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Este artigo é parte integrante da
Revista
Batista Pioneira
online - ISSN 2316-686X
Bíblia,
Teologia
e prática
impresso: ISSN 2316-462X
ASPECTOS TEOLÓGICO-PASTORAIS DE IGREJA,
MINISTÉRIO, LIDERANÇA E AUTORIDADE CRISTÃS NO
NOVO TESTAMENTO COM ENFOQUE EM PAULO
THEOLOGICAL-PASTORAL ISSUES OF CHURCH, MINISTRY, LEADERSHIP AND
CHRISTIAN AUTHORITY IN THE NEW TESTAMENT WITH FOCUS ON PAUL
Dr. Werner Wiese1
RESUMO
Já faz anos que muito se fala de líderes e liderança, de autoridade e ministério(s) na
Igreja e muito se escreve a respeito. Apesar disto, liderança, ministério(s) e autoridade ou
poder cristãos continuam sendo desafios, tanto no estudo acadêmico da Teologia quanto
no exercício do ministério como tal na base das comunidades ou igrejas. Partindo de um
olhar panorâmico, no presente artigo destacamos aspectos exegéticos e teológicos a partir
do Novo Testamento com ponderações pastorais inerentes a esses assuntos, incentivando
para uma reflexão consciente, flexível e mais equilibrada possível a respeito deles.
Palavras-chaves: Autoridade. Carisma. Ekklêsia/Comunidade. Cuidado. Líderes/
Liderança. Ministério.
ABSTRACT
For years now much talked about leaders and leadership, authority and ministry(s)
in the Church and much has been written about it. Nevertheless, christians leadership,
O autor é Doutor em Teologia pelo antigo Instituto Ecumênico de Pós-Graduação (IEPG) da EST - Escola
Superior em Teologia, em São Leopoldo/RS, e é Pós-Doutorando no PPG da Faculdades EST. Atua como
Professor de Teologia Bíblica (NT), Grego e Fundamentos da Ética na Faculdade Luterana de Teologia, em
São Bento do Sul/SC, e é membro da Diretoria da Associação de Seminários Teológicos Evangélicos (ASTE),
com sede em São Paulo/SP. E-mail: [email protected]
1
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ministry(s) and authority or power remain challenges, both in the academic study
of theology and exercise of ministry in the basis of communities or churches. From a
panoramic look, in this article we highlight exegetical and theological aspects from the
New Testament with pastoral considerations inherent in these matters, encouraging for
a conscious, flexible and balanced reflection possible about them.
Keywords: Authority. Charisma. Ekklesia/Community. Caution. Leaders/Leadership.
Ministry.
Werner Wiese
INTRODUÇÃO
Plantar ou fundar igrejas, revitalizar comunidades, treinar líderes ou formar
liderança competente e eficiente são temas abordados em muitos livros e manuais sobre
o ministério cristão de forma geral e específica. Aspira-se por crescimento das igrejas,
por reconhecimento e respeito público delas e de seus líderes ou suas lideranças. E por
que não se faria isso? São aspirações “legítimas” e compreensíveis numa sociedade de
competição e consumo, na qual se julga pelas aparências externas; é o que se tem, pois
ninguém consegue ver, quer dizer, avaliar o “invisível”. Em linguagem teológica: a estética
atrai ou repele indivíduos e multidões. Contudo, Deus não se deixa impressionar pelas
aparências. Ele sonda mentes e corações e traz à tona a realidade tal qual ela é e não o que
aparenta ser.
Na maioria das vezes, as aspirações ministeriais são sustentadas por recursos ao
Novo Testamento (doravante NT), principalmente ao livro de Atos e às listas de carismas
ou dons espirituais nos escritos paulinos, por exemplo: 1Co 12.4-11; 12.28-31; Rm 12.4-8 e Ef
4.11-16. “Inspirados” em textos seletivos do NT, por vezes há uma busca humana frenética
de dons espirituais. Inclusive não faltaram nem faltam tentativas de “importar” diretamente
do NT modelos de comunidade e liderança para “garantir êxito” no ministério cristão
hoje.
De qualquer forma, há uma ligação indissociável entre igreja (e)kklhsi/a), líderes,
dons e ministério no NT. Aspirar por crescimento da igreja, surgimento de igrejas,2
reconhecimento público e respeito, treinamento de liderança e líderes eficientes não
tem nada de errado, muito menos recorrer às Escrituras Sagradas para isso, pois elas são
norma para a fé e a vida de quem segue a Jesus Cristo, o que também inclui a maioria dos
assuntos mencionados.
Em si, a existência de várias denominações (igrejas) e o crescimento visível de algumas delas não é
problema. É problema, sim, se o crescimento ocorre conscientemente às custas de outras igrejas e o surgimento
de novas igrejas seja fruto de desentendimentos entre líderes e de divisões de igrejas já existentes.
