UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ LUCAS MONTALVÃO RABELO A CONSTRUÇÃO DOS MAPAS-MÚNDI NOS SÉCULO XV E XVI: ENTRE A EXPERIÊNCIA E A TRADIÇÃO CURITIBA 2009 2 UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ LUCAS MONTALVÃO RABELO A CONSTRUÇÃO DOS MAPAS-MÚNDI NOS SÉCULO XV E XVI: ENTRE A EXPERIÊNCIA E A TRADIÇÃO Monografia apresentada ao Departamento de História como requesito parcial à conclusão do Curso de História do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná CURITIBA 2009 3 RESUMO Essa pesquisa visou compreender a produção dos mapas-múndi no período renascentista. Para isso contou com analise tributária de Brian Harley e Marica Milanese. Autores que trazem uma metodologia diferente para trabalhar com essas fontes visuais. Assim, procurou demonstrar como os conjuntos de influências –tradição e experiência - encontram-se presentes nos mapas renascentistas e, de um mapa para outro como isso foi se modificando. Com isso, essa pesquisa visa um olhar voltado não apenas às questões técnicas, mas também aos elementos que revelam o contexto social próprio da época em que este mapa encontra-se inserido. Observando-os como um espelho da sociedade que o produziu dentro do embate renascentista. 4 SUMÁRIO Introdução..........................................................................................................................5 Quadro de Imagens............................................................................................................6 A Herança Cartográfica...................................................................................................14 A Sociedade e os Cartógrafos..........................................................................................65 Conclusão........................................................................................................................89 Referências......................................................................................................................91 5 QUADRO DE IMAGENS As referências aos mapas são as seguintes: Mapa dos Salmos; Made Hereford; Fra Mauro; e Atlas Catalão. Retirados de: KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Média. 2.ed. Londrina (PR): Eduel, São Paulo: Imprensa oficial do Estado de São Paulo, 2005, p. 226-270 Henricus Martellus; Cantino; Diogo Ribeiro; e André Homem. Retirados de ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. In: BETHENCOURT, F. & CLAUDHURI, K(dir.). História da Expansão Portuguesa. Vol I. Lisboa: Circulo de Leitores, 1998, p. 55-60 Juan de La Cosa. Retirado de: Retirado de ASTON, Margaret. O Século XV. História Ilustrada da Europa. Lisboa: Editorial Verbo, 1967, p. 88. 6 INTRODUÇÃO Os mapas são objetos que desde sempre exercem uma fascinação sobre o homem dada a sua capacidade de dispor o mundo diante dos olhos. Essa pesquisa teve como meta desvendar um pouco desse olhar voltando-se para um importante período da história Ocidental, o Renascimento. Acompanhou-se, assim, o processo de produção de mapas ao longo da segunda metade do século XV e o século XVI. Esses mapas-múndi estavam inseridos em uma época importante de efervescência dos debates acerca da geografia terrestre suscitados pelas relações entre o ideal de mundo medieval, o conhecimento recente dos autores clássicos que a muito estavam perdidos e as descobertas realizadas durante as viagens empreendidas pelos ibéricos. É um período que representou um momento de síntese não somente na história da cartografia, mas em muitos outros campos da história. Esse embate pode ser sintetizado na afirmação de Maria Fernanda Alegria: “A cartografia oferece-nos um excelente exemplo para ilustrar [o] complexo confronto entre o que os livros e a tradição oral registram, entre o que os mestres ensinam e o que se aprende com a própria experiência. Na luta entre esta dupla linha de forças [tradição e experiência], a persistência do vivido pelos Portugueses teve um papel fundamental na alteração das mentalidades. ” 1 Essa alteração de mentalidade refere-se à experiência dos portugueses ao longo das grandes navegações. Pois, de acordo com João de Castro Osório foi através da aprendizagem cotidiana dos novos espaços que a realidade do mundo se apresentava outra, diferente de tudo aquilo que os eruditos europeus diziam, ou os autores clássicos. Assim, todo o pensamento anterior foi sendo posto em confronto com a realidade, sem que tivesse de ser desde logo abandonado pelas verdades nascidas da experiência vivida e dos ensinamentos da realidade vista e observada.2 Essa mudança pode, então, ser verificada nos mapas renascentistas. Aos poucos eles deixam de ser predominantemente simbólicos e passam a privilegiar uma representação geográfica, o que é enriquecido pelas informações 1 ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. In: BETHENCOURT, F. & CLAUDHURI, K(dir.). História da Expansão Portuguesa. Vol I. Lisboa: Circulo de Leitores, 1998, p. 26. 2 Ver OSÓRIO, João de Castro(org.). Idearium Antologia do Pensamento Português: A Revolução da Experiência. Lisboa: SNI, 1947, p.16. 7 provindas das viagens portuguesas. No entanto, essas mudanças não ocorrem de forma progressiva, mas sim lentamente e por vezes acontecendo retrocessos. As representações do mundo seguindo o ideal medieval, como o exemplo dos mapas tipo T-O3, em que a concepção de mundo é estritamente ligada ao modelo bíblico, vai sendo suplantada pelas características ditas modernas, em que há a preocupação com a correspondência ao “real”. Esse percurso cartográfico ocorre desde o final da Idade Média, onde os relatos sobre viagens longínquas, até os confins da Ásia, como do veneziano Marco Polo, proporcionam à Europa Ocidental os primeiros dados mais seguros sobre áreas praticamente desconhecidas. Entretanto, essas informações confundiam-se com fábulas que misturavam essas experiências com outras provindas da Bíblia ou da literatura clássica. No período soma-se ainda o resgate das idéias de autores clássicos provindas de fontes árabes ou bizantinas. Um importante caso é de Ptolomeu, que é amplamente utilizado como base para construção de inúmeros mapas-múndi no século XV. Sua autoridade muitas vezes entrou em conflito com as novidades trazidas pelos relatos das viagens portuguesas, e, em muitos casos, suas informações se sobrepujaram às provindas das viagens marítimas, levando ao descrédito o conhecimento dos portugueses. 4 Nesse período os cartógrafos eram solicitados a criar um determinado mapamúndi para um monarca, ou quem o pudesse custear. A produção destes objetos tinha um alto custo econômico, o que criava uma relação de dependência do cartógrafo, pois ele deveria criar um mapa segundo as exigências daquele que o contratou. No entanto, mesmo que estivesse criando para seu patrocinador, o seu produto final apresenta uma série de elementos particulares, assim como, da sociedade na qual ele estava inserido. Ou seja, seu produto final estava intimamente ligado com as questões envolvendo o seu contexto próprio. Mesmo no interior de um movimento de valorização da experiência na produção dos mapas-múndi, deve ser observada também essa particularidade referente ao cartógrafo. Dependendo dos objetivos propostos para um determinado mapa ele 3 Para mais informações sobre os mapas em estilo T.O. ver THROWER, Norman J.W. Maps &Civilization: cartography in culture and society. Chicago: The University of Chicago Press,1996, p.42; RANDLES, W. G. L. Da Terra Plana ao Globo Terrestre: Uma rápida mutação epistemológica 14801520. Lisboa: Gradiva, 1980, p. 15 e 16; MARQUES, Alfredo Pinheiro. A Cartografia dos Descobrimentos Portugueses. Lisboa: ELO; CRONE, G. R. Historia de los mapas. México – Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 1956; KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Media. . 2.ed. Londrina: Eduel, São Paulo: Imprensa oficial do Estado de São Paulo, 2005. 4 GOMES, Maria do Carmo Andrade. Velhos Mapas, novas leituras: revisitando a historia da cartografia. São Paulo: GEOUSP, 2004. p. 8 poderia se valer tanto mais da experiência do “real” como das informações da “tradição”. As fontes para essa pesquisa foram seis mapas produzidos ao longo dos séculos XV e XVI. São obras pertencentes a um período de cem anos iniciando no mapa de Fra Mauro (1459) indo até o Planisfério de André Homem (1559). Esses mapas-múndi selecionados estão entre os que sobreviveram, e de alguma maneira são marcantes na história da cartografia renascentista. Busca-se apontá-los e mostrar de forma breve porque são considerados grandes marcos: -Fra Mauro (1459): Mostra o início das explorações portuguesas na costa da África além de incluir os relatos de viajantes como Marco Polo nas representações geográficas; -Henricus Martellus (1489): É considerado um dos primeiros mapas renascentistas. Um marco por ter iniciado a inclusão das descobertas portuguesas e de viajantes como Marco Polo mais a fundo do que Fra Mauro; -Juan de La Cosa (1500): É o primeiro registro cartográfico do Novo Mundo sendo resultado direto da descoberta empreendida por Cristóvão Colombo; -Cantino (1502): Uma referência na cartografia ao se tratar de Grandes Navegações, mostra um continente americano definido mais claramente que no mapa de Juan de La Cosa. O contorno do continente africano é mais próximo ao real nas proporções norte/sul. Por isso, este mapa é considerado o primeiro registro cartográfico “moderno”. -Diogo Ribeiro (1529): É considerado uma das melhores produções cartográficas deste período. Ele inova por colocar os resultados das expedições de Colombo, Caboto, dos irmãos Corte Real, Fernão de Magalhães, entre outros; -André Homem (1559): O planisfério de André Homem mostra um avanço com relação ao contorno dos continentes. Nele já aparecem representações mais fiéis da América, África e Ásia. A partir desta obra os grandes traços da geografia do planeta estavam construídos. A grande questão buscada a partir desses mapas foi analisar como eles dispunham as informações do ofício cartográfico provenientes de duas fontes: dos modelos legados pelo período medieval e pelos autores clássicos, representando a tradição erudita; e as cartas-portulano e mapas produzidos diretamente das grandes navegações, inserindo a experiência. Dessa forma, como o cartógrafo ao produzir seu mapa incluía essas 9 informações? Existia a predominância de uma, ou uma combinação entre elas? E como ela se realizava? Para responder a essa questão foi utilizada uma metodologia de estudo fundamentada nas propostas de análise cartográficas empreendidas por J. Brian Harley. Grande crítico das abordagens tradicionais, afirma que ao se estudar os mapas deve-se estar atento ao contexto político próprio para compreender como o poder opera através do discurso cartográfico, e os efeitos desse poder na sociedade. Sua proposta é estudar os mapas mais como textos do que como imagens da natureza. Pois os mapas representam uma linguagem gráfica, uma construção feita a partir da realidade carregada de intenções e conseqüências que podem ser estudadas nas sociedades da época da produção de um determinado mapa. Igualmente aos livros, eles também são produtos de mentes individuais assim como de valores culturais mais amplos de sociedades específicas. 5 Com isso, essa pesquisa visou um enfoque voltado não apenas às questões técnicas, mas também aos elementos que revelam o contexto social próprio da época em que este mapa encontra-se inserido, observando-o como um espelho da sociedade que o produziu dentro do embate renascentista. É, portanto, sobre essa nova ótica acerca da história da cartografia que essa pesquisa se orienta. No primeiro capítulo desta monografia faz-se uma descrição do contexto das produções cartográficas acessíveis aos cartógrafos renascentistas. Elas foram subdivididas em duas partes. A primeira remete aos mapas-múndi produzidos na Baixa Idade Média, tanto esquemáticos, como os já mencionados T-O, quanto descritivos. Depois, no século XV incluiu-se a influência de Cláudio Ptolomeu, considerado o maior astrônomo da Antiguidade, que deixou vários escritos, entre eles sua Geographia. Essa obra retornou ao Ocidente no século XV e trouxe uma renovação das representações cartográficas ganhando o status de autoridade no período. Esse primeiro grupo pertencente a uma tradição erudita de uma cartografia essencialmente terrestre o que constituiu uma barreira às inovações de ordem prática. A segunda subdivisão refere-se primeiramente, as produções das cartas-portulano, iniciadas no século XIII, provenientes das experiências no mar Mediterrâneo. Em seguida inclui as navegações portuguesas iniciadas após a conquista de Ceuta em 1415. Com elas foram produzidos todo um conjunto de mapas das costas africanas utilizados 5 HARLEY, J. B. La Nueva Naturaleza de los mapas. México: Foundo de Cultura Econômica, 2005, p. 60 e 61. 10 para fins náuticos. Infelizmente esses exemplares cartográficos não sobreviveram devido ao seu desgaste, mas os relatos sobre eles aparecem nas fontes da época. Como é o caso das notas no mapa de Fra Mauro. Toda essa nova produção cartográfica trouxe um conhecimento sobre o continente africano, em um primeiro momento, e a América posteriormente, influenciando decisivamente as novas produções cartográficas a partir da segunda metade do século XV. Desta forma, as cartas-portulano mediterrânicas e atlânticas nasceram da experiência marítima fruto de fins fundamentalmente práticos. Em um segundo capítulo procurou-se descrever o contexto do autor e da sociedade. Aqui se estabeleceram as especificidades relacionadas com o autor, diferentemente do legado provindo de outros mapas. Foram investigadas as possíveis influências dentro da arte de cartografar desses indivíduos. Isso incluiu os responsáveis por encomendar a obra e, portanto, as suas expectativas para com o produto final, as disponibilidades técnicas para tal produção, como o caso dos mapas manuscritos e a imprensa, que marcou uma mudança profunda na divulgação dos mapas-múndi principalmente no século XVI. O estudo de cartografia iniciou-se no século XIX. O primeiro grande marco para os estudos realizados nos mapas remontam esse século com o crescimento dos acervos cartográficos das nações, o desenvolvimento de um mercado de antiquário nos Estados Unidos e Europa, e a partir de 1850, a institucionalização da Geografia enquanto ciência. Neste momento, a história da cartografia era apenas um campo auxiliar para o estudo da Geografia. Era entendida como a história dos descobrimentos e exploração da Terra. Sua função era tornar os documentos cartográficos acessíveis a outras áreas do conhecimento. Entretanto, a partir da década de 1930, três fatores propiciaram sua independência: o início das publicações das histórias gerais da cartografia; a criação de uma revista voltada para a divulgação de estudos feitos sobre os mapas, a Imago Mundi; e o início da Cartografia como disciplina independente da Geografia. Essa emancipação acadêmica inicialmente foi efêmera mais iniciou uma série de questionamentos sobre o estudo dos mapas. O resultado foi a aplicação de novas bases filosóficas e teóricas, alem da utilização de novas técnicas no estudo dos mapas antigos. 6 A independência da cartografia trouxe, com isso, o início de interpretações dos mapas enquanto meios de comunicação. Essa nova perspectiva suscitou uma série de debates conceituais, abordagens dos mapas como artefatos e meios de comunicação, 6 GOMES, Maria do Carmo Andrade. Velhos mapas, novas leituras: revisitando a historia da cartografia. São Paulo: GEOSP, 2004. p. 68. 11 alem da ênfase dada aos processos técnicos de sua produção. Os historiadores da cartografia passaram, então, a focar mais a natureza de artefato do mapa, do que o seu conteúdo informativo. É importante ressaltar que todo esse crescimento da disciplina com essa nova perspectiva foi realizado por particulares, enquanto que a academia estava à margem dessas discussões. Os particulares criaram sociedades nacionais e internacionais promovendo encontros, além do estabelecimento da Internacional Cartographic Association Commition for the History of Cartography. Outra grande contribuição foi a produção crescente de artigos que discutiam questões metodológicas e promoviam uma avaliação e crítica dos objetivos da Historia da Cartografia.7 Essa nova abordagem, que também é presente em Harley, feita pela Historia da Cartografia é sintetizada na frase de Christian Jacob: “(...) o mapa tornou-se um objeto opaco, que retém o olhar sobre ele mesmo. O mapa entrou na era da suspeita. Ele perdeu sua inocência. Não se pode mais, atualmente, considerar a história da cartografia sem uma dimensão antropológica atenta às especificidades dos contextos culturais, e teórica, que reflita sobre a sua natureza de objeto e os seus poderes intelectuais e imaginários.”8 Atualmente os estudos focados nessas novas abordagens da história da cartografia são poucos. O país foi quase intocado pelos movimentos de renovação teórica dos últimos trinta anos da história da cartografia. Porém, existem as pesquisas empreendidas por Enali De Biage, formada em geografia, que se utiliza das proposições empregadas por B. Harley em sua pesquisa concebendo os mapas como construções sociais enfatizando a questão discursiva dos mapas. Em sua tese intitulada Cartographie et les représentat du territoire au Brésil a autora faz um panorama das representações cartográficas do Brasil desde o período colonial até o século XX.9 Essa iniciativa é acompanhada pelos estudos relacionados a toponímia por Íris Kantor, e os mapas jesuíticos produzidos ao longo do século XVII no estudo de Artur Barcelos. Acrescentase ainda, as pesquisas de Maria de Fátima Costa que estuda como criou-se uma visão mítica, a partir da cartografia do lago indígena de Xarayes. Outra importância desta pesquisa foi mostrar essa forma alternativa de se estudar os mapas. Eles podem ser trabalhados como uma fonte principal, não necessariamente com um papel secundário, meramente de apoio. Isso busca contrariar as abordagens tradicionais ligadas a cartografia positivista preocupada unicamente com os aspectos técnicos. Esse tratamento destinado aos mapas vem da tendência dos historiadores 7 Ibid. Ibid, p. 1. 9 Ibid, p. 75. 8 12 tradicionais da cartografia considerar a historia dos mapas de uma forma progressiva. Consequentemente passam a delegar aos mapas antigos, ou “não exatos”, um papel descartável. Entretanto, através da experiência mostrada por essa pesquisa, aplicando-se um método diferente, busca-se suscitar inúmeras pesquisas atentando-se a estudos alternativos aos tradicionais. Isso remete a outro ponto: essa pesquisa foi uma forma de desmistificação do tema. A história da cartografia é comumente interpretada com certos preconceitos. O principal, como mencionado, remete ao entendimento evolucionista das representações cartográficas. Os mapas teriam uma evolução progressiva, saindo da total falta de precisão dos mapas medievais e encontrando a representação racional e ideal da Terra a partir do Iluminismo. Esta pesquisa busca questionar essa visão e apresentar uma interpretação atenta às especificidades históricas, desmistificando algumas idéias, devolvendo aos mapas antigos a sua importância enquanto parte de seu contexto específico. Ao se trabalhar com mapas inevitavelmente ocorrerem relações entre diversas disciplinas como a História, a Cartografia e a Geografia. Portanto, este estudo torna-se um diálogo entre campos de saber diferentes contribuindo para a importante prática da interdisciplinaridade. Atualmente existe um consenso de que esta relação é algo importante e fundamental para o intercâmbio sadio de experiências quebrando os muros invisíveis criados pelos homens ao separarem as disciplinas. É importante lembrar que este diálogo aqui buscado deve ocorrer sem a perda no foco da pesquisa. Sendo esta uma pesquisa histórica, ela não pode perder o seu referencial para que não comprometa a experiência interdisciplinar. E finalmente, ao se estudar os mapas pertencentes ao século XV e XVI contribuise muito com a elucidação de um período importante da história ocidental. Os mapas são um dos caminhos mais significativos percebidos ao se trabalhar a mudança de uma concepção de mundo medieval para uma concepção de mundo moderna. Eles são uma representação gráfica de todo um conjunto de pensamento e crenças de uma determinada época através de um autor específico. Analisar essa série cartográfica do século XV e XVI é uma forma de acompanhar essas mudanças ou permanência no pensamento; compreendendo que dentro de um mesmo período podem existir olhares diversos. Desta maneira, ao se estudar os mapas do início da modernidade faz-se a importante contribuição de mostrar como os elementos ligados ao encontro de duas concepções de mundo estão presentes nos mapas. Além de se estar atento a 13 especificidade do olhar do indivíduo. Assim, com esse estudo mostra-se como o peso dos autores clássicos e o saber medieval relacionavam-se com as novas fontes de informações geográficas, as descobertas ibéricas. 