Antropologia e educação

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ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO – VALDIR ARAGÃO DO NASCIMENTO
ANTROPOLOGIA E EDUCAÇÃO:
Consensos e dissensos
Valdir Aragão do Nascimento
Segundo a professora Ana Lúcia Valente (1997) “a antropologia e a educação, por
serem ciências humanas, encontram fácil e imediatamente a base comum sobre a qual
constroem suas reflexões, isto é, o homem e seus embates para fazer valer a sua natureza,
distinta de outros animais”. Tal assertiva suscita as seguintes indagações: em que medida se
entrelaça a Antropologia e a Educação nos dias atuais? Há espaço para o diálogo? É fato que
os representantes dos dois campos do saber não se entendem; como observado por Gusmão
(1997) quando assevera que a Antropologia e a Educação constituem hoje, um campo de
confrontação em que a compartimentação do saber atribui à primeira a condição de ciência e
à segunda a condição de prática. Dentro dessa divergência primordial, profissionais de
ambos os lados se acusam e se defendem com base em pré-noções, práticas reducionistas e
muito desconhecimento.
A relação entre as áreas de conhecimento da Antropologia e Educação ainda é pouco
explorada pelo âmbito acadêmico brasileiro, apesar de o diálogo entre a antropologia e a
educação remeter-se a uma antiga e muito importante questão a respeito do homem e seu

Bacharel em Ciências Sociais (UFMS), Mestrando em Antropologia (PPGAnt/UFGD). E-mail:
[email protected]
Cadernos do LEME, Campina Grande, vol. 4, nº 2, p. 54 – 68. Jul./Dez. 2012.
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processo de aprendizagem. No Brasil, foi a partir da década de 80 do século XX que se
começou a pensar que entre a Antropologia e a Educação poderia ser construído um
importante diálogo científico e cultural (Valente 2003). Juntar Antropologia e Educação –
numa dialogia que resulte em uma possibilidade de encontros e esforços em um objetivo
comum – constitui tarefa realmente hercúlea, dadas às especificidades das disciplinas em
questão e as tensões entre o singular e o universal; tensões que, para Dauster (2000),
permeiam, ou deveriam permear, as inquietações e os horizontes que norteiam o trabalho
dos antropólogos e também dos educadores.
Conforme Areia (1986) e Seixas (1997), em terras de além-mar, a discussão gira em
torno do lugar que a Antropologia tem tido na Educação ao longo do tempo; do
questionamento do papel que a Antropologia e os Antropólogos têm – e podem vir a ter – no
Ensino Básico e Secundário em Portugal a partir da última reforma educativa. Souta (1982)
assevera que desde 1972 até os dias de hoje, o ensino de antropologia – em nível básico e
secundário – em Portugal tem sido negligenciado, sendo as aulas ministradas por leigos na
disciplina, principalmente oriundos dos cursos de licenciatura em geografia.
No entanto, ainda de acordo com Souta (1982: 52/53) lecionar Antropologia não é
uma tarefa muita apreciada pelos professores de outras disciplinas, ou seja, nem sempre
desempenham essa atividade por prazer de ofício ou desafio intelectual, mas tão somente
para complementar suas cargas horárias. Tal falta de entusiasmo por parte dos professores se
explica pela reduzida carga horária das aulas de Antropologia, que não é suficiente para
completar o número de 22 horas de aulas de um horário letivo normal em Portugal.
Para Santos e Seixas (2006) a utilização social da Antropologia, através do Ensino
Básico e Secundário, emerge como um instrumento fadado ao fracasso, à condenação, isto
porque
[...] a disciplina desaparece e os licenciados em Antropologia
são empurrados para fora do Sistema Educativo pela impossibilidade
de profissionalização.” Podemos, no entanto, dizer que o uso social
da Antropologia no Sistema Educativo transcende a existência ou
não da disciplina de Antropologia e a possibilidade ou não de
emprego para os licenciados em Antropologia. De facto, parece-nos
que as perspectivas antropológicas enquadram o sistema educativo
que emergiu da última reforma e enquadraram a própria reforma,
parecendo assim evidenciar-se que a Antropologia tem um uso social
na Educação formal em Portugal ao mesmo tempo que esta exclui os
Antropólogos
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A conclusão a que chegam os autores supramencionados traz à baila os possíveis
“usos” sociais da Antropologia. A problematização dos usos da Antropologia no ensino na
Europa – notadamente Portugal – indica um padrão de Educação sem Antropologia que se
verifica nos dois países, abrindo a hipótese da sua existência mesmo para além deles. Estes
dois países apresentam ainda o paradoxo entre a implementação no ensino de uma ideologia
antropologizante (“temas transversais” do sistema espanhol e as “novas figuras educativas”
do sistema português) e a exclusão dos antropólogos (Santos e Seixas 2006).