2
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Tão importante quanto “o que o NT diz de fato a respeito desses assuntos?” é
“que perfil ou perfis o testemunho do NT fornece de comunidade, líderes e liderança,
ministério, dons espirituais, autoridade, e assim por diante?” No nosso modo de ver, é
aqui que reside o desafio maior, pois a imagem que se tem e se vende hoje desses assuntos
e dessas realidades nem sempre condiz com o testemunho do NT a respeito deles. Não
se deve fugir da pergunta “Até que ponto o ser humano não projeta seus ideais para
dentro do NT ou imagina poder abstrair do NT de forma ligeira e simplória respostas e
soluções?”
No presente trabalho, levantamos alguns dados textuais relevantes e a partir deles
tematizamos aspectos centrais que envolvem líderes e liderança, dons e autoridade ou
poder que dizem respeito ao ministério cristão, com o objetivo de incentivar e encorajar
para uma atenção e dedicação mais atenciosas e acuradas do tema pontuado neste
artigo. Para alcançar o objetivo, o trabalho é composto de três partes. Na primeira tratase de esboçar uma visão panorâmica de igreja e ministério no NT. A segunda parte enfoca a
questão de líderes e liderança, autoridade e líderes na igreja cristã das origens. Já na terceira parte
são abordados aspectos da relação entre instituição, dons espirituais e ofício. Cada uma destas
partes é subdividida de forma a concatenar não só as subdivisões, mas todas as partes do
artigo.
1. VISÃO PANORÂMICA DE IGREJA E MINISTÉRIO NO NT
Ministério e liderança ou líderes não só se condicionam mutuamente, mas estão
intrinsecamente vinculados ao povo de Deus que no NT é referido com metáforas como,
por exemplo, corpo, casa, edifício. Contudo, o termo que mais se impôs na história de quase
dois mil anos de cristianismo é igreja. Hoje é frequente que com igreja no NT se associem
ideias que fazem líderes sonhar com uma igreja ideal. Mas no NT nem ministério e nem
igreja são um sonho ou ideal - são uma realidade que não se apreende com facilidade sem
correr o risco duplo de, por um lado, uniformizar e, por outro lado, dissociar ou relativizar
essa realidade. É preciso dar-se conta de que igreja é uma grandeza (realidade) teológicoespiritual e uma grandeza empírico-social ou visível ao mesmo tempo. Elas se intercruzam
de tal maneira que não se pode nem deve separar uma da outra, pois a grandeza teológicoespiritual implica a realidade empírico-social ou visível - do contrário, a primeira não
passaria de uma ficção religiosa e a segunda de um grupo social entre outros grupos que
existem, que apenas se organiza como estes e também é dirigida como estes.3
3
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Cf. a terceira parte deste trabalho.
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1.1 A igreja como realidade teológico-espiritual no NT
O termo igreja no NT é tradução da palavra grega ekklêsia (e)kklhsi/a), cujo
equivalente hebraico no Antigo Testamento é kahal para caracterizar acima de tudo
a multidão do povo eleito e resgatado por Deus da escravidão egípcia e conduzido por
ele nas oscilações da história de Israel como kahal (assembleia ou congregação) de Deus.
Contudo, quanto a sua origem e ao seu uso, tanto a palavra kahal quanto ekklêsia
não são termos de uso singular teológicos. Pelo contrário, na Antiguidade, por
exemplo, uma assembleia política, i.e., cidadãos livres de uma cidade que se reuniam
para decidir assuntos políticos em consonância com as leis do Estado, também era
chamada de ekklêsia.4
Por outro lado, ekklêsia é uma palavra com significado teológico profundo e de uso
vasto no NT. Não é nosso objetivo abordá-la detalhadamente aqui.5 Limitamo-nos a
destacar alguns enfoques teológicos centrais de ekklêsia:
a) É inegável que como kahal no seu sentido teológico no Antigo Testamento
caracteriza Israel como assembleia/congregação (comunidade) de Deus que ele elegeu
e resgatou da escravidão do Egito, o sentido teológico de ekklêsia no NT caracteriza a
totalidade do povo (comunidade) de Deus, composta por pessoas que creem em Jesus
como o Messias de Deus6 - pessoas dentre todos os povos, raças e nações. Portanto, a
ekklêsia composta por judeus e gentios.7
b) Nos Evangelhos a palavra ekklêsia somente ocorre em Mt 16.18 e Mt 18.17.
Portanto, apenas duas vezes. Apesar disso, nessas duas ocorrências sintetiza-se muito
bem o que a ekklêsia é como grandeza ou realidade teológica: ela é de Jesus Cristo,8 ele
mesmo a edificará e as entradas do submundo (pu/lai aÖ_dou) não a vencerão (Mt 16.18).
O que a sustenta não é a grande multidão nem os projetos que pessoas têm, mas a
presença de Jesus onde duas ou três pessoas se reúnem em seu nome, i.e., onde Jesus é
a razão de pessoas se reunirem (Mt 18.20).
Às palavras de Jesus subjazem elementos pastorais próprios do bom pastor e são
Cf. BARCLAY, Wiliam. Palavras-chaves do Novo Testamento. 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 2000. p. 45;
cf. também LOUW, Johannes; NIDA, Eugene (Edit.). Léxico grego - português do Novo Testamento
baseado em domínios semânticos. Barueri - SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2013. p. 121 e 110.
