33° ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS GT 10: Cultura, Economia e Política Referencial e mediação na produção de políticas públicas para a cultura no Maranhão Autora: Eliana TAVARES DOS REIS/UFMA Email: [email protected] O presente paper foi produzido com base nos resultados preliminares de uma pesquisa em andamento que investiga os processos de afirmação de representações sociais em torno da noção de “cultura” e sua relação com a produção e condução de políticas públicas no Maranhão. Para tanto, o estudo se centra nos condicionantes históricos e sociais intervenientes na construção de sentidos compartilhados e disputados em torno da definição, produção e gestão da “cultura” no estado. Tendo em vista o lugar relativamente estabelecido que as “políticas públicas” ocupam na agenda de pesquisas das ciências humanas e sociais, bem como nos embates políticos e ideológicos contemporâneos, é preciso fazer algumas ressalvas e explicitar alguns parâmetros que, espera-se, justificam as escolhas analíticas que orientam o tratamento desta temática como elemento constituinte do objeto de estudo ora em questão. Isso porque a reflexão não se enquadra nas perspectivas mais usuais e normativas de análise das “políticas públicas” que, geralmente, desdobram-se em um ou mais das seguintes direções: observar os mecanismos de implementação de modelos de gestão com base em um ideal de sociedade; avaliar as estratégias mais ou menos eficazes privilegiadas para a operacionalização de políticas; apontar (reivindicar/denunciar) as áreas, esferas, setores, etc. priorizados ou não pelos investimentos públicos; discutir as fronteiras disciplinares, teóricas e conceituais que devem cercar o “objeto”. Evidentemente, não se pode desconsiderar os processos históricos (como o de afirmação do valor e da prática democráticos nos Estados Modernos, bem como de “atores políticos” que conquistam reconhecimento como representantes de direitos legítimos, pautados pela garantia e/ou gestão de demandas sociais legítimas) que interferiram na possibilidade de institucionalização desta subárea que toma “como objeto específico o estudo de programas governamentais, particularmente suas condições de emergência, seus mecanismos de operação e seus prováveis impactos sobre a ordem social e econômica” (ARRETCHE, 2003, p. 8). No entanto, o trabalho que segue não se inscreve diretamente no universo de discussões orientadas pela descrição de mecanismos formais acionados nos processos decisionais, ou de avaliação das temáticas e procedimentos adotados, ou de elaboração de diagnósticos apontando falhas e potencialidades de engenharia política, ou de tentativa de prescrição de alternativas mais eficientes. Nos termos colocados por Thoenig (1985), 1 “Uma política pública é um problema quando ela se situa em um contexto social específico, por relação a objetos de disputas, a populações, a estruturas. Ela constitui uma realidade objetiva, pois ela afeta indivíduos, grupos, organizações ou classes nas suas atitudes, nos seus interesses e nas suas situações. A ação governamental produz e engendra efeitos práticos. Aquelas podem se traduzir por seu impacto sobre valores materiais, mas também sobre os símbolos ou sobre as representações” (THOENIG, 1985, p. 12). Contudo, somente é possível entender os encaminhamentos administrativos na produção de bens e serviços específicos, assim como os seus impactos efetivos, inclusive em termos de representações – a conexão entre produtos operacionais e os efeitos de mudança societal (Thoenig, 2007, p.20) –, quando se entende o porquê de determinados aspectos serem celebrados na elaboração de uma agenda pública. E, para tanto, é preciso sair do domínio da gestão e buscar os condicionantes sociais que incidem sobre a escolha dos gestores e da sua ação política e administrativa. Desta forma, a política pública deixa de ser tomada apenas como processo e causa, e passa a ser considerada como efeito de processos históricos e sociais mais amplos que definem o espaço das questões e dos procedimentos possíveis e legítimos. Sawicki (1999) demonstrou a oposição entre matrizes de estudos do “pessoal político” na França e nos EUA, enfatizando os prejuízos de uma “divisão do trabalho científico que tem engendrado – por razões diferentes – a separação das pesquisas sobre a seleção dos homens políticos e aquelas sobre a formulação de políticas públicas” (p.163)1. Assim, defendendo o valor heurístico da convergência dessas abordagens, declara que “tudo se passa como se a partilha de tarefas tivesse finalmente ocultado a questão dos efeitos das propriedades sociais dos governantes – profissionais da política e funcionários – sobre os mecanismos de elaboração das decisões públicas” (Idem). Segue-se na direção de conjugar a investigação das características sociais dos agentes que ocuparam ou ocupam cargos políticos vinculados à gestão da “cultura” no 1 Tal como evidenciado para as análises dos “partidos políticos”, há comumente, conforme Sawicki (1997), uma fragmentação das dimensões de análise que acaba dificultando a apreensão da multiplicidade de processos sócio-políticos que estão em jogo. Nas suas palavras: “o estudo de seu recrutamento deveria se vincular à sociologia da socialização e da legitimação, aquela do seu funcionamento interno à sociologia das organizações e da mobilização, aquela de sua gênese à sociologia da mudança social, da institucionalização e da politização, etc.” (Idem, p. 6, tradução nossa). Assim, as ênfases recairiam ou na busca e inventário do “nascimento”, ou no “tipo de organização interna”, ou sua “ideologia” ou nas características sócio-profissionais dos seus protagonistas. Por um lado, se teria a tradição francesa com o predomínio de estudos do tipo sociográficos, procurando as correlações entre determinadas instituições, organizações e os grupos sociais. Porém raramente levando em contar a “complexidade de mecanismos de representação” e o impacto de determinado tipo de recrutamento social sobre a elas (SAWICKI, 1997, p. 8). Por outro lado, a tradição anglo-saxônica, que seria mais centrada na análise de “circuitos de decisão e influência”, desenvolvidas com base em “problemáticas elitistas ou poliárquicas” (Idem). 2 Maranhão (confrontando-as com aquelas propriedades detidas por outros porta-vozes desta dimensão) com o estudo das representações sociais compartilhadas e por eles mesmos edificadas nas suas dinâmicas de afirmação e de lutas pelos sentidos de “cultura”. Com efeito, observa-se que o procedimento analítico mais apropriado contempla no mínimo três momentos significativos e indissociados do exame da produção e execução de políticas: 1) atenta-se para as condições históricas e sociais que favorecem a objetivação de determinadas problemáticas sociais e da autoridade dos seus porta-vozes (agentes que, por serem os responsáveis pela fabricação da problemática, constituem-se igualmente como “aptos” a agir sobre elas); 2) procura-se os fatores institucionais que interferem nas tomadas de decisão políticas propriamente ditas, levando em conta as estratégias de negociação, seleção e implementação de políticas compatíveis com os interesses proclamados e perseguidos por uma dada administração; e, finalmente, 3) examina-se os efeitos sociais que tais políticas provocam, graças, especialmente e novamente, às interpretações oferecidas por agentes interessados (mesmo que apenas “simbolicamente”) em defini-las e avaliá-las conforme as suas disposições, posições e posicionamentos. Como expressou Thoenig (2007, p.22), “a organização pública não detém a priori o monopólio de sua definição”, ela depende de como: “Agrupamentos mais ou menos voláteis expressam opiniões não convergentes a respeito, selecionam aqueles que para eles fazem sentido, julgam, avaliam mais ou menos espontaneamente que impactos societais específicos constituem um sucesso ou um fracasso e se podem ser atribuídos a uma política específica endossada por uma instituição pública específica” (idem). Deve-se sublinhar a importância proporcional e a associação entre os referidos momentos que não necessariamente obedecem a uma ordem cronológica. Pelo contrário, uma das principais dificuldades é justamente de estabelecer “o quê gera o quê” (o que não significa dizer que não é possível apontar o princípio gerador de práticas). Para o estudo em pauta, visa-se sugerir pistas da dinâmica de construção de objetos que devem ser ou são alvo de políticas. Ou seja, procura-se apreender o trabalho social mobilizado, sobretudo por agentes especializados que, acionando suas “competências”, identificam, definem, disputam definições, contribuem para o reconhecimento e legitimidade (realidade) de problemas sociais passíveis de serem consagrados como problemas políticos. Trata-se de levar em conta o trabalho de evocação, de enunciação e prescrição de determinadas “problemáticas” operado pelos agentes autorizados a fazê-lo, bem como 3 dos mecanismos que garante a imposição das mesmas no âmbito dos “debates públicos”, levando à sua “consagração estatal” (LENOIR, 1998). E, da mesma maneira, está entre os objetivos de uma investigação mais atenta acerca da gênese social e política das agendas das políticas públicas para a cultura no Maranhão, analisar, como propõem Collovald e Gaïti (1991, p.13), referindo-se ao estudo de Damamme (1987) e Thoenig (1985), “como se opera a cristalização das idéias do air du temps contribuindo para a imbricação das políticas locais das autoridades locais e das políticas locais do Estado”. Para o estudo dos porta-vozes da cultura no Maranhão, são, então, apreendidas, numa perspectiva relacional, as práticas e as concepções ativadas, bem como as bases do reconhecimento conquistado. Para tanto, por um lado, são examinados os repertórios de mobilização, os espaços de inserção e os perfis sociais dos agentes e, por outro lado, seus investimentos e estratégias no sentido de ocupar posições de destaque nos domínios de produção cultural e política. Focalizando os “porta-vozes”, focaliza-se “uma voz autorizada” que “fala em nome” (e luta pela conservação ou subversão) de outras posições e posicionamentos, aquele que detém o “cetro” para dizer o que é a “cultura”. É preciso, pois, tratá-los como pertencentes a um “(...) sistema de relações objetivas no qual as posições e as tomadas de posição se definem relacionalmente e que domina ainda as lutas que visam transformá-lo” (BOURDIEU, 1998, p.175). Procura-se detectar os pontos nodais de disputa pela afirmação das formas legítimas de conceber e promover uma relação com o mundo social, que desvelam processos mais gerais de objetivação de modalidades legítimas de expressão do “cultural” enquanto construção de uma relação com o mundo que, de uma forma ou de outra, acabam se refletindo nos debates e negociações de políticas. Tendo em vista a proposta de estudo em questão, as noções de referencial e de mediação de Jobert (1995) e Muller (1995) revelam-se particularmente procedentes. A primeira informa justamente o espaço de sentidos que permitem captar o mundo, as visões e di-visões do mundo social construídas na prática de grupos sociais portadores de determinadas características, que atuam e posicionam-se num dado campo de relações de força (ou de relações de poder que são, por sua vez, mediadas por sentidos compartilhados). No que tange ao trabalho de mediação, esse diz respeito ao processo de produção de conhecimento e de produção de normas. Deste modo, aos mediadores cabe o trabalho de decodificação do mundo (descrição de como ele é) e de recodificação do 4 mundo (prescrição de como deve ser), apontado as ações necessárias para a sua “melhoria” ou “transformação”. As duas noções são inseparáveis, pois o referencial é obra de indivíduos ou grupos, responsáveis (não necessariamente de forma consciente ou cínica) pela imposição da “verdade” do momento ou por sua modificação. É a matriz de referência que fundamenta as variadas modalidades de intervenções políticas de diversos atores, decorrente de mecanismos complexos de invenção ou reinvenção das problemáticas legítimas e dos seus porta-vozes. A mola propulsora de políticas públicas reside nas ações e reações, atrações e repulsas, escolhas e exclusões daqueles e entre aqueles (os mediadores), inseridos em contextos e domínios distintos. Há um processo de objetivação e institucionalização decorrente desses movimentos em que os mediadores logram o lugar de “heróis/arautos do inelutável”, nos termos de Muller (1995, p.161), em um determinado contexto, sob determinadas condições e interesses sociais e particulares em jogo. Quer dizer, o “inelutável” está sempre em disputa e, portanto, é passível de ser modificado, substituído, redefinido, seja numa dinâmica quase imperceptível, seja de forma brusca numa situação de crise e mudança da matriz de referência, seja num nível localizado, seja numa transformação mais global. A atuação dos mediadores também se objetiva com vistas à circunscrição das fronteiras de um lugar “singular” de inscrição, contribuindo para a afirmação do que lhe é ou deve ser “específico”, de como pronunciá-lo, de como integrá-lo. A análise da delimitação dessas fronteiras explicita a posição de um domínio social em relação aos demais, sendo possível cercar as posições que os agentes desfrutam conforme os recursos detidos, as aproximações e as distâncias de uns em relação aos outros, bem como as questões relevantes das quais devem se ocupar. Entretanto, foi imprescindível verificar, por um lado, as cadeias de interdependências constituídas entre os lugares e os agentes que se posicionam, descrevem e prescrevem a “realidade” das “expressões” e políticas culturais no Maranhão e, por outro lado, a multidimensionalidade de princípios acionada nas estratégias de afirmação e nos repertórios de mobilização2. 