7 desigualdades raciais no brasil e a “luta por - DBD PUC-Rio

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7
DESIGUALDADES RACIAIS NO BRASIL E A “LUTA POR
RECONHECIMENTO”, POR UMA NOVA COMPREENSÃO
DA LIBERDADE
7.1
Reconhecimento Adequado para a População Negra: Identidade
Étnica e Identidade Nacional
Conforme já dito no capítulo 3, não se trata aqui de, com base nesse debate
do multiculturalismo, reivindicar um reconhecimento das diferenças de modo de
vida ou visões de mundo entre negros e brancos no Brasil. Repetindo o afirmado,
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em perspectivas gerais, negros e brancos no país vivem em integração de
horizontes culturais ou partilham de uma mesma visão de mundo abrangente,
apesar das marcadas diferenças sociais reais provocadas pelo racismo, que os
diferencia em termos de perspectivas sociais concretas.
O que podemos interpretar com base no pensamento de Taylor, é que a
dupla dimensão do reconhecimento que inclui a idéia de identidade pessoal e a de
identidade socialmente derivada, explicaria como pode a sociedade brasileira
produzir alguns ícones ou personalidades negras e ao mesmo tempo percebermos
um racismo perene contra as pessoas negras, coletivamente consideradas, na
sociedade.
Jacques d’Adesky explica que a passagem da identidade individual para a
identidade coletiva, é feita pela noção de pertencimento e pelo processo de
identificação. Ele escreve que a identificação está ligada ao sentimento de
pertencimento que, por sua vez, é um fator da identidade coletiva. A identidade
coletiva é perceber o “mesmo” nos “outros”. Neste sentido, “o grupo torna-se
uma coletividade cuja estruturação e unificação permitem um acesso a um nível
mais seguro de existência. De agregado, o grupo passa a um estado mais
consciente de si próprio.”1
Com base no filósofo hegeliano Alexandre Kojève, d’Adesky afirma que o
homem para se reconhecer enquanto tal, procura impor aos outros a idéia que tem
1
D’ADESKY,J. “Pluralismo Étnico e Multiculturalismo”
123
de si mesmo tentando fazer-se reconhecer pelos outros, por todos os outros. E
para além disso, ele deve transformar o mundo (natural e social) onde ele não é
reconhecido, num mundo em que esse reconhecimento se realiza e a essa
transformação de mundo hostil em um projeto, ou de acordo com esse projeto, é o
que Hegel chama de “ação” ou “atividade”2. Entendemos desta forma o que
Honneth designou por luta por reconhecimento.
Ressaltando esse contexto da interação, aparecem as noções como
aculturação ou perda de identidade, que colocam em relevo a ordem das relações
antagônicas e as dinâmicas interculturais que podem existir entre pessoas que,
num mesmo território, pertençam a comunidades com status diferentes. É que,
segundo d’Adesky, a cultura, ao representar no indivíduo um conjunto de
elementos de todas as ordens, pode ser vivida em harmonia ou em conflito e na
medida em que uma dada cultura abrangente é formada por diversos conjuntos
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diferentes (diversos grupos), podem aparecer tensões capazes de gerar um
processo de degradação destas culturas específicas ou um processo de opressão.
Nestes casos, escreve d’Adesky, os antagonismos culturais, geralmente
acompanhados por disparidades econômicas e no nível político, podem suscitar
nas comunidades marginalizadas a tomada de consciência e propiciar as
reivindicações étnicas, pois como já dito, “identidade é a rejeição daquilo que os
outros desejam que você seja.” O discurso do direito à diferença pode ser um
instrumento capaz de interpretar essa situação e de agir contra ela denunciando a
tendência homogeneizante da coletividade abrangente.
Segundo José Murilo de Carvalho3, após rompermos nossos laços com
Portugal, uma identidade coletiva para o Brasil será perseguida desde a Primeira
República, mas somente na década de 1930 é que as pessoas negras serão
consideradas como elementos fundadores da sociedade brasileira. Segundo
d’Adesky, a identidade nacional brasileira continua sendo a primeira referência de
identificação, mas, as distorções raciais ao serem reinterpretadas, podem fazer
com que as pessoas negras brasileiras minimizem o seu pertencimento brasileiro
como forma de protesto em relação às desigualdades e como denúncia de
opressão, mas “não podem negar esse pertencimento (...) sustentado por quase
cinco séculos de coexistência no mesmo espaço geopolítico (...) e de
2
3
KOJÈVE, Alexandre. (apud: D’ADESKY,J. “Pluralismo Étnico e Multiculturalismo”)
CARVALHO, J.M. “Entre a liberdade dos antigos e a dos modernos: a República no Brasil”
124
entrelaçamento dos patrimônios culturais” e, continua ele “ é natural que ele [o
negro brasileiro] procure reforçar a solidariedade cultural que o liga à África
para melhor afirmar a sua identidade étnica e a herança cultural que a simboliza,
como fonte primeira e fundamental de sua identidade cultural brasileira.”4. Para
que fique bem claro: é preciso separar a identidade coletiva (ser brasileiro) e a
reivindicação de uma identidade étnica (ser negro). Jacques d’Adesky explica que
apesar de servir como suporte para a identidade étnica, a identidade coletiva situase num nível inferior de intensidade, pois ela não é suficiente para compreender os
diversos aspectos de uma realidade complexa que inclui a raça, a religião, a
língua, o território e principalmente a história como elementos de solidariedade
do grupo.5 A identidade coletiva estabelece um elo entre os elementos que
caracterizam a identificação da sociedade abrangente (somos todos brasileiros)
com os elementos que caracterizam a reivindicação de uma identidade étnica (de
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uma negritude, como ser afro-brasileiro), jogando com as percepções, o
imaginário e os conceitos antropológicos e culturais.6
Para articular esses conceitos na realidade política brasileira, devemos
voltar ao conceito de d’Adesky de “dupla negação”. A dupla negação é baseada
(i) em uma denegação específica da dignidade da raça negra, que tem como
expressão a exaltação do tipo ideal de ser humano como sendo o tipo branco e
(ii) numa denegação cultural, na qual é desvalorizada a dignidade da herança
cultural e histórica negra tanto por seus valores intrínsecos quanto o seu valor para
a formação da cultura brasileira. Assim, apesar do racismo brasileiro não ser
essencialista, ou seja, não negar o tipo negro em sua humanidade, exige para a sua
aceitação social que ele embranqueça, que compartilhe da depreciação coletiva da
imagem do negro, ou seja, dos credos e das práticas de desvalorização
generalizada das suas especificidades, as quais o identificam coletivamente com
outras pessoas negras. É nesse sentido que, falar em identidade como desejo de
reconhecimento, está baseado na busca de valorização social das especificidades
(da dignidade intrínseca da raça e da herança cultural), porque a idéia que um
indivíduo faz de si mesmo é, em parte, intermediada pelo reconhecimento obtido
dos outros. O reconhecimento imperfeito (ou incompleto) tem conseqüências
4
D’ADESKY,J. “Pluralismo Étnico e Multiculturalismo”, pág 44
D’ADESKY,J. “Pluralismo Étnico e Multiculturalismo”
6
D’ADESKY,J. “Pluralismo Étnico e Multiculturalismo”
5
125
negativas para a formação da identidade e o conceito de dupla negação explica a
perversidade do racismo brasileiro que se impõe como entrave e opressão à
população negra.
A reivindicação da identidade étnica não é, nunca foi e nem será causa do
racismo, mas conseqüência dele. Ela veio depois. Após a tomada de consciência
política pela população negra e a constatação de que as práticas sociais
implementadas
corroboravam
com
iniqüidades
e
injustiças
e
que
o
compartilhamento de uma identidade coletiva abrangente, no caso ser brasileiro,
era insuficiente para explicar as desigualdades fundadas em elementos como a
raça.