Quanto à construção do conhecimento antropológico e educacional, verifica-se que –
embora pensamentos e conceitos usados na construção do conhecimento antropológico e
educacional foram construídos desde a antiguidade – a relação mais específica entre essas
áreas do conhecimento, aconteceu na virada do século XIX para o século XX. Em um
momento posterior, na primeira metade do século XX, Franz Boas (1858-1942), um
pensador clássico da Antropologia, juntamente com suas discípulas Ruth Benedict (18871948) e Margareth Mead (1901-1978), possibilitaram o surgimento da reflexão a respeito da
pedagogia que se aplicava na sociedade moderna, principalmente na sociedade norte
americana, estabelecendo uma forte crítica em relação aos valores liberais econômicos
impostos através da educação (Mari 2008: 2-3).
Os antropólogos, formados na escola culturalista fundada por Franz Boas,
principalmente Mead e Benedict, preocupavam-se em entender o que significava ser criança
e adolescente em outras realidades socioculturais, tomando – como um contraponto – a
sociedade norte-americana da época. Definindo a cultura como aquilo que é transmitido
entre as gerações e aprendido pelos membros da sociedade, esses antropólogos se viam
imiscuídos com a questão de delimitar o que é propriamente cultural e, portanto, particular, e
o que é natural e, portanto universal, no comportamento humano. Essas são as bases de um
debate famoso, o que diferencia nature e nurture, ou o que é inato e o que é adquirido (Cohn
2005: 11).
Tecendo considerações sobre os objetivos do trabalho intitulado Growing up in New
Guinea, Dauster acredita que Mead buscava:
[...] entender como valores, gestos, atitudes e crenças eram
inculcadas nas crianças pelos adultos com o objetivo de formá-los
para viver dentro de sua sociedade. A autora investigou tanto os
modos de transmissão das gerações mais velhas para as mais novas,
como a própria formação da personalidade e as formas de
aprendizagem existentes [...] Essa referência é particularmente
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importante uma vez que a antropóloga demonstrou, ao lado da
dimensão científica, a preocupação pedagógica, buscando a partir de
sua experiência etnográfica, influenciar as atitudes face às crianças e
aos adolescentes no seu país, no sentido de uma menor repressão. A
pesquisadora mostrou que a adolescência, com as características
conhecidas por nós, é um fenômeno sociocultural e não uma questão
fisiológica (Dauster 2003: 6-7).
Para Harris (1996: 357), o objetivo consistia em “pôr à prova a tese de Lévi-Bruhl de
que os ingredientes animistas da mentalidade primitiva eram similares à forma de
pensamento infantil”. Para tanto, analisava o processo educativo pelo qual os Manus 2
criavam seus filhos e os introduziam na vida adulta.
Outros antropólogos – na esteira da perspectiva de Boas e seus discípulos – também
se debruçaram sobre os contatos entre Antropologia e Educação. Antropólogos como Melvin
Herskovits e Robert Redfield; que investigaram – cientificamente – a atuação do educador
nas intersecções conflituosas existentes entre as heranças culturais e as experiências pessoais
do alunato (Souza 2006).
As críticas à Educação – por parte da Antropologia – iniciaram-se com Boas, como
assevera Gusmão:
Boas será um crítico atuante diante do sistema educativo
americano, denunciando, entre outras coisas, a ideologia que lhe
serve de base, centrada na idéia de liberdade, e sua prática educativa
de cunho conformista e coercitivo, visando criar sujeitos sociais
adequados ao sistema produtivo segundo um modelo ideologizado
de cidadão. Demonstra, através de estudos diretos obtidos no campo
educacional, que a escola inexiste como instituição independente e,
como tal, não possibilita independência e autonomia dos sujeitos que
aí estão. A meta da escola centra-se num aluno-modelo que
desconsidera a diversidade da comunidade escolar e, para contê-la,
atua de forma autoritária (1997: 15).