2 Tal perspectiva de análise das práticas de mediação se aproxima de estudo relativos à mediação política e à mediação cultural. Considerando tanto a especialização no papel de intermediação entre localidades e centros da vida política nacional e de trânsito entre domínios (CORADINI, 1998a, GRILL, 2008) quanto de investigações das lógicas levadas a cabo por agentes detentores de determinados tipos de capitais e 5 Neste caso, cabe enfatizar que a multiplicidade de recursos, lógicas e estratégias se traduzem na multiplicidade de posições desfrutadas pelos agentes. Esta é produto e produtora de ligações que eles estabelecem no decorrer dos seus itinerários, uma das principais cauções do reconhecimento das “habilidades” e “competências” detidas3. Portanto, pode-se sustentar a relevância heurística da noção de redes para a reflexão em, no mínimo, quatro direções ou dimensões possíveis de análise: 1) como articulação em torno de lugares (lieux ) – instituições, organizações, setores, domínios, etc. – nos quais os agentes se inscrevem e configuram um ambiente (milieu) de afinidades variadas (PROCHASSON, 1993); 2) como o próprio nexo de interdependência entre setores sociais, estabelecido a partir dos múltiplos pertencimentos dos agentes que lhes exigem constantemente a ponderação sobre suas tomadas de posição (SAWICKI, 1997); 3) como capital de relações sociais acumulado a partir das ligações mais ou menos institucionalizadas entre agentes “dotados de propriedades comuns (passíveis de serem percebidas pelo observador, pelos outros ou por eles mesmos), mas também unidos por ligações permanentes e úteis” (BOURDIEU, 1998, p. 67); 4) e, finalmente, como relações diádicas, que são os vínculos horizontais ou verticais estabelecidos voluntariamente ou por obrigação entre duas pessoas de status próximo ou diferente, fundados em princípios de reciprocidade e que atuam nas trocas e nos deslocamentos operados pelos agentes (LANDÉ, 1977). Tendo em vista a fraca objetivação das esferas sociais, a possibilidade de maximização das conexões criadas e o trânsito social decorrente de tais laços são potencializados pelo ineficaz jogo das jurisdições internas aos domínios sociais4. Por tratar-se de um estudo em fase inicial, a gama de materiais reunida para a análise das referidas dimensões e diretrizes é heterogênea e os resultados aqui apresentados são parciais, contudo, possibilitam pontuar algumas pistas que serão, posteriormente, investigadas com maior cuidado. Para o momento, foram utilizadas, basicamente, seis tipos de fontes, a saber: 1) o documento “Perfil Cultural e Artístico do reconhecimentos sociais que garantem sua multiposicionalidade e respaldam seu papel de mediador/intérprete cultural (SEIDL, 2007, CORADINI, 1998b). 3 Sublinha-se que não se trata de relacionar o papel de “mediador” ou “porta-voz” à mera posse de recursos de “competência técnica”. Para uma problematização dos usos e importações da noção de expertise e da atual consagração dos chamados “novos militantismos” em detrimento do que seriam os “velhos”, “clássicos” ou “tradicionais” formas de militantismos políticos, ver REIS e GRILL (2008). 4 Ver CORADINI (1995), ANJOS (2002), PÉCAUT (1990), REIS (2008), REIS E GRILL (2008), SEIDL (2007). 6 Maranhão”5; 2) o livro “Memórias de Velhos. Depoimentos. Memória oral da cultura popular maranhense”; 3) o “Plano Estadual da Cultura do Maranhão” (2007 a 2010); 4) dissertações de mestrado sobre os temas “patrimônio” e “políticas públicas”; 5) dez entrevistas em profundidade realizadas com agentes com perfis sociais e itinerários profissionais e políticos considerados representativos do universo empírico até então explorado6; 6) e, um conjunto de fontes de dados variadas, tais como, livros de memórias, repertórios biográficos, currículos lattes, entre outras. O tratamento do material é feito ao longo de três seções cuja divisão e o ordenamento foram definidos em consonância com os períodos sucessivos das administrações governamentais – mormente a partir da primeira gestão de Roseana Sarney (então do Partido da Frente Liberal/PFL, atualmente do Partido do Movimento Democrático Brasileiro/PMDB) no governo do estado (1995-1998), até o governo do “pedetista” Jackson Lago (2007-2009) – e suas principais ênfases no tocante aos investimentos ou argumentos na defesa de “experiências”, “projetos”, “programas”, enfim, prioridades para as políticas de cultura. Para um melhor acompanhamento das idéias desenvolvidas no texto, cabe situar, de modo muito sintético, os governos e os órgãos de cultura correspondentes no Maranhão. Foi durante o governo de Eugênio Barros (1952-1956) que se instituiu o Departamento de Cultura da Secretaria de Estado dos Negócios de Educação e Cultura (1953), primeiro órgão estadual de cultura no estado. Sob a administração de José Sarney (1966-1971) foi criado o Conselho Estadual de Cultura (1967), que se transformou num órgão da Administração Superior da Fundação Cultural do Maranhão (1971) criado pelo então governador Pedro Neiva de Santana (1971-1975). Durante o governo de João Castelo Ribeiro Gonçalves (1979-1982), a Fundação Cultural foi transformada em autarquia, constituindo-se em Instituto Maranhense de Cultura (1981). Na sequência do mesmo ano de 1981, fora instituído o Sistema Estadual de Cultura e criada a Secretaria Estadual de Cultura do Maranhão: “com a finalidade de desenvolver e 5 O “Perfil Cultural e Artístico do Maranhão”, de 2006, foi publicado em CD-ROM e está acessível no sítio http://www.perfilcultural.com.br/. Fomentado pela Companhia Vale do Rio Doce e a Associação de Apoio à Música e à arte no Maranhão (AMARTE), as pesquisas aí reunidas foram realizadas por “consultores convidados e profissionais de reconhecida capacidade e experiência, especializados em diversas áreas objeto de pesquisa”. Dentre esses “consultores”, agentes que já ocuparam ou ocupam cargos na administração pública ou participam de instâncias vinculados ao debate e promoção de políticas na área de “cultura”, além disso, dedicam-se a escrever sobre questões concernentes como “produtores de cultura” ou de um ponto de vista “acadêmico”. 6 As entrevistas foram realizadas pelas estagiárias de graduação Clícia Gomes e Seane Melo. 7 apoiar a Cultura, bem como assessorar o Governador na formulação e execução da política cultural do Estado” (SECMA, 1995, p.2, Apud CARDOSO, 2008, p. 32). Entretanto, o Sistema foi extinto e a SECMA deu lugar a Gerência Adjunta de Cultura, órgão ligado à Gerência de Desenvolvimento Humano (que substituiu a Secretaria de Estado da Educação), na reforma administrativa realizada no final de 1998, pela governadora Roseana Sarney (1995-2002). Em seguida, em 1999, com a justificativa de “recuperação do status anterior, com as prerrogativas administrativa, orçamentária e financeira” (FUNCMA, 1999, s.p. Apud CARDOSO, 2008, p. 33), a Gerência Adjunta de Cultura passou a ser Fundação Cultural do Maranhão. Porém, em 2004, durante o governo de José Reinaldo Carneiro Tavares (2002-2006), a Gerência foi transformada novamente em Secretaria de Estado do Maranhão, sendo que, em 2006, a sigla SESC foi substituída para SECMA, que não foi alterada durante o governo de Jackson Lago (20072009). Ao longo desses governos, os agentes alocados nos principais cargos de comando foram recrutados, basicamente, entre aqueles notabilizados (antes, durante e/ou após a ocupação desses postos) pela produção de bens culturais dos mais variados tipos: música, teatro, poesia, literatura, etc. Observou-se que não há muitas discrepâncias quanto aos perfis sociais dos “porta-vozes” da “cultura”, bem como das equipes dos diferentes governos. Outro elemento de homogeneização constatado refere-se à regularidade dos mecanismos ativados para as reconstituições históricas oferecida pelos mediadores culturais que se dispõem a definir alguma “expressão” da “cultura maranhense”, ou “dos maranhenses”, ou a “explicar o Maranhão”, etc. Estas comumente prevêem, no mínimo, três fases de desdobramento da dinâmica regional determinadas, especialmente, pelo desempenho econômico do estado. Haveria então os momentos de “auge”, de “decadência” e de tentativas de “recuperação” de uma posição de destaque outrora possuída7. A lógica cronológica parece combinar três estratégias (não necessariamente conscientes) de recontar o passado ou a trajetória do estado, dos seus eventos, feitos e personagens, a saber: 1) a busca de reconhecimento externo dos símbolos regionais (edificados para tanto) mediante a explicitação e certificação desses elementos distintivos apropriados ao e no mercado mais geral de bens regionais legítimos; 2) no mesmo golpe, 7 Tais aspectos vão ao encontro das análises de Alfredo Wagner Berno de Almeida (1983) acerca da cristalização de uma ideologia da decadência na produção e representação dos intelectuais no Maranhão. 8 forjam-se as bases para a constante reinvenção e reconhecimento interno de um conjunto coerente e valorizante de aspectos que constituem a singularidade regional para os “nativos”, interpelando pertencimentos e movendo o trabalho coletivo de construção de uma “memória” e de uma “identidade”; 3) finalmente, a pouca ousadia subversiva frente às reconstituições históricas consagradas talvez seja decorrente da necessidade de uma inscrição segura dos porta-vozes, autorizados a descrever e prescrever a história, em uma genealogia de intérpretes. Sobre este último ponto, cabe mencionar as dificuldades em romper com uma doxa e os riscos do reconhecimento social e dos pertencimentos identitários que correm os agentes heréticos8. Neste caso, pode-se mencionar a recorrente evocação do chamado “período colonial”, por volta de 1612 e 1831, particularmente, a importância da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará Maranhão como a gênese cultural e, sobretudo, para estabelecer a preponderância da influência européia no estado. Conforme Jomar Moraes9 (2006), é devido a esse período de prosperidade econômica que as “famílias enriquecidas na lavoura [passam a] constituírem uma requintada aristocracia rural [...] passam a morar com luxo e bom gosto, visitam os grandes centros culturais europeus, aonde vão em viagens de negócios, a passeio ou para rever os filhos que lá estudam” e, a capital São Luís, afirma-se como “centro cultural” (MORAES, 2006). Destacando especialmente o papel dos padres jesuítas para esse “início letrado das manifestações culturais”, os porta-vozes da e produtores de cultura apontam tal cenário como o de emergência, por exemplo, do “primeiro ciclo literário propriamente maranhense”, a partir do qual “além das vocações para a poesia e para a prosa literária, surgem historiadores, biógrafos, ensaístas e pesquisadores do passado” (idem). Também seria esse o berço do “gosto pela arte musical” e dos empreendimentos inaugurais nas primeiras encenações teatrais. 8 Pode-se pensar nas “condições de felicidade” que a preservação de determinados consensos implica. Satisfação (pela simples aceitação) que, objetiva e subjetivamente, é garantida pelo desconhecimento das condições que lhe dá existência, “a qual, na medida em que define a relação dóxica com os rituais sociais, constitui a condição mais imperativa de sua realização eficaz” (BOURDIEU, 1996, p. 95). 9 Jomar Moraes é advogado e membro da Academia Maranhense de Letras, do qual foi responsável pela pesquisa e textos da publicação “perfis acadêmicos”. Neste, se autodefine como “Pesquisador, ensaísta, cronista, crítico e historiador da literatura maranhense”. Ocupou uma série de cargos administrativos como o de diretor do Serviço de Administração da Secretaria de Educação e Cultura (1970-71); diretor da Biblioteca Pública do Estado (1971-73); diretor do Departamento de Assuntos Culturais da Fundação Cultural do Maranhão (1973-75); diretor do serviço de Imprensa e Obras Gráficas do Estado – Sioge (1975-80); diretor do Departamento de Assuntos Culturais da Universidade Federal do Maranhão (198185); secretário da Cultura do Estado do Maranhão (1985-87). 