especificação da qualificação e da dedicação de
cada trabalhador.
Finalmente, décimo: a ideia da soberania. Não é esquerda quem quer diluir o seu país na globalização, mas não
é também de esquerda quem queira defender a soberania sem analisar os interesses planetários do seu país. Por
exemplo: a Amazônia é nossa, mas não podemos, se somos
de esquerda, que queimam a Amazônia só por que ela é
brasileira. Ela é nossa, mas não podemos transformá-la em
campo de produção de soja. Isso não é ser de esquerda.
Precisamos de uma soberania associada a uma espécie de
condomínio: o dono do apartamento é dono de tudo que
está dentro, mas não pode deixar a torneira aberta à noite,
nem queimar os móveis em um ataque de raiva. É responsabilidade com os vizinhos. O Brasil tem que ser soberano
mas respeitar os demais vizinho, a própria humanidade. No
mundo de hoje todos são vizinhos, não importa o lugar do
planeta terra onde vive.
Esses são os dez pontos que permitiriam esquerdizar o
socialismo, fazendo mais ético o mundo que precisa de solidariedade mais humanista. Essa talvez seja a maior diferença entre Direita e Esquerda. Não é pertencer a um partido
ou outro: isso não demonstra quem é de esquerda ou de
direita. O que demonstra são os valores políticos e filosóficos que você carrega e que coloca na cor da bandeira pela
qual se luta. Ser de esquerda é ter valores éticos. Para isso
é preciso atualizar o socialismo esquerdizando a esquerda.
Escapar da prisão econômica, que nos aprisionou a esquerda por dois séculos e avançar para a liberdade da ética, dos
valores, como nós fazemos política e valores.
45
3.Precisamos Avançar
Poucos ou nenhum partido brasileiro, raros ou nenhum
no mundo parece ter vontade e desejo de ser o motor desta nova esquerda. Alguns foram para a direita, a maioria
se manteve acomodado na esquerda. Precisamos liberar a
criatividade de nossa militância por uma democracia radical,
com a participação de todos em todas as decisões.
Precisamos, hoje, ainda mais do que antes adotar
a bandeira da educação. Brizola foi o primeiro capaz de
perceber já nos tempos do desenvolvimento pela industrial
mecânica que o futuro estava na nova indústria do conhecimento, pela ciência e tecnologia, que são filhas da educação de qualidade para todos. “Os filhos dos trabalhadores
nas mesmas escolas dos filhos dos capitalistas” deve ser o
nosso lema radical.
Precisamos apresentar ao povo brasileiro a esperança
de um novo rumo pela indústria do conhecimento, desenvolvido pela convivência entre minoridades competentes e
empresários empreendedores.
Precisamos definir nossa utopia com base na instalação de uma Rede de Proteção Social, abaixo da qual nenhum pobre ficará; e de um Teto Ecológico, acima do qual
nenhum rico consumirá; no meio, uma Escada de Ascensão
Social baseada na Escola de Qualidade para todos.
Esse pode ser nosso projeto de fortalecimento do partido em busca de equilibrar a opção de estar do lado certo
em alianças, com a estratégia de seguir o rumo certo independente dos outros partidos.
4.As cores da Economia que defendemos
Até recentemente, a ideia de “economia verde” era tida
como um devaneio de ambientalistas, sem base teórica.
Com o acirramento da crise ambiental, a “economia ver-
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de” ganhou legitimidade, apesar de ainda não ser analisada
(desconsiderada) pelos economistas tradicionais porque, ao
buscar alternativas sustentáveis para o processo produtivo,
ela desrespeita os fundamentos da teoria atual.
A utilização de preços diferentes do mercado de curto
prazo e a restrição ao uso de certos recursos naturais, ainda
incomoda economistas. Mas a economia do século XXI não
pode continuar amarrada, como a do século XX, a ideia de
que a estrutura de preços momentâneos é capaz de orientar o futuro.