Mas não existem só dissensões entre os dois campos do saber, como Mari (2008: 6)
verificou quando abordou a questão da alteridade. Assim, como fundamento do pensamento
de Malinowski, existe uma ideia essencial de respeito ao outro – respeito à alteridade. Desse
modo, é inevitável incluirmos o pensador brasileiro Paulo Freire nessa mesma perspectiva
de respeito à alteridade, pois assim como Malinowski, ele rompeu barreiras e lutou por uma
2
Habitantes da Ilha de Manus na Nova Guiné, onde no final da década de 1920 Margareth Mead
(Filadélfia, 1901 – Nova Iorque, 1978) realizou pesquisa de campo sobre educação infantil, publicando os
resultados em 1930 sob o título Growing up in New Guinea.
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vida social mais justa para todos, trilhando caminhos sinuosos no que diz respeito aos
esforços que buscam o respeito ao outro e o engajamento social.
Nos dias atuais, são frequentes as interfaces entre Antropologia e Educação – às
vezes de maneira pacífica, outras tantas de maneira conturbada 3. As questões que perpassam
por esses diálogos são as mais variadas, no tocante à educação tem-se: a inadequação do
PCN em relação à realidade; reprodução acrítica dos conteúdos educacionais 4; escola
homogeneizadora e etnocentrista 5, dentre outras. No tocante à Antropologia, as queixas têm
como alvo à dita neutralidade do antropólogo, sua postura relativista e outras tantas críticas
oriundas da seara dos teóricos do que se convencionou denominar de Estudos culturais.
Em relação às populações indígenas, a relação cultura, identidade e currículo (escola)
sempre estiveram – e estão – presentes nos propósitos dos diferentes modelos
paradigmáticos que nortearam – e norteiam – as relações sociais como práticas de produção
de sentidos e significados. Ao compreender o lugar que a escola, enquanto ação
institucionalizada ocupa, nos diferentes tempos e nos diferentes espaços no contexto das
políticas colonizadoras – imposta aos povos indígenas – e no processo de construção de uma
política que tem como centralidade reverter o quadro da imposição guiada pelos movimentos
sociais indígenas, compreenderemos a importância dada ao currículo enquanto produtor de
identidade (Aguilera Urquiza; Nascimento 2010: 114).
Pelo exposto acima, são facilmente verificáveis as dificuldades e percalços por que
passam as interfaces entre Antropologia e Educação. Contudo, uma questão sobressai: onde,
quando e por quais veredas se deram as interfaces mencionadas? Para Consorte (1997) a
preocupação da Antropologia com a Educação remonta aos anos 30 e à ascensão do
culturalismo norte-americano6. A necessidade (advinda dos anseios de dominação da elite
brasileira) de conhecer os novos elementos que compunham a estrutura do País foi de vital
importância para o estabelecimento da reflexão culturalista no Brasil.
A preocupação com o Brasil se justificava, aos olhos da elite daquela época, face ao
numeroso contingente de descendentes de imigrantes italianos, alemães e japoneses –
3
Sobre as interfaces aventadas, ver alguns artigos de Ana Lúcia Valente, tais como: Ação afirmativa,
relações raciais e educação básica. In: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n28/a06n28.pdf; Educação e
diversidade cultural: algumas reflexões sobre a LDB. Revista Intermeio, Campo Grande (MS), nº 4, p. 21-24;
Programa Nacional de Bolsa Escola e as ações afirmativas no campo educacional. Revista Brasileira de
Educação, nº 24, p. 165-182.
4
Sobre esse assunto, consultar o livro Escola e Democracia de Demerval Saviani. 8. ed. São Paulo:
Cortez/Autores Associados, 1985.
5
Cf. AGUILERA URQUIZA, Antônio. H; NASCIMENTO, Casaro Adir. In: Currículo sem
Fronteiras, v.10, n.1, pp.113-132, Jan/Jun 2010.
