MARCOS GLAYSON ROBERTO MOURÃO NAZISMO, PANGERMANISMO, ACULTURAÇÀO E AS RELAÇÕES POLÍTICOECONÔMICAS DO BRASIL DE VARGAS COM OS ESTADOS UNIDOS E A ALEMANHA NAZISTA (1937-1942) CURITIBA 2003 MARCOS GLAYSON ROBERTO MOURÃO NAZISMO, PANGERMANISMO, ACULTURAÇÃO E AS RELAÇÕES POLÍTICOECONÔMICAS DO BRASIL DE VARGAS COM OS ESTADOS UNIDOS E A ALEMANHA NAZISTA (1937-1942) Monografia apresentada ao Curso de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, da Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof. Dr. Dennison de Oliveira. CURITIBA 2003 SUMÁRIO RESUMO.............................................................................................................. iii 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................. 01 2 O CONTEXTO POLÍTICO DA EUROPA DO ENTRE-GUERRAS................... 06 2.1 REGIMES TOTALITÁRIOS EUROPEUS NO PERÍODO 1918-1939 ............ 06 2.1.1 A Rússia e a Ascensão do Comunismo ..................................................... 06 2.1.2 A Itália Fascista de Mussolini ..................................................................... 08 2.1.3 O Partido Nacional-Socialista Alemão........................................................ 17 2.1.4 As Bases Totalitárias do Regime Nacional-Socialista Alemão ................... 28 3 A CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO NAZISTA NA ALEMANHA ............... 39 3.1 ORIGENS HISTÓRICAS DO PENSAMENTO NAZISTA............................... 39 3.1.1 A Liga Pangermânica e o Espaço Vital Alemão .......................................... 45 4 PANGERMANISMO E NAZISMO NO SUL DO BRASIL (1930-1939) ............ 51 4.1 CAUSAS DO MOVIMENTO EMIGRATÓRIO ALEMÃO PARA O BRASIL..... 51 4.2 CARACTERIZAÇÃO DA COLONIZAÇÃO ALEMÃ NO SUL DO BRASIL ...... 56 4.3 O PANGERMANISMO O NAZISMO NO SUL DO BRASIL ............................ 60 5 O RELACIONAMENTO BRASILEIRO COM ALEMANHA E EUA (1937-1942).......................................................................................... 66 5.1 O CENÁRIO POLÍTICO DA AMÉRICA LATINA NA DÉCADA DE 1930 ........ 66 5.2 RELAÇÕES POLÍTICO-ECONÔMICAS DO BRASIL COM A ALEMANHA NAZISTA ................................................................................... 71 5.3 RELAÇÕES POLÍTICO-ECONÔMICAS DO BRASIL COM OS EUA............. 80 5.4 O ESTADO NOVO E O "PERIGO NAZISTA" NO SUL DO BRASIL .............. 82 6 CONCLUSÕES ................................................................................................ 91 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................ 93 ii RESUMO A monografia examina relacionamento entre o Brasil de Vargas e seus parceiros comerciais mais importantes da década de 1930: Alemanha nazista e EUA, buscando determinar como tal relacionamento afetou a disseminação do ideário nazista no Brasil. Para tanto, recorre-se a uma sólida revisão da literatura concernente ao assunto em pauta. A pesquisa busca, também, analisar os fatores que mais influenciaram no surgimento e ascensão do nazismo na Alemanha, verificar a importância do pangermanismo na fundamentação da ideologia nazista e a forma como ocorreu a emigração de origem germânica para o Brasil e como tais imigrantes se adaptaram à realidade brasileira. A pesquisa conclui que a falta de visão política de comunistas e democratas alemães, não percebendo ou não querendo perceber o perigo representado por Hitler e seu partido, abriu caminho fácil para a vitória deste. Evidenciou-se, também, que a doutrina do pangermanismo com suas referências a um passado histórico/mitológico de glórias e conquistas germânicas serviu como fator aglutinante das aspirações e sonhos de expansão do povo alemão, tornando-o presa fácil das manobras nazistas. Ficou demonstrado, também, que a formação dos núcleos de colônias teutas nos Estados do Sul do Brasil apresentou uma forte tendência ao isolamento em relação ao resto do país. Com isso, foi possível às colônias manter quase intactas as tradições, costumes e a língua de suas pátrias de origem, facilitando a disseminação das idéias pangermanistas e, posteriormente, nazistas entre seus habitantes. Em relação ao objetivo principal, a pesquisa conclui que a perseguição implementada pelo governo varguista às ações do Partido Nazista no Brasil teve um caráter engenhosamente político, pois mostrava aos EUA a disposição brasileira em diminuir, gradativamente, as relações com a Alemanha e, ao mesmo tempo, preservava o importante comércio brasileiro com os alemães. A monografia termina recomendando a realização de novos trabalhos que examinem mais profundamente o tema abordado, devido à enorme gama de perguntas ainda sem respostas sobre o fenômeno do nazismo. Palavras-chave: Comércio de Compensações, Crise do Liberalismo, Nazismo, Pangermanismo, Projeto Eugênico Brasileiro. iii 1 INTRODUÇÃO A monografia discute o posicionamento politicoeconômico do Governo Getúlio Vargas em relação aos Estados Unidos e a Alemanha nazista, no período compreendido entre 1937 e 1942, antes que o Brasil finalmente rompesse relações com os países do EIXO. A necessidade de analisar aspectos subjetivos do funcionamento de um relacionamento político-econômico complexo, como o desenvolvido por Brasil-EUAAlemanha Nazista, pode significar, muitas vezes, a obrigação de ultrapassar o esquema comum de mera análise de idéias e significações abstratas. As idéias filosófico-políticas de pessoas ou organizações político-partidárias não delineiam apenas o horizonte onde se apresentam, mas dizem respeito, também, à prática objetiva dos que as esposam. Interpretar tais idéias e identificar seus efeitos nas ações de quem as defende não é tarefa fácil. Tal interpretação deve, necessariamente, passar por três níveis diferentes (mas complementares) de análise: a descrição do contexto histórico o mais objetivo possível, o da prática concreta daquele que faz uma determinada opção político-social e, finalmente, o da significação sistemática das idéias formuladas. Esta última, naturalmente, não pode ser deduzida diretamente de um contexto objetivo dado. Ressalte-se, entretanto, que não seria possível sua compreensão sem considerar o contexto onde essas idéias surgiram e a prática que ajuda a orientar. Analisar as razões estratégicas pelas quais o Brasil procurava manter um sentido de "eqüidistância pragmática" entre os dois blocos ideológicos que começavam a se entrechocar (EUA X Alemanha Nazista) não parece, a princípio, encerrar muitas dificuldades. Para os "simplificistas" de plantão, Vargas apenas procurava extrair acordos os mais vantajosos possíveis para o país que governava, enquanto, ao mesmo tempo, tentava manter contato com um regime político (nazismo) cujas características principais se assemelhavam muito à sua própria forma de governar. Ledo engano! Uma análise mais profunda de documentos oficiais e/ou pessoais dos envolvidos neste relacionamento trino mostram ser a questão bem mais complexa e profunda do que aparenta. Na verdade, mesmo o conhecimento a respeito de alguns dos "atores" da época, como Getúlio Vargas e Adolf Hitler bem como das características 2 particulares de seus governos, ainda é, em grande parte, um mistério. No que tange, por exemplo, ao nazismo, faz-se necessária uma nova abordagem do tema, uma vez que as tradicionais análises históricas do fenômeno não conseguiram preencher a lacuna deixada, até agora, pela tríplice pergunta: o que é, de onde veio e como conseguiu o nazismo arrastar o povo alemão a uma aventura que praticamente arrasou a Europa entre 1939 e 1945? Não se pode deixar de salientar, contudo, que as indagações levantadas acima continuam a ser investigadas, e a produção literária que tenta responder a elas só faz crescer a cada dia. Ao contrário do que grande parte dos livros didáticos propala, não é possível creditar a eclosão nazista simplesmente às perdas e humilhações sofridas pela Alemanha após a derrota de 1914-18, nem à idéia, amplamente difundida, de que Hitler foi aceito por ser uma "opção" ao comunismo. Embora estes fatores (além de tantos outros) tenham contribuído muito para o surgimento do nacional-socialismo germânico, não bastam, de per se, como explicação final e absoluta para um acontecimento que se encontra entre os mais importantes da história da Humanidade no século XX. Naturalmente, análise tão minuciosa e profunda da Alemanha nazista não consta dos objetivos desta monografia, a qual examina, entretanto mesmo que superficialmente, alguns pontos importantes para que o Partido Nacional Socialista alemão conseguisse alcançar o poder naquele país. Um desses pontos é a importância do pensamento filosófico-religioso (mesmo degenerado e fanático) na elaboração da doutrina do Partido Nacional Socialista Alemão denominado, para fins de simplificação, como "Partido Nazista" por diversos autores, tais como, SHIRER (1962), MORAES (1996), SEYFERTH (1974) e FEST (1976). O cultivo e a divulgação constante de histórias e tradições muito antigas, que "ligariam" o povo alemão aos atos heróicos de diversos vultos da mitologia nórdica (Odin, Thor, Sunna, Brunhilde e Siegfried, entre outros) serviam como instrumentos para incutir na grande massa de cidadãos descontentes com os efeitos negativos do Tratado de Versalhes, um desejo latente de unificação dos "povos germânicos". Esse sentimento, esse desejo, esse pangermanismo, era a mola que impulsionava o alto escalão nazista a promover a tentativa de reunir os países de língua alemã sob uma só bandeira; Deutschland uber alles, dizia o hino alemão da época: "a Alemanha acima de todas as outras". O próprio alto comando nazista era, ao que tudo indica, uma espécie de fraternidade fanática, racista e 3 messiânica, que almejava restaurar o passado de glória e instituir a supremacia dos povos germânicos e assim auferir dos lucros, poder e prestígio que a realização destas metas traria. No âmbito brasileiro, mesmo as motivações ocultas por trás de diversos discursos e pronunciamentos de Getúlio Vargas permanecem, mais ou menos, um mistério. Em 1995, veio a público o diário pessoal de Getúlio, compilação dos 13 cadernos onde o ditador deixou suas impressões cotidianas, desde 1930 até 1942, quando o Brasil declarou guerra contra a Alemanha. De acordo com as impressões dos críticos que leram o livro, este mostra que Vargas "é ao mesmo tempo uma sombra universal e uma fisionomia vaga [...]. O que aconteceu, e o país conhece até demais, se soldará às intenções de quem fazia acontecer, e por conhecer de menos o país transformou numa alegoria de destino moldado pela vontade" (CORRÊA, 1995, p. 67). O que foi exposto até agora mostra ser necessário empreender-se uma análise que aborde os aspectos sócio-econômicos, políticos e filosóficos vistos em interação, aquilatando-se o peso específico de cada um neste jogo de interelações, para extrair uma interpretação do conjunto de determinações. O objetivo geral desta pesquisa é verificar as relações político-econômicas do Governo Vargas com os Estados Unidos e a Alemanha nazista e como tais relações afetaram a divulgação das idéias nazistas no Brasil. Como objetivos específicos destacam-se: — Analisar os fatores que mais influenciaram no surgimento e ascensão do nazismo após a Primeira Guerra Mundial; — Verificar a importância do pangermanismo na fundamentação da ideologia nazista e como ocorreu sua divulgação entre as colônias de origem germânica no Brasil; Verificar a forma como ocorreu a emigração de origem germânica para o Brasil e como esses imigrantes se adaptaram à realidade brasileira; Para alcançar tais objetivos, a monografia utilizará da pesquisa bibliográfica, representada por uma revisão bibliográfica de livros, revistas, e artigos de jornais sobre o assunto em pauta, a ser desenvolvida na cidade de Curitiba, em bibliotecas universitárias (PUC-PR, UFPR, FESP) e Biblioteca Pública do Paraná, além de pesquisas na rede mundial de computadores (Internet). 4 Inicialmente, serão examinados os principais regimes autoritários que surgiram no período 1918-1939, como o fascismo italiano, o salazarismo português, o franquismo espanhol e claro, o surgimento e ascensão do Partido NacionalSocialista Alemão, um dos principais objetos de interesse para a pesquisa. Em seguida, será mostrado, especificamente, o estado de ânimo do povo alemão após a derrota na Primeira Guerra Mundial, com vistas a compreender como os nazistas conseguiram encontrar um terreno propício à expansão e consolidação de suas idéias. A influência do passado histórico-mitológico alemão na fundamentação da ideologia nazista será examinada, com a intenção de mostrar como a criação deste "destino manifesto" germânico serviu para "dourar a pílula" do nazismo, fazendo com que este fosse aceito e apoiado incondicionalmente pela maior parte do povo alemão. Este passado histórico-mitológico germânico influenciaria fortemente a orientação alemã em direção ao militarismo e à busca do chamado "espaço vital", ao qual a Alemanha acreditava ter um direito natural, assegurado pelos deuses. Em seguida, será feita uma breve apreciação das condições que levaram emigrantes de origem teutônica (alemães, austríacos, bávaros) a se fixarem no Brasil e os meios pelos quais conseguiram manter os costumes e tradições de suas pátrias de origem. Afinal, foi essa manutenção de uma "identidade" germânica que facilitou uma maior divulgação das idéias pangermânicas e, posteriormente, nacional-socialistas, entre esses emigrantes. Neste ponto será examinada, brevemente, a questão do chamado "projeto eugênico brasileiro", uma tentativa do governo e sociedade brasileira de promover o nacionalismo ufanista, o qual influenciaria, especialmente, a política de emigração brasileira, com os representantes das chamadas raças "indesejáveis" ou "inferiores" encontrando muitas dificuldades para serem admitidos no Brasil, ao passo que as chamadas raças "arianas" ou "superiores" eram, ao contrário, incentivadas a emigrar para o país, para "melhorar" a "raça" brasileira. O nacionalismo tinha como um de seus imperativos a obrigação, por parte de imigrantes, de se deixar "absorver" na cultura brasileira, abandonando os costumes, religião, língua e vestuários típicos de suas pátria de origem. Como é fácil deduzir, este imperativo era não só desprezado, mas mesmo, em certa medida, afrontado pela insistência das colônias de imigrantes de origem teutônica, que mantinham os costumes e comportamento herdados de suas pátrias, não cogitando 5 nunca em se submeter a tal "absorção". Assim, por exemplo, em diversas pequenas cidades do sul do Brasil, a língua alemã era mais falada do que o português, entre outros detalhes que denotavam a origem teuta de seus habitantes. O estudo do fenômeno nazista constitui-se em um assunto de grande interesse, uma vez que, desde meados do século XX, tem ocorrido um recrudescimento das atividades de grupos neonazistas na Europa, América, Ásia e América Latina. Além disso, cenas de violência racial, ocorridas recentemente na Europa, como as mortes de imigrantes de origem turca (na Alemanha) e árabe (França e Espanha), as táticas genocidas empregadas pela Sérvia em terras da Bósnia e Croácia ou a presença aberta de sociedades racistas como a Ku-Klux-Klan nos EUA, demonstram que o espírito que animava os "camisas negras" de Hitler ainda não desapareceu, muito pelo contrário. Espera-se que esta pesquisa auxilie o leitor, por pouco que seja, a entender melhor o fenômeno do nazismo e por que a ascensão e queda do mesmo consistiu-se em um dos episódios mais importantes do século XX. 2 O CONTEXTO POLÍTICO DA EUROPA DO ENTRE-GUERRAS 2.1 REGIMES TOTALITÁRIOS EUROPEUS NO PERÍODO 1918-1939 2.1.1 A Rússia e a Ascensão do Comunismo No início do século XX, nas terras da atrasada Rússia, em contrariedade com as premissas marxistas da necessidade de pré-existência de uma economia de fartura e avanço tecnológico, seria instaurado o primeiro regime baseado na socialização dos meios de produção. A Rússia, justamente pela falta desta abundância de riqueza material, aliada a outras circunstâncias desfavoráveis, originou o primeiro dos regimes totalitários que sacudiram o continente europeu e influenciaram de maneira decisiva a história daquele século. A Rússia era, na época da Revolução Bolchevique, um país semifeudal e encontrava-se, em relação aos principais países do Ocidente, numa condição semicolonial. Devido à imensidão geográfica e à sua enorme população, a Rússia representou, em certa época, o papel de grande potência militar na Europa. Porém, no século XX, marcado pela evolução tecnológica, tanto do ponto de vista econômico, como militar, essa superioridade numérica, aliada à vastidão de recursos naturais e territoriais, já não representava um handicap decisivo. O país era uma autocracia, na qual não se toleravam quaisquer contestações ao poder do Imperador (em russo, czar ou tzar); poder este cuja legitimidade, alegava-se, era de cunho divino. O regime tzarista caiu em 1917, com os bolcheviques assumindo o poder. Apesar de enfrentar muitas dificuldades, como a pressão das potências estrangeiras assustadas com a possibilidade do comunismo espalhar-se pelo mundo e uma sangrenta guerra civil interna. Com a morte de Lênin, Trotsky e Stálin digladiaram-se pelo poder, com a vitória final cabendo a este último. O totalitarismo na União Soviética, a partir de 1924, apresentava uma linha stalinista, derivada do comando do partido por Josef Stálin. Esta era caracterizada, entre outras coisas, pela teoria do "socialismo num só país", a qual preconizava o fortalecimento do comunismo na antiga Rússia, para só depois atingir a meta da "revolução mundial". Para atingir tal objetivo, exacerbava-se a proibição de 7 dissensões internas no partido, resultando em uma centralização total das decisões (em todas as esferas da vida social) nas mãos dos dirigentes do Comitê Central do Partido, em geral, e do Politburo (órgão diretivo máximo do partido), em particular. A agricultura era coletivizada, através da criação de dois tipos de fazenda cultivadas em grupo: os sovkhozes e os kolkhozes. Os primeiros eram propriedade estatal e os que neles trabalhavam recebiam salários, produtos industrializados e in natura como pagamento. Os últimos assemelhavam-se a cooperativas, sendo administradas pelos próprios camponeses, com a produção sendo supervisionada e adquirida pelo Estado, retirando sua sobrevivência desta vendagem, como no regime cooperativista. O pensamento stalinista era propagado por todos os meios possíveis, inclusive com a ampliação das atividades de doutrinação por parte das células comunistas distritais, da imprensa (totalmente controlada pelo partido) e da Liga da Juventude Comunista (Komsomol). A ordem interna era mantida pelo Comissariado do Povo para Assuntos Interiores (NKVD), que englobava entre suas atividades o patrulhamento das fronteiras nacionais, os serviços de espionagem e contraespionagem e o trabalho da polícia secreta na época chamada de GPU (Direção Política do Estado) , entre outras. Através dos chamados "Planos Qüinqüenais", que estabeleciam todas as metas e prioridades econômicas da nação para cada período de cinco anos, a industrialização acelerada do país era priorizada. A vida soviética era controlada de forma absoluta pela censura estatal, em consonância com o partinost, princípio de que toda atividade política, cultural, científica ou educacional estava a cargo do partido. A figura central do regime e da vida da União Soviética era Josef Stálin, secretário-geral do Partido Comunista, e que detinha todos os mecanismos de controle da máquina partidária e, em função da estrutura de poder da União Soviética conseqüentemente, de todo o Estado. Surgiu um culto à pessoa de Stálin, denominado "guia genial das massas", "corifeu da ciência" e "pai da classe trabalhadora", entre outros epítetos. A ele eram atribuídos conhecimentos e qualidades inatingidas por outros mortais: o maior filólogo do mundo, o filósofo do século, o maior estrategista militar soviético, entre outros. Como dito acima, o regime totalitário soviético (stalinismo) dirigia todos os aspectos da vida do povo. Os meios empregados eram: terror sistemático, propaganda política massiva e unipartidarismo. A União Soviética (por influência do 8 stalinismo) fechou-se em suas fronteiras como forma de solidificar seu sistema de governo, enquanto outros totalitarismos surgidos posteriormente, como o fascismo e o nazismo, preconizavam a expansão territorial através do incentivo ao militarismo e à guerra de conquistas. Apesar de ter sofrido muito com os problemas advindos do pós-guerra acrescidos da devastação de uma guerra civil sangrenta e dolorosa a União Soviética passou, a partir de 1930, a apresentar progressos notáveis na industrialização do país. Com isso, vinha conseguindo suprir a enorme demanda de trabalho de seu povo, façanha esta que o regime capitalista, especialmente na Europa, não conseguia igualar. Este fato inspirava esperanças no seio do proletariado de todo o mundo, especialmente na Europa Ocidental, onde os partidos socialistas utilizavam o crescimento industrial e a garantia de empregos naquele país como argumentos fortes para reivindicar a instalação de regimes socialistas em seus próprios países. 2.1.2 A Itália Fascista de Mussolini A Itália, após flertar, brevemente, com a possibilidade de unir-se à Tríplice Aliança durante a I Guerra Mundial, acabou por alinhar-se com os Aliados. Os italianos sofreram derrotas fragorosas durante o conflito devido a seu despreparo e baixa capacidade bélica, o que resultou em prejuízos imensos e o princípio de um caos político, econômico e social no país. Este caos encontra um paralelo nas condições igualmente precárias enfrentadas pela Rússia durante o desenrolar do mesmo conflito e que geraram, neste país, um clima predominantemente revolucionário. Na Itália, contudo, a falta de visão política dos partidos de esquerda permitiu que tal estado caótico fosse utilizado pelas forças conservadoras como propaganda contra o "perigo vermelho", oferecendo, à classe média italiana, o fascismo como uma proteção contra a possibilidade de uma revolução comunista. Os italianos, na verdade, ainda alimentavam esperanças de abiscoitar um pedaço significativo dos despojos de guerra. Em Versalhes, os representantes italianos reivindicaram a posse da Dalmácia, Albânia e partes do Oriente Médio e África. Não foram atendidos. 9 A crise só não teve um alcance maior devido ao fato da Itália ser um país predominantemente agrícola. Apesar disso, o desenvolvimento industrial dos anos da guerra havia se dado rápido demais em relação às estruturas obsoletas e às dimensões do mercado. A pobreza, o desemprego, a injustiça social, a maior abertura de horizontes, proporcionado pela guerra, o anseio sincero de renovação das massas, que reivindicavam uma transformação profunda e significativa da sociedade, constituir-se-iam, normalmente, em elementos favoráveis a uma poderosa ação revolucionária, especialmente após a vitória bolchevique atiçar as esperanças do proletariado italiano. Tais sonhos, entretanto, eram frustrados pela catastrófica vacuidade da política italiana em geral, carente de partidos políticos dotados de um programa real e eficiente. Os erros e a intransigência do partido socialista impediam a formação de uma esquerda radical e, até cerca de 1921, de uma esquerda realmente marxista, fortalecendo os partidos de direita. A crise geral de 1919-1922 não era só fruto do estado de bancarrota da Europa inflacionada; era também conseqüência do tournant social, político e psicológico que se originou da inteira situação do após-guerra. Na Itália, a crise moral foi, sim, o resultado de esperanças frustradas como veremos mais adiante mas, sobretudo, de uma radical transformação de gostos, isto é, de anseio a um novo estilo de vida. Por vício antigo, porém, não teve o país a capacidade de adaptar-se aos novos hábitos em plano moral, não havendo, doutro lado, a possibilidade de sustentá-los em plano econômico. Tratou-se da verdadeira explosão do provincialismo da classe dirigente italiana: a incapacidade, não só de enfrentar, mas até de sujeitar-se ao mundo moderno, ou pelo menos de aceitá-lo. [...] colocada frente à responsabilidade de resolver novos problemas que requeriam um preparo político e moral que ela não possuía, consciente de sua ignávia e de sua fraqueza e impotência, não querendo, todavia, abdicar de seus privilégios, iludiu-se na saudade de um mundo perdido, tendendo, por medo, a voltar atrás, ao beato nirvana granducal e papalino. Foi nesse estado que o país enfrentou a crise política mais grave dos seus sessenta anos de história unitária. (FIORANI, 1963, p. 41-42) O desastre italiano nas negociações de paz não se deveu tão somente à inépcia de seus representantes, mas também a fatores como a falta de consistência dos acordos firmados (a toque de caixa) em Londres e às modificações radicais que a região em torno do Adriático sofreu, decorrentes do desmantelamento do Império Austro-Húngaro. Muito provavelmente, se a Itália, que afinal de contas era uma das nações vencedoras, não houvesse sido tão menosprezada e fosse atendida em uma boa parte de suas reivindicações, não teria surgido o clima de revanchismo, terreno fértil para a exploração demagógica por grupos de aventureiros políticos como os fascistas. Pode-se dizer que o Tratado de Versalhes significou, para a Itália, o 10 primeiro passo na direção do fascismo e de sua participação na Segunda Guerra Mundial. Com o fim da Primeira Guerra, muitos soldados viram ir-se embora a única fonte de renda de que dispunham: o soldo. Com isso, passaram a fazer parte da grande massa de desempregados que vagueavam de um lado a outro da Itália, em busca de trabalho, sem nada encontrar. O estado de penúria da maior parte do povo, a desilusão com o Tratado de Versalhes, que não atendeu às expectativas italianas, e a incapacidade do governo monárquico em resolver os problemas sócioeconômicos, aumentaram ainda mais esse contingente de marginalizados, de descontentes e desiludidos que acabariam por apoiar, maciçamente, o desenvolvimento do fascismo e suas promessas de emprego e estabilidade econômica. Nesta época, o jornalista milanês, Benito Mussolini, editor do jornal Il Popolo d’Itália, seria aquele que instigaria, para fins subversivos, a insatisfação desta malta de declassês, que haviam passado a se autodenominar "fascistas". Tal nome derivava da palavra latina fascio, feixe de varas, com um machado amarrado no meio, que representava o símbolo do poder dos cônsules na Roma antiga. Durante o século XIX, diversas associações ligadas a movimentos operários ou políticos denominaram-se fasci. Também durante a campanha intervencionista, no período 1914-1915, haviam sido fundados os "Fasci de ação revolucionária". No período da derrota na batalha de Caporetto (1917), os nacionalistas constituíram um "Fascio parlamentar de defesa nacional". O já citado caos econômico, político e social, que se abatera sobre a Itália após a guerra e o fracasso das reivindicações em Versalhes, criara um terreno propício para a ampla aceitação, por parte da pequena burguesia insatisfeita, de um programa demagógico, populista. Nesse contexto, a plataforma defendida por Mussolini propunha, entre outras coisas, o sufrágio universal, com correspondente representação proporcional, jornada de trabalho de oito horas diárias, participação dos trabalhadores nos lucros das empresas, oposição ferrenha ao socialismo e ao comunismo e o confisco dos bens clericais. Suas propostas renderam-lhe grande prestígio entre o povo e ele passou a liderar o "Fascio di Combattimento di Milano", que organizava os fascistas em ações contra lojas, banqueiros e opositores políticos. Muitos desses opositores 11 foram assassinados ou cobertos de alcatrão. O combate ao comunismo foi reforçado. Achava-se que somente Mussolini poderia impedir a socialização do país. Impulsionado por seus êxitos iniciais, Mussolini acreditou que seu movimento se sairia bem nas eleições. Entretanto, os fascistas malograram no pleito de novembro de 1919. Nem o próprio líder elegeu-se. Socialistas e católicos (estes do Partido Popular) foram os grandes vencedores. Os últimos acabaram desempenhando um papel negativo e desintegrador na vida política italiana, pois, além de impedirem o surgimento de uma direita leiga e conservadora, atuaram de forma antipopular, levando, efetivamente, o confessionalismo à política eleitoral e à vida política. Já os socialistas, por sua vez, incapazes de superar as incongruências e contradições de sua linha política, apegando-se firmemente à intransigência e opondo-se ao governo "burguês", perderam a última oportunidade de obrigar o governo a adotar, pelo menos, alguma forma de orientação socialista. Demonstraram despreparo para cumprir sua "tarefa histórica", sendo seu movimento rejeitado e derrotado. Apesar de seu crescimento, o fascismo ainda não era uma força vital na Itália, embora contasse com o apoio substancial do capital. Monarquia, exército e média burguesia não encaravam com simpatia excessiva o anarquismo e a indisciplina fascistas. O medo, entretanto, do socialismo ascender ao poder, mesmo sendo uma perspectiva remota, levaria estes setores da sociedade italiana a apoiar Mussolini e seus seguidores. Aos poucos, seria veiculada uma imagem falsa de um fascismo que salvaria o país do fantasma do bolchevismo, quando, na realidade, este apenas aproveitou-se dos erros reformistas e maximalistas (termo que se refere a revolucionarismo e intransigência meramente verbais) do movimento da classe operária. A Itália, na verdade, não abdicou dos princípios democráticos por medo exclusivo do comunismo, mas sim por medo do mundo moderno, da possibilidade de alteração do Estado arcaico e ultrapassado que garantia, às elites, os privilégios e segurança de que desfrutavam. 