Pressupostos epistemológicos Hume: Cético ou naturalista?

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Pressupostos epistemológicos Hume: Cético ou naturalista? Pirrônico ou
acadêmico?
Alexandro Fernandes*
RESUMO
Este artigo tem por objetivo apresentar ao leitor a característica real do
pensamento empregado por David Hume, enquanto identifica os pontos centrais de
sua teoria epistêmica, bem como a pretensão de caracterizar sua filosofia diante da
díade ceticismo/naturalismo, discussão frequentemente abordada ao longo da
História da Filosofia. A partir disso, procura contrapor e conciliar a interpretação do
ceticismo Pirrônico e Acadêmico, para destacar o ceticismo em Hume e caracterizar,
no interior da filosofia cética, qual tipo de ceticismo melhor se adapta a seu
pensamento.
PALAVRAS-CHAVE: Crença, ceticismo, naturalismo, pirrônico, acadêmico
INTRODUÇÃO
O empirismo surge como forte opositor ao racionalismo, através de uma nova
proposta para explicar a origem do conhecimento humano. Segundo os empiristas, a origem
de todo o conhecimento desenvolve-se por meio de dados sensoriais (sentidos). O
empirismo
tem
como
principais
expoentes:
John
Locke,
George Berkeley e,
principalmente, David Hume, fonte do presente estudo.
Tanto no Tratado da natureza humana (T), como na Investigação acerca do
entendimento humano (IEH), Hume descreve como se desenvolve o processo do
conhecimento bem como a origem deste processo, no qual, concomitantemente,
revela-nos um dos pontos centrais de sua teoria, ou seja: o conhecimento se dá por
meio da observação e experiência, isto é, o princípio de todo conhecimento está
fundado nas percepções. Esta, diz ele, podem ser divididas em dois momentos
como impressões e ideias, as quais, por sua vez, distinguem-se em simples e
complexas36,diferentemente da concepção inatista desenvolvida por Descartes. 37
Cada um admitirá prontamente que há uma diferença considerável entre
*Graduado e Pós-graduado em Filosofia pela Faculdade de Educação São Luis.
1
2
HUME D. Tratado da Natureza Humana e Investigação acerca do entendimento humano.
DESCARTES R. Meditações Metafísicas.
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as percepções do espírito, quando uma pessoa sente a dor do calor
excessivo ou o prazer do calor moderado, e quando depois recorda em
sua memória esta sensação ou a antecipa por meio de sua imaginação (IE
H, 2,3).
As impressões são
sensações
mais
vivazes ,
fortes,
por
meio
das
quais
estabelecemos contato direto com os dados, pois são derivadas das experiências
cotidianas e são indubitáveis. As impressões podem dividir-se em dois tipos:
impressões externas, como cores, sons, aroma, entre outros, ou impressões internas,
são referentes as nossas paixões e emoções.
Segundo Hume, as ideias, por sua vez, são cópias das impressões e, como tais,
provêm delas, mas são menos vivazes, pálidas, isto é, as ideias não são fontes de
conhecimento e não se confundem com as impressões, ou seja, as ideias são cópias
imperfeitas das impressões:
Todas as cores da poesia, apesar de esplêndidas, nunca podem pintar os
objetos naturais de tal modo que se tome a descrição pela paisagem
real. O pensamento mais vivo é sempre inferior à sensação mais
embaçada
(IE H, 2,3).
Ao estabelecer uma análise da teoria do conhecimento de Hume, é preciso
antes de tudo considerar a divisão que ele faz com relação à estrutura do
conhecimento humano: “todos os objetos da razão podem dividir-se naturalmente
em dois gêneros, a saber: relações de ideias e questões de fatos” (IEH, 2,3).
O conhecimento referente às relações de ideias está intimamente relacionado
ao conhecimento
matemático,
geométrico
e
algébrico,
que
são
tipos
de
conhecimento sobre o qual podemos demonstrar sua verdade a priori, isto é, toda
afirmação que é intuitiva ou logicamente certa. As proposições desse tipo de
conhecimento são indubitáveis, porém, este tipo de conhecimento
nos fornece
apenas abstrações.
Por outro lado, o conhecimento referente a questões de fato são formados por
juízos provenientes da experiência (juízos empíricos) que expressam conexões,
interdependências e relações que descrevem fenômenos concretos. Desta maneira,
considera-se que os raciocínios referentes a questões de fato, supõe-se que se
relacionam por meio da relação de causa e efeito, e que “é somente por meio dessa
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relação que podemos ir além da evidência de nossa memória e nossos sentidos” (IEH, 4,4).