Sabemos que as chamadas externalidades, os impactos
externos à economia e ao imediato, precisam ser consideradas.
Keynes dizia que no longo prazo todos estaremos mortos, por isso, o futuro distante não importava. Mas no seu
tempo o problema ambiental não existia e a economia não
tinha poder de influir no longo prazo. Daqui para frente, a
sustentabilidade ambiental é condição necessária a ser considerada em qualquer economia sólida.
A crise ecológica se acirrou de tal forma, e tão rapidamente, que a simples mudança nos preços, justificando a
preferência por recursos renováveis, já não é suficiente para
enfrentar os problemas adiante. Mesmo assim, antes de ser
aceita, a economia verde já nasceu velha: porque não basta
o equilíbrio ecológico.
A substituição de combustíveis fósseis por renováveis
pode gerar um efeito bumerang: o acomodamento diante
da crise; e não basta a “economia verde” em cada carro,
se no nível macro o número de carros cresce tanto que as
florestas darão lugar a plantações de cana para alimentar
toda a frota.
Também não basta a economia substituir o combustível fóssil por renovável se o perfil da demanda continuar
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voltado para a minoria de renda superior. A economia que
dinamiza seu crescimento produzindo bens caros para a minoria, concentrando a renda, pode ser verde, mas não é a
economia que o futuro precisa. Não vale a pena “economia
verde” salvar o Planeta, se salvá-lo apenas para poucos.
A economia do futuro precisa ser verde - no uso dos
recursos naturais - e vermelha, no destino de seus produtos.
Precisamos de uma economia que atenda as necessidades
sociais como, por exemplo, a erradicação da pobreza, a diminuição da desigualdade e a ampliação do emprego. Uma
economia com valores éticos, capaz de entender que na
educação e na saúde a desigualdade é imoral. Enfim, uma
economia vermelha.
A economia precisa definir o conceito de riqueza. Uma
“economia branca” voltada para ampliar o bem-estar e não
para destruir.
A produção de armas não deve ser considerada como
resultado positivo da economia, embora seja importante
para a defesa. O valor do PIB deve descontar a produção
dos bens de destruição e serviços de segurança e também
o tempo perdido pelas pessoas na ida e vinda diária de um
lugar para o outro.
A economia também precisa ser amarela e manter como
símbolo os produtos da ciência e da alta tecnologia. A competitividade pela redução de custos, em geral pelo desemprego, não pode ser indicador da economia do futuro. A
competitividade deve estar na capacidade de invenção de
novos produtos capazes de elevar o bem-estar das pessoas.
Para isso ela deve ter por base os cérebros, não mais mãos
e braços.
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5.Rejuvenescer o partido.
Fico satisfeito quando vejo jovens se reunindo, em eventos da juventude. Na minha opinião, os comandantes desse
novo rumo devem ser os jovens.
Mas é preciso definir juventude. Quando queremos
saber se um cavalo é jovem nós olhamos para os dentes.
Quando queremos saber se uma pessoa é jovem mergulhamos no cérebro dela. É o cérebro e o coração que dizem
se uma pessoa é jovem ou não. E a juventude às vezes envelhece mais depressa do que muitos velhos. A juventude
às vezes faz política de uma maneira velha, e não ajuda o
partido, não ajuda o Brasil. A juventude que faz a política
jovem é a juventude que não cai na armadilha armada pelos velhos políticos desse país. A juventude do fisiologismo
é uma juventude velha. A política da briga só por cargo é
uma política velha. A política jovem é a política por princípios, que luta por objetivos revolucionários, transformadores. Que mudem o Brasil.
Nós precisamos rejuvenescer a política brasileira.
A corrupção é uma característica da velhice da política
e o atual quadro de corrupção é a manifestação mais explicita de que a política desse país ficou velha. Se um jovem
faz corrupção. Ele não traz uma política jovem, representa a
política velha. Nós temos que rejuvenescer a juventude para
que rejuvenesça a política e a política rejuvenesça o Brasil.