12 A massa da pequena burguesia, espinha dorsal da Itália não proletária, areia movediça sem configuração estável, formada pelos sedimentos das outras classes, caracterizada pelo baixo teor de vida e pela obtusidade moral e mental, não sabia identificar a causa real da sua miséria ou a real ameaça ao seu escasso bem-estar, representadas pela alta burguesia e pelo capital, mas era por essas mesmas forças encaminhada a ver o perigo no proletariado, em seu partido e em suas organizações. A honestidade e o entusiasmo da classe operária não foram suficientes, doutro lado, para defendê-la contra o ataque desenfreiado do subversivismo de direita. As autoridades exército, polícia, magistratura cooperaram, diretamente ou por omissão, com o fascismo, fornecendo desde as armas e o apoio prático até a garantia de imunidade. Transformado em milícia política privada da burguesia, com a sanção governamental, o fascismo juntava em si todos os recursos de uma organização e de uma ação extralegal, e todas as proteções e as passivas cumplicidades da lei. (FIORANI, op. cit., p. 64) A adesão aos fascistas começou a crescer cada vez mais rapidamente. Não só latifundiários, a alta indústria parasitária e os altos financistas passaram a apoiar o movimento, mas, também, a monarquia, os politiqueiros e, principalmente, aqueles grupos, classes e categorias que haviam funcionado como base para o primeiro fasci. Médias patentes do exército, arrivistas, ambiciosos, oportunistas, insatisfeitos, recalcados, todo tipo de frustrados, intolerantes, fanáticos, sub-proletários e pequeno-burgueses aderiam em massa ao fascismo. Além destes, de roldão, adentravam as fileiras do movimento dannunzianos e representantes da pseudocultura acadêmica, decadentistas e futuristas, místicos e anarco-individualistas, ideólogos do nacionalismo, bem como apologistas da violência. Nem tudo, porém, corria às mil maravilhas para Mussolini e seus sequazes. Era preciso encontrar uma fórmula que permitisse um maior controle sobre o movimento, pois no meio deste reinavam a indisciplina, a confusão, as chantagens, ameaças e ciúmes. Paradoxalmente, a solução encontrada foi transformar o movimento, que em seu "programa" era inimigo de qualquer partido, no Partido Nacional Fascista. O congresso de fundação foi realizado em novembro de 1921. Os últimos governos italianos eram fracos demais para tentar solucionar os graves problemas políticos, sociais e econômicos herdados do pós-guerra. Basicamente, cada governante buscava somente uma fórmula de prolongar sua estada no poder, delegando para seu sucessor, o ônus das reformas que se faziam necessárias na estrutura do país. Não é de admirar, portanto, que o partido fascista, através de simples ameaças, praticamente mandasse no Parlamento e no próprio governo. 13 As únicas forças que ainda compreendiam o perigo representado pelos fascistas eram os comunistas, formados na tradição classista e marxista, e alguns poucos democratas íntegros. Os primeiros, além do número escasso, viam-se freados pelos vícios herdados do Partido Socialista. Os últimos eram política e pessoalmente isolados. No que tange ao sindicalismo socialista, este vinha sendo sistemática e violentamente substituído, em sua quase totalidade, pelo assim chamado "sindicalismo nacional", de origem patronal. Uma última tentativa de greve geral, desencadeada por sindicalistas de orientação socialista (1922), redundou em estrondoso fracasso, arrastando, desta forma, os últimos baluartes das organizações populares. Isto minou, de vez, os últimos traços de confiança da classe operária. Este fracasso socialista deixou claro que o fascismo apresentava-se como a força política mais preparada, na época, para assumir o poder, que já detinha de fato, em grande parte. Bastava agora sacramentar "legalmente" este fato. Uma vez que D’Annunzio preconizara uma "marcha sobre Roma", bastou aos fascistas apoderarem-se da idéia. A ameaça de insurreição foi o suficiente para que o rei, o Governo e o Parlamento capitulassem. A verdade, entretanto, é que a "marcha" não passava de um blefe, uma vez que as esquadras fascistas não tinham condições de resistir às forças legais. O sucesso do golpe deveu-se, assim, à complacência, consentimento e mesmo à cumplicidade das autoridades. Assim se desenrolou a conspiração de palácio, enquanto ‘marchava sobre Roma’ a famosa coluna fascista: poucos milhares de homens mal armados e mal equipados, encharcados de chuva, entre os quais reinavam confusão, desorganização e anarquia. O exército, que em poucos minutos poderia ter varrido aquela canalha, só espantando-a com poucos tiros para o ar, não se mexeu: o rei, recusando-se a assinar o decreto [de estado de sítio], tinha tomado sobre si todas as responsabilidades. Enquanto os italianos fracassavam em sua prova de seriedade moderna, o ‘gênio da estirpe’ recolhia entre os resíduos da aventurosa Renascença a lendária figura de condottiero de milícias, que dá aos servos inquietos uma paterna disciplina. (FIORANI, op. cit., p. 71) Mas por quê não houve reação ao golpe dos fascistas? O rei Victor Emanuel III que, por volta do dia 27 de outubro, encontrava-se de férias, e que autorizara seu Primeiro-Ministro, Facta, a declarar, se necessário fosse, o estado de sítio e combater os insurrectos, acabou por voltar atrás e não assinou o decreto de autorização. Não há um registro histórico que possa elucidar, a contento, as razões pelas quais o rei teria mudado de idéia. A única certeza é que inúmeras pressões 14 foram exercidas nos meios políticos italianos e, particularmente, sobre o soberano. Porém, não resta dúvidas de que uma combinazione fora tecida, atendendo aos desejos mínimos das principais forças envolvidas. A palavra italiana combinazione tem uma variedade de significados que sugerem sensatez e inteligência, assim como o habitual sentido do termo em inglês (combination). Segundo Pareto, isso funcionava como um atributo ao mesmo tempo intelectual e imaginativo, empregado igualmente pelo cientista que utilizava o método lógico-empírico, pelo poeta em sua fantasia criativa e pelo manipulador que brinca com os sentimentos dos outros. (BELLAMY, 1994, p. 231) No caso italiano, o alvo da "brincadeira" dos manipuladores foi a Constituição Italiana. Isto porque, esta, apesar de seu aspecto ambíguo e de sua capacidade de interpretação ser muito grande, foi desrespeitada, uma vez que os ministros encontravam-se em posse de seus cargos e o monarca devia seguir a linha política de seu governo e consultar o Parlamento. Vitor Emanuel devia, certamente, encontrar-se dividido entre suas simpatias pelo fascismo e a natural prevenção real contra um regime republicano. Garantidas as suas prerrogativas, através de uma interpretação dúbia da Constituição, o velho monarca deixou-se convencer pelos argumentos acerca da gravidade da situação e, seguindo o precedente de 1915 (comprometimento da Itália na guerra junto aos Aliados), fingiu aceder aos reclamos da opinião pública, passando por cima do governo e do Parlamento, declarando querer evitar "derramamento de sangue" e aceitando a "vontade do país", isto é, os fascistas no poder. Ao analisar-se mais profundamente a "revolução fascista", percebe-se que esta nada teve de revolucionária, pois não só manteve as estruturas do antigo regime, mas reforçou-as, eliminando o controle moralizador e moderador que podia ser exercido pelos partidos políticos. Afinal, estes, apesar de sua fraqueza e falta de objetivos melhor definidos, representavam a possibilidade de garantia da legalidade. Uma revolução é empreendida, em geral, como possível solução extrema para resolver uma crise. Não no caso italiano, pois foi o rei que capitulou, não o governo ou o Parlamento. Não se pode alegar que a revolta tivesse como objetivo defender o país de um inimigo real, pois o "perigo vermelho" jamais existiu, exceto na fantasia da reação, e a possibilidade de guerra civil, se existisse, era proporcionada pela própria atuação subversiva do fascismo. A "revolução" fascista não passou, portanto, 15 de uma farsa, de um compromisso (combinazione) efetuado entre ministros, generais, funcionários públicos altamente graduados, generosamente subvencionados por latifundiários, banqueiros e industriais. Este acordo foi organizado e favorecido pelas forças armadas, sob a orientação de políticos reacionários. Esta origem compromissada evitará que o fascismo se torne, posteriormente, um movimento realmente autônomo. Após assumir o poder, Mussolini trataria logo de garantir para si plenos poderes, os quais lhe foram imediatamente outorgados por uma Câmara amedrontada e desnorteada pelo completo sucesso do golpe fascista. O órgão máximo do regime democrático burguês estava, agora, completamente nas mãos dos fascistas, que trataram logo de abolir as leis de cunho social que há muito custo haviam sido arrancadas das legislaturas precedentes. Castrou-se qualquer possibilidade de reforma agrária, o imposto de sucessão foi cortado pela metade, aboliu-se a lei que determinava a obrigatoriedade da nominatividade dos títulos acionários, e assim por diante. Mais tarde, todos aqueles políticos que, com sua benevolência, beneficiaram o surgimento, ascensão e solidificação do fascismo, justificaram sua atitude com a tese de que esperavam neutralizar o ilegalismo fascista chamando-o a dividir as responsabilidades do governo. Na linguagem dúbia de Mussolini e seus asseclas doutrinários, o Estado e o Partido, objetivando criar o "homem integral", devem ser senhores e guias da energia, do interesse e da esperança do povo, organizando-o como um todo corporativo. Para tal, existia a necessidade de implementação de uma nova organização constitucional. Nesta, elemento essencial era a vontade incontestável do "Duce", expressão viva da soberania ilimitada do Estado. Ditador, com investidura independente das precárias e transitórias maiorias parlamentares, colocado acima da escolha eleitoral. Chefe que se impusera pelas qualificações de sua personalidade no comando da Revolução Fascista e no qual se consubstanciava a força moral e material do espírito nacional. Carisma e suposição de eternidade constituíam as características fundamentais desse autoconsagrado representante e, ao mesmo tempo, condutor da vontade de toda a nação. Para assessorá-lo contudo rigorosamente sujeito à sua designação e ordens instituiu-se o Grande Conselho do Fascismo, considerado o símbolo do Estado-Nação porque nele era suposto encontrarem assento figuras representativas de todos os níveis sociais e das atividades profissionais e intelectuais do povo. Por seu intermédio, a vontade do chefe, que o presidia, era divulgada positivamente, isto é, como ordenamento legal, conforme estabelecido na decantada Carta del Lavoro, ditame básico da nova ordem constitucional do Estado corporativo. (MORAES, 1996, p. 449) 16 Para o fascismo, a luta de classes constituía o elemento destruidor da nação e do Estado, sendo utilizada pelos marxistas para alcançarem o poder e imporem a ditadura do proletariado. O corporativismo fascista, pelo contrário, pressupunha a necessidade de cooperação entre as classes e não a supressão do empresariado administrador para substituí-lo por falsos trabalhadores, representados pelos poderosos burocratas do partido comunista, como na União Soviética. Segundo os doutrinadores fascistas, a intervenção estatal na produção e no trabalho visava, tão somente, conciliar os interesses particulares e disciplinar as ações com o intuito fundamental de não permitir outro objetivo senão o de servir às necessidades intrínsecas da nação. Assim, tais conflitos não continuariam a resolver-se pela diversidade das facções sindicais ou dos interesses particulares e egoísticos das partes. Ao Estado cabia dirigir as relações das diversas categorias sociais de produção, visto como a organização corporativa dele exclusivamente dependia e, portanto, a sua política, da mesma forma que a política em geral, só podia ser aquela estabelecida pelo chefe do governo. O tal corporativismo, entretanto, não passava de uma fachada, pois pouca coisa mudou no regime econômico da Itália. Quando a [Primeira Grande] guerra acabou, impôs-se a todos a constatação de que a transformação da sociedade no sentido de um nunca definido 'corporativismo' prometida pelos fascistas não havia levado a nenhuma modificação no regime econômico da Itália e da Alemanha. 'O fato mais esclarecedor a respeito da natureza real dos sistemas fascistas é seguramente o de que, quando eles chegaram ao fim, vinte anos após a 'marcha sobre Roma' de Mussolini e doze anos após a ascensão de Hitler à chancelaria, a estrutura econômica e social dos dois países não tinha sido mudada de modo significativo', escreveria mais tarde Ralph Miliband. O 'corporativismo' se mostrou, afinal, mera empulhação, destinada a manter a ficção de um 'terceiro sistema' capaz de funcionar como síntese ou alternativa para o capitalismo e o socialismo [grifos no original]. (KONDER, 1977, p. 65) A principal intenção dos fascistas era sujeitar toda a vida italiana a uma ideologia emanada de seu partido. Entre os pontos defendidos pelo partido fascista destacavam-se: a defesa do totalitarismo como o único meio para findar a luta de classes , a contenção da expansão do internacionalismo comunista e a criação de uma cooperação entre o capital e o trabalho, por meio de uma legislação social "avançada", consubstanciada no Estado Corporativo. O movimento sindical foi organizado em corporações dirigidas pelo governo, sendo proibidas greves e boicotes. As atividades econômicas foram divididas em corporações, com seus dirigentes sendo escolhidos pelo partido. Como resultado prático e imediato, os 17 preços foram tabelados e os lucros limitados, em tese. Não ocorreu, efetivamente, uma estatização econômica e a burguesia continuou exercendo suas atividades, embora sob a orientação estatal. Entretanto, a produtividade dos campos aumentou, as dívidas internas foram pagas; o índice de desemprego caiu e vários setores demonstraram certo fortalecimento econômico. O sucesso fascista, entretanto, era limitado, sendo, em grande parte, fruto de propaganda. A grande máquina se pôs, teoricamente, em movimento, em 1934. Mas funcionava só por inércia, e frente aos graves e reais problemas econômico-sociais do país, obviamente, rodava em ponto morto. Obteve-se uma fictícia estabilização da lira, à custa de reduções salariais, que se fingia trágica ironia fossem pelos mesmos trabalhadores pedidas, por alto espírito patriótico. As leis mínimas de proteção social, que não se tivera a coragem de eliminar, tornavam-se letra morta, deixando-se de aplicá-las, graças a fáceis truques ou omissões. O número de desempregados tinha-se pelo menos triplicado em 15 anos, e a assistência era efetuada com contribuições angariadas dos próprios trabalhadores. Grande propaganda foi feita do bem-estar e da diminuição dos preços: mas o bem-estar era privilégio de poucas categorias, e a baixa dos preços era aplicada exclusivamente a alguns produtos de pequeno consumo, com o único fim de ludibriar. Apesar do aumento da população, houve, no vicênio, uma sensível diminuição no consumo médio de produtos, até mesmo de primeira necessidade. Mas não se encontravam mais, na rua, mendigos e vagabundos (eliminados pela polícia), e os trens, orgulho pessoal de Mussolini, chegavam pontualmente, mostrando ao mundo que uma nova era tinha chegado para a Itália. (FIORANI, 1963, p. 114-115) Apesar disso, a imagem passada era a de uma Itália renascida, pronta para adentrar numa nova era de prosperidade, fartura, estabilidade. Tudo sob a égide do regime fascista, sob a batuta de seu carismático líder Mussolini. A Itália inspirava o surgimento de outros regimes totalitários, papel que logo mais seria exercido, como será visto a seguir, com muito mais contundência, pela Alemanha de Hitler. O relativo sucesso do fascismo italiano em resolver, pelo menos aparentemente, os problemas mais prementes do povo italiano, inspiraria Plínio Salgado a criar no Brasil a Aliança Integralista Brasileira, de origem fascista, que acabaria desenvolvendo papel importantíssimo na decisão de Vargas de proibir as atividades de qualquer associação partidária de orientação política estrangeira no Brasil. 2.1.3 O Partido Nacional-Socialista Alemão O momento político, social e econômico reinante na Alemanha quando o Partido dos Trabalhadores Alemães (Deutsche Arbeiterpartei - DAP) foi fundado, em 18 setembro de 1919, por um ferreiro chamado Anton Drexler e um jornalista de nome Karl Harrer podia ser definido como uma crise nacional intensa e de grande insatisfação da maioria do povo alemão. A Alemanha havia sido derrotada na Primeira Guerra Mundial e, como visto, ficou obrigada a arcar com o pagamento de pesadíssimas indenizações. As imposições do Tratado de Versalhes eram consideradas humilhantes e desumanas. Para piorar, a queda do Imperador Guilherme atiçou o apetite revolucionário dos comunistas que, baseando-se no exemplo dos bolcheviques tentavam, por qualquer meio, conquistar o poder. Foram dizimados. Os Freikorps (Corpos de Voluntários), tropas reconstituídas do antigo exército imperiais, usadas pela administração socialdemocrata [sic], massacraram o movimento espartaquista. Em Berlim, na semana sangrenta de 10 a 17 de janeiro de 1919, assassinam Rosa Luxemburgo e Liebknecht e dissolvem os Conselhos do Povo. Em Munique, onde se criou o partido nazi, uma República Vermelha dos Conselhos ali formada é também massacrada logo em seguida, a primeiro de maio. (LENHARO, 1990, p. 18) A história do DAP é paupérrima em realizações ou interesse. Na verdade, não passava de um partido inexpressivo, formado por camaradas amantes da cerveja, que acalentavam os mesmos sonhos de uma Alemanha novamente forte e um mundo sem judeus ou outras raças consideradas inferiores. A real história do partido que acabaria por tomar o poder na Alemanha começa, realmente, com a entrada de Adolf Hitler entre suas fileiras. Será este quem galvanizará toda a estrutura do partido, mudar-lhe-á o nome para Partido Nacional Socialista Alemão (em 1920) e criará uma estrutura partidária voltada para a conquista do apoio das massas. Adolf Hitler, terceiro filho de um pequeno funcionário da alfândega austríaca em Braunan (interior da Áustria), após uma juventude atribulada, mudou-se para Viena, onde trabalhou como ajudante de pedreiro, como batedor de tapetes, removendo neve ou carregando malas para fora da Estação Ferroviária Oeste. Acabou passando fome. Ainda hoje, essa capital só desperta em mim pensamentos sombrios. Cinco anos de miséria e sofrimentos, eis o que significa a minha estadia nessa cidade de prazeres. Cinco anos em que, primeiro como ajudante de operário, depois como aprendiz de pintor, vi-me forçado a trabalhar pelo pão quotidiano, mesquinho pão que nunca bastava para saciar a minha fome habitual. A fome era então minha companheira fiel que nunca me deixava sozinho e que de tudo igualmente participava. (HITLER, 1983, p. 26) 19 Em Viena, Hitler sedimentaria suas convicções sobre a importância política de se conseguir o apoio das massas e o anti-semitismo, o qual se tornaria sua segunda natureza. Enquanto em Linz havia poucos judeus, em Viena Hitler praticamente esbarrava neles a cada instante, podendo, assim, examiná-los cuidadosamente e ao papel que desempenhavam na sociedade da época. O antisemitismo fazia parte do programa do partido nacionalista e do socialista cristão. Ambos, naturalmente, também eram anti-socialistas. Durante sua estada em Viena, Hitler, segundo suas próprias declarações, aprendeu a odiar tanto os comunistas quanto os socialdemocratas e os judeus. Em 1914, com a eclosão da I Guerra Mundial, Hitler, então com vinte e cinco anos, juntou-se, como voluntário, a um regimento bávaro. Foi-lhe designada a 1ª Companhia do Regimento de Infantaria de Reserva Bávaro. Durante a batalha de Ypres, o jovem Adolf capturou, sozinho, e armado somente com uma pistola Luger, um oficial e 15 soldados franceses, o que lhe valeu a condecoração com a Cruz de Ferro, a mais alta comenda militar alemã. Mais tarde, em 1916, foi ferido em uma das pernas, e tornou-se mensageiro, conduzindo documentos entre a retaguarda e as linhas de frente. Em 1918, após recuperar-se de um ataque com gás, que o cegou temporariamente, Hitler trabalhou como guarda de um campo de prisioneiros e, com o fechamento deste, voltou, em 1919, a Munique. Foi nesta cidade que os caminhos do DAP e de seu futuro Führer se cruzariam, mudando radicalmente a história da Alemanha e do mundo. Em 1919, o campo [de concentração] foi fechado e Hitler retornou a Munique, onde passou a integrar o departamento de espionagem militar. A sua tarefa era espionar os revolucionários comunistas que haviam planejado um golpe, em Munique, que, por um breve tempo, os levou ao poder. Hitler ajudou a desmascarar seus líderes, que foram fuzilados. Ele também compareceu a reuniões do Partido dos Trabalhadores Alemães, que se opunha aos comunistas, inicialmente como agente secreto, mas se converteu à política do partido e subiu à sua liderança. O Partido dos Trabalhadores Alemães fora fundado em 1919 para promover a superioridade racial, o nacionalismo alemão e o anti-semitismo. (HOWARD, 1994, p. 154) Quando Drexler, Harrer, e os demais membros do conselho do DAP notaram os dons oratórios do ex-soldado, imediatamente o escalaram para falar num comício público. Segundo SHIRER (op. cit., p. 74-75), a estréia ocorreu em 6 de outubro de 1919, na praça da Hofbraükeller. O tema, apesar de batido, possuía grande apelo emocional, da vergonha do tratado de paz. Os ouvintes renderam-se ao poder 20 oratório de Hitler, o qual, meia hora depois, ao terminar o discurso, percebeu, pela primeira vez, seu poder carismático. A esse respeito, o único amigo de juventude de Hitler, August Kubizek, relataria, mais tarde, que, quando Hitler atingiu o auge de sua peroração, "as pessoas que se achavam na pequena sala estavam como que eletrizadas" e que este, ao findar seu discurso, estava ciente "a partir daquele momento, que tinha dons oratórios" (KUBIZEK apud FEST, op. cit., p. 140). Entre aqueles que o cumprimentaram pela prédica estavam, Alfred Rosenberg, Rudolf Hess e um estudante de Direito chamado Hans Frank (que mais tarde viria a ser governador da Polônia ocupada), personagens até então desconhecidos, mas que viriam a desempenhar papéis fundamentais no desenvolvimento do nazismo. Ciente de seu potencial de orador carismático, Hitler decidiu, intimamente, modificar a filosofia do partido a fim de criar um movimento político de apelo às massas. Era sua intenção utilizar os meios que o partido poderia oferecer para desencadear uma contra-revolução direitista que eliminasse, ao mesmo tempo, os judeus, os comunistas e os social-democratas que, em sua opinião, secundada por boa parte do povo alemão, traíram a Alemanha durante a guerra. Para adquirir poder dentro do partido, Hitler fez crescer o número dos membros do comitê diretivo, inicialmente para dez e, em seguida, "provisoriamente", para doze. Este número foi aumentando e Hitler conseguindo nomear pessoas que lhe eram particularmente devotadas, entre elas alguns camaradas de caserna que havia conquistado para suas idéias. Seu renome como orador assegurava-lhe, cada vez mais, uma posição de destaque dentro do partido. Desde o início do ano, conseguiu eliminar o obstáculo representado por Harrer e pressionou-o a pedir demissão. Em 24 de janeiro de 1920, no salão de festas da Hofbraü, ocorreu a primeira grande manifestação pública do DAP e Hitler discursou estigmatizando a frouxidão do governo, o Tratado de Versalhes; os judeus; "o bando de sanguessugas", os aproveitadores e usurários. Logo após, leu os 25 pontos de que era composto o programa, interrompido, volta e meia, por aplausos e gritos Esta manifestação marcaria o início da alteração da modesta associação racista de beberrões de cerveja, criada por Drexler e Harrer, no partido de massa de Adolf Hitler. O programa do DAP fora inicialmente escrito por Drexler, mas uma comissão, fortemente influenciada por Hitler, o revisou. Uma das muitas armas da 21 escalada de Hitler incluíam reaproveitar a forma e o conteúdo das palavras de ordem e das diretrizes da esquerda. A esse respeito, Hitler diria no Mein Kampf (Minha Luta) que havia aprendido muito com os métodos dos comunistas e não com sua doutrina. Muitos dos 25 pontos do programa do partido nazista, de 24 de janeiro de 1920, eram consagrados a fins nacionalistas e racistas o 3º ponto já se referia à necessidade do ‘espaço vital’e o 5º exigia a exclusão dos judeus da comunidade alemã. O 12º ponto falava no confisco dos lucros de guerra; o 13º, na nacionalização das indústrias monopolistas; o 14º, na participação dos trabalhadores nos lucros das grandes empresas; o 17º, na reforma agrária; o 18º, na punição dos usurários, açambarcadores e especuladores. No poder, entretanto, os nazistas voltaram sua política para a direita, contentando-se com pequenas inovações tomadas como práticas socialistas. Dessa forma, a sociedade Força para Alegria promovia viagens de turismo para trabalhadores previamente escolhidos; ou então, aos domingos, havia a obrigação de se servir um único prato nos restaurantes. O socialismo não passou disso. (LENHARO, op. cit., p. 17-18) Uma semana depois da reunião na Hofbräu, o partido alterou seu nome para Partido Nacional-Socialista dos Operários Alemães (NSDAP). No início de março de 1920, um grupo de direitistas, reunidos em torno de Kapp, chefe de uma corporação paramilitar, com o apoio da brigada Ehrhardt, tentara dar um golpe de estado em Berlim. Entretanto, devido ao amadorismo demonstrado por seus organizadores e por causa da greve geral que se seguiu, o "putsch" falhou. Na passagem do dia 13 para 14 de março, contudo, uma operação semelhante, levada a cabo, ao mesmo tempo, pela Reichwehr e as corporações livres na Baviera, derrubaram o governo de coligação burguesa e social-democrata, substituindo-o por um governo de direita, dirigido por Gustav von Kahr. O levante, contudo, foi dominado. Esta situação constituiu-se numa seqüência de eventos favoráveis ao crescimento e às ambições do NSDAP. A partir deste momento, o partido gozou, cada vez mais claramente, do favorecimento de elementos militares, paramilitares e civis que detinham o poder. A cada êxito do partido, novas solicitações da direita lhe eram dirigidas. Os detentores do poder viam em Hitler e seu partido, um importante instrumento de galvanização das massas a ser utilizado e, posteriormente, descartado. Grande erro, pois Hitler, após utilizar o apoio recebido para formar batalhões partidários que deviam combater as organizações proletárias de esquerda, acabaria voltando estes mesmos batalhões contra seus antigos aliados. Com a ocupação francesa da região do Ruhr, empreendida para forçar a retomada, pelos alemães, do pagamento das indenizações de guerra, uma explosão 22 de ódio e histeria alastrou-se entre os nacionalistas alemães. Os comunistas, que vinham aumentando sua força, juntaram-se a eles na virulenta campanha desencadeada contra a República. O chanceler Stresmann via-se, agora, ameaçado seriamente por uma revolta tanto da extrema direita quanto da extrema esquerda. Antecipadamente cônscio das reações contrárias às suas medidas, este fizera com que o Presidente Ebert decretasse um estado de emergência no mesmo dia em que anunciara aquelas. O Estado da Baviera não se dispunha a aceitar tal situação. O Gabinete bávaro decretou seu próprio estado de emergência, nomeando o monarquista da direita e ex-Primeiro-Ministro, Gustav von Kahr, Comissário Estadual munido de poderes ditatoriais. O período conturbado em que a Alemanha se encontrava parecia, a Hitler, o momento ideal para conquistar o poder pela força das armas. Os nazistas seqüestram as autoridades bávaras e Hitler, junto com o herói de guerra, Ludendorff, proclamou-se chefe do novo governo. O golpe não dá certo, Hitler e Ludendorff são aprisionados e julgados, mas apenas o primeiro recebe uma sentença de cinco anos de prisão, com direito à comutação. O partido é dissolvido. Na prisão, Hitler começa a escrever seu livro, Mein Kampf e, poucos meses mais tarde, sai dela, disposto a tomar o poder, mas dessa vez pelas vias legais. O período que se estende entre 1925 e 1929, não foi muito bom para o movimento nazista. Ocorria um ligeiro surto de prosperidade e estabilidade política que não permitia espaço para as manobras nazistas. A indústria crescera um pouco e o desemprego caíra para cerca de 650.000 desempregados (1928). Além disso, Hitler e seus seguidores eram pouco lembrados e, quando mencionados, era em tom de pilhéria, devido ao fracasso do Putsch da Cervejaria, como ficou conhecido o episódio. Nas eleições de 1928, os nazistas conseguiram apenas 12 dos 491 membros do Reichstag. Apesar disso, as fileiras dos nazistas começaram, lenta mas seguramente, a engrossar. Em 1925, eram apenas 27 mil afiliados; número que aumentou, no ano seguinte, para 49.000. No final de 1927 já eram 72.000, alcançando a marca de 108.000 membros em 1928 e 178.000 no ano seguinte. Em termos de organização partidária, o país foi dividido em distritos ou Gaue (mais ou menos 34 distritos eleitorais), comandados pelos gauleiter, pessoalmente designados por Hitler. Um Gaue, segundo FEST (1967), era dividido em Kreise círculos sendo dirigidos por Kreisleiters, enquanto a menor porção do partido 23 correspondia ao Ortsgruppe, grupos locais, que se subdividia em células de ruas e quarteirões. Numa manobra inteligente, Hitler contrariou alguns refratários à presença de mulheres e crianças no partido e criou organizações para este segmento do povo. A Juventude de Hitler congregava jovens de quinze a dezoito anos e tinha seus próprios departamentos de cultura e escolas, de imprensa, serviços de propaganda, de 'esportes de defesa', etc., e os jovens de dez a quinze anos eram inscritos na Deutsch Jungvolk. Para as moças havia a Bund Deustcher Maedel e, para as mulheres, a N. S. Frauenschaffen. Estudantes, professores, funcionários públicos, doutores, advogados, juristas todos possuíam suas organizações, e existia um Kulturbund nazista para atrair os intelectuais e artistas. (FEST, op. cit., p. 188) O trabalho de reorganização partidária de Hitler não parou por aí. As SA grupo paramilitar nazista foram reorganizadas, contando com centenas de milhares de homens, cuja função era proteger os encontros e comícios nazistas e dissolver os dos outros partidos, além de espalhar o terror entre os opositores do movimento. As brigas internas e a amoralidade que grassava entre as fileiras das SA, contudo, levaram Hitler a criar as SS Schutzstaffel cujos membros, vestidos de negro, prestavam um juramento de lealdade à pessoa do Führer. Acima de todos no partido, encontrava-se a figura do Führer, que ostentava o título de Partei-und-Oberster-S.A.