6
A respeito do nascimento da antropologia cultural norte-americana, consulte STOCKING JR, George
W. Franz Boas: a formação da antropologia americana 1883-1911.
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concentrados, em sua quase totalidade, nos estados do sul – e os descendentes dos africanos,
disseminados por todo o país, profundamente diversos, física e culturalmente falando, e que
colocavam problemas bastante específicos, em relação ao presente e ao futuro do País
(Consorte 1997).
A questão que a autora se coloca é desnudar quais são as preocupações que uns e
outros7 suscitam junto àqueles que têm que organizar o sistema educacional? Para a autora,
duas parecem ser essas preocupações: de um lado, o abrasileiramento dos descendentes de
imigrantes, de sorte que não viessem a constituir quistos culturais capazes de ameaçar a
unidade nacional; do outro, a erradicação das tradições culturais de origem africana, uma
ameaça permanente ao projeto de construção de um país branco, ocidental e cristão. Tais
preocupações, tendo como cerne a questão cultural, expressam, desse modo, uma postura
que se coloca na contramão daquilo que se deveria esperar de uma orientação inspirada pelo
culturalismo, isto é, de respeito à diversidade cultural na formação do nosso povo. Assim,
em lugar da valorização da diferença, as preocupações estão voltadas para o
desaparecimento das matrizes culturais de origem dos contingentes envolvidos – alemã e
italiana, de um lado; africana, do outro (Consorte 1997).
No contato entre os europeus e os povos autóctones, não houve reflexão a respeito de
das práticas educacionais dos povos indígenas, tendo o contato, desse modo, se baseado em
uma relação assimétrica; pois os europeus tinham como preceito básico a crença no
dogmatismo de seus conhecimentos ocidentais acumulados como conhecimentos universais.
Nesse contexto, Aguilera Urquiza (2006) assevera que as populações ameríndias viviam a
educação através de outros paradigmas, onde a instituição não tinha diferenciação do próprio
corpo do coletivo sendo o processo educacional e de ensino/aprendizagem das crianças, por
exemplo, algo que se relacionava completamente às dinâmicas vividas pelos integrantes do
corpo do coletivo, sem uma cisão espacial entre o “espaço de viver” e o “espaço de
aprender”.
Desse modo, a educação desenvolvida e praticada pelos povos indígenas lhes permite
continuar sendo eles mesmos; mantendo, com isso, a transmissão de suas culturas por
gerações – ou como sabiamente observou Melià (1999: 11) “[...] não há um problema da
educação indígena, pelo contrário, o que existe é uma solução indígena ao problema da
educação”.
7
Leiam-se, aqui, os atores sociais da época: antropólogos, políticos e educadores. Cf. Consorte, 1997.
Sobre a leitura feita pelos antropólogos a respeito do Brasil nos anos 30 ver a tese de doutorado de CORRÊA,
Mariza: As Ilusões da Liberdade: a escola Nina Rodrigues e a Antropologia no Brasil.
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A esse respeito, Durkheim assevera que
Sob o regime tribal, a característica essencial da educação
reside no fato de ser difusa e administrada indistintamente por todos
os elementos do clã. Não há mestres determinados, nem inspetores
especiais para a formação da juventude: esses papéis são
desempenhados por todos os anciãos e pelo conjunto das gerações
anteriores (1975: 37).
A educação escolar é uma instituição tradicionalmente ocidental, sendo esta
instituição “uma das formas encontradas pela civilização ocidental para sistematizar o
processo de socialização de seus membros” (Aguilera Urquiza e Nascimento, 2010: 116).
Contudo, como observa Brandão (1993: 13) “A educação existe onde não há a escola e por
toda parte podem haver redes e estruturas sociais de transferência de saber de uma geração a
outra, onde ainda não foi sequer criada a sombra de algum modelo de ensino formal e
centralizado”.
A citação de Brandão remete a uma educação que não demanda a estruturação legal e
compulsória dos Estados, ou seja, uma educação que é transmitida de uma geração a outra
através das práticas e vivências do cotidiano peculiar dos grupos sociais. Como exemplo,
pode-se mencionar os conhecimentos técnicos necessários ao fabrico do arco e flecha em
algumas sociedades indígenas: as crianças não vão à escola para aprender tais técnicas, elas
absorvem esse conhecimento no dia a dia, no contato direto com os adultos no decurso das
atividades a que estes se dedicam cotidianamente dentre da estrutura de sua organização
social.
