HOBBES: ARISTOCRATA OU BURGUÊS? Agemir Bavaresco1 O professor Carlos Balzi, da Universidade Nacional de Córdoba, em seu artigo intitulado El valor de un hombre: anotaciones al Hobbes burguês, de 2011, levanta o seguinte problema: Quais as objeções a alguns autores da filosofia política do século XX, que atribuíram a Hobbes o rótulo de ser um porta-voz dos valores e dos ideais burgueses? Teria Hobbes traído a classe que o acolheu? Para tratar dessas questões, Balzi reconstituirá a tese do aburguesamento hobbesiano, de Leo Strauss, em seu livro The Political Philosophy of Hobbes (1936), como fará também uma referência a autores complementares que sustentam a mesma opinião: Hannah Arendt e Macpherson. a) Leo Strauss e a hipótese de um Hobbes burguês – Hobbes em sua filosofia política supera sua visão de virtude aristocrática pela virtude burguesa, no dizer de Strauss. O surpreendente é que Hobbes, em sendo defensor da aristocracia, agora, adere à nova classe emergente. Desde os vinte anos até a sua morte aos noventa e um, Hobbes vive numa atmosfera aristocrática, como tutor, bibliotecário, secretário e escritor. Teria sido ele um traidor da classe que o acolheu? É difícil responder afirmativamente, porém, segundo Strauss, a filosofia política hobbesiana é dirigida contra as regras aristocráticas, pois sua moralidade é burguesa. Teria Hobbes mudado de opinião na sua fase madura, tornando-se um representante “da mentalidade burguesa e hostil a concepção aristocrática de vida” (Balzi, 2011, p. 4)? Strauss propõe, ainda, o condicionamento histórico objetivo da classe burguesa sobre a subjetividade hobbesiana. A classe burguesa nascente teria influenciado o pensamento de Hobbes? Balzi entende que a vertente explicativa com o avanço da pesquisa documental sobre Hobbes permite compreender “a inédita adjetivação da filosofia hobbesiana como „burguesa‟” feita por Strauss (Balzi, 2011, p. 6). Em 1935, Strauss afirma que seu livro tem como objetivo “uma libertação radical do prejuízo moderno” (Balzi, 2011, p. 7). Em 1952, a Editora da Universidade de Chicago reeditou o livro de Strauss: The Political Philosophy of Hobbes. O autor deixou intacto o texto, apenas introduziu um prefácio, em que entende ser necessário debater o “caso dos modernos contra os antigos” (Balzi, 2011, p. 6). 1 Doutor pela Universidade Paris I, Professor do PPG/Filosofia/PUCRS. Site: www.abavaresco.com.br 1 Balzi adota a hipótese de leitura da obra straussiana proposta por Claudia Hilb: Leo Strauss: a arte de ler. A autora entende que Strauss tem uma escrita esotérica na esfera privada e outra exotérica para a esfera pública. Então, o adjetivo burguês atribuído a Hobbes é explícito apenas na correspondência privada e é deixado implícito, por Strauss, ao escrever o livro sobre Hobbes. Balzi conclui que Strauss, ao silenciar suas motivações político-práticas, ao descrever Hobbes como um burguês ou como um aristocrata aburguesado, estaria “guiado pela situação da filosofia política face à quarta década do século XX, uma situação que apenas podia descrever-se como „crítica‟” (Balzi, 2011, p. 9). Balzi apresenta, brevemente, Arendt e Macpherson como autores que em suas obras ampliam essa etiqueta de Hobbes como burguês. b) Hannah Arendt e a filosofia do poder de acumulação da propriedade em Hobbes – Arendt trata de Hobbes no seu livro As origens do totalitarismo: expansão e a filosofia do poder, de 1946. Aí, ela afirma que “Hobbes é o único entre os grandes filósofos a quem a burguesia pode reclamar com direito de exclusividade como próprio”, porque no Leviatã “o interesse privado é idêntico ao público” e a “moral burguesa é uma pintura quase completa do homem burguês” (Balzi, 2011, p. 10). A burguesia ascendente, continua Arendt, busca no poder o motor de todas as coisas, porque o aumento da propriedade deve basear-se num processo interminável de aumento de poder, “e que a acumulação do capital é ilimitada apenas no marco de uma estrutura política de „poder ilimitado‟ que