14 1 – A HERANÇA CARTOGRÁFICA A etapa inicial na análise dos seis mapas dessa pesquisa buscou identificar de que forma ocorreram as influências provindas de outros mapas. Elas estavam relacionadas diretamente ao ofício do cartógrafo, remetendo desta maneira, à história das produções cartográficas. Ou seja, o legado provindo das tradições de se elaborar um mapa, todo o repertório mental e social implicado no momento da produção. Assim, resgatou-se toda a forma de composição dos mapas-múndi medievais. Além das influências de outras obras cartográficas produzidas ao longo do século XV: pertencentes a Geographia de Ptolomeu e provindas das grandes navegações empreendidas pelos portugueses e espanhóis. Dessa forma, procurou-se constatar de que maneira essas produções cartográficas influenciaram na construção dos mapas-múndi de Fra Mauro (1459), Henricus Martellus (1489), Juan de La Cosa (1500), Cantino (1502), Diogo Ribeiro (1529) e André Homem (1559), as fontes dessa pesquisa. Essa forma de identificação das influências provém do reconhecimento da relação direta entre os mapas contemporâneos e aqueles que se tornaram uma tradição. Pois a interligação entre um e o outro se deve a importância representada pelo legado histórico. Pois, aplicar um ofício implica utilizar-se de algo que já foi feito anteriormente para se apreender como fazer determinado produto. Isso se aplica aos mapas com o uso de uma mesma simbologia. Entretanto, ela vai ter particularidades como signos dispostos de maneira diferente representando inovações ou preferência específica do autor. Dentro dessa escolha em prosseguir com a convenção feita ao longo de muitos anos e a inovação a partir de outras fontes encontra-se o confronto entre a tradição erudita e a experiência náutica. Segundo J. Brian Harley, um mapa sempre está relacionado inevitavelmente com outro. Isso se deve à contínua influência exercida pelo ofício cartográfico que é passado de geração a geração. Com isso, é possível a identificação de suas relações simbólicas através da comparação de um mapa ao lado de outros cronologicamente anteriores traçando, desta forma, uma genealogia das suas influências e assimilações. Este método é chamado por Harley de cartografia comparativa10, que parte então da idéia de que “nenhum mapa está hermeticamente cercado em si mesmo, nem pode responder a todas 10 Ver: HARLEY, J. B. La Nueva Naturaleza de los mapas. México: Fondo de Cultura Económica, 2005, p. 69. 15 as perguntas que desperta.”11. Somente através da análise das relações entre as produções cartográficas é que se podem desvendar as questões internas presentes na construção de um mapa. Ou seja, os símbolos estabelecidos podem apenas ser compreendidos dentro de um paralelismo com os exemplares produzidos anteriormente. Para realizar o estudo comparativo de mapas, Harley propõe uma divisão em três etapas. Cada uma delas vai justamente captar os níveis das relações cartográficas. A primeira tem o objetivo se aperceber das características topográficas lineares nos mapas, como de costas, rede de rios ou um sistema hidrográfico. Essa técnica, de acordo com Harley, é muito utilizada por estudiosos da área da cartografia.12 O segundo aspecto apontado refere-se ao estudo de nomes de lugares ou toponímia. Uma forma de construir genealogias e perfis de origem podendo ser útil para estabelecer a identificação temporal e autoral de mapas que antes se encontravam dispersos. E o terceiro método da cartografia comparativa, a cartobibliografia, é a que possuí a maior quantidade de publicações. Seu objetivo é reunir uma série de mapas impressos sobre a mesma superfície destinando-se ao estudo das técnicas de impressão aplicada aos processos que utilizam as placas de cobre, a litografia e outras formas de impressão de mapas. 13 Os métodos sugeridos por Harley são propostos para serem trabalhados com todo o tipo de fontes cartográficas. Isso inclui as produções realizadas desde os tempos remotos, até aqueles produzidos no século XX através da cartografia digital. Isso possibilita uma abertura enorme nas possibilidades de estudos. Através do método da cartografia comparativa, essa pesquisa procura estabelecer as características lineares nos mapas disponíveis para os cartógrafos estudados e como elas são, então, herdadas. Uma das especificidades deste recorte temporal, final do período denominado medieval e início da dita modernidade, são as características provindas das representações de origem religiosa ou mitológica clássica que não corresponderiam ao “real” topográfico, mas que acabavam figuradas nas representações cartográficas. Como exemplo, teve-se a localização em alguns mapas do paraíso terreno, de monstros marinhos, de cidades bíblicas entre outros. 1.1 - Os Mapas-Múndi Medievais 11 HARLEY, J. B., Op. Cit. Ibid. 13 Ibid, p. 70 e 71. 12 16 Ao se analisar os mapas antigos é importante estar atento a considerações temporais importantes. Trabalhar com mapas anteriores ao Iluminismo exige uma série de cuidados por parte dos estudiosos, como nos chama a atenção Maria Fernanda Alegria. De acordo com a autora, os mapas do final da Idade Média e início do Renascimento14 não possuem nenhuma relação direta com os atuais. Ambos diferem em vários âmbitos: nas formas, no conteúdo, nas dimensões e na abundância de produções.15 Essa constatação é extremamente importante, pois a partir de visões positivistas não atentas à historicidade, produziram-se olhares reducionistas e evolucionistas nos estudos do período dito “renascentista”.16 Para evitar esses descuidos fez-se necessária uma análise do termo mapa-múndi. Ele foi utilizado ao longo dos séculos, porém seu significado correspondente se alterou com o passar do tempo. De acordo com Denis Woodward, a palavra latina mappamundi origina-se de mapa (toalha) e mundus (mundo) levando a entender que seu significado seria de representação gráfica de toda a Terra, como vêm sendo empregado atualmente. No entanto, na Idade Média, o termo foi utilizado com outro sentido. De acordo com Maria Fernanda Alegria, mapa-múndi foi usado também transmitindo a idéia de “pintura do mundo”, não correspondendo a uma representação que utilizaria as regras científicas da cartografia pós-Iluminismo. “A figuração poderia não contemplar toda a Terra, ou então abarcar a Terra numa perspectiva global, a Terra no Universo.” 17 Segundo a autora, hoje se conhecem cerca de mil e cem mapas-múndi medievais incluindo os do século XV. Aproximadamente novecentos encontram-se em pequenas dimensões espalhados em livros manuscritos. Aí se inclui casos de mapas de tamanho inferior a 4 cm como na representação em estilo T-O de Salústio feito no século XII. Os mapas-múndi presentes nesses livros possuem a mesma forma das letras encontradas nos textos escritos, o que confirma que na Idade Média produzir um mapa-múndi não era função específica dos cartógrafos. No caso dos exemplares soltos, eles podiam 14 Esse termo na verdade é inexato como afirma Delemeau, bem como Idade Média que serviram muito para criar grandes preconceitos históricos. Ver: DELEMEAU, Jean. A civilização do Renascimento. Lisboa: Editorial Estampa, 1983, p.19. 15 Ver ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. In: BETHENCOURT, F. & CLAUDHURI, K(dir.). História da Expansão Portuguesa. Vol I. Lisboa: Circulo de Leitores, 1998, p. 27 16 Para mais detalhes sobre o início dos estudos cartográficos positivistas, no final do século XVIII e início do XIX, ver CATTANEO, Angelo. “L’Atlas del Visconte de Santarém: Uma storia culturale europea tra erudizione, orientalismo e colonialismo” In: GARCIA, João Carlos (coord.). A História da cartografia na obra do 2º Visconde de Santarém: exposição cartobibliográfica. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1957. 17 ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”,Op. Cit., p. 28. Essa discussão sobre o termo mapa-múndi encontra-se também expressa em RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros. “O sentido da história: tempo e espaço na cartografia medieval (séculos XII-XIII)”. In: Revista Tempo, Rio de Janeiro, nº14, pp. 11-26. 17 alcançar grandes dimensões, como cerca de 3,5 m no mapa de Ebstorf do século XIII. Além da dimensão, os objetivos dos mapas medievais também contrastam com os atuais. O rigor geométrico não fazia parte das representações cartográficas, ou seja, não havia necessariamente uma correspondência espacial do local figurado. O simbolismo nas representações gráficas, nas formas, tinha tanta ou mais importância do que a localização de fenômenos e suas relações no espaço. Nos mapas-múndi medievais há figurações, com funções alegóricas e abstratas, que se aliam às abundantes informações escritas. O simbolismo não é apenas expresso pela palavra, mas também por formas gráficas. Esses exemplos mostram como os mapas-múndi medievais tinham afinidades com as crônicas medievais, pois também registravam acontecimentos distantes no tempo através de elementos gráficos com uma função simbólica. A influência de fontes bíblicas e clássicas está presente, mas encontra-se também a padronização de convenções gráficas, tanto na forma principal, como em sua distribuição interna, além do padrão de cores para marcar especificidades: o mar Vermelho frequentemente representado com a cor vermelha; os outros oceanos e mares com o azul ou verde; os rios com o azul, ou o azul-esverdeado, o verde ou o cinzento; o relevo com o castanho ou verde, mais dificilmente o vermelho.18 Complementando os apontamentos de Alegria, Kimble considera os mapas medievais responsáveis por refletirem as ideias comuns da época, incluindo as teorias dos gregos, as mitologias pagãs e os sistemas de cosmografia cristã. Para ele os mapas não representavam o conhecimento geográfico da Idade Média, mas sim a concepção de mundo da época. Essa forma de expressão era tão importante que as imagens criavam muito mais eficazmente uma imediata compreensão do que a palavra escrita. Até as ideias geográficas dos estudantes medievais foram fortemente influenciadas por esses mapas. 19 Nos mapas da Idade Média ocorreria o que Kimble chama de “amor ao ornamental”. Os livros manuscritos que eles acompanham referiam-se à história e à cosmografia ou em outros casos eram feitos por encomenda, como o caso do atlas 18 Ver ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”,Op. Cit., p. 28. Consultar também RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros. “O sentido da história: tempo e espaço na cartografia medieval (séculos XII-XIII)”, Op. Cit, p.14. 19 Ver: KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Média. 2.ed. Londrina (PR): Eduel, São Paulo: Imprensa oficial do Estado de São Paulo, 2005, p.219. A constatação da influência dos autores clássicos na construção dos mapas medievais pode ser observada ainda em THROWER, Norman J.W. Maps &Civilization: cartography in culture and society. Chicago: The University of Chicago Press, 1996, p.42. 18 catalão de 1375 e o mapa-múndi Estense. Os mapas pequenos serviam como ornamento das capitulares de manuscritos com iluminuras. Outros mapas possuíam um caráter maior de obra de arte e não tanto para servirem de informação, pois representavam uma estrutura maleável na qual objetos de interesse popular, muito mais do que científico, poderiam ser desenhados. É como se ele fosse uma forma de expressar o sentido do maravilhoso e no mapa estivessem contidas todas as maravilhas provindas da literatura. Desta forma, um mapa-múndi simbólico do período medieval deveria ser visto como um espécie de romance ilustrado. Não se podendo negar o valor prático que buscavam fornecer, pois para além da mística, haveria uma imagem atualizada do mundo que busca compreendê-lo no todo. Como exemplo têm-se a procura de uma solução para o enigma do continente africano, que não era conhecido totalmente.20. O caráter religioso sempre se fazia presente nos mapas.21 Alguns eram executados para mostrar a extensão da fé cristã sobre a Terra. Assim, esses mapas garantiriam primeiramente a proeminência dos aspectos bíblicos sobre os conhecimentos topográficos e, segundo, a sobrevivência de certas tradições na época em que o conhecimento recente estava influenciando enormemente pelas cartas marítimas gerando um encaminhamento em direção ao real topográfico. Como exemplo tem-se a persistência na representação geográfica do Paraíso Terreno nos mapas-múndi, mesmo após a importante influência das cartas marítimas. O destaque dado à Terra Santa era dado pela proporção de aproximadamente 1/3 do continente asiático, como mostrava o mapa dos Salmos.22 Para Kimble, os motivos para que os mapas-múndi fossem afastados da representação fiel da realidade geográfica seria de que as amarras da tradição (tanto clássica quanto eclesiástica) sobre a mentalidade medieval fazia com que os cartógrafos usassem símbolos esquemáticos e imaginativos. A tradição clássica era dada por meio de vários autores, entre eles Homero e Anaximandro com uma ideia de superfície terrestre plana sem projeções, um disco cercado pelo “rio oceano”. A influência clássica também se dava por criaturas da mitologia grega e romana popularizada por Hesíodo, Homero e Plínio e outros autores da Antiguidade. Essa influência encontrava-se também na nomenclatura dos mapas. Os lugares famosos do mundo antigo reviviam nos mapas-múndi. Tróia e Cartago rivalizavam em importância com Roma e Jerusalém. Nos 20 Ver: KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Média. Op. Cit, p222. Para mais informações sobre o caráter religioso presente nos mapas-múndi medievais ver BLACK, Jeremy. Mapas e História: construindo imagens do passado. Bauru, São Paulo: Edusc, 2005, p. 20 e 21. 22 Ver: KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Média. Op. Cit, p.228. 21 19 mapas-múndi do período medieval não havia, portanto, uma preocupação com a topografia real. Isso foi encarado por estudiosos positivistas do século XIX como uma “visão errônea do mundo”. Podendo ser identificado através de um ditado proferido pelo 2º Visconde de Santarém - um importante estudioso de cartografia do século XIX considerado um dos fundadores dessa área do saber, e, o fundador do termo “cartografia23 - que dizia que os mapas medievais seriam a prole bárbara dos exemplares da Antiguidade. 24 1.2 – Os Mapas-Múndi Esquemáticos e Zonais Dentro de toda essa produção cartográfica anterior ao século XV no ocidente europeu grande parte encontrava-se dentro do estilo simbólico utilizando ou não de esquemas pré-determinados. Essa formas de produção ainda influenciavam toda a produção do Quinhentos e ainda influenciaram as produções posteriores. Existiram vários estudos buscando uma maneira de classificar esses tipos de representações cartográficas, aqui se adotou os esquemas classificatórios propostos por D. Woodward, que dividiu os mapas medievais em quatro grandes grupos.25 O primeiro grupo de mapas medievais seriam os mapas tripartidos esquemáticos. Esse grupo possui a maior quantidade de produções em relação aos outros até o século XV. Uma das suas origens encontrava-se no tipo esquemático proposto por Isidoro de Sevilha (c.560-636) - cujo original não sobreviveu – sendo um dos mais divulgados possuindo mais de seiscentos exemplares.26 Os cartógrafos da época confiavam na autoridade deste autor clássico que influiu na representação do Paraíso como dizia: “limitado por todos os lados por um muro alto de chamas... De maneira que o fogo chega até o céu.”27 Nesse esquema conhecido como “T-O” o oceano rodeava, como um grande “O” circular, os três continentes conhecidos, Europa, Ásia e África, que se 23 GARCIA, João Carlos. “Mapas e Atlas do Visconde de Santarém: A prioridade no descobrimento da África Ocidental” In: GARCIA, João Carlos (coord.). A História da cartografia na obra do 2º Visconde de Santarém: exposição cartobibliográfica. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1957, p.7. 24 Ver: KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Média. Op. Cit, p. 227.. 25 WOODWARD apud ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. Op. cit., p. 29. 26 Ver: ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. Op. cit., p. 29. 27 Citado por KIMBLE, G. H.T. op. cit., p. 225. 20 encontravam separados por duas linhas aquáticas referentes ao mar Mediterrâneo e os rios Don e Nilo, que possuiam o formato da letra “T”. 28 O objetivo desses mapas não era ser uma representação rigorosa da superfície do Planeta, mas corresponder a uma interpretação provinda das Sagradas Escrituras. O teor religioso, como mencionado, estava sempre presente, com o maior exemplo sendo a localização da cidade de Jerusalém29 na posição central. Isso envolvia a importância dessa cidade frequentemente dominada no século XIV. Essa centralidade era confirmada por inúmeras teorias como nas palavras de Ezequiel: “Eu a coloquei no meio das nações e dos países que estão em torno dela.” 30 Além de Jerusalém, as histórias do Velho Testamento eram uma constante nos mapas medievais, como a Arca de Noé, a punição da esposa de Lot, a destruição de Sodoma e Gomorra, a passagem pelo Egito e pelo Êxodo. Entretanto, a maior lenda referia-se as terras de Gog e Magog onde se acreditava que Alexandre, o Grande, teria feito uma barreira em torno do Mar do Norte. Desse lugar, o povo que o habitava marcharia “no final dos tempos” trazendo morte e destruição para toda a cristandade.31 Comprovando que a fronteira existente entre a realidade vivida e a aprendida com os autores clássicos foi indefinida até o século XVI, e mesmo posteriormente. Mostrando como os mapas-múndi medievais não tinham uma preocupação em representar apenas o tempo contemporâneo, mas sim uma confluência de fatos e passagens consagradas de épocas distintas. 32 O mapa dos Salmos é um exemplo desse grupo de mapas. Nele aparece claramente a influência religiosa, com o Cristo representado no alto acompanhado por dois anjos.33 O “T” referente ao mediterrâneo, o Don e o Nilo encontra-se mais ao sul, e ainda existe o destaque feito ao Mar Vermelho mais ao nordeste. No canto direito 28 Para mais informações sobre os mapas em estilo T.O. ver THROWER, Norman J.W. Maps &Civilization: cartography in culture and society.Op. Cit, p.42; RANDLES, W. G. L. Da Terra Plana ao Globo Terrestre: Uma rápida mutação epistemológica 1480-1520. Lisboa: Gradiva, 1980, p. 15 e 16; MARQUES, Alfredo Pinheiro. A Cartografia dos Descobrimentos Portugueses. Lisboa: ELO, 1994; CRONE, G. R. Historia de los mapas. México – Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 1956; KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Media. op. Cit. 29 Para mais detalhes sobre a posição da cidade de Jerusalém na Idade Média ver: DUBY, Georges. Europa em la Edad Media. Barcelona: Paidos, (?), p.15. 30 Citado por KIMBLE, G. H.T. op. cit., p. 227. 31 Ibid,.p..227. 32 Ver RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros. “O sentido da história: tempo e espaço na cartografia medieval (séculos XII-XIII)”, Op. Cit, p.20 e 21. 