-Führer, Vorsitzender der N.S.D.A.V., o qual, segundo FEST (op. cit., p. 189), podia ser traduzido como "Líder Supremo do Partido e das S.A., Presidente da Organização Nacional-Socilista Alemão do Trabalho". Com a morte do chanceler Stresemann (24 de outubro), aconteceu a famosa Quebra da Bolsa, em Nova Iorque. Os resultados foram funestos para a Alemanha, pois os empréstimos necessários para manter a estabilidade econômica pararam de entrar. Com isso, a indústria alemã viu sua produção despencar em cerca de 50%, entre 1929 e 1932. Em 1931, o governo de Berlim foi forçado a fechar, temporariamente, as demais instituições bancárias. Nem mesmo a moratória das indenizações, decretada pelo presidente americano Hoover, foi suficiente para livrar a Alemanha do colapso. O aumento vertiginoso do desemprego (mais de seis milhões de trabalhadores) e as longas filas de pão mostraram a Hitler que o momento aguardado chegara. Ele começaria a agir já no fim do verão de 1930. Hermann Mueller, o chanceler socialdemocrata renunciou, sendo substituído por Heinrich Bruening, oriundo do Partido Católico do Centro. Sendo um homem de 24 excelente caráter pessoal, desinteressado, modesto, honesto, dedicado, de natureza um tanto austera, Bruening desejava restaurar a estabilidade do governo parlamentar e livrar o país de suas dificuldades. Pelo fato do Reichstag não aprovar algumas das medidas de seu programa, ele conseguiu que Hindenburg dissolvesse este, convocando eleições para 14 de setembro de 1930. Talvez Bruening achasse que conseguiria formar uma maioria parlamentar, mas, na verdade, acabou fornecendo a oportunidade que Hitler esperava. Hitler exigia soluções para o momento caótico que assolava o país. Milhões de desempregados queriam emprego. Os pequenos negociantes pediam auxílio. Cerca de quatro milhões de jovens, em idade de votar, buscavam uma alternativa que lhes permitisse viver dignamente. Hitler oferecia esperança, prometia tornar a Alemanha poderosa novamente, não pagar as indenizações, repudiar o Tratado de Versalhes, eliminar a corrupção, tirar o dinheiro dos magnatas e dar, a cada alemão, trabalho e pão. Tais promessas produziriam um efeito surpreendente nas eleições. Embora fossem grandes suas esperanças, Hitler foi surpreendido, na noite de 14 de setembro de 1930, com os resultados das eleições. Dois anos antes seu partido obtivera 810.000 votos e elegera 12 membros do Reichstag. Desta feita esperava quadruplicar os votos nazistas e assegurar talvez uns 50 lugares no Parlamento. Entretanto, nesse dia, a votação do Partido Nazista subiu a 6.409.600, cabendo-lhe 107 cadeiras no Parlamento e fazendo-o saltar da condição de nono e menor partido para a de segundo maior partido do Reichstag. (FEST, op. cit., p. 212) A doutrinação fanática de Hitler e suas promessas de restaurar a antiga glória do Exército alemão surtiram efeito e ele conquistou muita simpatia, especialmente entre os jovens oficiais, que viam a oportunidade de atingir os mais elevados postos, se ocorresse um aumento do efetivo de tropas. Os próprios industriais e financistas passaram a considerar a possibilidade de que Hitler talvez fosse o homem certo para assumir a direção da Alemanha e manter-lhes os privilégios, ao mesmo tempo em que afastava o perigo comunista. Por volta desta época, Hitler foi apresentado a diversos líderes industriais por Walter Funk, exredator do famoso jornal de finanças alemão Berliner Boerzenzeitung, e que se filiara ao partido, tornando-se elo de ligação entre este e o mundo das grandes corporações alemãs. 25 Começaram, então, as conversações relatadas por Walter Funk, em depoimento de pósguerra: 'Nesse período, a direção do partido mantinha opiniões completamente contraditórias e confusas sobre a política econômica. Procurei cumprir minha missão, incutindo pessoalmente no Führer e no partido a idéia de que a iniciativa privada, a autoconfiança do homem de negócios, a força criadora da livre empresa, etc., fossem adotadas como política econômica básica do partido. O Führer em pessoa salientou mais de uma vez, em suas conversações comigo e com os líderes industriais, perante o qual eu os levava, que ele era um inimigo da economia estatal e da chamada planificação econômica e considerava a livre empresa e a concorrência como absolutamente necessárias a fim de obter a mais alta produção possível'. Ao reproduzir esse depoimento, comenta William L. Shirer: 'Hitler, por conseguinte, como relatou o seu futuro presidente do Reichsbank e ministro da Economia, começou a conhecer os homens que na Alemanha possuíam o dinheiro, dizendo-lhes mais ou menos o que eles queriam ouvir.' (MORAES, op. cit., p. 485486) Este contato com os homens do dinheiro era fundamental para o futuro do partido nazista. Afinal, eram necessárias grandes somas de dinheiro para sustentar a máquina partidária. Era preciso financiar as campanhas eleitorais, cobrir os custos de propaganda, pagar centenas de funcionários que trabalhavam em tempo integral e manter as SS e, em especial, as SA, cujo efetivo passava, ao final de 1930, dos cem mil homens. Torna-se necessário, neste momento, abrir um pequeno parêntese para abordar ligeiramente um assunto muito discutível quando se fala da ascensão do nazismo na Alemanha. Segundo POULANTZAS (1978), é comum alguns autores, como Kornhauser, Almond, Speier e Heiden, apresentarem Hitler como um "chantagista" do grande capital, e que somente após conseguir o apoio da alta burguesia, voltou-se para a conquista das massas. Na verdade, foi justamente o crescimento do apoio das massas aos nazistas que levou os próprios capitalistas a procurar em Hitler uma salvaguarda contra a perda de seus privilégios. O apoio das massas e capitalistas se desenvolveu paralelamente e ao mesmo tempo. [...] Por outras palavras, não é o estabelecimento de uma relação 'prévia' com o bloco no poder e, em particular, com o grande capital que faz imediatamente do partido nacionalsocialista um movimento de massa. Estes dois elementos surgem, antes, ligados pela conjuntura: pode dizer-se, da mesma maneira, invertendo os dados, que é precisamente porque o partido nacional-socialista se torna um movimento de massa, e à medida que em tal se vai transformando, que o bloco no poder progressivamente se volta para ele. Porque também não é verdade, contra o que sustenta a maioria dos ideólogos do 'totalitarismo', que o partido nacional-socialista se torne primeiro um movimento de massa, para só depois conquistar o apoio do grande capital. [...] Em 1927, fato significativo, Gr. Strasser, cujas idéias 'esquerdizantes' indispunham estes círculos [do grande capital alemão]. É substituído à testa da região (Grau) de Berlin-Brandenburg por Goebbels. É igualmente em 1927 que se verifica a primeira refundição radical do programa nacional-socialista, marcada pelo esbatimento das exigências demasiado 'anticapitalistas' que anteriormente continha [grifos no original]. (POULANTZAS, 1978, p. 117-118) 26 Sentindo-se fortalecido pelos contatos com os magnatas alemães e pelo apoio que vinha recebendo de boa parte não só da população, mas também do Exército, Hitler decidiu concorrer às eleições presidenciais, alcançando 36,8% dos votos contra 53% de Hindenburg. Isto não o abalou ou ao prestígio do partido. A retirada de Bruening do cargo de Chanceler, devido a inúmeras pressões, ajudou ainda mais os nazistas a se aproximarem do poder. Bruening havia dissolvido as SA, mas seu sucessor, Barão Von Papen, pressionado por proprietários de terras ligados aos nazistas, acabou por legalizá-las outra vez. A tensão aumentou grandemente entre os dois inimigos mortais: nazistas e comunistas. Ocorreram verdadeiras batalhas de rua. Somente na Prússia, entre 1º e 20 de junho de 1932, especialmente em Berlim, o número dessas chegou a 461, apresentando um resultado final de 82 mortos e cerca de 400 feridos. No mês seguinte, 86 mortos e 285 feridos. Hindenburg resolveu dar um golpe de Estado contra o governo socialdemocrata prussiano e demitiu o governo Braun. Nas eleições nacionais de julho, os nazistas cresceram mais ainda, conquistando 230 cadeiras contra 143 dos socialdemocratas, 89 dos comunistas e 75 do Centro Católico. Com a dissolução do Parlamento, devido ao fato de Hindenburg precisar governar por meio de decretos, uma vez que não tinha apoio para suas medidas, novas eleições foram marcadas para novembro. Desta feita, os nazistas apresentaram um pequeno recuo e fizeram apenas 196 cadeiras, enquanto os comunistas avançavam, conquistando um total de cem cadeiras. Foi este sucesso comunista, somado ao poder de atração apresentado pelos nazistas, que levou à união das forças de direita. Cada vez mais, militares e industriais aderiam ao partido hitlerista. As ações desastradas de Hindenburg, que já contava com mais de oitenta e quatro anos de idade e apresentava sinais de demência levaram, finalmente, Hitler à condição de Chanceler alemão. Após as eleições de novembro, 38 signatários da grande indústria, encabeçados por Thyssen, Krupp, Bosch, Siemens, Schacht e von Schröeder, apelam a Hindenburg para que nomeie Hitler primeiro-ministro. A 29 de janeiro de 1933, o presidente demite von Schleicher, que sucedera a von Papen por dois meses, e nomeia Hitler chanceler. Empossado no dia seguinte, Hitler foi saudado durante toda a noite pela população de Berlim, com uma procissão de tochas acesas, cantos, luzes e cruzes gamadas. (LENHARO, op. cit., p. 28) 27 A suposição dos governantes de que Hitler pudesse ser controlado mostrouse totalmente equivocada. A campanha eleitoral de março veio demonstrar que os nazistas, agora, não podiam mais ser controlados. A habitual eficiência da propaganda e da persuasão recebeu o reforço considerável da intimidação, das ameaças e dos seqüestros. Em 27 de fevereiro de 1933, o Reichstag é incendiado e os nazistas lançam a culpa sobre seus adversários comunistas. Imediatamente, um decreto de emergência suspende todas e quaisquer garantias de liberdade. Os resultados não se fazem esperar; a votação pró-nazista sobe a 43,9%. O incêndio do Reichstag seria o sinal para a rebelião sangrenta e a guerra civil. Já se previa em Berlim a ocorrência de grandes pilhagens na terça-feira às quatro horas da madrugada. É fato comprovado que o evento de hoje deveria desencadear em toda a Alemanha uma onda de atos terroristas contra certas personalidades, contra a propriedade privada, contra os bens e a vida da população pacífica, assim como uma guerra civil geral... Uma ordem de prisão foi expedida contra dois importantes deputados comunistas do Reichstag muito suspeitos. Os outros deputados e funcionários a serviço do Partido Comunista já tinham sido presos por medida de segurança. Jornais, revistas, folhetos e cartazes de propaganda comunistas foram proibidos em toda a Prússia por quatro semanas. E todas as publicações oriundas do Partido Social-Democrata foram suspensas por duas semanas... (FEST, op. cit., p. 469) É inegável que Hitler adotara, e modificara conforme suas necessidades, as práticas de golpe de Estado dos bolcheviques, bem como dos fascistas italianos. Mas, o que mais se destaca na análise dos métodos empregados por ele na tomada do poder, são os seus próprios toques pessoais, que simbolizam o modelo clássico, ideal, de uma conquista totalitária dentro do âmbito de um país democrático. Hitler tomou o poder a partir do seio deste, pois aprendera a lição após o fracasso do Putsch de 1923. Combater um governo democrático por meio da violência do golpe era muito mais difícil e perigoso do que solapá-lo a partir de seu interior, utilizandose, para tanto, de meios legais (ou quase). A tomada do poder pelos nazistas adotou a tática magistral de revestir de legalidade jurídica certos atos que beiravam a ação revolucionária. A facilidade em promover avanços e recuos em suas medidas, tornava Hitler inatacável, do ponto de vista político, pois suas ações costumavam ser realizadas muito próximas ao limite entre o crime e a ação juridicamente legal. Com isso, os ataques verbais dos adversários comunistas, por exemplo, apresentavam-se aos olhos do povo como simples inveja e perfídia política. 28 A fim de silenciar seus adversários, Hitler conseguiu que Hindenburg assinasse um decreto denominado "Da Proteção do Povo Alemão". Este daria, ao Governo, o direito de proibir, mesmo que sob as alegações mais imprecisas ou inconsistentes, manifestações políticas e impressos dos partidos concorrentes. O decreto veio à luz em 4 de fevereiro de 1933, mas fora conseguido com muito esforço. Talvez, devido a estas dificuldades, Hitler e seus asseclas tenham decidido que uma farsa, como o incêndio do prédio do Parlamento, forçaria Hindenburg a darlhes maior liberdade de manobra. Somente um adversário temível, ameaçava as pretensões de Hitler: o comandante das SA, Rohm, que comandava três milhões de homens, número bem maior que as SS e o exército juntos. Na noite de 30 de junho de 1934, no episódio que ficou conhecido como A Noite dos Punhais, Rohm e as principais lideranças das SA foram massacrados. Outros inimigos, como Gregor Strasser, remanescente da ala esquerdista do partido, Von Schleicher, Von Bose e Jung, secretários de Von Papen, foram igualmente eliminados. Finalmente, as portas do poder se abriram para Hitler e seus sequazes. Com a morte de Hindenburg, bastou a Adolf Hitler assumir a presidência do país. Os nazistas dominavam a Alemanha. Com Hitler no poder, a ideologia nacionalista alemã passa a ser cada vez mais cultivada. De acordo com ela, um alemão não deixa de ser alemão apenas por ter nascido em outro país. Dessa forma, Hitler passaria a considerar os emigrantes germânicos no Brasil como seus súditos, contando com eles para garantir influência política no país. O Partido Nazista passa então a atuar no Brasil, sem sofrer grandes sanções por parte do governo brasileiro até a criação do Estado Novo. Depois, a fracassada tentativa de golpe dos integralistas brasileiros daria a Vargas a desculpa ideal para coibir as atividades de todos os partidos estrangeiros no país. 2.1.4 As Bases Totalitárias do Regime Nacional-Socialista Alemão Alemanha, Itália e União Soviética foram, indubitavelmente, as expressões máximas de um regime, o autoritarismo, que se alastrou por boa parte da Europa e do mundo durante o período compreendido entre as duas Grandes Guerras. Vários 29 países (especialmente na Europa) acabaram implantando formas de governo que seguiam uma orientação político-ideológica de cunho fascista ou nazista. A Europa de fato endossava o fascismo, o qual para ela significava ordem, concórdia, bemestar, sem socialismo e longe de perigosas aventuras liberais [...] clericalismo e nacionalismo, conciliados na base da reação, invejavam e admiravam o fascismo. [...] Um dos aspectos do sucesso fascista foi a crise autoritária que varreu a Europa entre 1925 e a última guerra, e que tomou forma em restaurações monárquicas absolutistas ou em ditaduras personalísticas. Apesar da tendência tradicional e do aspecto militarista ou católico (ou ambos), houve, claramente, em suas origens e desenvolvimentos, a inspiração fascista. (FIORANI, op. cit. p. 95-96) Não há como negar que a existência de um regime ou movimento forte, autoritário, necessita, para justificar sua própria existência, de outro regime/movimento igualmente forte (ou mesmo superior), mas com orientação ideológica completamente oposta. Assim, um regime pode solicitar e alcançar o apoio popular incondicional às suas idéias e projetos como forma de combater e neutralizar o regime oposto. É possível, portanto, depreender que ditaduras podem surgir (embora, naturalmente, não como único motivo) como antíteses, como alternativas, umas às outras. Entre as ideologias autoritárias surgidas até o início da Segunda Guerra Mundial, a do comunismo difere das demais, principalmente, por pressupor a necessidade de uma "terra arrasada" sobre a qual deveriam ser edificados novos regime e Estado. As que se opuseram a esta, por sua vez, obviamente agiram de modo diverso, adotando e glorificando valores como tradição, família, propriedade e, no caso do nazismo, a raça. Apesar de todas as possíveis diferenças, contudo, alguns aspectos principais são comuns a todas as ideologias autoritárias, como, por exemplo: Um corpo oficial de doutrinas que abarca todos os aspectos da vida individual e social, na pretensão de criar um estágio final e perfeito da humanidade; bem como na conquista do mundo por suas idéias, tendo em vista uma sociedade renovada; A existência de um partido político forte, conduzido por um líder autoritário e carismático (Hitler, Mussolini, Stálin), que supostamente reúne a elite social e intelectual (jornalistas, escritores, cineastas, compositores musicais), os quais 30 sistematizam em planos a ação política e se encarregam da formulação e divulgação do apelo passional ideológico; Um sistema repressivo baseado no terror, montado para identificar e eliminar indivíduos e movimentos dissidentes (SA, SS e Gestapo na Alemanha; Polícia Fascista na Itália e polícia secreta soviética, com suas diversas e sucessivas mudanças de nome GPU, NKVD, KGB); Envolvimento político das forças armadas mediante infiltração de agentes, doutrinação do partido, concessão de privilégios à casta militar e centralização absoluta do comando. Monopólio quase total de todos os instrumentos de luta armada; Controle de todas as formas de expressão e comunicação, desde as artísticas e públicas até os simples contactos particulares interpessoais; Controle centralizado do trabalho e da produção pela politização das entidades corporativas; planejamento rigidamente centralizado da economia através de planos de produção e destinação de bens. A ameaça de internacionalização do comunismo após a revolução russa de 1917 acabou auxiliando a justificar o surgimento de governos fortes, ditatoriais ou não, que empunhavam a bandeira do anticomunismo como razão de existência, em quase todos os países mais desenvolvidos. Naturalmente, houve diversas gradações nessa resistência ao "perigo vermelho". Enquanto em alguns países apenas ocorreu um endurecimento da intolerância frente a grupos ativistas socialistas, em outros se instalaram ditaduras cujas ideologias ou se opunham frontalmente às propostas comunistas (nazismo) ou buscavam neutralizá-las com medidas de segurança nacional no bojo de um projeto político com forte apelo às massas (fascismo de Mussolini, justicialismo de Perón, sindicalismo de Vargas). O nazismo foi uma proposta de oposição frontal ao comunismo. Hitler apresentava-se, enfaticamente, como a ponta-de-lança européia no combate ao que chamava de "perigo vindo do Leste". Ao se analisar as estruturas da Alemanha nazista, não se pode deixar de observar o fato de que, já na aparentemente modelar constituição democrática da República de Weimar, estavam presentes, em essência, os vírus culturais e institucionais que, desde há muitos séculos, determinavam o sentimento e o 31 pensamento alemães. Na Constituição de 1919, numa evidente concessão ao espírito da filosofia jurídica germânica, os direitos individuais eram normalmente desqualificados da sua natureza básica de direito político. Realmente, essa qualidade era negada na essência, quando se submetia este reconhecimento de direito fundamental do indivíduo às gradações impostas pelo discricionarismo do legislador, através do termo de fundo totalitário "nos limites da lei" aposto de modo indevido ao texto constitucional democrático. Embora os poderes do Estado estivessem organizados de acordo com a teoria e o modelo da divisão e da independência, estava presente na Constituição o elemento ditatorial que contaminava a pureza do sistema. Trata-se do artigo 48, várias vezes utilizado pelo Poder Executivo, mesmo antes da ascensão do nacional-socialismo. Tal dispositivo constitucional atribuía ao Presidente da República, bem como ao chanceler, poderes excepcionais de legislar por meio de decretos, que permitiam suspender o direito individual de livre reunião e associação, a liberdade de locomoção, de expressão do pensamento e à informação sem censura prévia, à inviolabilidade de domicílio e assim por diante. Apesar de a República de Weimar ter sido destruída, a constituição de Weimar jamais foi derrogada formalmente por Hitler. Por ironia, Hitler fundamentava a ‘legalidade’ de seu governo na menosprezada Constituição. Assim, milhares de decretos-lei não existiam outros no Terceiro Reich foram explicitamente baseados no decreto presidencial de emergência, de 28 de fevereiro de 1933, para a Proteção do Povo e do Estado, que Hindenburg, fundado no Artigo 48 da Carta Magna, havia assinado. Lembraremos que o idoso Presidente foi levado a assinar o decreto, um dia após o incêndio no Reichstag, quando Hitler lhe assegurou que havia o grave perigo de uma revolução comunista. O decreto, que suspendia todos os direitos civis, permaneceu em vigor durante a época do Terceiro Reich, possibilitando ao Führer governar por meio de uma série contínua de leis marciais. O Ato de Autorização também, que o Reichstag votara a 24 de março de 1933, e através do qual transmitira suas funções legislativas ao governo nazista, representou o segundo pilar da ‘constitucionalidade’ do poder de Hitler. A cada quatro anos, daí por diante, ele era devidamente prorrogado por mais um período de quatro anos, por um arremedo do Reichstag, pois jamais ocorreu ao ditador abolir essa instituição um dia democrática, mas somente fazê-la não-democrática. Ele reuniu-se apenas uma dúzia de vezes até a guerra, ‘decretou unicamente quatro leis’, nunca sustentou debates ou votações e nem ouviu quaisquer discursos, salvo os pronunciados por Hitler. (SHIRER, op. cit. p. 407-408) Um documento deve ser considerado como elemento estruturador da organização constitucional da Alemanha sob o nazismo: o programa do nacionalsocialismo. Este, legitimado pela lei de 1º de dezembro de 1933, declarava o partido depositário da idéia alemã de Estado e ligado indissoluvelmente a este. Toda a 32 ordem jurídica passou a emanar da pessoa de Hitler. Isto ocorreu a partir da aprovação de um plebiscito, levado a cabo após o falecimento do presidente Hindenburg, através do qual o chanceler foi elevado à categoria de chefe absoluto do Estado e chefe supremo do Partido Nacional-Socialista. Além da idéia de supremacia do Estado, não subordinado ao Parlamento (que passou a existir somente no papel), o programa do partido apresentava outros aspectos igualmente relevantes, como, por exemplo, a superioridade da raça germânica, a exclusividade da cidadania para aqueles de sangue alemão e a adoção de alguns dos slogans mais em voga do socialismo vulgar. Estes slogans destacavam a importância do trabalho e do sacrifício pelo bem comum. Dizia-se que o primeiro dever de todo cidadão era o trabalho, fosse este físico ou intelectual. Logicamente, ressaltava-se que as atividades particulares não poderiam sobrepor-se aos interesses da generalidade dos indivíduos. Não era tolerada, pelo menos nominalmente, a renda obtida sem trabalho ou esforço, ou a opressão dos empréstimos a juros. Reclamava-se a estatização dos trustes, a reforma agrária e a expropriação (sem indenização) do solo para os fins de interesse público. O ponto principal do programa nacional-socialista, entretanto, repousava no tema da afirmação da Alemanha como potência européia e mundial. Para tanto, pregava-se a necessidade de reconquista do poder militar e econômico. A precedência ideológica do proselitismo nazista cabia, entretanto, ao grande tema da afirmação da Alemanha e da reconquista do prestígio nacional e do poderio militar e econômico: ‘1) reclamamos a reunião de todos os alemães em uma Grande Alemanha, em virtude do direito dos povos de disporem de si mesmos. 2) reclamamos a igualdade de direitos para o povo alemão ao lado das outras nações e a abolição dos tratados de paz de Versalhes e Saint-Germain. 3) reclamamos país e territórios (colônias) para assegurar alimento ao nosso povo e a colonização pelo excedente da nossa população’. (MORAES, op. cit., p. 497-498) O militarismo era a pedra de toque do programa nazista. A proclamação do prestígio nacional, as aspirações de conquista, oriundas do velho sonho de formação de um império universal (Reich) e do direito à supremacia, coadunavam-se com a tradição alemã de entusiasmo pelas qualificações militares do prussianismo. Tais aspirações haviam sido frustradas durante a vigência da República de Weimar. Quando se examina esta aspiração ao expansionismo, colocada como razão maior do apoio alemão ao nazismo, não é possível deixar de interpretar este como um 33 regime forjado, preparado, direcionado para a guerra, sendo sua lógica política a imposição pela força das armas, sob o comando de um Líder predestinado. "Hitler está persuadido de que ‘a maior garantia, interna e externa, do nacional-socialismo, é que ele se apóia em todas as instituições alemãs e, antes de tudo, sobre o exército nacional-socialista' [...] Todos estão prontos para defender o Reich até o seu último alento. Todos se submetem à autoridade única" (MORAES, op. cit., p. 498-499). Esta doutrinação do nazismo, buscando transformar cada cidadão alemão (na Alemanha ou no exterior) em um soldado, pronto a lutar pelos interesses da "pátria-mãe" seria um dos pontos que incomodavam o governo brasileiro, pois o número significativo de colonos teutos no Brasil poderia significar uma ameaça séria à soberania nacional, se tal massa fosse galvanizada pela ideologia nazista. É esta tendência à guerra um dos elementos que distinguem o nazismo de outros totalitarismos europeus. A Itália, apesar de desejosa de expandir-se territorialmente, contentava-se com seus blefes e ameaças de guerra, sem investir pesadamente em armar um exército. O governo da União Soviética preferia permanecer confinado dentro de seus limites territoriais, tentando resolver seus graves problemas e fortalecer sua supremacia interna. Os dirigentes nazistas, por outro lado, viam na inevitabilidade da guerra a possibilidade de consecução de seus objetivos reivindicatórios. Recebiam o apoio da maior parte do povo, que se submetia alegremente à falta de liberdade individual, à dominação pela violência e à escravização do espírito, conquanto os sonhos de conquista fossem realizados. Mobilizar e organizar a nação para a guerra, colocá-la como uma ‘coluna em marcha’ independentemente do destino final, restaurar ‘o domínio do soldado no centro do pensamento nacional’, eram, nas palavras de Hitler e de Rosenberg, os objetivos maiores do nacional-socialismo como encarnação do Estado. As lições dos afamados internacionalistas Max Schuler e Erich Kaufmann de que ‘a guerra significa o Estado em seu mais positivo desenvolvimento’ e de que ‘é na guerra que o Estado manifesta sua verdadeira natureza’, não sendo o ideal social ‘uma comunidade de homens de vontade livre, mas a guerra vitoriosa’, tais lições encontravam agora expressão mais enfática nos ensinamentos de ciência militar do nazista Ewald Banse: ‘A guerra significa a mais elevada intensificação, não somente dos meios materiais, mas também de todas as energias espirituais de uma época; significa o mais extremado esforço dos poderes mentais do povo e a vontade do Estado no sentido da autoconservação e do poder. Espírito e ação conjugados, a guerra proporciona o terreno no qual a alma humana pode se manifestar em sua mais plena elevação, sob as mais ricas formas e surgindo de fontes mais profundas do que o faria mediante qualquer pesquisa científica ou artística, em nenhum outro campo podem os feitos de uma raça ou de um Estado tornarem-se efetivos tão integralmente quanto na guerra. A guerra é um banho de aço, criando novos impulsos, e um infalível ordálio de aptidões.’ (MORAES, op. cit., p. 499) 34 Uma outra característica essencial aos modelos totalitários, mas que aparece de forma muito mais marcante no nacional-socialismo alemão, é a manutenção da organização num estado de fluidez que permita a constante inserção de novas camadas e a definição de novos graus de militância. Num momento inicial, o movimento nazista se caracterizava pela existência dos membros e dos simpatizantes. Após a tomada do poder e a institucionalização do regime, o que se verificou na Alemanha foi a incorporação de novas formações dentro do movimento. Toda a história do partido nazista pode ser narrada em termos de novas formações dentro do movimento. A SA, as tropas de assalto (fundada em 1922), foi a primeira formação nazista supostamente mais militante que o próprio partido; em 1926, foi fundada a SS como a formação de elite da SA; três anos depois, a SS foi separada da SA e colocada sob o comando de Himmler; Himmler levou apenas mais alguns anos para repetir o mesmo jogo dentro da SS; um após outro e cada qual mais militante que o grupo anterior vieram à luz, primeiro, as Tropas de Choque, depois as unidades da Caveira, criadas para guardarem os campos de concentração e mais tarde reunidas para formar a SS-Armada (Waffen-SS), e finalmente o Serviço de Segurança (o ‘serviço de espionagem do Partido’, com a sua ramificação para executar a ‘política de população negativa’) e o Centro para Questões de Raça e Colonização (Rasse-und Siedlungswesen), cuja função era de ‘natureza positiva’ todos emanados da SS Geral, cujos membros, com a exceção da elite do Corpo do Führer, permaneciam em suas ocupações civis. Daí em diante, as relações entre essas novas formações e o membro do Corpo do Führer eram as mesmas que entre o membro da SA e o membro da SS, ou entre o membro do partido e o membro da SA, ou entre o membro da organização de vanguarda e o membro do partido. Agora, a SS Geral era encarregada não apenas de ‘salvaguardar a (...) corporificação da idéia nacional-socialista’, mas também de ‘proteger os membros de todos os escalões especiais da SS para que não se afastassem do próprio movimento. (ARENDT, 1989, p. 417-419) A vantagem da utilização desta forma de hierarquização flutuante era a possibilidade de adicionar, constantemente, novas formas de controle com vistas a "controlar os controladores". Isto é, se determinada camada começasse a demonstrar sinais de perda de radicalismo, a inserção de nova camada mais radical desloca o grupo mais antigo em direção à periferia do movimento. De fato, as formações de elite nazista eram organizações que provinham do âmago do partido. Por exemplo, a SA, inicialmente, atingiu a posição de "superpartido" quando o radicalismo do mesmo pareceu declinar e, posteriormente foi, por sua vez (e por motivos semelhantes), substituída pela SS. Na URSS, as diversas facções dentro do partido comunista viviam em luta entre si, alinhadas sob a orientação de um ou outro personagem mais carismático. Havia, por exemplo, os stalinistas, os bukharinistas e os trostskistas. Dentro dessas mesmas facções, outras surgiam, digladiando-se e buscando sobrepujar a liderança 35 inicial. Somente com a morte de Lênin, a derrota e exílio de Trotsky e o assassinato de Bukharin, foi que o stalinismo tornou-se supremo. Seu líder, Josef Stálin, passou a governar, daí por diante, utilizando, muito mais do que Hitler ou Mussolini, a arma do expurgo, como forma de impedir o surgimento de qualquer tipo de oposição. Hitler compreendera (assim como Stálin) que a maior garantia de permanência no poder para um ditador totalitário era impedir que determinada instituição adquirisse estabilidade e permanência dentro do Estado, de forma a criar um conjunto de interesses próprios e, conseqüentemente, passar a cobiçar o poder. Hitler e Stálin lidaram de forma diversa frente a esta situação potencial. O primeiro conjugou a alternância das camadas hierárquicas com a destruição prévia de ameaças de oposição (expurgos). O segundo ateve-se, basicamente, ao emprego do expurgo de tempos em tempos, contra quaisquer instituições que pudessem ameaçar, mesmo que potencialmente, seu poder absoluto (expurgos contra as Forças Armadas, a Polícia Secreta e facções internas do Partido, entre outros). Outro aspecto que diferenciava o nazismo dos outros regimes de força da época (embora situação semelhante ocorresse na União Soviética) era a supremacia da vontade do Führer, consubstanciada no princípio de liderança (Führerprinzip), e que abrangia todos os aspectos da hierarquia nacional-socialista. Tudo era feito em conformidade com a vontade do Líder. Toda hierarquia, por mais autoritária que seja o seu funcionamento, e toda escala de comando, por mais arbitrário e ditatorial que seja o conteúdo das ordens, tende a estabilizar-se e constituiria um obstáculo ao poder total do líder de um movimento totalitário. Na linguagem dos nazistas, é o ‘desejo do Führer’, dinâmico e sempre em movimento e não as suas ordens, expressão que poderia indicar uma autoridade fixa e circunscrita , que é a ‘lei suprema’ num Estado totalitário. O caráter totalitário do princípio de liderança advém unicamente da posição em que o movimento totalitário, graças à sua peculiar organização, coloca o líder, ou seja, da importância funcional do líder para o movimento. Comprova essa asserção o fato de que, tanto no caso de Hitler como no de Stálin, o verdadeiro princípio de liderança só se cristalizou lentamente, em paralelo com a gradual ‘totalitarização’ do movimento. (ARENDT, op. cit., p. 414) Estas são apenas algumas das diferenças existentes entre o totalitarismo alemão e o de outras nações européias, especialmente URSS e Itália. Entre as semelhanças destacam-se: cultura do país impregnada da filosofia do partido, economia capitalista sob controle do Estado (menos no caso da URSS), ensino escolar sob orientação do partido, criação de uma juventude hitlerista (comparável à 36 juventude comunista) e utilização dos meios de comunicação (cinema, rádio e imprensa) para divulgação da filosofia nazista. Como visto no início deste item, o nazismo e o fascismo inspiraram alguns governantes a implementar, em seus próprios países, governos ditatoriais, de força, adaptando as características nazistas e fascistas as peculiaridades de seus próprios povos e países. Assim é que, na Hungria, um regime autoritário, abertamente inspirado no fascismo, foi implantado (1919-1920) pelo almirante Horthy. Uma ditadura católico-militar imperava na Espanha desde 1923, sendo que, mais tarde (1936), o levante sedicioso do general Franco reinstaurou a ditadura, com a ajuda material alemã e italiana. Em Portugal, depois do golpe militar do general Carmona (1926), o professor Antônio Oliveira Salazar instaurou, em 1932, um governo autoritário e clerical, de clara inspiração fascista, promulgando, no ano seguinte, uma constituição de caráter nitidamente corporativo. Ainda em 1926, firmou-se de forma estável, na Polônia, uma ditadura militar iniciada pelo general Pilsudski, e funcionou um Partido nacional-radical tipicamente fascista. Ano a ano, surgiam novos governos autoritários: Iugoslávia (1929), Romênia (1930), Estônia e Letônia (1933 e 1934, respectivamente). Em 1933, o ultra-católico Dollfuss implantou, na Áustria, um governo pessoal e autoritário, caracterizado como um clérico-fascismo local, até ser assassinado pelos próprios nazistas no Putsch de Viena, em 1934. Posteriormente (1938), Hitler apoderar-se-ia da Áustria com a ajuda decisiva do nazista austríaco Seiss-Inquart, futuro governador-geral dos Países Baixos. Ao longo deste período, surgiriam, também, diversos partidos e agremiações de orientação fascista ou nazista na Europa e no Novo Mundo. Na França, despontaram movimentos como o das "Cruzes de Fogo", de La Roque, o movimento da Action Française de Maurras e os cagoulards, entre outros, que minaram o impulso de resistência nacional, numa ação de total colaboracionismo com o nazismo. Na Bélgica, ocupou uma posição nitidamente católico-fascista o grupo Christo rex, também conhecido como rexista, liderado por Leon Degrelle. Nas Américas, principalmente nos anos que precederam imediatamente a Guerra, aconteceu um verdadeiro brotar de partidos nazi-fascistas ou movimentos afins. No Canadá, bem como nos EUA, surgiram movimentos internos, principalmente sob o aspecto de quintas colunas. No México, houve o Partido 37 Nacional-Socialista Mexicano, que envergava as "camisas douradas". Na Argentina, surgiu o Partido Nacional-Socialista Argentino, no Peru os civilistas (camisas negras), no Chile, a Falange Conservadora (inspiração cristã), não faltando, também, um Partido Nacional-Socialista. Quanto ao Brasil, a influência fascista manifestou-se de forma mais clara através da Ação Integralista Brasileira, liderada por Plínio Salgado, a qual adotava camisas verdes e braçadeiras portando a letra grega sigma. A própria ditadura Vargas, que eliminou os integralistas, também demonstrava simpatia pela força ditatorial dos governos nazista e fascista. Embora não apelasse, como Hitler e Stálin, para os grandes expurgos como forma de acabar com a oposição, Vargas não apresentaria pudor algum em empregar, após a instauração do Estado Novo, não só a violência, a prisão, a intimidação, mas principalmente a censura e a propaganda maciça como forma de impedir qualquer tipo de contestação contra seu regime político. Percebe-se, assim, que o fim da Primeira Guerra mundial, o Tratado de Versalhes, a crise do capitalismo cujo sintoma mais visível foi a Quebra da Bolsa de Nova York, em 1929 , e o aumento da desconfiança em relação às instituições européias do entre-guerras especialmente o sistema econômico liberal, contribuíram, decisivamente, para o surgimento de um vácuo político, de uma falta de lideranças significativas de orientação democrática, o que foi fundamental na preparação de um terreno fértil ao surgimento de ideologias que advogassem a necessidade de Estados fortes, ditatoriais, autoritários. O acima descrito período de caos e incerteza vivido pela Europa permitiu que as aspirações militaristas e expansionistas enraizadas no cerne da alma do povo alemão e que haviam sido sufocadas pela derrota na Primeira Guerra Mundial, as humilhações impostas pelo Tratado de Versalhes e a criação da República de Weimar recebessem um novo alento. O partido nazista, ao elaborar sua doutrina e ideologia, reuniu todos os sonhos de grandeza da nação alemã e apresentou a esta um programa que prometia levar o país novamente à condição de potência mundial. Para tanto, a ênfase no Herrenvolk e no Lebensraum tornou-se o principal argumento empregado pela ideologia nazista para justificar a necessidade da Alemanha retomar o caminho do militarismo, rumo à reconquista, por todos os 38 meios possíveis, de seu precioso espaço vital. Não é de surpreender, portanto, os alemães reclamassem "país e territórios (colônias) para assegurar alimento ao nosso povo e a colonização pelo excedente da nossa população" (MORAES, op. cit., p. 498). Mas quais as origens históricas dessa ideologia, desta doutrina que seduziu milhões de alemães, levando-os a seguir Hitler e seus sequazes? O que esta doutrinação possuía, que falava tão fundo à alma alemã? Em que fontes os nazistas foram buscar inspiração e validação para seus sonhos desvairados de conquista? Estas (e outras) questões serão alvo de exame no capítulo seguinte. 3 A CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO NAZISTA NA ALEMANHA 3.1 ORIGENS HISTÓRICAS DO PENSAMENTO NAZISTA O regime totalitário nazista, ao contrário do fascismo italiano ou do comunismo soviético, conseguiu amoldar-se, com perfeição, ao espírito natural de seu povo. A cultura e a história do povo alemão serviam, admiravelmente, para justificar a ênfase nazista na conquista de um espaço vital e no desenvolvimento do militarismo. Mussolini, por exemplo, tentou, inutilmente, recriar o mito do Império Romano, uma vez que o povo italiano nunca aderiu completamente a uma idéia transcendental de nação. O nazismo, por sua vez, conseguiu a façanha de se tornar quase que um mesmo "organismo" com o povo alemão, pulsando sob um mesmo impulso, uma visão, uma aspiração comum a todos. Uma das razões para a ideologia do nacional-socialismo apresentar um paralelismo com a visão organicista da sociedade, é o fato dos nazistas enfatizarem o todo, ou seja, a coesão do grupo, em detrimento do indivíduo. Da mesma forma como o organicismo privilegia o todo, o nazi-fascismo também o fazia, sendo este todo claramente representado pela idéia de nação. A unidade nacional foi o grande lema dos nazi-fascistas e, não por acaso, continua marcando presença nos movimentos políticos neonazistas contemporâneos. A defesa da nação e de sua identidade exige sacrifícios daqueles que a compõem, ou seja, os indivíduos. Para alcançar sucesso nessa luta, os indivíduos devem ficar em segundo plano, pois, em nome da coesão nacional, a individualidade de cada membro do grupo é massacrada, não podendo ser toleradas divisões e diversidades de pensamento ou ação no interior do grupo. Por isso, a ideologia nazi-fascista serviu muitas vezes como um inibidor dos conflitos de classe dentro da nação alemã. A ideologia nazista representou, na verdade, a exacerbação máxima de uma ideologia alemã cuja elaboração vinha ocorrendo desde há oito séculos, a partir de Frederico II de Hohenstaufen, antigo imperador germânico, que governou de 1212 a 1250, neto de Frederico I, cognominado o Barba-Roxa, e que faz parte da herança mítico-histórica do povo alemão. Para MORAES (1996) o fator decisivo para a fundamentação do Moderno Estado totalitário foi o governo de Frederico II, o qual, 40 além de imperador germânico, era também rei da Sicília e mesmo de Jerusalém, cidade retomada por ele ao domínio muçulmano. [...] fundindo a concretude do poder do monarca oriental islâmico à noção do Estado encarnado na pessoa do soberano, trazida do Império Romano-Bizantino, instaurou Frederico II, na Sicília, um governo cuja característica era a concentração administrativa do poder central, com o desmerecimento dos privilégios dos senhores feudais e a subordinação da Igreja ao rei. Tal regime, tendo em vista as suas origens, foi qualificado por João Ameal como um 'misto do ideal sugerido pelos romanistas da sua privança (entre os quais sobressai Pedro della Vigna, antigo estudante de Bolonha) e do despotismo asiático segundo os figurinos árabes de Damasco, do Cairo ou de Córdova'. A simbologia histórica desse imperador é tanto mais forte, quando se sabe que, além de herói guerreiro, ele se notabilizou pelas contribuições culturais introduzidas no Ocidente, como as traduções de Aristóteles e de Averróes, e dos algarismos arábicos. Ademais e a alusão é válida ainda como elemento memorial do seu regime de governo foi ele um bárbaro torturador dos adversários, contando-se até que, havendo seu conselheiro e provável redator da Líber Augustalis ( o código de organização constitucional do Estado), o referido Pedro delle Vigna, caído em seu desagrado, mandou que lhe vazassem os olhos. (MORAES, op. cit, p. 525526) Na verdade, a formação do Estado alemão apresentou, como característica marcante, um conflito entre duas visões contrárias. O anseio geral em alcançar a unidade política e unificar o país chocava-se com as características particulares de cada pequeno Estado que compunha o mesmo. O pensamento nacionalista alemão marcado fortemente pela dicotomia unidade X segmentação encontra-se irremediavelmente ligado ao processo de unificação do Estado Nacional alemão do século XIX. Este pensamento acabava, em tempos de grande crise, ressurgindo e ganhando ímpeto. Foi assim com a invasão das tropas de Napoleão, em 1803, com a guerra de liberação (1813), com a revolução de 1848, com a guerra contra a França (1870) e, lógico, com os eventos que levaram à Primeira Grande Guerra. As fontes ideológicas desse nacionalismo surgem, freqüentemente, nas obras de autores do romantismo alemão, cujo movimento literário esteve sempre marcado pela busca de inspiração nos valores da comunidade alemã da Idade Média. Estes autores ajudaram no surgimento de um nacionalismo cultural que glorificava a terra e o passado glorioso do Sacro Império Germânico, valorizando sobremaneira a língua e os costumes alemães. Alguns desses autores românticos foram os primeiros nacionalistas a idealizar uma "nação alemã". É o caso do filósofo J. G. Herder (1744-1803), o qual, apesar de ter falecido muito antes da guerra de Liberação, influenciou, com sua obra, muitos intelectuais que dela participariam. 41 Herder foi responsável por um conceito que mais tarde seria aproveitado por outros nacionalistas: desenvolveu a idéia da volksgeist (alma ou espírito do povo), representando a negação do universal e a valorização da peculiaridade de um povo. Mas Herder é antes de tudo um romântico. Para ele, os homens são membros de comunidades nacionais e não de Estados; o folclore, a linguagem popular, os cantos populares, são as grandes manifestações do espírito criativo do homem. Preocupou-se com conceitos de pátria e nação, mas não com Estados, que para ele são criações artificiais, em quanto que a nacionalidade é uma manifestação divina. As implicações políticas da nacionalidade ficam em segundo plano. O que está implícito na obra de Herder é seu respeito à liberdade nacional e às linguagens nacionais; os alemães devem ser um povo livre sobre um solo que lhes pertence. (SEYFERTH, 1981, p. 19-20) Nota-se, portanto, que Herder bem como a maioria dos outros autores românticos não se preocupava com a possibilidade de uma unificação política alemã. O conceito de nacionalidade alemã deveria surgir somente mais tarde, provavelmente a partir da dominação de Napoleão, a qual exacerbou a aversão alemã aos franceses e intensificou o processo de tomada de consciência nacional, adquirindo, a partir daí, também um caráter político. De qualquer forma, a retomada ideológica do modelo medieval glorificava uma época em que a Alemã se encontraria "unificada" sob a dinastia Hohenstaufen e o manto protetor do Sacro Império. Neste período, a união dos alemães era considerada, pelo povo alemão, em termos de nação alemã e não de um Estado Nacional alemão. A ideologia nacional alemã foi influenciada, também, por outros fatos bem mais palpáveis, como o processo de unificação do citado Estado alemão, cujo nome mais expressivo foi Bismarck e o processo de desenvolvimento industrial, que sofreu um grande incremento após a revolução de 1848. Este desenvolvimento tornou-se fonte de orgulho nacional e mostrou a capacidade de trabalho alemão. Assim, uma vez que o desenvolvimento do nacionalismo alemão não pode ser divorciado nem do processo de unificação, nem da revolução industrial daquele país, na qual o Estado participou de forma decisiva, é possível entender porque, muitos anos no futuro, os nazistas apresentavam a questão do desenvolvimento econômico do país como um dos pontos fundamentais do nacionalismo exacerbado que pregavam. Não se pode afirmar que não havia consciência nacional alemã antes da invasão napoleônica. O que ocorria é que a mesma encontrava-se misturada com elementos de visão cosmopolita e características culturais e particularistas de cada pequeno Estado. É o caso, por exemplo, do já citado movimento romântico, o qual, 42 não se apresentava como uma doutrina de unificação política, mas não deixava de antever a possibilidade de uma nação alemã. De qualquer forma, o nacionalismo que se manifestaria em 1813 para enfrentar Napoleão sofreu grande influência do trabalho de propaganda levado a cabo por um pequeno grupo de intelectuais e estadistas ligados ao Estado prussiano. Fichte e Arndt, os principais intelectuais desse novo nacionalismo nem mesmo eram prussianos, mas suas palavras encontraram eco nos corações da população. Fichte, fundador da filosofia romântica, era um cosmopolita. O fracasso de Jena e a invasão francesa o transformaram num convicto nacionalista. São de 1807/1808 os seus famosos "Discursos à Nação Alemã". Neles, dois elementos característicos do nacionalismo alemão aparecem delineados pela primeira vez de modo concreto: só os alemães falam um língua original ( o que lhes daria uma superioridade cultural), e a noção do Lebensraum (espaço vital), que mais tarde seria o núcleo da ideologia nazista. Ainda de Fichte é a idéia de uma conexão entre a língua e a alma do povo. Quanto à nação, ela é, para Fichte, o elo de ligação entre os indivíduos e o Estado, 'a totalidade dos homens na sociedade, vivendo juntos e continuamente produzindo...' A linguagem se tornou a característica fundamental do nacionalismo porque é o veículo do entendimento. Fichte considera como essencial que a nação não sofra 'intrusão' e 'corrupção' por estranhos; ao lado disso, não reivindica, como se poderia esperar, um Estado Nacional alemão. Prefere e aceita o sistema estatal particularista existente como base para o patriotismo alemão. Nos Discursos, afirma que é da Prússia que deve partir o movimento libertador da Alemanha. Mas de modo algum se restringe à idéia nacional: se a Prússia era a libertadora da Alemanha, esta devia libertar o mundo, exercendo, principalmente, uma liderança cultural. (KRIEGER, apud SEYFERTH, 1981, p. 22) Esta idéia, a de que o nacionalismo não está, necessariamente, ligado a uma concepção de Estado Nacional, é que difere a doutrina de Fichte do pensamento nacionalista do final do século XIX e, principalmente, daquele propugnado pelos nazistas na década de 1920. Na década de 1850, a Prússia emergiu como potência industrial, renovando seu sistema de transporte e fortalecendo o exército. Antes da coroação de Guilherme I (1862) e da nomeação de Bismarck para a chancelaria (1862) falava-se muito sobre uma nação alemã que, na verdade, não existia como realidade política. Bismarck passou a defender que a unidade deveria ser obtida pelo poder, ou seja, pela força, com a Prússia impondo sua solução nacionalista à Alemanha. Esta "solução" foi exposta claramente quando Bismarck defendeu, perante o Parlamento, a necessidade de fortalecer o exército. 43 A Alemanha não olha para o liberalismo da Prússia, mas para seu poder. Baviera, Wurtemberg e Baden podem favorecer o liberalismo, mas nenhuma pessoa pode, por causa desta razão, transferir para eles o papel da Prússia. A Prússia precisa reunir suas forças e mantê-las de prontidão para o momento oportuno, que já passou por várias vezes. Desde o Tratado de Viena que as fronteiras da Prússia têm sido favoráveis a uma vida estatal saudável. As grandes questões do dia não são determinadas pelas falas parlamentares e os votos da maioria este foi o grande erro de 1848 e 1849 mas por ferro e sangue. (SNYDER, apud SEYFERTH, 1981, p. 30) A Machtpolitik (Política de Poder) de Bismarck encontrou sua inspiração básica na teoria do Estado Nacional de Hegel, apesar da filosofia deste ser incompatível, em certa medida, com os rumos tomados pelo nacionalismo alemão. Em suas teorias, Hegel supervalorizou a idéia de Estado, o qual incorpora a razão, a moralidade e é a fonte de toda lei e ética. O Estado seria, assim, uma espécie de superpersonalidade cuja principal essência é o poder. Hegel era de opinião que a unificação da Alemanha só podia ser alcançada a partir do poder exercido quer pela Prússia, quer pela Áustria. Ele não podia ser considerado um nacionalista ou patriota, pois admirava Napoleão e costumava ironizar o patriotismo da Alemanha do Norte e a própria guerra de Libertação. Isto, contudo, não impediu que suas idéias fossem popularizadas por um grupo de historiadores protestantes, entre os quais destacou-se Heinrich von Treitsche. Quanto à Realpolitik (Política Real), esta reforça a ênfase numa sociedade autoritária cujo poder está no Estado e não no povo. Paradoxalmente, a colocação teórica da Realpolitik veio da ala direita dos liberais, em particular de August Ludwig von Rochau: 'A discussão da questão sobre o que deve governar, se a justiça (Recht), a sabedoria, a virtude, se um indivíduo, muitos ou poucos esta questão pertence ao domínio da especulação filosófica; a política prática deve se ater em primeiro lugar ao simples fato de que é o poder sozinho que pode governar. Governar significa exercer o poder e só aquele que possui poder pode exercer o poder. Esta conexão direta de poder e governo forma a verdade fundamental de toda a política e a chave de toda a História.' Realpolitik, então, significa governar pelo poder e pela força, e Rochau vai mais longe quando diz que constituições simplesmente representam as relações das forças sociais dentro do Estado. (SEYFERTH, 1981, p. 31) O nacionalismo de Bismarck, contudo, era restrito e prático, resumindo-se à visão de uma Alemanha politicamente unificada sob o comando da Prússia, mas com a exclusão da Áustria. De modo geral, ele não compartilhava das idéias de Lebensraum nem apoiava o nacionalismo racista, embora tivesse, indiretamente, contribuído para o desenvolvimento do mesmo. A Machtpolitik de Bismarck levou, indubitavelmente, o nacionalismo alemão a tomar uma feição não liberal e paternalista. A sociedade alemã passou a ter um caráter autoritário, imposto pelos 44 ideais militaristas prussianos, conservador e culturalmente calcado nos valores do passado. O sucesso da política de poder e uma revolução industrial realizada a curto prazo, estimularam um nacionalismo extremamente agressivo, fundamentado em concepções de supremacia cultural, racial, científica e econômica, que culminou com a intransigência da maior entidade de orientação pangermanista da época, a Alldeutsche Verbanda (Liga ou União Pangermânica), e que encontrou seu ideólogos mais radicais entre os historiadores da escola prussiana (Sybel, Dahlmann e Treitschke). Treitschke considerava a guerra como uma medicina drástica para a raça humana, devendo ser exaltada porque com ela o indivíduo desaparece ante a grande concepção do Estado. Ele, sem dúvida, levantou questões que constituiriam, no final do século XIX, a bandeira do pangermanismo: além da glorificação da guerra, deve ser destacado seu anti-semitismo, sua animosidade fanática contra os ingleses, a superioridade e pureza da língua teutônica, o culto do Estado e ainda o fato de considerar o exército como a incorporação das características e virtudes nacionais. O ano de 1890 foi muito importante para o nacionalismo alemão, pois Bismarck, que nunca esteve de acordo com as idéias pangermânicas, foi demitido por Guilherme II e teve início o movimento pangermânico organizado. O nacionalismo alemão da virada do século XIX para o XX apresentava quatro características principais: uma política expansionista, adotada por Guilherme II e insuflada pela Liga Pangermânica; um caráter racista, com base nos trabalhos de Gobineau, Chamberlain, Dühring e Wagner, entre outros, o que ocasionou o recrudescimento do anti-semitismo e a elevação do mito ariano à categoria de doutrina nacional; a propaganda em torno de uma marinha forte que permitisse uma concorrência ao poderio naval britânico; e o ódio dirigido contra a Inglaterra, principal empecilho ao expansionismo alemão. Acima desse nacionalismo, e muito mais radical, pairava a Liga Pangermânica, cuja atuação no cenário político alemão e europeu será vista a seguir. 