pode assumir a tarefa necessária de proteger a correspondente acumulação da propriedade” (Balzi, 2011, p. 11). Balzi parece, assim, não acreditar que se possa compreender melhor o pensamento hobbesiano, derivando o projeto de poder de uma classe na acumulação da propriedade (cf. Balzi, 2011, p. 11). c) C. B. Macpherson: o mercado burguês como modelo hobbesiano – O autor escreve, em 1962, o livro A teoria política do individualismo possessivo. De Hobbes a Locke, que irá caracterizar ainda mais o rótulo de burguês atribuído a Hobbes. Macpherson propõe ir além do texto hobbesiano para compreendê-lo no seu contexto, ou seja, analisar o modelo de sociedade em que Hobbes escreveu. Para Macpherson, o modelo de sociedade é a burguesa, ou seja, a de mercado: “Argumento que Hobbes construiu mais ou menos inconscientemente um modelo assim, e que esse modelo correspondia em ampla medida à sociedade inglesa do século XVII” (Balzi, 2011, p. 12). 2 A tese de Balzi é que o adjetivo 'burguês', atribuído a Hobbes por Strauss, Arendt e Macpherson, é um rótulo da leitura a partir das atribuições de classe, feitas num curto período de vinte e cinco anos: “O processo foi, sem dúvida, muito veloz, sobretudo se considerarmos a radicalização da atribuição de burguesia que se produz entre a obra de Strauss e a da Macpherson” (Balzi, 2011, p. 13). Balzi parece contestar o rótulo de aristocrata ou burguês atribuído a Hobbes, pois “tanto Strauss e Arendt, como Macpherson lêem a obra hobbesiana com um olho no presente” (p. 13), ou seja, fora do contexto, propriamente, em que Hobbes elaborou sua obra. O problema de Hobbes ser rotulado aristocrata, burguês ou conservador necessita ser analisado a partir da teoria do individualismo possessivo como raiz da Modernidade. Hobbes, no entender de Macpherson, elabora uma teoria que legitima o indivíduo possessivo como fundamento do ser econômico e político, quer seja o ser humano um aristocrata, um burguês ou um conservador. d) Individualismo possessivo e as raízes hobbesianas da modernidade2 – A tese de Macpherson é que a democracia liberal tem suas raízes históricas e sociais unidas ao individualismo possessivo. Na sua obra Teoria Política do Individualismo Possessivo (1962)3, ele traça o surgimento e o desenvolvimento das linhas deste individualismo possessivo na Filosofia Política do século XVII (de Hobbes a Locke). O individualismo possessivo compreende o ser humano, tendo como pressuposto a “sociedade possessiva de mercado”. As raízes da teoria liberal-democrática estão no século XVII e elas rompem com a tradição da lei natural cristã. A teoria do individualismo inicia com Hobbes, rejeitando os “conceitos tradicionais de sociedade, justiça e lei natural, deduzindo os direitos e deveres políticos a partir dos interesses e das vontades dos indivíduos dissociados” (Macpherson, 1979, p. 14). Os puritanos e Locke acentuam, depois, um individualismo que enfatiza a igualdade do valor moral de todos os seres humanos e a defesa do Estado liberal. E os utilitaristas reafirmam os princípios individualistas elaborados por Bentham. O individualismo que se constitui no século XVII tem a concepção do indivíduo como proprietário de sua própria pessoa e de suas próprias capacidades. Dessa forma, sendo proprietário de si mesmo, o indivíduo não é visto como um todo moral ou como fazendo parte do todo, ou seja, como membro da sociedade. 2 Toda esta parte encontra-se em nosso artigo na Revista Filosofia UNISINOS 12(1): 70-86, jan/abr 2011. MACPHERSON, C. B. A Teoria Política do individualismo Possessivo. Trad. Nelson Dantas, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. 