33 Essa posição de Cristo no mapa é sintomático da relação do religioso com o espaço físico. No século XIII estava em alta um pensamento atribuído a S. Dinis que resumiria toda a mística do pensamento cristão da época. De acordo com Duby: “Deus é luz. Desta luz inicial, incriada e criadora, participa cada criatura. Cada criatura recebe e transmite a iluminação divina segundo sua capacidade, isto é, segundo o nível em que o pensamento de Deus hierarquicamente a situou.” Trecho retirado de DUBY, Georges. O Tempo das Catedrais. Arte e a Sociedade (980-1420). São Paulo: Editorial Estampa, 1978, p. 105. 21 encontram-se figuras humanas deformadas características das representações iconográficas da Idade Média. Figura 1 - Mapa do Salmo (século XIII). No segundo grupo encontram-se os mapas tripartidos não esquemáticos. Eles mantinham os três continentes habitados dos mapas T-O esquemáticos, mas eram desenhados com menos rigidez. Este grupo incluiu vários tipos, mas os mais conhecidos eram os que se baseavam em Paulo Orosio34 e os que receberam a sua influência e de Isidoro de Sevilha. Um exemplo deste grupo é o mapa de Hereford (c.1290). Nele Jerusalém não se encontrava no centro, e o Paraíso passou a ser localizado no Extremo Oriente. Motivo ocorrido após as viagens de Odorico de Pordenone e Marco Polo que demonstraram estar ele localizado no continente asiático. A representação desse local sagrado sobreviveu após a Idade Média aparecendo em representações cartográficas até o século XVII. Sendo um importante exemplo da inclusão de locais bíblicos dentro de uma 34 Ver: ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. Op. cit., p. 29. 22 representação plana da Terra, ou seja, os locais espirituais provindos da leitura da Bíblia eram figurados sem que isso causasse nenhum tipo de “erro” ou delito cartográfico. Muito pelo contrário, era parte das tradições em voga no período. 35 Figura 2 – Mapa de Hereford c.1280 Outra espécie de mapas são os mapas zonais. Eles se baseavam no mapa de Macróbio (c.395-436) que não se filiava nos ensinamentos da Igreja cristã, mas na filosofia tradicional greco-romana. Seu esquema foi retirado de um comentário de Macróbio a um estudo de Cícero (51 a.C.) Commentarius ex Cieronis in Somnium Scipionis, datado de c. 430 d. C. Nessa dissertação, Macróbio expôs as ideias existentes sobre o sistema-mundo, ilustrando as suas observações com um diagrama. O autor retomou o esquema quadripartidário do mundo de Crates de Mallos (c.168 a.C.) e afirmava que o Oceano circundava o globo correndo em duas direções contrárias, partindo de um rio oceano principal, situado na zona tórrida, Alveus Oceani, que corria por debaixo da superfície do mar. A leste e a oeste desta zona equatorial central o Oceano dividia-se em dois braços, que fluíam para norte e para o sul separando as regiões austrais das setentrionais. Das duas zonas temperadas, só a setentrional seria habitada e a zona austral seria desconhecida, desconhecendo qual seria a espécie de 35 KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Media. op. cit., p.225. Ver ainda THROWER, Norman J.W. Maps &Civilization: cartography in culture and society.Op. Cit, p.45. 23 homens que a habitaria, chamados de antípodas36. Esse falta de conhecimento seria devido a barreira representada pela zona tórrida, que impediria a comunicação com eles. Para além das duas zonas temperadas e da zona tórrida central, marcadas pelos paralelos, haveria ainda duas zonas polares. Hoje se conhece mais de uma centena de manuscritos desta obra anteriores a 1500.37 Essa concepção planetária zonal ainda mostrava-se presente no início do século XVI em Duarte Pacheco Pereira, na sua obra De Situs Orbi, como testemunha o estrato a seguir: “e em havendo mais matéria afirmaram que a terra neste meio é posta com o centro e de toda a parte é cingida pelo mar e ela mesma em duas partes, que hemisférios são chamados, desde oriente dividida até ocidente volvendo em oriente por cinco zonas é repartida.” 38 Figura 3 – A concepção de mundo de Macróbio, c. 1485. 36 Vários autores defendiam a existência dos antípodas incluindo Crates de Mallos, e, posteriormente, Pomponius Mela e Macróbio, herdeiros da tradição helênica. Ver: DELEMEAU, Jean. A civilização do Renascimento. Op. Cit., p.50. 37 Ver: ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. Op. cit., p. 29. e RANDLES, W. G. L. Da Terra Plana ao Globi Terrestre: Uma rápida mutação epistemológica 1480-1520, Op. Cit, p. 15 e 16. 38 PEREIRA, Duarte Pacheco. Esmeraldo De Situ Orbis, Lisboa: Fundação Calouste Goulbenkian, 1991, p. 435. 24 O último grupo de mapas é dos mapas-múndi quadripartidários. Eles eram baseados na produção do Beato De Liébana (730-798), um monge beneditino que produziu seu esquema cartográfico de representação da Terra quando vivia no Mosteiro de Santo Toribio de Liébana, perto de Santander. O esquema encontrava-se presente em sua obra Commentaria in Apocalipsin, de 776, onde o Beato de Liébana parece ter elaborado dois tipos de mapas, de que o mais conhecido apresentava forma oval. A novidade é a figuração de um quarto continente, que o monge considerava desabitado pelo excessivo calor. Uma cópia do Apocalipsin, datada de 1189, esteve no mosteiro de Lorvão e guarda-se agora na Torre do Tombo, em Lisboa. Neste exemplar reproduziu-se uma parte do mapa-múndi oval do Beato em que se localizava a leste o Paraíso Terreno numa vinheta quadrada, cordilheiras com forma dentada, rios bem assinalados e peixes. Em alguns manuscritos nasciam no Paraíso quatro rios: Nilo, Indo, Tigre e Eufrates. Este mapa pode ser considerado uma reinterpretação do esquema proposto por Macróbio.39 Esses grupos de mapas simbólicos do período medieval mostravam tentativas para uma compreensão cosmográfica universal do mundo religioso em que se vivia, assim, pouco interessava aos cosmógrafos as representações de caráter realista. Preocupavamse muito mais em incluir as fontes tradicionais da Roma antiga, como Plínio e o Itinerário de Antonio Pio, com Macróbio e Isidoro, do que colocar somente as realidades topográficas. Nesse momento buscou-se perceber de que forma aparecem nas fontes dessa pesquisa as características das produções cartográficas simbólicas medievais; como esses mapas do século XV e XVI conservavam as características herdadas por séculos no ocidente europeu. No mapa de Fra Mauro, produzido no ano 1459, existem inúmeras referências identificáveis diretamente. Primeiramente, na parte exterior ao mapa aparecem várias características herdadas dos mapas-múndi medievais. No canto superior esquerdo encontra-se descrita a configuração cosmográfica universal dividida segundo as esferas que se acreditavam existir na época, fruto de uma combinação de ideias de Aristóteles e de Ptolomeu. Partindo do centro para o exterior encontram-se a Terra, depois o Fogo, em seguida a Lua, Mercúrio, Vênus, e o Sol. Depois ainda estão presentes outros planetas e por fim há o Scielo. Esse plano universal descendente dos clássicos 39 Ver ALBUQUERQUE, Luís (dir.). Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses v. I. Lisboa: Caminho, 1994, p. 205. 25 encontrava uma ligação com o ideal geocêntrico típico do pensamento cristão. A hierarquização celeste em Fra Mauro é uma herança da solução medieval de conciliar a concepção bíblica de uma terra plana e a concepção grega de terra esférica. Assim, ao colocar a representação esférica no exterior do mapa, o cartógrafo se remete a ambas as tradições, sem negar nenhuma delas. 40 Figura 4 – Cosmografia universal em Fra Mauro No canto inferior esquerdo o Paraíso Terreno é figurado encontrando-se protegido com muros altos e um rio que corre em volta. No seu interior há um personagem idoso associando a imagem ideal de Deus juntamente a dois homens nus, certamente Adão e Eva. É uma referência direta à passagem bíblica da expulsão do Paraíso. 40 Um estudo sobre esse importante embate encontra-se em RANDLES, W. G. L. Da Terra Plana ao Globi Terrestre: Uma rápida mutação epistemológica 1480-1520, Op. Cit. 26 Figura 5 – detalhe do mapa-múndi de Fra Mauro Voltando-se ao interior do mapa, a constata-se inicialmente que ele guarda a orientação da Terra com a Europa no sul e a África ao norte, uma herança atribuída aos muçulmanos. Existe também uma divisão em quatro pontos cardeais principais e quatro secundários (norte, nordeste, leste, sudeste, sul, sudoeste, oeste e noroeste). O rigor geométrico é usado minimamente para a localização de cada um desses pontos, indicados com uma estrela amarela envolta em um círculo de mesma cor (figura 7). Não existindo, assim, nenhuma linha traçada, apenas essas localizações. Na convergência desses pontos encontra-se a posição central do mapa, entretanto, a cidade de Jerusalém que é marcada com a estrela referente a posição central (figura 6). Fra Mauro encontra-se, dessa forma, entre o rigor geométrico e a primazia do religioso, uma forte característica do homem no século XV. O autor ainda se justificativa pela posição de Jerusalém que pode ser lida na legenda próxima a essa cidade: “Na verdade Jerusalém é latitudinalmente o centro do mundo habitado, se bem [que] longitudinalmente está um pouco a oeste; mas como a parte ocidental está mais densamente 27 povoada a causa da Europa, Jerusalém está também longitudinalmente no centro, si se olha no espaço vazio sem a densidade populacional.”41 Figura 6 e 7 - Detalhe do mapa-múndi de Fra Mauro (esq.) e a diferença do ponto central e o referido por Fra Mauro em Jerusalém (dir.). Já no mapa de Henricus Martellus (c. 1489), e no mapa de Cantino (1502) as referências aos mapas-múndi medievais se remetem à ornamentação utilizada para a construção dos mesmos, incluindo desde a utilização dos padrões de cores, até ao uso excessivo de elementos baseados não no conhecimento empírico, mas em suposições teóricas. Em Henricus Martellus a ornamentação simbólica pode ser encontrada no preenchimento que o autor realiza do interior dos continentes desconhecidos. No continente asiático existe uma excessiva representação de cadeias montanhosas e rios pelo interior. O contorno asiático provém das informações de autores como Ptolomeu e viajantes como Marco Pólo, mas a complementação fantasiosa realizada pelo autor - a hidrografia, cadeia montanhosa, etc - remete à tradição dos mapas simbólicos medievais. Nos locais onde o conhecimento prático não chegou, a complementação cartográfica se deu por um preenchimento pela suposição. A obra de Martellus apesar de apresentar traços do estilo simbólico cartográfico liga-se mais fortemente a uma outra tradição resgatada no século XV, abordada a seguir, a tradição ptolomaica. O mapa de Cantino também traz elementos da tradição simbólica dos exemplares medievais. Assim como Fra Mauro, a cidade de Jerusalém ganha destaque com a representação de um castelo imenso remetendo a importância dessa localidade para a 41 Citado por CRONE, G. R. Historia de los Mapas. México-Buenos Aires: Foundo de Cultura Econômica, 1956. p. 60 e 61. 28 cristandade. Muitas legendas principais continuam a serem utilizadas como o caso do mar Vermelho representado na cor vermelha, além da ornamentação com símbolos sendo constantemente utilizada para o preenchimento dos espaços desconhecidos. Encontram-se figurados grandes castelos, bandeiras com a heráldica dos países europeus, as araras do novo mundo. Portanto, mesmo com uma notável diminuição de símbolos, o mapa não se afasta dessas representações porque ainda existem figurações baseadas em animais exóticos ou importância bíblica. Comprovada por uma das mais evidentes representações simbólicas no mapa, a “Serra Leoa”, aparecendo justamente no formato de uma leoa, e a fortaleza de São Jorge da Mina (figura 9). Figura 8 e 9 – Parte ocidental do mapa de Cantino (esq.) e detalhe de Serra Leoa em Cantino (dir.) Juan de La Cosa em seu mapa de 1500, conhecido como o primeiro mapa a figurar o continente americano, igualmente encontra-se ligado às influências simbólicas. A primeira delas refere-se à orientação das terras no mapa, com o norte sendo ocupado pelas terras recém descobertas. Filiando-se, assim, à tradição dos mapas-múndi medievais por não representar ainda a convenção de orientação espacial que figurava a Europa ao norte que lentamente iria se impor. 29 Figura 10 – O Mapa de Juan de La Cosa O componente religioso encontra-se muito mais fortemente figurado que nos exemplares analisados anteriormente. No extremo norte há a presença de são Cristóvão, símbolo cristão (associado ao próprio Cristóvão Colombo) que seria responsável por guiar os europeus para o Novo Mundo espalhando a fé às populações autóctones. 30 Estão incluídas também passagens bíblicas como indica a caracterização dos três reis magos segurando em suas mãos os presentes a Jesus, localizados na península arábica. Figura 11 – Detalhe da península arábica com os três reis magos em Juan de La Cosa Ainda em La Cosa existe a representação do continente americano de uma forma enigmática, algo que não acontece em Cantino. O espanhol preenche de forma mais livre o novo continente fazendo suposições acerca de seus contornos costeiros e interioranos, prática comum nos mapas-múndi medievais. No mapa de Diogo Ribeiro o simbolismo também está expresso pela presença de animais, homens, árvores, castelos, seres marinhos e inúmeros outros elementos. O componente religioso ainda é evidenciado na região da Judéia, onde é figurada a passagem da morte de Jesus Cristo crucificado. 31 Figura 12 – Detalhe da Judéia em Diogo Ribeiro (1529) E, finalmente, no planisfério de André Homem o simbólico aparece menos diretamente. Ainda existem os animais exóticos inseridos nos continentes, mas os oceanos são os locais onde mais se concentra a representação fantástica, com a presença de seres marinhos. Essa postura diferente mostra a adoção de uma nova postura nos continentes onde a estratégia de preencher os espaços vazios não é com figuras, mas com inscrições grandes ou opta-se pelo não preenchimento dos espaços. Porém, a hidrografia em algumas partes, como do Amazonas e Nilo, é ainda fantasiosa. Figura 13 e 14 – Detalhe da cruz no mapa de André Homem e a hidrografia do rio Amazonas 1.3 – A Redescoberta de Ptolomeu Ao se estudar os mapas do século XV por vezes são utilizadas ideias anacrônicas, pois os mapas desse período diferem em muitos aspectos aos atuais. Por muito tempo os exemplares cartográficos dos séculos XIV, XV e XVI foram estudados enquanto parte 32 de um caminho evolutivo, e portanto transitório, na história da representação geográfica do mundo. Porém, essa não era a realidade do período, de acordo com Marica Milanese, que contesta a noção de “transição” preferindo em seu lugar a denominação “síntese”. Pois, esses mapas confluíram experiências culturais e técnicas diversas, não consistindo em uma “transição”, termo esse que gera uma compreensão de um sentido único que não existiu na história da cartografia. Assim, muitos mapas ainda eram produzidos segundo as formas tradicionais e nem todos necessariamente possuíam novidades. Por conseguinte, as produções cartográficas não tinham um processo linear. 42 Os mapas ao longo do século XV sofreram modificações iniciadas na segunda metade do século XIV, passando a ser cada vez mais representados independentemente, diferindo dos anteriores que em sua maioria serviam como ilustração para livros. Juntamente a isso, verificava-se a formação de cartógrafos profissionais refletindo diretamente a passagem de representações simbólicas para descritivas. Outra mudança importante provinha da mudança de uma liberdade de desenho para a restrição imposta pela imprensa que será abordada no segundo capítulo. Aliado a essas inovações, a cartografia passou a ser influenciada pela redescoberta de um importante autor clássico, Ptolomeu. Implicando em toda uma reavaliação das concepções de mundo do período por uma parte dos europeus. Esse Ptolomeu redescoberto no século XV foi Cláudio Ptolomeu nascido em Ptolomaida de Tabaida (c.100 d.C.). Foi um grande matemático, astrônomo e geógrafo grego que viveu em Alexandria sendo considerado o mais célebre astrônomo da Antiguidade.43 Entre seus escritos destaca-se a obra Grande sintaxe matemática (140 d.C.), também chamada de Almagesto pelos árabes, que consistia em uma compilação dos conhecimentos astronômicos de seus antecessores. O autor desenvolveu nessa obra seu sistema geocêntrico, que dominou a astronomia até o século XVI44. Outra obra sua considerada célebre foi a Geografia45, um grande marco que contribuiu para mudar as concepções cosmográficas de ordem religiosa. Por outro lado, Ptolomeu interessou-se 42 MILANESI, Marica apud ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. Op. cit., p.31. Suas obras foram devedoras de outro sábio da Antiguidade, Hiparco. 44 Até o aparecimento da obra Das revoluções dos mundos celestes de Nicolau Copérnico (1543) que contestava Ptolomeu. Cf. DELEMEAU, Jean. A civilização do Renascimento. Op. Cit, pp.144-147. 45 Os escolásticos preferiam o termo Cosmografia ao invés de Geografia. Ver EDGERTON, Samuel Y. Jr. “From mental matrix to mappamundi to Christian Empire: The Heritage of Ptolomaic Cartography in the Renaissance.” In: WOODWARD, David (edit). Art and Cartography. Six Historical Essays. Chicago: The University of Chicago Press, 1987, p.16. 43 33 muito pela astrologia e, em sua Sintaxe tetrabiblos, tentou demonstrar a influência dos astros sobre os fenômenos terrestres além de possuir obras de física.46 O retorno dessas obras ao conhecimento ocidental foi graças ao intermédio dos árabes - exímios conhecedores de Ptolomeu destacando-se Al-Idrisi47 no século XI – que traduziram para sua língua a obra do alexandrino. A Geografia, em particular, influenciou os mapas-múndi do século XV e XVI, reaparecendo no Ocidente pela tradução de Manuel Chrysoloras e Jacobo Angiolo (1410). Ganhou a primeira impressão no ano de 1475 na cidade de Vicência sem os mapas que possuía. Após essa edição seguiram-se outras: Bolonha em 1477 com os mapas; Roma, 1478; Florença48, 1482; Ulm, 1482 e 1486; Roma, 1490; totalizando seis edições antes de 1500. O que reflete a dimensão alcançada por sua obra na Europa.49 Muito se contesta sobre a autoria da obra admitindo-se que somente as idéias fundamentais seriam do próprio Ptolomeu. Pois, o texto que a acompanha é creditado a um sábio bizantino, que o redigiu provavelmente entre o século X e XI. De posse desse manuscrito, um monge grego, Máximo Planudes, teria desenhado, por volta de 1300, os vinte e seis mapas presentes na obra.50 As concepções do alexandrino apresentadas romperam com várias ideias presentes nos mapas-múndi anteriores a sua influência. Primeiramente referente a localidade central, que ao invés de Jerusalém estava a cidade italiana de Siena, posição confirmada porque durante o solstício de Verão, nessa cidade, o Sol iluminaria o fundo de um poço. Segundo, na nova representação a ecumene(conjunto das terras conhecidamente habitadas) formava um todo, não sendo dividida em três continentes como a prática anterior além da disposição geográfica do mundo estar em forma “esfericizada” e não discóide. Isso é tributado aos sistemas de projeção ptolomáicos que representavam numa superfície plana a esfericidade terrestre. Além disso, pelos cálculos do autor a parte conhecida do mundo ocuparia apenas a quarta parte do globo terrestre. 46 Ver CRONE, G. R. Historia de Los Mapas. Op. Cit. p. 76. Al-Idrisi realizou seu mapa a pedido do rei Roger II, cristão da Sicília. Ver: BARROS, Nilson Crocia. “Ibn Kaldun, a dinâmica dos assentamentos humanos e as funções urbanas no islã histórico”. In: Revista de Geografia da UFC, ano 4, nº8, 2005,p.9. 48 Sobre a importância dessa cidade na época do Renascimento ver: BURCKHARDT, Jacob. A cultura do Renascimento na Itália. Brasília: Universidade de Brasília, (?), p. 40 e 41 49 Cf. EDGERTON, Samuel Y. Jr. “From mental matrix to mappamundi to Christian Empire: The Heritage of Ptolomaic Cartography in the Renaissance.” Op. Cit, p.16. 