Com relação às questões de fato, Hume nos mostra o papel fundamental
desempenhado pela experiência, ou seja, que todos os raciocínios causais são
raciocínios obtidos pela experiência. Contrariamente às relações de ideias, este tipo
de conhecimento não pode ser demonstrado logicamente, pois, “além de jamais
implicar uma contradição, o espírito concebe com a mesma facilidade e distinção
como se ele estivesse em completo acordo com a realidade” ( IEH, 4,2). Dessa
maneira, qualquer pretensão de determinar o conhecimento acerca das questões de
fato pela via de argumentações demonstrativas e raciocínios abstratos a priori provocará
constantes arbitrariedades, as quais não levará a conhecimento algum. Toda proposição
referente a questões de fato, não podem ser explicados pela razão, mas sim pela experiência.
Questões de fato, que são o tipo de objetos da razão humana, não
são apuradas da mesma maneira, e tampouco nossa evidência
de sua verdade, por grande que seja, é da mesma natureza que a
precedente. O contrário de toda questão de fato permanece sendo
possível, porque não pode jamais implicar cont radição e a ment e o
c oncebe com a mesma facilidade e clareza, como perfeitamente
ajustável à realidade [...] e seria vão, portanto, tentar demonstrar
sua falsidade. Se ela fosse demonstrativamente falsa, implicaria uma
contradição e jamais poderia ser distintamente concebida pela ment e
(IE H, 4,2).
Todo conhecimento referente a questões de fato depende estritamente de
nossa confiança na experiência passada enquanto padrão de nossos juízos futuros,
ou seja, o conhecimento depende da suposição de que o futuro será sempre
conforme o passado ou de que os eventos futuros seguirão o mesmo padrão já
observado.
A distinção oferecida por Hume, com relação ao conhecimento baseado em
relações de ideias e conhecimento sobre questões de fato permite indicar se o
conhecimento relativo às questões de fato nunca poderá obter o mesmo tipo de certeza
demonstrativa. Apesar de este tipo de conhecimento não poder ser demonstrado a
priori, já que o seu contrário não implica em contradição, mesmo assim o homem atribui
certo grau de certeza, confiança, crença e objetividade ao conhecimento relativo às
questões de fato. Mas, de que maneira o homem atribui essa confiança?
Todos os
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raciocínios provenientes de dados experimentais dependem da imaginação apoiada em
particular no princípio do hábito ou crença. Desta maneira, portanto, supõe-se por meio
de inferências que os eventos do passado, seguirão os mesmos padrões no futuro.
Para Hume, o hábito é o “princípio que torna útil” à experiência e permite ao
homem ultrapassar a experiência imediata e chegar ao conhecimento das questões de fato.
Quaisquer inferências que tiramos da experiência estão em constante relação com o
costume ou hábito, em outras palavras, não são fundamentados por princípios racionais.
Dentre as principais críticas desenvolvidas por Hume, a noção de causalidade,
isto é, a crença na existência de um princípio causal que relaciona os fenômenos naturais,
constituindo-se em uma lei universal, foi atacada com especial atenção por esse filósofo.
Essa teoria foi comumente utilizada por vários intérpretes do racionalismo, servindo
como ferramenta para explicar a racionalidade do real (a razão, por iluminar o real,
percebe as relações, conexões ou interdependência entre todas as coisas) em termos da
relação de causa e efeito, estabelece assim, um vínculo causal entre tudo o que
acontece por meio de encadeamentos de raciocínios, buscando justificação por meio da
razão.
Segundo Hume (2004), a causalidade desenvolve-se por meio de “repetição e
regularidade em nossa experiência, constata-se uma conjunção constante entre
fenômenos que, por força do hábito, acabamos por projetar na realidade, tratando-a
em algo existente” (IEH, 5,2). Ao analisar o exemplo das bolas de bilhar utilizado por
Hume, tudo o que se observa é, apenas o movimento das bolas de bilhar em uma
mesa, tudo o que vê é o impacto do taco sobre a primeira bola e, por sua vez, o
impacto da primeira bola sobre a segunda, mas a “causalidade propriamente dita
não pode ser observada” (IEH, 5,2), ou seja, por mais minuciosa que seja nossa
investigação, nunca poderemos encontrar o efeito na suposta causa, mesmo porque
todo efeito é totalmente distinto de sua causa. Esse tipo de suposição ou inferência
não decorre apenas de um único caso, mas apenas depois de uma longa série de
experiências sobre qualquer gênero
dado, apoiado
por
nossa crença ,
fica-se
confiante em relação a um evento particular. Por isto a crença não é nada mais do
que o resultado de nossas impressões mais fortes e vivazes que se apresentam por
meio dos fenômenos. Assim, ela não possui nenhum aporte metafísico.
