temperos da vida

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O universo infantil, a literatura e as
novelas filosóficas
A importância do lúdico
Dalva Aparecida Garcia
A
imagem da criança é sempre um mundo de encantamento e mistério.
Freqüentemente nos perguntamos: o que será que essas criaturinhas pensam?
Será que verdadeiramente nos entendem? Será que as entendemos? Inúmeras
vezes nos surpreendemos com as relações inusitadas que elas fazem. Algumas
dessas relações consideramos manifestação de brilhantismo intelectual dos
nossos pupilos e, outras, pura ingenuidade que nos faz rir durante meses ou
anos. Muitas vezes, guardamos registradas na memória essas proezas para
aborrecê-los quando adolescentes.
A intriga diante do universo infantil mobilizou pesquisadores e fez nascer
teorias valiosas sobre o desenvolvimento cognitivo e afetivo da criança. Dentre
essas pesquisas, não podemos negar as contribuições de Piaget ou Vygotsky no
campo da Psicologia cognitiva. E à Psicanálise devemos inúmeras contribuições
nos estudos sobre as relações entre a imaginação e a formação da identidade da
criança.
Esses estudos permitiram aos educadores e à Pedagogia reavaliar o uso
dos recursos utilizados na escola, como os jogos, brincadeiras e as histórias
infantis. Brincar e contar histórias ganharam novos significados que ultrapassam
a idéia de deixar os pequenos intrigados e sossegadinhos por um bom período
de tempo.
Constatamos que as brincadeiras e histórias desempenham um papel
fundamental no desenvolvimento afetivo e cognitivo das crianças. Os estudos
sobre o jogo infantil possibilitam identificar a construção da função simbólica que
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se faz por meio da representação e permite destacar o pensamento da ação.
Segundo Vygotsky, na brincadeira os objetos perdem sua força determinadora
sobre o comportamento da criança, pois a ação, numa situação imaginária,
ensina a criança a dirigir seu comportamento não apenas pela situação que a
afeta de imediato, mas pelo significado destas situações. A brincadeira fornece
um estágio de transição em direção à representação. A chave da função
simbólica é a utilização dos objetos como signos e a possibilidade de executar
com eles ações representativas. Na brincadeira, o que é regra torna-se desejo e
fonte de prazer, o que no futuro, segundo Vygotsky, constituirá o nível básico da
ação e da moralidade. O desenvolvimento da imaginação associa-se diretamente
à aquisição da linguagem, que possibilita à criança imaginar um objeto que ela
nunca viu antes, ou seja, a criança aprende a separar-se da ação real através de
outra ação, desenvolvendo a vontade, a capacidade de fazer escolhas
conscientes e operar com situações que levam ao pensamento abstrato. A ação
na esfera imaginativa, numa situação de faz-de-conta, permite a criação da
intenção voluntária, de planos de vida real e do que se quer ou se quer ser.
O contato com o lúdico, com o jogo, com o faz-de-conta, neste caso,
ultrapassa a idéia de diversão e entretenimento e revela sua importância no
desenvolvimento do pensar da criança. Trabalhando com o Programa Filosofia
para Crianças – Educação para o Pensar, não podemos negligenciar a
importância do jogo simbólico no universo da criança, o que não significa
condicionar as aulas de Filosofia às brincadeiras, mas favorecer a transição do
pensamento concreto ao abstrato, da imaginação à vontade consciente de suas
intenções e implicações.
A literatura infantil e as novelas filosóficas
Dada a importância do jogo simbólico no desenvolvimento da criança, não
podemos deixar de falar sobre a importância que a literatura infantil tem adquirido
na educação.