9 Segundo Josias Sobrinho10 (2006): “A história iniciada sob influência dos catequistas portugueses com seus benditos, ladainhas e teatro musicado, que teve seus primeiros mestres de banda vindos diretamente da corte, trazendo consigo a música produzida por lá, foi aqui se desenvolvendo aos poucos, constituindo uma identidade cultural própria, ao mesclar gentes e costumes. O circuito de óperas européias, a que o público da província maranhense pôde ter acesso durante os anos de ouro da economia do algodão, só favoreceu o desejo de freqüentar as praças de Lisboa e Paris”. (SOBRINHO, 2006). E, com base nas informações fornecidas por Tácito Borralho11 (2006), pode-se grifar a publicação, em1771, de “um alvará que recomendava que se instalassem na Colônia teatros públicos”; o início, em 1776, da construção do primeiro teatro de São Luís, efetivada somente1815, sendo que o primeiro espetáculo teria sido encenado somente em 1816 “em comemoração à Independência de Portugal” (BORRALHO, 2006). Como será evidenciado nas justificações para a valorização da “arquitetura colonial”, analisada com mais atenção subsequentemente, os três agentes citados comungam com a idéia de que a decadência econômica se refletiu diretamente na produção cultural. Recolocando o declínio de um período áureo, eles reafirmam a necessidade de sua recuperação e, por este intermédio, delineiam as condições favoráveis para sobrevalorizar iniciativas representativas das suas próprias inserções políticas e culturais no período recente. Quando passam a descrever a fase posterior à decadência, o principal elemento que parece demarcá-la e singularizá-la é a afirmação de um discurso de valorização da “cultura popular” que, não por acaso, passa a ser mais contundente a partir das décadas de 1960 e 1970, coincidindo justamente com a entrada em cena desses e outros protagonistas. “Riqueza”, “interculturalidade”, “diversidade”, “miscigenação” entre outras, são noções que se definem pela valorização do “popular” (festas, religiões, costumes, folclore cultivado, sobretudo, por descendentes de “negros” e “índios”). 10 Há referência à biografia de Josias Sobrinho na sequencia do texto. Tácito Borralho é teatrólogo, diretor de teatro e professor mestre da UFMA na área de artes cênicas. Entre as suas inserções, cabe mencionar a fundação do Laboratório de Expressões Artísticas, que teria sido “um movimento político camuflado, era artístico politizado” (entrevista com Tácito Borralho). Foi professor de história, geografia, francês, português, filosofia no ensino médio. Professor de pós-graduação na especialização nas técnicas de animação de bonecos de varas gigantes. Foi coordenador de Ação e Difusão Cultural na Secretaria Estadual de Cultura de (1983-1990); presidente da Federação Nacional de Teatro Amador; da Confederação Nacional de Teatro Amador, da Associação Brasileira de Teatro de Bonecos e do Centro Unima Brasil. Foi diretor do Centro de Artes Cênicas do Maranhão (1990-2003), diretor do Teatro João do Vale de (1997-1999), entre outras coisas. 11 10 De todos os modos, pode-se pensar na autoria dos agentes sobre a “realidade” que constroem, nos termos colocados por Pierre Bourdieu (1989), “O auctor, mesmo quando só diz com autoridade aquilo que é, mesmo quando se limita a enunciar o ser, produz uma mudança no ser: ao dizer as coisas com autoridade, quer dizer, à vista de todos e em nome de todos, publicamente e oficialmente, ele subtrai-as ao arbitrário, sanciona-as, santificaas, consagra-as, fazendo-as existir como dignas de existir, como conforme s à natureza das coisas, ‘naturais’” (BOURDIEU, 1989, p. 114). A questão é observar esse trabalho de construção conduzido por agentes (portavozes, mediadores, autores) que identificam, selecionam, registram, classificam e, dessa maneira, definem o que existe e deve ser considerado como padrão ou modelo a ser recuperado, imitado, louvado, conservado, etc. A afirmação de um “patrimônio cultural” “Se São Luís herdou do século XIX, no campo intelectual o honroso epíteto de Atenas Brasileira devido ao destaque alcançado a nível nacional de inúmeros intelectuais, no campo arquitetônico, a herança foi um conjunto de edificações em estilo colonial, que denotavam a imponência de um período de prosperidade material, com casarões e suas fachadas revestidas em azulejo” (SILVA, 2009, P. 63). O fragmento acima foi extraído de uma dissertação de mestrado defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais/UFMA sobre “a trajetória de preservação do centro histórico de São Luís”. Como é possível observar, este trabalho acompanha o discurso da decadência para estabelecer o momento inaugural de “desenvolvimento urbano, econômico e arquitetônico” e a posterior “degradação” do “tecido urbano do centro antigo” de São Luís cujo principal efeito teria sido a desqualificação das “construções coloniais” (p. 65). Ocorre que, posteriormente, por conta de uma série de posicionamentos e empreendimentos “intelectuais” e institucionais, tais “construções” passaram a ser apreciadas como bens marcados por um sentido de raridade (vestígios excepcionais de uma “época”) e de exemplaridade (manifestação de um padrão e de um estilo de vida valorizados). Um dos argumentos da decadência do centro histórico e, consequentemente, da necessidade de sua restauração, é que, com o “decréscimo do comércio” e a “saída das famílias abastadas” que se dispersaram em outros bairros, o antigo centro teria sido ocupado por “pessoas oriundas das camadas menos favorecidas” (p.66). Conjugar-se-ia a isso a confluência entre um discurso sanitarista em voga e, sobretudo a partir dos anos 1930, de um discurso do progresso, que levavam à desqualificação das moradias e da “arquitetura colonial”. O que teria interferido para que as “iniciativas do poder público 11 [fossem] orientadas para construção da moderna sede do Estado” (LOPES, 2008, p. 29, Apud SILVA, 2009, p. 68) e que investisse em uma “obra de remodelação e reforma urbanística da velha cidade” (Diário Oficial, de 01 de março de 1935, Apud SILVA, 2009, p. 69). Observa-se este ponto de vista, no final da década 1940, na citação abaixo: “São Luís, para aqueles que nela residem ou a visitam e conhecem outras capitais, nada mais representa que uma simples cidade tipicamente colonial. Com mais de três séculos de existência, em trabalhos árduos e contínuos, desde quando vivíamos sob o jugo de Portugal, até esta época de progresso de todas as espécies, nossa cidade em esterro de arquitetura, permanece ainda, (e não sabemos até quando), no mesmo estado de atrazo que caracteriza a arquitetura antiga (O GLOBO – SÃO LUÍS 13/07/1948, p. 4, Apud SILVA, 2009, p. 73). No entanto, existiam já discursos de intelectuais em defesa das “construções coloniais do passado” e cujo caráter laudatório da “arquitetura portuguesa” é enfatizado justamente pelos agentes e instâncias que tem sua existência vinculada à institucionalização de uma idéia de “patrimônio”. “Interessado, desde o início de suas atividades como pesquisador, pelos vestígios de nosso passado, Raimundo Lopes12 afirmaria, em 1937, que ‘a história dos fortes e outras antigalhas do Maranhão é interessantíssima; sobre ela escrevemos alguns artigos’” (SPHAN, 1937, p. 83, Apud SILVA, 2009, p. 78). “Em 1937, mostrando-se sintonizado com as iniciativas dos intelectuais e gestores da administração federal, Raimundo Lopes marca presença no primeiro número da Revista do SPHAN, no ano de sua criação, como o texto ‘A Natureza e os Monumentos Culturais’, onde traça um panorama das cidades históricas da época e defende a proteção aos sítios arqueológicos na Ilha de São Luís, os sambaquis,listando, ao final, dez requisitos gerais para a preservação (LOPES, 2004, p. 63-64, Apud SILVA, 2009, p. 79). A efetivação de políticas públicas direcionadas ao “conjunto arquitetônico” do atual “centro histórico” de São Luís ocorrera na década de 1970. Em 1979 foi realizado pelo governo do estado o Primeiro Encontro Nacional da Praia Grande (principal bairro, próximo ao porto, anteriormente centro comercial e residencial, atualmente centro histórico e cultural da capital). Tratava-se de “discutir o desenvolvimento urbano de São Luís”, visando “avaliar a proposta de revitalização do Centro Histórico de São Luís, elaborada pelo arquiteto John Gisiger” (SOUZA, 2002, p. 59, Apud SILVA, 2009, p. 92). O americano, arquiteto formado pela Cronell University dos EUA, havia catalogado e classificado os “monumentos históricos”. Então, juntamente com Luís Philipe Andrés e Ronald Almeida13, constituiu, a partir do Encontro, o grupo de trabalho 12 “Raimundo Lopes (1894-1941) é natural da cidade de Viana, no interior do estado do Maranhão. Sua formação acadêmica foi em Letras. Fez diversos estudos nas áreas de: história, sociologia e questões arqueológicas [...] foi um colaborador do órgão federal gestor do patrimônio, que a partir da década de 1940 com as diversas atuações de proteção a bens considerados patrimoniais, colabora para ser edificado um novo olhar das autoridades públicas locais” (SILVA, p. 78-79). 13 12 que produziu o chamado Projeto de Preservação e Revitalização do Centro Histórico de São Luís, “instituído a partir do Decreto n° 7.345 (16/11/1979), também conhecido como Projeto Praia Grande/Reviver” (AIRES, 2007, p. 151; Apud SILVA, 2009, p. 93). Luís Phelipe Carvalho de Castro Andrés, desde 1980, desempenha atividades que o credenciam a dizer o que é a “arquitetura” do Maranhão e como e porque esta se constitui num “patrimônio” cujo reconhecimento jurídico é apenas uma atestação. Com mestrado em Desenvolvimento Urbano (Centro de Conservação Integrada/CECI da Universidade Federal de Pernambuco, 2006), pertenceu ao Conselho Consultivo do IPHAN Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (desde 2000) e ao Conselho Nacional de Política Cultural do Ministério da Cultura (desde 2007). Também “é diretor (cargo comissionado sem vínculo empregatício) do Centro Vocacional Tecnológico Estaleiro Escola do Maranhão, vinculado à Universidade Virtual do Estado do Maranhão - UNIVIMA, atuando principalmente nos seguintes temas: preservação do patrimônio cultural, história da técnica/embarcações tradicionais”. Foi chefe do setor de Pesquisa e Documentação do Programa de Preservação e Revitalização do Centro Histórico São Luís (1980-1981); coordenador Administrativo do Programa Preservação e Revitalização do Centro Histórico São Luís (1983-1984); coordenador Geral do Programa de Preservação e Revitalização do Centro Histórico (1984-1989); membro do Conselho de Cultura do Estado do Maranhão (1989-1999); presidente do Conselho de Cultura do Estado do Maranhão (1992-1994); presidente do Conselho Estadual de Cultura do Maranhão (1993-1994), superintendente do Patrimônio Cultural do Estado do Maranhão (1996-2006). Até fevereiro de 2001, funcionário da Companhia Energética do Maranhão-CEMAR, trabalhando à disposição do Governo do Estado como Coordenador do Programa de Preservação e Revitalização do Centro Histórico de São Luís. A partir de 2001 ocupou cargos comissionados no âmbito da administração estadual sem vínculo empregatício. Coordenou o Programa de Preservação chamado, inicialmente de “Projeto Praia Grande” e depois “Projeto Reviver”. Em 1996 liderou a “equipe que produziu o relatório técnico São Luís – Patrimônio Mundial para apresentação do dossiê à UNESCO” (COSTA SILVA, 2009, P. 82). Afora alguns artigos, possui três livros publicados com os seguintes títulos: “Centro Histórico de São Luis. Patrimônio Mundial”; “Embarcações do Maranhão- Recuperação das Técnicas Construtivas Tradicionais Populares” e “Monumentos históricos do Maranhão”. No “Perfil Artístico e Cultural do Maranhão”, Andrés (2006) estabeleceu a gênese das construções arquitetônicas no Maranhão (século XIX) até a conquista do título de “Patrimônio Mundial da Humanidade”. Uma vez apresentado o cenário que certifica, ao mesmo tempo, a matéria prima e o resultado do seu trabalho, dedicou-se a retomar o histórico de preservação ou de proteção jurídica do “acervo arquitetônico e paisagístico a nível federal, estadual e municipal”. Aqui, a categoria “patrimônio” emerge vinculada às estratégias de tombamento levadas a cabo pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, a proteção estadual por Decreto. No nível municipal, é mencionado o Plano Diretor Urbanístico de 1992, que dividiu a “Zona de Preservação Histórica-ZPH e Zona de Preservação Ambiental”. O “patrimônio” oficialmente reconhecido como tal exige “uma política de preservação e revitalização, a fim de melhor estruturar essa área e promover o desenvolvimento da 13 cidade de São Luís”. Ter-se-ia, então, as condições favoráveis para a implementação do “Programa de Preservação e Revitalização do Centro Histórico de São Luís” que foi implementado. O “coroamento” desses investimentos teria sido, então, a conquista “justa” do título de São Luís como “Patrimônio Mundial da Humanidade”. Assim, a consagração jurídica e estatal, nacional e internacional, é acionada como caução, pois sanciona e santifica a “arquitetura” e a “paisagem” com o valor de “acervo” e de “patrimônio”. De 1979 à 1982, durante o governo de João Castelo, ocorreu a idealização do Projeto e o início das “intervenções urbanísticas no sítio histórico” e, durante o governo de Luís Alves Coelho Rocha (1983-87), “por ausência de recursos, foram interrompidas as obras” (ANDRÉS, idem, p. 86, Apud SILVA, 2009, p. 97). Por este motivo, os responsáveis pelo Projeto optaram por investir na realização de pesquisas14. Além de Luís Alves Coelho Rocha, no período15 em que o atual senador maranhense José Sarney foi presidente da república (1985-1990), o governo do Maranhão esteve sob a administração de outro aliado seu: Epitácio Cafeteira Afonso Pereira (1987-1990). Contando com verbas do Ministério da Cultura16 e da SECMA, neste momento foi retomado o “projeto de restauração” do “centro histórico” de São Luís. Em 1986 ocorrera o tombamento de uma área que abrangia e extrapolava a área tombada pelo governo federal em 1974. Também neste ano foi criada a Comissão do Patrimônio Histórico de São Luís, cuja atribuição seria de “analisar as políticas públicas para o Centro Histórico” (idem, p. 98). Neste período, sobretudo a partir de 1987, houve 14 Foram realizadas pesquisas tais como: “pesquisa socioeconômica da população residente n Centro Histórico; Projeto de Microfilmagem e Transcrição Paleográfica dos Livros da Câmara de São Luís dos séculos XVII, XVII e XIX, em convênio com o CNPq, sendo descobertos 166 volumes dos Livros de Câmara de São Luís (arquivos do Conselho Municipal) de 1646 a 1900, antes considerados perdidos; Projeto Embarcações do Maranhão, através do convênio FINEP/SEPLAN-MA, no intuito de recuperar técnicas de construção navais artesanais do Estado; Projeto Sítio do Físico, também através do convênio FINEP/SEPLAN-MA, visando garantir salvaguarda do conjunto de ruínas de arqueologia histórica” (ANDRÉS, 1998, Apud SILVA, 2009, p. 97). 