50 Ver BAGROW, L. “The Origino f Ptolomy’s Geographia” In: Geografiska Annaler Appud: RANDLES, W. G. L. Da Terra Plana ao Globi Terrestre: Uma rápida mutação epistemológica 1480-1520, Op. Cit, p. 27 e 28. 47 34 Segundo Bárbara mundy a interação proposta pelo autor seria de dois sistemas: a corografia (relacionado a uma parte específica da Terra) e a cosmografia (relacionado a uma visão do universal) constituiria a sua “geografia”51. Eles seriam projetados não por meios de casuística, mas em termos matemáticos. Com isso, refutava-se o elemento não provindo da “razão” matemática e física para a organização do espaço. Outro princípio fundamental em Ptolomeu refere-se aos mares, que não possuíam comunicação entre si e se estendiam à superfície da Terra como lagos. Isso contrariava a tradição homérica e bíblico-aristotélica, fundamentadas na concepção de uma terra dominada em sua maior parte pela água. Ter-se-ia, portanto, o inverso, com a terra dominando a maior parte da esfera, e assim, para lá do mundo conhecido haveria uma “Terra Incógnita” e não um mar desconhecido, como defendido pela crença anterior. A partir do último quartel do século XV a obra de Ptolomeu tornava-se conhecida por toda a Europa, inclusive em Espanha.52 Além de Ptolomeu o século XV também obteve informações sobre o continente asiático provinda de relatos de viajantes europeus53. O mais famoso deles, Marco Pólo, tinha viajado desde as terras da costa do mar Negro até às do mar da China, entre 1240 e 1350. Nessa época, os Khans mongóis asseguravam a sua paz pela Ásia Central. Segundo C. Boxer esses relatos de viajantes chegaram a ser fonte para a confecção de mapas-múndi, mas as suas informações não podem ser tomadas somente como verdadeiras porque contavam com maravilhas e eram fragmentárias. Assim sendo, para o autor elas não contribuíram efetivamente com os conhecimentos geográficos do período. 54 Segundo Denis Cosgrove, a redescoberta do manual geográfico de Ptolomeu seria a grande inovação do Renascimento. Esse texto para humanistas, mercadores, e artistas que leram, transcreveram e ilustraram fizeram com que fosse possível uma nova 51 MUNDY, Bárbara E. The mapping of New Spain indigenous cartography and the maps of the relaciones geográficas. London: The University of Chicago Press, 1996, p. 3 e 5. Ver também: CONTA, Gioia. “El estúdio de la Geografia Histórica” In: Semana de Estúdios Romanos. Valaparaíso: Pontifícia Universidade Católica de Valparaíso, vol. 22, 2004, pp.19-29. 52 A influência de Ptolomeu não se restringiu a cartografia, até mesmo Leonardo Da Vinci utilizou as idéias do sábio alexandrino. Ele teria baseado o seu homem vitruviano na Geografia de Ptolomeu porque também dividia o homem em “minor mondo” sendo o homem o microcosmo dentro do macrocosmo. A obra clássica o ajudou a organizar um sistema para operar a anatomia da mesma forma com que Ptolomeu desenvolveu para representar o mundo. Cf. EDGERTON, Samuel Y. Jr. “From mental matrix to mappamundi to Christian Empire: The Heritage of Ptolomaic Cartography in the Renaissance.” In: WOODWARD, David (edit). Art and Cartography. Six Historical Essays. Chicago: The University of Chicago Press, 1987, p.16. 53 Entre eles destacam-se Nicolo di Conti e Pêro da Covilhã. Para mais detalhes sobre eles ver: DELEMEAU, Jean. A civilização do Renascimento. Lisboa: Editorial Estampa, 1983, p.50 54 Ver BOXER, Charles. O Império colonial português (1415-1825). Lisboa: Edições 70, 1972, p.40. 35 visualização do mundo. O globo terrestre foi convertido em um rede imaginária de coordenadas de latitude e longitude trazendo uma nova representação.55 No momento em que os cartógrafos do século XV e XVI produziram seus mapasmúndi eles estavam em contato com as ideias de Ptolomeu e dos viajantes europeus. A principal influencia identificada nas fontes dessa monografia corresponde a inovação do alexandrino em fazer uma representação terrestre esfericizada e não discóide. Apenas Fra Mauro conservou a forma discóide56, os outros já trouxeram essa solução para a representação em superfície plana da Terra. Além disso, todo o contorno oriental, as costas do Oceano Índico na África e Ásia, presentes nas obras de Fra Mauro (1459), Henricus Martellus (1489) e Juan de La Cosa (1500) são, de alguma maneira, tributários a Ptolomeu. Em menor grau situam-se Cantino (1500), Diogo Ribeiro (1529) e André Homem (1559). A influência do autor alexandrino no contorno asiático ocorre nitidamente na representação da Índia57, onde não há menção desse espaço enquanto península além da representação desproporcional da ilha do Ceilão, dez vezes maior do que o “real”, logo abaixo da Índia. No sudoeste asiático aparecem ainda as penínsulas resultantes da representação proposta por Ptolomeu, principalmente a Catigara. 55 COSGROVE, Denis. “Renaissance mapping – Mapping New Worlds Culture and Cartography” In: Sixteenth-Century Venice, Imago Mundi, XLIV, pp. 65-89, p.6. 56 Essa posição de Fra Mauro não pode ser tida como uma posição retrógrada porque segundo Cosgrove na Renascença diversos sistemas de representação (plano, perspectiva) e diversos modos de descrição (verbal, visual, cartográfica e histórica, matemática e literal) coexistiram. Ibid, p.7. 57 Lembrando que o termo Índia provindo também da redescoberta de Ptolomeu passou a não ser apenas a região do que seria hoje o país asiático, mas sim toda a borda do Oceano Índico que cobre as costas africanas e asiáticas. Assim Índia poderia ser as terras da Etiópia. Cf. THOMAZ, Fuis F. De Ceuta a Timor, Op. Cit, 171. 36 Figura 16 – Detalhe do Índico em Fra Mauro (1459) Figura 17 – Detalhe do Índico em Henricus Martellus (1489) 37 Figura 18 – Detalhe do Índico em Juan de La Cosa (1500) Figura 19 – Detalhe do Oceano Índico em Juan de La Cosa (1500) com o destaque do contorno afro-asiático. 38 Outra representação atribuída ao alexandrino diz respeito ao contorno da península arábica podendo perceber suas contribuições nos mapas anteriores.58 Figuras 20, 21 e 22 – Representação da península arábica em Cantino, Diogo Ribeiro e André Homem. Entretanto, Fra-Mauro, Henrique Martellus e Juan De La Cosa apesar da ligação ptolomaica afastam-se dela em relação a configuração do Oceano Indico, aparecendo como um mar aberto, e não como um lago interior. Uma das legendas presentes em Fra Mauro é sintomática desse distanciamento que para o monge não caracterizariam um rompimento: “Não creio ir contra Ptolomeu si não sigo meridianos paralelos o grau havia tido, circunferência, que excluir muitas províncias na latitude, o mar do sul a norte, há muita desconhecida”.59 sua Cosmografia, porque de observar seus no tocante das partes conhecidas desta que Ptolomeu não menciona. Principalmente “terra incógnita” porque em seu tempo era Porém, mesmo colocando o Índico enquanto mar aberto, Fra Mauro ainda o mantém com um ar ptolomáico, pois, na borda sul, sudeste e leste existem várias ilhas minúsculas com uma distância mínima entre si (ver figura 20). No caso de Martellus, que também traz essa inovação, o sul do continente africano também se aproxima fortemente da península ptolomaica do extremo oriente (ver figura 21). Só em La Cosa que a aproximação do sul africano com o sudoeste asiático não aparece. Outra característica que se destaca nas representações produzidas segundo Ptolomeu é a presença áfrica neles do Monte da Lua. Esse local foi associado com as nascentes do rio Nilo, já que no período não havia conhecimento direto do interior do continente africano e também asiático. Isso indicava que o conhecimento recente através das explorações náuticas não representou o mesmo para o interior dos continentes. Assim, vários cartógrafos se influenciaram por representar o interior como Ptolomeu indicava. Em Fra Mauro a localização do Monte da Lua não é claro, mas em 59 CRONE, G. R. Historia de los mapas. Op. Cit., p.61. 39 Henricus Martellus, o autor que mais se filia na tradição do alexandrino, o monte aparece ocupando um espaço amplo na metade do continente africano. Figura 23 – Detalhe do Monte da Lua em Henricus Martellus (1489) Já em Juan de La Cosa o interior africano é muito enigmático. Nele está a presença de reis cobrindo grande parte do interior remetendo ao uso constante da ornamentação para preencher os espaços desconhecidos. Uma das características provinda do simbolismo medieval já referido anteriormente. No entanto, sem estar claro a posição do monte fantástico, a nascente do Nilo encontra-se com outros dois rios. Eles correm em direção oposta, um deles ao leste e outro ao oeste. Sem a representação clara do monte pode-se dizer que a estratégia do cartógrafo de colocar os três rios nascendo no mesmo lugar é baseada na hidrografia ptolomaica. Pois, mostra a nascente misteriosa do Nilo, desconhecida na época, da mesma forma que a tradição do autor clássico fizera. 40 Figura 24 – Detalhe do interior do continente africano com a nascente do rio Nilo em Juan De La Cosa (1500) O mapa de Cantino e de Diogo Ribeiro são exemplos da cartografia dita renascentista do século XVI que abandonariam o simbólico em prol de uma representação mais “fiel” ligada a tradição da experiência náutica das grandes navegações. Entretanto, no interior também é desconhecido levando a representação do Monte da Lua no sul do continente africano, em ambos ocupando uma grande dimensão, todo o espaço entre a costa leste e oeste. Figura 25 – Detalhe do Monte da Lua em Cantino (1502) 41 Figura 26 – Monte Lua em Diogo Ribeiro (1529) E em Cantino ainda aparece representada no extremo oriente, após a Índia, a península de Catigara tributada ao autor clássico. No caso de André Homem o Monte da Lua não aparece representado mas a hidrografia do interior é ainda ptolomaica. Da mesma forma que La Cosa, a localização da nascente é na mesma região com a contribuição de dois rios que provém do Atlântico e do Índico. Figura 27 – Detalhe do interior africano em André Homem (1559) 42 1.4 – As Cartas-Portulano Mediterrânicas Uma outra forma de representação da Terra, diferente dos mapas-múndi simbólicos medievais surgidos na Idade Média, foram as cartas-portulano (ou portulanos). Segundo Luís de Albuquerque, essa expressão serve para designar a nova espécie de cartas surgidas nos séculos XIV e XV. No entanto, as referências a elas eram somente como “cartas” ou, mais vulgarmente, “cartas náuticas” ou “cartas de navegar”. Todavia, a designação hoje aplicada justifica-se plenamente, porque o tipo de representação das áreas marítimas nessas cartas relacionava-se diretamente com os portulanos, relatórios com um roteiro náutico. Com isso, a carta-portulano tornou-se logo um elemento complementar desses textos e os navegadores não a dispensavam. A inovação propiciada por elas foi de uma a representação mais próxima do real na bacia mediterrânica, nas costas européias do atlântico chegando até o norte da França, nas ilhas Britânicas e também no Mar Negro. Foi um recurso surgido da prática em alto mar para auxiliar a orientação. 60 Luís de Albuquerque defende, pelo fato de não existir qualquer informação a respeito das cartas náuticas antes do século XIII, que a origem dessas cartas poderia ter sido herdada de modelos clássicos, de autores como Marino de Tiro, hipoteticamente, e Ptolomeu. Que basearam a sua cartografia em determinados sistemas de projeção, ou seja, tiveram o cuidado de basear suas cartas em alicerces científicos. No entanto, não existe nenhuma prova suficiente que comprovaria a relação entre esses modelos da Antiguidade e as cartas-portulano. “Em suma: parece não ser sustentável que exista na carta-portulano qualquer ideia prévia de uma representação cartográfica de raiz teórica, a despeito dos argumentos que alguns adiantaram como prova.”61 Numa outra vertente de estudos sobre as cartas-portulano, Norman J. W. Thrower acredita que o uso sistemático das agulhas magnéticas trazidas da China ao Ocidente pelos árabes ou através da Rota da Seda possibilitou esse mapeamento totalmente novo. A representação muito mais fiel da Terra foi possibilitada pela agulha magnética que rapidamente se espalhou pelo Mediterrâneo. Assim, através do sucesso desse novo elemento para a representação topográfica do real originaram-se as cartas-portulano.62 60 Ver ALBUQUERQUE, Luís (dir.). Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses v. I. Op. Cit., p.210. 61 Ibid, p.210. 62 Ver THROWER, Norman J.W. Maps &Civilization: cartography in culture and society. Op. Cit, p.51. 43 Por serem então fruto da experiência náutica, essas formas cartográficas apresentavam uma visão diferente sobre o território. Enquanto os mapas-múndi mostravam uma imagem global e simbólica, as cartas-portulano se restringiam à região específica do Mediterrâneo traçando com uma grande precisão os territórios ao seu redor, incluindo o perfil mediterrânico e o Mar Negro.63 De uma forma mais geral, enquanto os mapas-múndi seguiam uma tradição erudita de cartografia terrestre, as cartas-portulano provinham da experiência dos navegadores do Mediterrâneo para fins decorrentes da prática e para serem utilizados para ela.64 Atualmente são conhecidas aproximadamente cento e oitenta cartas e atlas dos séculos XIV e XV, que correspondem a uma pequena parte da produção do período, pois elas tinham uma facilidade enorme de deterioração devido às condições de manuseio. A maior parte foi realizada em núcleos mediterrânicos, os dois principais foram as ilhas Baleares e as cidades italianas de Gênova e Veneza. Cada um desses centros foi criando suas características próprias ao longo dos séculos, consolidando seus estilos já no século XIV. Assim, constitui-se um “estilo italiano” marcado pelo traçado de uma franja litoral sem ornamentação e um “estilo catalão” que além do litoral representava o interior dos continentes. Todavia, vários são os exemplos de que dentro dessas escolas houve uma versatilidade como mostrado no estilo catalão dos irmãos Pizigani (1367) e o estilo italiano de Guillhermo Soler (1385).65 Por trazer uma nova forma de representação cartográfica, as cartas-portulano não se encontravam desconexas do pensamento medieval. Um exemplo foi a busca catalã por representar o interior continental divergindo da função náutica, entrando assim, no modelo de produção dos mapas-múndi medievais. 66 Segundo Kimble, os catalães faziam muitas especulações sobre os territórios inexplorados da Terra. Como testemunha o Atlas Catalão, onde os “montes da lua” provindo da tradição ptolomáica foram associados em determinados momentos os montes da antiga Guiné Francesa e os seus cinco rios afluentes. Com essa especulação estava a “harmonização” de fatos reais com a tradição, do século XIV em diante. Eram 63 De acordo com Cosgrove o período dito renascentista passaria de um mapeamento de visualização do texto escrito como feito com as ilustrações cartográficas dos autores tradicionais e passaria a contar com aspectos que envolvia a matemática e a filosofia. Cf. COSGROVE, Denis. “Renaissance Mapping – Mapping New Worlds Culture and Cartography”. Op. Cit, p. 6. 64 Ver ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. In: BETHENCOURT, F. & CLAUDHURI, K(dir). Historia da Expansao Portuuesa. Vol I. Lisboa: Circulo de Leitores, 1998, p.34. 65 Ibid, p.36. 66 Ver ALBUQUERQUE, Luís (dir.). Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses v. I. Op. Cit, p.210. 44 problemas surgidos em conciliar as novas descobertas com os mitos. Como pode ser comprovado pelo Rio do Ouro sendo empurrado para baixo nas representações cartográficas até a direção do Senegal/Niger, pois a medida que prosseguiam as descobertas portuguesas e o rio mítico não era encontrado, os cartógrafos o representavam cada vez mais abaixo. Até o momento em que ele foi associado aos rios Senegal e Niger.67 Figura 28 – O Atlas Catalão de Carlos V, 1375. Contudo, apesar das cartas-portulano compartilharem algum simbolismo do homem medieval em relação ao universo culminando na representação de locais ou elementos fantasiosos existia o traçado detalhado do perfil costeiro remetendo fortemente à realidade topográfica, sendo esse o objetivo principal deste gênero de produções cartográficas. 68 Segundo Luís de Albuquerque, o que caracterizaria então uma carta-portulano seria o conjunto de linhas de rumo emergidas de vários pontos do 67 Ver DELEMEAU, Jean. A civilização do Renascimento. Op. Cit, p.166; KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Media. 2.ed. Londrina (PR): Eduel, São Paulo: Imprensa oficial do Estado de São Paulo, 2005, p. 245. 68 Ver ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. Op. Cit, p.36. 45 traçado. Seriam assim lançadas dezesseis linhas de rumo (norte, nor-nordeste, nordeste, etc.), número que algum tempo depois duplicou, como pode ser observado na maioria das cartas existentes, e que iriam se generalizar como identificado no planisfério de André Homem.69 Era uma rede de loxopramas, ou linhas de rumo, originárias de um número de pontos de convergência dispostos no mapa de forma regular que eram copiadas de mapa para mapa. 70 O impacto dessa nova maneira de representar o espaço ligado ao rigor geométrico e a busca da representação fidedigna do real influenciou as produções cartográficas decisivamente a partir do século XV. Nos seis mapas estudados as influências das cartas-portulano encontram-se presentes. Apenas no mapa-múndi de Fra-Mauro (1459) e Henricus Martellus (1489) as linhas de orientação provindas delas não foram adotadas. Mas o melhoramento da representação do mar Mediterrâneo é notável. No caso do mapa de Fra Mauro a influência encontra-se presente na preocupação com a orientação geográfica com referência geométrica dos pontos cardeais (observar figura 7), mesmo não havendo o traçado das linhas referentes ao equador e aos trópicos. O Mediterrâneo é muito bem representado, confirmando as inúmeras correções provindas dessas cartas mediterrânicas. Figura 29 – Detalhe do Mediterrâneo em Fra Mauro 69 Ver ALBUQUERQUE, Luís (dir.). Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses v. I. Op. Cit, p.210. 70 Ver KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Media. Op. Cit, p.245. 46 O Mapa-múndi de Henricus Martellus apresenta uma representação muito fiel do contorno mediterrânico, pois nas tabuas de Ptolomeu esse mar europeu possui uma dimensão duas vezes maior do que a original. Figura 30 – detalhe do Mediterrâneo no mapa de Henricus Martellus O cartógrafo espanhol Juan de La Cosa e os portugueses Cantino (atribuído), Diogo Ribeiro e André Homem mostram claramente suas enormes influências provindas das cartas-portulano. Em ambos encontram-se a figuração das rosas-dosventos herdada dessas cartas, como mostrava o atlas catalão, refletindo a preocupação com a localização espacial por meio dos pontos cardeais. Figuras 31 e 32 – Detalhe de rosa-dos-ventos em Juan de La Cosa (esq.) e Cantino (dir.) Figura 33 – Detalhe de rosa-dos-ventos em Diogo Ribeiro (esq.) e André Homem(dir.) Notam-se juntamente a essas rosas inúmeras linhas de rumo que partem de pontos específicos e preenchem por completo os mapas. Elas é que são as guias de rumo do mapa-múndi. 47 Figura 34 – Detalhe do Atlântico no Planisfério de André Homem. 1.5 – As Grandes Navegações Iniciadas pelos portugueses no século XV, as grandes navegações foram responsáveis em parte por toda uma revisão das teorias cosmográficas dos séculos anteriores contribuindo de maneira decisiva para o período designado como Renascimento. Todos esses feitos marítimos foram registrados através de cartasportulano portuguesas. Essas novas fontes, além dos próprios relatos dos viajantes chegaram até os cartógrafos da segunda metade do século XV e tornaram-se uma nova fonte de referência para a produção cartográfica do período. Contribuindo decisivamente para uma representação geográfica partindo da prática. Apesar de supor-se terem sido inúmeras as cartas produzidas pelos portugueses, poucas são os exemplos. Essa grande quantidade é confirmada através de alusões a elas na literatura da época como o caso das referências freqüentes aos mapas portugueses na Crônica da Conquista da Guiné71 de Zurara e no Esmeraldo de Situ Orbis72 de Duarte Pacheco. Todo esse empreendimento português para além mar, segundo C. R. Boxer, teria se iniciado devido a quatro fatores principais que se conviveram e apareceram na seguinte ordem no século XV: 1. Um zelo de cruzada com o Marrocos. Refletindo na idéia original do reino português de tentar surpreender os marroquinos por uma ofensiva 71 ZURARA, Gomes Eanes da. Crônicas dos feitos que se passaram na conquista de Guiné por mandato do Infante D. henrique, estudo crítico e anotações de Torcato Sousa Soares. Lisboa. Academia Portuguesa da História, 1978. 