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Portanto, tudo o que a experiência revela, é uma conjunção constante entre
fenômenos, e não uma conexão necessária que chamamos de causalidade. Nesse sentido, o
ceticismo presente em Hume torna-se evidente, sendo necessário abordá-lo com maior
profundidade.
2 UMA BREVE HISTÓRIA DOS CETICISMOS PIRRÔNICO E ACADÊMICO
Mas afinal o que é ceticismo? Entende-se por ceticismo toda a capacidade de
contrastar
as
representações
fenomênicas
e
intelectuais
sobre
quaisquer
circunstâncias, a fim de obter equipolência mediante os objetos dados, ou seja, para
todo argumento existe outro com o mesmo peso, força, vivacidade. Assim, o princípio
primordial do cético é contrapor a toda preposição outra equivalente, com a finalidade de
obter a suspensão do juízo.
O ceticismo acadêmico, como o próprio nome sugere, tem suas raízes
fundamentadas na Velha Academia fundada por Platão, ou seja, surge num período
“compreendido como deteriorização das doutrinas platônicas, bem como das ideias
sistematizadas pelo seu fundador” (SMITH, 1995). A Nova Academia, termo o qual,
é mencionado na história da filosofia, teve como representantes máximos dois
grandes filósofos céticos da Antiguidade: em um primeiro momento conta com a
figura
imponente
de
Arcesilas,
seu
fundador.
Arcesilas
possuía
excelentes
qualidades intelectuais, pois sempre conseguia obter grandes êxitos em suas
críticas, solapando o raciocínio de seus interlocutores. O filósofo cético desenvolvera
uma nova forma de pensamento em relação ao conhecimento e verdade, onde
sempre argumentava no sentido de que não se deve “afirmar ou negar opiniões com
relação à existência e inexistência das coisas e da realidade, e que na falta de
assentimento, o mais adequado é suspender o juízo (epoké)” (SMITH, 1995).
Justamente por adotar essa posição Arcesilas foi extremamente criticado por
Crisipo, o Estóico. As críticas iniciais possibilitaram a Arcesilas desenvolver uma
nova posição baseada nos princípios céticos, com a elaboração do critério da
razoabilidade (eúlogon). Dessa forma, Arcesilas entendia que, mesmo sendo um
cético, poderia posicionar alguma opinião (justificação) em relação às coisas referentes
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ao fenômeno sem negar ou afirmar algo a respeito.
Com Carnéades, o ceticismo acadêmico ganhou ares mais refinados, isto é,
Carnéades se preocupara mais com o desenvolvimento da ação e com o critério de
conduta de nossa vida. A representação, segundo ele, tem uma relação constante
com o objeto de onde supostamente ela proviria e outra com o sujeito que a
percebe, como por exemplo: “se não se pode saber de onde supostamente o objeto
provém nem afirmar ou negar sua existência, por outro lado, sabe-se como ele
aparece, sem que desta forma possa ser dito algo a respeito de sua realidade. Por
conseguinte, não negamos nem afirmamos a realidade das coisas, e podemos dizer
apenas o que percebemos por nosso ponto de vista subjetivo” (SMITH, 1995).
O filósofo Carnéades, desenvolve então, uma nova maneira de falar sobre as
coisas sem que com isso pudesse dar qualquer assentimento à realidade mesma
dela. Ele propõe então, a teoria do provável, como forma de representação da ação.
Etimologicamente a palavra provável, vem do Latim probare, isto é, aprovar, aceitar, que por
sua vez, é uma tradução do grego peithô que significa persuadir. Em outras palavras, é uma
teoria sobre a nossa aceitação em relação a certas representações. Nas palavras do próprio
Carnéades3, “se essa probabilidade implicaria uma crença ou não deixo em aberto, mas
seguindo a prática cética darei pelo menos um argumento para cada lado” (SMITH,
1995).
Portanto, a linha de interpretação feita até o momento, pode-se dizer que
quando Carnéades mencionou que a verdade absoluta é inapreensível não se trata
de dogmatismo negativo conforme muitos apontam. O cético acadêmico admite um
meio-termo entre a certeza inacessível e incerteza absoluta. È sobre estes dois
pontos vista que reside o pensamento tanto do cético acadêmico como também do
pirrônico. Trata-se de uma forma de manifestação cética, isto é, para cada
argumento existe outro com a mesma força (eles são equipotentes) e, na falta de
bases racionais para decidir entre um e outro, opta-se pela suspensão dos juízos, no
caso dos céticos
pirrônicos (como será exposto
mais à frente). No caso dos
acadêmicos, considera-se qual a razoabilidade ou probabilidade de cada um.