Nesse sentido, a adoção de ações afirmativas no Brasil, se pensarmos no
mecanismo das cotas, por exemplo, apesar de poder ser justificada sob a
perspectiva liberal de criação de uma classe média negra, baseada no postulado de
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que a igualdade de todos não tem sido efetivada para a população negra, tem
também um forte caráter de reconhecimento uma vez que, medidas diferentes das
cotas, como a lei 10.639, que incluiu o ensino da História da África e da
contribuição dos afrodescendentes para a História do Brasil, se propõem a mudar
a mentalidade das próximas gerações e suas percepções da realidade7; formar
novas visões de mundo e, dentro do conceito da dupla negação, atuar contra os
efeitos da denegação de tipo cultural.
Neste caso, seguindo a lógica de Taylor, não há que se falar em
temporalidade para a vigência da medida, pois não há como se prever algum
tempo para a correção de uma fraude histórica cometida contra toda a população
brasileira que teve, em virtude do racismo das suas elites, negada a várias
gerações a oportunidade de se conhecer melhor por meio da identificação das suas
influências e suas raízes históricas, informando-se mais sobre a cultura negra e
suas especificidades que tanto contribuíram para a formação da cultura nacional.
O racismo brasileiro nos impôs um mito: o de que vivíamos numa democracia
racial. E nos impôs um tabu, o de que apenas discutir o fato seria o mesmo que
agir contra esse nosso maior “patrimônio”. Ora, não é possível aceitar mais essa
argumentação, pois que patrimônio é esse que não agüenta e nem admite um
simples questionamento? Isto é o mesmo que aceitar, ainda que implicitamente,
7
O debate sobre as políticas de ação afirmativa com base na teoria da redistribuição, será abordado
posteriormente.
126
que esse “patrimônio” é construído em bases pouco sólidas. Nesse sentido até
Jessé Souza concorda que a discussão aberta do tema nas escolas e na mídia, por
campanhas específicas, poderia fazer com que os brasileiros fossem confrontados
com os seus mecanismos implícitos de exclusão racial. Segundo ele, o melhor
exemplo neste ponto talvez seja o da Alemanha Federal, a qual que a partir do
enfrentamento corajoso e público do seu passado recente, logrou formar uma das
juventudes mais democráticas e liberais da Europa atual.8
Como oposição à reivindicação de identidade étnica, sempre aparece a
discussão sobre o tema “quem é negro no Brasil ?”. Essa pergunta é feita
indisfarçavelmente sob o pretexto de que há um continuum de cores no país, pois
a mistura racial torna impossível discernir os pardos, os mulatos, os pretos, etc. e
se não há como identificar o público-alvo, as políticas afirmativas não devem ser
aplicadas. A acusação é invariavelmente a mesma; a de que a divisão binária
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branco/negro é uma importação de estrangeirismos norte-americanos e não
refletem a realidade do Brasil.
Segundo d’Adesky, há ambigüidade e indeterminação no conceito de raça,
pois o termo “negro” é uma categoria tão convencional e abrangente, desde os
“pardos” até “pretos”, quanto o termo “branco” que igualmente agrupa cores
diferentes já que os brancos não são verdadeiramente brancos.9 Além disso,
lembra ele, a multiplicação das categorias relacionadas à cor da pele, formato do
rosto e textura dos cabelos é um acontecimento somente comum em sociedades
multirraciais e que o anseio das pessoas em agrupar os outros em grupos raciais
ou de cor, seria apenas um exercício banal se não escondesse, às vezes, um desejo
de hierarquizar os outros numa escala racial e cromática. 10
O que está verdadeiramente em jogo nessa discussão é o racismo que
impinge um menosprezo em relação às pessoas classificadas segundo critérios de
inferioridade racial. É como se atributos intelectuais ou morais fossem
diretamente relacionados às características físicas. Segundo d’Adesky, é um falso
problema encarar as diversas tonalidades abarcadas pelo termo “negro” como
sendo excludentes, pois todas elas sofrem efeitos da discriminação racial.
Podemos ainda lembrar que, segundo a classificação da ONU, a população negra
8
SOUZA, J. “Democracia racial e multiculturalismo”
D’ADESKY,Jacques. “Anti-Racismo, Liberdade e Reconhecimento”
10
D’ADESKY,Jacques. “Anti-Racismo, Liberdade e Reconhecimento”
9
127
integra os chamados grupos vulneráveis, pois a estatística de piores condições de
vida, representada pelos menores índices de escolaridade, de expectativa de vida,
e de oportunidades de participação na vida econômica, política e cultural do país,
é praticamente idêntica entre todas essas cores do continuum que formam a
categoria “negro”, como também são quase idênticos os números que as separam
das melhores posições estatísticas nos mesmos índices citados as quais estão,
numa invariável monotonia, ocupadas pelas pessoas brancas.
J.d’Adesky sugere mais uma vez inverter a pergunta sobre quem é negro
no Brasil para quem sofre privações por motivo de raça e cor da pele? Essa
formulação esclarece que as demandas por políticas de ação afirmativa não estão
baseadas numa idéia de essência racial, mas nos fatos de discriminações sociais
por motivos históricos em virtude do racismo, do sexismo, da homofobia, etc.
Assim a reivindicação de uma identidade étnica, ser negro, não é negar o
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pertencimento a uma humanidade comum, nem negar a nacionalidade brasileira,
mas é uma referência a uma demanda política no espaço público por
reconhecimento digno das especificidades, as mesmas especificidades (cor,
cabelos, etc.) que são objeto de discriminação. É uma demanda por re-significação
social dos elementos que demonstram uma ascendência africana por parte de
determinada coletividade.
Ele recorda, ainda, que uma demanda identitária pode levar ao risco de
aprisionamento do indivíduo numa identidade fixa e irredutível ao diálogo com o
outro. Mas nesse caso, não é o que acontece. A abordagem positiva do
reconhecimento afasta este risco, pois é uma dimensão de liberdade reconhecer
que são os atos que tornam o indivíduo uma vítima, e que não há uma demanda
por uma essência de vítima. A sociedade é o que construímos. Não há vítimas por
essência, mas vítimas de atos discriminatórios11.
Nesse debate sobre identidade e nacionalismo, é necessário trazer à
colação o importante pensamento de Sheyla Benhabib. Ela define a cidadania
como prática social e delimita três componentes fundamentais: a identidade
coletiva, privilégios de pertencimento político e os direitos, além dos benefícios
sociais.
11
WORMS, FRÉDÉRIC (apud: D’ADESKY,Jacques. “Anti-Racismo, Liberdade e
Reconhecimento”, pág. 62)
128
Identidade coletiva é o fato de se pertencer a uma entidade política e
histórica ou a um Estado; os privilégios de pertencimento são os direitos de
participação política na condução da vida pública, ou os direitos de autogoverno;
e por fim, seguindo a formulação de T.H.Marshall, a possibilidade de envergar os
direitos sociais e aos benefícios do wellfare. Nessa linha, ela reconhece que não
há uma fórmula única aplicável em todos os casos. O desenvolvimento acelerado
da globalização, afirma ela, não gerou a “ordem cosmopolita” como condição para
a paz perpétua, como queria Kant, mas um ponto crítico de conflitos entre direitos
humanos e soberania popular. Acontece que, como lembra Hannah Arendt, os
direitos humanos professados, não são para um ser humano “abstrato” que se
encontra em lugar nenhum, mas para o povo, o próprio povo.