72 PEREIRA, Duarte Pacheco. Esmeraldo De Situ Orbis, Op. Cit, p. 541. 48 inesperada pelo sul.73 2. O desejo de se apoderarem do ouro da Guiné. Com o início das explorações em direção ao sul da África após as ilhas Canárias os portugueses entram em contato com populações envolvidas no comércio do Ouro da Guiné e isso os atrai; 3. a questão do Preste João. Um reino fantasioso provindo das lendas medievais que teria sido associado com as notícias da Igreja cristã copta da Abissínia, e que auxiliaria os lusos na expulsão dos infiéis de Jerusalém; 4. a procura de especiarias do oriente. Com as informações de que o continente africano seria circum-navegável cogitou-se em ir até as Índias buscar as especiarias, desviando dessa maneira a intermediação dos mamelucos – os infiéis que controlavam a Terra Santa.Assim, a expansão portuguesa deveria ser observada tendo em mente esse quadro de interesses surgidos ao longo da exploração marítima. 74 O primeiro grande marco das navegações ultramarinas portuguesas foi a conquista de Ceuta em 1415 realizada durante o reinado de D. João I. A partir desse feito, iniciouse a expansão ultramarina, e já no ano de 1419 ocorreu a descoberta e ocupação da ilha da Madeira. Os Açores foram reconhecidos inicialmente no ano de 1431 e completada a exploração do conjunto de ilhas em 1432. Após dois anos, Gil Eanes conseguiu a façanha de transpassar o Cabo Bojador, obstáculo tradicional da navegação de cabotagem, inaugurando uma nova etapa no reconhecimento da costa africana. Nesse momento, devidos as mudanças de orientação das terras que passam de N-S para O-E acreditava-se que teria sido atingido o caminho para as Índias75. Porém, o continente volta a sua posição N-S depois do Golfo da Guiné. Nessa altura, entre 1456 e 1460, ocorreu a descoberta e colonização das ilhas de Cabo Verde. A experiência adquirida através dessas viagens iniciais permitiu aos portugueses conhecerem o sistema de ventos do Atlântico Norte, e, posteriormente, os do Atlântico Sul. Possibilitando também a construção de um novo tipo de navio, a caravela latina, que suportava o vento melhor do que qualquer outro navio europeu. Já com essas experiências, as viagens de Diogo Cão durante o reinado de D. João II reanimaram as descobertas portuguesas. Ele partiu em 1482 e afirmava a conquista portuguesa, com o 73 Esse ataque ao Marrocos refletia o ódio existente entre a Cristandade e os muçulmanos. No entanto, segundo Buckhardt a Itália escaparia ao isolamento de relações com esse grupo religioso. Ver: BURCKHARDT, Jacob. A cultura do Renascimento na Itália, Op. Cit., p. 60 e 61. 74 BOXER, Charles. O Império colonial português (1415-1825). Op. Cit, p.34. Para os motivos das navegações portuguesas verificar também: THOMAZ, Luís Filipe. De Ceuta a Timor. Lisboa: Difel, 1998, p.171. 75 Diferentemente dos portugueses, segundo Barros, os chineses já representavam a Áfica com um formato triangular. Ver: BARROS, Nilson Crocia. “Ibn Kaldun, a dinâmica dos assentamentos humanos e as funções urbanas no islã histórico”Op. Cit., p.13. 49 padrão de São Jorge, das terras da embocadura do Rio Zaire. Na sua segunda viagem, o navegador atingiu as costas da atual Angola. O esforço de Diogo Cão foi continuado por Bartolomeu Dias que, em fins de 1487, ultrapassava a costa africana até a Serra dos Reis onde entrou em contato com uma forte tempestade que o fez perder de vista a costa. Nesse momento ele atravessou o Cabo das Tormentas, rebatizado posteriormente de Cabo da Boa Esperança e atingiu a Oceano Índico. Ao mesmo tempo em que se prosseguiam as navegações ao longo da costa africana, o rei D. João II mandou que seguissem por terra ao Oriente, Pero de Covilhã e Afonso Paiva, a fim de obterem notícias circunstanciais sobre as terras das especiarias e do misterioso reino do Preste João. Os informes enviados por eles davam conta das cidades indianas e das condições de navegação no Oceano Índico. 76 Nos fins do século XV, os portugueses lançaram as bases da moderna ciência náutica européia, sendo então, possível se guiar através em alto mar pela observação astronômica. Contribuíram para isso três instrumentos principais: a bússola (provavelmente de origem chinesa e conhecida por intermédio dos marinheiros árabes e mediterrâneos), o astrolábio e o quadrante nas suas versões mais simples. Paralelamente as descobertas portuguesas na segunda metade do século XV, os espanhóis iniciam as suas viagens marítimas. Em 12 de outubro de 1492, o genovês Cristóvão Colombo, navegando a serviço de Castela atingiu algumas ilhas desconhecidas. Esse episódio fez com que os feitos portugueses para atingir a Índia fossem ameaçados, já que Colombo77 acreditava ter chegado a ilhas asiáticas78. Os reinos português e espanhol entraram então em divergências diplomáticas. A solução foi o estabelecimento no ano de 1494 do Tratado de Tordesilhas que definia a demarcação de um meridiano separando a Terra em dois hemisférios, um luso e outro castelhano, que passaria a 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde. Após esse tratado,no ano de 76 Sobre as viagens ultramarinas portugueses existe vasta bibliografia aqui indica-se alguns autores: THOMAZ, Luís Filipe. De Ceuta a TimorOp. Cit.; BETHENCOURT, Francisco & CHAUDHURI, Kirti (dir.). História da expansão portuguesa. Vol. I. Lisboa : CNCDP, pp. 35-44.; BOXER, Charles. O Império colonial português (1415-1825). Op. Cit.; HOLANDA, S. Buarque de. História Geral da Civilização Brasileira – Tomo I: A Época Colonial 1º vol.: Do Descobrimento à Expansão territorial. São Paulo: D.E.L., 1968; Voltando-se mais para a Ásia tem-se SUBRAHMANYAM, Sanjay. O império asiático português 1500-1700. Lisboa: Difel, 1995; 77 Segundo ele “il mondo é poco”. Para compreender um pouco do pensamento de Colombo e sua crença em ter chegado a ilhas asiáticas ver: SILVA, Janice Theodoro da. “Colombo: entre a Experiência e a Imaginação”. In: Revista Brasileira de História, São Paulo: ANPUH/ Marco Zero, vol. 11, nº21, 1991, p. 29. 78 Esse temor teria sido despertado também porque os portugueses não teriam dado ouvidos tanto a Colombo como o florentino Paolo Toscanelli que afirmava que a melhor rota para se chegar a “Índia dos aromas e das gemas”, como para o ouro de Cipango e as riquezas de Cataio, não era a rota pela Guiné, mas sim a “direitura”, navegando ao ocidente. Cf. THOMAZ, Luis F. De Ceuta a Timor, op. Cit, p. 171. 50 1498, finalmente uma frota portuguesa atingiu a Índia: Vasco da Gama79 chegou a Calicute estabelecendo assim uma nova rota, transoceânica, para atingir o lucrativo comércio das especiarias. Esses dois episódios, descoberta da América (1492) e conclusão da primeira viagem pela rota do Cabo (1498) marcaram uma nova etapa nas relações interplanetárias. O eixo principal do comercio europeu deixou de ser o mar Mediterrâneo e passou a ser o oceano Atlântico. As explorações oceânicas não se detiveram após isso avançando ao longo dos anos o continente americano e asiático. Tentando atingir o comércio do Índico através do seu hemisfério, a coroa espanhola financiou a viagem comandada por Fernando Magalhães. A conclusão do périplo de Magalhães e depois, no comando Sebastião de Elcano foi a primeira circum-navegação planetária entre 1520 e 1523. Na seqüência, descobriram-se novos arquipélagos no Pacífico aumentando imensamente a extensão conhecida da China, e descobrimento do Japão. Ao longo das explorações portuguesas das costas africanas no século XV existem relatos de que havia várias cartas marítimas sobre as novas regiões descobertas como mencionado anteriormente. As provas desses registros cartográficos encontram-se primeiramente no cronista Zurara80, fonte principal para a época do estabelecimento português na Guiné, que afirmou terem sido feitos novos mapas por ordem do Infante D. Henrique; e uma carta régia (mandada passar pelo regente D. Pedro, em 1443, em Penela), referente também à feitura de novos padrões cartográficos. Sobre esse assunto, o autor Alfredo Pinheiro Marques afirma terem cruzado testemunhos de fontes narrativas arquivísticas, para determinar com precisão a data das primeiras correções em cartas produzidas na época do Infante D. Henrique. No seguimento de sua investigação, no estado atual de conhecimentos, deve-se considerar a data de 1443 como da realização da primeira carta portuguesa que se tem conhecimento. Outro indício importante da produção cartográfica ao longo dos descobrimentos relaciona-se ao arquipélago das Canárias. Em 1435 no Concílio de Basiléia os portugueses mostraram uma carta para 79 A chegada a Calicute, de acordo com Amélia Aguiar Andrade, foi a feliz articulação entre a acumulação de experiência marítima anterior na costa africana e a compreensão do funcionamento do Oceano Índico. A viagem tinha como objetivos dominar a rota das especiarias e consequentemente neutralizar ou transformar em secundária a concorrência. Ver: ANDRADE, Amélia Aguiar. “Novos Espaços, Antigas Estratégias: o Enquadramento dos Espaços Orientais”. In: Memórias do Oriente, CNCDP, 1999, p. 35. 80 ZURARA, Gomes Eanes da. Crônicas dos feitos que se passaram na conquista de Guiné por mandato do Infante D. henrique, Op. Cit. 51 provar que essas ilhas estavam mais próximas de Portugal do que de Castela. Incluí-se ainda a prova apresentada no mapa de Fra Mauro que será retomada a seguir.81 Os mapas aqui analisados apresentam resultados claros dos diversos momentos das descobertas portuguesas. Fra Mauro em seu mapa apresenta inúmeras informações na costa ocidental da África provindas de fontes portuguesas.82 Há a inclusão das descobertas portuguesas produzidas na primeira metade do século. O autor comenta isso nas várias informações presente nessas regiões do mapa, segundo ele, na direção ao sul do continente africano, os portugueses “(...) encontraram litorais que não eram perigosos, com boas profundidades, convenientes para a navegação e sem riscos de tempestades. Eles elaboraram novas cartas destas regiões e deram nomes aos rios, baías, cabos e portos. Eu tenho várias destas cartas em meu poder...”Isso seria ainda em fins da época henriquina (1459). 81 Ver MARQUES, Alfredo Pinheiro. A Cartografia dos Descobrimentos Portugueses. Op. Cit., p.38. Através dos descobrimentos geográficos instalou-se também a toponímia, ou nomeação dos locais descobertos. Segundo Amélia Aguiar Andrade dar nome ao desconhecido significava dominar aquele local. Ou seja, torna-lo conhecido para facilitar a identificação, e possível dominação. Ver: ANDRADE, Amélia Aguiar. “Novos Espaços, Antigas Estratégias: o Enquadramento dos Espaços Orientais”. In: Memórias do Oriente, CNCDP, 1999, p. 39. 82 52 Figura 35 – Detalhe do contorno africano ocidental (o mapa encontra-se na sua posição original, ou seja, com a África ao norte). Já a obra de Henricus Martellus (1489) também possui as informações portuguesas apuradas sobre a costa ocidental africana. A façanha de Bartolomeu Dias de dobrar o Cabo da Boa Esperança (das Tormentas) já mostra seus resultados. Com isso o contorno africano ocidental se tornau mais próximo ao real geográfico como no caso do Golfo da Guiné. Ainda estão inclusas duas grandes inscrições na altura do continente africano relatando sobre as experiências marítimas lusas e suas descobertas. 53 Figura 36 – Detalhe do continente africano em Henricus Martellus (1489) Figura 37 – Detalhe de inscrição em Henricus Martellus Essa inscrição diz o seguinte: “Essa é a forma moderna africana segundo descrição portuguesa entre o mar mediterrâneo e o oceano meridional” Em Juan De La Cosa (1500) constam dois grandes avanços provindos das grandes navegações. Do lado português tem-se o contorno da África, que na parte ocidental é perfeitamente desenhada enquanto que a parte oriental ainda é pouco exata. A Ásia ainda filia-se a Ptolomeu mesmo com a inserção da frota de Vasco da Gama que havia atingido a Índia. No mapa existe uma menção ao “Rei” de Calicut que saldou os portugueses. Já no lado espanhol há a contribuição da viagem de Colombo e Vicente 54 Pinzón a costa sul-americana, sendo o cartógrafo reconhecido como o primeiro a representar o continente americano. O Novo Mundo ocupa uma posição ainda pouco precisa, excetuando-se a região das Antilhas onde os espanhóis tiveram maior contato. Figura 38 – Detalhe da África e da expedição de Vasco da Gama (seqüência de barcos ao redor do continente) em Juan De La Cosa. Figura 39 – Detalhe da chegada de Vasco da Gama a Índia em Juan De La Cosa. 55 Figura 40 – Detalhe da América em Juan De La Cosa. 56 Figura 41 – Detalhe das Antilhas em Juan De La Cosa Dois anos após Juan de La Cosa, foi produzido o mapa de Cantino (1502). Ele aprofunda as informações contidas no mapa anterior graças às influências maiores das cartas portuguesas. É o mapa-múndi português mais antigo que sobreviver ao longo do tempo. Apresenta um conhecimento extraordinariamente preciso da costa africana, especialmente a costa ocidental a norte do rio Congo. E o contorno oriental ganha pela primeira vez uma dimensão muito próxima ao real geográfico. Outro mérito das explorações marítimas reside na representação da Índia enquanto península e o Ceilão muito próximo a sua proporção em relação as outras terras. 57 Figura 42 – Detalhe da África em Cantino (1500). Figura 43 – Detalhe do continente americano em Cantino (1500). 58 Diogo Ribeiro testemunhou o feito de Fernão de Magalhães, o primeiro a navegar da América para a Àsia e, depois da sua morte na ilha de Bornéu, a frota continuou a viagem e retornou a Espanha pela rota do Cabo. Realizando assim, como mencionado, a primeira viagem de circum-navegação terrestre. O mapa ainda representa os resultados das explorações de Colombo, Caboto83, os irmãos Corte Real, Américo Vespúcio e Balboa (que confirmou a existência do grande “mar do sul” posteriormente batizado de Pacífico)84. Em seu mapa o contorno dos continentes alcança um patamar mais próximo ao real. O continente africano ganhou um contorno mais preciso, com a ilha de Madagascar saindo do retângulo de Cantino e ganhando uma representação mais fidedigna. Já a figuração do contorno asiático também melhora. A península arábica deixa de ser associada a um “L” enquanto que as particularidades da península indiana são representados, porém, é figurada com uma espessura menor que deveria. Sendo assim, um retrocesso a representação observada em Cantino. Outra importante inovação da figuração é a península da Malásia, não mais sendo aproximada a Catigara de Ptolomeu. Nela existe a toponímia “Regno de Ansian”. Além da representação das ilhas do sudeste asiático como “Camatra”, “Iavas” e as Molucas. 83 Tentando legitimar sua primazia sobre o continente americano e por conseqüência a navegação nos mares espanhóis no século XVII. Os ingles Samuel Purchas apresentou Sebastião Caboto como um inglês (na verdade era italiano) e verdadeiro descobridor do continente americano que deveria se chamar “Cabota”. Ver a introdução de Sheila Moura Hue para a obra: KNIVET, Anthony. As incríveis aventuras e estranhos infortúnios de Anthony Knyvet: memórias de um aventureiro inglês que em 1591 saiu de seu país com o pirata Thomas Cavendish e foi abandonado no Brasil, entre índios canibais e colonos selvagens. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. 84 Cf. DELEMEAU, Jean. A civilização do Renascimento, Op. Cit, p.59. 59 Figura 44 – Detalhe do contorno asiático em Diego Ribeiro (1529). Em relação ao “Mundus Nows” Ribeiro também inovou comparando-se com La Cosa e Cantino. O contorno americano é continuo com a especificidade da América Central. Somente o contorno ocidental do continente que não é figurado, e a América do Norte pouco aparece. 60 Figura 45 – Detalhe do contorno americano em Diego Ribeiro (1529). Em André Homem há um aprofundamento no conhecimento de todas as regiões anteriormente figuradas nos mapas. A península indiana tem sua dimensão proporcional resgatada, a península da Malásia e a Indochina aparecem mais bem delimitadas. 61 Figura 46 – Detalhe do contorno asiático em André Homem (1559). O continente americano ganhou uma enorme precisão. A América central é muito fiel a realidade não só no contorno mas na proporção interiorana. As costas da América do Norte são mais fiéis, aparecendo a península da Califórnia. Na parte sul do continente encontram-se as bacias do Amazonas e do Plata85 delimitadas e com exceção de uma parte do Chile atual, todo o sul é representado. Figura 47 – Detalhe do contorno americano em André Homem (1529). Destarte, nesse mapa-múndi o globo terrestre teve os seus principais contornos alcançados pela cartografia, fruto direto das navegações pelos oceanos. Esse exemplar abrigou assim todas as principais descobertas até 1559, e somente o Japão que guarda ainda uma representação arcaica.86 85 Essa representação cartográfica do interior da América do Sul foi povoada dos chamados “mitos cartográficos” como o lago Xarayes. Que o desconhecimento do funcionamento do Pantanal matogrossense propiciou. Para mais informações consultar: COSTA, Maria de Fátima. História de um País Inexistente: o Pantanal entre os séculos XVI e XVII. São Paulo: Estação Liberdade/Kosmos, 1999. p. 18. 86 A cartografia mais focada no realismo geográfico com suas coordenadas geográficas iria influenciar os chineses nas suas projeções cartográficas. Confira: Cf. EDGERTON, Samuel Y. Jr. “From mental matrix to mappamundi to Christian Empire: The Heritage of Ptolomaic Cartography in the Renaissance.” In: WOODWARD, David (edit). Art and Cartography. Six Historical Essays. Chicago: The University of Chicago Press, 1987, p.25 e 26. 62 Outra contribuição importante das navegações portuguesas foi a utilização da astronomia influindo diretamente na localização dos Trópicos de Câncer e Capricórnio além do Equador. Esse uso se generaliza a partir da década de 1490 podendo ser identificadas nos mapas de Juan De La Cosa, Cantino, Diego Ribeiro e André Homem. Conclusão Voltando-se a constatação de Harley que nenhum mapa pode ser interpretado isoladamente, mas sim o relacionado com outras produções cartográficas a comparação estabelecida nesse capítulo comprovou essa concepção. Assim, o estabelecimento de elementos herdados dos mapas-múndi medievais e de Ptolomeu, de um lado; e das cartas-portulano mediterrânicas iniciadas no século XIII e da influência das grandes navegações, de outro; mostrou que o legado desses dois grupos é fortíssimo. Cada mapa testemunha a seleção das referências a outras produções cartográficas e que elas ocorrem de forma particular. Todavia, o ofício cartográfico durante o período da produção das fontes 1459 a 1559 significou submeter-se, conscientemente ou não, a todo um aparelho referencial ligado a outras produções cartográficas. Assim, Ptomoleu foi um autor com muita credibilidade justamente por representar uma importante tradição grega na Antiguidade Clássica contribuindo inicialmente para um melhoramento das representações cartográficas. Legitimando a utilização de seus métodos na composição de mapas-múndi como testemunhou Fra Mauro. Porém, as suas informações desde seu ressurgimento conviveram com os dados recentes provindos das navegações mediterrânicas e lusas na costa africana. Percebeu-se, desta forma, que as novas informações serviam aos espaços costeiros antes desconhecidos e sempre representados de forma simbólica. Mesmo com a progressão das descobertas geográficas a tradição ptolomaica não desapareceu, ela continuou como importante fonte para a figuração de espaços ainda não atingidos pela experiência direta, o interior dos continentes. Assim, os mapas ditos “renascentistas” confluíram essas diversas formas de apresentação do espaço indicando muito mais uma convivência de informações, provindas da tradição e da experiência, do que uma escolha unilateral. Isso serve para a importante constatação de que nessa época, paralelamente a um movimento de valorização do real geográfico, outras formas de tradição cartográficas sobreviveram, como a ornamentação. 