Brasília - Maio, 2011 A Esquerda Morreu, Viva a Esquerda Cristovam Buarque Índice A Esquerda Morreu, Viva a Esquerda............... 5 A ESQUERDA MORREU..................................... 5 Reconhecer a morte da esquerda............................ 7 Entender as causas.................................................... 10 a) O avanço técnico indutor de necessidades......... 10 b) A natureza egoísta dos homens.......................... 12 c) Limites ecológicos................................................. 14 d) A globalização excludente.................................... 15 e) A dessemelhança da espécie................................ 16 f) O mundo terceiro-mundo..................................... 17 g) A natureza do consumo....................................... 18 h) Apego à espiritualidade........................................ 19 i) A perda do sentimento da utopia......................... 19 VIVA A ESQUERDA.............................................. 20 As bases do desafio intelectual............................ 22 a) Aceitação da morte............................................... 22 b) Crença na utopia................................................... 22 c) Política sem cinismo.............................................. 23 d) Capacidade de se indignar................................... 24 e) Defesa dos excluídos............................................. 25 f) Respeito à diversidade........................................... 26 g) Respeito ecológico................................................. 27 h) Manifesto intelectual............................................. 27 Duas bandeiras para a esquerda do país................. 29 No Brasil não foi diferente......................................... 29 Uma esquerda do país e do povo........................... 35 Partido do Futuro.................................................... 39 1.Lado e Rumo......................................................... 2.Dez pontos para esquerdizar o Socialismo........ 3.Precisamos Avançar.............................................. 4.As cores da Economia que defendemos............ 5.Rejuvenescer o partido......................................... 41 41 46 46 49 Que Partido precisamos para o Brasil que desejamos............................................................ 51 I – Desenvolvimento sustentado e baseado no conhecimento.................................................... II – Democracia completa....................................... III – Igualdade de acesso universal aos bens e serviços essenciais............................................. IV – Nova Mentalidade.............................................. 59 60 62 65 A Esquerda Morreu, Viva a Esquerda A ESQUERDA MORREU D esde 1980, em todo o país nos quais chegou ao poder, a esquerda caminhou para a direita. Os primeiros anos de governo representaram para a esquerda de cada um desses países o que a queda do Muro de Berlim representou para a esquerda mundial. Um sentimento de frustração, de desânimo, de que a esquerda morreu. Mas para outros, o sentimento é de que a “direitização” da velha esquerda está forçando o nascimento de uma nova esquerda. Não há vácuo de poder; também não de idéias. Quando são necessárias, elas nascem no instante em que outras morrem. No final do século XX, morreu um conjunto de idéias que criticavam a realidade social e formulavam alternativas para construir uma utopia. Havia o sentimento de que essas idéias tinham-se tornado desnecessárias, e não precisavam ser substituídas. A esquerda morrera. Mas mantinha-se a necessidade de crítica e de busca de alternativas. Logo, uma esquerda morrera e outra nascera. A esquerda só morreria realmente se, além da superação das idéias que ela representava, tivesse morrido também a necessidade delas; desaparecido a razão de sua necessidade. Mas não desapareceram o descontentamento com a realidade social nem o sonho de um futuro diferente. Se olharmos ao redor, depois da chamada morte da esquerda, veremos que houve uma frustração com a forma 5 com a qual ela se apresentava, com os modelos que ela formulava, com o mundo que ela tentava construir, mas não desapareceu a necessidade de idéias, modelos e sonhos alternativos à realidade na qual ela funcionava. Persiste a exigência de idéias que sirvam de base para um mundo diferente. Por isso, morreu uma esquerda, mas outra nasceu imediatamente, embora sem contornos claros e sem ser percebida. Vinte anos depois do começo da morte da esquerda e do chamado “fim da história”, a humanidade não tem o que comemorar com a vitória da direita. O começo do século XXI mostra um modelo econômico e social irresponsável no uso da ciência e da tecnologia, imoral na distribuição da renda, indecente nos cuidados com o planeta. Uma humanidade que se divide em uma apartação mais brutal do que a desigualdade social, e que se transforma rapidamente em dessemelhança biológica; que aquece a Terra e destrói a vida no planeta; que sofre de um vazio existencial preenchido com o consumo da droga ou com a droga do consumo; que se vê ameaçada pelo motim do terror em escala global; que cria uma cultura sem estética, voltada para o imediatismo do mercado; que vive uma migração internacional caótica, enfrenta epidemias descontroladas diante de uma ciência e tecnologia sem compromisso nem regras éticas, um mundo submetido a uma superpotência arrogante que tenta se apropriar dos recursos naturais e impor sua cultura, religião e um pensamento que se arroga único. Nunca antes a esquerda foi tão necessária. Ao contrário de matar a esquerda, o quadro histórico do começo do século XXI demanda a esquerda e a fermenta. Por isso, morreu a esquerda, nasceu a esquerda. Mas ela demora a se definir, a se espalhar e assumir uma forma minimamente hegemônica. Essa demora se agrava 6 porque os políticos de esquerda caíram na negação de seus erros ou no adesismo à direita, e os intelectuais abandonaram as crenças ou desistiram de mudá-las, seus olhos deslumbrados com os novos valores e as ofertas da direita, ou fechados para não ver os erros da esquerda. As idéias sociais não nascem na cabeça dos intelectuais que refletem sobre o presente, mas nos pés do povo que caminha nas ruas em direção ao futuro. Elas não são inventadas, brotam da necessidade de entender a realidade, criticá-la, desenhar sonhos e formular caminhos para construí-los. Aos intelectuais descontentes com o mundo, crentes da exigência de alternativas, cabe a tarefa de explicitar literariamente o que o imaginário coletivo percebe em sua marcha para gerar uma esquerda que substitua a que morreu. Reconhecer a morte da esquerda Antes da morte do rei não se pode gritar “viva o rei”. O nascimento de uma nova esquerda exige o reconhecimento da morte. Muitos ainda se recusam a reconhecer o fracasso dos modelos teóricos e das práticas políticas aos quais o costume chamou de esquerda a partir dos meados do XIX. Uma esquerda que nasceu dos sonhos vagos da revolução francesa, que se explicitou a partir das idéias dos socialistas utópicos e principalmente das marcas firmes da racionalidade marxista e de suas variantes. Mas a realidade mostra que tanto as características intelectuais da esquerda quanto seus sonhos morreram diante dos rumos tomados pela humanidade a partir do final do século XIX. A esquerda no século XX morreu por, pelo menos, doze razões: 7 Moral – fracassou a implementação do projeto utópico da esquerda, especialmente nos países do Leste Europeu. Por mais que se tente concentrar na figura de Stalin, a desumanidade do Gulag soviético foi produto da esquerda. E esse foi um exemplo extremo, mas não o único. A ponto de chegarmos ao final do século XX com a idéia de que socialismo era igual à repressão política, em vez de vermos o socialismo como símbolo da liberdade individual. Política - com exceção da URSS e dos movimentos de libertação nacional e de Cuba, não houve vitórias políticas substanciais conduzidas pelas forças de esquerda. As vitórias da esquerda se limitaram à conquista da independência e à derrota de ditaduras, mas esses também são objetivos de forças nacionais de direita. Social - mesmo que as maiores vitórias do socialismo tenham sido o atendimento de necessidades sociais essenciais a todos, tais necessidades não foram abolidas, como aconteceu em muitos dos países capitalistas; as conquistas foram limitadas pelas restrições ao avanço técnico ou econômico, no caso da saúde e da habitação, e pela restrição à liberdade individual, no caso da educação. Consumo - se fracassou socialmente em parte, a esquerda fracassou totalmente no atendimento das demandas de consumo, matando-as por incompetência técnica por meio da proibição, ou concentrando seu atendimento a pessoas escolhidas. Igualdade - mesmo quebrando privilégios de classe, a esquerda não conseguiu eliminar a desigualdade, eliminou apenas a transmissão hereditária da desigualdade, pois os que entravam no partido ou cumpriam tarefas especiais definidas pelo Estado tinham o direito de chegar às camadas privilegiadas. 8 Ecológica - além de não ter sido previsto pelos teóricos do século XIX, e de ter sido uma bandeira inicialmente recusada pela esquerda e desprezada pelos regimes socialistas, o problema ecológico é uma das causas fundamentais do fracasso da esquerda, que ainda não soube formular um modelo de desenvolvimento livre da triste arrogância do antropocentrismo. Histórica - o modo como o império soviético foi desfeito, com o sopro do frágil movimento sindical na Polônia e das idéias religiosas de um Papa em Roma, da ousadia nacionalista dos povos da Federação da URSS, muito mais do que das ameaças pelo Ocidente, deixará uma marca de fracasso da esquerda que ficará registrado na história da humanidade por séculos. Conjuntural - a queda do muro de Berlim e o espalhamento do neoliberalismo e do pensamento único tiveram grande impacto sobre a esquerda no Ocidente, provocando radicais mudanças ideológicas nos partidos socialistas em cada país europeu, na América Latina, e também nos poucos países que resistem com governos de esquerda em mutação, como na China, no Vietnam e em Cuba. Espiritual - o equívoco de vincular a utopia social a uma suposta utopia racional que negaria a espiritualidade fracassou em todos os lugares, na medida em que o pensamento materialista não conseguiu matar, nem mesmo diminuir, a ânsia de espiritualidade que existe no ser humano. Existencial - a esquerda fracassou também no plano existencial, ao deixar de criar o novo homem que prometia no começo do século XX. Salvo nos momentos de enfrentamento nacional, como na URSS durante a segunda guerra, no Vietnam durante a guerra de independência, o homem socialista soviético continuou egoísta. Mesmo em Cuba, onde aparentemente o espírito nacional parece prevalecer, 9 é difícil ter convicção que esse espírito nacional teria prevalecido sem a ameaça externa do império norte-americano. Alguns países capitalistas, como o Japão, por razões culturais, conseguem ter um homem mais social do que conseguiram os regimes de esquerda. Intelectual - a esquerda perdeu o debate teórico que busca explicar a evolução da civilização e para qual direção esse processo deve evoluir. Emocional – a esquerda deixou de mobilizar multidões e despertar os jovens que hoje preferem usufruir do status quo e se concentrarem na busca do prazer individual oferecido pelo consumo, pela direita, no lugar do prazer da luta pela revolução, oferecido pela esquerda. Entender as causas Os fracassos da esquerda indicam que ela morreu, mas a construção da nova esquerda exige que se entenda a causa: uma autópsia intelectual, política, cultural. a) O avanço técnico indutor de necessidades A esquerda surgiu, ainda na Assembléia da Revolução Francesa, como um sonho anti-monarquista, popular, anticlerical, libertário do poder feudal. Nada racional, apesar de anti-clerical e influenciada pelo Iluminismo. Com o socialismo utópico, como seria chamado depois, evoluiu no século XIX como o