O exercício da cidadania é baseado na disposição de direitos de
participação, na possibilidade real, concreta de participação política. A
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reivindicação étnica do movimento negro do Brasil é uma forma de denúncia e de
postura crítica, mas também um modo específico de se inserir, na cultura
nacional, de se apresentar no espaço público. Ressalta d’Adesky que, sem grande
contradição política aparente, pode-se identificar um indivíduo como corso e ao
mesmo tempo como francês, e reivindicar a negritude ou a condição de nissei e
assumir a nacionalidade brasileira. Quem é tutsi é também ruandense, e utilizando
o exemplo de Taylor, quem é de Quebec, é também canadense.12
Para seguir a lógica da dialética hegeliana, filósofo de fundo de todo este
esforço teórico, podemos afirmar que o desejo de reconhecimento se realiza numa
tensão. O racismo nega a identidade, e é a reivindicação étnica quem traz à tona o
próprio “ser”, por meio do que ele chama de “negatividade-negadora”, ou seja,
negar uma identidade nacional (para negar na verdade a homogeneização que ela
propõe). Mas essa segunda negação não é essencial, isto é, não está em oposição
nuclear com uma identidade brasileira abrangente, mas baseada em fatos
históricos discriminatórios e, portanto, ambas as identidades, apesar da
incompatibilidade a priori, são passíveis de uma síntese posterior em nível mais
elevado, após a superação das contradições primeiras, substituindo a dupla
negação por um duplo reconhecimento, ou um reconhecimento completo da
população negra. Com isto toda a sociedade evolui.
12
D’ADESKY,J. “Pluralismo Étnico e Multiculturalismo”pág. 61
129
7.1.1
A População Negra Rural, Os Quilombolas.
Quando se trata da população negra rural, a lógica da reivindicação
identitária ganha contornos ainda mais interessantes. Uma das idéias mais
substanciais em prol da conclusão do processo inacabado da abolição e reparação
da dívida histórica do Estado brasileiro com a população negra, foi o
reconhecimento do direito de propriedade sobre as suas terras, aos moradores em
áreas remanescentes dos antigos quilombos. Essa conquista foi fruto de uma
proposta do movimento negro à Assembléia Nacional Constituinte, e convertido
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em norma constitucional no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias da Carta de 1988.13 O que a constituição chama, curiosamente, de
remanescentes de quilombos, o Movimento Negro chama de quilombolas.
O INCRA, órgão federal responsável pela regularização fundiária no
Brasil e a Fundação Palmares, órgão federal responsável pelas terras de quilombos
têm, recentemente, encomendado estudos jurídicos sobre o assunto a diversos
especialistas em direito agrário e segundo o estudo do procurador federal do
INCRA Leandro Mittidieri, o direito de propriedade dos quilombolas, é um direito
coletivo, pois conferido em função da qualidade de comunidade dos
remanescentes de quilombos. Afirma ele que
“o título da propriedade somente pode ser coletivo e pro indiviso, ou seja,
indivisível, em que a comunhão perdure de fato e de direito; todos os
comunheiros permanecem na indivisão, não se localizando [individualmente] no
bem, que se mantém indiviso. O direito também é inalienável, indisponível,
13
Segundo estudo do procurador federal Leandro Mittidieri, “o direito de propriedade das
populações não integradas na comunhão nacional sobre as terras que tradicionalmente ocupam, já
era reconhecido pelo art. 11 da Convenção n. 107/57 da Organização Internacional do Trabalho –
OIT, promulgada pelo Decreto n. 58.824/66, sendo certo que, já à época, uma vez aprovados pelo
Poder Legislativo, os tratados e convenções internacionais ingressavam no ordenamento jurídico
pátrio com status de lei (art. 74, alínea “d”, da CR/37). Mas este direito apenas foi contemplado
com efetividade após sua regulamentação, esta que foi contida ao máximo pelas forças
conservadoras da elite brasileira. Primeiramente, adveio o tímido Decreto n. 3.912/01.
Posteriormente, foi expedido o Decreto n. 5.051/04, que promulga a Convenção n. 169/89 da
Organização Internacional do Trabalho – OIT, sobre povos indígenas e tribais. E, por fim, veio à
lume o Decreto n. 4.887/2003.”: MITTIDIERI, L., in: “Remanescentes De Quilombos, Índios,
Meio Ambiente E Segurança Nacional: Ponderação De Interesses Constitucionais” , cópia mimeo.
130
imprescritível e impenhorável (art. 17 do Decreto n. 4.887/03), à semelhança do
que ocorre com as terras indígenas (art. 231, § 4º, CR).”14
Ora, a norma do art. 68 ADCT, emana do Poder constituinte originário,
que, por definição, é ilimitado originário e primário, não podendo ser, portanto
contestada. Nesse sentido, apesar do seu status jurídico sui generis, no
ordenamento brasileiro, ela permanece contra todas as reivindicações judiciais e
mesmo contra as bases majoritariamente individualistas do direto liberal
brasileiro.
Como já dito no capítulo 3, apesar de estudos mostrarem que quilombo são
muito diferentes entre si, e não implicam, necessariamente, a presença das
religiões de matrizes africanas, por exemplo, um traço distintivo entre eles e faz
com que resistam até hoje, é o usufruto comum da terra. Tal sistema consiste em
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não reconhecer a terra nua como um bem econômico, mas sim, somente aquilo
que é erguido sobre ela, ou seja, módulos de trabalho como uma casa, a roça, e
outras benfeitorias. Isto permite que os membros destes povoados permaneçam
unidos, indivisos e convivendo de maneira harmoniosa a ponto de superarem
possíveis diferenças que possa haver entre eles, formando um forte elo de
resistência e capacidade de luta contra grupos que, cada vez mais poderosos e
numerosos, ameaçam-nos pelo uso da violência e da usurpação.15 Segundo relatos
de pesquisadores do tema, o fato dessas terras se acharem situadas em áreas
críticas de tensão social, “desperta nos seus moradores o sentimento e a certeza
de estarem ali por direito, já que tais terras foram-lhes transmitidas pelos seus
antepassados.”16 Neste caso, além dos traços fisionômicos, é o território um
importante fator de identificação coletiva, e o que provê uma identidade aos seus
indivíduos.
Assim, devido à irresistível força do Poder constituinte originário, em caso
de colisão no sistema de direitos do Brasil, entre os direitos individuais de
propriedade (um dos pilares “sagrados” do direito liberal desde Locke) e esses
direitos comunitários dos quilombolas, os últimos devem sempre prevalecer e
14
MITTIDIERI, L. ( g.n.)
“Terras de Preto: Quebrando o Mito do Isolamento” – Projeto Vida de Negro, SMDDH
16
“homens e mulheres fazem o que está a seu alcance, mostrando-se resolutos ao lutarem por um
direito que é seu: ficarem nas terras de preto, seus quilombos.” Terras de Preto: Quebrando o Mito
do Isolamento – Projeto Vida de Negro, SMDDH
15
131
podemos, interpretar que, seguindo a lógica de Taylor, ao menos neste caso
específico, o Estado brasileiro fez uma opção muito próxima a uma posição
substancial de democracia, a defesa e a preservação destas populações
minoritárias, ao proteger um elemento galvanizador da sua identidade, as suas
terras. Podemos aqui interpretar, sem muito risco, que essa opção do Estado
brasileiro, expressa pelo Poder Constituinte Originário e que orienta toda a
interpretação constitucional, é mais do que fruto de deliberações na esfera pública.
Já havia uma concepção compartilhada de bem, ou melhor, o que possibilitou a
deliberação foi uma pré-compreensão do valor positivo de se preservar e proteger,
primeiramente, as populações indígenas e esse fato foi estrategicamente
aproveitado pelo movimento negro. Fazendo uma breve digressão, podemos
entender essa concepção como fruto do período do romantismo no Brasil que, por
aqui, teve uma vertente indigenista a qual em busca de certa autenticidade para o
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país, em peças e romances, procurava valorizar o índio como o autêntico nativo
do Brasil, destacando aspectos de coragem e destemor, como sendo ele a
verdadeira expressão nacional. Essa construção mítica tinha por objetivo
demonstrar que essas qualidades de bravismo dos nativos, de alguma maneira
impregnaram a alma do país para fins de ações políticas menos passivas.