5
Detalhes cf. na abordagem de COENEN, Lothar. Kirche. In: COENEN, Lothar; BEYREUTHER, Erich;
BIETENHARD, Hans (Edit.). Theologisches Begriffslexikon zum Neuen Testament. Wuppertal:
Theologischer Verlag R. Brockhaus, 1977. v. 2, p. 784-798. Obs.: a obra referida nesta nota foi traduzida
para a língua inglesa e da língua inglesa para a língua portuguesa sob o título Dicionário internacional de
teologia do Novo Testamento e publicada pela Vida Nova em várias edições.
6
Cristo significa Messias. É disso que se trata quando se fala de crer em Jesus Cristo.
7
Cf. At 10.34-48; 15.1ss; Ef 2.11-22.
8
Cf. a construção mou th&n e)kklhsi/an (minha igreja).
4
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a diretriz para o pastoreio da ekklêsia a ser exercido por líderes incumbidos deste
ministério.9
c) A ekklêsia (comunidade) é um ato criador de Deus pelo agir do Espírito Santo
(At 2). Não se deve confundir entre o ato criador de Deus e a resolução humana de
planejar ou querer alguma coisa. Onde pessoas se encontram para fundar ou plantar
uma igreja, na melhor das hipóteses, surge uma organização - uma instituição que
com o decorrer do tempo corre o risco de se transformar em um clube religioso. A ekklêsia
neotestamentária enquanto grandeza teológico-espiritual, porém, é um organismo
vivo.10
d) Paulo como articulador teológico da realidade da ekklêsia no NT. Alguns
intérpretes falam do apóstolo Paulo como fundador do cristianismo; outros, de
restaurador do judaísmo; outros de fundador do universalismo e ainda outros de
adversário do judaísmo.11 De tudo isso não se trata. E quando se fala da realidade da
ekklêsia não se trata de uma invenção. E, obviamente, articulador não significa inventor.
Embora Paulo seja o principal portador do termo ekklêsia, não é com ele que ela inicia.
“Articulador” aqui expressa que Paulo aprofundou e desdobrou teologicamente
a realidade da ekklêsia nas suas cartas ou nos escritos no NT que portam seu nome.
Para isso, ele recorreu a várias metáforas como: corpo, corpo de Cristo, lavoura, edifício de
Deus, santuário de Deus que é habitado pelo Espírito de Deus (por exemplo: 1Co 3.9,1617; 12.12-13). Portanto, a essência da questão não é o termo como tal, mas a realidade
referida.
Em consonância com Mt 16.18, Paulo não deixa dúvidas: a ekklêsia (comunidade) é
de Deus (1Co 1.2; 11.16 e 22; 2Co 1.1; Gl 1.13; 1Ts 2.14; 2Ts 1.4). Por experiência própria, o
apóstolo sabe que Jesus se identifica de tal modo com a comunidade que quem investir
contra ela toca na menina dos olhos do próprio Jesus (Cf. At 9.1-6). O fato de Paulo
ter perseguido a ekklêsia de Deus (Gl 1.13) parece ter-lhe pesado na consciência a vida
toda; no mínimo ele nunca se esqueceu disso (1Co 15.9; 1Tm 1.12-16). Salvo correção
por amostragem convincente, arriscamos a afirmação que a experiência de Paulo de
Cf. Jo 10; 1Pe 5.1-4.
Remetemos ao livro desafiador e em vários sentidos “polêmico” de BRUNNER, Emil. O equívoco sobre a
igreja. Tradução de Paulo Arantes. São Paulo: Novo século, 2000.
11
Informações a respeito: TAUBES, Jacob. Die Politische Theologie des Paulus. 3. ed. München: Wilhelm
Fink Verlag, 2003; BADIOU, Alain. São Paulo. A fundação do universalismo. Tradução de Wanda
Caldeira Brandt. São Paulo: Boitempo, 2009; SANDEERS, E. P. Paulus und das palästinische Judentum.
Ein Vergleich zweier Religionsstrukturen. Tradução da língua inglesa para a língua alemã de Jürgen
Wehnert. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1985; DÜSING, Edith. Nietzsches Denkweg. Theologie
- Darwinismus - Nihilismus. 2. ed. München: Wilhelm Fink Verlag, 2007. p. 167-176 e o.
9
10
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que Jesus se identifica inteiramente com sua comunidade cunhou a compreensão
dele de ekklêsia, sua própria identificação com ela e seu empenho a favor dela depois
dessa experiência.12 A metáfora para a ekklêsia como corpo e corpo de Cristo que Paulo
emprega várias vezes nas suas cartas expressa essa realidade - por exemplo: Rm
12.3-8; 1Co 12.12-13 e 27.