Se tomarmos o uso e a função da narrativa no universo mítico entre os
povos primitivos, devemos reconhecer que o homem se relaciona com o mundo
que o cerca, antes pela emoção do que pela razão. No mito há uma tentativa de
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familiarizar-se com o desconhecido como forma de explicá-lo, ou melhor,
acomodá-lo. Não há uma separação entre o natural e o sobrenatural, entre o real
e o fictício, entre o eu e o outro. Tudo se relaciona ao todo numa esfera de
representação simbólica que reflete os anseios, os medos e desejos comuns à
humanidade.
Frutos dessa consciência mítica, os contos maravilhosos, as fábulas, as
lendas estavam longe de ser literatura para crianças. Tratava-se de um conjunto
de histórias derivadas das tradições de diversos povos, principalmente os
orientais. Tais histórias estavam ligadas aos eternos dilemas que o homem
enfrenta ao longo de seu amadurecimento emocional, ao eterno conflito entre o
eu e o outro, entre o bem e o mal, o vício e a virtude. A função simbólica destas
formas de narrativa permitiu que povos diversos as reconhecessem como um
valioso instrumento de persuasão moral ou de legitimação de valores e regras.
A descoberta da racionalidade científica afastou o homem adulto do
elemento fantástico. A essa fase mágica, já permeada pela preocupação crítica
com a realidade, correspondem às fábulas. Nestas, os animais representam os
vícios e virtudes que caracterizam os homens. Compreende-se, então, porque
essa literatura acabou se transformando em literatura infantil, embora tenhamos
que admitir que as forças da fantasia, do sonho, da imaginação ainda nos
fascinam e a indústria cultural sabe bem disso.
Podemos assim, de certa forma, afirmar que tanto na infância da
humanidade como na infância propriamente dita, manifesta-se uma consciência
a-histórica, pois se compreende a vida no presente. Existe aí a diferença entre o
viver uma coisa e conhecer uma coisa, entre a certeza imediata derivada da
intuição e o conhecimento que resulta da experiência intelectual ou da técnica
experimental. Para comunicar a primeira são adequadas as comparações, os
símbolos, as imagens; para as últimas são adequadas as leis, os conceitos, os
esquemas. Dessa forma, torna-se fácil entender porque a literatura foi usada,
desde suas origens, como instrumento de transmissão de valores, assim como é
fácil compreender porque essa literatura foi adaptada para as crianças.
Se considerarmos que os valores e padrões sociais, culturais, políticos são
essencialmente abstratos, temos que considerar que dificilmente seriam
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compreendidos por mentes propensas a conhecer através de emoções e
experiências concretas. A linguagem literária é a linguagem da representação
que pode concretizar o abstrato através de comparações, imagens, símbolos e
alegorias. Desde o início da história da humanidade essa capacidade de
representação tem sido a mediadora entre a capacidade de percepção intelectual
e o amadurecimento da inteligência reflexiva.
Segundo os psicanalistas, o maravilhoso sempre foi e continua sendo um
dos elementos mais importantes na literatura infantil. Há na estrutura dos contos
de fadas elementos que revelam um maniqueísmo entre o bem e o mal, o belo e
o feio, o poderoso e o fraco que facilita às crianças a compreensão de certos
valores que regem nossa sociedade; todavia, cabe a cada sociedade decidir o
que é bom ou mau, feio ou bonito, justo ou injusto. Ora, se efetivamente
queremos considerar as crianças como agentes ativos e transformadores da
sociedade, temos de pensar em formas de favorecer a reflexão sobre esses
valores, aí a importância de se diferenciar os diversos gêneros da literatura
infantil do que denominamos “novelas filosóficas” no Programa de Filosofia para
Crianças.
Comecemos com a fábula: podemos dizer que é uma narrativa de natureza
simbólica de uma situação vivida por animais, que alude a uma situação humana
e tem por objetivo transmitir certa moralidade. Seus personagens são sempre
símbolos, representam algo num contexto universal, como o leão, símbolo de
força, ou a raposa, símbolo de astúcia. Afirma La Fontaine “Sirvo-me de animais
para instruir os homens... Procuro tornar o vício ridículo por não poder atacá-lo
com o braço de Hércules... Uma moral nua provoca tédio: O conto faz passar o
preceito com ele, nessa espécie de fingimento é preciso instruir e agradar”.