sonho libertário em busca dos direitos proletários contra a burguesia e visando construir uma utopia social. De Robespierre a Proudhomme, houve um aumento da racionalidade e a descoberta da utopia. Mas foi com Marx que o socialismo consolidou o sonho utópico e optou decididamente pela racionalidade. Marx não só lançou a idéia do comunismo como meta, mas também explicou por que esta utopia era uma ten- 10 dência inevitável do projeto humano. Para ele - e ele tinha razão - o avanço técnico provocaria uma falência natural do capitalismo, porque os capitalistas, lutando entre eles pelo mercado, usariam técnicas cada vez mais modernas, que aumentariam a produção e baixariam o preço de seus produtos até chegar à abundância total e a taxa de lucro cair a zero. O próprio capitalismo construiria o comunismo, graças à marcha segura e inevitável do avanço técnico nas mãos de capitalistas concorrendo entre eles. O egoísmo de cada capitalista levaria à generosidade do socialismo. Nada conseguiria evitar o fim do capitalismo. O movimento operário e comunista tinha a simples tarefa de apressar esse fim. Marx tinha razão. O avanço técnico era o motor que fez surgir o capitalismo, mas era também o motor que levaria à sua destruição. No entanto, ele não poderia imaginar, porque isto só ocorreu depois de sua morte, que o avanço técnico mudaria seu propósito no final do século XIX e nas primeiras décadas o século XX. No tempo de sua vida, o avanço técnico ocorria dentro da fábrica, era um instrumento de aumento da produtividade, forçaria a queda do lucro e reduziria naturalmente as necessidades, construindo um mundo de abundância para todos pelo crescimento da produção. Era o tempo do otimismo no papel do avanço técnico. Nem ele nem nenhum dos utopistas do século XIX poderiam imaginar que a criatividade humana trocaria sua preocupação com o aumento da produtividade para atender às necessidades por produtos já conhecidos, pela preocupação com a invenção de novos produtos que criariam novas necessidades. O avanço técnico mudou de paradigma no final do século XIX, e passou de redutor de necessidades a indutor de necessidades. Com isso, deu fôlego ao capi- 11 talismo, ofereceu uma dinâmica permanente à economia capitalista e condenou a esquerda à asfixia. No século XX, a esquerda tentou combinar o sonho libertário do século XVIII com os sonhos utópicos e racionais do século XIX e a tentativa de atender à demanda de consumo criada no século XX. Não poderia funcionar. A esquerda do século XX morreria de qualquer maneira, porque quis pertencer ao século XX quanto ao consumo, e manter-se no século XIX quanto às características do avanço técnico da fábrica, que elevava a produtividade e reduzia as necessidades. b) A natureza egoísta dos homens A característica de um sistema fora de seu tempo decorreu, em grande parte, do tradicional equívoco da esquerda de considerar o ser humano como animal social, que vê vantagens na associação com os outros, como se o egoísmo não fosse parte intrínseca da natureza humana. A esquerda, que se dizia racional nas análises sociais, baseou-se em idealismo ao ver a natureza humana como solidária e social, e não individual e egoísta. Como resultado, baseou suas propostas em um ser humano que não existe. Isso não poderia durar para sempre. Para executar um sistema contra a natureza egoísta, foi necessária a sua imposição autoritária contra a própria natureza humana. Solidariedade imposta autoritária e artificialmente contra o liberal egoísmo natural. Estudos da natureza humana mostram não só que o lado egoísta é uma característica do animal-homem, mas também que esse egoísmo, se bem administrado, é uma qualidade, pois é o resultado da consciência de sua individualidade. A esquerda repudiou não apenas o egoísmo, mas também o individualismo e o existencialismo, vistos 12 como pecado e não como instrumentos de libertação e realização social. O individualismo, essa outra face do egoísmo, é o que nos diferencia dos outros animais, e é também o que nos faz construir mais do que eles, outros animais. O existencialismo é a realização legítima do projeto pessoal, único, que representa a pessoa estar viva e por tão pouco e imprevisível tempo. Esmagar o direito individual é desumano, antinatural, autoritário e, portanto, não de esquerda, mesmo se a intenção for construir a utopia social. No lugar de símbolos de perversão, o individualismo e o existencialismo devem simbolizar humanização. Obviamente, uma humanização do indivíduo que, nas mãos da direita, traz consigo um desumanismo, eleva o indivíduo e rebaixa a humanidade. A religião, o judaísmo-cristianismo-islamismo, resolveu isso estipulando a cobrança da solidariedade no presente em troca do máximo interesse individual da vida eterna para cada um, afirmando que para merecer o Céu era preciso ser solidário na Terra. Uma espécie de adiamento do uso individualista do tempo nesta vida, para recebê-lo com a infinita taxa de juros da eternidade. Mas a esquerda, prisioneira do materialismo, queria proibir o individualismo, oferecendo em troca somente a ilusão da realização em um projeto histórico. Isso não poderia durar muito. Sem a fé em outra vida, oferecida pela religião, jamais pela política, renunciar ao individualismo era anti-natural, como oferecer a utopia do lado de dentro de uma vitrine que não se pode romper. A esquerda não soube construir um sistema social que defendesse os interesses coletivos e, ao mesmo tempo, respeitasse os interesses legítimos, naturais e eficientes dos indivíduos, combinando esse individualismo com um papel social. 13 Para complicar, muitos dos que defendiam o ser social para justificar suas políticas eram absolutamente individualistas na sua vida pessoal e política. Alguns líderes de esquerda se comportaram, na sua prática política, de modo tão individualista quanto os políticos de direita. Nos momentos normais foram igualmente individualistas; nos momentos heróicos, encontramos fortes valores coletivos tanto na esquerda quanto na direita. c) Limites ecológicos Talvez mais do que os demais aspectos, a descoberta e a consciência dos limites ecológicos ao progresso industrial são causa fundamental da morte da esquerda tradicional. Mais ainda do que a direita, a esquerda representa um pensamento otimista do projeto civilizatório conduzido pelo avanço técnico. Ao longo dos últimos dois séculos, vários intelectuais de direita mostraram um pensamento pessimista quanto ao futuro da humanidade, mas nenhum pensamento de esquerda era pessimista no longo prazo. A esquerda é otimista no seu âmago, e vincula esse otimismo ao avanço técnico. Assim, quando nos anos 70 surgiu a consciência ecológica e sua vertente crítica ao avanço técnico, a esquerda ficou, de início, do lado dos poluidores, não do lado dos Verdes. Em muitos casos, o movimento ecológico foi visto com desconfiança pela esquerda, como um movimento conservador, descrente do poder humano. Nos meios intelectuais da esquerda, artigos sobre a questão ecológica eram recusados, porque a idéia de limites ecológicos era vista como uma invenção do imperialismo para impedir a libertação e o desenvolvimento dos países do Terceiro Mundo. A ciência e a tecnologia como sinônimos de progresso ilimitado impediram que a esquerda percebesse o risco que provocavam sob a forma de depredação 14 ambiental. Somada a esse impedimento ideológico, a ortodoxia prisioneira do pensamento construindo uma realidade do século XIX fracassava em adotar a nova realidade da luta de classes entre gerações, devido à depredação do patrimônio natural da humanidade. Se seguir as propostas da civilização industrial, seja pelo lado da direita ou da esquerda, o progresso técnico do século XX e seu consumismo levarão a um desequilíbrio ecológico de conseqüências desastrosas para a vida no planeta. A utopia -capitalista ou socialista - esbarrou nos limites ecológicos e não soube se reciclar, incorporando esses limites como parte do seu projeto civilizatório. A realidade mostrou que a esquerda estava errada, ao deixar de formular um projeto que incorpore as “propostas verdes”como parte de um único discurso utópico, e não apenas como vertente de um movimento social. d) A globalização excludente A esquerda do século XX é filha da revolução industrial, e observa o mundo, na crítica e na proposta, pelo lado do proletariado. O que ela não podia imaginar é que, ao invés de evoluir para o socialismo, o capitalismo nacional e imperialista evoluiria para a apartação global e nacional: transformando os trabalhadores do setor moderno dos beneficiários do consumo supérfluo e aliados dos capitalistas, que assistem à exclusão das massas. No primeiro momento, sob a proteção das fronteiras nacionais, os trabalhadores dos países desenvolvidos se aliaram aos capitalistas de seus países para usufruírem os benefícios do capitalismo, utilizando-se para isso das diversas formas de colonialismo e imperialismo. Em um segundo momento, de forma similar ao apartheid sul-africano, uniu os trabalhadores brancos contra as massas excluídas. 15 Um movimento claramente explicado pelas leis marxistas de luta de classe, pelo qual trabalhadores brancos defendiam seus privilégios econômicos, sob a proteção da fronteira racial, contra os negros que, pelas leis de mercado, poderiam se apropriar de parte daqueles benefícios. Atualmente, no lugar das fronteiras raciais ou nacionais, a economia capitalista absorve parte dos trabalhadores do setor moderno, não importa de que país, graças aos bolsões da modernidade global em todos os lugares do mundo, e dentro de cada país surgiu um nova fronteira social, que separa os trabalhadores dos excluídos. O próximo passo será a implantação de uma fronteira biológica que, mais do que separar, fará os seres humanos dessemelhantes, pelo uso privado da biotecnologia e das técnicas médicas. A evolução mostrou que a luta de classes entre trabalhadores e capitalistas, que Marx e a esquerda sempre colocaram como o motor da história, transformou-se em uma luta triangular, entre trabalhadores e capitalistas, de um lado, e as massas excluídas de outro. A mais valia entre o capital e o trabalho adquiriu uma feição triangular, na qual algumas vezes capital e trabalho se apropriam do produto repartido entre eles, ao mesmo tempo em que marginalizam as massas excluídas, destruindo o planeta e sacrificando as gerações futuras. E, para surpresa da esquerda, os trabalhadores do setor moderno apóiam esse progresso excludente em escala global. A esquerda que vai nascer deverá entender essa nova realidade da luta de classes triangular em um presente bipolar, intertemporalmente. e) A dessemelhança da espécie O otimismo da esquerda ao longo dos séculos tinha base concreta para afirmar que, graças ao avanço técni- 16 co, o mundo caminhava para a igualdade entre os seres humanos. No entanto, o que se vê como coroamento do projeto civilizatório da sociedade industrial é a humanidade caminhando para sua ruptura biológica; o agravamento da desigualdade, que chega à dessemelhança, entre os seres humanos: o progresso técnico, apropriado pela parte rica da sociedade, capitalistas ou trabalhadores, montou um sistema de avanço científico e tecnológico capaz de diferenciar os seres humanos, não só de acordo com a apropriação do produto da economia, mas também por suas características físicas, sua inteligência, saúde, esperança de vida. Nessa nova realidade, na qual o avanço técnico que construía igualdade também constrói dessemelhança, a esquerda não consegue se orientar. E não consegue aceitar a idéia de que os trabalhadores do setor moderno, sua base social, se separam e até se opõem aos interesses das massas, em função dos limites naturais e dos interesses de classe. f) O mundo terceiro-mundo Uma das bandeiras da esquerda mundial era a independência nacional identificada com o fim do colonialismo. E a independência de cada país seria o primeiro passo para que ele se desenvolvesse e, em conseqüência, sua riqueza se distribuísse