Daqui novamente decorrem aspectos teológico-pastorais para o ministério cristão
em nossos dias. Ministério cristão vai muito além daquilo que de um bom tempo para
cá na linguagem teológica convencionou-se como “aconselhamento pastoral”. Apesar
de sua expressão arcaica e a interpretação ambígua que se fez dela, em vez de usar a
expressão “aconselhamento pastoral” seria mais adequado falar de cuidado pastoral
no sentido de “cura d’alma”.
Werner Wiese
1.2 Igreja como realidade empírico-social ou a igreja visível no NT
Aqui não se trata de fazer uma abordagem sociológica de igreja nos termos de
uma sociologia da religião. Reitera-se que realidade teológica de ekklêsia e realidade
empírica dela se condicionam mutuamente, quer dizer, uma implica a outra. Do
contrário, tratamos ou de ficção religiosa - de uma realidade virtual - ou de um clube
social. Nestes termos, Ralf Luther diz acertadamente:
A comunidade como corpo de Cristo é uma grandeza visível.
O Espírito de Cristo é invisível - seu corpo, porém, é visível.
Jesus chama a comunidade de cidade na montanha (Mt 5.14);
ele diz: sua unidade (o ser um, o eficazmente estar unido das
mais diversas pessoas nela) deveria ser percebida pelo mundo
e por meio disso seu envio divino ser reconhecido (Jo 17.2023). Um corpo invisível é um ferro de madeira. A comunidade é
para ser o órgão através do qual Cristo atua para dentro deste
mundo extremamente real. Aqui sobre a terra, onde os fatos
se empurram duramente, a comunidade tem sua tarefa. Para
efetuar essa tarefa, ela, todavia, deve ser uma forma(ção) bem
sólida, visível e palpável; portanto, ela precisa ser corpo. Dizer
que segundo sua essência a (verdadeira) comunidade deva ser
invisível, significa de modo geral abrir mão da sua tarefa no
mundo.13
Em consonância com o teor das palavras de Ralf Luther está a frase de Riesner
que diz: “O maior serviço que nós podemos prestar à sociedade consiste na formação
Aqui pode-se mencionar como exemplo grande parte de 2 Coríntios; cf. especialmente 2Co 11.28.
LUTHER, Ralf. Neutestamentliches Wörterbuch. Eine Einführung in Sprache und Sinn der
urchristlichen Schriften. 17. ed. Hamburg: Furche-Verlag, 1966. p. 72. A tradução é nossa.
12
13
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de comunidades vivas”.14 Pelo fato de a ekklêsia não ser divisível e separável em
realidade teológico-espiritual e realidade empírico-social, realidade invisível e visível,
é imperativo não fazer leituras ingênuas e unilaterais do NT no que se refere à igreja,
ou seja, leituras das quais “abstrai-se” um ideal de comunidade que não existe em
lugar nenhum - uma verdadeira utopia ou então uma visão de comunidade onde tudo
é possível - um verdadeiro esconde-esconde legitimador atrás de todos os gostos e
jeitos. Isso nos leva a algumas ponderações sobre perfis da ekklêsia no NT.
1.2.1 Perfis ou aspectos gerais da igreja cristã das origens
A expressão igreja cristã não se encontra no NT. Por conseguinte, ao se usar essa
expressão, é necessário dar-se conta de que alguém dos apóstolos de Jesus Cristo
tenha pensado igreja cristã à parte do povo de Deus - da kahal (congregação) de Deus
- muito menos em oposição ao povo de Deus, no NT mais conhecido como judeus
(judaísmo) e vinculado a ele o templo e as sinagogas, apesar de registros de conflitos
entre seguidores de Jesus e judeus ou representantes deles. Fato é que no período dos
apóstolos nem o judaísmo e nem a “igreja cristã” eram uma grandeza uniforme.
Considerado e resguardado o acima dito, para fins didáticos pode-se falar de:
(1) Igreja cristã de cunho judaico em Jerusalém; (2) Igreja cristã judaico-gentílica e
(3) Igreja cristã gentílica. Distinções ou classificações são necessárias, mas elas nem
sempre podem ser feitas de forma clara, pois os perfis se entrecruzam. O perfil pode
ser determinado por vários fatores, dos quais destacamos dois: um é a composição
étnico-cultural dos que formam a igreja cristã; o outro são convicções e compreensões
interiores ou de natureza espiritual. Em última análise, esses fatores e outros mais
se condicionam mutuamente e podem ter fortes reflexos na ekklêsia como grandeza
empírico-social, i.e., seu modo de vida.
Dentro desta linha de argumentação, constata-se o seguinte: (1) Já nos primórdios
do período neotestamentário (séc. I d.C.) existiam várias comunidades uma ao lado
da outra na mesma cidade. Apesar de a maioria das cidades ser pequena, a existência
de várias comunidades não era vista necessariamente como concorrência nem
levou automaticamente a rotulações.15 De outra parte, podia haver, sim, na mesma
comunidade cristã, partidos ou grupos que ameaçavam a comunhão cristã - por
exemplo: 1Co 1-4; Gl 1-2; (2) Nem todas as comunidades tinham a mesma compreensão
RIESNER, Rainer. Apostolischer Gemeindeaufbau. Giessen: Brunnen Verlag, 1978. p. 103.