Assim, a educação pode ser compreendida para além dos muros da escola, ela é parte
indispensável à manutenção e existência das sociedades, dado que é através dela que os
conhecimentos e técnicas são transmitidos e absorvidos, graças à capacidade mimética
inerente ao processo de socialização. Como bem observou Brandão (1993: 7), ninguém pode
escapar à educação, posto que ela está presente “em casa, na rua, na igreja ou na escola, de
um modo ou de muitos todos nós envolvemos pedaços da vida com ela: para aprender, para
ensinar, para aprender-e-ensinar. Para saber, para fazer, para ser ou para conviver, todos os
dias misturamos a vida coma educação”.
No tocante à educação indígena, Tassinari (2001) discute o alargamento das políticas
e ações voltadas para escola indígena. Para a autora, devido à pressão exercida pelas ONGs e
como dever de Estado “na última década do século, a escola indígena passou a ser assunto
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da agenda do MEC e das Secretarias Estaduais de Educação” (2001: 45). Assim, houve uma
rápida multiplicação de experiências relacionadas à educação escolar indígena, como o
incremento de workshops, o surgimento de cursos de capacitação de professores indígenas,
projetos de currículos diferenciados etc. Isso, aliado à crescente necessidade de combinar
questões culturais dos povos indígenas com os entraves burocráticos das administrações
públicas acabou devolvendo para as ONGs, Universidades e comunidades indígenas, ou
seja, aos que iniciaram ou idealizaram esse processo, uma série de problemas concretos e a
demanda de melhor compreendê-los com vista a solucioná-los (Tassinari 2001).
Ou, como analisa Alvarez (1999) quando se refere à educação indígena e salienta que
a domesticação da escola com professores indígenas e conteúdos disciplinares específicos da
cultura, configura-se como um processo de negociação de valores e reinterpretação de
significados de uma outra ordem cultural e simbólica. A criança tem de ser vista como
agente de construção da sua vida social e não somente como sujeitos passivos de estruturas e
processos sociais.
Sobre a importância que a Antropologia teve/tem no processo supramencionado,
Tassinari (2001) analisa que, ao menos, algumas premissas da Antropologia parecem ter
sido reforçadas, como o relativismo cultural e a ênfase na importância da pesquisa de campo
detalhada. Tal importância é também enfatizada por Souza, quando alude à existência de
[...] um certo consenso que existe entre os agentes da escola
indígena, sobre a necessidade de considerar cada caso específico e as
particularidades de cada cultura, para a implantação das “escolas
diferenciadas”. Embora sem saber muito como fazê-lo, ou onde
encontrar a especificidade, há um interesse maior ou uma
curiosidade difusa sobre os resultados das pesquisas antropológicas
(Souza 2001: 29).
Desse modo, ficam patentes as aproximações entre as duas áreas do conhecimento,
ainda que de maneira incipiente. Cabe ressaltar, no tocante à questão indígena, o mérito da
Constituição Federal de 1988 como um marco na redefinição das relações entre o Estado
brasileiro e as sociedades indígenas. Ela passou a assegurar o direito das comunidades
indígenas a uma educação escolar diferenciada, específica, intercultural e bilíngue. Os índios
deixaram de ser considerados categoria social em vias de extinção e passaram a ser
respeitados como grupos étnicos diferenciados, com direito a manter sua organização social,
costumes, línguas, crenças e tradições. Além disso, a Constituição Federal assegurou a eles o
uso de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem, devendo o Estado
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proteger suas manifestações culturais. Dessa forma, fica garantido às comunidades indígenas
o acesso a uma escola com características específicas, que busque a valorização do
conhecimento tradicional vigente em seu meio, ao mesmo tempo em que forneça
instrumentos necessários para enfrentar o contato com outras sociedades (Fleuri 2003: 21).
A Constituição Federal de 1988 acaba por reconhecer que a educação é, segundo a
definição de Brandão (1993: 10): “[...] como outras, uma fração do modo de vida dos grupos
sociais que a criam e recriam, entre tantas outras invenções de sua cultura, em sua sociedade.
Formas de educação que produzem e praticam, para que elas reproduzam, entre todos os que
ensinam-e-aprendem” [Grifo do autor].