Fico esperançoso que pessoas jovens se transformem
em políticos jovens. Que não é o mesmo que velho político
e pessoa velha.
Brizola morreu aos 82 anos fazendo política de jovem,
sem se comprometer com a corrupção, sem se comprometer com o fisiologismo. Sempre dizendo que o caminho era
educação igual para todos. Darcy Ribeiro morreu com 76
49
anos fazendo política jovem, porque ele dizia que a escola
dos filhos dos trabalhadores deveriam ser iguais às dos filhos
dos patrões. Eles eram nacionalistas; queriam fazer as reformas de base que o país precisava. Getúlio Vargas morreu
aos 73 anos, jovem. Se suicidou para não ter que conversar
com os bandidos do outro lado, porque se Getúlio tivesse
chamado para conversar os Lacerdas do seu tempo, ele ficava no poder. Mas ficaria velho de um dia para o outro. Vinte
e quatro de agosto de 1954 morreu Getúlio Vargas na plena
flor da juventude política de quem não transige; juventude
de quem tem princípios, de quem tem valores. Nosso partido está cheio de pessoas velhas fazendo política de jovens.
Precisamos também de jovens fazendo política jovem.
Esse congresso tem que servir para rejuvenescer o PDT,
não na cara, não nos dentes como quando olhamos o cavalo, mas no cérebro e no coração da atividade política, com
utopia, sonhos e princípios. Um sonho que é possível nesse
país: não ter corrupção. É possível no país ter uma política
que possa mudar o País. Onde possamos recuperar a utopia: escola igual para todos.
A escola do filho do trabalhador com a mesma qualidade da do filho de seu patrão.
O Brasil nunca precisou tanto de sua juventude, mas de
uma juventude nova, desvinculada da política velha. Vim
aqui com os meus quase 70 anos de idade física lembrar
que todos os dias acordo e vou dormir pensando: o que eu
fiz hoje como jovem faria na política.
Quando transigir com isso peço que me avisem e digam: “Cristovam você ficou velho na política, vá para casa
cuidar dos netos”. Porque política se faz com sonhos de
jovens não importa a idade que tenhamos. Considerem-me
parte da juventude política do PDT.
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Que Partido
precisamos para o
Brasil que desejamos
Cristovam Buarque
51
52
Que Partido precisamos para o
Brasil que desejamos
Q
uando, no início dos anos 1960, os partidos
transformadores ameaçaram atravessar a ponte social em direção a uma nova sociedade, um
golpe militar interrompeu, por 21 anos, as propostas que
visavam transformar o país. Aprisionou a política e os partidos no curto prazo. No máximo propunham-se avanços
para a democracia ou revoluções estatizantes que a história mostrou que não serviram de bons paradigmas. Desde
1985, estamos democraticamente sobre a ponte histórica,
sem novas propostas para o futuro: apenas defendemos o
progresso baseado nas taxas de crescimento econômico no
curto prazo. Depois de 2002, nem mesmo discursos transformadores sobreviveram. Todos os partidos ficaram iguais
e limitados à gestão do presente, sem preocupação com
o futuro. É como se a ponte entre três momentos fosse
eterna e a razão da política apenas caminhasse por ela sem
qualquer perspectiva de atravessá-la. O governo faz e comemora pequenos ajustes no presente, a oposição critica e
denuncia, mas sem discurso com proposta transformadora.