7.1.2
Conformidade e Distinção
Analisando a realidade brasileira, entendemos com Jacques d’Adesky que,
para a análise social, não basta aventarmos as imensas distâncias econômicas que
separam brancos e negros no país, como demonstram inúmeros institutos de
pesquisa econômica. Se tomarmos como critério o Atlas do Desenvolvimento
Humano, do PNUD, por exemplo, que leva em conta fatores não-econômicos,
percebemos que é preciso também considerar as condições de vida e as formas de
representação destas desigualdades.
Charles Taylor afirma que o reconhecimento igualitário completo deve ser
dado em função de uma identidade comum (a igual dignidade), mas também com
base na identidade única do grupo, o que o distingue dos demais. É o que Honneth
132
afirma ao dizer é necessário o reconhecimento no Estado, na esfera da
solidariedade, quanto às particularidades. Devemos ter em mente que as
identidades são múltiplas e sobrepostas, começando pela identidade universal do
ser humano, que é abstrata, até as identidades nacionais, éticas, etc. Como explica
d’Adesky “existem aquelas [identidades] que consideramos fundamentais para
nós mesmos e lhes atribuímos grande valor(...) e na medida em que elas são
negociáveis com os outros ‘doadores de sentido’, observamos que algumas delas
podem ser ridicularizadas, desprezadas ou objeto de escárnio (...) nessa relação
dialógica podemos concluir que a cidadania passa necessariamente pelo respeito
às múltiplas identidades que nos constituem”17 Ele escreve, com base no
pensamento de Tzvetan Todorov, filósofo, historiador e lingüista francês de
origem búlgara, que as nossas múltiplas identidades geram uma dinâmica
complexa em relação ao reconhecimento, pois nesse sentido, por exemplo, uma
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mulher negra estaria em uma situação mais desfavorável do que a de um homem
negro, que não sofreria a segunda discriminação, de gênero.
Todorov apresenta uma tipologia do reconhecimento na qual ele expõe
duas formas opostas de reconhecimento que variam bastante: (i) o reconhecimento
de conformidade e o (ii) reconhecimento de distinção.
Segundo ele, aquele que espera mostrar-se melhor, mais belo ou brilhante,
espera, naturalmente se destacar. Por outro lado, aquele que não deseja ser
excepcional, e sim normal, que se conforma com as normas e costumes
considerados adequados à sua condição, tem igualmente necessidade de
reconhecimento.
Jacques d’Adesky aposta que essas duas formas de reconhecimento são
úteis numa sociedade multirracial como o Brasil, para mostrar as diferenças entre
o ideal de distinção e o ideal de conformidade. Onde existe uma hierarquia racial
implícita que afeta negativamente as pessoas negras, o ideal de distinção é de
difícil acesso para elas. Dados estatísticos já demonstraram a maior dificuldade de
mobilidade social ascendente entre as pessoas negras que,
mesmo com
habilidades idênticas, têm maior dificuldade de obtenção de emprego do que as
pessoas brancas. Ele ressalta que a imagem da pessoa negra, mesmo que não seja
determinante para a obtenção de um emprego, influi negativamente na seleção
17
D’ADESKY,Jacques. “Anti-Racismo, Liberdade e Reconhecimento”, pág 87 / 88
133
para certos postos como cargos mais altos de direção ou que tenha que lidar
diretamente com o público, como o de vendedores em lojas de shopping centers.
Podemos entender assim que o ideal de conformidade acaba se tornando a opção
mais viável para a maioria das pessoas negras, que aspiram em primeiro lugar à
igualdade mínima de tratamento. Já para os brancos, diversamente, lhes é possível
ir além, e buscar o sucesso e a distinção como sinais de reconhecimento, sendolhes as oportunidades de escolha, mais extensas. Eles partem da experiência
concreta de uma sociedade que se apresenta com valores republicanos igualitários
e democráticos, permitindo o usufruto completo da liberdade numa trajetória
rumo ao prestígio social (conforme já visto anteriormente), neste caso baseado na
noção de mérito. Esta questão do mérito será retomada logo adiante.
Retomando o conceito de Hegel de liberdade situada, podemos analisar
que as condições sociais concretas não permitem o exercício extenso da liberdade
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para as pessoas negras. Ou melhor, o racismo da sociedade brasileira afeta
negativamente as condições internas e externas da liberdade, não permitindo a sua
plenitude universal. São os padrões formais de reconhecimento baseados no amor,
no Direito e na solidariedade, que devem assegurar as condições universais de
liberdade para que as pessoas negras realizem as suas metas individuais. Desta
forma, dentro de uma concepção de luta por reconhecimento, a liberdade almejada
não pode ser encarada simplesmente como a liberdade positiva ou a liberdade
absoluta de Hegel. Mas é uma liberdade anterior a essa. Não é uma demanda por
poder fazer o que quiser, mas por condições sociais que possibilitem antes
perceber o leque de opções, ou melhor, de torná-lo o mais amplo possível. Se
apenas duas opções são oferecidas e a pessoa não é forçada a escolher entre elas,
devemos admitir que haja liberdade. Mas se o leque de opções era originariamente
maior e apenas duas foram oferecidas, a nossa compreensão sobre a existência da
liberdade muda. Desta forma a liberdade situada de Hegel, como exposta no
capítulo 2, requer a consideração da realidade envolvida no universo de escolhas
do agente. É uma liberdade social, na medida em que só pode ser definida
comparativamente ou relacionalmente. Agentes iguais e postos nas mesmas
condições devem poder ter as mesmas possibilidades de escolha.
As reflexões sobre a igualdade e a compreensão da sua dupla dimensão,
como igualdade formal e material, ou substancial, são totalmente pertinentes neste
caso. O laço entre liberdade e igualdade permite colocar em evidência que a
134
igualdade que se busca é o que d’Adesky chama de igualdade libertadora,
comumente conhecida como eqüidade18. A eqüidade como um critério mais
rigoroso de igualdade, permite inclusive o tratamento diferenciado com vista à
equiparação de fato entre pessoas ou grupos desprivilegiados, corrigindo a
desigualdade real e promovendo a almejada igualdade. Agora, se estivermos em
um plano posterior, de pós-estabelecimento da igualdade, o que fica evidenciado é
a busca por liberdades, por possibilidades de auto-realização expressiva, visto que
cada um é único em seu modo de ser.
A liberdade encontra-se no campo da ação, da autonomia e da luta contra a
servidão. Permite a condição para a conquista do reconhecimento pelo outro e ao
mesmo tempo a consciência, em si mesmo, deste reconhecimento19. Como diz,
d’Adesky, igualdade e liberdade, não são termos de uma alternativa. O que a
consideração da liberdade permite é revelar que o que está em jogo, além das
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igualdades de condições (ou precondições de liberdade), é a liberdade de
realização a que todos têm direito20.
Voltando ao ideal de distinção, conforme aventado anteriormente, ele é
baseado na possibilidade do prestígio social diferencial, que por sua vez é
assentado na noção de mérito diferencial. Conforme já explicado, para as pessoas
brancas a busca pelo prestígio social é uma possibilidade real de exercício da
liberdade, uma vez que a sociedade se lhes apresenta com valores republicanos e
democráticos. Acontece que o mérito que assenta toda essa possibilidade, não
pode ser absolutizado.