Cf. GEHRING, Roger W. Hausgemeinde und Mission. Die Bedeutung antiker Häuser und
Hausgemeinschaften - von Jesus bis Paulus. Giessen - Basel: Brunnen Verlag, 2000. p. 128ss.; p. 220ss.
14
15
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em torno de assuntos relevantes como, por exemplo, os dons espirituais (Cf. 1Co 12 e
14) e (3) Por conta de perfis diferentes, houve e surgiram estilos de vida comunitária
distintos. Seria um equívoco transferir a “comunhão de bens” e o modo de vida de
seguidores de Jesus em Jerusalém registrado em At 2.42-47 e At 4.32-35 para todas
as comunidades cristãs das origens como o ideal a ser buscado para todos os tempos
e em todos os lugares.16
Não faltaram tentativas de distinguir e definir modelos de comunidade e
liderança no NT. Por exemplo, Eduard Schweizer fala de três modelos:
a) O modelo palestinense. Este estaria presente e perpetuado no Evangelho segundo
Mateus, na obra dupla de Lucas (Evangelho segundo Lucas e livro de Atos) e nas
Cartas pastorais. Conforme Schweizer, nestes livros bíblicos se dá ênfase forte aos
cargos oficiais e à tradição.
b) O modelo das comunidades joaninas. Nelas sobressai o agir presente do Espírito (o
pneu/ma), de modo que os cargos oficiais na comunidade e a tradição praticamente
desaparecem.
c) O modelo paulino de comunidades. Aqui teríamos um modelo intermediário entre
os dois outros, com tendências ao modelo joanino, que é o da liberdade do Espírito.17
Uma classificação categórica como a que Schweizer faz é problemática por
alguns fatores que destacamos:
1. Nas comunidades paulinas existe quase que um emaranhado de variedades
de formas de vida. Olhando para as cartas paulinas, não vamos encontrar o que
poderíamos classificar como comunidade paulina normal (ou comum), pois as situações
concretas retratadas nas cartas dão outra impressão.
Por exemplo: na Galácia ou na Igreja provincial da Galácia tende-se a voltar a uma
forma de religiosidade legalista determinada por aspectos da tradição judaica (Gl
5.3) ao passo que em Corinto se verifica tendências para um carismatismo prestes
a diluir toda e qualquer forma e norma de vida previsível. Já na comunidade cristã
em Tessalônica, alguns meses depois da fundação da comunidade, o apóstolo
precisa admoestar os tessalonicenses para que não desprezem uma manifestação
carismática tão importante como a profecia (1Ts 5.20).
Para trabalhar adiante: BRAKEMEIER, Gottfried. O “socialismo” da primeira cristandade. Uma
experiência e um desafio para hoje. São Leopoldo: Sinodal, 1985; MEEKS, M. Douglas. Economia global &
economia de Deus. São Bernardo do Campo: Editeo, 2001; A IGREJA: uma visão ecumênica. Traduzido por
Odair Pedroso Mateus e Marie Ann Wangen Krahn. São Paulo: ASTE, 2015.
17
SCHWEIZER, Eduard apud RIESNER, Rainer. Apostolischer Gemeindebau. Giessen u. Basel: Brunnen
Verlag, 1978. p. 9-10.
16
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2. Se tomarmos a sério o que Paulo diz nas cartas, devemos admitir que, a priori,
não existe uma tensão irreconciliável entre carisma e função/ofício, entre Espírito e
direito (eclesial), entre liberdade e autoridade, e entre profecia e tradição.18 Inversamente,
uma não garante nem depende da outra.
Assim sendo, a unidade de uma comunidade cristã não consiste somente das
situações concretas que se verificam nela, ou seja, não é apenas nem em primeiro
lugar uma grandeza empírica. A unidade é um dado teológico e ao mesmo tempo
sempre uma tarefa desafiadora para todas as gerações e épocas. Agora sim, podemos
olhar um pouco mais de perto os perfis da igreja cristã sob seu ponto de vista
empírico-sociológico. Portanto:
1.2.2 Igreja cristã de cunho judaico em Jerusalém
Conforme o testemunho mais claro do NT, a Igreja cristã se forma em Jerusalém.
E de acordo com a compreensão e interpretação convencional, a Igreja cristã se
constitui como corpo visível a partir do primeiro Pentecostes depois da ressurreição
de Jesus (At 2).19 De qualquer modo, não há como negar que a salvação vem dos
judeus, porque Jesus era judeu (Jo 4.22) e porque agradou a Deus escolher este povo
como povo de sua propriedade exclusiva. Tratou-se de uma livre escolha de Deus (Êx
19.5-6; Dt 7.6-8). Contudo, esta escolha não visava somente este povo escolhido
em primeira mão, mas todos os povos (Gn 12.1ss.). E apesar de o povo escolhido por
Deus ter falhado muitas vezes ao longo de sua história no Antigo Testamento, Deus
não desistiu: investiu tudo nele, o que alcança seu clímax no envio de Jesus Cristo,
visando principalmente a “casa de Israel” (Mt 10.1-7; 15.24). E no final da linha
desta “investida” de Deus está uma tragédia: a rejeição definitiva de Jesus Cristo no
coração do povo de Deus - Jerusalém e seu templo - orgulho e arrogância teológica
e economia religiosa.