O ceticismo pirrônico38, por sua vez, tem início com o filósofo Pirro de Elis (365-275
3838
Ver Hipotiposes Pirronicas
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a.C). Daí o nome de ceticismo pirrônico, isto é, aquele ceticismo que tem a sua inspiração
em Pirro e não em Sócrates ou Platão, como o ceticismo acadêmico. Com relação ao
filósofo fundador (Pirro), têm-se pouquíssimas referências, ou seja, apenas uma vaga ideia
de seu pensamento, oo qual antecipa alguns aspectos do ceticismo que foram traduzidos
nas obras de Sexto Empírico, sobretudo em suas Hypothyposes pirronianas.
A base fundamental do ceticismo pirrônico está alicerçada na originalidade de
Pirro, que recomendou uma dúvida sistemática sobre todas as coisas, distinguindo
entre a realidade e aquilo que aparece para nós (fenômenos). Pirro negou que a
realidade pudesse ser conhecida por nós e, segundo ele, não podemos conhecer a
natureza das coisas, mas apenas saber como elas aparecem para nós. O grande
filósofo cético se interessava mais pela felicidade do que pelos problemas do
conhecimento, ou seja, a recusa do conhecimento para ele era um meio de alcançar
a felicidade plena. Para ele a prática tinha valor superior a teoria, a maneira de viver
é mais importante do que o conhecimento da verdade. O pensamento filosófico
desenvolvido por Pirro tem como principal característica o método investigativo e
dubitativo das coisas, sobretudo da realidade, ou seja, para o cético as coisas são tais como
elas se apresentam (fenômeno). Uma das diretrizes do ceticismo pirrônico é não afirmar ou
negar nada do que ultrapasse o domínio da evidência empírica.O pirrônico é aquele que
tem a capacidade de alcançar a tranquilidade por meio de uma oposição de argumentos,
e, na falta de bases racionais para decidir qual argumento é o melhor devido às múltiplas
opiniões, o cético encontra -se num estado de indecisão, não lhe restando outra maneira a
não ser suspender o juízo.
Com a
morte
de
Pirro,
o
ceticismo
pirrônico
passou
por
diversas
transformações até a chegada de Enesidemo que, mesmo opondo-se aos
acadêmicos, conservou algumas características, dentre as quais: menos aplicação
prática e maior aplicação teórica, onde a preocupação com o conhecimento passou
para o primeiro plano e a tranquilidade, antes tão exaltada por Pirro, adquiriu um
caráter secundário. Conforme citado anteriormente, o que se conhece hoje do
ceticismo pirrônico, deve-se especialmente a Sexto Empírico, quem por meio de
suas obras, organizou e sistematizou todo o pirronismo grego. Sexto Empírico,
mesmo não tendo contribuições originais para o pirronismo, expôs com cuidado a
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doutrina de seus predecessores.
Para finalizar esta seção, expõe abaixo um quadro comparativo entre o
ceticismo acadêmico e pirrônico:
PIRRÔNICO
ACADÊMICO
Prático
Teórico
Investigativo
Dubit ativo
Equipolência
Viver de acordo com a natureza
Tranquilidade
Suspensão total dos Juízos
Prático
Teórico
Investigativo
Dubit ativo
Equipolência
Viver de acordo com a natureza
Tranquilidade
Suspensão parcial Juízos
Razoabilidade
Probabilidade
3 HUME ENTRE OS CETICISMOS PIRRÔNICO E ACADÊMICO
David Hume é considerado tradicionalmente como um filósofo cético, mas, ao
longo da história, vários autores preocuparam-se em elaborar ensaios na tentativa
de rejeitar a interpretação cética de sua filosofia, atribuindo a ela outras
classificações, dentre as quais a de naturalista: corrente filosófica que tem como
principal objetivo viver de acordo com as leis da natureza. O que não se pode admitir.
O propósito desta seção que é estabelecer argumentações que servirão como
subsídios para destacar o ceticismo em Hume e caracterizar, no interior da filosofia cética,
qual tipo de ceticismo melhor se adapta ao seu pensamento.
Após apresentar na Investigação (IEH), as origens dos diferentes tipos de
conhecimentos de que dispomos e as etapas nas quais eles se processam, Hume,
destina o último capítulo, precisamente, a seção XII, intitulada “Da filosofia
acadêmica ou cética”, para evidenciar os tipos de ceticismo, e em especial uma crítica ao
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ceticismo radical, denominado por ele de pirrônico. Mas não é só, como veremos nas
páginas finais deste trabalho, além da desconfiança patente que David Hume, manifesta
acerca do conhecimento empírico, ele estende essa desconfiança até mesmo ao poder da
razão.