entre sua população. O século XXI chegou com todos os países independentes politicamente, mas nunca o colonialismo foi tão forte, nem o desenvolvimento tão excludente. O mundo que, esperavase, seria composto de países independentes e desenvolvidos e justos, todos parte de um Primeiro Mundo capitalista e desenvolvido ou de um Segundo Mundo socialista e desenvolvido, chegou ao começo do século XXI como um imenso Mundo-Terceiro-Mundo, dividido em Países-com-Maioriada-População-de-Alta-Renda e Países-com-Maioria-da-Po- 17 pulação-de-Baixa-Renda, com os ricos de todos os países formando um Primeiro Mundo Internacional dos Ricos, separado por uma Cortina de Ouro de um Arquipélago de Pobres, um Gulag Social espalhado pelo planeta. A esquerda da independência nacional de cada país e da luta de classes internacional entre países ricos e pobres não sabe como se comportar nessa nova realidade. g) A natureza do consumo Tendo surgido antes da reorientação consumista da civilização, a esquerda preferiu contestar teoricamente o consumismo como anti-humanista, enquanto na prática tentava ampliar o consumo para atender à demanda nos países onde se implantava. Cometeu dois erros: deixou de reconhecer a busca de consumo, inclusive supérfluo, como parte intrínseca à natureza humana; e deixou de diferenciar o consumo supérfluo do consumo essencial. A procura pelo consumismo, mesmo sendo um elemento alienante, do ponto de vista libertário, é uma razão legitima da realização do ser humano, e deve ser tolerada pela esquerda, tanto quanto o gosto pela arte ou a realização espiritual. De certa forma, há um prazer estético e erótico no consumo. A esquerda libertária e igualitária dos direitos passou a ser igualitária do consumo e para tanto teve que reprimir a demanda ou escolher quem poderia consumir. Perdeu a legitimidade da igualdade por falta de competência, visto que não conseguia atender a todos com a qualidade e a quantidade com as quais o capitalismo conseguia atender seus ricos, e por falta de ética, já que não adaptava os conceitos de igualdade e de direitos aos tempos de consumo supérfluo. Seguiu um rumo impossível. Em algum momento ruiriam as bases do sistema que não realizava o que defendia. 18 h) Apego à espiritualidade Poucos equívocos da esquerda foram maiores do que, ao associar-se à razão e à ciência em contraposição aos mitos e às religiões, repudiar a espiritualidade como uma das manifestações superiores da raça humana. O resultado dessa opção pelo materialismo em oposição às religiões levou a esquerda a se isolar das massas e a sofrer grandes rechaços eleitorais. A recusa à espiritualidade foi uma das causas da morte da esquerda. Por perda de legitimidade popular. Além disso, contém um erro conceitual intrínseco, ao não considerar a espiritualidade como forma de elevação do ser humano. É um erro e uma arrogância desligar-se da espiritualidade e das formas alternativas de pensar presentes ao longo de milênios nas sociedades humanas ocidentais. A religião deve ser vista como manifestação da espiritualidade, e esta como uma das razões do projeto civilizatório. i) A perda do sentimento da utopia Ser de esquerda é olhar o mundo como ele é. Por isso, não é de esquerda quem não quer ver que a esquerda morreu. Também não é de esquerda quem perdeu a crença em uma utopia alternativa. Lamentavelmente, uma parte da esquerda, seduzida ou assustada pelos eventos do fim da URSS, perdeu o gosto pela utopia e passou a acreditar no fim da história, na permanência do capitalismo. Outra parte manteve-se fiel às utopias previamente determinadas, sem perceber as mudanças das últimas décadas, mantêm as utopias embalsamadas e impedem o desenho de novos sonhos utópicos. 19 VIVA A ESQUERDA Nada indica com clareza quando e como ressurgirá um novo pensamento consistente de esquerda no mundo. É possível que se passem décadas. Mas o Brasil é um dos países com mais probabilidade de ser o berço dessa nova esquerda. Diferentemente da imensa maioria dos países do mundo, que se dividem entre os que têm os recursos sem problemas e os que têm problemas sem terem recursos, o Brasil é um país-síntese: temos todos os indicadores da tragédia civilizatória e todos os recursos necessários para superá-la. O Brasil é um retrato da civilização neste começo de século XXI: integrado economicamente e desintegrado socialmente, liberal nas relações econômicas e depredador nas relações com a natureza, um país cortado pela Cortina de Ouro que impõe a apartação internamente em suas fronteiras. Para uma pessoa de esquerda na Europa, a utopia é um sonho desnecessário, para uma pessoa da África é um sonho impossível. Para o Brasil, a necessidade de uma alternativa é um imperativo e uma possibilidade. Além disso, dispomos de massa crítica intelectual capaz de analisar o modelo de desenvolvimento da civilização e formular alternativas. Finalmente, temos uma liderança política que deve nos estimular, por ter sido criada pelos sonhos de esquerda e por prever antes mesmo do fim da URSS que a velha esquerda está moribunda. Com as necessidades de suas populações atendidas, a esquerda européia pode esperar sem pressa sob os escombros do Muro. Nós não temos o tempo de esperar, pois os 20 escombros são nossa própria sociedade perversa. Os eleitores da esquerda européia são os trabalhadores beneficiados pela modernidade; no Brasil, uma imensa parte do eleitorado é constituída por excluídos, pobres, marginalizados do progresso. A esquerda européia pode ser de direita por simples comodismo, a esquerda brasileira só pode ser de direita por traição ao povo. Por isso, é sobre os militantes de esquerda no Brasil, que mais pesa a obrigação de fazer renascer a esquerda. Na Europa, é possível aceitar a idéia de que a morte da esquerda pode ser definitiva e que o mundo político de hoje iguala todos os políticos. No Brasil, isso não pode ser aceito. A realidade exige que mantenhamos a postura que diferencia direita e esquerda, e o desafio adiante nos obriga a formularmos uma proposta alternativa. O dilema, portanto, não é se existe ou não esquerda, mas como nos diferenciamos dos que não são de esquerda. Mais do que qualquer outra esquerda, a brasileira tem diante de si dois objetivos: i. um intelectual, de longo prazo, de não deixar morrer o sonho de uma utopia pós-capitalista, até mesmo pós-socialista, que vá além da civilização industrial nos modles do século XIX e XX; ii.um político, de lutar desde já pela abolição da apartação, construindo no Brasil uma sociedade integrada que sirva de modelo para a possível construção de uma globalização sem exclusão social. 21 As bases do desafio intelectual a) Aceitação da morte O militante de esquerda não estará sendo de esquerda se não aceitar o sentimento, ao mesmo tempo doloroso e estimulante, da morte da esquerda na qual nos formamos. Não é de esquerda quem pensa ser de esquerda porque não reconhece que a esquerda morreu. Ser de esquerda é aceitar a dialética das idéias no mundo real. Por isso, para ser de esquerda é preciso aceitar com naturalidade a morte de uma esquerda para deixar surgir uma nova esquerda. Na verdade, ser de esquerda é acreditar que tudo está morrendo e renascendo a cada instante. Não foi esta a primeira vez que a esquerda morreu. O melhor exemplo é o nascimento da esquerda do socialismo utópico em substituição à esquerda que décadas antes derrubara a Bastilha, e o nascimento da esquerda de Marx, que substituiu a esquerda idealista, e de tantas outras que morreram e renasceram. b) Crença na utopia Também não é de esquerda quem perdeu a crença na necessidade e na possibilidade da utopia. Lamentavelmente, nesse grupo está a imensa maioria dos militantes de esquerda que chegaram ao poder nos últimos anos em muitos países do mundo. Foi o que aconteceu com os partidos Trabalhista e Socialista nos países europeus. Ao chegarem ao poder, enfrentarem as dificuldades e perceberem que seus trabalhadores estão em posições relativamente satisfatórias, assumem que a utopia morreu. Transformam-se em gerentes do presente, deixam de ser formuladores do futuro. O mesmo ocorreu com uma ala esquerda do PMDB 22 ao assumir o governo com Sarney, com os do PSDB quando assumiram com Itamar e Fernando Henrique, e agora, com alguns militantes do PT, PSB e PC do B, ao assumirem o governo com Lula. Esquecem-se dos sonhos utópicos. O grave da perda de utopia não é o fato de ela ser impossível no momento imediato, porque o presente e o poder exigem pragmatismo; o grave é o pragmatismo se fazer como se não fosse algo passageiro, uma exigência dos limites políticos e financeiros do imediato, e sim uma postura definitiva. Ser de esquerda no governo exige o pragmatismo e a consciência dos limites do presente, mas ela morre quando o pragmatismo se torna regra permanente, como vem ocorrendo. Não é de esquerda quem não acredita na marcha da história, em uma constante evolução da humanidade rumo a alguns princípios que podem mudar, mas não acabam. O pragmatismo atual tem muito a ver com a idéia do fim da história, de que não há mais evolução possível, de que a história está interrompida e o papel dos movimentos políticos é administrar o presente. É possível que estes objetivos mudem, mas suas bases continuarão: o aumento no grau de liberdade, o fim das necessidades essenciais, a paz. c) Política sem cinismo A observação do quadro, da postura e do discurso da esquerda no poder, em qualquer país, inclusive no Brasil, nos leva a concluir que alguns perderam qualquer crença na necessidade e na possibilidade de se sonhar uma utopia alternativa, e outros caíram no cinismo. 23 O abandono dos sonhos utópicos, especialmente em momentos que os limitam, traz uma negação ainda maior da esquerda, quando seus militantes passam a fazer política com o cinismo que caracteriza a direita. Esse cinismo se manifesta de muitas maneiras, como a política pela política, o poder pelo poder, a aceitação de todas as jogadas, o abandono de princípios para fazer alianças. Quando isso ocorre, a esquerda morre. E só renasce quando a política se faz sem a perda do sentimento de compromisso, de respeito, de militância. Mas hoje, em muitos países, o cinismo passou a dominar a prática da esquerda. Rumar do comunismo ao cinismo foi o caminho de muitos militantes que deixaram a oposição para o poder. Isso é ainda mais grave quando ocorre com um militante jovem. Porque na velhice, o cinismo pode ser uma questão de humor; na juventude, é de caráter. d) Capacidade de se indignar Além do cinismo no jogo da política, também mata a esquerda a indiferença com a qual os problemas da sociedade são tratados quando se chega ao poder. Sem uma utopia alternativa, impossibilitados de resolver os problemas de imediato, os antigos militantes de esquerda preferem cobrir a realidade trágica com um espesso véu da tolerância, da aceitação das aberrações sociais e éticas. Usam a cegueira social para disfarçar o cinismo político. Ao chegar ao poder, com a consciência - ou descoberta dos limites do possível, em vez de ajustar o presente à realidade, sem abandonar os objetivos centrais nem perder de vista os problemas, a esquerda costuma ignorar os problemas, preferido não vê-los a adiar sua solução. Os problemas do meio ambiente, a infância abandonada, os baixos salários de professores, o desemprego passam a ser tratados 24 como não-problemas. No lugar de manter os objetivos e ajustar o cronograma de sua execução à realidade política e financeira, prefere abandoná-los. Não é de esquerda quem não tem capacidade de indignar-se a cada instante ante a tragédia social, ecológica, moral e econômica, ante a baixa escolaridade, a desigualdade crescente e a corrupção geral, mesmo quando chega ao poder. e) Defesa dos excluídos A esquerda morre moralmente não apenas por cinismo ou indiferença, mas também pela opção equivocada do lado a escolher na luta de classes do mundo moderno. O atendimento de grande parte da demanda dos trabalhadores do setor moderno da economia global levou a