53
Nos últimos anos, os partidos brasileiros deixaram de
acenar com propostas que sensibilizem a sociedade brasileira, especialmente os jovens, a aspirar e romper as fronteiras
do presente, olhar para outra margem histórica. Faz-se política na e fora da ponte, como se ela fosse o território, e não
uma simples etapa, transição, passagem. Os fatos ideológicos simbolizados na queda do Muro de Berlim é em parte a
causa da perda de perspectiva histórica. No final do século
XX, chegou-se a falar no fim da história, no sentido de que
não haveria mais a necessidade nem a possibilidade de transição social a novas estruturas sociais. Mas o fato é que no
Brasil esta falta de ideologia se agravou pela diluição dos
partidos brasileiros como simples “clubes eleitorais”. Novos
partidos se descaracterizaram como entidades representativas de blocos de pensamentos, nenhum deles com projetos
para a Nação e para o Mundo. Este vazio ideológico gera
uma desmotivação de militância. Este comodismo e pragmatismo impedem a condução do Brasil a novos horizontes,
e corrompem os políticos, se não pelo comportamento, certamente pela aceitação da corrupção nas prioridades.
O mundo está em uma ponte, em direção a uma nova
fase histórica. O fracasso das experiências sócio-econômicas, no final do século XX; as crises financeira, social, ecológica e econômica que atravessamos no início do século
XXI, colocam claramente a necessidade de atravessar esta
ponte em direção a uma nova margem: não apenas progredir, mas de redefinir os propósitos do progresso; apresentar
um modelo social e econômico que não seja baseado no
consumo voraz, que respeite a natureza, que assegure uma
democracia plena e os direitos humanos, priorize os bens
públicos e ofereça igualdade de acesso à saúde, à educação
e a justiça.
Há um ditado que diz: “Na definição da vontade de uma
54
nação, não apenas os vivos, mas também os mortos falam”.
“Os que ainda não nasceram gritam do futuro manifestando as demandas das próximas gerações”. Os historiadores
falam com os mortos, os profetas com aqueles que ainda
não nasceram. Mas além dos mortos e dos ainda não nascidos têm obrigação de dialogar com os eleitores de hoje.
Eles devem ser a ponte entre as lembranças e os sonhos
nacionais carregados pela vontade do presente.
Mas nem todos que fazem política são políticos. A maior
parte destes não fala com o passado e nem com o futuro.
Apenas olham ao redor e procuram agradar aos de hoje,
independente das lembranças do passado e das consequências futuras. Fazem a política das birutas de aeroporto,
sentindo para onde sopra o vento dos eleitores, e não a
política da bússola, apontando o rumo do futuro desejado
e necessário. São “políticos de nariz”, sem “olhos para o
futuro”, sem “memória do passado”.
Existem três tipos de políticos e partidos: os que desejam
apenas oferecer o poder para seus filiados beneficiarem-se
dos recursos públicos, são os partidos fisiológicos; os partidos que buscam o poder para administrar seriamente os
negócios públicos com competência, mas sem mudanças
estruturais na sociedade, são os partidos sérios conservadores; e aqueles que oferecem e lideram o povo do presente
com uma proposta transformadora da sociedade, conduzindo o país a uma nova margem de sua história.
Alguns, ditatorialmente, querem impor um futuro que
não dialoga com as marcas que, do passado, formam a
alma do povo; outros não olham o futuro, como se, o passado esquecido, o presente satisfizesse aos não nascidos.
Outros olham ao redor sem perceber que o presente é uma
ponte para um futuro que deseja nascer, porque o presente
é apenas o útero grávido de um futuro gerado pela história.
55
Os que de fato merecem o nome de políticos são
aqueles que conhecem a história, não necessariamente pelos livros, talvez apenas pelo olfato do sentimento popular;
são capazes de sonhar um futuro diferente no outro lado da
ponte, como Moisés pelo deserto, e sabem mobilizar o seu
povo para criar as bases que sirvam como vetor da transformação.
No mundo global em crise, todo país precisa de estratégias políticas transformadoras, mas alguns precisam ainda
mais que outros: nosso País é um desses. Não podemos ter
a ilusão de países que fizeram suas revoluções e têm populações educadas e ricas. Nem as angústias daqueles que
pela pobreza e pelo tamanho não têm direito à esperança.