63 Assim sendo, a influência náutica ganhou mais espaço, mas de forma lenta e com alguns retrocessos. Contrariando a posição de evolução cartográfica ocorrida no período renascentista defendida enormemente no século XIX e XX e ainda em voga no século XXI.87 Essa é uma perspectiva reducionista de analise porque o estudo desses exemplares deve ocorrer individualmente, pois em cada um existem diversas heranças de várias origens. 87 Ver GOMES, Maria do Carmo Andrade. Velhos Mapas, novas leituras: revisitando a historia da cartografia. São Paulo: GEOUSP, 2004. 64 2 – A SOCIEDADE E OS CARTÓGRAFOS Esse segundo capítulo da pesquisa destina-se a resgatar as características particulares provindas do contexto do cartógrafo e da sociedade. Pois, para entender o complexo embate entre a tradição, representada pelas características simbólicas medievais e os autores clássicos; e a experiência, partindo daquilo que é “cousa vista”, deve-se entrar em questões como por que o cartógrafo realizou sua obra. Ou quem o financiava e, portanto, esperava um determinado resultado. Através dessa abordagem escapa-se de um estudo voltado apenas para o conteúdo do mapa em si, sem entrar nas entrelinhas do jogo cartográfico88, que de uma forma ou de outra, buscava convencer sua posição através do mapa. Dentro desse jogo, como ocorria a escolha entre as informações provindas da tradição ou a experiência? Para atingir esse objetivo focou-se primeiramente nas particularidades do momento da confecção do mapa. Destacando as características que os torna originais, no sentido de ser um produto único, um registro de seu contexto próprio. Considerando também que se encontram imersos em uma série de exigências e interferências (patrocinador, ajudantes...) em seu ofício tornando-o um veículo complexo das dinâmicas sociais de uma época. De acordo com Harley, esse contexto do cartógrafo sempre esteve representado nas primeiras interpretações dos mapas. No entanto, eram realizadas apenas com o objetivo de se estabelecer a autoria, como os livros e os documentos, ou através da busca de uma intenção do cartógrafo. Porém, a autoria – excluindo os mapas manuscritos - está diretamente ligada ao contexto social, uma vez que ela é resultado de uma divisão de trabalhos. Essa divisão ocorre exatamente com a invenção da impressão, pois diante de uma série de indivíduos colaborando no processo (topógrafo, editor, gravador) o cartógrafo torna-se uma figura sombria e a tradução da realidade que ele realiza torna-se mais complexa. O mapa pode apresentar vários textos - uma intertextualidade – que deve ser buscada no processo interpretativo. 89 Ainda de acordo com Harley, cada mapa codifica mais de uma perspectiva de mundo e revela toda a expressão de uma intenção, e estabelecer seu envolvimento com 88 Esse jogo pode ser sintetizado na perspective apontada por Denis Cosgrove. Segundo ele, os mapas são resultado de um processo seletivo cultural que envolve escolhas, reduções, omissões, e distorções quando representam o aspecto tridimensional do globo terrestre numa superfície bidimensional. Cf. COSGROVE, Denis. “Renaissance Mapping – Mapping New Worlds Culture and Cartograohy”. Op. Cit.,p. 6. 89 Cf. HARLEY, J. B., Op. Cit., p.64 65 um cartógrafo é muito menos direto do que a primeira vista pode parecer. Por isso, para se realizar o estudo de qualquer mapa deve-se estar atento a sua função específica. Mesmo com essa particularidade, eles podem servir para outros fins diversos rompendo com a ideia de uma relação direta entre função e conteúdo. Destaca-se ainda que os cartógrafos quase nunca podiam tomar decisões de maneira independente, nem sempre estavam livres de limitações financeiras, militares ou políticas. Assim, vinculavam-se a financiadores desse ofício, e por isso, ao se questionar um mapa deve-se estar claro que as dimensões sociais encontram-se presentes muito além da técnica. 90 Para se estudar esses mapas, Harley recomenda a importância de se estar atento as técnicas de navegação e a topografia, e também com as técnicas de compilação, gravação, impressão e coloração, e saber sobre as práticas comerciais dos livros e dos mapas. Segundo ele, eles são produtos de vários processos que envolvem diferentes indivíduos, técnicas e instrumentos. 91A partir dessas constatações de Harley procurouse analisar cada autor dos mapas pesquisados. 2.1 - A Experiência na Primeira Modernidade A maioria dos mapas não refletia diretamente o novo conhecimento cartográfico produzido pelo início da época da expansão marítima. Isso iniciou uma nova atenção para o Oceânico que não havia anteriormente. 92 Dentro disso, a cartografia portuguesa, ou aquela diretamente relacionada com os seus feitos, se sobressaiu desde o início pelo seu acentuado caráter prático e por um traçado rigoroso. Assim, a já referida experiência náutica vivida pelos pilotos que serviu de base para os trabalhos cartográficos. 93 Entretanto, todo esse vigor da prática marítima desde o início do século XV fez com que ocorresse lentamente uma alteração de mentalidade. De acordo com João de Castro Osório foi através da aprendizagem cotidiana dos novos espaços que a realidade do mundo se apresentava outra, diferente de tudo aquilo que os eruditos europeus diziam, ou os autores clássicos. Desta forma, todo o pensamento anterior foi sendo posto em confronto com a realidade, sem que tivesse de ser desde logo abandonado pelas 90 Ibid, p. 66. Ibid, p.67. 92 Ver BLACK, Jeremy. Mapas e História: construindo imagens do passado. Op. Cit, p.23 e 24. 93 ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. Op. cit.,37. 91 66 verdades nascidas da experiência vivida e dos ensinamentos da realidade vista e observada.94 Essa mudança pode, então, ser verificada nos mapas renascentistas. Esse questionamento da tradição não se restringiu aos cartógrafos “renascentistas”, ele atingiu diversos âmbitos dessa sociedade. Na obra Esmeraldo de Situ Orbis de Duarte Pacheco Pereira95 texto iniciado em 1505 e no Tratado da Esfera96 de Dom João de Castro da década de 1540 aparecem exemplos que mostram o embate surgido entre essa lenta mudança. Confluindo no esforço do pensamento desses autores, onde o conflito entre a limitada ciência geográfica antiga e o que a experiência naval revelava os colocava em oposição a geógrafos, filósofos e doutores que eram admirados e respeitados no período. Os ditos modernos se diziam superiores aos autores clássicos pela prática das teorias clássicas, sendo então “anões em ombros de gigantes”97. Contudo, uma analise do período comprova que a experiência não significou o uso de informações “verdadeiras”. A experiência podia, de certa forma, ainda induzir a uma interpretação não condizente com a realidade geográfica. Um dos exemplos é do autor Duarte Pacheco que apenas acreditou na ideia de Ptolomeu, referente à quantidade superior das terras sobre o mar, porque para ele assim parecia. Depois das noticias do Novo Mundo no ocidente, a experiência, “mãe das cousas”, confirmaria que para além do mar-oceano havia grande quantidade de terras que circundariam o orbe.98 Essa crença na autoridade a partir da experiência provém da nova forma de encarar o mundo.99 Essa nova postura proveniente dos descobrimentos, iniciados pelos portugueses, inaugurou de acordo com Luis Filipe Barreto três importantes mudanças. A primeira referiu-se a explosão informativa planetária sobre o homem e a natureza instalando uma comunicação global; a segunda remeteu ao acelerado desenvolvimento técnico e científico nas áreas da astronomia náutica, cartografia, magnetismo terrestre, arquitetura naval e militar, hidrografia, botânica, zoologia, geologia, antropologia, entre outros; e por fim, o mais importante para essa pesquisa, a crítica racional, sistemática e fundamentada de muitos princípios chave, em especial os informativos, do 94 Ver OSÓRIO, João de Castro(org.). Idearium Antologia do Pensamento Português: A Revolução da Experiência. Lisboa: SNI, 1947, p.16. 95 PEREIRA, Duarte Pacheco. Esmeraldo De Situ Orbis, Lisboa: Fundação Calouste Goulbenkian, 1991. 96 CASTRO, D. João de. Tratado da Sphera (cerca de 1540), in Obras Completas de D. João de Castro.Coimbra, 1968-1981. 97 MARAVAL, J. A. Antigos e Modernos. Madri: Aliaza, 1986. 98 PEREIRA, Duarte Pacheco. Esmeraldo De Situ Orbis, Lisboa: Fundação Calouste Goulbenkian, 1991, p. 351. 99 Cf. capítulo “Viagens e Contestação” presente na obra ASTON, Margaret. O Século XV. Lisboa: Verbo, 1968, pp.89-124. 67 conhecimento herdado da Antiguidade Clássica e do período Medieval que poderiam ser aceitos segundo critérios fundados na observação, comparação, razão e não no critério mais tradicional da autoridade.100 Isso seria responsável por instaurar “o novo”, pois as informações de caráter geográfico (pertencentes a área cosmográfica) até o século XV em sua maior parte era explicada pelos através de lendas provindas ou dos autores clássicos, ou da Bíblia. A experiência representaria, portanto, uma mudança de atitude, uma contestação a essa ordem posta. Um elemento importante na contribuição dessas novas informações seria a imprensa. Antes da sua adoção sistemática com a gravação dos mapas, o desenho era feito a mão, dependendo do grau, rigor, habilidade e saber cartográfico além dos copistas. A difusão era restrita, a elaboração de uma cópia era demorada e cara. Num novo exemplar poderiam ser introduzidos novos dados, corretos ou não, sendo algumas das alterações intencionais outras involuntárias. A durabilidade dos mapas era outro problema, sobretudo os que eram desenhados para fins utilitários. A imensa maioria dos mapas que não foram gravados na Itália, na Alemanha ou nos Países Baixos, perderamse com o uso, tanto mais que eram substituídos por outros, atualizados. Os manuscritos persistentes foram provavelmente não feitos para fins práticos, serviam para decorar um palácio, satisfazer a curiosidade de um erudito, ou servir como oferta a nobres eclesiásticos. Por isso mesmo, os mapas portugueses produzidos ao longo das descobertas no atlântico no século XV não sobreviveram. Tinham um caráter eminentemente utilitário enquanto fonte de informação, meios de localização e bases para registro de novos dados.101 Segundo Jeremy Black, a situação inicial da Europa mudou radicalmente no século XVI com os mapas sendo impressos pela primeira vez na década de 1470. Isso possibilitou com que eles fossem produzidos mais rapidamente e distribuídos amplamente resultando em uma maior quantidade de mapas que os cartógrafos tinham contato e, consequentemente se influenciavam cada vez mais por outros exemplares. Desta forma, a imprensa facilitou a troca de informações, os processos de cópia e revisão que eram tão importantes para a confecção levando a uma ênfase no aspecto 100 Ver BARRETO, Luis Filipe. Portugal Mensageiro do Mundo Renascentista. Lisboa: Imprensa Nacional, 1988, p.23. 101 O autor David Woodward fez um estudo de como a cartografia se aproximou muito da tipografia em relação a marcação da toponímia. Assim o autor vai verificando ao longo da história da produção dos mapas como esse registro escrito varia e influi na leitura dos mapas. Cf. WOODWARD, David. “The Manuscript, Engraved, and Typographic Traditions of Mapping Lettering” In: WOODWARD, David (edit). Art and Cartography. Six Historical Essays. Chicago: The University of Chicago Press, 1987, p. 15. 68 comercial. Inaugurando assim uma nova dinâmica para a produção e a propagação do mapeamento. 102 Essa possibilidade de impressão trouxe uma grande mudança também em relação as matrizes de produção dos mapas. Inicialmente eram realizados em madeira passaram a ser feitas no cobre. As novas gravações feitas nesse metal tinham, no geral, um desenho mais fino do que na madeira. Além disso, era relativamente fácil corrigir erros nas placas de cobre, que podiam também ser reutilizadas. Em qualquer dos casos a gravação era feita somente com uma cor, e depois da impressão, os exemplares eram pintados manualmente, um a um. 103 2.2 – A Síntese em Fra Mauro Os mapas aqui estudados encontram-se imersos em diferentes décadas da segunda metade do século XV e no século XVI. Em cada um deles podem ser identificadas questões envolvendo a sociedade da época. Pois, o produto final torna-se uma resposta a uma solicitação visando à legitimação de algo. Lembrando que esses exemplares foram destinados a cumprir uma função não prática, mas de ornamentação para príncipes ou outros indivíduos que pudessem custear sua confecção significava, então, que eles deveriam conter um determinado discurso. Dentro das solicitações de cada financiador estaria toda uma leitura do mundo que o agradasse diretamente. Buscou-se, então, segundo os dados de cada cartógrafo interpretar cada um desses mapas dentro de seu objetivo próprio. Segundo Harley o poder interno do objeto cartográfico se dava através da compilação, generalização, classificação, hierarquização de dados geográficos, e longe de ser simples atividades técnicas neutras, implicavam no funcionamento de relações de poder-conhecimento.104 Dessa maneira, o conhecimento do mundo pelos cartógrafos era apresentado em seu mapa segundo as suas seleções próprias gerando um poder sobre aqueles que observariam seu mapa. Fra-Mauro foi um monge de Murano, localidade próxima de Veneza, que possuia uma grande reputação como cartógrafo. A primeira referência obtida sobre seu ofício data de 1447 quando estava trabalhando em um mapa-múndi. Dez anos mais tarde foi comissionado pelo rei D. Afonso de Portugal para fazer outro mapa. O monarca pediria ao monge que compusesse uma representação de todo o mundo conhecido utilizando as 102 Ver BLACK, Jeremy. Mapas e História: construindo imagens do passado. Op. Cit, p.23 e 24. ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. Op. cit.,54. 104 Cf. HARLEY, J. Brian. La Nueva Natureza de los mapas. Op. Cit., p.144. 103 69 suas habilidades técnicas como cartógrafo. Para realizar a tarefa, Fra Mauro utilizou uma série de informações que possuía no período. Dentre as influências que herdara das produções cartográficas como referido no capítulo primeiro, as referentes às cartas que mostravam os últimos descobrimentos portugueses teriam sido dados a ele por pedido do próprio D. Afonso. Essa menção feita às cartas é comprovada pelas inscrições colocadas na costa ocidental da África pelo cartógrafo. Em relação ao restante do continente asiático além da baseada em outros mapas, Crone acredita que Nicolo de Conti teria facilitado ao monge várias informações verbais sobre o sudeste do continente, mais do que haveria em seu relato publicado. Isso seria comprovado pelos mínimos detalhes sobre o comércio local presente no mapa, como confirma a observação próxima a Irrauaddy onde as mercadorias se transportavam de rio a rio, e seguiam até Catay. Já os detalhes da África, Crone também afirma que provinham da igreja copta da Abissínia, que manteve um contato direto com a cidade do Cairo e Jerusalém através de seus emissários, tornando-se as fontes principais do cartógrafo italiano.105 O mapa-múndi foi feito em formato circular com um diâmetro aproximado de 2 m traçado em pergaminho e montado sobre madeira. Para realizar esse trabalho Fra Mauro contou com a ajuda de outro cartógrafo, André Bianco. Este último já havia desenhado um mapa do mundo em 1436, e uma grande quantidade de iluminuras. O mapa de Fra Mauro foi finalizado em abril de 1459 e enviado a Portugal. Depois disso não existem registros de sua trajetória, nada que possa indicar o destino que teve no reino lusitano. O cartógrafo morreu no mesmo ano, enquanto trabalhava em uma cópia daquele mapa destinada a uma senhora de Veneza. Essa reprodução foi completada alguns meses depois, pelo seu ajudante, André Bianco, ainda em 1459. Este outro exemplar sobreviveu ao longo dos séculos e encontra-se atualmente na Biblioteca Marciana de Veneza.106 Analisando as informações presentes no mapa juntamente com dados sobre a biografia do autor e o contexto social pode-se entender um pouco da proposta cartográfica presente em sua obra. A primeira das considerações refere-se a comparação deste mapa com outros exemplares feitos pelo cartógrafo. Assim, compreende-se que o enorme destaque as regiões da Pérsia e Mesopotâmia remete aos vários estudos 105 Cf. SCHULZ, Juergen. “Maps as Metaphors: Mural Map Cycles of the Italian Renaissance.” In: WOODWARD, David (edit). Art and Cartography. Six Historical Essays. Chicago: The University of Chicago Press, 1987, p.97. 106 CRONE, G. R. Historia de los mapas. Op. Cit, p.59 e 60. 70 anteriores que o monge teve sobre essas localidades. O costume de figurar esses espaços contribuiu para sua representação geográfica mais fidedigna. No entanto, sabe-se que a obra original não teria agradado ao rei lusitano, isso poderia ser atribuído justamente ao pouco enfoque dado pelo cartógrafo para as regiões do interesse português. Uma observação mais cuidadosa revela que Portugal e a costa ocidental do continente africano, resultado das explorações lusas, aparecem marginalizados na costa a direita. 107 Isso sugere que as expectativas para com a obra pelo produtor e pelo financiador não foram supridas. Ainda na obra de Fra Mauro encontra-se presente uma contradição não percebida pelo homem desse século XV e XVI. O problema da veracidade das informações gráficas e escritas, presentes nas legendas. Desse modo, para que seu testemunho fosse legitimado, o cartógrafo indicou que ele foi realizado através dos dados provindos de indivíduos contemporâneos. Estes teriam relatado fatos provindos da experiência que o monge confirmaria como sendo dele próprio: “Em meu tempo me é esforçado por comprovar os escritos com a experiência, ao largo de muitos anos de investigação e trato com pessoas dignas de maior crédito, as que tem visto com seus próprios olhos a verdade de quanto digo.”108 Essa estratégia de legitimação é uma retomada de uma tradição provinda de Heródoto, o primeiro a considerar a importância da viagem, da verificação, para a compreensão do mundo, distinguindo a fábula da verdade.109 Entretanto, essa busca por mostrar apenas aquilo que provinha da experiência própria ou de pessoas contemporâneas esbarrava na força da tradição. As lendas ainda ocupavam grande parte do mapa-múndi, que pode ser conferido na seguinte legenda: “Até o ano de nosso Senhor de 1420 um barco da Índia, em uma travessia do mar da Índia até as ilhas dos homens e das mulheres, foi levado mais para lá do cabo de Diab através das Ilhas Verdes e a obscuridade até o oeste e o sudoeste por quarenta dias, não encontrando outra coisa que ar e água; segundo seus cálculos se percorreram 2.000 milhas e a sorte os abandonou. Regressaram ao dito Cabo de Diab em setenta dias e, ao parar próximo a costa para aprovisionar-se, os navegantes viram um ovo de um pássaro chamado roc, sendo o ovo tão grande como um tonel de sete galões e o tamanho do pássaro é tal que desde a ponta de uma asa a outra era de sessenta passos e pode quase com facilidade levantar um elefante ou qualquer animal grande. Causa grandes prejuízos aos habitantes e seu vôo é muito rápido.” 110 107 A disposição dos continentes em Fra Mauro encontra-se contrária a prática convencionada no século XVI de dispor a Europa ao norte, África ao sul e Ásia ao Leste. Portanto, o mapa conserva um pouco da influência árabe de colocar a África ao norte, a Europa ao sul e a Ásia ao oeste. 