esquerda a fazer uma opção por esses trabalhadores, ignorando as necessidades do povo excluído. Por isto é tão difícil ser de esquerda hoje na Europa porque as massas excluídas estão fora de suas fronteiras, o que leva a esquerda, por força das circunstâncias eleitorais, a tomar medidas contra imigrantes, em defesa dos interesses de seus trabalhadores. Nos Países-com-Maioria-da-População-de-Baixa-Renda que têm um relativo desenvolvimento industrial, como o Brasil, a esquerda adota as mesmas posições, embora de forma disfarçada. Não falam em medidas contra as massas, como a expulsão de imigrantes na Europa, mas defendem a redução nos impostos de produtos de luxo, para manter seus empregos, mesmo que às custas da redução dos gastos sociais do setor público. Defendem os interesses das corporações contra os interesses gerais da sociedade. Ser de esquerda no Brasil exige uma opção clara por aqueles que nem trabalhadores conseguem ser: os excluí- 25 dos, construindo uma ponte entre eles e os trabalhadores do setor moderno. f) Respeito à diversidade Em um mundo onde a globalização mata os valores nacionais, ser de esquerda é ser nacionalista. Mas um nacionalismo comprometido com o humanismo, e um humanismo que respeite a diversidade, longe do mecanismo autoritário e arrogante da pasteurização cultural universal sonhada com o comunismo e agora imposta pela globalização neoliberal. Se esse sentimento de humanidade foi sempre uma característica do pensamento e da ação de esquerda, precisa ser ainda mais agora, quando o mundo se integra em um projeto planetário. Quando o poder das técnicas permite a qualquer nação do mundo tomar decisões que repercutirão no mundo inteiro e ao longo de séculos, ou mesmo milênios. Ser de esquerda exige respeito ao conjunto de nações e à necessária diversidade de cada povo. Essa evolução exige uma nova esquerda. A esquerda tradicional, sobretudo sob a égide de Marx, imaginava um mundo integrado e unitário, cópia da Europa. Porque a esquerda nasceu com a arrogância ocidental e Marx fazia parte desse mundo, achando que o projeto da Europa deveria ser seguido em todos os quadrantes do planeta, desde que sob a forma mais elevada da civilização industrial, a socialista, e não sob a forma do imperialismo capitalista. De qualquer forma, capitalista ou socialista, a imposição de um padrão civilizatório único é uma forma de imperialismo, se não econômico, cultural. 26 g) Respeito ecológico Talvez o maior de todos os desafios da esquerda será formular um pensamento e um modelo de desenvolvimento civilizatório que leve em conta o valor da natureza. A origem da esquerda no Ocidente e na revolução industrial fez dela um instrumento do pensamento depredador. Sua origem no pensamento racional grego e nas religiões judaico-cristãs levou a esquerda a relegar de forma arrogante qualquer valor à natureza bruta. Esse pensamento se mostra na teoria do valor, onde somente o trabalho humano cria valor, e a natureza é vista apenas como depósito de matéria-prima e do lixo industrial. Se é certo que essa teoria representou um dos maiores avanços intelectuais e morais da história da humanidade, é certo também que, frente à realidade do mundo de hoje, ela é reacionária, não percebe o risco que corre a humanidade diante da crise ecológica. A esquerda que vai nascer precisa abandonar o antropocentrismo arrogante da história ocidental e construir um antropocentrismo modesto que construa o projeto civilizatório em comunhão entre homem e natureza. h) Manifesto intelectual O desafio intelectual da esquerda exige um manifesto intelectual cujo roteiro consiste em: 1. Formular uma crítica consistente à realidade perversa da civilização global em construção neoliberal, mostrando que ela: - condena a natureza, - transforma a desigualdade social em uma dessemelhança biológica, - implanta o risco do terror de massas, 27 - mata a diversidade, - impõe um poder autoritário mundial, - divide o mundo entre PMIR e ASP, PMP-AR e PMP-BR e em corporações globais, com alcance planetário de cada uma delas, - mantém uma luta de classes entre três burguesias - a empresarial, a especulativa e a trabalhista – todas elas disputando com as massas excluídas. ii. Formular o entendimento de que é possível uma utopia que: - atribua valor à natureza, - respeite à diversidade, mesmo caminhando para a globalização, - enfrente os problemas do super-poder das técnicas sem abrir mão dos sonhos libertários, - defina o conceito de igualdade essencial, - fortaleça a racionalidade, respeitando a espiritualidade como um dos objetivos do progresso humano, - encontre formas de submeter o avanço técnico aos valores éticos, - seja capaz de respeitar as leis do mercado, ao mesmo tempo em que o mercado não vai contra a inclusão social, - construa uma democracia capaz de manter as nacionalidades e que tenha responsabilidades globais, - preserve as liberdades individuais sem permitir que indivíduos imponham suas vontades ao povo. O desafio político consiste em: - construir uma ponte entre os trabalhadores do setor moderno e as massas excluídas, e ao mesmo tempo em conviver com o setor empresarial, - definir programas de ação capazes de sensibilizar a opinião púbica, especialmente os jovens. 28 2. As metas do desafio político De todos os políticos de esquerda que chegaram ao poder depois de 1980, Mandela foi o único que entrou e saiu do governo como líder da esquerda. Porque ele definiu com clareza seu objetivo: garantir que brancos e negros pudessem andar na mesma calçada. O objetivo da esquerda brasileira, especificamente do governo Lula, é garantir que pobres e ricos estudem em escolas com a mesma qualidade. Duas bandeiras para a esquerda do país A partir de 1980, todos os partidos de esquerda que chegaram ao poder foram para a direita. Na França, na Espanha, na Itália, na Inglaterra, em Portugal, todos os programas partidários mudaram para chegar ao poder ou ao exercício do poder, mesmo quando esses partidos tinham mantido mais preocupações sociais do que seus adversários na direita. No Brasil não foi diferente. O PMDB, partido que se formou na luta contra a ditadura, reunindo todas as forças de esquerda, tornou-se rapidamente conservador e descomprometido socialmente com as massas pobres, na ausência de propostas transformadoras, no estilo das jogadas políticas, na administração da economia. Tanto que levou seus militantes de esquerda a formarem o PSDB, partido que, ao chegar ao poder, também se adotou programa conservador. O PT, que se formou à esquerda do PSDB, e que foi seu grande crítico, após dois anos no poder dá mostras do risco de mutação rumo ao conservadorismo nos mesmos moldes: ausência de transformação, estilo de prática política 29 e administração da economia. Se continuarem na mesma direção nos próximos anos, o PT e os demais partidos de esquerda que formam o bloco de apoio ao governo se diferenciarão pouco do PMDB ou do PSDB. Entretanto, a grande diferença resta na militância. Diferentemente dos demais partidos, aqueles da esquerda, mesmo no governo, têm uma militância com condições de exercer o poder por cima das direções partidárias. Mas essa militância não parece satisfeita com o rumo de seus partidos. Há um claro desconforto, que já levou à criação do PSol. Cada partido enfrenta um descompasso entre sua nação de militantes e seu estado de dirigentes, mesmo quando o exercício do poder compromete, cala e até vicia os partidos, em todos os níveis. Sem um despertar da militância, o rumo do PT será o mesmo que conheceram os demais partidos de esquerda na transição do século XX para o XXI. As razões estão, de um lado, na força e nas amarras da economia global, e de outro na falência das experiências socialistas tradicionais, que ocorreram simultaneamente a partir de 1980. Para despertar, a militância de esquerda do PT e dos demais partidos precisa romper com o amolecimento ideológico e pressionar suas direções, com dois objetivos de momentos distintos. E duas bandeiras que se completam ao longo do tempo. a) Bandeira ideológica: retomada dos sonhos utópicos Uma das causas da virada à direita dos partidos de esquerda decorre da perda da perspectiva utópica da mudança. As amarras da globalização neoliberal e o fracasso das experiências socialistas levaram a esquerda a um pragmatismo de curto prazo, à perda da preocupação com o sistema social e econômico pós-capitalista. 30 A esquerda precisa conservar sua insatisfação com os princípios do sistema capitalista e voltar a sonhar com um sistema mais justo e mais eficiente. Apesar de todos os êxitos do capitalismo no atendimento das necessidades dos seus trabalhadores do setor moderno de cada país rico, ele está carregado de injustiças e ineficiências: exclui em escala global, aumenta a desigualdade, promove injustiças, mantém permanente instabilidade, se expande por meio de sustos, destrói o meio ambiente, desestrutura culturas e sociedades, mata tradições, provoca violências dentro de países e entre eles. O ser humano tem inteligência e sentimento capazes de formular uma alternativa mais justa, mais eficiente, mais pacífica e sustentável. A esquerda precisa continuar sendo a guardiã desse sonho. Mas o sonho na utopia parece morrer por causa da desilusão com a crise do socialismo e pelo deslumbramento com o poder. Os poucos que ainda parecem manter aceso o compromisso com uma utopia pós-capitalista continuam presos às palavras de ordem e objetivos vindos dos socialistas históricos, há mais de cem anos. Uma utopia formulada em um tempo passado, em um mundo sem a complexidade dos dias atuais, sem a percepção de que o conhecimento carrega uma dimensão opressora e destrutiva; de que a economia elimina a necessidade do trabalho e do trabalhador sem libertá-lo, e implanta uma globalização com apartação, na qual a luta de classe faz com que trabalhadores privilegiados se beneficiem da exclusão; de que o planeta se encontra dividido socialmente por uma cortina de ouro, e em processo de destruição ecológica. Um tempo em que a opção ética aceitava sacrificar a liberdade em busca da igualdade, e a utopia era definida com as arrogantes lógicas do antropocentrismo quanto e do eurocentrismo, sem se dar conta da riqueza da diversi- 31 dade cultural nem da necessidade de manter o equilíbrio ecológico. O pós-capitalismo, qualquer que seja o seu nome, não será a repetição do passado, nem do socialismo real, nem do socialismo imaginado no passado. Ele deverá incorporar novas dimensões para as quais a política não está preparada, como não está preparada a própria filosofia. Para a esquerda de hoje, manter acesos os sonhos utópicos significa manter acesa a reflexão sobre si própria, a busca intelectual de sua definição. Politicamente, não resta à esquerda mais do que a possibilidade de alguns passos que lhe permitam caminhar, desde já, em direção a objetivos ainda não definidos para o longo prazo. b) Bandeira transformadora: o fim da apartação Se ficarem na elaboração intelectual, os partidos de esquerda permanecerão na esquerda, porém como grupos pensantes, sem a dimensão partidária. Para manterem a dimensão política, os partidos precisam ser instrumentos de ação imediata, revolucionários desde já, ainda que seus objetivos sejam modestos do ponto de vista das utopias de longo prazo. As mudanças ocorridas em escala global no sistema social da humanidade, na passagem de século, amarraram o exercício do processo político a poucas alternativas. O neoliberalismo deixou para a revolução apenas a possibilidade de lutar pelo fim do apartheid social, da apartação. Mandela é símbolo da esquerda não porque construiu qualquer utopia, mas porque liderou na África do Sul o imenso salto da abolição do apartheid racial. Seu exemplo deve servir à esquerda, em cada país, para lutar pelo fim do apartheid social, a apartação. A bandeira imediata de transformação da esquerda mundial seria a abolição da apartação global construída pela globalização neoliberal. 