Afirma d’Adesky, que o mérito não pode ser considerado como se não
tivesse nenhum laço com a realidade, pois a noção de mérito não tem sentido por
si só. O mérito é também um conceito que só pode ser articulado relacionalmente,
com algo que lhe seja exterior 21. Neste ponto, novamente o conceito de liberdade
situada de Hegel pode informar que, se pensarmos especificamente na
modalidade das cotas universitárias para o acesso ao ensino superior,
recentemente implantadas no Brasil, e que têm como objetivo incluir pessoas
18
D’ADESKY,Jacques. “Anti-Racismo, Liberdade e Reconhecimento”. De qualquer forma, a
título de mera especulação filosófica, podemos entender que ao falarmos de eqüidade, não estamos
mais no campo da igualdade. A eqüidade é relativa a outros referenciais enquanto a igualdade é
relativa somente a um único referencial qual seja a unidade que originou a comparação.
19
D’ADESKY,Jacques. “Anti-Racismo, Liberdade e Reconhecimento”
20
D’ADESKY,Jacques. “Anti-Racismo, Liberdade e Reconhecimento”
21
D’ADESKY,Jacques. “Anti-Racismo, Liberdade e Reconhecimento”
135
negras nas universidades brasileiras, podemos concluir que uma defesa absoluta
do mérito num concurso vestibular universal, por exemplo, pode apenas repetir as
clivagens e desigualdades raciais existentes na sociedade, mantendo a proteção
aos mais favorecidos economicamente em detrimento dos que não tiveram a
mesma oportunidade de adestramento intelectual para a realização daquele tipo de
exame, mas que estão totalmente aptos a cursar o nível superior de educação. É
desnecessário repetir aqui as inúmeras possibilidades que se abrem após a
conclusão de um curso superior, e que isto representa uma dimensão importante
de liberdade.
7.2
A Crítica à Teoria de Nancy Fraser e à Sua Concepção de
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Reconhecimento
Mesmo correndo o risco de certa imprecisão metodológica, optei por trazer
num mesmo momento, todas as críticas elaboradas à teoria de Nancy Fraser, ao
mesmo tempo em que pretendo demonstrar porque ela não se mostra a maneira
mais adequada de analisar globalmente a realidade das relações raciais brasileiras,
apesar de ser relevante para salientar, que as disparidades que afetam a nossa
sociedade, têm uma importante dimensão econômica.
Os motivos que a levaram a elaborar a sua interpretação “crítica” do
reconhecimento, expostos anteriormente, talvez se devam ao fato de todos os
pensadores citados por ela estarem focados para a realidade dos países
desenvolvidos, e não para um país periférico como o Brasil. Quando ela afirma,
por exemplo, que “antigos conflitos de classe” foram paulatinamente e de forma
“tendenciosa” substituídos por conflitos de status social advindos da dominação
cultural, certamente ela não está pensando em um país como o nosso em que a
absoluta maioria da população é pobre ou extremamente pobre e que só muito
recentemente começou a resolver o problema básico da fome.
De qualquer forma, tomando as relações raciais no Brasil, é igualmente
reconfortante perceber que com base na proposta de Fraser, as conseqüências
136
perversas do racismo na dimensão econômica podem ser articuladas de formas tão
contundentes.
Em face de tudo o que já foi elaborado nesta dissertação, podemos, sem
muitas dificuldades e seguindo a concepção de Fraser, entender o racismo como
uma compreensão hierarquizada da realidade multirracial brasileira, que
estabelece certos estamentos, ou uma diferença de status social e que isto se
configura, como uma injustiça na medida em que impede a participação paritária
dos estratos inferiorizados ocupados pelas pessoas negras ao mesmo tempo que
tem conseqüências nas possibilidades de ascensão econômica deste segmento
social.
Por outro lado, adotando a elaboração de Fraser para os nossos próprios
fins, podemos articular esta sua compreensão de status e extrapolar a arena de
participação política, e compreender a sua injustiça devido à privação de liberdade
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que ele implica, se novamente tomarmos o conceito de liberdade situada de
Hegel.
Como já dito, liberdade é não só poder realizar as escolhas, mas ter opções
de escolha. Situando a liberdade na sociedade, ela se caracteriza pela possibilidade
de termos as mesmas opções que qualquer outro, pois se a igualdade for efetiva,
não importa quem detém o controle social22. A perda de liberdade se configura
assim, quando a impossibilidade de exercermos o controle social nos leva a
perdemos o domínio da nossa existência, seja no plano simbólico ou concreto. Se
lembrarmos a lei 9.504/97 que instituiu cotas de participação política para as
mulheres no Brasil, percebemos que a falta de mulheres nas representações
parlamentares é uma distorção da realidade, uma vez que elas são a maioria da
população brasileira, segundo dados dos últimos recenseamentos e que a
discriminação de status contra as mulheres, numa sociedade machista e patriarcal,
aparece como a única explicação plausível para esta contradição. Sem maiores
argumentações, isto se configura como um cerceamento intolerável à liberdade no
plano concreto.
Da mesma forma acontece, quando pensamos na produção midiática no
Brasil, e constatamos que a população negra e os grupos indígenas não têm acesso
paritário à mídia. Vários estudos já foram realizados nesta área e concluem que a
22
Se quisermos pensar em termos de igualdade, poderemos entender que, neste sentido, igualdade
material não seria uma mesmidade, mas precondições de liberdade.
137
presença de pessoas negras e indígenas em filmes, novelas e comerciais são
esmagadoramente estereotipadas e inferiorizadas. O poder de informação e de
influência como formador de opinião, numa sociedade complexa como a atual,
não pode ser considerado secundário, mas antes, uma dimensão fundamental da
liberdade de expressão. No Brasil, os veículos de comunicação são organizações
privadas e enunciam interesses particulares que muitas vezes tolhem a autonomia
de expressão das pessoas negras pela forma mais adequada. Podemos fazer uma
relação com Foucault, um dos filósofos que mais pensou o poder e o controle
enquanto categorias, que no seu livro “A Ordem do Discurso”, afirma que na
nossa sociedade complexa, a disputa de poder, não é mais pela produção do
conteúdo do discurso, mas pela possibilidade de proferi-lo. Neste caso, o
cerceamento seria não apenas concreto, do princípio constitucional, mas
principalmente simbólico, pela auto-representação adequada.
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Apesar de articular os temas de reconhecimento e redistribuição, e de
afirmar que as diferenciações entre economia e cultura são analíticas e que, na
prática, estas duas dimensões encontram-se imbricadas, afirmei anteriormente que
Fraser deixa emanar a sua posição de que, em determinadas reivindicações, o
reconhecimento não é cabível ou mesmo desejável. Um exemplo trazido por Jessé
Souza, é de que realmente não teria muito sentido um grupo de trabalhadores
requerer ao seu sindicato que lute por reivindicações de suas particularidades
culturais.23
No que interessa aos objetivos desta dissertação, o que mais chama
atenção na crítica de Fraser é que em quase todos os seus textos ela manifesta
profundas preocupações quanto ao modelo de reconhecimento baseados na
identidade (identity models), como ela o chama. Segundo ela, o seu modelo é
baseado em status, como uma alternativa às reivindicações de identidade dos
diversos movimentos sociais e ela manifesta claramente o seu receio de que
reivindicações desta natureza produzam a essencialização e a reificação do
conceito de identidade, utilizando frases como “a justiça requer o
reconhecimento do que nos diferencia como indivíduos ou grupo ao invés do
reconhecimento da nossa humanidade comum ?”
23
24
A resposta a essas
SOUZA, Jessé. “A construção Social da Subcidadania: para uma sociologia política da
modernidade periférica”Ed. UFMG e Ed. IUPERJ, 2006
24
FRASER,N. “Recognition without ethics?” Trad.livre
138
preocupações de essencialização e reificação dos elementos da identidade, e as
reivindicações identitárias do Movimento Negro, já foram bastante abordadas,
mas ainda sim cabem algumas últimas observações sobre o assunto.