108 Citado por CRONE, G. R. Historia de los mapas, p.61. 109 Cf. DORÉ, Andréa. “Cristãos na Índia no século XVI: a presença portuguesa e os viajantes italianos” In: Revista Brasileira de História, vol. 22, nº44, 2002, p.313. 110 Citado por CRONE, G. R. Historia de los mapas, p.61. 71 O roc é um pássaro fabuloso que se encontra presente na obra clássica de origem árabe Mil e uma noites. Porém, quinhentos anos antes da data do mapa, um cronista árabe em um escrito sobre Soffala se referia a uma história análoga. Nela um bote não somente arrastou a tripulação a uma tempestade, mas também encontrou o roc. Desta forma, Fra Mauro construiu seu mapa apoiando-se também em uma tradição lendária provinda de fontes árabes. Comparando-se esses dois trechos presentes no mapa observa-se sua contradição. No primeiro há a afirmação da utilização apenas de informações comprovadas pela experiência, mas, no segundo têm-se os dados referentes a lendas árabes. Ou seja, a experiência provinda com as navegações portuguesas por um lado não significava necessariamente que a tradição seria banida do mapa. Pois o próprio Fra Mauro não era capaz de perceber essa contradição111 justamente por causa da retórica desse homem renascentista. Não havia, portanto uma diferença nítida entre experiência e tradição, as duas coisas poderiam estar em conjunto. Além disso, a afirmação do uso de referências provindas de “cousas vistas” remete também a tradição literária de legitimação do relato produzido. 112 Esse é um dos fatores que contribui para uma confusão entre os dados provindos da práxis e da autorictas. Esse mistura dos dois grupos também está presente no já referido Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco que justifica a origem da povoação dos três continentes do Velho Mundo: “depois do universal dilúvio e total destruição, do qual por divino privilégio o Santo Noé e seus filhos escaparam [...], por eles e sua geração foi possuído todo o universo, e por esta causa se diz que Sem, seu primogênito habitou a parte oriental e Cão a parte do meio-dia e Jafeth habitou a parte setentrional” 113 Nessa passagem existe uma clara influência das Sagradas Escrituras que certamente traziam o religioso para uma explicação geográfica. Porém, em outra passagem da obra há a seguinte afirmação: 111 Cf. FIORANI, Francesca. The Marvel of Maps: art, cartography and politics in Renaissance Italy. Londres: Yale University Press, 2005, p. 2. A autora trabalha com a “contradição” existente na corte de Gregório XIII que colocou no corredor do Vaticano no teto histórias religiosas, santos, e milagres, e, ao longo do corredor havia uma série de mapas da Itália moderna. 112 Cf. DORÉ, Andréa. “Cristãos na Índia no século XVI: a presença portuguesa e os viajantes italianos” In: Revista Brasileira de História, vol. 22, nº44, 2002, p.313. 113 PEREIRA, Duarte Pacheco. Esmeraldo De Situ Orbis, Op. Cit, p. 541. 72 “A experiência nos faz viver sem engano abusões e fábulas que alguns dos antigos cosmógrafos escreveram acerca da descrição da terra e do mar. Disseram que toda a terra que jaz debaixo do circulo equinocial, era inabitável pela grande quantidade do sol. E isto achamos falso e pelo contrário.” 114 Duarte Pacheco neste trecho credita a legitimação da sua afirmação ao uso da experiência afastando-se da proposição de Isidoro de Sevilha e Lactâncio que afirmavam que a zona tórrida (abaixo do circulo equinocial) não poderia ser habitada devido ao excessivo calor. Entretanto, no primeiro trecho o autor ainda deixa-se influenciar pela explicação bíblica. Logo, pode-se dizer que no período correspondente ao Renascimento não existiu uma ruptura brusca com a tradição bíblica e erudita clássica por meio da experiência náutica. O conhecimento marítimo não significou um afastamento completo de todas as crenças antigas. Trinta anos após o exemplar manuscrito feito pelo monge veneziano, a Itália também seria o local da produção do mapa de Martellus. 2.3 – Henricus Martellus e a Geographia de Ptolomeu De origem alemã, Henricus Martellus115 também era referido com o sobrenome Germanus. Foi um dos copistas ocupado com as reproduções modernas da Geografia de Ptolomeu. Na época em que o cartógrafo realizou sua obra as descobertas portuguesas prosseguiam na costa africana com a conclusão da viagem de Bartolomeu Dias (1488), que havia dobrado o Cabo das Tormentas, rebatizado, de Cabo da Boa Esperança. Portanto, no momento que a obra do alexandrino ganhava mais edições o conhecimento náutico exigia que fossem acrescentadas novas tábuas para dar conta das novas informações geográficas evidentes. Acrescentando assim a “modernidade” as regiões que na obra de Ptolomeu não estariam tão bem representadas. Em meados do século XV Martellus era um dos quatro indivíduos responsáveis pela reprodução da obra do alexandrino juntamente com seus mapas. Os outros eram P. de Massajo, c. 1458-72, Nicholaus Germanus, 1464-71 e Francesco Berlinghieri na década de 1480. Esses cosmógrafos, da mesma forma como Fra Mauro, não aceitaram sem críticas as ideias de Ptolomeu. Essas novas edições publicadas ao longo do século XV tiveram a inclusão de um número de mapas contemporâneos para o estabelecimento de uma comparação com 114 115 Ibid, p. 548. Ver: ASTON, Margaret. O Século XV. Op. Cit., 1968, p. 47. 73 os manuscritos da obra. Objetivando, desta maneira, a complementação com os locais não representados, ou uma melhor apresentação dos locais antigos. 116 Numa das edições de Martellus, encontrada atualmente na Biblioteca Nacional de Florença, existem treze mapas feitos por ele mostrando os aspectos “modernos” de regiões da Itália117. Produziu essas obras em Florença mostrando os Alpes cuidadosamente em um forma de “concha de ostra”, contornados e coloridos em castanho escuro com castanho claro e branco na parte central. 118 Como informado no capítulo anterior, Martellus produziu sua obra no mesmo ano que ocorreu o retorno de Bartolomeu Dias a Europa. Assim, ele contou com informações contemporâneas das viagens lusas comprovando a circulação das notícias das viagens ultramarinas. Questionando assim a ideia de um “sigilo” dos descobrimentos portugueses ao longo do século XV. De acordo com Alegria seria difícil alegar a ocorrência dessa política, pois os exemplares cartográficos relatando os descobrimentos fora de Portugal foram produzidos com tanta rapidez e rigor, não só numa ocasião ou por apenas um autor concreto, mas repetidamente e constantemente. Consistindo em vários cartógrafos ao longo do século XV e XVI. A autora conclui que se essa estratégia portuguesa realmente existiu não foi mostrou-se eficaz, porque não restringiu as informações provindas dos descobrimentos lusos. 119 Analisando ainda a vida e mapa do autor alemão nota-se que o resgate das informações provindas da Antiguidade Clássica, por meio de Ptolomeu não significou o seu uso restrito. As notícias veiculadas por toda a Europa acerca das novas regiões conhecidas abaixo da zona tórrida implicaram uma revisão sistemática da autoridade da Geografia e de outros autores clássicos. Não se poderia mais ignorar as informações das experiências náuticas portuguesas no Atlântico. Consequentemente, mesmo sendo um dos copistas responsáveis por lançar novas edições do livro clássico, Martellus não reproduziu apenas as tábuas antigas, mas, realizou inclusões na costa africana ocidental, além de incluir novos mapas regionais com o aperfeiçoamento de regiões da própria Europa. 116 Cf. EDGERTON, Samuel Y. Jr. “From mental matrix to mappamundi to christian Empire: The Hegitage of Ptolomaic Cartography in the Renaissance.”, op. cit., 16. 117 O termo Itália refere-se a localização geográfica e não política. 118 Essa representação local é fruto também da influência de Ptolomeu. Pois ele aconselhava a representação de pormenores Cf. CONTA, Gioia. “El estúdio de la Geografia Histórica”, op. Cit, p.25; e CRONE, G. R. Historia de los mapas. Op. Cit, p.79 e 80; ALPERS, Svetlana. “O impulso cartográfico na arte holandesa” In: A Arte de Descrever. São Paulo: Edusp, 1999, pp. 263-265. 119 Ver ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. Op. cit.,38. 74 A imprensa também se mostrou importante no caso do mapa do cartógrafo alemão. O exemplar que serve de fonte para essa pesquisa produzido em 1489 possuiu versões gravadas e manuscritas, entre as quais hoje encontram-se em Leiden, Londres e Yale. A gravação original foi realizada em Florença por Francisco Roselli, e uma das reproduções, o enorme exemplar manuscrito da Universidade de Yale, possui 1,2m x 1,8m e é o único a possuir graduação em latitude e longitude.. Da gravação de F. Roselli é provável que um exemplar possa ter chegado ao conhecimento de Cristóvão Colombo (confirmando a ideia de Toscanelli de que o Cataio, isto é, o Japão, se situava bastante próximo da Europa). Uma outra seria vista em Nuremberga por Martin Behaim, que inspirou no mapa de Martellus para construir o primeiro globo terrestre em 1492.120 O exemplo do uso da impressão na obra do cartógrafo alemão mostra que dentro de uma mesma série de mapas gravados existem diferenças consideráveis. Como lembra Harley, quando se deu a transição da era do manuscrito para a da impressão, a divisão de trabalho do cartógrafo se acentuou, o autor se converteu em uma figura sombria e a tradução da realidade que ele registrava era mais complexa.121 Assim, dentro de uma obra gravada existem inúmeras interferências que contribuem para a intertextualidade final. A confirmação de que a obra de Ptolomeu não refletia toda a realidade do globo terrestre veio com a descoberta da América122 em 1492. Ou seja, deste momento em diante, as navegações ibéricas provaram que as teorias clássicas sobre a disposição da Terra não correspondiam com a realidade geográfica. Havia uma boa parte do orbe desconhecido dos cosmógrafos clássicos e medievais. O “Mundus Novus” seria figurado pela primeira vez pelo cartógrafo navegador Juan De La Cosa e dois anos mais tarde aparecia na carta atribuída a Cantino. 2. 4 – A Divisão do Mundo em Juan de La Cosa e Cantino La Cosa foi um navegante espanhol que acompanhou Cristóvão Colombo, a serviço dos Reis Católicos de Espanha, em sua segunda viagem. Posteriormente 120 ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. Op. cit.,54 e 55. Cf. HARLEY, J. Brian. La Nueva Natureza de Los Mapas. Op. Cit., 64. 122 O nome do continente seria creditado a Américo Vespúcio porque ele verificou que se tratava de um novo continente e não de ilhas asiáticas. Essa conclusão foi consagrada por Waldseemuller com o termo “América” para o novo continente. Cf. DELEMEAU, Jean. A civilização do Renascimento. Op. Cit, p.337. 121 75 realizou outras viagens ao continente americano, e traçou várias cartas, que estão perdidas. Seu mapa de 180x96cm foi desenhado em pergaminho e ao longo do tempo acabou sofrendo importantes danos. Os dados sobre sua produção encontram-se em uma legenda na margem oeste, ao pé do desenho de São Cristóvão: “Juan de La Cosa a fez no porto de s. Maria no ano de 1500”. Dois anos após a produção de La Cosa surgiu o primeiro exemplar português que registrou o Novo Mundo, sendo conhecido como a carta de Cantino. Esse nome foi atribuído devido ao feito de um indivíduo chamado Alberto Cantino, que teria furtado esse exemplar português para o Duque de Ferrara, chamado de Hércules d’Este. A carta teria sido obtida clandestinamente para satisfazer a curiosidade do duque, angustiado diante da ameaça que pairava sobre a participação italiana no comércio de especiarias. A correspondência relativa ao acordo entre ambos, chegada até hoje, confirma que o duque recebeu a carta em novembro de 1502, e que incorporava descobrimentos recentes realizados no verão do mesmo ano. É um consenso entre os historiadores da cartografia que a carta foi produzida por um cartógrafo português. Numa das suas partes existem indícios de que foram feitas algumas correções posteriores na costa brasileira, e se escreveram uma meia dezena de nomes italianizados. O título ao mapa é: Carta marina das ilhas recentemente descobertas nas partes das Índias. No mapa as costas se apresentam com muito detalhe e existe grande quantidade de nomes desde o ocidente até o oriente abarcando desde Cuba até a costa oriental da Ásia. Essas duas obras que testemunharam o nascimento da América para a Europa foram produzidas com um intervalo de apenas dois anos. Nelas pode-se estabelecer um paralelo pela proximidade de tempo e representação do novo espaço, referente ao continente americano. Incluindo também a apresentação da nova configuração do mundo resultante da divisão estabelecida pelo Tratado de Tordesilhas, no ano de 1494. Devido às particularidades de cada um dos cartógrafos, a representação do mundo foi realizada de formas muito diferentes. Em Juan De La Cosa o continente americano aparece figurado seguindo a influência das sua viagem ao novo mundo acompanhado de Colombo. A América corresponderia, portanto, a área de interesse dos reis espanhóis, e desta forma foi figurada com tons verdes aparecendo enigmaticamente representando o contorno litoral sul lembrando o nordeste brasileiro. Seguindo para a América do Norte o contorno é feito em uma continuidade sem aparecer a especificidade referente a América Central. O Novo Mundo estende-se para fora do plano delimitado pelo mapa simbolizando o 76 desconhecimento do interior dessas terras, mas da mesma forma cogita-se que elas poderiam se estender para além do litoral conhecido. Outra importante representação presente no continente remete a figura de São Cristóvão - um mártir que teria transportado o menino Jesus sobre os ombros para atravessar um rio - ocupando o meio do continente disfarçando o um conhecimento regional não aprofundado123. Esse símbolo ainda remeteria a Cristóvão Colombo que se considerava associado a esse personagem. Tanto que em suas viagens ele estava permanentemente dotado de uma missão religiosa, como confirmada pela sua associação do Rio Orinoco com a foz do rio provindo do Paraíso. Revelando, dessa forma, o forte componente religioso presente nesse contexto. Já em relação à África, La Cosa a desenhou perfeitamente bem na costa ocidental melhorando a representação do mapa de Martellus. No entanto, a parte oriental do continente ainda é muito precária. Já o continente asiático, incluindo a península arábica, ainda é representado seguindo o modelo estabelecido por Ptolomeu em suas tábuas. Diante da distribuição das terras do globo no mapa do viajante espanhol observase sua distribuição privilegiando o continente americano. Na carta aparece uma linha transversal que poderia ser associada a linha estabelecida por Tordesilhas apesar de não ser confirmada pelos autores consultados. Essa hipótese surgiu devido a não existência de nenhuma outra linha com essa orientação124 na carta. Como o uso sistemático de meridianos não ocorre e a linha passa justamente na parte oriental do continente americano dentro do que seriam as pretensões espanholas. De qualquer forma, a carta privilegia fortemente o continente americano representando mais de 1/3 de todo a distribuição espacial das terras. No caso do mapa de Cantino o enfoque dado no mapa-múndi é o hemisfério português acertado entre os reinos ibéricos. Iniciando a descrição do mapa pela esquerda aparece a pequena parte destinada aos espanhóis, as chamadas pelo cartógrafo de “as antilhas do Rei de castela” e como mostra outra legenda: “Toda esta terra é descoberta por mandado do rei de castela”. Essa representação americana no lado 123 Essa é uma técnica amplamente utilizada na história da cartografia, que descende dos mapas simbólicos medievais, de encobrir um desconhecimento geográfico com uma ornamentação como referido no capítulo primeiro. 124 Juan de La Cosa não seria o último cartógrafo a não representar a convenção de dispor a Europa no alto. Pois os mapas se localizavam de acordo com o Apenninespine (linha formada pelos Alpes). Esses mapas estavam presentes no corredor no Vaticano da segunda metade do século XVI. Cf. FIORANI, Francesca. The Marvel of Maps: art, cartography and politics in Renaissance Italy. Op. Cit, p.2. 77 espanhol restringe-se a algumas ilhas do Caribe, uma pequena parte da América Central e parte do litoral norte da América do Sul. As duas regiões que representariam o continente americano, e portanto são interligadas não aparecem unidas no mapa. Isso indica que o cartógrafo não se preocupou em utilizar-se da estratégia comum no período de completar o interior dos locais desconhecidos como havia feito La Cosa. Diferindo radicalmente desse pouco cuidado com a região que seria espanhola do Novo Mundo, a região portuguesa foi figurada diferentemente. A costa brasileira aparece bastante clara contando com a representação de três araras no seu interior. Ainda na região portuguesa foi figurada a região do Labrador correspondendo as viagens empreendidas pelos Corte Real.125 O continente africano aparece bem representado no seu contorno da costa ocidental como oriental, a carta é infestada com os baluartes portugueses lembrando as principais viagens de descoberta do continente, como a de Diogo Cão, Bartolomeu Dias, Vasco da Gama. O destaque encontra-se certamente, junto com as araras no Brasil, é a ornamentação da Serra Leoa e um dos grandes símbolos da expansão portuguesa, o Castelo “Da’mina”. Outro ponto também importante é a inovação no desenho da Índia enquanto península resultado direto da viagem de Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral. No entanto, após a Índia, o restante do globo correspondendo a península da Malásia e as outras localidades a leste provém das informações consagradas pela tradição ptolomaica como mencionado no capítulo anterior. 125 A região do Labrador e da Terra Nova foi descoberta por viagens dos portugueses Corte-Real, mas nunca foram efetivamente colonizadas. Para mais informações ver ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. Op. cit, 45 e 46. 78 Figura 48 e 49 – O Tratado de Tordesilhas em La Cosa(suposto) e Cantino Consequentemente, a comparação entre esses dois mapas permite perceber as entrelinhas do jogo cartográfico. A partir do contexto diferente de cada autor, um a serviço da Espanha e o outro um representante de Portugal, a obra é refletida. O realce em La Cosa dos territórios descobertos a ocidente e conseqüente representação tradicional dos contornos litorâneos do Índico remete fortemente ao conjunto dos conhecimentos e interesses da corte espanhola no período. De forma contrária, em Cantino as principais áreas de interesse português são desenhadas com grande destaque tanto referente à informação geográfica como referente à ornamentação. Isso mostra como o cartógrafo tinha um condicionamento referente ao local onde realizou a obra, bem como dos financiadores diretos ou indiretos. Assim, La Cosa não representou a Ásia mais próxima ao real como seu vizinho português porque ou ele não teve um interesse para com esse local ou as informações do meio em que se encontrava não o permitiram. Por outro lado Cantino 79 deixou partes do continente americano sem uma ligação terrestre deixando de imprimir uma suspeita recorrente de especulação sobre territórios desconhecidos. De qualquer maneira a divisão do mundo acertada em Tordesilhas, testemunhada pelos dois exemplares cartográficos, não iria resolver por completo as divergências entre os reis ibéricos. Uma vez provou-se que a Terra é esférica, o limite oriental dessa divisão do mundo deveria ocorrer no oceano Pacífico. Próximo a esse ponto encontravam-se importantes ilhas produtoras das cobiçadas especiarias, as Molucas. O que gerou, na da década de 1520, uma nova disputa entre os dois reinos testemunhada pelo mapa-múndi de Diogo Ribeiro. 