32 O Brasil é o país onde essa luta apresenta mais urgência e mais possibilidades, o país que oferece o melhor e mais concreto desafio à esquerda. Nos Países-com-Maioria-da-População-de-Alta-Renda, como na Europa, não se percebe a necessidade combater a apartação, porque somente uma minoria está excluída, e em geral de imigrantes estrangeiros. São países com recursos mas sem o problema, portanto sem o desafio histórico para seus partidos. Nos Países-com-Maioria-da-População-de-Baixa-Renda, como na África, percebe-se a necessidade mas não existem os recursos para enfrentar o problema. São países com o desafio, mas sem as possibilidades de enfrentá-lo. O Brasil é um dos poucos países do mundo que dispõe dos problemas e dos recursos necessários para superá-los. De uma massa crítica de pensadores e de maturidade política, uma militância inquieta nos partidos de esquerda. Chegamos ao poder com uma aliança dos partidos de esquerda e com um líder carismático com a qualidade do Presidente Lula. Uma situação muito parecida com a da África do Sul, sendo que naquele país o desafio era o apartheid, e no Brasil é a apartação. Apesar disso, nestes dois anos estamos nos encaminhando para a direita, sem formular um projeto ideológico de longo prazo nem adotar as medidas imediatas de desapartação social. Para deixarmos esse quadro e caminharmos para a esquerda, nossa militância precisa assumir a permanência do sonho e o exercício da reflexão sobre nossos objetivos de longo prazo, e sentir a urgência de um programa e de ações imediatas para a construção de uma sociedade sem apartação. 33 A combinação desses dois momentos oferecerá a bandeira que está faltando aos partidos de esquerda, mobilizará suas militâncias, até mesmo permitirá uma aliança pelas bases entre os diversos partidos, especialmente nos momentos eleitorais, em função da identidade com o mesmo projeto. Ser de esquerda não é fazer parte de uma sigla partidária de esquerda. Ser de esquerda é pensar e sonhar o pós-capitalismo em um futuro distante, é reconhecer que esse futuro ainda não está desenhado, e lutar hoje pelo fim da apartação. A falta dessa bandeira tem feito parte dos partidos migrarem ideologicamente para o pragmatismo imediatista da direita, e outra ficar no discurso, também de direita, concentrando suas bandeiras na economia: na redução da taxa de juros e no tamanho do superávit - sem se importar com as conseqüências ou os beneficiários, nem com os instrumentos necessários para reorientar os recursos que ficariam disponíveis - e em slogans de mudança do modelo, sem oferecerem qualquer alternativa viável. Até recentemente, a esquerda pregava a estatização do sistema bancário, agora prega a redução dos juros; defendia o planejamento para fazer uma sociedade justa, agora acredita que o crescimento econômico é o caminho. Nada diferencia essa esquerda da direita, salvo a falta de compromisso de seus lemas. A esquerda não se diferenciará da direita mantendo as mesmas palavras do velho socialismo, nem se submetendo ao discurso econômico, mas oferecendo urgentemente ao Brasil a possibilidade de um choque social que permita abolir a apartação. Nossa bandeira é a abolição da apartação, a derrubada de todos os muros que dividem o Brasil entre incluídos e excluídos da modernidade, esta barreira que nos separa 34 em blocos sociais não só desiguais, mas diferentes, desde a época da escravidão. Nossa bandeira é completar a Abolição e a República, que os governos das elites de direita vêm protelando por 115 anos, e que nós temos a obrigação de completar. Ficamos no dilema entre transformar o Brasil, como deve fazer a esquerda, ou mudar ideologicamente, migrando para a direita, como fizeram os demais partidos de esquerda que chegaram ao poder nos últimos anos. Este texto não apresenta uma reflexão para o longo prazo, mas traz para debate uma proposta de um Choque Social para mudar o Brasil de imediato, com um programa para a esquerda que não quer virar direita, não quer ficar prisioneira do passado nem da economia. Não quer ser direita, nem ser esquerda de mitos, nem ser esquerda de taxas. Uma esquerda do país e do povo. Não há política econômica de esquerda ou de direita, há política econômica responsável ou irresponsável, competente ou incompetente. A política econômica não precisa de ideologia, mas de caráter: manter-se firme em metas nacionais, cumprir acordos e não se submeter a pressões corporativas conjunturais. Foi a partir do século XIX que o problema social passou a ser visto como conseqüência direta da economia: a política econômica como planta arquitetônica da sociedade. Acreditava-se que pelo controle das variáveis econômicas se construiria a sociedade desejada. Esquerda e direita disputavam ideologicamente o modelo de funcionamento da economia. O final do século XX mostrou que o desenvolvimento induzido pelas políticas econômicas intervencio- 35 nistas não só deixara de construir utopias, como também desagregara sociedades, impusera autoritarismo, degradara o meio ambiente, e que a força do neoliberalismo global não deixara brechas para gestos ousados na economia. Restava ao campo da ideologia a possibilidade de alterar as prioridades no uso dos recursos públicos para a execução de políticas sociais. A ideologia limita-se assim ao espaço da política orçamentária, em aspectos que não firam os pilares da política econômica responsável e competente. Política econômica responsável é aquela que assegura estabilidade aos agentes econômicos - trabalhadores, empresários, consumidores - e mantém um clima de incentivo a produção, criação de emprego, renda. Política competente é aquela que combina corretamente as contradições desses objetivos. Baixar a taxa de juros por vontade política é irresponsabilidade, elevá-la além do necessário é incompetência, mas não é assunto ideológico, de vontade política. A arena ideológica se limita a definir quem paga os impostos e quem se beneficia deles, e as políticas fiscal e orçamentária. É nisso que se diferenciam direita e esquerda. A primeira baseia-se na crença de que investimentos criarão renda e que o mercado permitirá o atendimento das demandas. A esquerda busca justiça social na distribuição progressiva dos impostos e na prioridade aos investimentos sociais como forma de atender às necessidades da sociedade. As amarras do neoliberalismo global não deixam brechas para ousadias na política econômica, mas permitem mudanças sociais. Nelson Mandela, símbolo da esquerda mundial, foi um presidente responsável e competente na política econômica. Mas fez uma revolução social em seu país ao abolir o apartheid e conseguir que brancos e negros pudessem andar na mesma calçada. O desafio da esquerda 36 brasileira é abolir a apartação e permitir que pobres e ricos estudem nas mesmas escolas. Essa mudança é possível com medidas educacionais e política orçamentária, com a federalização da educação básica e a canalização de recursos da União para esse setor. O Brasil é um dos raros Países-com-Maioria-da-População-de-Baixa-Renda em que a renda nacional e a carga fiscal já permitem a realização de um choque de políticas públicas para superar a exclusão social. Lamentavelmente, isso não está sendo feito, porque o debate ideológico, dentro e fora do partido do governo, se dá no terreno da política econômica, no lugar da política orçamentária, abandonando os verdadeiros compromissos éticos que deveriam nortear as bandeiras da esquerda. Essa visão da economia como objeto de debate ideológico decorre, de um lado, da herança mental de um tempo em que o Estado dispunha de instrumentos para regular a economia: o setor financeiro podia ser estatizado, as fronteiras comerciais controladas, o endividamento ainda era possível; e de outro lado, da cooptação das forças de esquerda como beneficiárias das prioridades do orçamento, que mantêm o debate no terreno econômico como forma de adiar perdas de subsídios e privilégios. No fim de 2004, mais uma vez os governos - federal, estaduais e municipais - definiram como serão gastos 35% da renda nacional nas mãos do setor público - R$618 bilhões - sem realizar um debate ideológico sobre quem vai pagar e quem vai se beneficiar deles, e que Brasil queremos construir com esses gastos. A Sierra Maestra do século XXI está nas comissões de orçamento dos parlamentos, e o objetivo da luta não é mudar a política econômica, para que o Brasil continue igual ou pior, mas a política orçamentária, para mudar o Brasil. 37 Com os recursos de que o setor público dispõe para 2005 é possível cumprir todas as obrigações de uma política econômica responsável, manter todos os pilares de uma política econômica competente, e fazer os investimentos necessários para uma revolução na educação brasileira, dobrar os gastos da União com a educação básica. O quadro abaixo mostra como são poucos os recursos necessários para fazer dobrar os recursos da União à disposição da educação básica no Brasil. Discriminação – Orçamento 2005 – Proposta Revisada R$ bilhões % necessária ao Choque Educacional Orçamento Total para 2005 (proposta revisada) 1.616,6 0,46 Orçamento Efetivo (descontado R$ 935,3 bi do Refinanciamento da Dívida Pública) 681,31,09 Base para a Revolução na Educação Brasileira (descontados os Orçamentos das Estatais, as Despesas Financeiras, os Benefícios Previdenciários obrigatórios, as Transferências Constitucionais Obrigatórias e as Outras Despesas Obrigatórias = R$ 630,90) 50,4 15 Pena que, prisioneira da velha lógica dos interesses corporativos do setor moderno, a esquerda brasileira ignore a arena ideológica do orçamento. Concentre seu discurso na disputa pela redução do imposto de renda, e da taxa de juros e do tamanho do superávit, esquecendo as necessidades do povo, e adiando ações que transformariam o Brasil. 38 Partido do Futuro Cristovam Buarque 39 40 Partido do Futuro 1.Lado e Rumo O PDT está do lado certo, dos partidos com tradição de esquerda, formando o governo da Presidenta Dilma, junto com o PT, PCdoB, PSB, mas, não estamos no rumo certo. O lado político é uma posição, o rumo político é uma estrada em direção a um destino nacional. Em função da crise geral no pensamento social e político, a esquerda perdeu o rumo na construção de uma nova utopia. Devemos continuar do lado certo, mas com passos próprios que nos permitam caminhar, independente dos aliados, olhando o futuro da Nação, dos povos, dos trabalhadores, dos jovens, das crianças e mulheres. O primeiro passo para reencontrar nosso rumo, é sermos vanguarda na redefinição do conceito de esquerda: esquerdizando o conceito de socialismo para adaptá-lo as exigências atuais; não mais apenas à crise do capitalismo mas à crise de toda a civilização industrial. 2.Dez pontos para esquerdizar o Socialismo O que faz uma pessoa ser de esquerda ou direita não é a maneira como se define em relação ao sistema social e econômico. É a postura ética, diante dos assuntos do mundo e dos propósitos da sociedade local e da civilização mundial. Esquerda ou direita está na ética. E na ética podemos considerar dez pontos. Primeiro: claro que uma delas é corrupção. Não é de esquerda quem é corrupto. Nossos partidos, e sem excluir nenhum, estão cheios de corruptos. Mas eles são infiltrados. Não são de esquerda. E nós temos que expulsa-los para o lugar deles, que não é a esquerda. 