A lenda é uma narrativa cujo argumento é tirado da tradição. Consiste num
relato onde o maravilhoso e o imaginário superam o histórico.
Os contos maravilhosos caracterizam-se por personagens que possuem
poderes sobrenaturais que, contrariando as leis, sofrem metamorfoses,
defrontam-se com as forças do bem e do mal, sofrem profecias que se cumprem,
são beneficiadas com milagres; enfim, as narrativas decorrem do mundo da
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magia onde tudo escapa às limitações e contingências da vida humana e se
resolve por meios sobrenaturais.
Os contos de fadas, de origem celta, falam-nos de heróis cujas aventuras
estavam ligadas aos mistérios do além e visavam à realização do interior
humano, daí a presença da fada, cujo nome vem do verbo latino “fatum” que
significa destino. A fada exerce um fascínio especial entre as crianças, pois
encarna a possibilidade de realização de sonhos ou desejos.
Os contos exemplares são narrativas breves muito freqüentes na literatura
infantil. Registram situações retiradas do cotidiano e encerram uma moralidade,
que se institui como exemplo de conduta. Trocam o fantástico pelo realismo.
Os contos jocosos são da mesma natureza que os contos exemplares:
narrativas breves e centradas no cotidiano. Diferenciam-se apenas na
comicidade, aproximam-se das anedotas, porém possuem uma intencionalidade
crítica mais contundente.
Outra forma bastante explorada na literatura infantil são os chamados
contos acumulativos. Pequenas histórias encadeadas, muito populares e
divertidas, que podem apresentar um desafio à articulação da fala. As crianças
geralmente os encaram como um jogo.
Aqui há uma seleção de apenas alguns elementos que compõem as
principais formas da narrativa presentes na literatura infantil através de um
recorte didático. No entanto, é preciso considerar que a obra é um todo e que
essa análise só ganha sentido quando estamos empenhados em conhecer a
essência e o valor de cada gênero para os objetivos que queremos atingir. Não é
possível negar a riqueza da literatura infantil e não considerar sua importância
para a formação moral e a construção da identidade da criança. Não resta dúvida
de que a literatura infantil não só pode, mas deve estar presente na escola. Mas
será que as principais formas de narrativa comuns na literatura infantil
atenderiam aos objetivos do Programa de Filosofia para Crianças? Poderíamos
utilizar todo e qualquer texto narrativo para quaisquer objetivos?
A fim de responder essas questões, seria importante perguntar: com quais
finalidades Matthew Lipman, criador do Programa de Filosofia para Crianças,
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utiliza as “novelas filosóficas” para iniciar as crianças no trabalho de investigação
filosófica? Por que novelas?
Há três formas básicas para o gênero narrativo: o conto, a novela e o
romance. Abordarei apenas as características essenciais do conto e da novela,
pois são os gêneros que nos interessam de imediato.
O conto, gênero mais utilizado na literatura infantil, corresponde a um
fragmento de vida, a um momento significativo que permite ao leitor intuir o todo
ao qual aquele fragmento pertence. Tudo no conto é condensado: a história se
desenvolve em torno de uma única ação ou situação.
A novela é uma longa narrativa estruturada por várias pequenas narrativas.
Essa estrutura permite uma visão de mundo mais complexa que não aponta para
um centro principal; daí os diversos acontecimentos se apresentarem
independentes e válidos em si. A compreensão do universo como algo
heterogêneo e multiforme, onde coisas díspares acontecem ao acaso,
corresponde a uma estrutura também heterogênea.
Ora, essa heterogeneidade e a diversidade de situações permitem ao leitor
avaliar, comparar e buscar critérios para a solução de problemas ou para seus
juízos, alargando o campo conceitual e valorativo.