15 Rival da “família Sarney”, Jackson Lago (PDT) era o então prefeito da capital (1982-1992). Mesmo tendo criado a Fundação de Cultura da Cidade visando “atender a população que exigia maiores investimentos da prefeitura na limpeza da cidade, na recuperação de prédios históricos e no apoio a manifestações populares” (CARDOSO, 2008, p. 96), não conseguiu rentabilizar a paternidade dos empreendimentos de (auto) consagração de um “patrimônio histórico”. 16 O Ministério da Cultura foi instituído durante o governo de José Sarney na Presidência da República: “Até então, a cultura era gerida em conjunto com a educação, pelo Ministério da Educação e Cultura. Segundo o decreto n° 91.144 a emergência do Ministério da Cultura obedecia à situação do Brasil à época, que não podia prescindir de uma ‘política nacional de cultura, condizente com os novos tempos e com o desenvolvimento já alcançado pelo país” (CARDOSO, 2008, p. 73). 14 “uma retomada dos investimentos no bairro da Praia grande, que foi inteiramente recuperado” (ANDRÉS, 1998, p. 88, Apud SILVA, 2009, p. 98). Por iniciativa do então governador, Epitácio Cafeteira Afonso Pereira, que visava imprimir uma “marca pessoal” ao “projeto de revitalização e preservação”, modificou-se o nome do “Projeto Praia Grande” para “Projeto Reviver”. O governo de Edison Lobão (1991-1994) “deu continuidade ao Programa de Obras”. Este percurso de investimentos foi maximizado na administração de Roseana Sarney (1995-1998), especialmente com o fortalecimento dos projetos que desencadearam a proposição da inclusão da cidade de São Luís na lista do Comitê do Patrimônio Mundial da UNESCO. Seu secretário de cultura à época era Eliezer Moreira Filho. Filho de um ex-deputado que ocupou vários cargos técnicos nacionais e locais (Piauí) relacionados à sua formação como Engenheiro Agrônomo, Eliezer Moreira Filho foi, em 1966, nomeado pelo governo estadual de José Sarney para chefiar a Superintendência do Desenvolvimento do Maranhão (Sudema). Em 1967 foi secretário estadual de Administração e também de Reforma Administrativa. Tendo sido ainda Chefe da Casa Civil em 1969, elegeu-se deputado estadual pela Arena em1970. Entre1975-77 assumiu a Superintendência de Melhoramentos de São Luís. Em 1977 e 1978 ocupou a presidência do Serviço de Planejamento da Secretaria de Modernização da Reforma Administrativa, em Brasília, e a coordenação de área da Secretaria de Planejamento (até 1982). Em 1979 filiou-se ao PDS e iniciou o curso de PósGraduação em Administração Pública na Fundação Getúlio Vargas, em Brasília, concluído em 1981. Foi nomeado coordenador de área do Programa Grande Carajás, de 1982 à1983; secretário de Indústria e Comércio no governo de Luís Rocha, em 1983; assumiu a Secretaria de Administração, em 1983, onde ficou até 1986, sendo que, desde 1985, filiado ao PFL. Elegeu-se deputado federal, em 1986, com o apoio de Roseana Sarney e contando com o fato de Sarney ser presidente (1985-1990). Com a instalação da Assembléia Nacional Constituinte, foi titular da Subcomissão dos Municípios e Regiões, da Comissão da Organização do Estado e suplente da Subcomissão da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária, da Comissão da Ordem Econômica. Em 1991 foi secretário-chefe da Casa Civil no governo de Edson Lobão e diretor administrativo do Banco do Estado do Maranhão de 1992 à 1994. Em 1995 tornou-se secretário estadual de Cultura do primeiro período do governo de Roseana, até 1998, quando assumiu a Secretaria de Estado de Articulação Política para trabalhar pela reeleição da governadora. Em 1999 participou da reforma administrativa que transformou as secretarias em gerências estaduais, tendo sido nomeado para a de Desenvolvimento Regional de Caxias, no interior do estado. (). Dentre os projetos de “Preservação e Revitalização do Centro Histórico de São Luís”, coordenado por Luís Phelipe Andrès, esteve o Projeto Viva Madre Deus (19971999), que vislumbraria a “valorização da cultura popular” mediante a reforma deste “bairro que reúne diversas manifestações das culturas populares em São Luís” (CARDOSO, 2008, p. 92). Próximo ao então “centro histórico”, a “estratégia de implementar a infra-estrutura do bairro” confluía coma a perspectiva de transformar a capital em “Patrimônio da Humanidade” (idem). Tal iniciativa compatibilizava-se com a relevância que “cultura popular” detinha e será reforçada na agenda pública, com a 15 gestão de Luís Henrique Bulcão na Secretaria de Cultura durante o segundo governo de Roseana Sarney. “O discurso baseado numa ‘cultura popular maranhense’ começou a ser engendrado ainda no primeiro mandato de Roseana Sarney, a partir da Coordenadoria de Ação e Difusão Cultural. Mas ganhou mais visibilidade e força quando o Secretário Eliezer Moreira (advogado) foi trocado, em 1998, por Luís Henrique de Nazaré Bulcão, ligado a grupos culturais do Bairro da Madre Deus. A partir daí, as ações da Secretaria de Estado da Cultura (transformada em Fundação Cultural do Maranhão em 1999) intensificaram-se [...]”. (CARDOSO, 2008, p. 24). Luis Henrique de Nazaré Bulcão nasceu em 1949 em São Luís do Maranhão, no bairro Madre Deus, localizado no centro da cidade e considerado um dos mais boêmios e “ricos” em termos de criação e manifestação cultural (são provenientes de lá produtores e porta-vozes da “cultura popular” do estado). Aposentado como Auditor da Receita Federal, é advogado, compositor, poeta e produtor cultural. Foi membro do grupo Unidos do Regional Tocado a Álcool (URTA), em 1975, é sócio-fundador da Companhia Barrica (1985), que se constitui do Boizinho Barrica, Bicho Terra e a Natalina da Paixão. Compôs uma série de canções para a Companhia e é autor de músicas de vários grupos carnavalescos maranhenses. Além de intérpretes locais, tem canções gravadas por artistas conhecidos nacionalmente, como Leci Brandão, Durval Lelis, Pathanca, Célia Maria e Alcione Nazareth. Foi secretário de Cultura durante o governo de Roseana Sarney (1998 a 2001), e em 2002, na gestão do governador José Reinaldo Tavares. Com a cassação do mandato de Jackson Lago e a posse de Roseana Sarney como governadora, Bulcão está novamente à frente da Secretaria de Cultura (desde 2009). Nesta fase, destaca-se, fundamentalmente, o papel do Centro de Cultura Domingos Vieira Filho, órgão subordinado à Superintendência de Cultura Popular do Maranhão da Secretaria de Estado da Cultura, e a Comissão Maranhense de Folclore. Agentes com outros perfis e domínios de inserção contribuem para a celebração do “patrimônio” como uma questão social relevante, como é o caso dos pesquisadores das ciências humanas e sociais que se debruçam sobre essa temática. No Maranhão, pode-se destacar pesquisas que vem sendo realizadas nas áreas de antropologia e história que combinam referenciais acadêmicos com discussões normativas que permitem aos agentes acumular recursos passíveis de serem reconvertidos para os domínios burocráticos e administrativos de gestão do “patrimônio cultural”. Há também que se mencionar a importância da atuação de agentes vinculados a órgão federais como o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional no sentido não somente da “preservação” e “proteção” do “patrimônio material e imaterial”, mas também na transmissão de um “legado comum”. Observa-se a matéria abaixo com a dirigente da Superintendência Regional do IPHAN no Maranhão em que reivindica uma “educação patrimonial nas escolas”: “Sergipana de nascimento, maranhense do coração. Casada, mãe de dois filhos - um rapaz de 23 anos e uma jovem de 20 anos - a historiadora Kátia Bogéa dedicou sua vida inteira a proteção ao patrimônio cultural do Brasil do Maranhão. [...] ela falou sobre a paixão por São Luís e os desafios 16 do Instituto Nacional do Patrimônio Histórico e Artístico do Maranhão (Iphan). Você acha que a população tem noção do peso que é esta preservação patrimonial para suas vidas? Veja, o processo de tombamento de São Luís começou na década de 40, do século XX. Nessa época ocorreram os primeiros tombamentos federais. O tombamento em conjunto de São Luís foi em 1974. Já Alcântara foi tombada inteira em 1948. E São Luís foi reconhecida como Patrimônio Mundial em 1997. É muito tempo. Acho que o trabalho feito com a comunidade, em relação à educação patrimonial, não foi efetivo o suficiente, deixa muito a desejar. Tem que estar nas escolas, na formação das crianças que têm que compreender e ter instrumentos de decodificação para saber o que significa esse patrimônio para suas vidas. Só assim elas vão protegê-lo. Ninguém protege aquilo que não conhece, então é preciso levar essa informação”. (http://www.oimparcial.com.br/noticias.php?id=11042). Com efeito, observa-se que a valorização do “patrimônio arquitetônico” é resultado de um trabalho social de invenção, nos quais os agentes, ao construírem e confrontarem versões de e do “patrimônio” (comum e coletivo), podem incrementar seus patrimônios pessoais, beneficiando-se pela detenção da autoridade legítima de defini-lo e galgando posições socialmente reconhecidas em seu nome. Seria preciso investigar com maior cuidado os diferentes sentidos disputados por “especialistas” alocados em pontos diversificados do espaço social, levar em conta os estados das disputas que travam, bem como a distribuição das armas (recursos) e dos interesses (sem juízo de valor) que possuem. Para o momento, ressalta-se que não há dúvidas de que o “patrimônio” (“material” ou “imaterial”) é uma categoria cujos sentidos são variáveis conforme as relações e os conteúdos jogados em dinâmicas específicas. Da mesma maneira, essa categoria sempre mantém, na sua definição, a associação com outras idéias (igualmente com sentidos voláteis) como as de “herança”, “herdeiro”, “memória”, “identificação. De qualquer modo, observa-se a articulação, proposta por Haegel (1990) e aplicada por Grill (2008) para a análise do universo político, entre três níveis analíticos. Por um lado, trata-se do estabelecimento de uma “referência objetiva” a um “passado substancializado” que fundamenta o “patrimônio” como herança disputada por seus próprios arquitetos/guardiões. Por outro lado, trata-se de fixar uma “referência subjetiva” a um “passado compartilhado”, ao qual, mediante os enquadramentos da memória, são atribuídos elementos (heróis, eventos, experiências, etc.) que unificam os agentes em um “legado” comum. Finalmente, trata-se de objetivar uma “referência formalizada” que certifica a continuidade (justificada) do passado no presente por meio da conformação de símbolos, ritos, repertórios, entre outros que garantem sua existência. 