41 Mas mesmo na corrupção, existem dois tipos. A corrupção no comportamento, aquele que define o roubo para o bolso de políticos ou para seu partido; ou a corrupção nas prioridades, aquele que define investimentos nas prioridades para atender a minoria privilegiada, em vez de priorizar aos interesses das massas. Ser de esquerda é não aceitar nenhuma dessas corrupções. Segundo: ser de esquerda é mudar a relação do homem com a natureza. Há 50 anos não se imagina que esta era uma preocupação de esquerda. Marx não precisava pensar em Meio Ambiente mesmo assim ele pensou um pouco. Não era o problema. Por isso não é de esquerda quem considera que a solução do transporte privado é mais viaduto para atender os carros privados. No lugar de um melhor sistema de transporte público. Esta relacionada com a corrupção nas prioridades como também com a postura do projeto civilizatória em relação com a natureza. Terceiro: ser tolerante com a diversidade. Isso exige um aperfeiçoamento no socialismo tradicional, sobretudo sobre no Leste Europeu. Antes acreditava que o ideal de esquerda era a igualdade total do homem socialista. Mas o homem de esquerda tem que ser diverso, não deve ser unitário. Respeitar crenças. A ideia de que ser de esquerda era ser materialista, foi talvez o maior erro dos esquerdistas da política. Foi não entender Marx; porque quando ele falava de materialismo, era do ponto de vista filosófico de que o concreto vem antes das idéias. Era colocar a concretude antes do idealismo de Hegel e de quase todos seus precursores. Dai acreditaram que ser materialista era um estado de religião. Religião deve ser vista como uma manifestação da espiritualidade, como a dança, a pintura, a escultura, as artes em geral. Temos de respeitar não só religiosa. Também de opção sexual, de gênero, étnica. Ser de esquerda é ser tolerante 42 com o outro, respeitar-lo em sua essência. Ser de esquerda é inclusive tolerar a desigualdade na renda e no consumo, dentro de certos limites; um piso social e um teto ecológico. Quarto: é o intervalo da desigualdade. Não há problema em aceitar que um tenha uma gravata outro não tenha. Um ter carro e outro não. Mas tem que haver limites. Ninguém abaixo de um certo nível, graças a uma rede de proteção social. E ninguém acima de um teto, ninguém consumindo o que degrada a natureza. É a rede de proteção social e o limite de proteção ecológica. Dentro desses limites constróise uma escada de ascensão social. Essa escada se chama: Escola. A escada permite que você chegue acima ou abaixo, no limite social; e por mais dinheiro que tenha, não consumir além do limite ecológico. Quinto: Ser de esquerda exige compromisso radical com a igualdade na saúde e na educação. Não há problema em ser de esquerda e aceitar que uns tenham gravata e outros não, que uns tenham roupa bonita e outros não tenham. Até mesmo que uns tenham uma casa grande e outros uma casa pequena. Essa desigualdade é problema social. Mas ser de esquerda é ter uma postura ética. Não é de esquerda quem aceita a imoralidade do acesso à educação e a saúde tão desiguais. Não é ético uma pessoa viver mais anos que a outra só por ter dinheiro no Banco para comprar serviços de saúde. Não é ético comprar o direito a vida. Não é ético que uma pessoa tenha o potencial intelectual maior que outra porque a família, do pai tem dinheiro. Essa é a igualdade plena, total. Ainda resiste a ideia de que uma escola ou hospital público se fazem do Estado. Uma nova esquerda deve redefinir: hospital público é aquele onde não há fila para ser atendido, não há doença ao sair dele, e não há o que pagar pelo serviço, independentemente do paciente. 43 Sexto: a ideia de publicização. Diferente da tradição estatizante do passado, a nova esquerda deve buscar publicizar no lugar de estatizar. Sétimo: o respeito ao individuo. O individualismo afirma conquista libertária. Surge como uma revolta contra o sistema medieval, que submetia cada pessoa a tutela feudal na economia; religiosa na psicologia; senhoril na política. O individualismo tornou possível a liberdade de cada individuo. Mas o socialismo tentou tornar o conceito de liberdade, necessariamente individual, para um conceito social, metafísico da liberdade coletiva. Substituiu o padre pelo líder, a religião pelo partido e sua ideologia, o dono da terra pelo Estado. Matou a liberdade. A nova esquerda deve recuar para si um conceito que o liberalismo tenta monopolizar. Mas, percebendo que o individualismo não é capaz de permitir a administração dos assuntos planetários e de longo prazo. Oitavo: a democracia participativa. A democracia puramente representativa não caracteriza o discurso de esquerda. De esquerda é a democracia representativa e também participativa. Os dois, porque ainda não chegamos à democracia plena direta. do ponto de vista popular. Ainda não é possível por causa do individualismo que cada um carrega e do imediatismo de cada um. A democracia exige Parlamento, para pensar o longo prazo, que o individuo nem sempre pensa. Depois de um crime hediondo, em plebiscito passaria a pena de morte se não houvesse um Parlamento para dizer: calma, esse crime é uma anomalia, esta proposta lei carrega distorções, é invisível no longo prazo. Nono: é a dignificação do trabalho. Isso significa não permitir certos gêneros de trabalho. Mas também aceitar que o salário não deve ser necessariamente igual para todos. Quando se paga salário igual para dedicação desigual, 44 estamos quebrando a dignificação do trabalho. A dignificação do trabalho exige perceber que o salário deve ser: levar em conta a especificação da qualificação e da dedicação de cada trabalhador. Finalmente, décimo: a ideia da soberania. Não é esquerda quem quer diluir o seu país na globalização, mas não é também de esquerda quem queira defender a soberania sem analisar os interesses planetários do seu país. Por exemplo: a Amazônia é nossa, mas não podemos, se somos de esquerda, que queimam a Amazônia só por que ela é brasileira. Ela é nossa, mas não podemos transformá-la em campo de produção de soja. Isso não é ser de esquerda. Precisamos de uma soberania associada a uma espécie de condomínio: o dono do apartamento é dono de tudo que está dentro, mas não pode deixar a torneira aberta à noite, nem queimar os móveis em um ataque de raiva. É responsabilidade com os vizinhos. O Brasil tem que ser soberano mas respeitar os demais vizinho, a própria humanidade. No mundo de hoje todos são vizinhos, não importa o lugar do planeta terra onde vive. Esses são os dez pontos que permitiriam esquerdizar o socialismo, fazendo mais ético o mundo que precisa de solidariedade mais humanista. Essa talvez seja a maior diferença entre Direita e Esquerda. Não é pertencer a um partido ou outro: isso não demonstra quem é de esquerda ou de direita. O que demonstra são os valores políticos e filosóficos que você carrega e que coloca na cor da bandeira pela qual se luta. Ser de esquerda é ter valores éticos. Para isso é preciso atualizar o socialismo esquerdizando a esquerda. Escapar da prisão econômica, que nos aprisionou a esquerda por dois séculos e avançar para a liberdade da ética, dos valores, como nós fazemos política e valores. 45 3.Precisamos Avançar Poucos ou nenhum partido brasileiro, raros ou nenhum no mundo parece ter vontade e desejo de ser o motor desta nova esquerda. Alguns foram para a direita, a maioria se manteve acomodado na esquerda. Precisamos liberar a criatividade de nossa militância por uma democracia radical, com a participação de todos em todas as decisões. Precisamos, hoje, ainda mais do que antes adotar a bandeira da educação. Brizola foi o primeiro capaz de perceber já nos tempos do desenvolvimento pela industrial mecânica que o futuro estava na nova indústria do conhecimento, pela ciência e tecnologia, que são filhas da educação de qualidade para todos. “Os filhos dos trabalhadores nas mesmas escolas dos filhos dos capitalistas” deve ser o nosso lema radical. Precisamos apresentar ao povo brasileiro a esperança de um novo rumo pela indústria do conhecimento, desenvolvido pela convivência entre minoridades competentes e empresários empreendedores. Precisamos definir nossa utopia com base na instalação de uma Rede de Proteção Social, abaixo da qual nenhum pobre ficará; e de um Teto Ecológico, acima do qual nenhum rico consumirá; no meio, uma Escada de Ascensão Social baseada na Escola de Qualidade para todos. Esse pode ser nosso projeto de fortalecimento do partido em busca de equilibrar a opção de estar do lado certo em alianças, com a estratégia de seguir o rumo certo independente dos outros partidos. 4.As cores da Economia que defendemos Até recentemente, a ideia de “economia verde” era tida como um devaneio de ambientalistas, sem base teórica. Com o acirramento da crise ambiental, a “economia ver- 46 de” ganhou legitimidade, apesar de ainda não ser analisada (desconsiderada) pelos economistas tradicionais porque, ao buscar alternativas sustentáveis para o processo produtivo, ela desrespeita os fundamentos da teoria atual. A utilização de preços diferentes do mercado de curto prazo e a restrição ao uso de certos recursos naturais, ainda incomoda economistas. Mas a economia do século XXI não pode continuar amarrada, como a do século XX, a ideia de que a estrutura de preços momentâneos é capaz de orientar o futuro. Sabemos que as chamadas externalidades, os impactos externos à economia e ao imediato, precisam ser consideradas. Keynes dizia que no longo prazo todos estaremos mortos, por isso, o futuro distante não importava. Mas no seu tempo o problema ambiental não existia e a economia não tinha poder de influir no longo prazo. Daqui para frente, a sustentabilidade ambiental é condição necessária a ser considerada em qualquer economia sólida. A crise ecológica se acirrou de tal forma, e tão rapidamente, que a simples mudança nos preços, justificando a preferência por recursos renováveis, já não é suficiente para enfrentar os problemas adiante. Mesmo assim, antes de ser aceita, a economia verde já nasceu velha: porque não basta o equilíbrio ecológico. A substituição de combustíveis fósseis por renováveis pode gerar um efeito bumerang: o acomodamento diante da crise; e não basta a “economia verde” em cada carro, se no nível macro o número de carros cresce tanto que as florestas darão lugar a plantações de cana para alimentar toda a frota. Também não basta a economia substituir o combustível fóssil por renovável se o perfil da demanda continuar 47 voltado para a minoria de renda superior. A economia que dinamiza seu crescimento produzindo bens caros para a minoria, concentrando a renda, pode ser verde, mas não é a economia que o futuro precisa. Não vale a pena “economia verde” salvar o Planeta, se salvá-lo apenas para poucos. A economia do futuro precisa ser verde - no uso dos recursos naturais - e vermelha, no destino de seus produtos. Precisamos de uma economia que atenda as necessidades sociais como, por exemplo, a erradicação da pobreza, a diminuição da desigualdade e a ampliação do emprego. Uma economia com valores éticos, capaz de entender que na educação e na saúde a desigualdade é imoral. Enfim, uma economia vermelha. A economia precisa definir o conceito de riqueza. Uma “economia branca” voltada para ampliar o bem-estar e não para destruir. A produção de armas não deve ser considerada como resultado positivo da economia, embora seja importante para a defesa. O valor do PIB deve descontar a produção dos bens de destruição e serviços de segurança e também o tempo perdido pelas pessoas na ida e vinda diária de um lugar para o outro. A economia também precisa ser amarela e manter como símbolo os produtos da ciência e da alta tecnologia. A competitividade pela redução de custos, em geral pelo desemprego, não pode ser indicador da economia do futuro. A competitividade deve estar na capacidade de invenção de novos produtos capazes de elevar o bem-estar das pessoas. Para isso ela deve ter por base os cérebros, não mais mãos e braços. 