Nascimento e Urquiza (2010) acreditam que a história da educação escolar entre os
povos indígenas no Brasil pode ser dividida, grosso modo, em quatro momentos: o primeiro,
que pode ser chamado de educação para o índio, foi realizado durante o período colonial no
país, e a escolarização estava a cargo de missionários católicos vindos da metrópole. Na
verdade, a educação era uma estratégia para facilitar a conversão (evangelização) e
catequização das novas gerações, o que estava em consonância com o projeto colonial:
integrar o índio como mão de obra na sociedade nacional. Assim, a base curricular, com
algumas adaptações, era a proposta pelos jesuítas, a partir da adaptação dos conceitos
pedagógicos e curriculares da Idade Média, a valorização da língua e as manifestações
culturais clássicas, greco-romanas. Prática seguida por outras ordens religiosas, mesmo com
a expulsão dos jesuítas em 1759 do Brasil, com apoio do governo até muito recentemente.
O segundo momento se estabelece a partir da criação do SPI (Serviço de Proteção ao
Índio) em 1910, onde o Estado passa a se responsabilizar pela educação entre os povos
indígenas. Porém, essa política é formulada através de ideias positivistas, que no momento
ainda permaneciam muito forte na ideia de país construída pelo Estado. Apesar de neste
momento ser alegado certa preocupação com a diversidade linguística, por exemplo, muito
pouco se avançou em relação ao modelo de educação anterior.
Em 1968, com a substituição do SPI pela FUNAI (Fundação Nacional do Índio), o
ensino bilíngue passa a ser priorizado. E já é possível constatar alguns avanços em relação
ao respeito aos modos de vida dos povos indígenas do Brasil. Talvez o primeiro avanço que
podemos apontar aqui, seja o Estatuto do Índio 8 (Lei 6001), que tornou obrigatório o ensino
da língua dos povos indígenas na escola. Como visto no artigo 49 desse Estatuto: “[...] a
8
Cf. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6001.htm
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alfabetização dos índios far-se-á na língua do grupo a que pertençam, e em português,
salvaguardando o uso da primeira”.
Mesmo com essas mudanças na legislação é possível constatar que as práticas ainda
estavam muito longe de contemplar o respeito às especificidades dos povos indígenas. O
Estado, anteriormente, já havia firmado, em 1959, convênio com o SIL (Summer Institute of
Linguistics) para o estudo e descrição técnica das línguas indígenas, o que estava em
consonância com os objetivos integracionistas do Estado brasileiro. Tratou-se, na verdade,
de uma opção política repassar a ação governamental para uma instituição norte-americana,
cujo objetivo era evangelização dos indígenas (Aguilera Urquiza e Nascimento 2010: 117).
A terceira fase se relaciona com o surgimento de organizações indigenistas não
governamentais junto à formação de um movimento indígena organizado. Nesse momento (a
partir de 1970) começam a ser feitas experiências de escolas interculturais, que respeitem a
autodeterminação desses povos e que trabalhem com metodologia, materiais didáticos,
currículos e calendários diferenciados.
A última fase, ou momento, segundo Aguilera Urquiza e Nascimento (2010) é
justamente a que está em voga nos dias de hoje. Um momento de “guinada epistemológica”,
pois durante as últimas décadas muitas de nossas instituições se reformularam, assim como a
mudança, ao menos na legislação, da figura do índio na composição da sociedade brasileira
passa a ser outra.
A partir de 1985 o país passou por uma reforma política e pela primeira vez teve um
regime de democracia representativa instituído. Outro avanço é a Constituição Federal de
1988 que vai assegurar aos povos autóctones o direito à reprodução cultural dentro de suas
próprias escolhas, ou seja, a autodeterminação passa a ser um direito assegurado. Justamente
nesse momento esses povos passam a reivindicar, por meio de suas organizações, o direito
assegurado de escola diferenciada e intercultural, onde o índio e sua cultura passam a ser
protagonistas de seu próprio modelo de escola:
[...] a escola tem sido uma das instituições mais solicitadas
pelos povos indígenas. Parece que nela percebem elementos que
podem ajudar na luta mais global, como o resgate da memória
histórica, o domínio da escrita ou dos conhecimentos matemáticos
acumulados pela cultura ocidental. Freqüentemente, a metáfora
utilizada para a escola e para a escrita, é de que elas sejam armas na
luta pela sobrevivência (Aguilera Urquiza e Nascimento 2010: 119).