Ainda assim, a história de Deus com este povo e nesta cidade não foi simplesmente
deletada. Pelo contrário, a Igreja cristã das origens surgiu em Jerusalém e permaneceu
arraigada nesta cidade, ao menos enquanto o templo ainda não tinha sido destruído.
Em torno do nome Jerusalém se agregavam as instituições constitutivas do povo
Cf. RIESNER, 1978, p. 10.
A rigor, se Igreja cristã significa o conjunto de pessoas que seguem Jesus e creem nele como o Cristo
(Messias), então não é feliz dizer que o Pentecostes registrado em At 2 é o nascimento da igreja, pois antes
do episódio conhecido como derramamento ou descida do Espírito Santo havia seguidores e seguidoras de Jesus
não só em Jerusalém; lá sim (At 1.1-15; 2.1-4). Pastoralmente falando, é difícil negar a essas pessoas o status de
ekklêsia. Mas isso é um assunto que demanda uma abordagem mais aprofundada e detalhada que não pode
ser feita aqui.
18
19
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de Deus desde tempos remotos que voltam ao período do AT, a saber: (1) A Lei; (2)
O Sábado; (3) A Circuncisão; (4) A Terra (prometida, dada e interinamente novamente
retirada do povo); (5) O Templo e (5) As Sinagogas.
De fato, pode-se dizer que estas eram as instituições constitutivas do judaísmo que
o mantiveram ao longo da sua existência e garantiram que o povo judeu mantivesse
sua identidade em meio às oscilações da história. Com o passar do tempo, a erudição
rabínica se encarregou de incrementá-las, principalmente a Tora com interpretações
pormenorizadas e especulativas.
A igreja cristã das origens não só não se afastou de Jerusalém, mas se entendia como
parte integrante deste povo e, consequentemente, participava da vida comunitária do
judaísmo: leitura da Tora, observação do sábado, a circuncisão, observação dos tempos
de oração, o calendário festivo e suas dietas alimentares. O exemplo mais claro disto
encontra-se no próprio livro de Atos, especialmente nos primeiros capítulos (At 2.46;
3.1, etc.).
Naturalmente, a Igreja cristã primitiva não se limitava aos moldes da vida
comunitária judaica do templo, mas a excedia em alguns aspectos. At 2.42 sintetiza a
vida comunitária como perseverança na (1) doutrina dos apóstolos, que era a tradição ou
transmissão e proclamação dos grandes feitos de Deus em Jesus Cristo; (2) comunhão,
o que incluía a partilha de bens; (3) no partir do pão - a diaconia e (4) nas orações. Além
do tempo fixo para a oração, cultivava-se a “oração livre”, inclusive em circunstâncias
específicas orava-se possivelmente a noite inteira (At 12.5,12). Por trás desta forma de
viver estava a “força” dos doze discípulos marcados profundamente pela experiência
com o próprio Jesus. Como é possível ver, tratava-se de uma forma de convivência
bastante próxima e organizada.20
1.2.3 Igreja cristã judaico-gentílica
Era formada pelas comunidades cristãs compostas por judeus e gentios. Elas eram
fruto especialmente da atividade dos “helenistas”, mas não exclusivamente. Usamos a
expressão “helenista” em duplo sentido: um significa judeus de cultura grega; o outro
significa gregos ou pessoas de outra nacionalidade que tinham aderido inteiramente ao
judaísmo - conhecidos como prosélitos ou simpatizantes do judaísmo - pessoas tementes a
Deus, mas que não aderiram ao judaísmo, quer dizer, não se submeteram à circuncisão e
outros rituais e dietas alimentares.
Cf. RIESNER, Rainer. Formen gemeinsamen Lebens im Neuen Testament und heute. Giessen und
Basel: BrunnenVerlag, 1977.
20
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A maioria desses judeus de cultura grega (“helenistas”) viveu um bom tempo na
diáspora, quer dizer, fora da terra de Israel. Alguns deles passaram a residir interinamente
ou na sua velhice na Judeia, mais precisamente em Jerusalém. Por conta disso, havia no
mínimo uma “Sinagoga helenística”, i.e., de fala grega em Jerusalém. Dos sete diáconos
nomeados em At 6.1ss., seis parecem ter sido judeus de cultura grega, pois têm nomes
gregos, e um - Nicolau de Antioquia - é caracterizado como prosélito (At 6.5).