Fazemos parte de um reduzido grupo de países que têm a
angústia de sermos ainda atrasados e a esperança de termos os recursos para fazer a inflexão na direção das forças
que apontam ao futuro.
Na história do Brasil, atravessamos algumas pontes em
direção à outra margem de nova estrutura sócio-econômica. Em 1888, ao abolirmos a escravidão; em 1889, quando
proclamamos a República; em 1930 e 1955 quando saímos
da margem agrícola e rural para a industrial e urbana. São
estas travessias que justificam a política. E são os sonhos de
outras margens que mobilizam as sociedades, especialmente as jovens.
São as propostas de futuro que mobilizam militantes
e sociedades ao acenar com novos horizontes sociais, econômicos e políticos para a construção de novas estruturas,
até mesmo de novos padrões civilizatórios. Fora disto os
partidos mobilizam seus militantes apenas por interesses
pessoais, ocupação de cargos para manterem conservadoramente a estrutura atual.
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Há um descontentamento amplo entre os políticos
que não se conformam apenas com o exercício do poder.
Descontentes com seus partidos, muitos deles falam em
criar novos partidos, mas pensando em criar apenas novas
siglas. O Brasil já tem muitas siglas, mas está carente de
partidos portadores de bandeiras transformadoras.
Partido não é sigla, sigla não é partido. Houve um tempo em que os políticos criavam siglas para servir a Partidos.
O caso de Brizola, quando perdeu a sigla PTB e criou o PDT
para servir a um projeto de Nação que atravessasse a ponte
aberta pela democratização, indo para uma nova margem
de nossa história, já naquela época baseada na educação
como a base do progresso econômico e social. Hoje, desfazemos partidos para manter siglas, caducando do ponto de
vista ideológico, sem projetos, sem olhar a outra margem
da história.
Um partido precisa de ideal e de militantes dispostos
a dar suas vidas por um conjunto de propostas para o país
e o mundo. A verdade é que não temos um único partido
no Brasil, apenas siglas que se misturam como as sopas que
as crianças gostam. Nenhuma das siglas atuais preenche as
características de um partido, ainda menos de um que seja
portador de uma nova sociedade. Coincidindo com a queda
do Muro de Berlim, o governo Lula conseguiu transformar
os partidos que ainda tinham bandeiras em siglas diluídas
na maré de apoio ou oposição ao governo, todos na mesmice. Com sua competência, habilidade e carisma, conseguiu
adotar bandeiras dos opositores, deixando-os sem propostas; submeter os partidos que o apoiavam a abandonarem
suas bandeiras apenas às possibilidades do presente, abandonarem seus sonhos utópicos para o futuro, sem o objetivo de fazer uma revolução social e chegar à outra margem
da história. Como se não bastasse a conversão ideológica,
57
fez a cooptação juntando-os dentro da máquina do governo, vacinados contra sonhos ideológicos e comprometidos
e viciados em cargos fisiológicos.
O PT, que certamente foi um Partido, o PC do B, o PSB,
o PDT que eram partidos, aos poucos foram perdendo o
fôlego da ideologia, das propostas. Passaram a apoiar tudo
que vem do governo. O PSDB e o DEM passaram a se opor
até mesmo às medidas implantadas nos dois governos de
Fernando Henrique Cardoso. As demais siglas continuaram
no poder coerentes com o arrivismo das últimas décadas,
ou contra o poder qualquer que seja sua proposta.
Pequenos partidos ideológicos como o PSOL mantiveram a distância e um discurso independente, e bandeiras específicas, mas sem programas claros. Continua merecendo
respeito por ser único com bandeira ética, mas prisioneiro
da marca ética, que também é um tema da ponte, não da
outra margem. Tema aceito pelos conservadores decentes,
que se revoltam contra a corrupção, mas não contra o quadro de miséria, contra a desigualdade, contra a depredação,
contra a barbárie do neoliberalismo; reagem à corrupção
no comportamento, mas pouco falam da continuação da
corrupção nas prioridades.