Especificamente
abordar o ceticismo
no
terceiro
parágrafo
antecedente, o qual
da
teria
Investigação,
Hume
começa
a
sido uma espécie de ceticismo
bastante recomendada por Descartes. Lembremos que, para Descartes, a dúvida
universal instaurada na 1ª meditação não se restringia apenas às nossas opiniões,
mas também incidia em nossas próprias faculdades cognoscitivas. O ceticismo
antecedente ou radical proposto por Descartes consistia na projeção da dúvida
extrema sobre todas as ideias, para, depois, construir, por meio de uma cadeia de
raciocínios, deduzida de um princípio primitivo indubitável, todo o corpo do
conhecimento. Criticando a pretensão cartesiana, Hume diz o seguinte sobre
semelhante método: “contudo, não há semelhante princípio primitivo com
prerrogativa sobre os outros princípios evidentes em si mesmos e convincentes, isto
é, mesmo que houvesse um princípio primitivo não progrediria um passo além deste
princípio utilizando da mesma faculdade da qual se duvida. Portanto, se um ser humano
fosse tomado pela dúvida cartesiana, ficaria completamente incurável, por viver em uma
constante dúvida hiperbólica” (IEH, 12,2).
Hume (2004) destaca a impossibilidade de sustentação por meio desta posição,
utilizando-se de duas argumentações, conforme podem ser encontradas na Investigação
(IEH): primeiro, a tentativa de destruição da razão por meio de argumentos e
raciocínios, sendo, assim, autorrefutante, e a segunda consiste em mostrar que
o
ceticismo levado às últimas consequências, de certa maneira, aniquilaria a humanidade.
Com relação ao ceticismo sendo autorrefutante, Hume destaca: “pode parecer uma
tentativa muito estranha dos céticos destruir a razão por meio dos argumentos e do
raciocínio: no entanto é este o escopo de todas as suas inquirições e disputas” (IEH, 12, 2).
Em relação
ao
ceticismo
radical,
encontra -se
em
Hume
a
seguinte
argumentação: se o ceticismo radical fosse levado a sério, teria como consequência o
desaparecimento de toda a humanidade...
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[...] toda a vida humana teria de perecer, se os seus
de
maneira
universal
e
princípios prevalecessem
permanente. Cessaria imediatamente todo o discurso e toda a ação;
os homens ficarão em total letargia, até que as necessidades da
natureza, insatisfeitas, ponham fim a sua miserável existência (IE H, 12,
2).
O que Hume havia se proposto, até então, não era refutar o ceticismo pirrônico ou
radical, mas, sim, demonstrar sua invalidez na sociedade, diferentemente de outros
sistemas: “um copernicano ou ptolomaico pode, cada um argumentando a seu favor, falar
sobre seus específicos sistemas de astronomia, obtendo com êxito ouvintes constantes e
duráveis; já, por outro lado, o pirrônico encontraria dificuldade em introjetar sua filosofia,
fazendo com que a mesma tivesse influência constante em seu auditório” (HUME, 2004).
De acordo com o que foi dito acima, torna-se evidente que Hume não defende nenhum
tipo de ceticismo radical ou pirrônico. Mas isso não significa que Hume não tenha sido
cético. Pelo contrário, ele adota e recomenda o que chama de filosofia cética, no entanto,
que utiliza frequentemente argumentos céticos em suas obras.
Segundo Stroud (2008), não há dúvidas de que Hume, como um filósofo, acredita
que essas conclusões (céticas) negativas são corretas, pois elas apresentam uma
parte significativa de sua contribuição para a filosofia. Sendo assim, a recomendação de
Hume ao que chama de ceticismo, não é simplesmente uma recomendação, mesmo porque,
segundo ele, não são críveis na vida cotidiana, ou seja, as conclusões céticas para ele, não
servem como um conjunto de princípios para guiar nosso pensamento e conduta, pois a
“natureza emergirá a tempo, a fim de controlar nossos impulsos” (IEH, 12).
