Fila, um desafio! Estou tentando entender os motivos de tantas filas para atendimento médico neste país. Primeira pergunta que me fiz: Existem tantas filas em outros países? Ou já é uma cultura nacional? Estas filas não são um privilégio do sistema público, pois temos filas nos serviços privados e também em grande parte dos consultórios particulares e quase sempre com horários atrasados. Nos serviços de urgência e emergência dos planos de saúde também há filas. Enfim, por que existem tantas filas? Nossa população está muito doente? Nossa população está hipocondríaca? Faltam médicos? Nossos médicos são incompetentes? Após 39 anos de exercício da medicina pública e privada, inclusive como exdiretor de Unimed, ouso citar algumas prováveis causas tentando agrupá-las tais como: Sistema/Cliente/Medico. O barco “saúde” vai mal porque os três remadores (Sistema/Cliente/Medico) não conseguem remar sincronizadamente. Falar que o “Sistema de Saúde” está errado é a resposta mais fácil de se dar, pois em parte é verdade, mas acho que temos também que mudar o comportamento dos pacientes (clientes) e dos médicos. Quanto à parcela de Responsabilidade do “Sistema” já sabemos que a verba é pequena, que existem desvios, que a nossa saúde é centrada na cura, que há um exagero de especialização e uma carência muito grande de clínicos gerais (para adultos e crianças). A Domingueira tem abordado constantemente os problemas do “Sistema”. Em minha opinião, a saúde é um Direito do cidadão, uma Obrigação do Estado, mas também é uma “Responsabilidade do Cidadão”. Não podemos deixar que os pacientes terceirizem sua saúde aos profissionais da área. Quanto à parcela de Responsabilidade dos Clientes, venho detectando muitas atitudes que colaboram com o excesso de filas e vou citar algumas sem uma ordem de importância. 1) A “Indústria da Doença” propaga pela mídia os milagres da tecnologia, os pacientes ouvem, acreditam e querem, ou até mesmo exigem procedimentos ou exames que, muitas vezes, não ha relação com o caso deles. Cria-se uma expectativa que gera demanda que pode gerar liminares que geram custos e problemas desnecessários. Tudo isto gera sofrimento, desagrado, irritação e filas! 2) Na rede pública de minha cidade (São José dos Campos - SP), e o mesmo deve ocorrer em outras cidades deste imenso país, 50% dos exames (laboratoriais e de imagem) não são sequer retirados das unidades. No centro de especialidades Estadual (AME) 48% dos clientes faltam às consultas. O mesmo cidadão que falta é o mesmo que se revolta porque não ha vagas para este ou aquele especialista. Sempre a culpa é do governo ou dos outros. Sei que parte destes faltosos desistiu da consulta porque demorou muito e/ou porque teve seu problema resolvido espontaneamente ou por outras vias, mas não deixa de ser um “irresponsável” quando não comparece e NÃO avisa com antecedência, a unidade sobre a sua desistência. 3) Os pacientes, pela deformada cultura americanizada, só querem especialistas e eles procuram a especialidade conforme o entendimento deles próprios, gerando consultas desnecessárias e aumentando as filas. 4) Grande parte dos clientes vão e voltam ao médico sem as receitas e exames anteriores e não sabem os nomes nem as dosagens ou número de dias de uso dos medicamentos, como se isto fosse uma obrigação do sistema ou do médico. 6) Há um total desconhecimento dos cuidados mais básicos e simples sobre saúde por parte da população. Às vezes, fazem automedicação perigosa e, por outro lado, deixam de fazer ou fazem de maneira incorreta ou até contra indicada. Ha necessidade de uma "democratização dos conhecimentos sobre saúde e doenças". 