E nunca o Brasil necessitou tanto de partidos que se
façam por fora ou por dentro de uma ou de diversas das
atuais siglas. Um partido capaz de ter as esperanças do passado adaptadas às necessidades e às possibilidades do futuro. Um partido que lidere militantes e povo em direção a
uma nova margem histórica.
Pelo menos dezessete pontos divididos em quatro blocos poderiam ser a base para um programa deste Novo Partido, ainda que dentro das atuais siglas, para atravessar a
ponte da transição em direção a um novo Brasil, com nova
estrutura econômica.
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I – Desenvolvimento sustentado e baseado no conhecimento
1. Definir uma Política Industrial que construa a economia brasileira baseada na inovação cientifica e tecnológica.
Sem isto o país não atravessará a ponte, não caminhará
para a margem histórica do futuro. Ficará para trás, mesmo
sob as aparências da riqueza momentânea do PIB baseado
nos bens tradicionais, seja da agricultura, seja da indústria.
Desde a revolução de 1930, a economia brasileira tem por
objetivo a indústria mecânica imitativa, baseada em inovações importadas. A nova ruptura de fronteira sócio-econômica exige a transformação, já tardia, de nossa economia
para um modelo baseado na inovação como o verdadeiro
motor e no conhecimento como novo capital. Isto exige do
novo partido o compromisso de criar no Brasil um Sistema
Nacional de Consumo, capaz de não ser a educação de base
e superior, os institutos de pesquisa, o setor industrial, para
tornar nossa economia criativa. A competitividade não deve
vir mais da simples produção no custo de mão de obra, mas
sobretudo da criação de novos produtos.
2. Compromisso com um desenvolvimento que respeite
a natureza. Não há futuro para a humanidade nem para o
país se o modelo econômico continuar depredando a natureza na proporção das últimas décadas. Um partido do
futuro precisa submeter o crescimento econômico ao equilíbrio ecológico. Não apenas usar a natureza eficientemente,
mas também cuidar dela como parte da riqueza da humanidade e do país.
59
3. Responsabilidade com o equilíbrio fiscal. Sem isto o
partido trai os interesses das massas pela desvalorização da
moeda que prejudica fortemente os menos favorecidos e
toda a Nação pela falta de respeito a um dos pilares do
equilíbrio social que é a estabilidade monetária.
4. Fazer reforma fiscal simplificadora, insonegável e progressista. Não pode ser perdoado pela história o partido
que no poder não for capaz de levar adiante uma política
fiscal inteligível a qualquer cidadão, que elimine as brechas
pelas quais são feitas as sonegações legais, que torne impossível a sonegação ilegal e que, finalmente, sem sacrificar
a eficiência econômica, seja capaz de ser instrumento de
justiça social.
II – Democracia completa
5 - Absoluta intolerância com a corrupção. Uma das
consequências da diluição partidária em siglas foi a aceitação da corrupção como fato normal da política: a ser criticada quando cometida pelos outros e defendida quando
cometida pelos aliados. Partidos que até pouco tempo eram
identificados com a defesa radical da ética passaram a aceitar, justificar, desculpar e conviver com a corrupção entre
seus quadros no poder, às vezes em benefício próprio e enriquecimento pessoal, às vezes em benefício do partido. A
luta contra a corrupção saiu da política e caiu nas mãos da
Mídia e do Ministério Público.
6 - Reforma política que assegure respeito total às regras democráticas. Eliminar toda forma de cooptação de
políticos e a consequente diluição de partidos, governando
60
com o Parlamento e com a Justiça, evitando toda forma de
manipulação, mesmo àquelas que são feitas dentro da Lei,
com a edição de Medidas Provisórias, ou a nomeação de
parlamentares pelo Poder Executivo, usando o artifício dos
suplentes. Não aceitar a compra de votos, seja pelo fisiologismo, seja pelo elevado custo das campanhas e a promiscuidade do financiamento privado. Aceitar total liberdade
de organização, de expressão, de imprensa. Para isso, um
partido comprometido com o futuro deverá propor uma
Reforma Política Republicana que atinja os três poderes e
mude a forma como se faz política no Brasil. A política deve
deixar de ser um instrumento de obtenção de vantagens
pessoais, não apenas por atos ilícitos, como também aqueles benefícios feitos dentro de leis sem legitimidade social.