No Tratado, Hume (2001) reconhece que deve inevitavelmente “ceder à corrente
da natureza”. Esse estado de submissão é o que Hume chama de ceticismo mitigado, ou seja, a
combinação do pirronismo excessivo com as
inclinações naturais, onde o primeiro é
responsável pelo desenvolvimento de nossas dúvidas,proporcionando meios para não nos
fiarmos em tudo o que nos é apresentado por nossos sentidos ou, de igual modo, no que
nos é fornecido pela razão. O segundo aspecto refere-se a nossas inclinações naturais, e diz
respeito ao direcionamento de nossa vida cotidiana. Diante dessa óptica das inclinações
naturais, Hume diz que seguir as necessidades da natureza
não é o melhor para
maior parte da humanidade, pois os homens são naturalmente aptos a serem
afirmativos e dogmáticos em suas opiniões, lançando-se, muitas vezes precipitadamente, a
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erros e ilusões. Por isso, Hume pensa que uma pequena tintura de pirronismo poderia
abater o orgulho das pessoas e ajudá-las a alcançar um grau de dúvida, precaução e
modéstia, que em todo escrutínio e decisão deveriam sempre acompanhar um pensador
justo.
Para muitos intérpretes, quando Hume adota os princípios da natureza como nosso
guia, ele assume uma postura naturalista, mas, se nos livrarmos do imediatismo de
leituras preconcebidas e estabelecermos uma reflexão profunda,perceberemos que: “se
submetermos-nos às forças da natureza sob certas condições pode ser uma forma
de ceticismo” (Stroud, 2008). Sendo assim,concomitantemente, aproximaremos Hume de
alguns céticos antigos (pirrônicos), que encontraram uma maneira de viver livres de
perturbações ao seguirem suas inclinações naturais.
Segundo Hume (2004), “alguns dos céticos parecem ter pensado que poderiam
alcançar um estado feliz somente se não tivessem convicções ou crenças”. Todavia,
nosso filósofo pensava que ninguém poderia viver sem convicções ou crenças, mas, ao
mesmo tempo, via-se nesta velha tradição cética pelo menos em sua recomendação em face
do que é mais completamente natural. Por esta razão, Richard Popkin (1966, p.89) chama
Hume de pirrônico.
Hume, na verdade, defende um ceticismo moderado ou mitigado que, ao
mesmo tempo, poderia ser durável e útil, se o bom senso e a reflexão corrigissem até certo
ponto nossas dúvidas indiferenciadas, ou seja, a dúvida, com certo grau de prudência, deve
sempre acompanhar o homem que raciocina corretamente. Mas de que forma o ceticismo
mitigado se origina? A resposta a essa pergunta, trataremos de construí-la passo a passo a
fim de evitar precipitações e erros.
Tanto no Tratado como na Investigação, Hume sempre menciona que “as forças
naturais nos impedem de cairmos profundamente no ceticismo radical ou pirrônico”
porque “quaisquer dúvidas a que chegarmos” serão instáveis e produzirão somente “pasmo
e confusão momentânea”, mas, concomitantemente, explicita ele que, se não chegarmos
a estas dúvidas céticas, a solução não seria solução nenhuma. Por outras palavras,
Hume não nega o ceticismo, ele nos alerta para que não
fiquemos
inteiramente
convencidos da dúvida pirrônica, devido a sua impossibilidade de ser desenvolvida na
prática.
Hume
pensava
que
ninguém
poderia
viver sem convicções ou crenças, por isso recomendava que a única maneira de nos
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livrarmos das dúvidas excessivas estava no forte poder do instinto ou hábito.
Em conformidade com o que foi citado acima, Popkin (1966) nos diz o seguinte: “se
não podemos evitar a crença e o raciocínio humano porque julgamos que sejam tão naturais,
não precisamos então, refutá-los por meio de princípios céticos”. Ainda segundo o referido
autor, “aceitar a inevitabilidade de crenças e convicções seria meramente uma extensão
legítima do princípio pirrônico de viver de acordo com a natureza”.
Ainda em relação ao que Hume chama de “pirronismo” ou “ceticismo excessivo”,
o filósofo nos diz que chegar por um momento a esses resultados “instáveis e
inacreditáveis” pode, contudo, ser uma “coisa boa”, e que devemos primeiro “aceitar a
verdade desse ceticismo excessivo” para apreciar a força “real da natureza ou da
imaginação sobre a razão” (T, 221). Desta forma, o processo de seguir o raciocínio até
esse ceticismo excessivo pode, ele próprio, ter bons efeitos que não são alcançados de
outra maneira. Hume pensava que o “ceticismo excessivo” ou “pirrônico” poderia ser
uma etapa para alcançar um “ceticismo moderado” ou “mitigado”, sendo importante
ressaltar
que
esse
tipo
de
ceticismo,
segundo o que Hume entende, não é um conjunto de doutrinas e verdades,isto é, não é o
caso de que nunca possamos estar certos sobre alguma coisa, mas no máximo podemos
ter crenças razoáveis e prováveis.