17 Os princípios subjacentes aos discursos que ressaltam a importância da valorização, “restauração”, “revitalização”, “preservação” – entre outras expressões que indicam a necessidade de agir sobre e em nome de um “patrimônio” – são complexas e reveladoras de estratégias de consagração que, em absoluto, restringe-se essencialmente aos “monumentos”, “cultura”, “memória”, etc. Tais princípios emergem das diferentes posições ocupadas (nos domínios específicos e no espaço social em geral) e posicionamentos defendidos (versões, interpretações, descrições...) pelos agentes que desempenham os papéis de porta-vozes e mediadores culturais. Sendo assim, esses agentes, “especialistas” alocados situados em arenas específicas, acionam suas “competências” nos embates pelo monopólio do saber legítimo sobre o “patrimônio”. São autores de discursos monopolizantes, pois criam os critérios e as condições do exercício da voz autorizada em nome da “causa”, e de usos monopolizados, já que são pessoalmente vinculados à problemática e constituem-se em mediadores dotados de função crítica e de exclusividade (SILVERMAN, 1977). A propósito da “cultura popular” No Maranhão, “cultura popular” e “folclore” são temas que “revestem-se de singular complexidade, pois, desde os anos 70, as políticas públicas municipais e estaduais de cultura e de turismo elegeram as manifestações folclóricas, como foco de atenção” (CAVALCANTI, 2009, p. 199). Mais do que isso, os investimentos nesse sentido incidiram no caráter da institucionalização das ciências sociais no estado, tributária das pesquisas inaugurais de folclore em diferentes estados, como é possível observar na atuação do Movimento Folclórico Brasileiro (1947-1964) cujos integrantes – “intelectuais das elites locais” – conformavam “redes de relações extremamente eficientes” (Idem, p. 200). Por este intermédio, teriam estimulado as buscas, registros e estudos das “manifestações folclóricas”, do mesmo modo que contribuíram para a afirmação da “preocupação com o que hoje chamaríamos de sua inclusão nas políticas públicas de cultura: tratava-se de mobilizar a consciência cidadã com congressos, semanas, encontros; de apoiar os grupos praticantes; de criar museus e centros de referência” (Idem, p. 201). 18 O encontro entre Sérgio Ferretti com o “intelectual” maranhense Domingos Vieira Filho teria sido imprescindível para a consolidação do tema “folclore” nas pesquisas universitárias e na criação de instâncias específicas para a sua gestão. “Domingos Vieira Filho, nascido em São Luís no dia 25 de setembro de 1924, foi advogado, escritor e jornalista, tendo atuado com destaque como administrador cultural e pesquisador da cultura popular maranhense. Formado pela Escola de Direito de São Luís, lecionou no Liceu Maranhense (tradicional escola pública da cidade), na Escola Técnica de Comércio Centro Caixeiral e na Academia do Comércio. Foi, também, professor de nível superior, contribuindo com a formação de alunos da Faculdade de Serviço Social, Faculdade de Filosofia e Departamento de Direito da Universidade Federal do Maranhão. Como administrador cultural, demonstrou competência realizando importante trabalho como membro do Conselho Estadual de Cultura, delegado do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, diretor do Teatro Arthur Azevedo e do Departamento de Cultura da Secretaria de Estado de Educação e como presidente da Fundação Cultural do Maranhão de 1975 a 1979, quando reestruturou o Arquivo Público do Estado e viabilizou a criação do Museu Histórico da cidade da vizinha Alcântara. Em sua vida profissional ocupou cargos de consultor técnico do Diretório Regional de Geografia e conselheiro técnico da Federação do Comércio. Sua produção bibliográfica registra contribuições para a cultura maranhense. Publicou diversos livros, dentre os quais destacam-se: A Linguagem Popular no Maranhão, Superstições ligadas ao Parto e à Vida Infantil, A Festa do Divino Espírito Santo, Folclore Sempre, Populário Maranhense e Breve História das Ruas e Praças. É, também, autor de Os Negros Deformados, O Negro na Poesia Brasileira, A Síntese Histórica da Polícia Militar do Maranhão e Estudos Geográficos do Maranhão”. (http://www.culturapopular.ma.gov.br/biografias2.php?id=5) Sergio Ferreti, nascido no Rio de Janeiro, passou a residir definitivamente no Maranhão em 1970, lecionando na Escola de Administração, atual Universidade Estadual do Maranhão e depois na Universidade Federal do Maranhão. Atuou na Superintendência de Ensino e colaborou na formulação do projeto (por volta de 1968) que deu origem ao curso de Ciências Sociais da UFMA que, no entanto, só foi efetivado em 1986, com o fim do regime militar. Sendo formado em História (UB/UFRJ – 1962) e museologia (MHN/ UniRio – 1962), se dedica ao estudo da antropologia e à sistematização de um projeto de pesquisa sobre cultura popular e folclore no Maranhão. Durante os anos 1960 estudou na Bélgica e participou do Centro de Estatísticas Religiosas e Investigações Sociais (CERIS/RJ) da Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros (CNBB). É preciso frisar a importância das religiões na trajetória de Ferretti, que pertenceu à Juventude Universitária Católica (JUC), e do Movimento de Educação de Base (MEB), através do qual se deslocou para o Maranhão pela primeira vez, em 1963. Sua esposa, com a qual casou em 1967, a antropóloga maranhense Mundicarmo Ferretti também pertenceu à JUC e “conheceram-se estudando as ‘encíclicas de João XXIII’ e começaram namorar” (FERRETTI, 2006, p. 119). Em depoimento no livro “Memória de Velhos”, ele declara que tinha uma “vocação religiosa, o desejo de entrar no Mosteiro – acho que era mais uma atração intelectual, porque eu sentia ali um ambiente intelectual muito elevado, um ambiente de arte, literatura, música. Sentia uma grande admiração por esses aspectos” (idem, p.112). Mas fora desestimulado pela mãe e irmã (espíritas e umbandistas). Confluíram para a sua dedicação aos estudos das “religiões afro-brasileiras, tambor de mina, Casa das Minas, cultura popular, tambor de crioula e sincretismo” (Lattes/CNPq), a relação já mencionada com Vieira Filho, o contato com a obra de Roger Bastide e também a influência e estímulo do pai de Mundicarmo: “Li livros e comecei a me interessar em pesquisar a área da religião afro que já conhecera um pouco por intermédio do pai de Mundicarmo, que nos levou – isso entre 1969 e 1970, por aí [...] – para assistir a uma festa num terreiro. Foi este, aliás, o primeiro terreiro de São Luís que visitamos. [...] O pai de Mundicarmo escrevia e se interessava muito por folclore e nos levou [...]” (Idem, p. 136). Pode-se destacar a criação, em 1973, da Fundação Cultural do Maranhão (FUNC) e o início da organização do Museu Histórico e Artístico do Maranhão. Em 1975, a 19 FUNC fora “ampliada” e Domingos Vieira Filho assumiu a sua presidência, convidando Ferretti para dirigir o Departamento de Assuntos Culturais17. Com o falecimento de Vieira Filho na década de 1980, o seu nome foi dado ao Centro de Cultura Popular, fundado durante a gestão de Arlete Nogueira como secretária de cultura do estado. “70 anos de existência, 45 anos de literatura. Eis o legado de Arlete Nogueira da Cruz, maranhense que nasceu em Cantanhede, em 7 de maio de 1936. Vale a pena celebrar a data natalícia de uma maranhense que, com humildade e simplicidade, sempre se distinguiu, mais pela contribuição que tem dado para que se reafirme e reavive a imagem de um Maranhão tão carente de exemplos de plenitude de cidadania, essa rara expressão manifesta através dos que vencem pela capacidade de trabalho abnegado, dando testemunho de instrução, educação, cultura, expressa pelos saberes humanísticos. Nesse sentido, Arlete Nogueira da Cruz é um paradigma para a mulher maranhense. Entre as atividades que exerceu, em São Luís, destacam-se a de Diretora do Teatro Arthur Azevedo, Diretora do Departamento de Cultura do Estado e Secretária de Cultura do Maranhão. Formada em Filosofia pela Universidade Federal do Maranhão, UFMA, fez mestrado no Rio de Janeiro, onde defendeu tese sobre a poesia de Baudelaire segundo a concepção do filósofo Walter Benjamin. Durante vários anos foi professora de Filosofia da UFMA. Mas Arlete Nogueira da Cruz é, sobretudo, e principalmente escritora. Reconhecida pela crítica literária nacional, a romancista, poeta, epistológrafa, crítica e ensaísta [...]. O reconhecimento pela crítica literária é uma prova inconteste sobre o valor do texto literário de quem, desde o primeiro livro, A Parede, veio para marcar um lugar no panorama da Literatura Nacional. Arlete Nogueira da Cruz começou, portanto, sua trajetória de escritora há 45 anos, quando lançou A Parede, em 1961. Em 1969, a escritora publica Cartas da Paixão, epistolografias; em 1972, Compasso Binário, romance; em 1973, Canção das Horas Úmidas, poemas e, em 1996, Litania da Velha, poemaromance”. (http://www.guesaerrante.com.br/2006/5/16/Pagina720.htm). A primeira direção do Centro foi de Lili, depois foram seus diretores Valdelino Cécio, Joila Moraes, dona Zelinda e Maria Michol Pinho de Carvalho. Todos esses e outros foram chamados por Sérgio Ferretti para compor a reativação da Comissão Maranhense de Folclore (outrora subcomissão na qual Domingos Vieira Filho representava o estado na Comissão Nacional de Folclore), cujos objetivos seria: “colaborar com o Centro de Cultura Popular do Maranhão e com as Secretarias de Cultura, de Educação, de Turismo, com Fundações, Universidades, Academias e com outras entidades culturais interessadas em promover, divulgar e pesquisar o folclore e a cultura popular no Maranhão” (FERRETTI, 2006, p. 166). Dentre os investimentos dessas instâncias, pode-se destacar o livro “Memória de Velhos. Depoimentos. Uma contribuição à memória oral da cultura popular maranhense” 17 Além dos resultados favoráveis da parceria entre Domingos Vieira Filho e Ferretti no “cenário político institucional maranhense”, Cavalcanti (2009) sublinha a relevância do “contexto de reorganização institucional da área federal da cultura pelos governos militares”. Ou seja, trata-se de um momento em que há (em 1976): “o surgimento da Fundação Nacional de Arte (FUNARTE), vinculada à Secretaria de Cultura do então Ministério de Educação e Cultura (MEC), e data de 1979 a transformação da antiga Campanha de Defesa do Folclore (INF) como unidade vinculada à FUNARTE, sob gestão de Bráulio Nascimento. Nesse novo contexto, a antiga rede nacional de folcloristas, tecida entre os anos 1940 e 1960, será acionada e re-significada” (Idem, p. 216). 20 (depoentes: Aliete Ribeiro de Sá, Carlos de Lima, Sergio Ferretti, Therezinha Jansen e Zelinda Lima), produzido pela Comissão Maranhense de Folclore, cuja presidente era, no período da publicação, Maria Michol Pinho de Carvalho, que à época também ocupava o cargo de Superintendente de Cultura Popular, vinculado à Secretaria de Cultura18. Mestre em Comunicação Social, com área de concentração em Comunicação e Cultura Popular, Maria Michol Pinho de Carvalho atua na Secretaria de Cultura do Maranhão desde 1987. Foi Superintendente de Cultura Popular da Secretaria de Estado da Cultura, diretora do Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho e, desde 1995, é presidente da Comissão Maranhense de Folclore. O trecho abaixo foi extraído da introdução do livro: “As lembranças do passado bem como demonstram a herança recebida que precisa ser complementada com o toque do presente numa dinâmica que por vezes se constitui num verdadeiro desafio. Aí está justamente a necessidade e a importância do registro escrito destes cinco depoimentos, no sentido de que as informações, comentários e opiniões presentes nos seus conteúdos são valiosas para a compreensão de todo um jeito de ser da gente maranhense [...]” (p. 15). No texto que consta na orelha do livro, elaborado por uma antropóloga reconhecida pesquisadora da “cultura popular” no Maranhão, Mundicarmo Ferretti (esposa de Sérgio Ferretti), a ênfase recai sobre a importância dos mais “velhos” como “elo de comunicação com o passado e que, se cada geração conseguir passar às outras um pouco de sua experiência, podemos confiar no futuro”. Ela ainda classifica os depoentes em: 1) “produtoras de cultura popular”; 2) dirigente de órgãos estaduais das “áreas de cultura e turismo”; 3) e, pesquisadores, “analistas perspicazes da cultura popular maranhense” e ex-presidentes da Comissão Maranhense de Folclore. Mundicarmo Ferretti possui o título de Professor Emérito da UEMA. Possui graduação em Filosofia, Licenciatura pela Universidade Federal do Maranhão (1966), mestrado em Administração Pública (Pessoal) pela Fundação Getúlio Vargas - RJ (1975), mestrado em Ciências Sociais (Antropologia) pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (1983) e doutorado em Ciências - Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (1991). É professora titular aposentada da Universidade Estadual do Maranhão - UEMA (2002), professora 18 Trata-se do sexto volume da série de sete livros coordenados por Maria Michol Pinho de Carvalho. Os quatro primeiros volumes foram publicados em 1997, o quinto em 1999, o sexto em 2006 e o sétimo em 2008. Assim, o último volume, organizado por Zelinda de Castro e Lima, foi lançado durante a gestão de Jackson Lago no governo do estado, tendo João Batista Ribeiro Filho como Secretário de Estado da Cultura e Jeovah França como Superintendente de Cultura Popular. Carlos Lima, esposo de Zelinda, apresentado como historiador e folclorista, membro da Academia Maranhense de Letras e da Comissão Maranhense de Folclore, é o responsável pela primeira “orelha” do livro e Jeovah França (ver nota biográfica mais adiante) escreveu a segunda. Cabe destacar um fragmento do prefácio do secretário de cultura, João Batista Ribeiro Filho: “[...] Protagonistas de todo um enredo, cujos cenários são construídos coletivamente em forma de um mapeamento cultural só experimentado pelas práticas sociais encharcadas do que há de melhor em nossas maranhensidades. [...] Suas vivências, com certeza, servirão de sementes e estrume para o adubo do florescimento nas mentes de muitas gerações. A germinação deste encantamento contínuo atravessa da primeira à última página deste livro, tornando a leitura do mesmo uma colheita da essência do que há de mais sagrado na memória da nossa cultura popular”. 