7 - Reformar o Estado Brasileiro para fazê-lo servir aos
interesses públicos. Quebrar o patrimonialismo que há cinco séculos se apropria do Estado, seja por empresários, por
burocratas, por sindicalistas, por empresários, como subrepúblicas que dividem e afogam o sentimento pátrio. Estas
subrepúblicas negam e inviabilizam a Nação ao colocarem
seus interesses acima dos interesses maiores do povo e do
país. Tentam abocanhar o maior pedaço possível da renda
nacional seja pela política tributária seja pela política salarial. Como se fazia pela inflação antes da lei de responsabilidade fiscal e das regras seguidas do Plano Real. O governo
transformador deve romper com a privatização dos recursos públicos, mas também com a privatização do Estado
por corporações; deve prestigiar o interesse do público. Para
o partido do futuro, o importante é a quem pertence o Estado, e não a quem pertence o Capital.
61
8 - Participar com protagonismo da cena internacional, sem fechar a economia, nem a cultura, mas sem abrir
mão dos valores nacionais e optando sempre pelos direitos
de cada povo definir seu próprio destino com soberania e
reconhecimento internacional. Um partido transformador
deve fortalecer a força moral do Brasil ao lado das grandes
causas da humanidade, colocando os princípios acima do
pragmatismo. Deve defender a paz internacional, tanto pelo
desarmamento bélico em geral e imediata banição de toda
arma nuclear; como também pelo desarmamento da bomba social com a adoção de programa mundial de luta contra
o quadro de pobreza, especialmente pelo apoio à educação
de todas as crianças no mundo. Defender o fortalecimento
da ONU e sua democratização com o fim de membros permanentes no Conselho de Segurança.
9 - Novos Meios - o partido do futuro não pode continuar baseado nas velhas organizações paraestatais e presenciais, o partido deverá ser capaz de usar os modernos
instrumentos virtuais de debate e organização, que têm
sido capazes de fazer verdadeiras revoluções; deve também
entender o papel das parcerias público-privada, como forma de publicizar o Estado e orientar o setor privado para
compromissos sociais.
III – Igualdade de acesso universal aos bens e serviços essenciais
10 – Direitos Humanos - A nova margem deve ter total
compromisso com os Direitos Humanos, não apenas aqueles vinculados à integridade física e a liberdade das pessoas,
como também direito de cada minoria ser protegido das
imposições feitas pela maioria. Deve também ampliar o
62
conceito de Direitos Humanos para abraçar o atendimento
das Necessidades Básicas da população pobre. Entre estas
necessidades, deve-se dar atenção especial à questão do
analfabetismo como um assunto de Direito Humano.
11. Luta pela inclusão social de todos - Um partido para
o futuro, como foi o “partido abolicionista” no seu tempo, não pode se contentar com programas de pequenas
transferências de renda para os pobres, precisa de uma revolução que elimine a exclusão social. As propostas desse
Partido devem ter por objetivo o fim da apartação que caracteriza o Brasil desde seu início. Isto implica integrar toda
a população em um só povo. Não bastará para este partido
a necessária generosidade com os excluídos, ele precisa definir legislações sociais que assegurem a todos os mesmos
direitos de acesso aos bens e serviços essenciais.