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Portanto, este é um momento de pleno movimento para os povos indígenas que além
das lutas pela sobrevivência, autonomia, devolução de seus territórios, direitos de
(re)produção religiosa, cosmológica e de suas expressões culturais como um todo, a
educação intercultural, que busca ter o índio como protagonista, passa a ser mais uma frente
de reivindicação.
Apesar dos avanços, Aguilera Urquiza e Nascimento (2010: 129) observam que a
escola formal – ainda que desenvolvida por professores indígenas – constitui-se em outro
grupo/espaço social (organização do espaço, do tempo, atividades diferentes, convivências
diferentes – horários e atividades que devem ser vividos por todas as crianças ao mesmo
tempo); ou seja: funciona dentro de uma dinâmica totalmente diferente da dinâmica
concebida e vivenciada nas escolas da sociedade envolvente e não indígenas.
Entretanto, é notório que o professor indígena imprime um caráter próprio ao seu
fazer pedagógico, pois se trata de um tradutor que transita com certa familiaridade por
fronteiras culturais e de lógicas diferentes de conhecimento. Considera-se, assim, a
identidade como uma categoria sempre em construção; por isso será sempre a
ressignificação dos processos educativos que vivencia cada sujeito o foco de nossa atenção.
E esses processos não estão limitados ao espaço da escola. A escola indígena ao ser
assumida pelos indígenas (administrativa e pedagogicamente) carreou para dentro dela não
só os valores, crenças e atitudes, mas também, parafraseando Cancline (2003: 175) “os
circuitos e fluxos que extrapolam os territórios”.
Aguilera Urquiza e Mussi (2009: 16) asseveram que: neste contexto histórico de
exclusão e discriminação, a educação ocupa um papel fundamental, pois como mecanismo
de transmissão e reprodução do conhecimento torna-se importante na disseminação de
informação sobre as questões tratadas pelos temas da diversidade cujo eixo fundador baseiase na garantia dos direitos fundamentais e na dignidade humana, condições essenciais para o
enfrentamento das desigualdades, socioculturais e econômicas.
Face ao trabalho de campo e ao desafio da interpretação, a Antropologia e a
Educação se debatem com o fato de que sempre existiu “um modelo positivista de sociedade
[...] e uma tendência interpretativa ou compreensiva” das mesmas. (Lovisolo 1984 apud
Gusmão 1997).
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Considerações Finais
Diante do exposto, cabe perguntar qual a natureza dos riscos de que falava Boas
quando afirmava que o modelo pedagógico ocidental desembocaria numa pedagogia da
violência. Para ele, a realidade de seu tempo apontava um risco para os povos do futuro e
para o futuro da própria civilização. A razão era que, historicamente, a nossa sociedade e a
escola que lhe é própria não desenvolviam – e não desenvolvem – mecanismos
democráticos, perante as diversidades social e cultural (Gusmão 1997).
A propriedade e a atualidade da inquietação de Boas revelam, na avaliação de
Gusmão (1997), que o diálogo foi iniciado, mas não foi concluído. Para essa autora, “a breve
síntese de um processo vasto e intenso que se desenvolveu na primeira metade do século, e
que não termina aí, está exigindo olhares mais profundos na história da intersecção entre
antropologia e educação”.
Percebe-se, diante do exposto acima, que o encontro entre Antropologia e Educação
é possível. É claro que tal encontro se gesta num turbilhão de variáveis, e que podem tanto
contribuir
para
o
enriquecimento
do
conhecimento
humano
quanto
para
seu
empobrecimento. Mas, como observado pelos autores citados, o que se tem é o enorme
esforço envidado pelos operadores, tanto da Antropologia quanto da Educação, no que
compete aos temas abordados: educação indígena; fazer antropológico; preocupação
metodológica, dentre outros.
A discussão permanece aberta, cada contexto necessita de estratégias e reflexões
próprias para se constituir como um espaço que busque ampliar diálogos e conhecimentos;
respeitando as especificidades e necessidades de cada localidade. O fato é que
provavelmente a discussão, os métodos e as técnicas – tanto dos antropólogos quando dos
educadores – para se pensar e constituir a educação escolar indígena, ainda tem um longo
caminho para sua efetivação.
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