A perseguição desencadeada em torno de Estevão em Jerusalém (At 6.8-7.60) e que
depois assumiu proporções geográficas maiores (At 8.1-3; 9.1ss.) tinha a ver não só com o
seguimento a Jesus e a confissão de que ele é o Cristo (Messias), mas tinha a ver também
com uma postura mais independente das instituições do judaísmo, especialmente
do templo em Jerusalém. As acusações feitas contra Estevão têm semelhanças com
as acusações feitas contra Jesus e que levaram a sua condenação. Antes de se tornar
seguidor e apóstolo de Cristo, Paulo estava envolvido ativamente nessa perseguição.
Porém, ele não perseguia simplesmente cada discípulo de Jesus que encontrava pela
frente, mas principalmente aqueles que tinham uma postura semelhante à de Estevão,
quer dizer, judeus helenistas.
Decorrente desta perseguição surgiu um movimento missionário que transcendeu
de vez os limites geográficos e também étnicos do judaísmo. Surgiu, por assim dizer, um
centro missionário, especialmente em Antioquia da Síria. Foi lá que mais tarde o próprio
apóstolo Paulo recebeu impulso e apoio fundamentais para sua atividade missionária
entre gentios.
As comunidades cristãs judaico-gentílicas tinham perfis diferentes da comunidade
cristã das origens em Jerusalém. Essas diferenças geravam tensões entre a Igreja-mãe
em Jerusalém e as “filiais” fora da terra de Israel, inclusive surgiram conflitos internos
entre judeus-cristãos e gentios-cristãos nas mesmas comunidades. Existem provas
textuais contundentes a respeito e da busca por soluções. Basta mencionar Atos 15 e Gl
2. Estas duas narrativas também deixam claro que decisões ou resoluções conciliares
não garantem automaticamente a solução dos problemas.
1.2.4 Igreja “gentílico”-cristã
Seriam comunidades cristãs compostas apenas por pessoas de origem não judaica.
Na medida em que o evangelho foi anunciado cada vez mais fora da terra de Israel, com
o passar do tempo as comunidades cristãs tornavam-se majoritariamente gentílicas.
Mesmo neste caso, é difícil imaginar uma ekklêsia de Deus - uma igreja cristã sem a
presença de judeus-cristãos, por menor que fosse o número. Corinto e Roma talvez
Aspectos teológico-pastorais de igreja, ministério, liderança e autoridade cristãs no Novo Testamento com enfoque em Paulo
449
Revista Batista Pioneira v. 4, n. 2, dezembro/2015
450
sejam exemplos disso. Embora houvesse vários conflitos e tumultos entre seguidores de
Jesus e sinagogas judaicas, uma ruptura “definitiva” entre os seguidores de Jesus (igreja
cristã) e as sinagogas judaicas ocorreu depois do ano 70 d.C., o término da guerra judaica
contra Roma. Isso representou a exclusão de judeus-cristãos das sinagogas,21 mas não
o fim da presença de judeus-cristãos nas comunidades cristãs.22 É óbvio que a igreja
gentílico-cristã tinha um perfil ainda diferente. Mas isso não pode ser detalhado aqui.
Werner Wiese
2. LIDERANÇA, AUTORIDADE E LÍDERES NA IGREJA CRISTÃ DAS
ORIGENS
2.1 Notas preliminares
a) Líderes/liderança, autoridade e ekklêsia não são grandezas teológicas e empíricosociais autônomas e independentes. Eles têm um vínculo vital com Cristo, a quem
pertencem, e têm um vínculo entre si por serem membros do mesmo corpo e membros
uns dos outros. Liderança e líderes cristãos sem comprometimento com a ekklêsia
enquanto realidade teológica e empírica - a ekklêsia visível - é um contrassenso; líderes
nestas condições seriam mais parecidos com atores, aplaudidos ou não, que alimentam
ou frustram espectadores, mas não contribuem para o crescimento ou a edificação do
corpo de Cristo, o que seria sua função de acordo com Ef 4.11-16. Contudo, não raras
vezes “líderes” fazem mal ao corpo.
b) Para evitar o caos e a luta de todos contra todos, a sociedade necessita de leis
mínimas que a rejam. Quanto mais complexa a sociedade for, mais elaboradas precisam
ser as leis que a regem. Precisa-se de “guardiões” das leis. Assim, surgem estruturas
de poder hierarquicamente organizadas e delegadas para líderes (autoridades)
estabelecidos e assumidos por eles. Ao longo da história, estruturas de poder se tornaram
inquestionáveis e geraram Estados (Reinados e Impérios) absolutistas, não raras vezes
Cf. HENGEL, Martin. Christus und die Macht. Die Macht Chriusti und die Ohnmacht der Christen.
Zur Problematik einer “Politischen Theologie” in der Geschichte der Kirche. Stuttgart: Calwer Verlag,
1974. p. 31.