45 3.1.1 A Liga Pangermânica e o Espaço Vital Alemão A Alldeutsche Verband cuja tradução mais correta seria "união de todos os alemães", mas que era mais conhecida como Liga Pangermânica foi oficialmente fundada, em 1890, por Alfred Hugenberg, devido ao recuo de Guilherme II na questão do Zanzibar, após a demissão de Bismarck. Entre seus membros mais destacados figuraram Ernst Haase e Heinrich Class e, na Áustria, von Schönerer, que buscaram apoio para suas teorias nos escritos de Arndt, Fichte, Treitschke, Wagner e Chamberlain. A simples leitura dos primeiros parágrafos dos estatutos da Liga já é suficiente para perceber qual era o principal objetivo da mesma. § 1. A Liga Pangermânica pretende a animação do caráter nacional alemão em todo o mundo, a conservação da índole e dos costumes alemães na Europa e além-mar, e a união total do Deutschtum... § 2. Quando os meios adequados para alcançar estes objetivos forem considerados pela Liga Pangermânica sem prejuízo do parágrafo 1, os grupos preservarão sua autonomia: 1. animação da consciência nacionalista na pátria e campanha contra todos os desenvolvimentos nacionais de direção contrária; 2. solução das questões das constituições, educação e escola no espírito do nacionalismo alemão; 3. cuidado e proteção dos esforços nacionais alemães em todos os países onde existem afiliados do nosso povo, e lutar pela manutenção da sua particularidade (Eignart), e a concentração de todos os alemães do mundo para este objetivo; 4. exigência de uma energia política de interesses alemães na Europa e além-mar, especialmente da continuação do movimento colonial alemão com resultados práticos. § 3. Cada alemão íntegro pode ser membro da Liga Pangermânica, sem levar em conta sua cidadania (staatsangehörigkeit)... (SEYFERTH, 1981, p. 35-36) A Liga, portanto, não só advogava a necessidade da existência de uma Grossdeutschland (com a inclusão da Áustria), mas também de uma entidade que congregasse todos os alemães do mundo, não importando o país em que vivessem. Essa "comunidade nacional" seria possível porque a nacionalidade, para o alemão, seria determinada por direito do sangue e não pelo fato de ter nascido na Alemanha. Por esta razão, o cidadão pode ser vinculado a um Estado, mas não necessariamente, o nacional. Assim, todos os alemães ou descendentes destes, espalhados ao redor do mundo, poderiam formar uma unidade nacional sem se constituírem, necessariamente, em traidores dos Estados dos quais eram cidadãos. Dessa forma, poderiam trabalhar para tornar a Alemanha uma forte potência mundial, abrindo mercados para a indústria e comércio alemães ou divulgando a cultura e idioma ancestral. 46 A idéia do Lebensraum, de Fichte, e a do Drang nach Osten (impulso para o Leste), a qual defendia a necessidade da Alemanha obter um território que incluiria toda a Europa Central, foram empunhadas pelos pangermanistas como bandeira. Setores mais radicais da Liga defendiam a necessidade da Alemanha anexar toda a Escandinávia, bem como Holanda e Bélgica, como forma de criar uma grande comunidade nórdica. Uma implacável política expansionista, bem como um nacionalismo ferrenho, era a marca da doutrina da Liga Pangermânica, que reclamava um imenso espaço vital, e uma poderosa marinha mercante e de guerra. Embora Guilherme II tivesse um programa de governo que coincidia, em muitos pontos, com os anseios da Liga, esta criticava a falta de firmeza do Imperador, que preferia a paz e a quietude, enquanto os Estados vizinhos acumulavam esferas de influência. Segundo um dos líderes da Liga, Heinrich Class, "a Alemanha precisa se expandir e sua situação interna é desesperadora por causa dos social-democratas, da influência desmoralizadora do capitalismo e dos judeus, e da decadência das classes médias". Para Class, portanto, o melhor meio de resolver tais problemas era a guerra, que levaria ao triunfo do nacionalismo alemão se for vencida e, caso contrário, seria apenas mais um infortúnio. Ele defendia, ainda a supressão das "atividades revolucionárias (isto é, dos socialistas, comunistas e social-democratas), o tratamento dos judeus como estrangeiros, a escravização das minorias nacionais, a restrição de migrações internas e o crescimento máximo da marinha e do exército" (HERTS apud SEYFERTH, 1981, p. 37). A Liga Pangermânica, ao reviver o sonho do expansionismo militar, precisava criar um inimigo comum, que galvanizasse o ódio da população. Em substituição à França, empregou-se a Inglaterra, apontada como a culpada pelo insucesso do expansionismo alemão. Ao mesmo tempo, recrudesce o antisemitismo, apoiado pelo conceito de "nacionalismo biológico", difundido pelo Conde de Gobineau e Chamberlain. Com estes autores, o mito da superioridade ariana (ou nórdica) ganha status de "fato científico", passando a ser a principal bandeira de sociedade como a Liga Pangermânica. O anti-semitismo já existia antes do nacionalismo alemão, mas servia muito bem aos propósitos das teorias antiliberais e racistas do II Reich e mais ainda na justificativa do genocídio dos judeus, levado a cabo pelo III Reich. Treitschke popularizou, em 1879, a fórmula 'os judeus são nossa 47 desgraça' e Richard Wagner lamentava que a Alemanha de Bismarck fosse demasiadamente liberal e semitizada. Nessa mesma linha de pensamento, despertava-se o antigo ranço anti-semita que os diversos aspectos do cristianismo, católico, ortodoxo ou reformado, haviam sempre arraigado contra o povo 'deicida' entre as populações que dominavam. E, para isso, evocava-se, mediante verdadeiras predicações, a criação de uma religião 'tipicamente alemã', e livre de qualquer elemento judaico, ou seja, implicitamente judaico-cristã. Como poderemos constatar mais adiante, o hitlerismo não inventou absolutamente nada. (AMBELAIN, op. cit. p. 42-43) Grande parte do povo alemão sentia-se atraída pelas idéias de superioridade da raça ariana. Esta visão racista foi difundida por muitos e variados arautos, embora o maior deles tenha sido o inglês naturalizado alemão Houston Stewart Chamberlain, discípulo de Gobineau, o qual, por sua vez, pode ser considerado o "pai" do arianismo. Houston Stewart Chamberlain (1855-1927) era um escritor inglês germanófilo que publicou vários livros difundindo, principalmente, as idéias antisemíticas do compositor e escritor Richard Wagner. Ele encontrou-se com este pela primeira vez em 1882, quando decidiu mudar-se para a Alemanha e viver como um alemão. Morou em Dresden de 1885 a 1889 e em Vienna de 1889 a 1908. Escreveu um livro que lhe trouxe grande proeminência The Foundations of the 19th Century (1899-1901). Nele sintetizava as idéias de Wagner e do filósofo alemão Nietzsche com respeito ao nacionalismo e racismo. Contesta a idéia de que uma raça nobre tivesse que ser impelida a degenerar-se pelas raças inferiores, como Wagner havia expressado em suas obras. Contrapunha a crença de Nietzsche de que a raça do super-homem podia ser criada, além de pedir a eliminação da "infecção judaica". A obra causou grande impacto entre os alemães nacionalistas e Hitler tomou-a como seu livro de cabeceira, fato que ajudou Chamberlain a se tornar uma celebridade. Hitler encontrou-se com ele várias vezes no ano de 1923. Chamberlain se casou com uma filha de Richard Wagner, Eva, em 1908, e viveu na mesma cidade em que Wagner havia vivido seus últimos anos, Bayreuth. Chamberlain faleceu nesta cidade, poucos dias depois de ter recebido a visita de Hitler e Goebbels, em 1927. Gobineau (1816-1882), nascido em Ville-d'Avray, França, e falecido em Turim, Itália, era diplomata francês, escritor e filósofo. Sua teoria do determinismo racial 48 exerceu grande influência no desenvolvimento de políticas racistas na Europa do final do século XIX. Vivendo em Paris, a partir de 1835, tornou-se funcionário público graças à sua cultura e ao posto de secretário do escritor e estadista francês Alexis de Tocqueville, quando este foi ministro em 1849. Como diplomata, Gobineau serviu em Berna, Hanover, Frankfurt, Teerã, Rio de Janeiro, e Estocolmo. Gobineau foi um apreciado autor de histórias, e de livros sobre História e de crítica literária. Porém, a obra que o tornou mundialmente conhecido foi o seu Essai sur l'inégalité des races humaines, em quatro volumes, publicados de 1853 a 1855. Gobineau comparou as características do cérebro humano nas diferentes etnias e presumiu que havia uma relação entre o volume deste e o grau de civilização apresentado pela etnia ao qual o indivíduo pertencia. Segundo ele, a mistura de raças era inevitável, o que levaria a raça humana a graus sempre maiores de degenerescência, tanto física quanto intelectual. É atribuída a Gobineau a frase "Eu não acredito que viemos dos macacos, mas creio que estamos indo nessa direção". Ele postulava a superioridade da raça branca sobre as demais e, nesta, distinguia os povos Arianos (alemães ou germânicos) como representativos do povo mais civilizado. Sustentou a teoria de que o destino das civilizações é determinado pela composição racial, que os brancos e em particular as sociedades arianas floresciam desde que ficassem livres dos negros e amarelos, e que, quanto mais o caráter racial de uma civilização se dilui através da miscigenação, mais provável se torna que ela perca a vitalidade e a criatividade, mergulhando na corrupção e imoralidade. Tais teorias não eram totalmente novas, inserindo-se em uma discussão que tivera origem no humanismo renascentista e nas observações de cientistas à época dos grandes descobrimentos marítimos. Segundo Gobineau, somente a raça branca ou "Ariana", criadora da civilização, possuía as virtudes mais elevadas do homem: honra, amor à liberdade e força de caráter, entre outras; qualidades estas que poderiam ser perpetuadas apenas se a raça permanecesse pura. Em sua opinião, os judeus e os povos mediterrâneos haviam degenerado devido à miscigenação ocorrida ao longo da história. Somente os alemães haviam preservado a pureza ariana, mas a evolução do mundo moderno os condenava também aos cruzamentos inter-raciais e à degenerescência. 49 Segundo ele, o povo ariano teria habitado um ponto da Ásia, basicamente o Cáucaso e a região montanhosa da Pérsia central. As evidências de sua existência seriam as raízes fonéticas das línguas faladas nessas regiões, remanescentes do que supostamente teria sido a língua Indo-Européia. Foi encontrada também uma inscrição datada do século V antes de Cristo do rei persa Dario (522-486 a.C.), onde este declarava ser rei dos persas e "da raça ariana". A palavra seria originalmente "Ayia", significando "livre", "nobre", "firme" e dela derivaria a palavra Irã, nome atual do país que foi a antiga Pérsia. Heródoto referiu-se aos povos do Irã como arianos. A partir dessa região original, o platô iraniano, os arianos teriam conquistado o norte da Índia e algumas regiões da Europa. As teorias de Gobineau foram em geral bem recebidas, e se tornaram de certo modo populares nos países europeus. Os povos que ele discriminara pouco reagiram, com exceção de um enérgico protesto vindo do Haiti, país de população quase totalmente formada por negros, e que sentiu-se humilhado com a nova filosofia racista da superioridade racial. Antenor Firmin, um afro-haitiano, publicou em Paris, em 1885 três anos após a morte de Gobineau , um monumental ensaio em francês, de 650 páginas, cujo título é uma paródia ao ensaio de Gobineau: L'Egalite des Races Humaines ("A igualdade das raças humanas"). Joseph-Antenor Firmin foi jornalista, escritor, advogado e ministro das relações exteriores do presidente haitiano Hyppolite. Seu livro salienta as conquistas da cultura negra desde o Egito antigo e os países do vale do Nilo, Sudão e Etiópia, até a primeira "República Negra" do Haiti, como evidência do potencial dos povos africanos. Porém, enquanto o livro racista de Gobineau foi traduzido em inúmeras línguas e viria a influir na formulação da ideologia nazista, o de Firmin ficou na obscuridade, apesar de sua inegável importância como obra de antropologia filosófica. (COBRA, 2001, p. 2) Gobineau morou como diplomata no Brasil, em 1876, enviado por Napoleão III, permanecendo pouco mais de um ano. Consta que Dom Pedro II teve particular amizade com o diplomata filósofo. Na volumosa correspondência trocada entre ambos Gobineau nunca deixou de referir-se a sua vinda ao Brasil como uma péssima experiência. A derrota na Primeira Guerra Mundial foi também uma derrota do nacionalismo alemão, em sua busca de unidade. A Liga Pangermanista desapareceu, mas suas idéias continuaram a ser disseminadas através do Partido Nacionalista, de Hugenberg, e mesmo dos monarquistas, que queriam a volta de Guilherme II. O descontentamento com as dificuldades impostas pelas penas pesadas à Alemanha pelos vencedores serviu, contudo, para manter firme e forte o desejo da população alemã de readquirir o antigo esplendor do II Reich. Hitler e 50 seus seguidores se encarregariam de levar adiante os sonhos acalentados pela doutrina do pangermanismo. No capítulo a seguir, será examinada a questão da emigração alemã para o Brasil desde o final do período imperial brasileiro até o início da década de 1910. O objetivo da investigação é verificar como se deu tal emigração, suas motivações, as dificuldades encontradas pelos emigrantes de origem teuta para integrar-se ao modo de vida brasileiro, e como conseguiram manter as tradições, língua e costumes de suas pátrias de origem, aspectos estes que facilitariam a divulgação, entre as unidades coloniais teutas, das doutrinas pangermânicas (principalmente) e nazista. 4 PANGERMANISMO E NAZISMO NO SUL DO BRASIL (1930-1939) 4.1 CAUSAS DO MOVIMENTO EMIGRATÓRIO ALEMÃO PARA O BRASIL Quando a Alemanha livrou-se do domínio francês, entre 1813 e1815, surgiu, durante o Congresso de Viena, a Confederação Alemã. Esta era composta por um grande número de pequenos Estados que formavam um verdadeiro "balaio de gatos", o que demonstrava o caos político representado pelo que seria mais tarde a Alemanha unificada. Este caos era administrado pelo menos tentava administrar pelo Bundestag, que elaborava as leis para reger questões comuns pertinentes a todos os Estados. O fim da dominação francesa na Alemanha foi marcado pela guerra de libertação, entre 1813 e 1815, na qual a Prússia se aliou à Rússia contra a França. A conseqüência mais importante desta guerra para a Alemanha foi o estabelecimento da Confederação Alemã durante o Congresso de Viena, sob hegemonia da Áustria. A Confederação incluía, além da Áustria, os Reinados da Prússia, Baviera, saxônia, Württemberg e Hannover; os GrãoDucados de Baden, Hesse-Darmstadt, Mecklenburg-Schwerin-Strelitz, Saxe-Weimar e Oldenburg; o Eleitorado de Hesse-Kassel; os ducados de Brunswick, Nassau, Saxe-CoburgGotha, Meinigen e Hildburghausen, Anhalt-Dessau, Bernburg e Göthen; Dinamarca (porque o rei da Dinamarca era também o Duque de Holstein); os Países Baixos (cujo rei era GrãoDuque de Luxemburgo); as quatro cidades livres de Lübeck, Bremen, Hamburg e Frankfurt; e ainda um grande número de pequenos principados (Cf. Snyder, 1957, p. 29). O número de pequenos Estados incluídos na Confederação deixa perceber muito bem o caos político que era a Alemanha antes da unificação. O corpo legislativo da Confederação Alemã o Bundestag teve sua sede estabelecida em Frankfurt e possuía poderes para decidir questões comuns a todos os Estados. Foi um primeiro passo para a unificação alemã e marca o início da chamada 'Era de Metternich', assinalada por inúmeros distúrbios internos em toda a Alemanha que culminaram com a revolução de 1848. (SEYFERTH, 1974, P. 18) A economia desses pequenos Estados baseava-se na agricultura. Na verdade, três quartos da população alemã habitava aldeias ou pequenas cidades com vias de comunicação precaríssimas segundo SEYFERTH (1974). Revela SNYDER (1957), citado por SEYFERTH (1974, p. 19), que existiam na Alemanha três classes distintas: a nobreza, a classe média educada e o povo. O "povo", por sua vez, englobava todos os que a nobreza considerava seus inferiores, ou seja, camponeses, artesãos, lojistas, servos e o proletariado, sendo que até o comércio e a indústria ainda eram reguladas de acordo com velhas leis medievais em desuso na maior parte da Europa. O camponês encontrava-se irremediavelmente ligado à terra 52 e suas condições de vida eram extremamente difíceis, não se modificando sensivelmente ao longo do século XIX. A vida cotidiana era dura e frugal em quase toda parte. O camponês vivia dos produtos de sua terra, muito raramente comia carne, alimentava-se de pão escuro, de queijo grosseiro, de papas de cevada ou de aveia, de ervilhas e de feijões secos e de algumas raízes [sic]: cenouras, rábanos, nabos, rabanetes pretos. ...a introdução da batata desde 1770... atenuou muito os riscos da fome. O camponês produzia tudo o que consumia, não só a alimentação, mas os têxteis: lã, Cânhamo, e linho, que as mulheres fiavam e teciam. (BIANQUIS, 1956, p. 66) Os servos haviam sido "emancipados" em 1798, mas como a iniciativa desta "emancipação" ficou a cargo dos Junkers, o sistema semifeudal permaneceu. O termo Junker deriva, segundo SEYFERTH (1974, p. 20), da palavra Junc-herre (Jovem Senhor) e era aplicado aos nobres que possuíam grandes extensões de terra e que dominavam a política e o exército na Prússia. Foi dessa classe de senhores que saíram os generais, estadistas e comerciantes que dominaram o cenário alemão no século XIX. A autora lembra que foi a 9 de outubro de 1807 que o "Edito de Confirmação", de autoria do Ministro Stein, garantiu tal emancipação, acabando definitivamente com servidão na Prússia e anulando o regime de fideicomisso. Esta palavra vem do latim fidei = fidelidade e commissu = multa, penalidade, representando o sistema de conservação da terra pelo qual o filho mais velho do junker herdava a propriedade sozinho, podendo desfrutar da mesma e dos demais bens, mas não aliená-la ou vender uma parte da mesma a quem quer que fosse, mesmo parente. Os demais filhos e filhas do junker não tinham direitos sobre a terra, mas podiam desfrutar com o irmão mais velho os direitos sobre a fortuna móvel da família. Esse regime, vigente na classe nobre, não deixava no desamparo os filhos mais novos do testador. Além dos direitos acima referidos, geralmente, garantiam para si um cargo no exército ou mesmo como funcionários burocráticos do Estado. Entre 1800 e 1816 os demais Estados alemães seguiram a tendência de acabar com o fideicomisso. A medida em si visava permitir que os camponeses pudessem comprar a terra onde viviam, mas foram tantas as concessões aos nobres que a vida daqueles tornou-se praticamente insustentável. As altas somas que os camponeses tinham de pagar aos nobres e ao fisco para permanecer na posse das terras eram excessivas em vista do pouco que as mesmas produziam. Com isso, os 53 camponeses ficaram entre a "cruz" do alto endividamento e a "espada" da perda total ou parcial da terra que cultivavam. [...] Os agricultores se aliviaram da escravidão, mas também foram 'aliviados' das suas terras. O servo, para se libertar, tinha de pagar pela sua casa e pelas terras que explorava. Mas só podia resgatar sua terra e sua casa abandonando um quarto e por vezes metade da superfície ao senhor. As propriedades dos camponeses assim amputadas tornavam-se tão exíguas que já não bastavam para o sustento de uma família. O camponês vendia o resto e se expatriava, ia para as cidades ou percorria o campo, em busca de um trabalho precário e mal pago. Nesse contexto, os nobres ampliaram suas propriedades por preço irrisório, enquanto os camponeses se transformavam em trabalhadores nômades ou em proletários sem qualificação nas grandes cidades. O êxodo rural na primeira metade do século XIX foi tão violento que a cidade de Berlim duplicou sua população no período de 1815 a 1850. (SEYFERTH, 1974, p. 22) Além das reformas agrárias mal feitas e das dificuldades inerentes ao sistema feudal ainda vigente, os camponeses enfrentavam o fantasma da lenta, mas inexorável, mecanização da lavoura. O número de trabalhadores necessários para a realização da colheita dos cereais e, durante o inverno, a debulha dos mesmos, caiu vertiginosamente, ao mesmo tempo em que a produção industrial veio competir com o trabalho artesanal do camponês, reduzindo ainda mais os ganhos da família deste. Estes fatores, aliados à atomização, isto é, à divisão excessiva das propriedades em pequenas células produtivas, o que inviabilizava a pequena exploração camponesa, apresentou um resultado inevitável: o aumento vertiginoso do êxodo rural. O camponês entrou numa nova realidade, na qual precisava produzir para o mercado, mas os fenômenos do esgotamento das terras que ainda eram cultivadas segundo o ultrapassado sistema feudal de pousios e da atomização das propriedades impediam que houvesse uma produção racional. Com isso, o pobre camponês se via obrigado a recorrer ao crédito para enfrentar as despesas de plantio e acabava nas mãos dos credores. Na Prússia e na Pomerânia havia ainda as taxas a serem pagas aos nobres para que os camponeses pudessem ficar com as terras, enquanto os outros Estados exigiam impostos pesados. Como resultado disso, na Prússia era comum a existência de grande número de propriedades agrícolas com menos de um hectare. Para tentar sobreviver, o camponês era obrigado a procurar uma atividade acessória. 54 Esse trabalho acessório era de vários tipos e o mais comum deles o trabalho agrícola assalariado. O mais desejável para o camponês, naturalmente, é conseguir esse trabalho acessório no momento em que a faina agrícola se interrompe, no inverno. Isto se verifica mais facilmente nas proximidades das grandes florestas, que reclamam, no inverno, numerosos operários para o corte e o transporte de lenha. Mas nem sempre existia esse tipo de trabalho. Na maioria dos casos, o pequeno camponês só encontrava tarefas acessórias em épocas em que na sua própria terra era necessário seu trabalho isto é, nas épocas de plantio e de colheitas. Nesses casos, quase sempre o camponês deixava de lado sua propriedade para ir ganhar dinheiro, ficando a exploração agrícola nas mãos de sua mulher e filhos (estes quase sempre crianças). (KAUTSKY, 1968, p. 194) As dificuldades representadas pela mecanização da lavoura, as altas taxas pagas aos nobres, os impostos extorsivos dos pequenos Estados, a falta de trabalho nas cidades para absorver o excesso de mão-de-obra, a concorrência desleal dos produtos industrializados já eram motivos mais do que suficientes para motivar a emigração em massa dos camponeses alemães. Um fator negativo a mais veio se juntar aos demais quando, após a "guerra de libertação", de 1815, liberais e nacionalistas aliaram forças para combater as monarquias conservadoras e a nobreza em revoltas que acabavam envolvendo tanto alemães da cidade como camponeses. As revoltas cresceram, especialmente nos anos de 1830 e 1931, sendo respondidas com violência pelas forças conservadoras que acabarão ganhando e forçando milhares de pessoas, inclusive muitos líderes socialistas, a fugirem para países vizinhos e depois para a América. Entre os camponeses que optavam por esta saída reinava a esperança de, naquele "novo mundo", ainda muito despovoado, bravio e desconhecido, conseguir uma gleba de terra e voltar a trabalhar como haviam feito durante tantos séculos, mas, esperavam ardentemente, com muito menos dificuldades. Como aponta SEYFERTH (1974, p. 24), "restava, pois, o recurso da emigração. Tanto camponeses quanto artífices foram compelidos à emigração motivados pela possibilidade de se tornarem proprietários de terras no novo mundo e, ao mesmo tempo, fugir da proletarização". Essa proletarização era provocada pelo estabelecimento definitivo da revolução industrial na Alemanha a partir de 1830, culminado em meados do século XIX. As indústrias procuraram se estabelecer em certas regiões (Aquisgrão, Colônia, Düsseldorf e no Ruhr) originando um proletariado comparável apenas ao da Inglaterra. Um dos fatores que ajudou o triunfo da industrialização alemã foi o desenvolvimento rápido do comércio exterior, auxiliado pelo Zollverein (União Aduaneira) que procurava unir economicamente os 55 vários Estados alemães. A ação conjunta de União econômica e industrialização resultou na acumulação de grandes capitais financeiros e na sujeição dos trabalhadores a uma forma ferrenha e desumana de capitalismo. As jornadas de trabalho eram absurdamente longas como acontecia na Inglaterra e os operários adultos (homens e mulheres) trabalhavam até 14 horas por dia. Os industriais alemães também demonstravam grande preferência pela utilização de mão-de-obra infantil e feminina por ser esta muito mais barata. Uma nova classe emergiu da Revolução Industrial: o Lumpenproletariat proletariado andrajoso composto de operários não qualificados, em sua maioria ex-camponeses forçados a deixar suas aldeias pelas razões que já colocamos antes. Essa situação do proletariado, a crise econômica que atingiu o campo, os movimentos nacionalistas provocados pelos liberais e a atuação dos comunistas foram as principais causas da revolução de 1848. As colheitas dos anos anteriores (1846, 1847) foram péssimas e a fome atingiu milhares de camponeses e operários. [...] Nesse contexto os camponeses formam a maior parte dos grupos de emigrantes, juntamente com contingentes do Lumpenproletariat e liberais fugidos das revoluções de 1830 e 1848. Segundo estimativas não muito precisas, cerca de cinco milhões de alemães deixaram sua terra de origem durante o século XIX forçados pela precariedade político-econômica. Alguns autores afirmam que a maior parte dos emigrantes alemães que vieram para o Brasil eram habitantes das cidades (Cf. Willems, 1946, p. 53). Mas a realidade é um pouco menos simples, uma vez que a maioria desses imigrantes eram camponeses que, tendo deixado o campo, se dirigiram para as cidades onde foram engrossar o 'proletariado andrajoso' que a fome, o fracasso das revoluções e as guerras sucessivas acabaram forçando à emigração. (SEYFERTH, 1974, p. 28) Além de todas as dificuldades que a vida na Alemanha oferecia naquele período conturbado, não se pode desprezar o trabalho das companhias de colonização e de agentes de emigração, fossem do Brasil ou de outros países. Naturalmente, a propaganda desenvolvida por elas acenava com a possibilidade de todos os imigrantes se tornarem proprietários no continente americano. Nenhuma menção às dificuldades que os colonos poderiam encontrar na nova terra. Conclui-se, portanto, que as causas da emigração maciça de alemães para o Brasil foi motivada, principalmente, pela falta de perspectivas na incipiente nação alemã. No próximo item será examinada, brevemente, a forma como ocorreu a integração dos emigrantes de origem teutônica com a nova terra e como os mesmos procuraram manter sua identidade social e cultural. 56 4.2 CARACTERIZAÇÃO DA COLONIZAÇÃO ALEMÃ NO SUL DO BRASIL Como visto no item anterior, as levas de imigrantes que vinham tentar a sorte ou como eles mesmos diziam, "fazer a América" no Brasil eram compostas por camponeses, artífices, trabalhadores assalariados (os Lumpenproletariat proletariado pobre, andrajoso) e pessoas que fugiram devido a questões políticas (revolucionários marxistas e liberais entre outros) ou religiosas. Eram seduzidas graças à intensa propaganda promovida pelas elites locais, que sentiam a necessidade de braços para incrementar a produção agrícola substituindo a mão-de-obra escrava e auxiliar a ocupar definitivamente o território, sendo que os excedentes poderiam ser utilizados para suprir a força de trabalho para as indústrias nascentes. As primeiras levas de emigração em massa para o Brasil se destinaram, em sua maioria, ao trabalho assalariado, de contratação de serviços ou em regime de colonato para as grandes lavouras. Para os centros urbanos emergentes, vinham também imigrantes que se dedicavam ao setor de serviços, ao artesanato ou ainda, ao trabalho fabril, nos quais a industrialização começava a se processar. Na Região Sul, todavia, os imigrantes desenvolveram explorações relativamente independentes da economia central, dedicandose quase que exclusivamente à produção agrícola em pequenas propriedades. Esses novos núcleos de povoamento visavam o preenchimento de vazios demográficos em regiões de fronteira, garantindo assim a integridade do território, bem como o suprimento de bens alimentares para o mercado interno. (MAGALHÃES, 1998, p. 20) Havia uma ligação íntima entre o fenômeno do assentamento de colonos estrangeiros em pequenas propriedades e o da colonização do país, pois ambos ocorriam sob a tutela do governo central ou provincial. Os imigrantes adquiriam, geralmente, uma propriedade em torno de 25 hectares, localizada em lugar ermo, onde deviam desenvolver atividades agrícolas sem recorrer ao emprego de mão-deobra escrava. O Brasil é o país da América que recebeu o maior número de imigrantes de origem alemã depois dos Estados Unidos, embora aja uma certa dúvida em relação aos números apresentados pelos países receptores e os divulgados pela Alemanha. Nos anos de 1870, 1880 e 1900, por exemplo, o número de imigrantes alemães registrados pelos EUA é maior que o dos emigrantes registrados pelo governo alemão. Explica-se tal discrepância pelo fato dos Estados Unidos registrarem indiscriminadamente alemães, austríacos, suíços e outros. 57 Apesar de ser o segundo país que mais recebeu imigrantes de língua alemã, tal contingente não apresentou significação numérica muito significativa no conjunto de emigrados que chegaram ao país. Os imigrantes de língua alemã representaram apenas 9% do total de emigrados. É o caso de Curitiba, onde os poloneses, por exemplo, representaram 49% do total de imigrantes (no período 1886-1939), enquanto somente 13,3% eram de origem teuta (BIDEAU e NADALIN, citados por MAGALHÃES, op. cit., p. 21). TABELA 1: Região de destino dos imigrantes de língua alemã 1820-1910 (milhar) Período Saídas Entradas Alemanha EUA Brasil Canadá Argentina 1820-29 28.0 7.0 7.0 1830-39 172.3 152.5 12.0 1840-49 469.3 343.6 1850-59 1.075.0 951.7 18.0 26.7 1860-69 832.9 787.5 13.7 25.7 1.3 1870-79 622.8 718.2 17.0 1.3 3.8 1880-89 1.342.5 1.453.0 21.6 3.9 14.2 1890-99 529.8 505.2 12.5 12.9 8.7 1900-09 279.7 341.5 17.5 18.6 19.3 TOTAL 5.352.3 5.260.2 119.3 89.1 47.3 Fonte: MARCHALK, Peter. Deutsche Überseewanderung im 19. In: MAGALHÃES, Marionilde Brepohl de. Pangermanismo e nazismo: a trajetória alemã rumo ao Brasil. Campinas, SP: Editora da UNICAMP/FAESP, 1998, p. 20. Ressalte-se, contudo, que apesar do número total de emigrantes teutos ser pequeno quando comparado a outros grupos étnicos de emigrantes , estes optaram por se concentrar demograficamente em determinadas regiões. Isto permitiu, entre outras coisas, a manutenção de grande parte das tradições e do modo de vida trazidos do país de origem. 