48 5.Rejuvenescer o partido. Fico satisfeito quando vejo jovens se reunindo, em eventos da juventude. Na minha opinião, os comandantes desse novo rumo devem ser os jovens. Mas é preciso definir juventude. Quando queremos saber se um cavalo é jovem nós olhamos para os dentes. Quando queremos saber se uma pessoa é jovem mergulhamos no cérebro dela. É o cérebro e o coração que dizem se uma pessoa é jovem ou não. E a juventude às vezes envelhece mais depressa do que muitos velhos. A juventude às vezes faz política de uma maneira velha, e não ajuda o partido, não ajuda o Brasil. A juventude que faz a política jovem é a juventude que não cai na armadilha armada pelos velhos políticos desse país. A juventude do fisiologismo é uma juventude velha. A política da briga só por cargo é uma política velha. A política jovem é a política por princípios, que luta por objetivos revolucionários, transformadores. Que mudem o Brasil. Nós precisamos rejuvenescer a política brasileira. A corrupção é uma característica da velhice da política e o atual quadro de corrupção é a manifestação mais explicita de que a política desse país ficou velha. Se um jovem faz corrupção. Ele não traz uma política jovem, representa a política velha. Nós temos que rejuvenescer a juventude para que rejuvenesça a política e a política rejuvenesça o Brasil. Fico esperançoso que pessoas jovens se transformem em políticos jovens. Que não é o mesmo que velho político e pessoa velha. Brizola morreu aos 82 anos fazendo política de jovem, sem se comprometer com a corrupção, sem se comprometer com o fisiologismo. Sempre dizendo que o caminho era educação igual para todos. Darcy Ribeiro morreu com 76 49 anos fazendo política jovem, porque ele dizia que a escola dos filhos dos trabalhadores deveriam ser iguais às dos filhos dos patrões. Eles eram nacionalistas; queriam fazer as reformas de base que o país precisava. Getúlio Vargas morreu aos 73 anos, jovem. Se suicidou para não ter que conversar com os bandidos do outro lado, porque se Getúlio tivesse chamado para conversar os Lacerdas do seu tempo, ele ficava no poder. Mas ficaria velho de um dia para o outro. Vinte e quatro de agosto de 1954 morreu Getúlio Vargas na plena flor da juventude política de quem não transige; juventude de quem tem princípios, de quem tem valores. Nosso partido está cheio de pessoas velhas fazendo política de jovens. Precisamos também de jovens fazendo política jovem. Esse congresso tem que servir para rejuvenescer o PDT, não na cara, não nos dentes como quando olhamos o cavalo, mas no cérebro e no coração da atividade política, com utopia, sonhos e princípios. Um sonho que é possível nesse país: não ter corrupção. É possível no país ter uma política que possa mudar o País. Onde possamos recuperar a utopia: escola igual para todos. A escola do filho do trabalhador com a mesma qualidade da do filho de seu patrão. O Brasil nunca precisou tanto de sua juventude, mas de uma juventude nova, desvinculada da política velha. Vim aqui com os meus quase 70 anos de idade física lembrar que todos os dias acordo e vou dormir pensando: o que eu fiz hoje como jovem faria na política. Quando transigir com isso peço que me avisem e digam: “Cristovam você ficou velho na política, vá para casa cuidar dos netos”. Porque política se faz com sonhos de jovens não importa a idade que tenhamos. Considerem-me parte da juventude política do PDT. 50 Que Partido precisamos para o Brasil que desejamos Cristovam Buarque 51 52 Que Partido precisamos para o Brasil que desejamos Q uando, no início dos anos 1960, os partidos transformadores ameaçaram atravessar a ponte social em direção a uma nova sociedade, um golpe militar interrompeu, por 21 anos, as propostas que visavam transformar o país. Aprisionou a política e os partidos no curto prazo. No máximo propunham-se avanços para a democracia ou revoluções estatizantes que a história mostrou que não serviram de bons paradigmas. Desde 1985, estamos democraticamente sobre a ponte histórica, sem novas propostas para o futuro: apenas defendemos o progresso baseado nas taxas de crescimento econômico no curto prazo. Depois de 2002, nem mesmo discursos transformadores sobreviveram. Todos os partidos ficaram iguais e limitados à gestão do presente, sem preocupação com o futuro. É como se a ponte entre três momentos fosse eterna e a razão da política apenas caminhasse por ela sem qualquer perspectiva de atravessá-la. O governo faz e comemora pequenos ajustes no presente, a oposição critica e denuncia, mas sem discurso com proposta transformadora. 53 Nos últimos anos, os partidos brasileiros deixaram de acenar com propostas que sensibilizem a sociedade brasileira, especialmente os jovens, a aspirar e romper as fronteiras do presente, olhar para outra margem histórica. Faz-se política na e fora da ponte, como se ela fosse o território, e não uma simples etapa, transição, passagem. Os fatos ideológicos simbolizados na queda do Muro de Berlim é em parte a causa da perda de perspectiva histórica. No final do século XX, chegou-se a falar no fim da história, no sentido de que não haveria mais a necessidade nem a possibilidade de transição social a novas estruturas sociais. Mas o fato é que no Brasil esta falta de ideologia se agravou pela diluição dos partidos brasileiros como simples “clubes eleitorais”. Novos partidos se descaracterizaram como entidades representativas de blocos de pensamentos, nenhum deles com projetos para a Nação e para o Mundo. Este vazio ideológico gera uma desmotivação de militância. Este comodismo e pragmatismo impedem a condução do Brasil a novos horizontes, e corrompem os políticos, se não pelo comportamento, certamente pela aceitação da corrupção nas prioridades. O mundo está em uma ponte, em direção a uma nova fase histórica. O fracasso das experiências sócio-econômicas, no final do século XX; as crises financeira, social, ecológica e econômica que atravessamos no início do século XXI, colocam claramente a necessidade de atravessar esta ponte em direção a uma nova margem: não apenas progredir, mas de redefinir os propósitos do progresso; apresentar um modelo social e econômico que não seja baseado no consumo voraz, que respeite a natureza, que assegure uma democracia plena e os direitos humanos, priorize os bens públicos e ofereça igualdade de acesso à saúde, à educação e a justiça. Há um ditado que diz: “Na definição da vontade de uma 54 nação, não apenas os vivos, mas também os mortos falam”. “Os que ainda não nasceram gritam do futuro manifestando as demandas das próximas gerações”. Os historiadores falam com os mortos, os profetas com aqueles que ainda não nasceram. Mas além dos mortos e dos ainda não nascidos têm obrigação de dialogar com os eleitores de hoje. Eles devem ser a ponte entre as lembranças e os sonhos nacionais carregados pela vontade do presente. Mas nem todos que fazem política são políticos. A maior parte destes não fala com o passado e nem com o futuro. Apenas olham ao redor e procuram agradar aos de hoje, independente das lembranças do passado e das consequências futuras. Fazem a política das birutas de aeroporto, sentindo para onde sopra o vento dos eleitores, e não a política da bússola, apontando o rumo do futuro desejado e necessário. São “políticos de nariz”, sem “olhos para o futuro”, sem “memória do passado”. Existem três tipos de políticos e partidos: os que desejam apenas oferecer o poder para seus filiados beneficiarem-se dos recursos públicos, são os partidos fisiológicos; os partidos que buscam o poder para administrar seriamente os negócios públicos com competência, mas sem mudanças estruturais na sociedade, são os partidos sérios conservadores; e aqueles que oferecem e lideram o povo do presente com uma proposta transformadora da sociedade, conduzindo o país a uma nova margem de sua história. Alguns, ditatorialmente, querem impor um futuro que não dialoga com as marcas que, do passado, formam a alma do povo; outros não olham o futuro, como se, o passado esquecido, o presente satisfizesse aos não nascidos. Outros olham ao redor sem perceber que o presente é uma ponte para um futuro que deseja nascer, porque o presente é apenas o útero grávido de um futuro gerado pela história. 55 Os que de fato merecem o nome de políticos são aqueles que conhecem a história, não necessariamente pelos livros, talvez apenas pelo olfato do sentimento popular; são capazes de sonhar um futuro diferente no outro lado da ponte, como Moisés pelo deserto, e sabem mobilizar o seu povo para criar as bases que sirvam como vetor da transformação. No mundo global em crise, todo país precisa de estratégias políticas transformadoras, mas alguns precisam ainda mais que outros: nosso País é um desses. Não podemos ter a ilusão de países que fizeram suas revoluções e têm populações educadas e ricas. Nem as angústias daqueles que pela pobreza e pelo tamanho não têm direito à esperança. Fazemos parte de um reduzido grupo de países que têm a angústia de sermos ainda atrasados e a esperança de termos os recursos para fazer a inflexão na direção das forças que apontam ao futuro. Na história do Brasil, atravessamos algumas pontes em direção à outra margem de nova estrutura sócio-econômica. Em 1888, ao abolirmos a escravidão; em 1889, quando proclamamos a República; em 1930 e 1955 quando saímos da margem agrícola e rural para a industrial e urbana. São estas travessias que justificam a política. E são os sonhos de outras margens que mobilizam as sociedades, especialmente as jovens. São as propostas de futuro que mobilizam militantes e sociedades ao acenar com novos horizontes sociais, econômicos e políticos para a construção de novas estruturas, até mesmo de novos padrões civilizatórios. Fora disto os partidos mobilizam seus militantes apenas por interesses pessoais, ocupação de cargos para manterem conservadoramente a estrutura atual. 56 Há um descontentamento amplo entre os políticos que não se conformam apenas com o exercício do poder. Descontentes com seus partidos, muitos deles falam em criar novos partidos, mas pensando em criar apenas novas siglas. O Brasil já tem muitas siglas, mas está carente de partidos portadores de bandeiras transformadoras. Partido não é sigla, sigla não é partido. Houve um tempo em que os políticos criavam siglas para servir a Partidos. O caso de Brizola, quando perdeu a sigla PTB e criou o PDT para servir a um projeto de Nação que atravessasse a ponte aberta pela democratização, indo para uma nova margem de nossa história, já naquela época baseada na educação como a base do progresso econômico e social. Hoje, desfazemos partidos para manter siglas, caducando do ponto de vista ideológico, sem projetos, sem olhar a outra margem da história. Um partido precisa de ideal e de militantes dispostos a dar suas vidas por um conjunto de propostas para o país e o mundo. A verdade é que não temos um único partido no Brasil, apenas siglas que se misturam como as sopas que as crianças gostam. Nenhuma das siglas atuais preenche as características de um partido, ainda menos de um que seja portador de uma nova sociedade. Coincidindo com a queda do Muro de Berlim, o governo Lula conseguiu transformar os partidos que ainda tinham bandeiras em siglas diluídas na maré de apoio ou oposição ao governo, todos na mesmice. Com sua competência, habilidade e carisma, conseguiu adotar bandeiras dos opositores, deixando-os sem propostas; submeter os partidos que o apoiavam a abandonarem suas bandeiras apenas às possibilidades do presente, abandonarem seus sonhos utópicos para o futuro, sem o objetivo de fazer uma revolução social e chegar à outra margem da história. Como se não bastasse a conversão ideológica, 57 fez a cooptação juntando-os dentro da máquina do governo, vacinados contra sonhos ideológicos e comprometidos e viciados em cargos fisiológicos. O PT, que certamente foi um Partido, o PC do B, o PSB, o PDT que eram partidos, aos poucos foram perdendo o fôlego da ideologia, das propostas. Passaram a apoiar tudo que vem do governo. O PSDB e o DEM passaram a se opor até mesmo às medidas implantadas nos dois governos de Fernando Henrique Cardoso. As demais siglas continuaram no poder coerentes com o arrivismo das últimas décadas, ou contra o poder qualquer que seja sua proposta. Pequenos partidos ideológicos como o PSOL mantiveram a distância e um discurso independente, e bandeiras específicas, mas sem programas claros. Continua merecendo respeito por ser único com bandeira ética, mas prisioneiro da marca ética, que também é um tema da ponte, não da outra margem. Tema aceito pelos conservadores decentes, que se revoltam contra a corrupção, mas não contra o quadro de miséria, contra a desigualdade, contra a depredação, contra a barbárie do neoliberalismo; reagem à corrupção no comportamento, mas pouco falam da continuação da corrupção nas prioridades. E nunca o Brasil necessitou tanto de partidos que se façam por fora ou por dentro de uma ou de diversas das atuais siglas. Um partido capaz de ter as esperanças do passado adaptadas às necessidades e às possibilidades do futuro. Um partido que lidere militantes e povo em direção a uma nova margem histórica. Pelo menos dezessete pontos divididos em quatro blocos poderiam ser a base para um programa deste Novo Partido, ainda que dentro das atuais siglas, para atravessar a ponte da transição em direção a um novo Brasil, com nova estrutura econômica. 