12. Garantia do direito de acesso a uma educação de
qualidade igual para todos, independente da renda da família e da cidade onde mora - Para estar contemporâneo com
o futuro, este partido deve apresentar a educação como o
vetor da construção de uma sociedade sem exclusão e de
uma economia competitiva internacionalmente: a educação
deve ser vista como o vetor da revolução social e econômica no século XXI. Para isto, além do Direito Humano, este
novo partido deve carregar a bandeira da erradicação do
analfabetismo, da garantia de que nenhuma criança será
deixada para trás, todas terão acesso à escola com a máxima qualidade. Seu lema pode ser “o filho do trabalhador
pobre na mesma escola do filho do patrão rico”. Esta escola
do trabalhador e do patrão teria o máximo de qualidade
exigida pela realidade do progresso científico tecnológico,
econômico e cultural do século XXI. Isto dificilmente se fará
63
sem uma federalização da educação de base, com professores escolhidos entre os profissionais melhor preparados e
melhor remunerados do País, selecionados nacionalmente,
com dedicação exclusiva à escola e estabilidade submetida
à avaliação periódica, em escolas bem construídas, equipadas com todos os recursos modernos e em horário integral.
Este deve ser o cerne da revolução que o novo partido realizaria no Brasil, completando a República.
13. Recusar de maneira radical a imoral desigualdade no
direito à vida, por causa do acesso diferenciado ao sistema
de saúde. Para ser um partido socialmente comprometido,
ele deve apresentar com clareza sua proposta de assegurar
a cada pessoa o acesso digno à saúde. Fazer a abolição da
escravidão do século XXI: a compra do direito à vida, onde
vive mais quem pode usar o dinheiro para garantir acesso às
modernas técnicas médicas.
14. Definir uma política salarial justa - Que colabore
para reduzir a desigualdade de renda entre as pessoas e
famílias, que seja um instrumento de quebra da vergonhosa desigualdade não apenas entre assalariados e rentistas,
como também entre os assalariados. Isto é ainda mais necessário na redefinição da política salarial do setor público,
onde a desigualdade chega a ser 40 vezes maior. E esta
desigualdade não decorre do desempenho do profissional
para ampliara o bem estar social da coletividade, mas sim
da capacidade de pressão. O partido da nova margem história deve definir numa política salarial baseada no impacto
do trabalhador na criação do bem estar. Como exemplo, as
áreas da saúde e da educação devem ter precedência na
valorização salarial.
64
15. Moralizar e democratizar o sistema judiciário e presidiário - De maneira a acabar a leniência com qualquer tipo
de crime, desde aqueles da corrupção, do colarinho branco, da direção sob efeitos do álcool, o tráfico, a exploração
sexual de menores, o uso do trabalho escravo etc. Punindo
todos, inclusive os políticos e os magistrados que cometam
crimes. E assegurando que a Justiça não seja monetarizada, passando a atender igualmente, independentemente do
poder de compra do réu.
16. Reorganizar as cidades - O partido do futuro deve
reduzir as desigualdades entre regiões e incentivar a distribuição demográfica da população. Para tanto, um governo
transformador precisa priorizar as cidades menores, de maneira a frear a migração e até conseguir fazer desmigrações.
Deve ser um compromisso desse partido humanizar as cidades, fazendo-as eficientes, aconchegantes onde a criminalidade se sobreponha aos aspectos de modernidade perversa
que caracteriza as grandes cidades de hoje.
IV – Nova Mentalidade
17. O discurso da mudança - Toda revolução – passagem para uma nova margem histórica - exige uma mudança de mentalidade eleitoral e provoca uma mudança de
mentalidade social. Por isto o partido da mudança precisa
ter uma retórica comprometida com a nova visão do futuro; ser um instrumento da mudança de mentalidade. Esta
opção por um discurso de ruptura pode muitas vezes ser
contraproducente eleitoralmente, mesmo assim, o partido
precisa ser coerente com o futuro.
65
66
Anexo II - Senado Federal
70165-900 - Brasília, DF
Fones: (61) 3303-2281, no fax (61) 3303-2874
[email protected]
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