21 adjunto IV aposentada da Universidade Federal do Maranhão - UFMA (1992). Atualmente é Professora Permanente dos Programas de Pós-Graduação em Políticas Públicas (Dr e MS) e de Ciências Sociais (MS) da UFMA; Sub-coordenadora do Grupo de Pesquisa "Religião e Cultura Popular" - GPMINA - DESOC/UFMA [coordenado por Sérgio Ferretti]; membro titular da Associação Brasileira de Antropologia - ABA, da Comissão Maranhense de Folclore - CMF, e Secretária-administrativa do Instituto Nacional da Tradição e Cultura Afro Brasileira - INTECABMA . Tem experiência de ensino e de pesquisa na área de Antropologia, com ênfase em Antropologia das Populações Afro-Brasileiras, atuando principalmente nos seguintes temas: religião afro-brasileira, tambor de mina, pajelança de negro, sincretismo, cultura popular e Maranhão (currículo lattes/CNPq). Do mesmo modo, o “resgate”, a “documentação” das “tradições culturais e artísticas no Maranhão” com vistas a “consolidar informações e registros das manifestações culturais locais, assegurando a sua preservação e transmissão para as próximas gerações” são os objetivos explicitados no “Perfil Artístico e Cultura do Maranhão”, em que Maria Michol Pinho de Carvalho foi a consultora responsável. “Diversidade de heranças e tradições”, eis a síntese que definiria a “cultura popular” defendida pela “especialista” e compartilhada por outros dos seus porta-vozes. As festas e os rituais cultivados no estado seriam a atestação das “formas peculiares de expressão” e “elementos de distinção” que edificariam a “identidade cultural maranhense”, calcada nas “origens dos negros” e da “cultura afro” que “articularam-se e misturaram-se com modos de vida dos portugueses e dos indígenas”: “[a] cultura popular maranhense, em sua riqueza e diversidade, encarna processos de integração, assimilação e sincretismo em meio à resistência de grupos e à intervenção das elites”, o que a definiria pela sua “peculiar expressão da natureza ‘mestiça da cultura brasileira’ que foi se constituindo nas adaptações, assimilações e trocas culturais”. Adiciona que “nesses processos de confrontos e de encontros constitutivos da cultura maranhense, a influência afro-brasileira é marcante e decisiva. Com efeito, nas práticas religiosas, nas danças, na literatura, no teatro, na culinária, na medicina popular e nos costumes e usos, os africanos e seus descendentes conseguiram, aqui no Maranhão, recriar suas culturas de origem, constituindo uma espécie de síntese dos elementos culturais” (CARVALHO, 2006). O “calendário da cultura popular maranhense” expressa a cristalização do trabalho de produção da existência daquilo que enuncia. A “dinâmica da vida social” é apresentada a partir do desdobramento de “três grandes ciclos”: o ciclo carnavalesco, o ciclo junino e o ciclo natalino, afora outras “festas tradicionais”, como a festa em homenagem ao “Divino espírito Santo”, e as “danças que têm a peculiaridade de realizarse em diferentes momentos do ano, integrando mais um ciclo cultural. É o caso do ‘tambor de crioula, dança de origem africana em homenagem a São Benedito, o ‘santo negro’ da religiosidade popular”. O antropólogo Sérgio Ferretti (2003, p.6-7, Apud CARVALHO, 2006) qualifica o “maranhense do povo” (não o “povo maranhense”): 22 “O maranhense do povo tem o costume de dançar, cantar e fazer teatro nas ruas. O maranhense gosta e sabe organizar festas bonitas e criativas. As religiões afro-maranhenses constituem uma das fontes de manutenção e preservação das festas do folclore e da cultura maranhense e contribuem indubitavelmente para a construção da identidade cultural maranhense. O bumba-meuboi, o tambor de crioula, a festa do divino e outras são também festas dos terreiros de mina. O Maranhão é uma terra onde o povo gosta de festas numa dimensão que remete ao barroco brasileiro e se relaciona evidentemente com nossas tradições latinas, ibéricas e africanos”. Do 1° ciclo, o carnaval é concebido como constituído de três fases fundamentais: 1) o “Carnaval Colonial” (predominante até o século XIX); 2) o “Carnaval dos Cordões” (característico das primeiras décadas do século XX); e 3) o “Carnaval do Samba” (a partir da segunda metade do século XX). Se os primeiros são sempre alvo de recordações nostálgicas, os últimos acabariam despertando enfrentamentos entre os defensores e os críticos da “importação” de um “padrão carioca”. Enfrentamentos estes que teria resultado em um “novo momento de resgate da tradição”, graças à “intervenção ativa de um movimento cultural que, estrategicamente, colocou na agenda pública o carnaval de rua maranhense”. Conforme Carvalho (2006), ao longo da década de 90, emergiram iniciativas lideradas por dirigentes de órgãos comprometidos com a “cultura popular maranhense”. Um dos eventos marcantes foi o ‘Carnaval Maranhense: ontem e hoje’, realizado durante a gestão de Jeovah França no Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho, e que teria colaborado numa mobilização de “lideranças, artistas e dirigentes das organizações carnavalescas” visando “fazer renascer o Carnaval de Rua em São Luís”. O produto desta mobilização, em termos de políticas públicas, teria sido: - institucionalização do Circuito de Carnaval de Rua Deodoro/Madre Deus/Deodoro, com decoração e sonorização dentro do espírito da época. É o circuito da folia onde se apresentam os blocos e brincadeiras, (re)vivendo o “jeito maranhense de brincar o carnaval”; - programação carnavalesca nos “Vivas” dos bairros, (re)atualizando a tradição com apresentação de blocos e brincadeiras e de shows, (re)criando, nas comunidades, o espírito carnavalesco e estimulando a emergência dos “blocos de sujos” onde “o povo cai na folia” do jeito que lhe sugere a sua criatividade e a sua imaginação; - apoio financeiro aos blocos e às brincadeiras para que possam vir a público com suas fantasias e sons peculiares; - experiências de resgate de elementos da tradição viabilizadas pelo Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho, em parceria com a Comissão Maranhense de Folclore. São oficinas, exposições, cortejos carnavalescos, apresentação de grupos do interior do Estado, bailes populares etc. (CARVALHO, 2006). As mesmas lógicas e registros agilizados para descrever o “carnaval” são utilizados para consagrar a “cultura” e as “políticas culturais” no estado a partir do “ciclo junino”. Quer dizer, em que “os arraiais ou largos, hoje, continuam a funcionar, como herança de uma tradição que se ressignifica, assumindo as marcas dos novos tempos, 23 articulando a dimensão popular da festa com o incentivo e apoio oficial, particularmente no patrocínio das apresentações e da infra-estrutura básica”. A importância do favorecimento (institucional) e reconhecimento social do valor das apresentações de bumba-meu-boi é fortalecida pelo sentido de “diversidade” (tão caro para a construção da identidade maranhense) que ele permite ativar e também por seu itinerário de exclusão e superação. Isto é, como já foi mencionado anteriormente, não raro na reconstituição da história das “brincadeiras” é ressaltado que, na segunda metade do século XIX, eram proibidas as apresentações que, depois, foram permitidas, mas dentro de muitas restrições. E, na primeira metade do século vinte ainda seriam estigmatizados pela “sociedade maranhense”. Finalmente, no que diz respeito ao “ciclo natalino”, este se sustentaria no fato de que “o maranhense é um povo muito ligado à religião, o que pode se constatar com facilidade ao verificar o calendário religioso da capital aos mais longínquos municípios do Estado”. Neste caso, são sublinhadas diferentes festas religiosas, como a festa do Divino Espírito Santo, em que são celebrados “os mais diversos santos da Igreja Católica”. Observa-se que idéias como as de “herança”, “transmissão”, “geração”, “memória”, são reiteradamente acionadas no repertório das justificações da palavra autorizada dos especialistas da “cultura popular” no Maranhão. Essas categorias conformam as bases de fundamentação e atualização, ao mesmo tempo, da “tradição” (garantindo a invenção e reconhecimento de uma ancestralidade) que permite respaldar o “presente” e justificar determinada fase de uma cultura específica. Bem como da imprescindibilidade do trabalho de mediação (entre domínios, linguagens, períodos, etc.) operado por agentes “habilitados” (garantindo a posição de intérpretes e porta-vozes da “tradição” e da “cultura”). “Sua tradição são suas referências, seus serviços, seus testemunhos de moralidade; sua herança – [...] uma herança muito livremente constituída [...] e geralmente glorificada [...]. A utilidade em particular de uma tradição é de oferecer a todos aqueles que a enunciam e a reproduzem no dia-adia o meio de afirmar sua diferença e, por isso mesmo, de assentar sua autoridade. Pouillon insiste com razão na multiplicidade de tradições no seio de uma sociedade, fenômeno que tende às vezes a ocultar uma etnografia demasiadamente impregnada de unanimismo social e que o estudo das sociedades mais estratificadas colocam em evidência. Aqui, cada grupo, cada entidade social busca sua tradição indo colocar no passado o pavilhão que lhe convém”. (LENCLUD, 1987, p. 119). A invenção de uma agenda: “imaginação” e afirmação de uma “geração” 24 Os dois governos de Roseana Sarney (1995-1998 e 1999-2001) ficaram marcados, no âmbito das políticas de cultura, pela ênfase, respectivamente, na conquista do título de “patrimônio cultural da humanidade” para São Luís e no fomento da “cultura popular”, ao mesmo tempo como demarcadores da identidade regional e como trunfos de promoção do estado. Uma leitura desses empreendimentos sublinha o caráter agenciador do governo que teria se constituído como o “grande mecenas da cultura ao aplicar a verba arrecadada em obras e eventos ou ao repassá-la a artistas, produtores culturais e organizações não-governamentais” (Cardoso, 2008, p. 89). A adoção do cachê aos então chamados (localizados e classificados) “grupos folclóricos” exigindo, para tanto, o cadastro oficial dos “grupos” (precisavam constituir-se em personalidade jurídica para ter acesso à verba), aplicado pelo Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho (CCPDVF), constitui-se num dos principais alvos de contestação oposicionistas das formas de gestão da cultura então conduzida. Para CARDOSO (2008) o CCPDVF e a Comissão Maranhense de Folclore (CMF) são “instituições científicas culturais” que legitimam os empreendimentos estatais e são constituídas de “intelectuais- administrativos” ou intelectuais de corte. Observa-se a tomada de posição na versão oferecida ou na interpretação sobre a melhor maneira de conceber e de gerir a cultura que se opõe àquela dominante, apresentando, pois, um sentido alternativo, eficaz e, portanto, congruente com o que “deve ser”. Os fragmentos abaixo são particularmente evidentes. No que diz respeito à conclusão que chegou com o seu trabalho: “Analisei durante a pesquisa a gestão cultural do governo de Roseana Sarney, concluindo que não houve política pública cultural, mas sim ações eventuais, não planejadas e que se baseiam nesses atos teatrais do poder dos agente – aqueles que conseguem mais distinção e reconhecimento no campo, são aqueles que mais se beneficiam das ações estatais; por outro lado, para o Estado é conveniente continuar nesta prática, pois ela facilita uma personificação das ações, uma antropomorfização do poder do Estado, na figura da governante” (entrevista com Letícia Cardoso). E, no que tange ao seu posicionamento “anti-oligarca” e “anti-sarneyista” (expressões recorrentes na dinâmica política estadual), declara: “Eu acho que deve ter alternância de poder, sem alternância de poder não há democracia, não há diversidade. Por que não há diversidade? Porque só vai predominar um discurso, né? E isso desemboca na cultura também. Por exemplo, nas gestões de Bulcão, o discurso predominante era o da cultura popular como símbolo do estado do Maranhão, né? Então você fica perguntando: quantas orquestras ele incentivou, né? Quantas manifestações culturais consideradas nãopopulares na visão dele, porque popular era o que ele dizia que era popular, ainda tem isso. Então, quantas manifestações não-populares ele incentivou, né? Deu apoio? A não ser aqueles artistas que eram aliados politicamente ao grupo [...]. Isso, pra mim, isso não é justo, né, com a cultura”. 