58 O que é extremamente importante no caso da imigração alemã não é a quantidade de pessoas que entraram nos vários períodos, mas sim o fato de que os colonos dessa origem se concentraram em determinadas áreas, longe do contato com elementos luso-brasileiros. As colônias alemãs, em geral, ficaram isoladas durante várias décadas antes de serem introduzidos nelas imigrantes de outras procedências, principalmente italianos o que sucedeu só depois de 1870. formaram-se, então, no sul do Brasil, núcleos coloniais etnicamente homogêneos nos quais a introdução posterior de imigrantes de outra origem não alterou fundamentalmente o sistema de colonização. No vale do Itajaí, onde a colonização foi predominantemente alemã, os colonos italianos receberam terras em alguns distritos ainda não totalmente povoados com imigrantes alemães, como rodeio, Benedito Novo e Rio do Sul. Os colonos franceses e italianos que entraram no Itajaí-Mirim foram encaminhados, em sua maioria para o vale do Rio Tijucas [...]. (SEYFERTH, 1974, p. 33) Outra característica interessante das levas de imigrantes teutos era, segundo BIDEAU e NADALIN, apud MAGALHÃES (op. cit., p. 21), uma taxa de fecundidade bem elevada, com uma média de 8 a 9 filhos para mulheres que se casam entre 15 e 19 anos e de 7 filhos para as que se casam entre 20 e 24 anos, o que possibilitou às colônias crescerem demograficamente e permitir que novos deslocamentos fossem efetuados a curta e média distância em diversas regiões dos estados do Sul. O Império do Brasil procurava facilitar a entrada no país de emigrantes dos Estados da Confederação Alemã e da Itália devido à fama destes povos de bons trabalhadores e ao fato de que tais povos não possuíam devido à sua tardia unificação tradição de colonialismo, o que, aparentemente, evitava que o Brasil pudesse perder algum pedaço de seu território por incorporação a alguma potência colonialista. Os Estados Alemães, por sua vez, não procuravam facilitar a emigração para outros países. O governo da Prússia, por exemplo, se importava apenas com o comércio de matérias-primas com o Brasil e desconfiava da recepção que seus cidadãos receberiam, inquieto com informes divulgados na imprensa européia sobre o tratamento concedido aos trabalhadores livres, além da manutenção do regime de escravidão. É bom lembrar sempre que o Brasil foi o último país do continente a abolir a escravatura, em 1888. Naturalmente, havia outros entraves à emigração "teutônica", como, por exemplo, a questão do Catolicismo. Religião oficial brasileira, o catolicismo, mesmo que disfarçadamente, não via com bons olhos a chegada de representantes da religião que iniciara o rompimento com a Igreja Católica: A Luterana. Não havia como legitimar os casamentos num tempo em que só existia 59 o casamento religioso e, conseqüentemente as heranças. Tal problema não afetava os italianos que aqui chegava, pois também eram católicos. Após a unificação alemã, não houve mudanças significativas na posição dos dirigentes alemães. Bismarck, por exemplo, considerava prudente manter boas relações com o Brasil, uma vez que este era considerado um "satélite" dos Estados Unidos, com o qual os alemães desejavam aumentar o intercâmbio comercial. A característica mais marcante das comunidades de imigrantes de língua alemã que se instalaram no Brasil principalmente a partir da segunda metade do século XIX e início do XX foi o isolamento. Isoladas devido à falta de vias de comunicação (estradas) com outras comunidades e, portanto, à falta de serviços públicos, as comunidades de origem teuta, devido à homogeneidade étnica grupal, procuravam estabelecer suas colônias de forma aproximada aos moldes utilizados em suas regiões de origem. Tal homogeneidade não era, naturalmente, absoluta, pois na própria Confederação Alemã prevalecia a diversidade de costumes inerentes a cada pequeno Estado. Os costumes e tradições de badenses, bávaros, prussianos ou austríacos eram diferentes, mas praticamente desapareciam quando entrava em jogo a comunidade. As colônias subordinavam-se ao conceito maior de comunidade. [...] Mas, sobretudo a partir de 1890, a divulgação da ideologia germanista reforçou a noção de grupo étnico teuto-brasileiro. As diferenças dentro do grupo diminuem de importância e até desaparecem em virtude de três razões principais: o Deutschtum, a presença de indivíduos de outras etnias e a solidariedade entre os colonos alemães estimulada pelos problemas da própria colonização. No início da implantação da Colônia Brusque, prevaleceu esta última razão: todos os imigrantes são colonos lutando contra um meio ambiente hostil. Nesse contexto inicial, o que sobressai é a idéia de uma nova pátria (Heimat) que estava sendo construída nos princípios de organização que prevaleciam na pátria de origem: isto é, transformar uma região selvagem numa comunidade alemã. Tal idéia está contida na maioria dos jornais teuto-brasileiros, mas também pode ser observada em muitas entrevistas. 'Nossos pais chegaram quando só havia mata virgem. Construíram suas casas, as escolas para os filhos, as igrejas e até nossas estradas. O governo nunca se importou com eles. Eles construíram tudo isto como alemães e nós continuamos a falar nossa língua materna. Nossos pais construíram uma nova pátria e nós a herdamos.' Na opinião dos imigrantes, o seu trabalho, numa verdadeira 'Urwald' (selva) para construir uma comunidade alemã, por si só lhes dava o direito de permanecerem alemães. Prevalecia a idéia geral de uma 'civilização' alemã transplantada para as florestas brasileiras'. (SEYFERTH, 1981, p. 126-127) É esse "senso de comunidade", de identificação comum dos povos teutônicos que servirá de base para uma propagação marcante do pangermanismo e, posteriormente, do nazismo no Brasil. É o que será visto a seguir. 60 4.3 O PANGERMANISMO E O NAZISMO NO SUL DO BRASIL Uma das razões para o fortalecimento da ideologia nacionalista alemã antes, durante e após o nazismo em todas as partes do globo foi identificada na teoria do jus sanguinis (Direito do sangue) prevalecendo sobre o jus solis (Direito da Terra). Pelo jus sanguinis, o conceito de "alemanidade" não se encontra restrito à ligação com qualquer tipo de território ou Estado. Para ser alemão basta estar ligado a determinados interesses coletivos, cristalizados no que se chamava Volksgemeinschaft e/ou Deutschtum, termos que representavam uma espécie de "consciência nacional alemã", que contava com uma cultura, raça, língua e interesses comuns. O vocábulo português "nacionalidade" encontra na língua alemã diversas palavras razoavelmente correspondentes: Volkstum, Deutschtum, Staatsangehörigkeit ou Nationalität. O mesmo ocorre com "pátria" com: Heimat, Mutterland, Vaterland. Algumas delas, entretanto, têm um significado que não pode ser completamente expresso em português, como Deutschtum, Volkstum e Heimat. Volkstum poderia ser traduzido como índole nacional, ou nacionalidade, mas é uma expressão ambígua, tanto quanto Deutschtum. Não se refere apenas à nacionalidade; é muito mais. Volkstum expressa a etnia de um indivíduo e não diz respeito ao seu local de nascimento. É a ascendência (sangue), a cultura e a língua de um indivíduo. É a essência de um povo ou raça. Deutschtum é a Volkstum alemã, o germanismo ou germanidade, a essência da Alemanha, representando o mundo teutônico. Deutschtum engloba a língua, a cultura, o Geist (espírito) alemão, a lealdade à Alemanha, enfim, tudo o que está relacionado a ela, mas como nação e não como Estado. Representa uma solidariedade cultural e racial do povo alemão. Na tradição alemã do século XIX, os dois termos representavam a cultura popular germânica que fez com que os alemães tivessem consciência de uma grande fraternidade alemã, a exemplo dos primitivos germanos. Volkstum e Deutschtum, portanto, trazem consigo a idéia de que a nacionalidade é herdada, produto de um desenvolvimento físico, espiritual e moral: um alemão é sempre alemão, ainda que tenha nascido em outro país. Nesse sentido, nacionalidade e cidadania não se misturam e não se complementam. A nação é considerada fenômeno étnico-cultural e, por esta razão, não depende de fronteiras; a nacionalidade significa a vinculação a um povo ou raça, e não a um Estado. A cidadania, sim, liga o indivíduo a um Estado e, portanto, expressa sua identidade 'política'. Mas uma cidadania não alemã em nada impede que um descendente de alemães seja fiel à nacionalidade dos seus antepassados, que herdou [grifos no original]. (SEYFERTH, 1981, p. 45-46) Embora um pouco longa, a análise de Seyferth torna-se imprescindível para a análise do posicionamento dos periódicos teuto-brasileiros editados pelos imigrantes e seus descendentes frente às questões relativas ao culto das antigas 61 tradições trazidas da antiga pátria e da integração à nova realidade encontrada na nova Heimat, na nova pátria. Após a I Guerra Mundial, foi instaurada na Alemanha derrotada a República de Weimar, marcada pelo estigma da derrota e da submissão aos absurdos impostos pelo Tratado de Versalhes. Até a derrota na guerra, a Alemanha era uma monarquia. Após a derrota, tornou-se uma república, numa mudança drástica e repentina, que não foi bem absorvida pela população. Como visto anteriormente (cf. item 2.1), a República de Weimar foi elaborada com base nos padrões democráticos que invadiram a Europa após 1914. Fest (1976) considera o fim da guerra um momento decisivo para o ideal democrático, pois dez novas repúblicas foram instauradas para somar-se às três já existentes pré-1914, sendo que mesmo no interior das monarquias havia uma tendência geral a uma abertura democrática significativa. O problema, contudo, era que tais novos Estados surgiam carregando a carga de um longo passado não democrático, surgindo oposição e resistência à implantação dos mesmos. Assim, países como Polônia, Itália, Áustria, Hungria, Portugal e Espanha viram suas incipientes tentativas republicanas serem combatidas com vigor por movimentos contestatórios acerca da eficiência do regime republicano e democrático. Na Alemanha, a República era liderada politicamente pelo Partido Social Democrata, o maior partido mesmo antes da guerra. Entretanto, tal domínio não foi nem absoluto nem tranqüilo. Havia dissensões internas no partido e surgiram vários partidos nacionalistas e declaradamente anti-republicanos, preparando um clima de franca violência interna e que desaprovava a política externa do país. Weimar se assentara, segundo Gay, sobre uma cultura cosmopolita, humanística e pacifista, um conjunto de valores éticos e políticos que, embora inquestionáveis aos olhos de seus articuladores, eram estranhos aos herdeiros do II Reich; o nacionalismo baseado no princípio étnico, a reivindicação pelo status de grande potência imperialista e a defesa de um Estado forte, bem aparelhado e moderno, à revelia da modernização de outras instituições, constituíam-se ainda em fortes anseios da sociedade civil. Por estas razões, as luzes lançadas pelos intelectuais e artistas de Weimar iam sendo gradativamente eclipsadas por uma onda de pessimismo e sentimento de derrota moral e psicológica, que passaria a incitar o desejo de vingança, inconformismo e nostalgia. (MAGALHÃES, 1998, p. 126-127) Inúmeras associações formadas por ex-combatentes que, com a desmobilização haviam perdido sua única forma de sustento, pequenos-burgueses com medo da proletarização e comerciantes com medo da instabilidade econômica, 62 surgiram na Alemanha após o fim da I Guerra Mundial. FEST (1976, p. 101) revela que, somente em Munique havia, em 1919, quase cinqüenta associações com este caráter, com denominações como "Pátria Nova", "Conselho do Trabalho Espiritual", "Siegfriedring", "Liga Universal", "Associação Livre dos Estudantes Sociais", "Liga Social Feminina", "Liga Ostara". Segundo Fest, o único denominador comum passou a ser um profundo sentimento de angústia. Sentiam-se humilhados, no plano internacional, pelo Tratado de Versalhes e, no plano interno, nutriam um enorme temor pelas manifestações revolucionárias ali presentes e a instalação da República de Weimar havia sido uma mudança "revolucionária" na medida em que alterou radicalmente a forma de vida e as perspectivas futuras da maior parte da população alemã pois consideravam as mesmas um sintoma da Revolução Russa, a qual os ameaçava tanto quanto os judeus, uma raça vista como inimiga de todas as nações. Foram "eleitos" os bolchevistas e os judeus para simbolizar a causa da derrota pessoal e coletiva alemã. Os integrantes dessas associações forneceriam muitos adeptos à causa do pangermanismo, trazendo, para este, muitas idéias novas criadas com base no ressentimento e na frustração que se abatera sobre o país. No Brasil, o pessimismo e o sentimento de desconfiança em relação à democracia seria alimentado pelas notícias que vinham de além-mar. A melhoria dos meios de comunicação, como uma maior intercomunicação entre jornalistas de todas as partes e a generalização do rádio e do cinema, permitia aos teuto-brasileiros estar bem informados de tudo o que se passava na terra dos antepassados, à qual se sentiam ligados pelo Volkstum. Os jornais e almanaques editados no Brasil mantinham contatos constantes com seus congêneres alemães e, naturalmente, absorviam e retransmitiam boa parte das idéias e conceitos destes. Além disso, nos anos 20, novas levas de imigrantes alemães chegam ao Brasil trazendo "notícias frescas" sobre o panorama de caos, incerteza e frustração que pairava em todo o continente europeu e, especialmente, na Alemanha derrotada. Boa parte desse contingente de emigrantes era composta por pessoas cujo padrão de vida caíra tanto que se viam obrigados a procurar trabalho como operários no novo país, o que os humilhava e revoltava, enquanto outra parte compunha-se de pessoas expulsas das partes do território que a Alemanha perdeu pelo Tratado de Versalhes (como a região da Alsácia-Lorena) ou que deixaram voluntariamente tais localidades para 63 não terem de se humilhar sob o jugo dos vencedores. Havia ainda aqueles que eram membros de movimentos de orientação socialista e que acabavam retomando tais atividades no Brasil. As histórias e opiniões destes imigrantes sobre o estado calamitoso em que a Alemanha se encontrava no Entre-Guerras acabavam, muitas vezes, sendo veiculadas nos jornais teuto-brasileiros, reforçando as idéias pangermanistas. Os impressos desta fase guardam, portanto, uma relação de similitude com tais gêneros na Europa, passando pelas mesmas mudanças que aqueles, não necessariamente e nem sempre no que se refere ao seu conteúdo, mas principalmente em suas funções junto ao público leitor. Desde o século XIX, na Europa, e com maior expressividade no início do XX, no Brasil, a literatura diletante, erudita ou popular, passa gradativamente a concorrer com o discurso jornalístico politizado, sob o patrocínio dos partidos, associações e grupos de interesse, que objetivam conquistar a adesão de diversos segmentos sociais às suas causas. É o caso dos impressos divulgados por partidos e associações de esquerda, mas também e principalmente pela Liga Pangermânica no Sul do Brasil. [...] durante a década de 1930, a linguagem, o conteúdo e a finalidade da maioria daqueles impressos se alteram drasticamente: a literatura diletante cede um espaço cada vez maior para os escritos que versam sobre acontecimentos políticos, ao mesmo tempo em que assume sua linguagem; as histórias locais, nacionais e internacionais, bem como as biografias, passam a convergir para uma única temática, apresentando-se como um simulacro da cultura política alemã; as anedotas, epígrafes e caricaturas são inspiradas preponderantemente nos personagens relativos à política européia; ao mesmo tempo, as palavras vão sendo gradativamente substituídas por fotografias, ícones, desenhos e estatísticas. Fragmentam-se deliberadamente as informações e sacralizam-se eventos seculares, por vezes banais, como se eles estivessem carregados de um poder transformador. (MAGALHÃES, 1998, p. 128-129) Segundo MAGALHÃES (1998), após a Primeira Grande Guerra ocorreu no seio das colônias teutas no Brasil a abertura de novos jornais e almanaques, além de grande proliferação de impressos variados, como volantes, panfletos, brochuras e cartazes. Livros didáticos também eram distribuídos livremente ou vendidos em locais de reunião de teuto-brasileiros. Durante os protestos, boicotes e depredações gerados pela onda de germanofobia que varreu o Brasil entre 1914-1918 diversos jornais de língua alemã acabaram fechando as portas para nunca mais serem reeditados. Naturalmente, não foram apenas os jornais, mas também associações, escolas e até igrejas teutobrasileiras a sentir a fúria destruidora dos protestos. Os jornais que sobreviveram a este período procuraram moderar sua linguagem, não levantando muito alto a bandeira do Deutschtum nem apresentando seu posicionamento crítico acerca dos luso-brasileiros. Esperavam, assim, não afrontar o governo e evitar novas ondas de intolerância por parte do povo brasileiro. Contudo, era visível especialmente nos 64 editoriais o clima de revanchismo para com os Aliados que impunham uma situação vergonhosa para a Alemanha com o Tratado de Versalhes e suas conseqüências funestas. Entretanto, já nos primeiros editoriais do KDB [Kalender für die Deutschen in Brasilien Almanaque para os Alemães no Brasil] e do KVK [Koseritz Volkskalender Almanaque Popular de Koseritz], pode-se observar o prenúncio do clima de desforra que nortearia os impressos dessa década, tão logo seus jornalistas e colaboradores se sentissem mais seguros para manifestar suas conclusões sobre os conflitos decorrentes da guerra. Nesses textos, o Kalendermann [codinome utilizado pelo responsável na redação da linha editorial dos almanaques] considera que a situação política no Brasil está mais tranqüila, mas que a "flâmula vermelha" e a propaganda antigermanista dos aliados ainda subsistem, instigando os habitantes de diversos países contra os teutos; todavia, o ódio generalizado que todos sentem por eles deve lhes ser um motivo de orgulho, pois tal atitude reflete o reconhecimento de ser o povo germânico uma comunidade étnica (Volksgemeinschaft), solidária e unida, independentemente dos estados a que pertença (KDB, 1918, 1921 e 1922). Um outro indício destas atitudes defensivas é a criação, em 1919, do Deutscher Schutzbund für die Grenz und Auslandsdeutschen, uma federação que reunia diversas organizações para a proteção dos alemães residentes em regiões fronteiriças e no exterior, uma iniciativa da VDA [Verein für das Deutschtum im Ausland Liga pela Germanidade no Exterior], que contou com recursos do governo alemão para auxiliar seus compatriotas prejudicados com o advento da guerra. (MAGALHÃES, 1998, p. 130) De forma geral, pode-se dizer que o isolamento das colônias de origem germânica no Brasil contribuiu muito para a manutenção do estilo de vida herdado da pátria-mãe, a Alemanha. O sentimento pangermânico pôde fortalecer-se entre os colonos, ao contrário do nazismo, nunca recebido com entusiasmo em tais centros. A revista Veja, comentando o lançamento de uma compilação das principais partes do diário pessoal de Vargas (edição de 17/05/1995), estampa fotos de supostas festividades nazistas clandestinas em solo brasileiro. Só uma foto traz uma data 1º de maio de 1937. Vistas fora de contexto, tais figuras parecem mostrar o grande apoio recebido pelo nazismo nos Estados do Sul. Entretanto, até alguns meses após a implantação do Estado Novo, tais atividades eram legais e permitidas pelo governo Vargas. Até o governador do RS, Flores da Cunha, participou de algumas dessas festas populares "clandestinas". Se mesmo hoje em dia, uma publicação de qualidade como a mencionada revista pode "equivocar-se", fica patente a necessidade de examinar com cuidado a atuação dos meios de comunicação na propagação das ideologias da época. No próximo capítulo serão examinadas as relações comerciais e políticas entre o Brasil e seus dois maiores 65 parceiros econômicos na década de 30: EUA e Alemanha Nazista, e as conseqüências destas relações para a propagação do ideário nazista no Brasil. 5 O RELACIONAMENTO BRASILEIRO COM ALEMANHA E EUA (1937-1942) Neste capítulo será examinada a questão do relacionamento econômicopolítico do Governo Vargas com Alemanha e Estados Unidos durante o período 1937-1942. Até declarar guerra aos países do EIXO (1942) o Brasil procurou evitar que o comércio com os dois países fosse prejudicado pelo choque entre as ideologias alemã e americana, incompatíveis por natureza. Caracterizar a fórmula empregada por Getúlio Vargas para manter o equilíbrio das relações com parceiros comerciais tão importantes e estabelecer a influência desse relacionamento sobre divulgação do nazismo no Brasil e, conseqüentemente, sobre as comunidades teutogermânicas no país, é o objetivo deste capítulo. 5.1 O CENÁRIO POLÍTICO DA AMÉRICA LATINA NA DÉCADA DE 1930 Como visto anteriormente (ver Cap. 2), o período que se estende da década de 30 até o início da Segunda Guerra Mundial pode ser considerado como o apogeu da crise política, econômica, ideológica e social que assolava o mundo do liberalismo especialmente o europeu desde o início do século XX. O Estado liberal era criticado como sendo uma ditadura de classe ou como um sistema fraco, democrático em demasia, dependendo da orientação política de quem o atacava. A ideologia (principalmente a européia) da "racionalidade liberal" recebia críticas pesadas dos defensores de uma volta aos valores tradicionais (herança do monarquismo "sepultado" pela Primeira Grande Guerra), bem como dos que preconizavam a necessidade de perspectivas radicalmente inovadoras (comunismo, fascismo, nazismo). A face econômica e social da crise provocou uma espécie de recuo do liberalismo na maior parte dos países, ensejando a que socialistas e fascistas pudessem avançar no seu intuito de mobilizar as massas e alcançar o poder. Embora a crise liberal tenha sido mais intensamente sentida na Europa, não deixou de afetar também o continente americano. Os EUA, país mais proeminente das Américas, resolveu, frente à progressiva e célere desarticulação do sistema capitalista mundial, praticar uma política externa voltada para o protecionismo 67 econômico e a conquista de mercados. Não foi o único, pois mesmo as potências tradicionalmente liberais (França e Inglaterra) procuravam garantir de todas as formas os seus mercados. Essa necessidade de monopolizar mercados levou a uma mudança radical no sistema de poder mundial. A velha noção liberal do "equilíbrio do poder", com a existência de vários sistemas de poder e a Europa como "centro" das relações internacionais, não resistiu à Primeira Grande Guerra. O próprio crescimento da sociedade liberal européia conduziu ao conflito, pois acirrou as rivalidades entre as potências imperialistas, na busca de mercados. Com isso, os sistemas tradicionais de poder foram enfraquecendo cada vez mais até serem substituídos após 1945 pela bipolarização EUA e URSS. Curiosamente, nem americanos nem soviéticos podiam, com segurança, serem apontados como futuros centros hegemônicos de poder, uma vez que ambos se encontravam "isolados", aparentemente, do turbulento cenário político mundial. A URSS permanecia concentrada na solução de seus (graves) problemas internos, não dando mostras, do ponto de vista europeu, de "fôlego" para se tornar uma potência emergente (pelo menos ao longo da década de 20). A política do "cordão sanitário" exercida pelas potências que cercavam o país parecia ter alcançado seu objetivo de conter a ameaça revolucionária representada pelo governo bolchevique. DEUTSCHER (1967) é de opinião que a decisão de planificar a economia levou ao imenso avanço da capacidade produtiva soviética. Assim, em que pese o quase permanente estado de convulsão interna, a iniciativa stalinista de coletivizar a economia do país ensejou um crescimento que possibilitou à URSS alcançar o posto de potência emergente, especialmente a partir da segunda metade dos anos 30. Quanto aos Estados Unidos, seu poder econômico não parou de crescer com o "isolacionismo" aparente. A própria crise econômica de 1929, apesar de seu impacto profundo e devastador, apresentou um fator positivo: alertou o governo americano para a necessidade de reestruturar o capitalismo praticado pelo país. Surgiu o New Deal, intervindo firme e decididamente na economia, planejando, controlando preços e juros e investindo em larga escala. Um fator decisivo para que os EUA assumissem o status de potência emergente foi sua fantástica capacidade produtiva, a qual garantia uma capacidade competitiva muito maior do que a das demais potências, fortemente debilitadas pelo conflito 1914-1918. 68 A expansão da economia americana dependia, entretanto de dois fatores fundamentais: a) a associação a outras economias no plano internacional para garantir sua própria recuperação e crescimento; b) difundir a política do livrecomércio para garantir o acesso aos mercados mundiais para suas exportações de produtos manufaturados e matérias-primas. No primeiro caso, a América Latina deveria desempenhar um papel fundamental, devido à capacidade desta em fornecer matérias-primas e absorver as demandas de exportação da indústria pesada americana. No segundo, os EUA precisavam combater o protecionismo econômico insistindo na necessidade da recuperação do comércio internacional sob sua orientação. Neste mesmo período, a América Latina passava por um período de turbulência ideológica. As principais correntes ideológicas que buscavam difundir-se na parte latina do continente americano eram: socialismo, fascismo e liberalismo. A queda da influência inglesa no continente após a Primeira Grande Guerra permitiu que duas potências antagônicas se digladiassem na tentativa de assumir a hegemonia na América Latina: EUA e Alemanha. Os dois países eram representantes de sistemas políticos, ideologias e práticas comerciais totalmente incompatíveis entre si. [...] As duas potências tornaram-se na década de 1930 os pólos de dois sistemas políticos, duas ideologias e duas práticas comerciais antagônicas; de um lado, via-se o autoritarismo antiparlamentar, nacionalista, protecionista; de outro, a liberal-democracia, o internacionalismo livre-cambista. A América Latina tornou-se então o palco não só de uma acirrada disputa política e ideológica, exatamente no momento em que ganhavam impulso na América Latina o nacionalismo econômico e o autoritarismo antiparlamentar. As correntes nacionalistas não se identificavam necessariamente aos adeptos fervorosos da experiência alemã ou italiana, embora os adversários dos primeiros os tratassem como sinônimos. Isso significava que a polarização típica da época transformava afinidades ideológicas, ou de simples política econômica, em alinhamentos políticos na ordem internacional. (MOURA, 1980, p. 56) Torna-se imprescindível compreender as razões que levaram ao processo de "isolamento" norte-americano para entender melhor quão vital se mostrou a mudança de posicionamento dos EUA frente ao novo quadro político-estratégico mundial para poder ascender ao posto de potência emergente e, posteriormente, ao de potência hegemônica mundial. A famosa Doutrina Monroe, lançada em 1823, reservava aos Estados Unidos o papel de defensor do Hemisfério Ocidental (especialmente o continente 69 americano) do expansionismo imperialista europeu, papel este que se apoiava, materialmente falando, na colaboração do poderio naval britânico. Entretanto, ao longo de todo o século XIX, os EUA foram expandindo sua área de influência para além do Hemisfério, através do aumento dos interesses econômicos em lugares como a China (1844), Japão (1853), Alasca (1867), Samoa (1878), Havaí (1893), Filipinas (1898) e América Latina. Durante o governo Theodore Roosevelt, constatou-se a necessidade de rever a política americana frente às alianças internacionais, aparelhamento do poderio bélico (Forças Armadas) e utilização estratégica do Canal do Panamá, como forma de defender sua grande área de influência. Uma vez que a Alemanha representava um desafio ao poderio naval britânico, a Doutrina devia procurar fortalecer, cada vez mais, as ligações dentro do continente americano. Taft, sucessor de Teddy Roosevelt, e Woodrow Wilson, sucessor do primeiro, contudo, preferiram optar pelo isolacionismo e pela manutenção da paz através da Liga das Nações, desdenhando a ajuda inglesa e francesa para a defesa do Hemisfério. Com essa opção, os Estados Unidos acabaram constatando, após o fim da crise de 1929, não estarem preparados para lidar com um panorama mundial onde se destacava a expansão militar alemã e japonesa. Foi por isso que, a partir de 1937, o novo presidente americano, Franklin Delano Roosevelt, decidiu redefinir a política tradicional e retomar o que havia sido preconizado pelo outro Roosevelt, Theodore: a necessidade imperiosa de aumentar o poderio das forças Armadas, manter e fortalecer suas posições estratégicas (Alasca, Filipinas, Panamá) e estabelecer acordos de ajuda mútua com ingleses, franceses e chineses, aliados valiosos na guerra que parecia inevitável. O cerne da política americana, contudo, estava debilitado pela discórdia. Isolacionistas e intervencionistas perdiam tempo com discussões estéreis que impediam o estabelecimento de uma política eficiente, que atendesse aos interesses vitais do país. 70 [...] duas posições conflitantes foram firmadas com respeito a essa questão. Os defensores do isolacionismo, sem abrir mão dos envolvimentos externos, opunham-se à criação de alianças e ao armamentismo; os defensores do intervencionismo, por outro lado, apoiavam a expansão militar e qualquer intervenção necessária para proteger os interesses americanos no exterior, colocando a segurança nacional acima da procura irrealista de paz e renegando a ideologia expressa pela Doutrina Monroe por considerá-la idealista e ultrapassada. (GAMBINI, 1977, p. 30) Os intervencionistas americanos consideravam que uma política externa adequada seria aquela que tivesse por objetivo a segurança econômica e militar da nação. Uma vez que o aumento da riqueza e do poder pode levar à guerra, os intervencionistas consideravam que os interesses e privilégios americanos no mundo só seriam mantidos através de poderio militar, alianças fortes e confiáveis e fronteiras estratégicas e bem guardadas. Sob esta perspectiva, o apoio dos isolacionistas ao desarmamento não passaria de "miopia" que os impedia de ver a verdadeira hierarquia de interesses da nação. Foi esse tipo de visão estreita, denunciavam os intervencionistas, que levou ao término da aliança (e conseqüente desarmamento) dos vencedores da Primeira Grande Guerra, confiando-se no poderio naval britânico, então sem rival no mundo. A adoção plena do intervencionismo pelos EUA deveria, segundo seus defensores, passar a considerar a América Latina como território estratégico, cujo controle, sob as diversas formas de "colaboração", torna-se imprescindível para defender os Estados Unidos de agressões externas. Conseqüentemente, o território inteiro das três Américas passa a ser definido como região defensiva para a segurança dos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que a integração efetiva do continente se transforma no principal alvo da nova política. Como ocorre em qualquer ideologia dominante, os interesses da economia central e os da periférica são apresentados como idênticos: 'os interesses vitais das nações britânicas, americanas e latinas em ambos os lados do Atlântico e através do Pacífico acham-se tão enredados pela geografia, pela necessidade estratégica e pela formação histórica que suas intenções supremas, quando testadas na guerra total, são inseparáveis' [grifos no original]. (GAMBINI, op. cit., p. 32-33) Moura (1980) lembra que a implantação do pan-americanismo constituiu numa forma de conciliar as necessidades econômicas e os objetivos estratégicos dos Estados Unidos na América Latina. Os americanos, que desde o final do século XIX haviam considerado a área que abrangia Caribe, Pacífico e América Central como área estratégica de segurança, estenderam o conceito para abarcar toda a América Latina. 