7) Temos um excesso de agendamento para controle de doenças que não necessitam de controle tão freqüente. Exemplos? Puericultura mensal durante todo o primeiro ano de vida, controle de colesterol, TSH e outros a cada 2 ou 3 meses, etc. 8) As creches públicas, pelo menos neste município, têm gerado um grande volume de atendimentos desnecessários quando a mais insignificante manifestação de desconforto de uma criança gera um chamado dos pais para que a criança seja levada ao médico, criando uma demanda desnecessária e problemas para os pais que estão trabalhando. 9) Outra grande causa de fila por parte dos pacientes, talvez uma das maiores, é a doença chamada “atestadite aguda e subaguda”. Segundo opinião dos colegas clínicos que atendem em UPA ou Pronto Socorro chega a 40% dos atendimentos. Problema sério e um grande desafio a ser resolvido pelos serviços de saúde, empresas, sindicatos e CLT. (merece um artigo especial). O povo está sofrido, a saúde pública é de má qualidade, mas existem, talvez por motivos populistas e eleitoreiros, razões que impedem os governantes de tomarem atitudes para aumentar o Senso de Responsabilidade dos cidadãos quanto a sua própria saúde. Quanto à parcela de Responsabilidade do Médico gostaria de comentar algumas que notei no serviço público e no privado. Sei que é um terreno minado, quase todos concordamos, entretanto temos receio de comentar publicamente. Uma coisa é certa, quase todas as falhas do Sistema e ou do Cliente acabam recaindo sobre o Médico. Exemplo recente foi o episódio da falta do neurocirurgião ao plantão. A imprensa e consequentemente a opinião pública parece relevar a falta de segurança pública (gerada principalmente pela impunidade), quem atirou na vítima, a gravidade da lesão, a possível inoperabilidade do caso, etc. A culpa é do médico! 1) O poder de resolução dos médicos está cada vez menor, sua formação faz com que ele entenda cada vez mais de sua especialidade e cada vez menos do paciente com um todo. Para mim, este problema já vem sendo causado pelo distorcido currículo do curso de medicina. Tanto nos serviços públicos como de medicina privada, parte dos problemas poderia ser resolvido pelo médico, mas que por desconhecimento, ou impedimento, ou preguiça, ou simplesmente por omissão, deixa de ser feito. Às vezes ele até tenta resolver, mas o “sistema” dificulta ou impede quando ele, por exemplo, fica proibido de solicitar algum exame que esteja fora do rol da unidade que ele trabalha ou porque não poderá fazer um retorno do cliente numa outra data e ele simplesmente encaminha a outro colega. 2) Outra causadora de fila é a recomendação do médico de plantão: “O Sr tem que procurar um especialista” quando muitas vezes ele próprio ou o clinico geral (adulto ou pediátrico) da UBS poderia tratar o problema. 3) Na maioria dos serviços de urgência o atendimento é executado por médicos menos experientes, ou por especialistas com cada dia menos conhecimentos de clinica geral. Os clínicos e cirurgiões que atendem em serviços de urgência deveriam ser os mais experientes e melhores remunerados, mas a “indústria da doença” não concorda. 4) Tem havido por nossa parte, uma neurose por processos de má pratica, quando na realidade eles ocorrem muito mais pela falta de um bom relacionamento médico-paciente, ou quando o médico demonstra desinteresse ou negligência. Frequentemente ouvimos por parte de nós médicos que o serviço está insuportável, que há clientes demais, mas não podemos deixar de reconhecer que parte desta demanda se deve ao nosso próprio comportamento quando não fazemos uma anamnese e exame clínico completos, uma explicação detalhada de como fazer o tratamento, dos efeitos colaterais dos medicamentos e da evolução da doença, etc. Se há carência de profissionais nas unidades básicas o “sistema” tem que resolver. Mas quando somos procurados pelos clientes, mesmo em pronto socorro, nosso juramento de Hipocrates, nosso código de ética e, sobretudo, nossa consciência exigem que façamos o melhor para aliviar o sofrimento dos que nos procuram. “Nenhum floco de neve se julga culpado da avalanche que provocou” Autor desconhecido Wanderson Prado Leite CRM: 25.001 (SP) [email protected]