25 Letícia Conceição Martins Cardoso, jornalista com mestrado em Ciências Sociais, realizou uma especialização em Jornalismo Cultural na UFMA que foi coordenado por Franscisca Ester de Sá Marques. Cabem algumas considerações que colaboram na apreensão das “idéias” ou “ideais” comungados por um conjunto de agentes que se constituem igualmente como porta-vozes da “cultura” no estado. “Francisca Ester de Sá Marques, ou como é mais conhecida Ester Marques é atualmente professora adjunta do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão. Possui mestrado em Comunicação e Cultura pela Universidade de Brasília e Doutorado em Ciências da Comunicação (em vias de conclusão) pela Universidade de Lisboa. É autora de vários artigos e do livro Mídia e Experiência Estética na Cultura Popular. É coordenadora do curso de especialização em Jornalismo Cultural e faz parte da Comissão Maranhense de Folclore. Tem pesquisas nas áreas de antropologia, sociologia, cultura, ciências políticas, além de comunicação”. (Currículo Lattes). É filha de Aliete Ribeiro de Sá Marques (como mencionado na seção anterior). Também publicou o livro “Entrevozes: enredos institucionais e midiáticos” e organizou, em 2005, “Jornalismo Cultural: da memória ao conhecimento” (coletânea de artigos escritos por alguns alunos que realizaram a especialização. No universo dos porta-vozes da “cultura” no Maranhão, há muitos casos de agentes que definem e exercem a profissão de jornalista a partir de um sentido de intervenção política e cultural completamente compatível com seus itinerários sociais e profissionais, bem como das suas perspectivas de atuação no cenário público. A criação da especialização em “jornalismo cultural” vem ao encontro dessas pretensões e expectativas de credenciamento para falar com “competência” no espaço da comunicação sobre o que é ou para o que serve a “cultura”. Nestes casos, a relativização da categoria “popular” se dá em favor do uso de outras que constituem o repertório de mobilização geralmente acionado no discurso politizado voltado para os “valores democráticos” e que, portanto, demarcam a linha divisória dos pertencimentos/identificações (redes, afetos, afinidades, etc.) e das clivagens/rivalidades (políticas), socialmente fundamentadas. Estes se refletem diretamente nas modalidades de encaminhamento em torno da elaboração de políticas públicas. Está entre essas modalidades de debates sobre as políticas para a cultura a realização de fóruns de cultura. O primeiro Fórum Municipal de Cultura de São Luís foi realizado em 1996 e teria suscitado a constituição de um Conselho Municipal de Cultura. A principal liderança articuladora do evento fora João Batista Ribeiro Filho, que presidia a Fundação Municipal de Cultura (FUNC), entre 1997 e 1998, durante o governo de Jackson Lago (1997-2000). Para João Batista Ribeiro Filho, os fóruns e conselhos “são conseqüência da organização da sociedade civil. E ali que é que, inclusive, lá que 26 eles vão garantir as suas respectivas legitimidades” (entrevista com João Batista Ribeiro Filho). João Bastista Ribeiro Filho nasceu em São Luís em 1955. Seu pai era embarcadiço e foi vigia noturno. E a mãe operária de fábrica. Em 1986 foi aprovado no concurso da Receita Federal para Técnico do Tesouro Nacional (Analista Tributário). Funcionário Público Federal de carreira formou-se em Direito já na década de 1990, tendo feito Pós-Graduação em Direito Civil e Processual Civil (trabalhou com a temática dos direitos autorais, propriedade intelectual), e é professor no curso de Direito de uma faculdade privada na capital. Participou do movimento estudantil na década de 1970, foi uma das principais lideranças da “greve pela meia passagem” de 1979 (evento reconhecidamente marcante do período) e fez parte do Comitê Brasileiro pela Anistia. É fundador e filiado ao PT, do qual chegou a ser presidente do diretório municipal, em 1996. Também foi fundador do Sindicato dos Servidores Públicos Federais, atuou no Sindicato dos Professores da rede particular de ensino e prestou assessoria ao Sindicato dos Artistas. Ribeiro Filho ressalta a “efervescência cultual dos anos 70”, no estado, “capitaneada bastante pelo movimento de teatro” e a realização do I Fórum Municipal de Cultura de São Luís, em 1997, com a presença de 12 municípios e 594 delegados. Ele já havia coordenado, em 1994, a realização do I Seminário Maranhense de Direitos Autorais, destacado como um dos raros momentos em termos de “organizativo de música” (orgulha-se por ter mais de 60 composições gravadas por cantores maranhenses). De 1997 a 1998, foi presidente da Fundação Municipal de Cultura e, de 2007 a 2009, foi secretário estadual de cultura. Sobre sua atuação na FUNC e SECMA, avalia que: “em todas as duas experiências, elas são centradas na criação de uma política pública de cultura. A primeira na FUNC, baseada na construção de todos os instrumentos legais pra que isso acontecesse: conselho, fundo, fórum e participação popular. [...] E a segunda, baseada em três elementos que atualmente eu acho fundamentais pra qualquer gestão de cultura do país, que são os três ‘dês’, DDD: a democracia, a descentralização das ações e a diversidade”. (entrevista com João Batista Ribeiro Filho). Conforme Jeovah França a realização do Fórum visava “pressionar as autoridades ligadas à gestão pública da cultura, foi pensado para apresentar sugestões de políticas públicas de cultura” e viria a ser uma “instância político-cultural muito importantes” (entrevista com Jeovah França)19. Jeovah França nasceu em São Luís do Maranhão, em 1959, filho de historiador, professor, pesquisador autônomo e comerciante, e de uma enfermeira. Formado em Letras pela UFMA na segunda metade da década de 1970, fez especialização em Administração Pública, pela Universidade Federal de Ouro Preto, em 1986, e em Gestão Pública pela Escola de Governo da Universidade Estadual do Maranhão. O trabalho então desenvolvido teria dado origem ao Museu da Imagem e do Som do Maranhão, criado legalmente pela Secretaria da Cultura. Publicou o livro “Lira Jovem: a nova geração de cantadores de bumba-meu-boi” e artigos em livros sobre o tema “cultura popular”. Participou do movimento estudantil, foi membro do Partido do Movimento Democrático Brasileiro durante os anos setenta e, atualmente, é filiado ao PT. Começou a trabalhar na Secretaria de Cultura, em 1978, como estagiário, e, em 1980, com vínculo empregatício. Foi diretor do Centro de Cultura Domingos Vieira Filho e do Centro de Criatividade Odylo Costa Filho. Prestou assessoria para a FUNC. Afirma que a preocupação com a “questão cultural” está relacionada ao fato de ter nascido no bairro Madre Deus: “Então, desde cedo eu já descortinava que iria trabalhar com essa coisa de melhorar o que na época eu não tinha nem noção de que viria a ser a política cultural.[...] sempre clamei pela falta de política cultural, e como fui 19 França afirma que “sem cultura não haveria o homem, nos estaríamos lá na instancia hominídea querendo ser gente. E mais que gente nos temos que ser pessoas com direitos e deveres na consciência de cidadão. Agora, a cidadania cultural é uma construção ainda muito demorada. Compreender a diversidade cultural em que nos estamos imerso, em que vivemos, compreender a ecologia cultural em que vivemos [...]”. (entrevista com Jeovah França). 27 muito ligado às manifestações do meu bairro, isso é constante, então.[...] tá na veia, na verdade, porque é uma herança cultural.” Jeovah França, ao apontar um aspecto positivo da gestão de João Ribeiro na Secretaria de Cultura, reivindica sua posição de técnico e a valorização dos especialistas: “[...] foi o único cara que deu vida ao técnico, que me ouviu [...] e a outros técnicos que aqui estavam e deu as mãos e pensou de forma coesa e procurou buscar outros mais e buscou apoio dos demais pra elaborar um plano estadual de cultura, inclusive, com seminários regionais, municipais, intermunicipais ouvindo a população a medida do possível. Nos fizemos quase trinta seminários, dialogando com a sociedade, então isso é uma coisa fascinante cara, jamais se teve essa prática, não é? Então, melhorou bastante, agora nós não temos concurso, nós não temos corpo técnico, houve um tempo atrás que eu era o único especialista em políticas culturais, um curso que eu fiz em...há vinte dois anos e, graças a Deus, eu consegui me atualizar e, lendo e fazendo outras especializações que corroboraram pra essa dinâmica do gestor. Mas eu, e o resto? E a turma?”. (entrevista com Jeovah França) Assim como para Josias Sobrinho, que declara que o Fórum foi “um grande passo no sentido de aprimorar a participação da sociedade civil na decisão das coisas que são fundamentais e vitais e importantes pra sociedade como um todo [...]”. E, no que concerne ao Conselho Estadual de Cultura, este teria sido resultado de um “histórico de fóruns [...] é peculiar em si e em nós”, pois, “antes era um conselho de notáveis” e o “nosso se estabeleceu com a participação popular”. Josias Sobrinho nasceu em 1942 em Grajaú, interior do Maranhão. Foi para a capital estudar, tendo freqüentado o Liceu Maranhense até o ginásio, que foi completado em Belo Horizonte/MG. Naquele estado, por conta da distância e da possibilidade de distinção frente ao rótulo mais amplo de "baiano" aplicado a todos os "nordestinos", teria investido na prática do violão e na composição de músicas próximas às toadas de bumba-meu-boi. No retorno (final de 1972, início de 1973) e por intermédio de sua irmã, entrou em contato com Tácito Borralho, então coordenador do Laboratório de Expressões Artísticas (Laborarte)20, que o encaminhou para fazer um teste no Departamento de Música. Sublinha que houve uma confluência do que buscava com a ênfase que davam à pesquisa e utilização de “elementos da cultura popular”. Ainda no Laborarte, onde ficou até mais ou menos 1976, participou de um curso básico de iniciação que teria oportunizado o estudo da história da música e de teoria musical, acumulando um “conteúdo cientifico cultural” que lhe permitiu passar de monitor para instrutor de oficina. Foi co-autor, com Tácito Borralho, em peças para bonecos e atores; compôs para o teatro trilhas sonoras de alguns espetáculo montados por grupos de teatro do Maranhão como o Grupo Grita, o Laborarte, Grupo Artemanhas 20 Matéria divulgada no Suplemento Cultural e Literário “Guesa Errante” do Jornal Pequeno/MA sobre os 30 anos de existência do Laborarte: “A década de 70 chega com a explosão de movimentos culturais emergentes que buscavam um porão comum para suas inconfidências, num momento em que os jovens artistas viviam perigosamente entre o dedo provinciano acusador e a sombra da inquisição militaresca, mesmo que não fossem de esquerda. [...]. Trapos juntos, o Laboratório de Expressões Artísticas (Laborarte) foi criado em 11 de outubro de 1972, instalando-se no sobrado 42 da rua Jansen Müller com o propósito de nutrir forças para engendrar a arte maranhense no seu tempo: a música, a dança, a literatura, as artes plásticas e, como argamassa, o teatro.[...] Práxis musical fulcrada nas manifestações populares, enquanto identidade cultural. [...] Foram paridas linguagens pictóricas e artesanais próprias, cujos conceitos, reciclados, tornaram-se bastante úteis no métier cenográfico. [...] Naquela época, a ausência de uma política cultural, punha dificuldades no desenvolvimento das artes no Maranhão e muitos talentos ruíram junto com suas pesquisas, graças à falta de escolas, oficinas públicas e bolsas de estudo. Sobreviviam, com folga, apenas alguns artistas plásticos protegidos por primeiras-damas. [...] Em 1974, surge a Escola de Música do Estado, fruto da reivindicação de menestréis locais, o que daria incentivo à música maranhense e qualificaria as experiências já realizadas. [...] Dali saíram atores, músicos, dançarinos, artistas plásticos, bonequeiros e poetas que aos poucos foram se inserindo no mercado de trabalho dentro e fora do Estado. [...].” (http://www.guesaerrante.com.br/2005/11/30/Pagina305.htm). 