71 À medida que se estabelece o sistema de poder norte-americano em confronto com o alemão, as definições estratégicas dos Estados também mudam. Desde seu ingresso na corrida imperialista, ao final do séc. XIX, os Estados Unidos definiram como sua área de segurança o Pacífico, o Caribe e a América Central, mas a perspectiva de um conflito mais vasto, que se anuncia na segunda metade da década de 1930, leva os estrategistas americanos a ampliar o círculo da segurança do país, que passa a incluir toda a América do Sul, especialmente a 'saliência'de leste, a saber, o Nordeste brasileiro. Assegurar a defesa desse ponto passa a ser matéria vital da segurança norteamericana (leia-se, do sistema de poder emergente) e daí a necessidade de cooperação militar, especialmente a concessão das bases que permitissem aos militares norteamericanos a formulação de planos globais de defesa hemisférica. O pan-americanismo responde, portanto, não apenas às necessidades econômicas, como aos objetivos estratégicos dos Estados Unidos. Desse ponto de vista, era absolutamente essencial assegurar a colaboração política e se possível o alinhamento mais completo das nações latino-americanas à liderança norte-americana. (MOURA, op. cit., p. 58) Embora longa esta panorâmica da situação política da América Latina durante a década de 30 permite entender melhor os diversos aspectos que cercaram o relacionamento brasileiro com a Alemanha nazista, como será visto no item a seguir. 5.2 RELAÇÕES POLÍTICO-ECONÔMICAS DO BRASIL COM A ALEMANHA NAZISTA Para entender as relações políticas e comerciais entre Brasil e Alemanha nazista é preciso ter em mente a importância da Europa para o comércio exterior brasileiro, visto ser esta, na década de 30, o principal fornecedor de produtos industrializados. Os números, segundo Gambini (1977) são expressivos e eloqüentes: os países europeus respondiam por cerca de 55% das importações do Brasil, fato que não se alterou durante o período 1932 a 1938. Ocorreria um pequeno declínio causado pelo início da guerra com o índice acima recuando para 47%. A importância da Alemanha para o comércio exterior brasileiro passou a se acentuar após 1933, quando a Inglaterra, então o maior fornecedor brasileiro, enfraquece paulatinamente frente à concorrência alemã, sendo suplantada por esta em 1935. "O período compreendido entre 1936 e 1939, quando ocorre a decretação do Estado Novo, assiste ao apogeu da influência comercial alemã no Brasil, superior 72 por alguns pontos à americana, extinguindo-se, porém, bruscamente a partir de 1940" (GAMBINI, op. cit., p. 105). Com o início da guerra, o Brasil passa a exportar e a comprar mais dos EUA que da Europa, maior parceira comercial entre 1934 e 1939. A partir desta data, o Brasil passa a importar mais (52%) do que exportar (42%) para os Estados Unidos. O aumento do comércio Brasil-Alemanha despertou nos americanos o receio de uma aliança política entre os dois parceiros comerciais, devido ao aspecto autoritário do Estado Novo e à presença de uma significativa colônia de origem alemã no sul do país. Este é o aspecto político da questão. O aspecto comercial, propriamente dito, repousa na completa incompatibilidade dos sistemas comerciais empregados por EUA e Alemanha. Enquanto esta utilizava o sistema de mecanismos de compensação comercial, os norte-americanos empregavam o sistema de livre-comércio. No sistema de compensação comercial, a falta de recursos brasileiros para pagamento em moeda internacional das importações da Alemanha era contornada por um processo engenhoso, no qual a moeda internacional era praticamente dispensada como base de troca de algodão e café por bens industriais. Assim, ao vender seus produtos naquele país os exportadores brasileiros recebiam como pagamento marcos "especiais" que só tinham valor dentro da própria Alemanha. Tais "marcos" podiam ser usados apenas para realizar compras dentro daquele país, sendo, mormente, dirigidas a produtos industrializados. [...] Na guerra comercial que se travava pelos mercados latino-americanos, as armas consideradas inadequadas ou mesmo 'ilegais' do ponto de vista do liberalismo passavam a ser largamente utilizadas. Mas, ao colocar em operação este tipo de comércio, a Alemanha, que não dispunha de meios de pagamento em volume suficiente, estimulava suas importações e criava ao mesmo tempo um crédito para os países produtores de matériasprimas. E se, por um lado, os países contratantes se ligavam mais e mais ao comércio alemão à medida que aumentava o volume das operações (quanto mais vendiam à Alemanha, mais eram obrigados a dela comprar), por outro lado o sistema era vantajoso pelo fato de que esses países também não dispunham de divisas para financiar o pagamento imediato de suas importações, como ocorria nos acordos de livre-comércio. (MOURA, op. cit., 71) Com esse procedimento, o Brasil acabava ficando atrelado ao modelo exportador alemão, o que contrariava os interesses dos Estados Unidos. Some-se a isso o fato do governo alemão subsidiar seus produtores, o que lhes permitia efetuar 73 uma concorrência acirrada com os exportadores de outros países outra razão para a Alemanha ter ultrapassado a Inglaterra como parceiro comercial do Brasil. Enquanto os Estados Unidos podiam praticar o livre comércio devido às condições especiais de sua produtividade industrial e poderio financeiro, países como a Alemanha, cuja saúde financeira encontrava-se extremamente abalada pela crise financeira mundial só poderia exportar e importar se recorresse a artifícios como a desvalorização da moeda, uso do dumping e os acordos de compensação, pois do contrário não teriam meios para realizar os pagamentos necessários no comércio internacional ordinário. O Brasil foi, naturalmente, o país onde os germânicos até a guerra realizaram os maiores milagres com o comércio de trocas. A técnica baseava-se em 'marcos de compensação'. A Alemanha adquiria matérias-primas brasileiras e pagava-as com marcos congelados em Berlim; com estes o Brasil podia comprar mercadorias manufaturadas alemãs. Em 1933 o Brasil levou da Alemanha 12,1% do total de suas importações; em 1938 estes algarismos tinham se elevado a 25%. Em 1933 o Brasil mandou para a Alemanha 8,1% do total das suas exportações e em 1938 esta percentagem já se elevara a 19,1%. Mas os brasileiros nem sempre ficavam contentes com o que acontecia. Freqüentemente eram forçados a aceitar da Alemanha mercadorias manufaturadas para as quais não tinham consumo. A escolha era limitada. Caso precioso é o de enorme carregamento de lentes que chegou ao Rio. O Brasil viu-se inundado de câmaras custosas e tabletes de aspirina. (GUNTHER, 1943, p. 401-402) Segundo Wagemann, citado por Moura (op. cit., p. 70-71), "uma autoridade alemã reconhecia em 1938 que os acordos de compensação constituíam uma prática artificial de comércio, mas a desorganização do mercado mundial os transformava em elementos de superação da crise". Apesar dos pesares esta prática era tolerada, pois o preço pago pela Alemanha às exportações brasileiras era bem mais alto que o do mercado mundial (devido aos mencionados subsídios). Além disso, o Brasil, bem como outros países latino-americanos, possuía determinados excedentes agrícolas e matérias-primas, como o algodão, que não podiam ser absorvidas pelos EUA. Essa política comercial agressiva [dumping, desvalorização da moeda, sistema de compensações bilaterais] apresentava um problema especial para os Estados Unidos, que não podiam neutralizá-la com maciças importações de produtos agrícolas devido a sua grande produção interna. Teoricamente, os Estados Unidos podiam prescindir de fornecimentos externos, dado que 90% de sua renda eram gerados no próprio país; entretanto, o que realmente importava não eram os restantes 10%, mas a própria composição do mercado externo. Conseqüentemente, precisavam manter vivos os mercados externos para poder colocar seus excedentes agrícolas e evitar tanto a superprodução como o desemprego. (GAMBINI, 1977, p. 108) 74 Estes são alguns dos aspectos econômicos que envolviam a relação BrasilAlemanha e que se refletiam na relação Brasil-Estados Unidos. Cabe agora examinar os aspectos políticos destas relações. Como visto na citação acima, os lucros obtidos pela Alemanha em seu comércio com o Brasil não eram de fundamental importância para a economia dos EUA. Na verdade, eram as implicações políticas deste relacionamento que incomodavam o governo americano, pois é preciso lembrar que a Inglaterra sempre foi o maior aliado americano no Ocidente. Inclusive, após o fim da Primeira Guerra Mundial, era com a ajuda do poderio naval britânico que os EUA contavam em sua "missão" de garantir a segurança do Hemisfério (ver item 5.1). A Inglaterra era a maior prejudicada pelo aumento do comércio Brasil-Alemanha. Como visto, a partir de 1935, a Alemanha havia suplantado os ingleses como parceiro comercial do Brasil. A perda dessa hegemonia inglesa levou alguns pesquisadores a suspeitar de um possível envolvimento inglês no levante da Aliança Nacional Libertadora (Intentona Comunista) para tentar derrubar o Governo Vargas. O levante (novembro de 1935) ocorreu justamente quando a Alemanha ultrapassou a Inglaterra no comércio com o Brasil. Exemplo dessa suspeita encontra-se em um dos livros do Ciclo de Vargas, de Hélio Silva (1972), o primeiro historiador a ter acesso aos arquivos secretos do levante, onde se vê referências a um possível papel desempenhado pela Inglaterra e seus serviços secretos no episódio. Este papel é mencionado numa carta de Oswaldo Aranha na época desempenhando as funções de embaixador em Washington enviada a Getúlio. Em carta a Getúlio, datada de 3 de dezembro de 1935, dias depois do levante, Aranha diz: A Inglaterra, ao que pressinto, vai agir contra os nossos interesses. [Ela] não sabe esquecer nem perdoar. O Intelligence Service está em atividade contra o teu governo, e no fundo dessas últimas desordens deve haver algo dessa mão misteriosa... Tenho notícias seguras. A intriga internacional neste momento é mais séria do que a inocência brasileira poderá supor. O que se pode perguntar hoje, a partir dessa advertência, é se a diplomacia e os serviços secretos ingleses não teriam facilitado a volta ao Brasil de Luís Carlos Prestes, mesmo no desconhecimento e à revelia deste. Como se explicaria, por exemplo, que a polícia secreta da França, dos Estados Unidos e da Argentina, escalas de Prestes na viagem da Rússia ao Brasil, não desconfiasse nem do passaporte falso nem do falso português portador desse passaporte? (RIBEIRO, 2001, p. 151) 75 Não é intenção do autor desta monografia aprofundar-se na questão levantada pela denúncia de Aranha, mas apenas mostrar como os interesses ingleses estavam sendo fortemente contrariados pela parceria comercial entre Brasil e Alemanha. Apesar do franco crescimento do comércio entre os dois países, suas relações diplomáticas e políticas sempre foram marcadas por constantes atritos. Em 1936, Hitler, embora pretendesse estender o futuro império em direção ao Leste Europeu (leia-se União Soviética), não desconsiderava, também, a possibilidade de conseguir colônias em outros pontos do globo, como a África e a América. A Gestapo foi encarregada de fazer um levantamento das colônias alemãs na América do Sul. No caso do Brasil, as diligências da polícia secreta alemã apresentaram a cifra de 900 mil alemães em solo brasileiro. Já as estatísticas coletadas pelos Estados Unidos apontavam 125 mil pessoas de origem alemã. A aparente contradição é explicada pelo fato do Reich considerar sob sua jurisdição todos os descendentes de alemães emigrados. Era o princípio do jus sanguinis, como visto anteriormente (item 4.4), que se sobrepunha ao local de nascimento da pessoa. A propagação do conceito do deutschtum, da germanidade, da ligação contínua e inquebrantável do indivíduo à sua pátria de origem, a Alemanha, era apenas uma das táticas nazistas usadas para garantir a adesão dos e seus descendentes de alemães que viviam no exterior. " O nacional-socialismo segundo Hélio Silva procurava, no exterior como no interior, assegurar a simpatia dos jovens. Entre 1.400 escolas estabelecidas no estrangeiro desde 1933, contavam-se 1.150 no Brasil. Em fins de 1937, só no rio grande do Sul havia cerca de 3 mil professores alemães" (RIBEIRO, op. cit., p. 148). O estremecimento das relações político-diplomáticas Brasil-Alemanha nazista após a instauração do Estado Novo surpreendeu muita gente, principalmente o governo alemão, pois a instauração da ditadura varguista parecia ser apenas a cristalização de uma tendência centralizadora que vinha se acentuando desde a revolução de 30, e que parecia demonstrar a afinidade crescente entre os Estados alemão e brasileiro. O fato da Constituição de 38, a "Polaca", incorporar grande parte dos conceitos da Carta di Lavoro da Itália fascista, bem como elementos presentes nas constituições de países com regimes de força (Alemanha, Polônia e Portugal entre outros) aliado à inegável existência de uma respeitável colônia de 76 origem teuta no sul do país contribuiu para que a aproximação cada vez maior com a Alemanha fosse encarada como inevitável. Filtrando idéias que recebia do exterior, Francisco Campos redigiu o esboço principal da Constituição de 37, baseada, com pequenas exceções, nas Cartas de países onde imperavam regimes de força, como Alemanha, Itália, Portugal, Polônia, Lituânia e Áustria. Apesar de nunca ter sido aplicada em sua totalidade, a Constituição de 37 foi inspirada na Carta di Lavoro, italiana, que incorporava toda legislação social depois de 1930; proibia greves e lockouts, considerados como 'recursos anti-sociais nocivos ao trabalho e ao capital'. Esta mesma Constituição foi apelidada de 'Polaca', por se inspirar também na Carta Magna autoritária imposta aos poloneses em 1926, além de absorver vários princípios defendidos pelo Integralismo. O autoritarismo surgiu com a única forma possível, em contraposição ao liberalismo e ao comunismo, de conter essas 'novas forças' que emergiam no cenário nacional como conseqüência do desenvolvimento urbano-industrial. As soluções nacionalistas ganharam força e sentido, encobrindo as atitudes fascistizantes de Vargas. Entretanto, qualquer atitude de simpatia do governo Vargas pelas experiências alemã e italiana corria o risco de ser considerada como uma forma de alinhamento político, devendo ser tratada com muita diplomacia e 'neutralidade', jogando ora com um ou outro pólo de força (Alemanha ou EUA), de forma a encobrir qualquer afinidade ideológica. E Vargas mostrou-se um mestre neste jogo fazendo-se simpático a ambos os pólos. (CARNEIRO, 1998, p. 4) Apesar de se encontrarem no discurso político brasileiro da época algumas referências elogiosas em relação à contribuição da população de origem germânica no desenvolvimento crescente do país, não é menos verdadeira a existência de uma visível insatisfação com a inserção político-cultural dos imigrantes e descendentes teutos no contexto brasileiro. Em outras palavras, a "negação" em abdicar do idioma e dos costumes pátrios para incorporar-se ao caldeirão racional brasileiro (melting pot) onde auxiliariam no "melhoramento" da "raça" brasileira. [...] Os imigrantes centro-europeus, incluindo, portanto, os alemães, são vistos com bons olhos no projeto de 'branqueamento' ou de 'arianização' da população brasileira, pela sua ética de trabalho, enfim, pela sua contribuição para o desenvolvimento socioeconômico do Brasil. Nesse sentido são vistos com muita mais simpatia do que os imigrantes de outras regiões ou de outra tradição étnica e cultural. Os alemães são vistos com bons olhos e recebem os elogios correspondentes, enquanto há sérias restrições a japoneses, 'turcos', judeus, 'polacos', sem falar nos negros. Restrições se fazem ouvir, porém, com muita insistência em relação aos imigrantes alemães efetivamente entrados no Brasil bem como aos seus descendentes. O que se espera dos imigrantes é que de preferência antes de entrarem no país aprendam o português, abandonem toda a sua bagagem cultural e adotem instantaneamente hábitos de vestir, de comer, morar, ou de se associar 'tipicamente brasileiros'. [...] Admitia-se que permanecessem eventualmente alguns traços biológicos que, no futuro, se diluiriam na 'raça brasileira', melhorando-a. Tenho mostrado que oficiais do exército brasileiro que na década de 1930 ocuparam regiões de colonização alemã no sul do Brasil ficaram indignados com o fato de que as pessoas mantinham os seus sobrenomes alemães e não os haviam trocado ou ao menos abrasileirado. (GERTZ, 1999, p. 3) 77 Embora tal insistência na assimilação, na "absorção" dos imigrantes possa parecer restrita apenas ao âmbito das Forças Armadas, a verdade é bem outra. O projeto eugênico era levado a sério até mesmo (ou talvez principalmente) no seio do meio acadêmico e científico. Em síntese, o projeto eugênico visava elaborar procedimentos que, postos em prática, garantissem o "melhoramento" das raças humanas, especialmente a chamada raça "ariana" ou branca. Para isso, defendia-se que exemplares de raças consideradas "produtivas", de saúde "perfeita" e com grande capacidade "intelectual" deveriam receber toda espécie de incentivo para estabelecer-se no país, pois, com o passar do tempo, acabariam por "melhorar" a "raça" brasileira. O processo era comparado à melhoria genética dos rebanhos animais através do cruzamento de animais locais com exemplares magníficos importados do exterior. Ao mesmo tempo, como conseqüência lógica, aquelas raças consideradas inferiores (negros, judeus, árabes, asiáticos e nativos aborígines, como os índios brasileiros) deveriam ser não só impedidos (se possível) de viver no país, como de miscigenar-se com os representantes das raças "superiores". O comportamento do governo brasileiro durante o Estado Novo foi de apoio a todas estas iniciativas. Não faltaram ao regime políticas imigratórias de caráter discriminatório, defendidas por antisemitas influentes, como Gustavo Barroso, bem como por um público numeroso de interessados em 'aperfeiçoar' o estoque genético da raça brasileira. Esses adeptos da eugenia encaravam de forma negativa a herança racial luso-afro-indígena da nossa formação histórica e defendiam a restrição à entrada no país de elementos de raças 'indesejáveis', como negros, judeus, orientais e árabes. Entidades dedicadas ao projeto eugênico, como a Sociedade Amigos de Alberto Torres e instituições da sociedade civil como a insuspeita Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) do Estado do Paraná participaram de forma decisiva do debate sobre a política imigratória, moldando-a em boa medida segundo suas concepções sobre a forma pela qual a miscigenação dos nacionais com imigrantes "adequados" resultaria na superação do pauperismo e atraso econômicos nacionais. (OLIVEIRA, 2003, p. 5) Naturalmente, nem todos concordavam com a teoria da superioridade das raças "arianas" em relação à ainda incipiente "raça" brasileira. Mirandolino Caldas era médico psiquiatra da Força Expedicionária Brasileira na Campanha da Itália e contrapunha aos que defendiam a tese de inferioridade do brasileiro (e, por conseguinte, de outros povos ditos inferiores), a teoria de que as diferenças entre os estágios de desenvolvimento dos povos não eram causados pela "qualidade 78 genética" inferior ou superior de um sobre outro, mas sim pela maior/menor oportunidade de desenvolvimento com que cada povo ou raça se depara. A tenacidade não é apanágio de nenhum povo e de nenhuma raça. O que convém fixar é que estas características dos povos não se originam do fato de uns descenderem de uma raça superior e outros de uma raça inferior. Já é tempo de acabarmos com essa idéia da existência de raças humanas superiores e inferiores. Biologicamente todas as raças são iguais, isto é, todas têm o mesmo mecanismo de vida. Sociologicamente é que podemos estabelecer uma escala gradativa de evolução social e cultural das várias raças. Não devemos, porém, supor que a maior ou menor rapidez da ascensão de um povo na escala social e cultural seja indício de que esse povo descende de uma raça biologicamente superior ou inferior; quando muito será indício de que ele descende de uma raça social e culturalmente mais evoluída. E, inicialmente, o que acelerou ou retardou essa evolução não foram os superiores ou inferiores fatores biológicos esta ou daquela raça e, sim, as favoráveis ou desfavoráveis condições mesológicas a eu estas mesmas raças estiveram ou estão ainda sujeitas. CALDAS, apud OLIVEIRA, op. cit., p. 10-11) O tema do projeto eugênico brasileiro é muito rico e extenso, não podendo ser abordado correta e profundamente neste breve espaço, nem faz parte das pretensões desta monografia. O mesmo foi citado apenas como forma de demonstrar como o governo varguista encarava a presença das colônias de origem teuta no Brasil e como buscava empenhar-se, sem muito sucesso, na inserção destes imigrantes no mencionado projeto. De qualquer forma, este posicionamento do governo brasileiro em relação ao papel que as raças "arianas" deviam desenvolver no "melhoramento da raça brasileira" era um dos motivos que levavam a Alemanha nazista a acreditar que a instauração do Estado Novo representava um passo importante dado pelo Brasil na direção de um alinhamento político com seu país. No plano econômico a Alemanha já era o principal parceiro econômico brasileiro na Europa e muitos dos emigrantes teutos no Brasil colaboravam para melhorar, cada vez mais, as relações comerciais entre os dois países, seja produzindo os artigos a serem comercializados (couro, café, algodão), seja servindo como intermediários nas negociações para que a Alemanha construísse uma siderúrgica para o Brasil. Com isso esperavam incentivar um possível alinhamento político-estratégico entre Brasil e Alemanha nazista. 79 Já em 1937, o governo brasileiro realizava estudos e tentava iniciar negociações para o financiamento e a montagem de uma indústria siderúrgica no Brasil. Essas negociações tinham como prioridade os Estados Unidos, mas incluíam a Alemanha e, em particular, a Casa Krupp. O governo de Hitler chegou a achar que o golpe do Estado Novo, combinandose com o crescente comércio entre o Brasil e a Alemanha e mais a possibilidade de apoio alemão ao projeto siderúrgico brasileiro, abria perspectivas para uma aliança política RioBerlim: 'No fim de 1937, depois da implantação do Estado novo escreveu Stanley Hilton Berlim até cogitava de persuadir o Rio a assinar o Pacto Anticomintern' (que unia a Alemanha, a Itália e o Japão, numa aliança destinada a liquidar a União Soviética). (RIBEIRO, op. cit., p. 160) Em 1938, Getúlio nomeou Cordeiro de Farias como interventor no Rio Grande do Sul. Este, para evitar qualquer tentativa de golpe como o dos integralistas que, inclusive, haviam tentado matar Getúlio, resolveu investir contra todas as etnias estrangeiras e fechou todos os escritórios do partido nazista, deportou o principal representante deste e proibiu a propaganda nazista nos jornais em língua alemã. Ao constatar que apenas 20 das 2.800 escolas alemãs ensinavam em português, passou a construir escolas com ensino obrigatório em língua portuguesa e a fechar aquelas. Também combateu a rede de espionagem do Abwehr (Departamento do Exterior do Alto comando das Forças Armadas do Reich). O embaixador alemão, Karl Ritter, reclamou junto ao chanceler Oswaldo Aranha contra as mediadas que, para ele, revelavam má vontade para com os alemães nazistas. O Partido Nazista seria a própria Alemanha e impedir suas atividades era o mesmo que atuar contra aquele país. Aranha respondeu ser absurdo estender a componentes de políticos estrangeiros as regalias concedidas a representantes diplomáticos. Ritter enviou um memorando (relatório B7/7), no qual, entre outras coisas dizia: [...] O presidente [Getúlio] está obcecado com a idéia de eliminar as diferenças étnicas existentes na população brasileira e criar uma raça brasileira homogênea, com língua e cultura uniformes. Aí, então, os volksdeutscher [os 'alemães' nascidos ou que vivessem fora da Alemanha], aproximadamente um milhão nos três Estados do Sul, perturbam-no fortemente, porque mantiveram sua língua, sua cultura e sua consciência racial alemã, mais que os italianos, os holandeses, os polacos e outros. A mesma atitude explica a supressão ocasional de escolas alemães e da língua alemã nas igrejas sem considerar se estão envolvidos nacionais alemães ou cidadãos brasileiros de origem alemã. (RIBEIRO, op. cit., p. 164-165) Ritter acabaria sendo expulso do país como "persona non grata" pelo Ministro Oswaldo Aranha. Tudo o que foi visto até o momento demonstra que o relacionamento político Brasil-Alemanha foi sempre marcado por uma rispidez que 80 demonstra a não existência de uma verdadeira afinidade entre os dois governos neste aspecto, embora no aspecto econômico nunca houvesse, até 1940, nenhuma diminuição significativa no comércio de compensações praticado por ambos. No item a seguir ser examinado o relacionamento político-comercial com os EUA. 5.3 RELAÇÕES POLÍTICO-ECONÔMICAS DO BRASIL COM OS EUA No plano econômico, as relações entre Estados Unidos e Brasil na década de 30 foram marcadas por pressões dos americanos no sentido de diminuir ou ao menos impedir o crescimento o comércio brasileiro com a Alemanha, marcado pelo sistema de compensações. Defensor do livre-cambismo, os EUA pressionaram o governo de Vargas para que este não firmasse um acordo deste com a Alemanha nazista para comercialização de algodão. Para tanto, desejavam que os brasileiros adotassem um sistema de cotas para tal produto. O governo brasileiro reagiu contra a interferência americana alegando que os EUA pretendiam excluir o Brasil do mercado algodoeiro alemão que ficaria, assim, aberto aos exportadores norteamericanos. O Tratado Brasil-Alemanha foi assinado com duração de um ano. Os EUA afrouxaram a pressão, pois sabiam ser difícil impedir a assinatura do tratado, visto que o mesmo satisfazia brasileiros e alemães e era adequado aos planos brasileiros de aumentar as exportações para saldar a dívida externa. Quando o final do tratado se aproximava do seu término, o Departamento de Estado norte-americano voltou à carga, tentando impedir-lhe a renovação, acenando, para tanto, com a possibilidade de estabelecer quotas ao café do Brasil. O problema era que os EUA não possuíam condições de absorver-lhe a produção brasileira por também ser grande produtor de algodão. O que o governo americano desejava era a adoção de um acordo que "estabelecesse o pagamento das mercadorias em moedas livres, incluindo reduções tarifárias recíprocas e restrições quantitativas, e que eliminasse o uso dos marcos especiais e dos subsídios" (GAMBINI, 1977, p. 113). Brasil e Alemanha não poderiam acatar tais sugestões, pois não dispunham de meios para efetuar pagamentos em moeda internacional. Se adotadas as medidas sugeridas o Brasil perderia o amplo mercado importador alemão. O tratado foi mantido. 