58 I – Desenvolvimento sustentado e baseado no conhecimento 1. Definir uma Política Industrial que construa a economia brasileira baseada na inovação cientifica e tecnológica. Sem isto o país não atravessará a ponte, não caminhará para a margem histórica do futuro. Ficará para trás, mesmo sob as aparências da riqueza momentânea do PIB baseado nos bens tradicionais, seja da agricultura, seja da indústria. Desde a revolução de 1930, a economia brasileira tem por objetivo a indústria mecânica imitativa, baseada em inovações importadas. A nova ruptura de fronteira sócio-econômica exige a transformação, já tardia, de nossa economia para um modelo baseado na inovação como o verdadeiro motor e no conhecimento como novo capital. Isto exige do novo partido o compromisso de criar no Brasil um Sistema Nacional de Consumo, capaz de não ser a educação de base e superior, os institutos de pesquisa, o setor industrial, para tornar nossa economia criativa. A competitividade não deve vir mais da simples produção no custo de mão de obra, mas sobretudo da criação de novos produtos. 2. Compromisso com um desenvolvimento que respeite a natureza. Não há futuro para a humanidade nem para o país se o modelo econômico continuar depredando a natureza na proporção das últimas décadas. Um partido do futuro precisa submeter o crescimento econômico ao equilíbrio ecológico. Não apenas usar a natureza eficientemente, mas também cuidar dela como parte da riqueza da humanidade e do país. 59 3. Responsabilidade com o equilíbrio fiscal. Sem isto o partido trai os interesses das massas pela desvalorização da moeda que prejudica fortemente os menos favorecidos e toda a Nação pela falta de respeito a um dos pilares do equilíbrio social que é a estabilidade monetária. 4. Fazer reforma fiscal simplificadora, insonegável e progressista. Não pode ser perdoado pela história o partido que no poder não for capaz de levar adiante uma política fiscal inteligível a qualquer cidadão, que elimine as brechas pelas quais são feitas as sonegações legais, que torne impossível a sonegação ilegal e que, finalmente, sem sacrificar a eficiência econômica, seja capaz de ser instrumento de justiça social. II – Democracia completa 5 - Absoluta intolerância com a corrupção. Uma das consequências da diluição partidária em siglas foi a aceitação da corrupção como fato normal da política: a ser criticada quando cometida pelos outros e defendida quando cometida pelos aliados. Partidos que até pouco tempo eram identificados com a defesa radical da ética passaram a aceitar, justificar, desculpar e conviver com a corrupção entre seus quadros no poder, às vezes em benefício próprio e enriquecimento pessoal, às vezes em benefício do partido. A luta contra a corrupção saiu da política e caiu nas mãos da Mídia e do Ministério Público. 6 - Reforma política que assegure respeito total às regras democráticas. Eliminar toda forma de cooptação de políticos e a consequente diluição de partidos, governando 60 com o Parlamento e com a Justiça, evitando toda forma de manipulação, mesmo àquelas que são feitas dentro da Lei, com a edição de Medidas Provisórias, ou a nomeação de parlamentares pelo Poder Executivo, usando o artifício dos suplentes. Não aceitar a compra de votos, seja pelo fisiologismo, seja pelo elevado custo das campanhas e a promiscuidade do financiamento privado. Aceitar total liberdade de organização, de expressão, de imprensa. Para isso, um partido comprometido com o futuro deverá propor uma Reforma Política Republicana que atinja os três poderes e mude a forma como se faz política no Brasil. A política deve deixar de ser um instrumento de obtenção de vantagens pessoais, não apenas por atos ilícitos, como também aqueles benefícios feitos dentro de leis sem legitimidade social. 7 - Reformar o Estado Brasileiro para fazê-lo servir aos interesses públicos. Quebrar o patrimonialismo que há cinco séculos se apropria do Estado, seja por empresários, por burocratas, por sindicalistas, por empresários, como subrepúblicas que dividem e afogam o sentimento pátrio. Estas subrepúblicas negam e inviabilizam a Nação ao colocarem seus interesses acima dos interesses maiores do povo e do país. Tentam abocanhar o maior pedaço possível da renda nacional seja pela política tributária seja pela política salarial. Como se fazia pela inflação antes da lei de responsabilidade fiscal e das regras seguidas do Plano Real. O governo transformador deve romper com a privatização dos recursos públicos, mas também com a privatização do Estado por corporações; deve prestigiar o interesse do público. Para o partido do futuro, o importante é a quem pertence o Estado, e não a quem pertence o Capital. 61 8 - Participar com protagonismo da cena internacional, sem fechar a economia, nem a cultura, mas sem abrir mão dos valores nacionais e optando sempre pelos direitos de cada povo definir seu próprio destino com soberania e reconhecimento internacional. Um partido transformador deve fortalecer a força moral do Brasil ao lado das grandes causas da humanidade, colocando os princípios acima do pragmatismo. Deve defender a paz internacional, tanto pelo desarmamento bélico em geral e imediata banição de toda arma nuclear; como também pelo desarmamento da bomba social com a adoção de programa mundial de luta contra o quadro de pobreza, especialmente pelo apoio à educação de todas as crianças no mundo. Defender o fortalecimento da ONU e sua democratização com o fim de membros permanentes no Conselho de Segurança. 9 - Novos Meios - o partido do futuro não pode continuar baseado nas velhas organizações paraestatais e presenciais, o partido deverá ser capaz de usar os modernos instrumentos virtuais de debate e organização, que têm sido capazes de fazer verdadeiras revoluções; deve também entender o papel das parcerias público-privada, como forma de publicizar o Estado e orientar o setor privado para compromissos sociais. III – Igualdade de acesso universal aos bens e serviços essenciais 10 – Direitos Humanos - A nova margem deve ter total compromisso com os Direitos Humanos, não apenas aqueles vinculados à integridade física e a liberdade das pessoas, como também direito de cada minoria ser protegido das imposições feitas pela maioria. Deve também ampliar o 62 conceito de Direitos Humanos para abraçar o atendimento das Necessidades Básicas da população pobre. Entre estas necessidades, deve-se dar atenção especial à questão do analfabetismo como um assunto de Direito Humano. 11. Luta pela inclusão social de todos - Um partido para o futuro, como foi o “partido abolicionista” no seu tempo, não pode se contentar com programas de pequenas transferências de renda para os pobres, precisa de uma revolução que elimine a exclusão social. As propostas desse Partido devem ter por objetivo o fim da apartação que caracteriza o Brasil desde seu início. Isto implica integrar toda a população em um só povo. Não bastará para este partido a necessária generosidade com os excluídos, ele precisa definir legislações sociais que assegurem a todos os mesmos direitos de acesso aos bens e serviços essenciais. 12. Garantia do direito de acesso a uma educação de qualidade igual para todos, independente da renda da família e da cidade onde mora - Para estar contemporâneo com o futuro, este partido deve apresentar a educação como o vetor da construção de uma sociedade sem exclusão e de uma economia competitiva internacionalmente: a educação deve ser vista como o vetor da revolução social e econômica no século XXI. Para isto, além do Direito Humano, este novo partido deve carregar a bandeira da erradicação do analfabetismo, da garantia de que nenhuma criança será deixada para trás, todas terão acesso à escola com a máxima qualidade. Seu lema pode ser “o filho do trabalhador pobre na mesma escola do filho do patrão rico”. Esta escola do trabalhador e do patrão teria o máximo de qualidade exigida pela realidade do progresso científico tecnológico, econômico e cultural do século XXI. Isto dificilmente se fará 63 sem uma federalização da educação de base, com professores escolhidos entre os profissionais melhor preparados e melhor remunerados do País, selecionados nacionalmente, com dedicação exclusiva à escola e estabilidade submetida à avaliação periódica, em escolas bem construídas, equipadas com todos os recursos modernos e em horário integral. Este deve ser o cerne da revolução que o novo partido realizaria no Brasil, completando a República. 13. Recusar de maneira radical a imoral desigualdade no direito à vida, por causa do acesso diferenciado ao sistema de saúde. Para ser um partido socialmente comprometido, ele deve apresentar com clareza sua proposta de assegurar a cada pessoa o acesso digno à saúde. Fazer a abolição da escravidão do século XXI: a compra do direito à vida, onde vive mais quem pode usar o dinheiro para garantir acesso às modernas técnicas médicas. 14. Definir uma política salarial justa - Que colabore para reduzir a desigualdade de renda entre as pessoas e famílias, que seja um instrumento de quebra da vergonhosa desigualdade não apenas entre assalariados e rentistas, como também entre os assalariados. Isto é ainda mais necessário na redefinição da política salarial do setor público, onde a desigualdade chega a ser 40 vezes maior. E esta desigualdade não decorre do desempenho do profissional para ampliara o bem estar social da coletividade, mas sim da capacidade de pressão. O partido da nova margem história deve definir numa política salarial baseada no impacto do trabalhador na criação do bem estar. Como exemplo, as áreas da saúde e da educação devem ter precedência na valorização salarial. 64 15. Moralizar e democratizar o sistema judiciário e presidiário - De maneira a acabar a leniência com qualquer tipo de crime, desde aqueles da corrupção, do colarinho branco, da direção sob efeitos do álcool, o tráfico, a exploração sexual de menores, o uso do trabalho escravo etc. Punindo todos, inclusive os políticos e os magistrados que cometam crimes. E assegurando que a Justiça não seja monetarizada, passando a atender igualmente, independentemente do poder de compra do réu. 16. Reorganizar as cidades - O partido do futuro deve reduzir as desigualdades entre regiões e incentivar a distribuição demográfica da população. Para tanto, um governo transformador precisa priorizar as cidades menores, de maneira a frear a migração e até conseguir fazer desmigrações. Deve ser um compromisso desse partido humanizar as cidades, fazendo-as eficientes, aconchegantes onde a criminalidade se sobreponha aos aspectos de modernidade perversa que caracteriza as grandes cidades de hoje. IV – Nova Mentalidade 17. O discurso da mudança - Toda revolução – passagem para uma nova margem histórica - exige uma mudança de mentalidade eleitoral e provoca uma mudança de mentalidade social. Por isto o partido da mudança precisa ter uma retórica comprometida com a nova visão do futuro; ser um instrumento da mudança de mentalidade. Esta opção por um discurso de ruptura pode muitas vezes ser contraproducente eleitoralmente, mesmo assim, o partido precisa ser coerente com o futuro. 65 66 Anexo II - Senado Federal 70165-900 - Brasília, DF Fones: (61) 3303-2281, no fax (61) 3303-2874 [email protected] www.cristovam.org.br 67 68