28 e Grupo Mise-em-scene (Perfil Cultural e Artístico do Maranhão, 2006), entre outros. Teve quatro composições suas no disco “Bandeira de Aço”, considerado um marco da “música popular maranhense” (por ter sido o primeiro de uma geração de músicos e compositores que pertenceram ao Laborarte e, posteriormente, conquistaram notoriedade no cenário regional e/ou nacional). Josias Sobrinho iniciou o curso de Letras, mas não concluiu. Foi dono de uma livraria localizada no centro da cidade, junto com duas irmãs. É funcionário do Estado desde a década de 1980. Trabalhou na Fundação de Cultura do Município. Por quatro anos ocupou um cargo de coordenação de evento, bem como atuou no Centro de Artes Cênicas do Maranhão (CACEM), durante a gestão de Tácito Borralho como diretor (até 2003). Ocupou igualmente o cargo de Superintendente de Ação e Difusão Cultural na Secretaria de Cultura do Maranhão, durante a gestão de João Ribeiro. Apresentado-se como um “artista-militante”, João Batista Ribeiro Filho aciona sua biografia e garante seu reconhecimento como agente apto pela experiência como produtor de cultura e como militante político, indistintamente: “[...] eu não consigo dissociar essa parte cultural da questão da consciência política e do compromisso permanente de utilizar toda essa minha trajetória pra transformação da sociedade da sociedade injusta e desigual que nos temos pra algo mais justo e igualitário. Artístico e político, não pode pensar isso dissociado por isso que eu me considero uma artista-militante, às vezes, não tão artista, às vezes não tão militante, mas sempre a fusão dessas.. [...] Cultura hoje é política também, política pública. A cultura é relação, é desenvolvimento humano. Eu to dizendo o que ela é, o que ela não é acho que é esse significado permanente de construção coletiva, inacabada. E eu acho que mais do que tudo ela é um direito e uma necessidade básica. Acho que essa reflexão [...], pra mim hoje, ela é uma necessidade básica, não só pra mim, mas pros seres humanos. Sem cultura, ou a cultura ou a barbárie” (entrevista com João Ribeiro). A rápida duração da administração de João Ribeiro inviabilizou, para o momento, uma análise mais aprofundada dos seus investimentos efetivos nas políticas de cultura, haja vista que não obteve-se acesso ao relatório das atividades desempenhadas pela SECMA. No “Plano Estadual da Cultura do Maranhão”, concebido para ser executado entre os anos de 2007 a 2010, período que se supunha durar a gestão do petista João Batista Ribeiro Filho à frente da SECMA sob o Governo de Jackson Lago do PDT21, são estabelecidas as diretrizes da gestão. Com o slogan: “A imaginação a serviço da cidadania e do desenvolvimento”, são explicitadas as “quatro grandes diretrizes” da gestão: 1. Democratização da cultura como mecanismo de socialização dos bens e serviços culturais e garantia dos direitos inerentes à cidadania; 2. A cultura como questão estratégica para a construção de políticas públicas de desenvolvimento sustentável do Maranhão; 3. Fortalecimento da identidade cultural maranhense (maranhensidade), valorizando a diversidade do patrimônio cultural material e imaterial, bem como promovendo a inovação criativa e intercâmbios culturais; 4. Implementação de política de gestão cultural democrática e descentralizada, que integre os 21 Como já foi dito, a gestão foi interrompida em 2009, por conta da cassação do mandato de Lago pelo Tribunal Superior Eleitoral. 29 agentes culturais e garanta a participação popular. (Plano Estadual da Cultura do Maranhão, 20072010, p. 11). Cabe ressaltar a idéia de “maranhensidade” que a administração de procurou imprimir às e nas atividades e eventos conduzidos, como marca de uma identidade da sua gestão com o “povo maranhense”, cumplicidade fundada numa espécie de estilo de vida e símbolos de distinção, ao mesmo tempo “existentes” e “ideais”. O fragmento abaixo permite evidenciar a tentativa de abarcar, com a idéia de “maranhensidade”, o conjunto de elementos complementares e frequentemente acionados para definir a “cultura maranhense”: “Maranhensidade é carnaval e academia; são joão e literatura; educação e cultura; turismo e tecnologia; intercâmbio e identidade; pertencimento e trocas; tolerância e diversidade; música e magia; conhecimento e universalidades; saberes e fazeres; direitos e liberdade para exercê-los: à livre expressão e manifestação artística, jornalística, do pensamento; enfim, do engenho e arte daquilo que temos de melhor para contribuir com a cultura da paz e com o reencantamento da Humanidade” (João Ribeiro, “Maranhensidade: um estado de alegria”, Jornal Pequeno, 14 de janeiro de 2008). A ativação de tais elementos vem acompanhada da defesa das idéias de “descentralização”, o que implicou numa modificação das estruturas de organização e financiamento das principais “festas populares” (carnaval e são joão, então nomeadas “carnaval da maranhensidade” e “são João da marenhensidade”) do estado. Conseqüentemente, estabelecendo oposições com as prioridades dadas até então e estabelecendo uma série de embates entre artistas, jornalistas e produtores culturais. No texto é intitulado: “O Maranhão e sua dimensão cultural” e assinado pelo então governador do estado, é ressaltado que: “[...]. No plano ora apresentado, futuro de estudo cuidadoso realizado pela equipe da Secretaria da Cultura, no qual vários segmentos foram ouvidos, estão delineadas as estratégias de ação que esta secretaria pretende desenvolver nessa gestão. [...] acreditamos que as idéias por tanto tempo alimentadas pela equipe que hoje representa nosso governo na Secretaria de Estado da Cultura, contempladas nesse Plano, possam contribuir para que os/as maranhenses se apropriem das riquezas, recuperem a dignidade e se transformem em cidadãos e cidadãs conscientes do papel cultural em todas as dimensões da vida humana”. Essa última idéia referente à “equipe” é reforçada na apresentação do Plano assinada pelo então secretário de Estado da Cultura, João Batista Ribeiro Filho, na qual aponta que: “Estabelecer as diretrizes do Programa de Governo para a área da Cultura não se constituiu tarefa das mais difíceis. Tínhamos todo um acúmulo de discussões e experiências que remontavam há décadas, atualizadas por vários fóruns de debates que culminaram em 2005 com as realizações das conferências municipais, estadual e com a I Conferência Nacional da Cultura” (p. 07). 30 Sublinha-se a ênfase dada à dimensão cultural como elemento chave de um projeto de transformação social e político e, principalmente, a encarnação dessa tarefa por agentes cuja atuação conjunta e contínua, desde os fóruns de cultura, se reproduz no âmbito político-administrativo e legitima sua constituição como “equipe de governo”. NOTAS FINAIS Observou-se que a luta e engajamento em torno do “patrimônio”, da “tradição”, da “cultura popular” não implica necessariamente na contestação dessas categorias como referencias de síntese, mas sim nas formas de operá-las. A partir delas se desdobram um sistema de adjetivações que servem de elementos de distinção, simultaneamente, sociais, políticas e estéticas entre os agentes envolvidos na (re)-produção de referenciais de políticas públicas. Atenta-se para a existência de uma polaridade (relativamente recorrente) entre o que seria uma perspectiva mais “empresarial” e outra mais “militante”. Os cortes discursivos que as administrações procuram imprimir nas suas gestões expressam a polarização: modernizadora X democrática. De um lado, “racionalização”, “modernização”, organização e maximização do trabalho de produção, sanção e divulgação dos bens culturais, num discurso “para fora”, visando o mercado externo, com a promoção do estado e dos seus personagens. Neste caso, o desenho de uma engrenagem de laços de tipos variados que se ramificam verticalmente e horizontalmente, abrangendo agentes com perfis e posições sociais diversos, assim como os lugares nos quais se inscrevem, apropriados à divisão social do trabalho de consagração das representações e dos representantes legítimos da “cultura”. De outro lado, “participação”, “democratização”, “descentralização”, a produção cultural devendo ser “beneficiada” e “vivenciada”, num discurso voltado “para dentro”, visando o mercado interno, com a busca de uma gestão “meritória” das políticas culturais e garantindo a “espontaneidade” das manifestações culturais. Em outros termos, a ativação do repertório consagrado na gramática democrática universalista (em nome da “sociedade civil”, da “cidadania”, “ética”, etc.). Nesse caso, as redes de relações configuram uma maior horizontalidade (o que não significa dizer que não existam egos centralizadores de laços) e os domínios de inscrição são heterogêneos e maios simétricos em termos de força política. 31 Para além das rivalidades partidárias, efêmeras e voláteis, cristalizam-se teias de indivíduos que se encontram espraiados em domínios da cultura (teatro, música, dança, etc.) e que se reúnem em lugares e meios de expressão (“grupos”, instituições governamentais e universitárias, publicações, etc.). A partir deles alimentam, renovam, tecem, redefinem e fixam momentaneamente lealdades, hostilidades, e retiram gratificações materiais e simbólicas. No interior dessas cadeias de agentes, competências políticas e técnicas mesclamse numa arena de disputas por postos em governos e por reputação social. Um paradoxo se estabelece, então, a combinação da valorização dos porta-vozes da cultura na chamada “sociedade” e a posição periférica e via cooptação no espaço político. Como resultado, há uma polarização (que se mistura e é diretamente dependente dos alinhamentos políticos) entre agentes que falam “em nome da cultura”, amparados na autoridade de títulos escolares e profissionais e na posse de biografias de inserções em múltiplos espaços. O que os difere, porém, não são nem as competências, nem os domínios de atuação, mas principalmente o lugar ocupado pelas personalidades e pelas instâncias de consagração as quais estão vinculados. Em outros termos, o valor tanto dos indivíduos quanto dos lugares a partir dos quais falam se mostram profundamente dependentes dos resultados das disputas eleitorais, que, por sua vez, tem mostrado um forte desequilíbrio na balança do poder (Elias, 1970), pendendo para um dos pólos antagônicos que estruturam a dinâmica política mais ampla. Independentemente das posições e posicionamentos dos agentes, até então se observou a preponderância de um referencial dominante multidimensional, que acaba pautando as versões alternativas e, assim, se reproduzindo nas percepções ambíguas que estruturam os discursos e práticas. Pode-se seguir as considerações de Coradini (1994) sobre a produção de políticas “sociais” em realidades históricas como a brasileira cuja condição periférica (dependente econômica e culturalmente) se constata nas estratégias de “importação” e “adaptação” de referenciais, antes que um “processo de ‘invenção’ de ‘problemas’ e respectivas ‘soluções’ que vão surgindo conforme o estado das relações de força na dominação social e política” (idem, p. 492). O resultado disso é, segundo o autor, “[...] uma espécie de superposição de referenciais, contraditórios entre si, com chances desiguais de institucionalização e de implementação efetiva. Ou seja, não se trata apenas do processo ‘normal’ de lutas pela elaboração de referenciais e de definições da realidade social e da imposição de sua legitimidade, com seus ‘problemas’ e ‘soluções’, o que acontece sempre que há 32 alguma política ‘social’, mas de uma multiplicidade de princípios de definição e de legitimação, parcial e desigualmente institucionalizados o que torna inviável um mínimo de coerência políticoadministrativa para esse tipo de política” (CORADINI, 1994, p. 492). As representações sobre o que constitui a singularidade da “cultura” no e do Maranhão estão intimamente relacionadas aos usos sociais que os agentes podem mobilizar nas suas inserções sociais e lutas políticas. No entanto, a possibilidade de fixar uma posição de liderança na batalha entre porta-vozes e gestores da cultura passa pelo reconhecimento de um conjunto de símbolos, imagens e versões sobre os desdobramentos históricos e as características do “povo maranhense” e do “Maranhão”. Não estão em questão o “passado” de “opulência” e o período de “decadência” que deslocou o estado de um caminho quase “natural” de destaque nacional que tivera outrora (certificado no panteão das suas personalidades) para o esforço contínuo de reconquista e reafirmação de uma posição central, sobretudo, da dimensão cultural. A “herança européia” objetivada na arquitetura, na música, no teatro, no gosto pela literatura, etc. se constitui num trunfo indispensável e inconteste. A “herança dos negros e índios” permite compor o quadro da “diversidade”, da valorização da “tradição” e do “popular”, manifestados nas festas e religiosidade, mas igualmente apropriados na produção de bens culturais pelos “não populares”. Comunga-se igualmente com a necessidade de registro e de “divulgação” ou “difusão” (o que, combinado com a idéia de ser “uma terra vocacionada para as letras”, incide na rica produção de livros e revistas de cunho literário, histórico, biográfico, técnico, etc., que se encontra no estado) das coisas, dos eventos e dos seus personagens. Questiona-se o seu uso, questionando o monopólio da imposição de sentidos, dos seus usos legítimos e, principalmente, de quem está apto para fazê-lo. BIBLIOGRAFIA “Perfil Cultural e Artístico do Maranhão”, de 2006, foi publicado em CD-ROM e está acessível no sítio http://www.perfilcultural.com.br/ “Plano Estadual da Cultura do Maranhão (2007-2010)”, Secretaria de Estado da Cultura do Maranhão, julho de 2007. ALMEIDA, Alfredo Wagner B. A ideologia da decadência: leitura antropológica a uma história da agricultura do Maranhão. São Luís, IPES, 1983. ANDRÈS, Luis Phelipe C. C. “Arquitetura”. 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