81 A Alemanha temia perder o acesso ao algodão brasileiro, tão vital para si, que procurava manter ao máximo o nível de cordialidade entre os dois governos, para que nada afetasse o comércio com o parceiro sul-americano. Tal atitude é sentida em memorando de um funcionário do Departamento de Política Econômica Alemã, de 1938, ano em que as tensões políticas Brasil-Alemanha estavam alcançando o auge. De um ponto de vista econômico, o Brasil é para nós o país mais importante da América do Sul. Além do mais, sua significação aumenta constantemente devido à crescente redução de moeda estrangeira. A área sudeto-alemã, por exemplo, necessita de pelo menos 80.000 toneladas de algodão por ano, que agora deveriam ser supridas e pagas por nós. Na realidade o Brasil é o único fornecedor que poderia ser considerado, dado que dificilmente poderíamos aumentar nossas importações do outro grande fornecedor, os Estados Unidos, devido à falta de câmbio. Nessas circunstâncias, o Ministério das Finanças julgou de grande importância que as relações econômicas não fossem perturbadas por qualquer tipo de deterioração nas relações políticas. Teme-se que, caso o conflito político se torne mais agudo, o Ministro Aranha venha a usar sua influência para romper as relações econômicas entre os dois países. Até agora ele não o fez, mas sem dúvida virá a fazê-lo se continuar a considerar-se pessoalmente atacado. (GAMBINI, op. cit., p. 116) O funcionário alemão deve, sem dúvida, referir-se aos atritos entre Aranha e o embaixador Ritter. Quando este foi expulso do Brasil, os alemães expulsaram o embaixador brasileiro de Berlim e as relações diplomáticas levariam alguns meses para se normalizarem. Até o rompimento de relações entre Brasil e Alemanha, as relações diplomáticas Brasil-EUA se pautaram pela pressão constante do último para fazer cessar o comércio Brasil-Alemanha e pela íntima inter-relação dos fatores econômicos com os políticos. Já o posicionamento brasileiro frente aos EUA sempre foi o de apaziguamento e de promessas (nunca cumpridas) de abandonar o comércio de compensações com a Alemanha (até o rompimento final com o Eixo). No item a seguir será visto como o relacionamento entre Brasil, Alemanha nazista e Estados unidos influenciaram a propagação do ideário nazista em solo brasileiro. 82 5.4 O ESTADO NOVO E O "PERIGO NAZISTA" NO SUL DO BRASIL Esta pesquisa, desde o seu princípio, representou uma espécie de "jornada" a partir de um contexto macrocósmico em direção a um contexto microcósmico. Primeiramente, fez-se uma revisão do contexto político da Europa no período do Entre-Guerras, quando o surgimento e fortalecimento de regimes de força foi beneficiado por fatores como a crise do liberalismo, o crescimento da insatisfação com os modelos democráticos de governo e a crise financeira, política e social. Em seguida, focalizou-se a atenção no primeiro dos "atores" que interessavam aos objetivos da monografia: A Alemanha nazista. Esta surgiu como resultado da mencionada crise européia, sendo castigada rigorosamente pelas penas absurdas impostas pelo Tratado de Versalhes, após a Primeira Guerra Mundial. Humilhada, privada de suas colônias e enfrentando uma séria crise social, a Alemanha da incompetente e corrupta República de Weimar foi seduzida pelo "canto de sereia" de Hitler e seus sequazes, embarcando numa aventura que mudaria para sempre a face do país, da Europa e do Mundo. A trajetória de Hitler, desde os tempos de soldado até alcançar o poder como Chanceler foi examinada com cuidado. Mesmo as origens históricas do pensamento nazista foram pesquisadas para fornecer subsídios que permitissem entender o forte apelo que a ideologia nazista representava para o povo alemão. Ao mesmo tempo, foram examinados, brevemente, os demais Estados totalitários ou de orientação de extrema-direita que surgiram (ou se fortaleceram) no período: Itália fascista, União Soviética comunista, regimes de força na Polônia, Tchecoslováquia, Portugal e Espanha, entre outros. Era necessário, então, diminuir ainda mais o foco da pesquisa e concentrarse no segundo "ator" do "drama" que se procurava analisar: o Brasil. A importância deste país subdesenvolvido da América Latina no desenrolar dos importantes acontecimentos que envolveram a preparação para Segunda Grande Guerra, começou a se fazer mais clara a partir do exame da chegada de grandes levas de imigrantes de origem teutônica ao país, desde os tempos do Segundo Império brasileiro. O Brasil foi o país que mais acolheu imigrantes dessa origem depois dos Estados Unidos. As causas de tal movimento migratório e os meios pelos quais os imigrantes se instalaram nas regiões de colonização, conseguindo manter os costumes, tradições e a língua de suas pátrias, foram objeto de estudo. 83 Um dos aspectos mais importantes dessa emigração maciça para o Brasil, foi representado pela propagação das idéias pangermânicas entre os colonos de origem teuta. Os ideais pangermânicos cristalizados no conceito de Deutschtum, germanidade foram importantes para desenvolver nos colonos o sentimento de ligação com a Alemanha distante, preparando o caminho para que os nazistas tentassem aliciar os "alemães no exterior" para seus intentos expansionistas. Em seguida, após uma breve retrospectiva da situação social, política e econômica da América Latina no Entre-Guerras, foi examinado o desenvolvimento, no mesmo período, do terceiro "ator": os Estados Unidos da América. Embora tendo mantido sua política de isolacionismo durante os primórdios do século XX, os EUA, depois da Primeira Guerra Mundial, perceberam que não poderiam ficar alheios aos acontecimentos importantíssimos que ocorriam na Europa e já apresentavam reflexos no próprio continente americano, como o surgimento de partidos e governos latino-americanos de orientação nazi-fascista. É o caso do Partido NacionalSocialista Mexicano, do Partido Nacional-Socialista Argentino, dos "civilistas" peruanos, e da Falange Conservadora e do Partido Nacional-Socialista, ambos no Chile. Sem falar do Estado Novo e do governo Perón. Com os principais "atores" tendo sido introduzidos tornava-se necessário verificar as relações existentes entre eles, especialmente as econômicas e políticas, para preparar a análise dos efeitos de tais relações no desenrolar dos acontecimentos que ocorreriam a partir da instauração do Estado Novo de Vargas. O comércio entre Brasil e Alemanha nazista, fomentado pelo artifício dos marcos de compensação, que só tinham valor dentro da Alemanha, havia transformado a Alemanha no maior parceiro comercial europeu do Brasil, desbancando a Inglaterra e desagradando esta e, conseqüentemente, seu grande aliado, os EUA. O comércio brasileiro com este, que era o maior mercado para o país, tornava a situação ainda mais dramática, pois o Brasil temia perder o vantajoso comércio com os alemães, mas não podia desagradar os Estados Unidos, maior parceiro econômico no continente. Como se viu, começou uma espécie de jogo de avanços e recuos, com o Brasil prometendo romper relações políticas e comerciais com a Alemanha, mas sempre encontrando meios de manter (e mesmo fortalecer) tal comércio. Para justificar sua atitude dúbia perante os EUA, o Brasil começaria a tomar certas atitudes políticas mais agressivas para com a Alemanha nazista, 84 especialmente com relação aos imigrantes de origem teuta que residiam no país e à difusão, entre estes, das idéias nazistas. É o exame destas medidas e das reais motivações que levaram o Brasil a tomá-las, criando (ou incentivando) o mito do "perigo nazista" no sul do país, o detalhe que falta para completar a pesquisa desta monografia. Na análise das relações entre Brasil, Estados Unidos e Alemanha nazista, dois estudiosos adotaram posicionamentos bem diferentes. O primeiro deles, GAMBINI (1977), defendeu a idéia de que o Brasil não possuía nenhuma possibilidade de desempenhar um papel de independência em relação às pressões das duas potências que disputavam a hegemonia no continente americano. Em sua impotência, o país limitava-se a tentar tirar o máximo possível de proveito da situação de conflito entre os dois outros países, tentando crescer no espaço permitido pelo jogo de interesses dessas potências. [...] Esse processo é marcado por dois movimentos paralelos: ao mesmo tempo em que os Estados Unidos gradativamente substituem a Europa como centro de gravitação das economias periféricas do mundo capitalista, o Brasil passa a orientar seu crescimento a partir das possibilidades que essa substituição criava. A argumentação aqui desenvolvida pretende demonstrar a hipótese de que os laços nesse período estabelecidos entre os Estados Unidos e o Brasil não representam uma transformação do tipo de relação existente entre as economias centrais e as periféricas, mas antes um reajuste às necessidades e prioridades ditadas pelo desenvolvimento do capitalismo. Incapaz de alterar fundamentalmente essa estrutura de relações e de estabelecer alternativas políticas e econômicas próprias, o Brasil encontrou novas possibilidades de crescimento na brecha aberta pela confrontação entre os poderes capitalistas [grifos no original]. (GAMBINI, op. cit., p. 21) MOURA (1980), por outro lado, acreditava que o Brasil não se encontrava limitado ao papel de simples parceiro subserviente, mas possuía algum poder (significativo) de barganha com seus dois poderosos parceiros. MOURA, inclusive, critica a visão "limitante" de GAMBINI, que reduzia tal poder de barganha a um simples subproduto do momento de crise mundial. 85 Numa avaliação global, o balanço entre as limitações da política do governo Vargas, que são evidentes no seu caráter defensivo, e as suas possibilidades, claras nos benefícios que extraiu da relação, nem sempre são bem avaliadas pelos autores que estudaram o período. [...] Se Luciano Martins exagera as possibilidades da política externa brasileira, Roberto Gambini e Marcelo Abreu carregam nas limitações. Para esses dois autores, não havia opções possíveis para os dirigentes brasileiros, como vimos no capítulo 2, porque as economias periféricas estão submetidas a pressões incontornáveis das economias centrais. A possibilidade de barganha só existiu, para Gambini, em função da crise nas economias centrais, mas já verificamos que os benefícios oriundos de uma crise dependem de políticas adotadas ou não pelo Estado. Para Abreu, os ganhos brasileiros devem ser atribuídos à boa vontade norte-americana ou ao seu 'auto-interesse esclarecido'. Nossa análise mostrou, porém, que o alinhamento não é um resultado automático da economia ou da geografia: é um processo longamente negociado e isso supõe alguma força por parte do aliado subordinado. Se é verdade que os EUA determinaram o momento das decisões, estas não se realizaram segundo sua exclusiva vontade [grifos do autor]. (MOURA, op. cit., p. 187188) A importância de se estabelecer qual dessas visões do papel desempenhado pelo Brasil no relacionamento com as duas potências é a mais plausível reside no fato de que ela pode servir como explicação para as atitudes que o governo Vargas tomou em relação aos emigrantes alemães e à propagação das idéias nazistas no sul do país. As pressões políticas e sociais sobre as colônias alemãs do sul do Brasil foram motivadas pela subserviência brasileira aos caprichos norte-americanos? Ou foram tomadas por que Vargas realmente temia a concorrência de qualquer outra forma de poder político influente dentro do Brasil? A "ameaça nazista" realmente existiu? Convém analisar melhor a questão da subserviência e da "autonomia da dependência" (nas palavras de MOURA). Um dos autores que parecem concordar com a tese de GAMBINI de que o Brasil estava reduzido a um papel subserviente na relação com a Alemanha nazista e os Estados Unidos é McCANN (1995), que lembra que o país de Vargas passava por apuros econômicos devido à depressão, e que apesar dos EUA representar um mercado de grande significado para o Brasil, este se via na necessidade imperiosa de diversificar e expandir seus mercados. É que o "parceiro do Norte" não apresentava possibilidades para o escoamento de produtos como o algodão e os têxteis brasileiros, já que também era um grande produtor de algodão. O mesmo problema ocorria, em parte, com o açúcar e seus derivados. Por isso, a Alemanha caia como uma luva nos interesses brasileiros. Como salientou GAMBINI (op.cit., p. 116), "A área sudeto-alemã [...] necessita de pelo menos 80.000 toneladas de algodão por ano". 86 Seja como for, na segunda metade dos anos 30, a Alemanha competia agressivamente com os Estados unidos pelo mercado brasileiro. [...] Os brasileiros aspiravam à independência econômica, mas como só então se haviam liberado das engrenagens de John Bull, não estavam preocupados em serem agarrados por outrem. Tentaram manobrar de maneira a intensificar o comércio, particularmente as exportações, tanto com os Estados Unidos quanto com a Alemanha, ao mesmo tempo em que evitavam a dependência de qualquer dos dois. [...] Negócios à base de escambos e marcos de compensação faziam sentido aos olhos dos dirigentes brasileiros, com sua abundância de matérias-primas; por isso, decidiram que era melhor não fazer nada quanto às exigências americanas de um controle mais estreito do comércio com a Alemanha. Como política, fazer nada produzia um equilíbrio tolerável que somente a guerra foi capaz de romper. Se a luta americanogermânica pelo mercado brasileiro era ideológica, parece que a ideologia ali envolvida não era nem totalitarismo nem democracia, mas nacionalismo econômico. (McCANN, 1995, p. 126-127) Em suma, segundo McCANN comungando, em parte, com o pensamento de GAMBINI , o Brasil não possuía nenhuma possibilidade de autonomia ou escolha, limitando-se a "se deixar levar" pelos acontecimentos, aproveitando os benefícios do comércio com as duas potências enquanto podia. Um autor que, por outro lado, apóia o pensamento de MOURA é TOTA (2000), que chama a atenção para o fato das demonstrações de autonomia brasileira como a insistência em manter o sistema de compensações cambiais com a Alemanha e o aparente entusiasmo das autoridades militares brasileiras com o militarismo germânico irritarem profundamente os americanos, mas que estes, preocupados em não jogar o Brasil nos "braços" alemães, preferiam não intensificar demais a pressão sobre o parceiro latino-americano. De certa maneira, essas formulações, que pareciam transformar a Alemanha nazista em uma notável potência mundial, chamavam a atenção de parte dos oficiais do Exército Brasileiro. O general Pedro Aurélio de Góis Monteiro foi convidado a assistir a um dos muitos desfiles-manobras militares em Berlim. Góis monteiro não chegou a visitar a Alemanha, mas de uma forma ou de outra havia, no ideário dos militares que fizeram a revolução de 1930, um projeto de expansão auto-sustentada. Embora não contássemos com um passado de técnicas provenientes dos bancos das faculdades de engenharia, tínhamos, ao menos recursos naturais incomparavelmente maiores que os da Alemanha. Enquanto não conquistasse sua independência técnica, o Brasil poderia comprar, pelo sistema de compensações oferecido pelos alemães, armas e máquinas produzidas nas grandes indústrias germânicas. Na transação não haveria exatamente dinheiro, mas a troca de produtos por produtos. Já em 1935 '[...] o governo brasileiro fez um acordo para uma compensação informal com a Alemanha, apesar de ter assinado um tratado de comércio bilateral com os Estados Unidos". (TOTA, 2000, p. 26) Essas atitudes de autonomia brasileira, especialmente na área comercial, representavam, para setores militares brasileiros mais nacionalistas, um afastamento do Brasil da órbita excessivamente mercantilizada dos EUA. Hoje em dia, devido à 87 maciça influência americana no dia-a-dia do Brasil (e América Latina), representado pelo jeans, filmes de Hollywood e palavras e expressões entre outras, pode conduzir à idéia de que a aceitação do american way of life (modo de vida americano) era natural no tempo de Vargas. TOTA lembra que não era assim, e que os latinoamericanos se ressentiam da forma caricata com que os americanos sempre os retrataram. Este modo desdenhoso passou a mudar já na década de 20, quando os norte-americanos começavam a se preocupar mais intensamente com a manutenção de sua posição hegemônica no Continente. Durante muito tempo, o americanismo havia forjado uma imagem desabonadora da América Latina. Valorizava-se o homem branco, protestante, sempre mencionado como condutor do progresso na luta contra a vida selvagem [vide o desbravamento do Oeste selvagem americano], e criava-se uma imagem oposta para os latino-americanos. Segundo essa concepção, ao sul do rio Grande [divisa natural entre Texas e México] estava a América dos índios, dos negros, das mulheres e das crianças. Uma América que, via de regra, precisava aprender as lições do progresso e do capitalismo para abandonar sua posição 'inferior'. Uma América que, em última instância, precisava ser domesticada. (TOTA, op. cit., p. 30) Finalmente, outro autor que se alinha sob a "bandeira" da autonomia na dependência de MOURA é CORSI (2000), que considera que o receio de o Brasil se aliar definitivamente à Alemanha nazista falava mais alto ao bom senso dos "homens de Washington" que os prejuízos causados aos produtores americanos pelo sistema de compensações entre Brasil e Alemanha. Além disso, os interesses financeiros norte-americanos também eram afetados negativamente pelo sistema de compensação, pois esta modalidade de comércio não gerava divisas que poderiam ser empregadas no pagamento de dividendos, juros e amortizações da dívida externa brasileira. O grande problema para os norte-americanos era que não podiam (na época) oferecer contrapartidas comerciais compensadoras para o Brasil, caso este viesse a romper radical e definitivamente o comércio com a Alemanha nazista, pois os EUA não podiam absorver a produção de grande parte dos produtos brasileiros. 88 O governo dos EUA não adotou medidas retaliatórias contra o Brasil, apesar de ter condições para tanto. Essa atitude deveu-se provavelmente ao desejo de não pôr em risco a política de boa vizinhança e ao receio de que retaliações pudessem levar o Brasil a aproximar-se ainda mais da Alemanha, o que denota os limites do poder norte-americano. [...] A argumentação brasileira nas conversas em Washington consistia basicamente em mostrar que vários produtos nacionais não encontravam mercado nos EUA e, portanto, era cabível que escoassem para outros mercados. O Brasil não 'poderia se dar ao luxo de abrir mão do mercado alemão num momento de crise aguda de seu comércio exterior'. Para o Brasil desistir desse mercado seria necessário um incremento substancial das exportações para outros países e um fluxo de capitais externos, requisitos bastante improváveis naquele momento. (CORSI, 2000, p. 61) A maioria dos autores citados parece adotar um meio-termo entre as colocações de MOURA e GAMBINI, embora pendendo mais para o lado do primeiro. Parece não haver dúvidas de que o Brasil possuía, sim, uma certa autonomia nas relações comerciais e políticas com Alemanha e EUA. Seja por força do perigo que representaria para os norte-americanos a sua aliança com os alemães, seja pelo imenso prejuízo que um rompimento do comércio com o Brasil acarretaria para a Alemanha, o país de Vargas podia barganhar com grande propriedade com ambas as partes. Tanto é que o governo brasileiro se encontrava plenamente ciente dos inconvenientes que o comércio de compensação com a Alemanha acarretava: não geração de divisas (moeda forte), imposição alemã de preços e cotas e crescimento da dependência em relação àquele país. Por outro lado, esta prática comercial oferecia oportunidade de colocação para produtos que não teriam mercado sem ela, como algodão, couros, frutas cítricas, e mesmo parte do café brasileiro. Portanto, diante do quadro que aponta para um plausível (e significativo) grau de autonomia frente aos seus dois maiores parceiros comerciais, como entender as medidas radicais tomadas pelo Estado Novo para a supressão de todas as formas de divulgação do pensamento nazista em solo brasileiro? Se o Brasil podia sair tremendamente prejudicado (embora não tanto quanto a Alemanha) com a suspensão do comércio com os alemães, o governo brasileiro não deveria evitar atritos políticos com seu maior parceiro comercial na Europa? Embora qualquer tentativa de resposta definitiva deva ser descartada, pelo menos no atual estágio de conhecimento sobre as peculiaridades do período em questão, pode-se, perfeitamente, aventar a possibilidade do Brasil estar optando pelo mal menor. Dessa forma, ao mesmo tempo em que proibia todas as formas de manifestação do nazismo no país (1938), fechando jornais e escolas (entre 1937 e 1938) que ensinavam exclusivamente em língua teutônica, prendendo alguns 89 propagandistas nazistas e até mesmo expulsando o embaixador alemão quando este protestou contra o encerramento das atividades do Partido Nazista no Brasil (ver item 5.2), o governo brasileiro continuava mantendo, e até intensificando, o comércio com a Alemanha. Com essas medidas, as colônias teutas ficaram praticamente privadas de qualquer forma de expressão, sofrendo uma vigilância constante por parte dos órgãos de repressão política brasileiros (especialmente o Departamento de Imprensa e Propaganda) para que não desenvolvessem nenhuma atividade considerada "subversiva" (nunca é demais lembrar que tais proibições recaíam sobre toda e qualquer ideologia estrangeira, como o comunismo e, claro, o integralismo). Não se pode excluir, por certo, uma grande dose de malícia de Vargas no tratamento com as duas potências, cedendo em alguns pontos e endurecendo em outros. As restrições à prática da divulgação dos ideais nazistas podem realmente não ter passado de "fumaça" nos olhos dos americanos, o que fica mais evidente após examinar dois fatos significativos. McCANN (1995) informa que após o incidente com o embaixador Ritter, uma comissão brasileira de compra de armas estabelecia-se em Essen, perto das instalações da Krupp, ao mesmo tempo em que um grupo de oficiais brasileiros aviadores conheceu instalações da Força Aérea alemã e colocou coroas de flores em monumentos de guerra alemães. O tom antinazista da imprensa brasileira arrefeceu e Vargas enviou seu filho mais velho, Lutero, para estudar seis meses na Escola de Medicina da Universidade de Berlim, o que os alemães consideraram como um gesto de apreço. Seu outro filho, Getúlio Jr., estudava engenharia química na John Hopkins. Assim, ele mandou um príncipe para cada lado, mas nenhum deles foi feito refém. (McCANN, op. cit., p. 148) Esses exemplos eloqüentes mostram que o Brasil estava disposto a conceder (ceder) às duas potências apenas o necessário para satisfazer parcialmente cada uma delas, sem, contudo, tomar nenhuma medida que representasse a possibilidade de rompimento definitivo com qualquer uma delas. A perseguição contra qualquer forma de manifestação nazista no sul do Brasil era sobejamente compensada com o aumento e/ou manutenção do comércio com a Alemanha, não tendo, portanto, outras motivações que não a continuidade deste comércio ao mesmo tempo em que se "agradava" os EUA. Entretanto, mesmo quando Vargas parecia se esforçar, na primeira metade de 1940 para sinalizar a 90 preocupação com a neutralidade brasileira vis-à-vis a guerra na Europa, enfatizava o fato de que seu país não se atrelava a uma ou outra potência. Num discurso proferido em Blumenau, coração da colônia alemã em Santa Catarina, preveniu: "o Brasil não é nem inglês nem alemão. É um país soberano que exige respeito às suas leis e que defende os seus interesses. O Brasil é brasileiro [sem grifos no original] (McCANN, op. cit., p. 150)". Embora tais palavras sejam ditas aparentemente com destino aos ouvidos de Berlim, certamente não deixaram de encontrar eco também em Washington... Vargas sabia claramente que o propalado "perigo nazista” no sul do país não passava de uma falácia. Assim, procurou manter suas ligações comerciais com a Alemanha nazista até onde fosse possível; mesmo com o sacrifício das relações políticas com esta nação. No capítulo a seguir, serão apresentadas as conclusões que surgiram do exame das informações coletadas pela pesquisa. 6 CONCLUSÕES Com base nos dados obtidos pela revisão da literatura, é possível concluir que a doutrina do pangermanismo foi fundamental para a cristalização do sentimento de ligação com a Alemanha, experimentado pelo imigrante teuto em solo brasileiro. O sentimento de germanidade (Deutschtum) permitiu ao colono germânico manter quase intactas as tradições, costumes e língua de sua pátria de origem, e ajudando-o a resistir às tentativas do governo brasileiro em incorporá-lo (aculturação) ao modo de vida do Brasil. Da mesma forma, é possível concluir que a colonização de origem alemã no Brasil, que começou no Segundo Império brasileiro e continuou até meados da década de 1930, criou áreas de concentração razoavelmente grandes de imigrantes teutos nos Estados do Sul (Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul), onde os costumes e a própria língua alemã eram mais presentes que o próprio idioma português. Estas colônias seriam locais propícios para a divulgação dos ideais pangermânicos e, posteriormente, das tentativas nazistas de criar células de infiltração subversiva no meio destas. Conclui-se que o relacionamento político-econômico do Brasil com a Alemanha nazista e os Estados Unidos foi marcado por lances dignos de uma partida de xadrez, com avanços e recuos, representados por comportamentos dúbios, omissões e hábeis concessões, que permitiram ao governo Vargas manter, até o início da Segunda Grande Guerra, seu vantajoso comércio com a Alemanha nazista. Conclui-se, finalmente, que as perseguições e boicotes sofridos pelo Partido Nazista em território brasileiro não foram devidos a uma intolerável pressão dos Estados Unidos para que o Brasil rompesse com a Alemanha nazista e se alinhasse com os norte-americanos na defesa do Continente, mas sim a um hábil jogo de manobras do governo brasileiro, que sacrificando, em certa medida, as relações diplomáticas e políticas com a Alemanha, garantiu a continuidade do precioso comércio com os alemães. Além disso, não é possível esquecer que a tentativa frustrada dos integralistas brasileiros em assassinar Vargas e assumir o poder serviu como desculpa para este podar todas as manifestações políticas contrárias ao regime do Estado Novo. Esta razão seria invocada pelo governo varguista quando 92 fosse defender, junto ao governo alemão, as medidas drásticas tomadas, é sempre bom lembrar, contra todos os partidos no Brasil que pudessem representar alguma ameaça ao regime brasileiro. O autor desta monografia está ciente de que o término de uma pesquisa acadêmica nunca encerra as discussões levantadas por esta. Mesmo por que, nenhum trabalho consegue atingir um grau de perfeição tal que mais nada original possa ser levantado em relação ao tema abordado. Sendo assim, espera-se que o presente trabalho sirva de estímulo a outros pesquisadores, para que estes levem (e aprofundem) adiante as investigações sobre o tema investigado, trazendo novas contribuições para um assunto tão fascinante como o estudo do Nazismo e suas implicações para a História do século XX. 93 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMBELAIN, Robert. Os arcanos negros de Hitler: 1848-1945 a história oculta e sangrenta do pangermanismo. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1995. ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. Rio de Janeiro: Ed. Documentário, 1975. BELLAMY, Richard Paul. Liberalismo e sociedade moderna. São Paulo: Ed. UNESP, 1994. BIANQUIS, Gerard. A vida cotidiana na Alemanha à época romântica. 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