instinto poderia proporcionar
Esse tipo de ceticismo, controlado pelo hábito ou
ataraxia (tranquilidade), busca constante dos céticos
antigos. Portanto, o cético mitigado ou moderado consiste naquele que mais se
identifica com a verdadeira filosofia e que se opõe contra a falsa e exacerbada filosofia
que trata de assuntos tão remotos e metafísicos, menciona ainda que os metafísicos
nada
mais
fazem
além
de
propor
problematizações que fogem da experiência concreta e da compreensão humana. Por
conseguinte, o cético, no sentido humeano, é aquele que sucumbe às ordens impostas
pela natureza, mas, por outro lado, continua a prescrever um ceticismo com relação ao
conhecimento
abstrato
e
metafísico,
cujo
conteúdo
foge completamente de seu
alcance.
Robert Fogelin (1983) defende que o ceticismo moderado de Hume seja
resultante de dois fatores causais: a dúvida radical pirrô nica e a propensão natural para
crer. Lívia Guimarães (1996) apresenta o ceticismo humeano como pirrônico extremado
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em relação à teoria e acadêmico mitigado quanto às ações. Malherbe(1992). por
outro, lado qualifica sua ciência, isto é, a ciência da natureza humana de dogmática na
vida comum e cética na filosofia. Por último, Peter Strawson (1985) afirma que Hume
teria adotado dois níveis de conhecimento em sua filosofia, a saber, o filosófico, que não
nos
oferece
segurança
contra
o
ceticismo,
e o pensamento empírico diário, no qual as pretensões do pensamento crítico são
superadas pela natureza.
De acordo com a leitura dos diversos intérpretes acima citados, torna-se clara a
recomendação da busca do ceticismo mitigado ou acadêmico feita por Hume, talvez por ser
ela a melhor ou única maneira de ser realizada naturalmente, ou seja, para que essa busca
possa surgir, não é necessário extraí-la da filosofia abstrusa. Sendo, portanto, a mais feliz da
condição humana, Hume não reluta em crer ou enunciar os fatos da natureza humana , de
que da sua concepção depende do melhor tipo de vida para o ser humano. Portanto, a
busca da filosofia cética é a melhor maneira de dar expressão adequada para todas as
tendências ou propensões naturais que constituem o ser humano, fazendo-nos
distanciar cada vez mais das pretensões vazias e incertas da razão.
Segundo Hume (2004), tudo aquilo que descobrimos por meio da razão e que
chamamos de conhecimento não é mais do que mera probabilidade. Por causa dessa
afirmativa, nosso filósofo, ao longo do tempo, foi fortemente atacado, sendo até chamado
de filósofo irracionalista, termo por nós considerado paradoxal. Mas, por qual motivo,
Hume nos diz que o conhecimento obtido pela razão não é mais do que mera probabilidade?
E
o
que
nosso
filósofo
entende
por
razão
no
contexto
dos
argumentos céticos?
Para Hume
(2004), a
razão
não
nos
fornece
subsídios
para
acessar o
conhecimento, mesmo apoiando-se nas regras das ciências demonstrativas, pois a mesma
mostra-se incapaz de formular conceitos concretos, e, mesmo levando o conhecimento
demonstrativo a um exame minucioso, não seria muito difícil descobrir que eles também
estão propensos aos erros e incertezas. Ainda segundo ele, nossa razão deve considerar-se
como uma espécie de causa, que é efeito da verdade, mas que frequentemente pode ser
impedido pela interrupção de outras causas, degenerando em probabilidade e esta pode
ser em maior ou menor grau.
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O fato de a razão, faculdade que o filósofo julga ser falível, não determinar
necessariamente que tenhamos
veracidade e fidelidade
absoluta em
nosso
conhecimento, possibilitando o surgimento de erros, faz com que, novamente, a
probabilidade seja introduzida. À medida que fazemos sucessivas inspeções em nosso
entendimento, ficamos inseguros de sua veracidade, resultante do enfraquecimento
lógico bem como a falta de evidência da crença.
Os fatos descritos anteriormente deixam claro que a razão rejeitada por Hume é a
razão dos raciocínios abstratos que fornecem deduções e conclusões inaceitáveis
para o senso comum. Dessa forma, e apenas dessa forma, podemos considerá-lo como
sendo um filósofo irracionalista. Um dos exemplos bastante utilizado por ele é o da
infinita divisibilidade da extensão, em que, segundo ele, a razão esquece os seus limites
e lança-se para deduções abstratas, atingindo resultados contraintuitivos. Se na vida
ordinária a infinita divisibilidade da extensão não nos causa repugnância, os raciocínios
profundos nos mostram que, partindo de premissas aceitas por todos, chegamos, no caso
em questão, a conclusões absurdas, mesmo que por uma cadeia de raciocínios
claros. Tal é o caso da divisibilidade ao infinito da extensão.