A proposta dela é de que as soluções são várias, uma para cada caso. Ela
adota como exemplo o movimento gay. Este movimento adota uma estratégia
política dupla, de reivindicação identitária e ao mesmo tempo de desestabilização
das identidades sexuais. Em relação ao casamento gay, por exemplo, ela afirma
que as soluções podem ser dar-lhe o mesmo status que ao casamento
heterossexual, ou desinstitucionalizar o casamento tradicional.
Dentro da realidade brasileira, a resposta que podemos aventar para os
seus remédios transformativos (como ela os chama) é a constatação feita no
capítulo 1 de que o Brasil como país subordinado, está adstrito aos interesses
capitalistas internacionais e que apesar do status de legitimidade que alcançaram
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programas de redistribuição de renda na sociedade brasileira, seria temerário
afirmar que há condições políticas de uma transformação estrutural do sistema
econômico no país. Em termos de relações raciais, d’Adesky afirma que essas
desconstruções de códigos binários que ela propõe (como das categorias
branco/negro) a fim de evitar a reificação identitária, são mais teóricas do que
práticas , “em razão da existência de numerosas categorias raciais pelas quais se
admite que uma pessoa negra de pele clara [em determinadas circunstâncias]
seja considerada branca, ocorre-nos que o remédio para o desprezo e a
depreciação reside principalmente (...) na mudança cultural ou simbólica, sob a
forma de uma reavaliação positiva das identidades afro-brasileiras e das
heranças históricas e culturais de origem africana.” E neste mesmo sentido,
continua d’Adesky “(...) e como os negros são objetos simultaneamente de
injustiças econômicas e depreciações, seria preciso ao mesmo tempo assegurar
uma redistribuição paritária e uma política de reconhecimento que implique entre
outros, o direito de perceber a si mesmos em termos autodefinidos que os
agradem.”25
A teoria do reconhecimento tal como formulada por Taylor e por Honneth,
tem duas dimensões distintas, uma universal e outra particular. A universal está
ligada à formulação kantiana de igual dignidade de todos os seres e fundamenta o
25
D’ADESKY,J.. “Anti-Racismo, Liberdade e Reconhecimento”, pág.111
139
direito à igualdade enquanto a particular é norteada pela perspectiva hegeliana do
princípio da autenticidade o qual reconhece que estes mesmos seres iguais em
dignidade, não são atomizados, mas produzidos em situações e condições
históricas específicas, cada uma destas formas originais contribuindo de forma
diferente à reprodução da vida social, e são todas igualmente merecedoras de
respeito. Esta é a base do direito à diferença.
Tomando o exemplo dado por Jessé Souza, parece que Fraser se apega
somente à dimensão particularista (ou específica) da teoria do reconhecimento
baseada na autenticidade. Segundo Jessé Souza, ela não contempla a hipótese de
que a desigualdade entre classes também esteja baseada em princípios que
envolvem o reconhecimento, ou melhor, neste caso o não-reconhecimento26. Estes
princípios adquirem eficácia social a partir de regras opacas que se apresentam
neutras e impessoais, mas que de forma pré-política ou subliminar condenam
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classes sociais inteiras ao não-reconhecimento social e à baixo-estima e, a partir
disto, legitimam um acesso não paritário a serviços, bens sociais escassos e
mesmo a direitos políticos e culturais. Enfim, ao poder social econômico e
simbólico. Melhor explicando, na sociedade moderna, algumas diferenciações são
incontornáveis. O que o racionalismo moderno trouxe foi a necessidade de
justificativas não-transcendentais nem metafísicas para as desigualdades, como já
dito anteriormente, a luta pelo fim dos privilégios, que são os benefícios não
justificados. A busca por prestígio social diferencial, por exemplo, não é
condenável em si, pois está baseada na noção de merecimento (mérito) que por
sua vez está assentada em bases de possibilidades igualitárias e universais,
somente dependendo, ao menos em tese, das aptidões individuais (autenticidade).
Para Taylor, o reconhecimento social como consenso historicamente
produzido, aplica-se tanto à noção de dignidade que confere força ao postulado da
igualdade, quanto à noção de autenticidade, demandando respeito à diferença.
Estes princípios não são apenas antagônicos, mas complementares, como as
dimensões das demandas por redistribuição econômica complementam as
reivindicações por reconhecimento cultural e estão englobadas por requerimentos
de reconhecimento social.
26
D’ADESKY,Jacques. “Anti-Racismo, Liberdade e Reconhecimento”
140
Ao procurar retirar a dimensão ética da demanda por redistribuição,
aventando-lhe apenas um conteúdo material, Fraser não considera, por exemplo,
que um recurso à dimensão da auto-estima foi o que possibilitou o Welfare State.
A intuição hegeliana original de que a sociedade evolui, pode ser afirmada com os
conceitos ampliativos de cidadania de Marshall, quando Honneth escreve que
particularidades que não gozavam de proteção antes, passaram a tê-la. Novamente
é a contribuição de Taylor em “As fontes do self ” importante neste sentido, ao
revelar que em termos culturais, a concepção que temos acerca dos padrões
ocidentais por exemplo, não é natural, nem nos foi dada de forma transcendental,
mas sim produzida materialmente por fatos históricos que a determinou e
qualquer olhar de superioridade ou de valoração moral a partir deste padrão em
direção a outros, é igualmente uma construção histórica e contingente. Neste
sentido, mesmo instituições centrais do capitalismo como a existência de classes
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sociais (com as suas enormes disparidades que tanto incomodam à Fraser), são
dependentes de legitimação, dependentes de consenso moral. 27
A “hierarquia moral” entre os valores a que Taylor se refere em sua teoria,
são as concepções valorativas subjacentes às práticas sociais concretas, e o
capitalismo é uma delas, e permitem a afirmação da tese fundamental de que toda
ação humana seja em contextos econômicos, políticos ou culturais específicos, ou
não, está inserida numa moldura que pressupõe escolhas e avaliações morais
como causa última.
Ao retirar do reconhecimento a sua possibilidade de acomodar demandas
de redistribuição econômica, Fraser aparentemente esvazia a teoria de seu poder
transformador e libertário, da sua força baseada em argumentos éticos, e segundo
a crítica elaborada por Jessé Souza e Patrícia Mattos, sem formular na sua teoria
uma
explicação
concreta
suficientemente
clara
de
como
ocorrem os
imbricamentos entre as dimensões redistributivas e de reconhecimento28.
27
MATTOS, P. “A Sociologia Política do Reconhecimento”
SOUZA, J. SOUZA, Jessé. “A construção Social da Subcidadania” e neste mesmo sentido,
MATTOS, P. “A Sociologia Política do Reconhecimento”
28
141
7.3
Multiculturalismo e Relações Raciais: Novamente o Debate Taylor
versus Habermas
Novamente se faz necessária uma pausa para resumidamente abordar a
teoria de Habermas e contrapô-la à de Taylor. O intuito aqui é procurar deixar
claro porque, ao analisar as relações raciais brasileiras, fiz a opção pela teoria de
Taylor apesar das críticas elaboradas por Habermas, uma vez que estas críticas
ocorrem no debate do multiculturalismo e o outro teórico esposado foi Jacques
d’Adesky, um pensador desta mesma corrente intelectual. Ainda para que não
reste dúvida, a opção teórica feita não significa que as formulações habermasianas
não possam ou não devam se aplicar ao tema das relações raciais no Brasil, em
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absoluto. Aliás, como espero já ter deixado claro, nem a teoria de Taylor pode ser
aplicada diretamente, não traduzida para a nossa realidade, uma vez que ele
elabora a sua teoria pensando no ambiente multicultural de Quebec, caso concreto
e complexo, muito diferente do nosso em que a constituição professa o
pluriculturalismo. Enquanto isso, Habermas elabora um modelo filosófico,
abstrato, para uma sociedade pós-convencional, a fim de servir como parâmetro
de crítica social. Acontece que Habermas, ao pretender aplicar o seu modelo
filosófico diretamente a questões políticas, parece fazer com que surjam alguns
problemas.