3 3 A essência humana é ser livre da dependência das vontades alheias, e a liberdade existe como exercício da posse. A sociedade torna-se uma porção de indivíduos livres e iguais, relacionados entre si como proprietários de suas próprias capacidades. A sociedade consiste de relações de troca entre proprietários (Macpherson, 1979, 15). E a sociedade política terá a função de proteger a propriedade e a troca entre proprietários. Por isso, apresentamos, a seguir, Hobbes como um dos formuladores da teoria do individualismo possessivo, que Macpherson expõe em seu livro como pressuposto para defender a sua teoria. A Filosofia política hobbesiana responde à questão: Qual é o dever político do mercado? Macpherson explica: Hobbes deduz o “dever político dos fatos supostos ou observados na natureza humana”. Hobbes não está preocupado com a “coerência lógica com referência à questão do deveria e do é”, a fim de construir “a partir de seus escritos uma teoria que passe pelos testes” (Id., p. 27). O autor insiste que o modelo hobbesiano corresponde em grande parte à realidade da sociedade inglesa do século XVII, que era constituída por relações competitivas entre indivíduos dissociados e independentes, sem nenhuma ordem de subordinação, necessitando de um soberano. Disso, Hobbes deduz valores morais dos fatos, sem estabelecer hierarquia entre eles e nem princípios teleológicos (cf. p. 28). Macpherson descreve três modelos de sociedade: (i) A sociedade de costumes ou do status, que inclui o tribalismo, os impérios antigos e o feudalismo. Nela, o trabalho produtivo é dividido impositivamente entre grupos ou pessoas. Não há propriedade individual de terra e toda a força de trabalho está presa à terra, pois não há mercado de trabalho. (ii) Na sociedade de mercado simples, ocorre a produção e a distribuição de bens e serviços regulados pelo mercado. Não há mão-de-obra regida pelo mercado. (iii) Na sociedade de mercado possessivo, há venda de mão-de-obra e de produtos. O trabalho do indivíduo é um artigo de mercadoria, e “as relações de mercado moldam todas as relações sociais” (Id., p. 60). Nesse modelo, a capacidade de cada indivíduo para o trabalho é sua propriedade, e é alienável, bem como os bens (terras, recursos etc.). Esse terceiro modelo preenche os requisitos da teoria hobbesiana, porém, ele não usou tal modelo de mercado, pois essas construções são posteriores. No entanto, a natureza competitiva do mercado da sociedade inglesa foi diagnosticada por ele. Ora, apenas numa “sociedade em que a capacidade de trabalho de cada indivíduo seja propriedade sua, seja alienável, e seja um artigo de mercado, todos os indivíduos podem estar nesse contínuo relacionamento competitivo de poder” (Id., p. 70). Cabe ressaltar que Hobbes trabalhou com 4 modelos, isto é, um modelo mecânico de ser humano, um modelo de relações sociais em que não havia obrigatoriedade para o cumprimento das leis e um modelo de sociedade civilizada, intermediária entre os outros dois, estruturada pela regulamentação que promovia a indústria e o comércio. Macpherson defende que esse modelo de “regulamentação do século XVII pressupunha uma sociedade de mercado possessivo” (Id., p. 73). O autor entende que Hobbes parte do postulado fisiológico para deduzir que a humanidade tem um desejo inato de poder ilimitado sobre todos os outros. Ora, o modelo que satisfaz esse postulado é o da sociedade de mercado possessivo, em que a mão-de-obra é uma mercadoria e os indivíduos querem aumentar seu nível de bem-estar e alguns têm mais poderes naturais do que outros. O modelo de sociedade hobbesiano é o do mercado possessivo integral. Sendo assim, o modelo do indivíduo possessivo resulta de relações de mercado entre esses indivíduos, sendo a fonte do dever político. Por isso, não são mais necessários os conceitos tradicionais de justiça, lei natural ou determinação divina para legitimar o dever político para com o Estado, mas apenas o modelo da sociedade de mercado. Disso, deduzem-se os direitos e os deveres. Em nosso entender, uma das características fundamentais da obra hobbesiana é a teoria do individualismo possessivo, enquanto pressuposto determinante da Modernidade; ou seja, o sujeito hobbesiano pode ser um aristocrata, burguês ou conservador em suas relações sociais, econômicas e políticas, mas sendo acima de tudo um indivíduo possessivo. 5