Mas qual a relação entre a novela, enquanto gênero narrativo, e a Filosofia?
Segundo Lipman, a Filosofia deve estimular o uso de ferramentas que
permitem a reflexão, tais como: o conhecimento dos princípios que sustentam
nossas crenças e o reconhecimento dos limites desses princípios, a possibilidade
de opor, comparar, aprofundar a investigação considerando múltiplas situações e
pontos de vista.
Como fazer esse trabalho com crianças distantes do universo abstrato dos
conceitos? Tornando a Filosofia constante busca de significados na experiência
concreta e cotidiana. O desafio é conciliar as regras da razão com a imaginação
criadora de novos significados.
“Geralmente as crianças têm curiosidade sobre o mundo e essa curiosidade
se satisfaz parcialmente com as informações factuais e explicações que lhes
dêem sobre as causas ou propósitos das coisas. Mas às vezes as crianças
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querem mais. Querem interpretações simbólicas e não só interpretações literais.
Para isso voltam–se para os jogos, para os contos de fada, para o folclore... Por
outro lado, a literatura infantil geralmente é escrita para crianças em vez de pelas
crianças... Ao contar uma história devemos saber o que estamos fazendo. O
conto de fadas é cativante e sedutor. Ele fascina os ouvintes e encanta desde as
primeiras palavras”era uma vez”. Encontramos muito prazer na criatividade com
que nos expressamos nessas histórias. Mas será que ao imaginar por elas não
estamos privando as crianças da sua imaginação? Se os adultos devem escrever
para crianças, deveriam fazê-lo só o necessário para liberar seus poderes
literários e imaginativos” (Lipman, A Filosofia na Sala de Aula, pp. 59 e 60).
Há pistas aqui para pensarmos que as novelas filosóficas não são apenas
algumas historinhas que servem como pretexto para o diálogo entre crianças,
mas sim textos que se abrem ao leitor enquanto reflexão e imaginação. Nesse
caso, não é qualquer forma de narrativa que serviria às finalidades do Programa
de Filosofia para Crianças. A narrativa deve atender a uma multiplicidade de
visões ou situações que permitam o diálogo entre a obra e o leitor e,
posteriormente, entre os leitores que devem recriar e criar o seu pensar em uma
comunidade investigativa. As interpretações simbólicas devem criar significados
e os significados devem ser multiplicados e analisados pelas ferramentas da
razão.
Isso
não
significa
descartar
a
importância
da
imaginação
no
desenvolvimento da criança e torná-las pequenos gênios insuportáveis, mas
oferecer uma obra aberta que permita às crianças pensar suas representações e
criar soluções para os enigmas que aparecem através de um esforço racional
que deve levar em conta a afetividade e o desejo.
Vejamos como isso acontece com a novela “Rebeca” de Ronald Reed:
temos na novela elementos presentes no imaginário das crianças, oriundos dos
contos de fadas: sapos e príncipes, elefantes que voam, transformações, magia
etc. O formato da narrativa que pode encantar ou fazer rir busca problematizar.
Realidade e ficção são colocadas sob o prisma da investigação, não há de
antemão o certo e o errado, o falso e o verdadeiro, o feio e o bonito. O narrador
não só conta, mas pergunta. Chama os leitores ou ouvintes ao diálogo.
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Desconhece a solução, mas empenha-se na sua busca. É essa busca que
caracteriza a Filosofia e é essa ânsia da busca que queremos incentivar nas
crianças.
Por isso temos que escolher criteriosamente os meios para que possamos
alcançar os fins que desejamos. O maniqueísmo presente nos contos de fada e a
estrutura coesa dos contos infantis podem inserir nossas crianças no universo
dos valores e da cultura, podem favorecer o senso estético pela riqueza ou
unidade da obra, mas nem sempre são boas ferramentas de problematização e
investigação.
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