Como forma de contrastar a opinião dada por aqueles que defendem a
divisibilidade infinita da extensão, Hume, oferece outro argumento a favor da divisão finita
da extensão, mesmo porque, para nosso filósofo, o espaço não pode ser entendido
como infinitamente divisível devido
à capacidade limitada de nossas faculdades
mentais. Tudo o que consideramos como infinito parte das ideias que acrescentamos ao
objeto,
ou
seja,
a
ideia
de
infinitude
não
parte
do
pressuposto
da
objetividade dada pela inspeção de nosso raciocínio, pois o mesmo é impossibilitado de
demonstrar de forma concreta e, sim, parte de nossas próprias construções subjetivas.
Se não for contraditório dizer que uma extensão finita contém um
número infinito de partes; e vice -versa, possa ser dividida
infinitamente, também não é contraditório dizer que uma extensão
finita contém um número finito de partes e, que por sua vez, nenhuma
extensão finita pode ser dividida infinitamente (T, p.55).
Portanto, podemos concluir que se a ideia de divisão finita da extensão tem em sua
base a mesma equipolência da divisibilidade infinita extensão, então, vemos que a razão por
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si só esbarra na própria razão oferecendo dois tipos de raciocínios contraditórios. Ao
deparar-se com essa dificuldade em decidir qual raciocínio devesse tomar como fiável,
Hume, ao invés de suspender totalmente os juízos como proposto pelos céticos pirrônicos,
opta por considerar aquele que lhe é mais razoável e de provável aceitação. Assim,
assume uma postura cética acadêmica, segundo a qual, como vimos, o fato de manifestar
uma opinião não significa estar assentindo ou não sobre o objeto, mas apenas estar
considerando, mesmo que momentaneamente, aquele que apresenta menos dificuldade
para
o
entendimento
humano. Pois, segundo Hume (2001), “todos hão de concordar que as demonstrações
que são difíceis de serem compreendidas por causa de seu caráter abstrato não podem
ter dificuldades que as enfraqueçam, ou seja, se uma demonstração for correta, não
deve admitir nenhuma oposição e, se não o for, é nada além de um sofisma”. Por
conseguinte, tratar dessas questões por meio de objeções e resposta é o mesmo que
dizer que a razão pode emaranhar-se, em alguns casos, em um jogo de palavras sem
sentido,
os
quais,
em
sua
complexidade,
são, inclusive, usadas por alguns filósofos na tentativa de esconder sua debilidade.
Portanto, diante das argumentações propostas, podemos considerar nosso filósofo
com um cético acadêmico, mediante a postura apresentada em relação aos fatos descritos e
também pela sua recusa em aceitar na totalidade o ceticismo pirrônico, por considerá-lo
excessivo ou radical para ser aplicado na prática pelo ser humano.
CONSIDERAÇÃO FINAL
A elaboração deste artigo proporcionou o contato com diversas literaturas,
permitiu-nos ampliar nossos conhecimentos, sempre com o fim de divulgar o
pensamento e a postura do ceticismo de Hume, que ao longo da história
foi
combatido por muitos filósofos.
Portanto, podemos observar o ceticismo presente em Hume a partir do
momento em que ele considera a experiência como o único ponto de partida, e que não
ultrapassa o campo da observação dos fenômenos. Nesse sentido vale a pena lembrar que o
seu ceticismo não permeia apenas o campo da negação da realidade objetiva causal, mas
atua também em uma dura crítica com relação aos sentidos, às questões de fato e, ainda, às
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relação de ideias (campo em que a razão atua por excelência). Acreditamos, por isso, que
nele encontramos todas as características necessárias presentes em um filósofo para ser
considerado como cético.
Por meio das argumentações descritas no artigo, ficou evidenciado, no entanto, que
Hume é um filósofo cético acadêmico por considerar que o homem é incapaz de suspender
totalmente os juízos sobre as coisas, ao contrário do que sustenta o ceticismo pirrônico,
para o qual não poderíamos manter nenhum tipo de opinião, suspendendo, assim, todo
juízo. E no que se refere a sua postura naturalista, esta não seria nada mais do que uma
concepção inerente ao ser humano.
É evidente que mesmo com toda demonstração apresentada, este artigo é
incipiente diante de várias objeções que se possam ter referentes ao tema,
sobretudo devido à complexidade envolvida.
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