Tratando especificamente do debate sobre o multiculturalismo, Habermas
concorda que as pessoas são individualizadas por meio da coletivização em
sociedade. Mas ele afirma que o modelo individualista de Estado de direito
permite a conciliação entre fins individuais e metas coletivas, sem que o direito
precise se substancializar. Ele concebe uma vida política dual entre um mundo
institucionalizado, que é regido por uma razão instrumental e um mundo da vida
não institucionalizado onde as pessoas são regidas por expectativas de
comportamento. A partir daí, ele afirma que o direito pode ser o médium, o elo
entre essas duas esferas políticas. Na concepção moderna, o direito extrai a sua
legitimidade de um procedimento racional (sempre lembrando que, para ele, a
racionalidade é o potencial comunicativo). O direito seria um procedimento
neutro com o objetivo de permitir a convivência entre as diversas concepções de
142
bem (as individuais e as coletivas) concorrentes na esfera pública. A relação entre
direito e democracia é crucial. O que deve estar minimamente garantido
politicamente é a possibilidade de participação plural e igual de todos. O mundo
da vida de Habermas é o pano de fundo cultural que permite a interação entre os
indivíduos. É o contexto cultural e político compartilhado, cenário das interações.
Daí ele critica Taylor, e por via oblíqua Amy Gutman e Steven Rockefeller,
afirmando que a sua política de reconhecimento está baseada num alicerce fraco
porque depende da presunção de igual valor idêntico de todas as culturas. Ele
defende que as culturas podem se autotransformar em contato com outras e que
basear a convivência de grupos em direitos coletivos, é sair da perspectiva liberal,
pois eles estão além da teoria dos direitos liberais, feitos para atender pessoas
individuais.29
A diferença entre eles, é que Habermas joga o valor das minorias para a
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prática e para a disputa política, enquanto Taylor não, o coloca dentro do campo
teorético, da sua concepção de democracia; a sua democracia é substancial.
Quando Taylor defende que a democracia canadense proteja a particularidade do
Quebec, ele pretende que isso se perpetue, não que os quebequenses um dia,
sejam absorvidos pela cultura majoritária. Taylor propugna um duplo
reconhecimento, o de um valor intrínseco daquela cultura específica e o respeito à
diversidade como um valor em si, o que impõe uma defesa e proteção da cultura
minoritária. O que Taylor ressalta é que a primazia dos direitos individuais já é
uma concepção de bem substancial e que se for aplicado ao Quebec, por exemplo,
acabaria com a sua especificidade trazendo reflexos aos indivíduos que assim se
identificam (os quebequenses), ferindo os seus direitos humanos.
Para pensar a realidade das relações raciais injustas de uma sociedade
como a brasileira, em certos aspectos até pré-moderna, podemos entender que a
proposta de Taylor parece oferecer um instrumental mais atraente de
interpretação. O mundo da vida de Habermas, ressalta Taylor, não é neutro e o
que permite que se pense assim, é a naturalização das suas práticas como descrita
por ele em “As Fontes do Self”. Apesar do potencial de comunicação visando ao
entendimento, o pano de fundo compartilhado é marcado por um lado, por uma
desvalorização generalizada da imagem das pessoas negras coletivamente, e essa
29
HABERMAS, J. “Comment” in: TAYLOR, C. “ Multiculturalism”
143
desvalorização não é traduzida por uma indiferença ou uma neutralidade, mas por
uma concepção substantiva de inferioridade das pessoas negras que se irradia por
todas as dimensões do humano, tanto as sociais quanto as morais. A razão que
rege as interações na sociedade brasileira não é uma razão comunicacional neutra.
Não vou entrar aqui no mérito de esquadrinhar teoricamente se o ser humano
possui este potencial de neutralidade ou não. Mas analisando o caso concreto, a
razão que orienta o nosso processo de socialização é ideologizada por um ideal de
branqueamento que elege a miscigenação como parâmetro de prática desejável.
Ora, mas se o tipo ideal continua sendo o branco (em aspectos físicos e culturais),
então a miscigenação visa no fundo à dissolução das especificidades negras
(físicas e culturais).
Em relação à linguagem, o potencial performativo para Habermas aparece
na sua proposição de mudança de paradigma da filosofia do sujeito para o
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paradigma comunicacional. Nesse sentido, a unidade básica da linguagem deixa
de ser a “proposição” e passa a ser o “enunciado” que é a proposição inserida num
contexto interativo. Acontece que a sua teoria não parece levar em consideração
mecanismos que distorcem a interação, neste caso particular o racismo. E nem a
influência disso no processo de constituição dos indivíduos, o que torna o sujeito
um sujeito. É o que ressalta Axel Honneth30. Resumindo um pequeno aspecto de
um imenso debate teórico, há grandes divergências na área da filosofia da
linguagem, quanto à concepção de linguagem. Entre os que entendem a
linguagem como a forma de comunicação corriqueira e, por isso, a suspensão da
comunicação só deve ser feita quando houver um ruído na interação e, por outro
lado, os que compreendem a linguagem como representação ideal, entendendo
que as falhas devem ser, portanto, prioritariamente identificadas e corrigidas.
Independente da posição assumida, a linguagem, como aspecto fundamental da
condição humana, pode carregar os estereótipos e simbolismos das concepções
racistas, pois tem o poder de nos nomear, apontar as diferenças e o que é mais
problemático, de hierarquizá-las. Agora, se o próprio Habermas afirma que o pano
de fundo compartilhado não é tematizado, é intransparente, a razão poderia
produzir argumentações dedutivelmente lógicas a partir de premissas que já
fossem racistas, ainda que isto ocorresse de forma não-reflexiva, não-intencional.
30
HONNETH,A. “A Luta por Reconhecimento”
144
7.4
CONCLUSÃO: Liberdade Situada e Dignidade Humana
Recentemente o conceito filosófico de Dignidade da Pessoa Humana, e a
sua tipificação como princípio constitucional, se converteu no metaprincípio
jurídico de interpretação de todo o ordenamento positivado. Existem algumas
teorias que se propõem a dar densidade jurídica ao princípio, entretanto ele
continua ancorado numa concepção filosófica de caráter ontológico, igual
dignidade universal para todos os seres humanos, formulado por Kant. Neste
trabalho o marco referencial foi outro. A opção foi pela concepção de uma
ontológica liberdade do ser humano, conforme formulada por Rousseau.
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Na modernidade, devemos a Rousseau a noção da ontológica liberdade do
homem desde o Discurso Sobre as Origens das Desigualdades até a sua posterior
formulação categórica em O Contrato Social. No Discurso, ele afirma que é a
liberdade que distingue os homens dos demais animais e permite que ele coloque
a sua vida em risco apenas para satisfazer os seus desejos. Rousseau diz que
homem e animal são máquinas engenhosas, mas nas operações (nas interações) do
animal, a natureza faz tudo sozinha, enquanto o homem concorre “ele mesmo”
para as suas operações. O animal escolhe ou rejeita algo por puro instinto
enquanto o homem faz escolhas, isto faz com que o animal não possa ( ou não
consiga ) se afastar da norma que lhe é prescrita ( pela natureza) mesmo quando
isto lhe é vantajoso; já o homem na qualidade de agente livre, se afasta desta
prescrição da natureza, muitas vezes com prejuízo seu. Enfim, as escolhas do
homem são atos de liberdade.