2.5 – O “Padrão Real” em Diogo Ribeiro No início do século XVI surgiu na Espanha o “Padrão Real”, uma carta que registrava oficialmente os descobrimentos obtidos até o momento. Havia sido criado por ordem do rei Fernando, em 1508, e teria que ser revisado à medida que progredissem as explorações pelo globo. Essa atualização periódica foi deixada aos cuidados dos funcionários da Casa de Contratação de Sevilha. Nenhuma cópia autentica das várias cartas que pertenciam a esse modelo sobreviveram, mas esse estilo apareceu representado nas cópias feitas pelos cartógrafos oficiais, os funcionários reais que tinham a função de confeccionar a carta original.126 Na Espanha encontravam-se muitos cartógrafos provindos de Portugal, um deles era Diogo Ribeiro. Foi expulso de seu país nativo e no ano de 1519 estava em Sevilha em contato com a família de cartógrafo dos Reinel, quando fazia os preparativos da viagem de Magalhães. Cinco anos mais tarde, era referenciado em Sevilha pelos espanhóis como “nosso cosmógrafo e mestre em fazer mapas, astrolábios e outros instrumentos de navegação”. Foi ainda um assessor técnico da delegação espanhola na conferência de Badajoz, quando se tentou negociar um acordo com Portugal sobre a posição das Molucas127. Acordo esse, que não pode ser levado a diante, porque ambas 126 A expansão espanhola no período que vai de 1474 até 1524 é impressionante como analisado por Bárbara Mundy. Ver: MUNDY, Bárbara E. The mapping of New Spain indigenous cartography and the maps of the relaciones geográficas. London: The University of Chicago Press, 1996, p. 9. 127 A história da chegada dos europeus a essa ilha remete a presença portuguesa no Índico. Já no final do século XV os portugueses tiveram conhecimento da existência de uma importante cidade a oriente, Malaca. Ela controlava o comércio do Extremo Oriente. A conquista dessa cidade veio a ocorrer em agosto de 1511, o que fez com que as portas dos mares da Insulíndia se abrissem. E só aí descobriram a existência de um pequeno conjunto de ilhas que produzia o cobiçado cravo. Essa informação chegou aos 80 as partes se mantiveram seguindo suas aspirações. Assim, por decreto real de 1526 se preparou todo o material necessário para que Ribeiro fizesse uma carta e um mapamúndi que descreveriam todos os descobrimentos, uma revisão do “Padrão Real”. No ano seguinte foi designado examinador de pilotos, na ausência de Sebastião Caboto, que se encontrava em uma expedição. Ribeiro alcançou uma posição muito destacada no serviço da Espanha, sendo conhecido como Diego Ribeiro, onde permaneceu até a sua morte em 1533. 128 De toda a sua obra sobreviveram três cartas do mundo de tipo análogas, uma feita provavelmente em 1527 (não está com a data referida), e duas cópias datadas de 1529. Elas representam uma mistura das influências cartográficas portuguesas e espanholas produzidas no desenrolar do conhecimento do mundo, compreendido o circuito total do globo entre os círculos polares, com o arquipélago das índias Orientais, que aparecem em ambas as margens, de ocidente a oriente. Revelando muito da visão espanhola acerca da divisão do mundo nos dois hemisférios a carta de Ribeiro testemunha a disputa no extremo oriente. A estratégia empreendida pelo cartógrafo resulta na disposição dos continentes.129 Pois, ele exagera na extensão oriental da Ásia, no qual Cantão (China) se posiciona a uns 20º mais ao leste que onde deveria. A distância entre o continente asiático e as Molucas foi reduzida resultando na disposição dessas ilhas a 172º 30´O da linha divisória de Tordesilhas, isso corresponderia a sete graus e meio dentro do lado espanhol. Com isso a carta validava a posição espanhola pelo prolongamento oriental asiático com a posição “errônea” de 11º das ilhas Molucas. 130 Essa localização das “ilhas das especiarias”, um dos mais importantes centros de abastecimento do comercio oriental, nas proximidades da linha de demarcação hispanoportuguesa, teve um efeito estimulador nos estudo de cosmologia e cartografia. Ambas as partes, ansiavam demonstraram que as ilhas estavam em seu lado. A questão era tão disputada que, dados os meios de que dispunham os protagonistas, tiveram necessidades espanhóis que também queriam participar desse rico comércio. Ver: THOMAZ, Luis F. De Ceuta a Timor. Op. Cit, p. 547. 128 CRONE, G. R. Historia de los mapas. Op. Cit, p.104 e 105. 129 Essa estratégia de adequar o mundo dentro de uma representação geográfica para validar uma posição é muito usado na história da cartografia. Um exemplo é de como o mito da ilha Brasil fez com que o espaço luso na América do Sul fosse construído diante dessa configuração estritamente cartográfica. Para mais detalhes desse mito Cf. DE BIAGGI, Enali; DROULERS, Martine. “L’Île Brésil: La Force d’um myth cartographique.” In: Mappa Monde, nº69, 2003, 43. 130 Os estudos dos historiadores da cartografia têm comprovado que a “dominação” e a “conquista” são elementos inerentes nos mapas renascentistas atuando, assim, com um poder da imagem acerca do interesse político e religioso. Cf. FIORANI, Francesca. The Marvel of Maps: art, cartography and politics in Renaissance Italy. Op. Cit, p.3. 81 de discutir o problema a fundo com ajuda das últimas cartas. No hemisfério ocidental a linha de Tordesilhas era o meridiano 46º37´ O. de Greenwich, e o equivalente no hemisfério oriental caía no meridiano 133º 30´E. As Molucas131 estão aproximadamente nos 127º 30´E. dentro da esfera portuguesa, aproximadamente uns 6º graus dentro dela. Sabendo disso, pode-se traçar a evolução da cartografia que atingira uma nova parte do Oceano Índico com as ilhas orientais. Assim mesclaram feitos comprovados com os informes nativos para a produção de cartas relativamente a esse espaço. De acordo com Crone: “estas cartas são uma combinação de conhecimentos de primeira mão e de um uso crítico e pouco da informação nativa.”132 Incluindo-se ainda, segundo Harley, as intenções próprias do cartógrafo que selecionava as informações segundo a sua necessidade. 133 O mapa-múndi de Ribeiro, com as Molucas sete graus e meio dentro do lado espanhol, referiu-se a última prova da posição tomada pela Espanha134 na disputa, a qual tinha como certo que o meridiano oriental corria para lá do delta do Ganges. Destarte, da mesma forma como havia feito La Cosa, o hemisfério espanhol em Ribeiro atinge a maior parte do globo representando também mais de 1/3 de todo o mapa. Estabelecendo no região do pacífico uma grandiosa rosa-dos-ventos inaugurando uma nova disposição ornamental. Ao invés de símbolos provindos de lendas clássicas ou bíblicas, o cartógrafo utilizou de um instrumento de localização. 131 A situação era tensa. Portugal e Espanha guerreavam nas ilhas com tanto ardor como se o inimigo fosse um mouro. Na Europa as negociações não avançavam, pois o desconhecimento da exata longitude das ilhas não deixava definir quem, pela força do tratado, estava em seu direito. Ver: THOMAZ, Luis F. De Ceuta a Timor, op. Cit., p.187. 132 CRONE, G. R. Historia de los mapas. Op. Cit, p.103. 133 Cf. HARLEY, J. Brian. La Nueva Natureza de Los Mapas. Op. Cit., 64. 134 No mesmo ano do mapa-múndi a Espanha desistiu de suas pretensões por meio de compensação monetária, e acabaram se instalando nas Filipinas. Isso inauguraria uma nova rota das trocas comerciais no planeta, a rota Acapulco-Manila. Cf. THOMAZ, Luis F. De Ceuta a Timor, Op. Cit. p. 187. 82 Figura 50 e 51 – Tratado de Tordesilhas em Diogo Ribeiro, lado ocidental (esq.) e oriental (dir.) 83 Figura 52 – Representação da China no hemisfério espanhol. D. João de Castro135 na década de 1540 em trecho um trecho de seu Tratado da Sphera apresenta o conhecimento do mundo, cartografado por Ribeiro, realizado pelas viagens portuguesas e espanholas desmitificando o que Santo Agostinho e Lactâncio diziam sobre a inexistência de homens vivendo no hemisfério austral: “A experiência, que se tem acerca disto é que a navegação de nossos tempos revolveu o mundo todo e revolve ainda agora bem de vezes. Porque, além da nau de Magalhães que navegou toda a esfera em roda, depois disto, fazendo os Portugueses sua navegação para os últimos términos do Mundo, orientais, e os outros Espanhóis para os ocidentais, por vezes se encontraram e acabaram de rodear todo este globo em Maluco. E assim por toda a redondeza dele acharam mares que se navegam e terras que se habitam como estas nossas, 135 Um dos vice-rei da Índia. Esse cargo foi a delegação direta de poderes régios na figura de um nobre, o qual concentrava poderes políticos, militares, administrativos e judiciais de alta instância. Ver: ANDRADE, Amélia. “Novos Espaços, Antigas Estratégias: o Enquadramento dos Espaços Orientais”, Op. Cit, p.38. 84 bem contrárias umas das outras. E todos por eles andam e navegam direitos e carregam para o centro, como nós por cá.”136 O que João de Castro mostrou nesse trecho é que algumas idéias clássicas foram contestadas pela experiência marítima. A partir do feito de Magalhães137 e do conhecimento português das ilhas do Sudeste Asiático os principais contornos do globo estavam sendo traçados. Dentro desse século XVI também encontrava estabelecido todo um grupo de cartógrafos dentro de um mesmo estilo representativo. Sendo uma forma de confluência diferente do verificado em Diogo Ribeiro, que pertencia a um grupo de cartógrafos responsável pelo “Padrão Real”. 2.6 – André Homem e as Escolas Cartográficas André Homem pertencia às chamadas “escolas” cartográficas representando oficinas com uma tradição estilística própria. Em muitos casos contavam com familiares, tendo suas raízes nos ambientes da cartografia mediterrânica. Havia verdadeiras “dinastias” de cartógrafos, como a da família Reinel, da família dos Homens e da família Teixeira. Porém, estar ligado a essas escolas não significava fixarse em um mesmo local, pelo contrário. Muitos cartógrafos aprendiam todo um conjunto de técnicas e depois se deslocavam para outros centros na Europa que estivessem interessados no seu produto. Muitos cartógrafos portugueses exerceram essa atividade no estrangeiro atraídos por vantajosos contratos, quer temporariamente, como o caso de Jorge de Reinel, estando um período em Sevilha; ou no decurso de sua vida ativa como o já mencionado Diogo Ribeiro, que só trabalhou em Sevilha, ou como Diogo Homem, que esteve em Londres e depois fixou-se definitivamente em Veneza. No caso da família dos Homens ela teria surgiu com Lopo Homem que era cavaleiro fidalgo da Casa do Rei de Portugal. Produziu durante a primeira metade do século, e viveu sempre em seu país. O padrão de cartas estabelecido por ele influenciou inúmeras outras como dos seus filhos André Homem e Diogo Homem, e além de diversos outros cartógrafos. 136 CASTRO, D. João de. Tratado da Sphera (cerca de 1540), in Obras Completas de D. João de Castro.Coimbra, 1968-1981, p. 170 e 171. 137 Para conferir os detalhes da viagem ver: THOMAZ, Luis F. De Ceuta a Timor, op. Cit., p. 549. 85 André Homem seguiu o padrão dos Homem, realizou sua obra em Antuérpia, o que causou grande impacto em sua época sendo considerado por Richard Haklut o “príncipe dos cosmógrafos da atualidade”138. Sua obra é o maior planisfério lusitano contando com 1,50 x 2,94. Ele pare ter vivido muitos anos fora de Portugal, depois de fazer sua obra em Antuérpia segue para a França onde foi o cosmógrafo oficial do rei Carlos IX139. Apesar dos esforços do rei de Portugal para que ele retornasse ao país ele jamais conseguiu. Não se sabe ao certo mais antes do ano de 1559 o cartógrafo havia fugido para o estrangeiro. Além de André Homem e as famílias mencionadas, existiram muitos outros cartógrafos filiados a “escolas”, e a imensa maioria eram cartógrafos portugueses. Segundo Alfredo Pinheiro Marques foram listados 28 lusitanos com produção conhecida, e 19 referenciados em documentos, mas dos quais não se conhecem hoje em dia obras assinadas ou atribuíveis. 140 Desta forma, os modelos instituídos por esses centros representavam uma importante influência na produção das cartas. Pois representava a manutenção de representações próximas seguindo os mesmos padrões estilísticos gerando uma cópia de figurações anteriores..141 Figura 53 e 54 –América do Sul em André Homem 138 Para mais detalhes sobre as escolas cartográficas ver: MARQUES, Alfredo Pinheiro. A Cartografia dos Descobrimentos Portugueses.Op. Cit, pp. 49-64; ALBUQUERQUE, Luís (dir.). Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses v. I. Lisboa: Caminho, 1994, p.216. 139 Sobre a relação de cartógrafos e cortes conferir a obra de Francesca Fiorani. Ela examinou a cartografia feita em duas cortes, a do Duque de Cosimo I de Médici (1537-1574) e a corte do Papa Gregório XIII Boncompagni (1572-85). FIORANI, Francesca. The Marvel of Maps: art, cartography and politics in Renaissance Italy. Op. Cit. 2005. 140 Ver MARQUES, Alfredo Pinheiro. A Cartografia dos Descobrimentos. Op. Cit., p.57. 141 Nesse mapa aparece a iniciava da representação do Rio da Prata e afluentes a leste do meridiano de Tordesilhas. Cf. DE BIAGGI, Enali; DROULERS, Martine. “L’Île Brésil: La Force d’um myth cartographique.”,Op. Cit, p.43. 86 O mapa de André Homem representou um grande avanço na figuração dos contornos da superfície terrestre. Segundo Alegria, entre 1434, quando Gil Eanes dobrou o Cabo Bojador e a data do planisfério de André Homem, os navegadores portugueses tinham levantado mais de 60 000 quilômetros de costas figuradas de modo bastante preciso, com exceção do Japão com uma representação ainda arcaica. 142 Em André Homem também aparece retratada a divisão do mundo entre portugueses e espanhóis. A linha que separa os hemisférios atravessa a América deixando no lado português a foz do rio da Prata, enquanto que o mapa-múndi de Diogo Ribeiro deixa a região no hemisfério espanhol. Figura 55 – Tratado de Tordesilhas em André Homem Conclusão As especificidades relacionadas diretamente com o contexto do autor, diferentemente do legado provindo de outros mapas, influenciam enormemente a obra final. Suas marcas individuais estão sempre presentes na arte de cartografar além de serem influenciados pelos responsáveis por encomendar a obra e, portanto, com as expectativas para com o produto final, as disponibilidades técnicas para tal produção. Como cada caso analisado acabou por mostrar. 142 Cf. ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. Op. cit.,60. 87 Ainda observou-se que os autores encontravam-se imersos dentro do confronto surgido entre a tradição e a experiência. O que não representava, de certa forma, um dilema, pois havia, em certo grau, uma convivência entre ambas. O caso de Fra Mauro e Duarte Pacheco Pereira mostrou que a tradição ainda estava presente, mesmo contando com informações que se diziam tributárias da experiência sem que isso gerasse uma contradição para ambos. Desta forma, após analisar também Martellus e sua relação direta com a obra de Ptolomeu; La Cosa e Cantino com suas visões acerca do mundo; Ribeiro com o testemunho espanhol sobre o embate nas Molucas; e André Homem e o uso de uma tradição “familiar”; concluiu-se que todos os mapas produzidos nesse período contavam sim com as referências as novas regiões descobertas pela experiência náutica. Bem como, as tradições simbólicas medievais e clássicas como mostrado no capítulo anterior. Consequentemente, os dados para a construção dos mapas-múndi eram utilizados de acordo com a finalidade específica da obra. Ou seja, o contexto do autor influía decisivamente na composição, uma vez selecionando, destacando, ocultando...143 143 Cf. HARLEY, J. Brian. La Nueva Natureza de Los Mapas. Op. Cit., 64. 88 3 - CONCLUSÃO Ao final dessa pesquisa monográfica conclui-se primeiramente que nenhum mapa pode ser interpretado isoladamente, ou seja, ele sempre se relaciona com outras produções. A comparação estabelecida entre os mapas-múndi medievais e as tábuas de Ptolomeu, de um lado, e os seis mapas pertencentes ao século XV e XVI, de outro, mostram que a ligação é fortíssima. Constatou-se que em cada um as influências se estabeleceram de forma particular, em um determinado grau. Isso mostrou que o ofício cartográfico no início do Renascimento significava estar submetido, conscientemente ou não, a todo um aparelho referencial ligado a outras produções cartográficas. No entanto, essas informações logo cedo conviveram com os dados provindas das Grandes Navegações. As novas informações serviram aos espaços antes desconhecidos e que foram compondo os novos locais até então desconhecidos. Porém, a tradição da representação ptolomaica não desapareceu, ela continuou a ser uma importante peça para a representação de espaços ainda não atingidos pela experiência direta, como o caso dos Montes da Lua. Contribuindo nessa representação cartográfica, a ornamentação dos mapas-múndi da Idade Média também são soluções usadas para completar os espaços de que se tem pouca ou nenhuma informação. Assim, os mapas renascentistas confluem diversas formas de representação indicando muito mais uma convivência de influências do que uma escolha unilateral. Outra importante constatação é de que o período em que foram produzidos não indica necessariamente um melhor representação do “real” ajudando a derrubar a ideia de evolução cartográfica no Renascimento. Juntamente a essa conclusão primeira somam-se as especificidades relacionadas diretamente com o contexto do autor, pois, diferentemente do legado provindo de outros mapas, elas também influenciam a sua maneira a obra final. Essas marcas estavam presentes na arte de cartografar desses indivíduos, incluindo aí os responsáveis por encomendar a obra e, portanto, as suas expectativas para com o produto final, as disponibilidades técnicas para tal produção, como o caso dos mapas manuscritos e a imprensa, que marcou uma mudança profunda na divulgação dos mapas-múndi principalmente no século XVI. Ainda de acordo com todas as informações apontadas elas sofreram repercussão do dilema do homem da época referente ao confronto surgido entre a tradição e a experiência. Todos os mapas produzidos nesse período contavam, então, com 89 informações provindas da experiência náutica e das tradições simbólicas medievais e clássicas. Porém, utilizadas de acordo com a finalidade da obra como pode ser observado tanto em La Cosa como em Cantino. Isso pode ser exemplificado na forma como o cartógrafo Diogo Ribeiro selecionava os dados que estivessam de acordo com a finalidade específica de seu produto, retratando todos os descobrimentos até aquele momento. Porém, sua obra destinava-se a confirmar as pretensões espanholas acerca das Molucas, local onde o Tratado de Tordesilhas não tinha um limite de comum acordo entre os reinos ibéricos. O mapa foi então uma ferramenta para legitimar a posse dos espanhóis, com isso, a experiência náutica que então mostrava que as ilhas estavam do lado português não foi levada em conta. Assim, diante desses dois grupos de influências: outros mapas e contexto do autor; Construir um mapa-múndi na época renascentista significava utilizar-se dos novos dados sobre regiões exploradas pelas navegações. Contudo, como eles não podiam preencher todos os espaços do mapa-múndi, havia territórios ainda sob o domínio da tradição. Entretanto, a utilização dessas informações ou da tradição ou da experiência foi permanentemente condicionada pelo contexto próprio do autor. 90 REFERÊNCIAS ALBUQUERQUE, Luís de, “Algumas observações sobre o Planisfério ‘Cantino’ (1502)”, in: Estudos de História, Coimbra, Universidade de Coimbra, vol. IV, 1976. ALBUQUERQUE, Luís de, “Realidades e mitos de Geografia Medieval”, in Estudos de História, Coimbra, Por ordem da Universidade, vol. V, 1977. ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. In: BETHENCOURT, F. & CLAUDHURI, K(dir.). História da Expansão Portuguesa. Vol I. Lisboa: Circulo de Leitores, 1998, p. 55-60 BOXER, Charles R. O Império Marítimo Português. Companhia das Letras, (?). CORTESÃO, Armando. Cartografia e Cartógrafos Portugueses dos séculos XV e XVI. Lisboa, Seara Nova, 1935. CATTANEO, Angelo. “L’Atlas del Visconte de Santarém: Uma storia culturale europea tra erudizione, orientalismo e colonialismo” In: GARCIA, João Carlos (coord.). 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