Assim, as nossas escolhas estão baseadas na vontade. Desta forma, ao
invés de satisfazer os seus desejos instintivamente, os humanos podem querer
mais do que lhes é aparentemente suficiente (praticando excessos) e deixando que
a vontade livre comande o seu comportamento, deformando os sentidos já
saciados. E se imaginarmos a situação de uma greve-de-fome, por exemplo,
podemos concluir que o homem pode deixar de comer por um imperativo moral31.
31
Lembrando Hegel: não seria este ato também uma busca por certo tipo de prestígio?
145
Rousseau então identifica vontade com liberdade e diz que o homem tem
consciência disto e é nesta consciência que se revela a “espiritualidade da sua
alma” porque “o processo de formação das idéias pode ser explicado de algum
modo pela física mecânica e é o mesmo para homens e animais, mas o sentimento
que o homem tem da possibilidade de fazer escolhas, isto não pode ser explicado
pelas leis da mecânica, pois neste processo os atos são puramente espirituais e
não atividades do corpo”32 Assim, para Rousseau, a liberdade é o bem supremo
porque, se é na consciência da liberdade que se revela a “espiritualidade da alma
humana, ela a liberdade, é uma exigência ética fundamental” e renunciar a ela é
renunciar à própria qualidade do ser humano.
Rousseau afirma no Discurso que foi o início da dependência entre os
homens que ocasionou a perda da nossa liberdade original, ou melhor, que foi a
forma como se efetuou o processo de socialização, gerando dependência, que nos
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fez perder a liberdade.
Os atuais conhecimentos empíricos demonstram outra coisa. A psicologia
de Mead e de Winicott, apresentadas por Honneth, confirmam a intuição
hegeliana de que somos seres carentes, desejantes e dependentes uns dos outros. E
que a possibilidade de nossa liberdade como auto-realização, isto é, da realização
do que há de mais autêntico em nós, está justamente na possibilidade de nos
percebermos desta forma e de nos responsabilizarmos coletivamente pela autorealização, uns dos outros. Esse é exatamente o conceito de liberdade de Hegel. A
liberdade relacionada a uma Sittlichkeit. Como explica Taylor, a “Sittlichkeit
refere-se às nossas obrigações éticas relativas à uma vida mais ampla a qual
temos que dar suporte e prosseguimento”33 . Isto nos permite fazer exigências
maiores à sociedade e ao Estado, para que se criem condições mais favoráveis de
liberdade para todos os indivíduos.
Deixemos de lado o conceito de liberdade negativa. Taylor explica que a
concepção moderna de subjetividade, criou um conceito de liberdade que se
concebe como uma conquista por meio da eliminação de todos os obstáculos
empecilhos ou entraves externos. Ser livre seria ser desimpedido, ou depender
somente de si mesmo. A “virada antropocêntrica” da modernidade concebeu a
32
ROSSEAU, Jean-Jacques. “Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade Entre
os Homens”. Ed. Europa-América. Portugal, 1976.
33
TAYLOR,C. “Hegel e a sociedade moderna”
146
liberdade como uma conquista e fim das amarras de uma ampla ordem cósmica.
Kant definia a liberdade como a obediência a uma lei do “Eu” racional, em
contraste com a dependência da vontade dos outros ou da natureza. Hegel, por
outro lado, intencionava na sua crítica à moralidade kantiana situar o homem na
comunidade sem abandonar a importância da razão.
Essa noção de liberdade é complementada pelo que podemos chamar de
certa concepção de agência, dada pela Teoria do Reconhecimento, conforme já
explicado no capítulo 5. Ao mesmo tempo permite um critério mais exigente de
responsabilidade social e justiça distributiva, como a melhor repartição das
riquezas e dos bens materiais e também, como vimos, os bens simbólicos da
sociedade.
Neste sentido, é que podemos interpretar a Teoria do Reconhecimento
como uma teoria da Liberdade; da liberdade de auto-realização, de emancipação
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humana.
O filósofo Habermas afirma que encontrar os direitos humanos e os
direitos de cidadania na idéia de dignidade humana, “não é errado, mas
insuficiente.”34 Ele constrói um modelo em que participantes livres e iguais
chegam a um acordo acerca de quais direitos eles devem reciprocamente se
reconhecer se quiserem legitimamente regular a sua vida em comum por meio do
Direito positivo. Essa é a idéia de autolegislação, na qual autores autônomos da
ordem jurídica permanecem autônomos destinatários do Direito. Segundo ele, o
conceito de dignidade humana é visto como intrínseco ao indivíduo singular,
anterior a qualquer socialização. Ele afirma que a liberdade expressa melhor o fato
de que as constituições devem ser ordens legítimas do que o “discurso vazio”
ontológico sobre a dignidade.
Como já foi explicado, ainda que Habermas não seja o autor diretamente
trabalhado nesta dissertação, a sua formulação permite perceber que a dignidade
ontológica, logo a suposta igualdade, é uma conquista política, a partir da
inspiração filosófica kantiana. Ao passo que a afirmação ontológica da liberdade,
que teve intuição filosófica com Rousseau e Hegel, atualmente recebeu uma
comprovação empírica com Freud, Mead e Winnicott.
34
HABERMA, J. “Remarks on Erhard Denninger's Triad of Diversity, Security, and Solidarity”,
Rev. Constellations n.º 7, vol. 4
147
No que interessa para um militante do tema, as iniqüidades raciais são tão
profundas que, de qualquer lugar que se observem, as injustiças são claras. Porém
para os fins desta dissertação, ocorre que a Teoria do Reconhecimento fornece um
critério formal o bastante para não criar suspeita de que adere a uma concepção
moral substantiva. E ao mesmo tempo esses critérios têm caráter normativo e
universal.
Por outro lado, se adotarmos uma perspectiva como a de Taylor e
entendermos que a adoção de uma posição substantiva no campo da eticidade não
cria embaraços para uma concepção liberal de democracia, a Teoria do
Reconhecimento fornece, do mesmo modo, um critério para a materialização
desta concepção. Segundo Taylor, sociedade democrática é a que protege e
defende as minorias e esse deve ser, portanto, o critério de interpretação
constitucional e por via oblíqua, de todo o ordenamento positivado.
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Nesse sentido, espero ter ficado claro durante toda a exposição que a
relevância da Teoria do Reconhecimento para o campo do Direito, deve-se pela
sua possibilidade de eleger critérios para a reaproximação entre Direito e moral e
resgatar a força do Direito. Por outro lado, a teoria de Jacques d’Adesky, traduz
grande parte deste instrumental teórico para a realidade das nossas injustas
relações raciais, fazendo-nos concluir que a maior parte dos temores quanto às
reivindicações identitárias dos Movimentos Negros, não passam de preconceitos e
ideologias, disfarçados de preocupações patrióticas ou acadêmicas.
Independente da posição moralmente substantiva que se adote, as
disparidades raciais são um entrave ao desenvolvimento do país e superá-las é
uma necessidade urgente. Não disponibilizar as opções para o exercício de
direitos ou fruição de benefícios, é um atentado à liberdade tão grande quanto
criar impedimentos diretos para não acessá-los.
Optar por tratar do tema da reivindicação de justiça por meio do postulado
da liberdade, quando no centro do assunto está a população negra, parece ter uma
conotação especial que rememora as muitas lutas libertárias, as diárias de
resistência individual e as vultosas coletivas pela mudança do sistema de
produção e contra a servidão no nosso recente passado.
Conforme elaborado no capítulo 1, o debate entre liberais e comunitários,
nos lembra que o pluralismo é traço distintivo das sociedades atuais. A
148
modernidade, com sua noção de indivíduo, possibilitou a disputa entre várias
“visões de mundo”. Os negros querem ser vistos.
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