22
Quando em 66-70 eclodiu a guerra judaica contra Roma, a Comunidade cristã das origens de cunho
judaico abandonou Jerusalém e se refugiou num lugarejo chamado Pela, no interior da Palestina. E de lá ela
desaparece do mapa das informações oficiais, aquelas informações a que mais se tem acesso e que mais foram
veiculadas também nos meios acadêmicos cristãos. Mais tarde ouve-se dela como de um grupo de ebionitas
- autocaracterizados como os pobres de acordo com Mt 5.3. Talvez se inspirassem num ideal de pobreza que
julgavam poder abstrair de palavras de Jesus segundo a tradição dos Sinóticos. Para informações adicionais,
cf. CULLMANN, Oscar. Ebioniten. In: GALLING, Kurt. Die Religion in Geschichte und Gegenwart.
Handwörterbuch für Theologie und Religionswissenschaft. Tübingen: J. C. B. (Paul Siebeck), 1958, col.
297-298. Ademais, Taubes chama a atenção para o fato de hoje existirem testemunhos em manuscritos
árabes de que até o século X existiram judeus-cristãos; cf. TAUBES, Jacob. Die Politische Theologie des
Paulus. 3. ed. München: Wilhelm Fink Verlag, 2003. p. 34-35.
21
Revista Batista Pioneira v. 4, n. 2, dezembro/2015
com conotação religiosa - verdadeiras “grandezas metafísicas”, conscientes de sua
vocação “divina”.23 A ekklêsia também precisa de liderança, líderes e, por conseguinte,
“estruturas de poder” - elas fazem parte da ekklêsia, pois nela, por natureza, não existe
só “Espírito Santo e verdade”. Engana-se quem acha que a ekklêsia pode abrir mão disso.
c) Contudo, é imprescindível dizer que estruturas organizacionais não são a
essência da ekklêsia. Consequentemente, ela como corpo de Cristo (1Co 11.29)24 deve ser
liderada de maneira diferente que qualquer outro corpo ou organização. E não é por
acaso que Jesus diz: “Edificarei a minha igreja” (oi)kodomh/sw mou th&n e)kklhsi/an
[Mt 16.18]). Assim, liderança cristã não é dominação ou exercício de fazer valer à força
a vontade de quem nela exerce uma função. É com honestidade e tristeza que se deve
admitir e reconhecer que não só modelos de estruturas de poder seculares foram e ainda
são assumidas pela igreja cristã (instituição), mas que interesses do Estado e da Igreja se
irmanaram em muitos momentos para um cooptar o outro para o seu próprio interesse
- se não tiveram interesses comuns.
2.2 Breve definição de liderança e autoridade na igreja no NT
2.2.1 Liderança/líderes
O NT não emprega um termo técnico específico e singular para caracterizar
“liderança” ou mesmo “líderes”. Emprega, isto sim, alguns “termos técnicos” para se
referir a pessoas que exercem alguma função na ekklêsia sem que se especifique a tarefa
ou nomine as pessoas, com raras exceções. Uma terminologia específica à parte, mas
que não pode ser abordada aqui devido à sua complexidade, são presbíteros (Cf., por
exemplo, At 11.30; 14.23; 15.2; 16.4; 20.17; Tt 1.5), epíscopos, episcopado (Cf. Fp 1.1; 1Tm 3.1;
Tt 1.7), diáconos (Cf., por exemplo, Fp 1.1; 1Tm 3.8; At 6.3)25 e apóstolos, profetas, evangelistas,
pastores e mestres, mencionados em Ef 4.11.
Para liderar/liderança se destacam, por exemplo, os seguintes termos: (1) kybernêsis
(kube/rnhsij), que significa administração. No NT ocorre somente em 1Co 12.28. Da
mesma raiz da palavra que se forma kybernêsis forma-se kybernêtês (kubernh/thj). É
linguagem originária de embarcações navais e significa capitão, piloto, timoneiro (At 27.11;
Entre outros, um exemplo é o Império Romano sob o “divino Augusto”. Quase ninguém ousava oferecer
resistência, com exceção do “pequeno povo dos judeus e da comunidade cristã emergente dos judeus”,
diz HENGEL, Martin. Christus und die Macht. Die Macht Christi und die Ohnmacht der Christen. Zur
Problematik einer “Politischen Theologie” in dVwerlag, 1974. p. 12.
24
A expressão “discernir o corpo” não se refere aos elementos da Ceia do Senhor, mas aos irmãos e às irmãs
na fé que na verdade são ou compõe o corpo de Cristo, que é uma metáfora para ekklêsia.
25
Uma abordagem desafiadora para aprofundar o assunto é o livro de ALMEIDA, Antonio José de. O
ministério dos presbíteros-epíscopos na igreja do Novo Testamento. São Paulo: Paulus, 2001.
23
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Revista Batista Pioneira v. 4, n. 2, dezembro/2015
Werner Wiese
452
Ap 18.17)26 e (2) prohistêmi (proi/sthmi), que tem vários significados. Citemos Gingrich
e Danker literalmente: “1. estar à frente (de), liderar, dirigir com gen.27 1Ts 5.12; 1Tm 3.4s.,
12; 5.17. Talvez Rm 12.8; 1Ts 5.12. - 2. Estar preocupado com, cuidar de, ajudar talvez Rm 12.8;
1Ts 5.12. Ocupar-se com, engajar-se em Tt 3.8,14”.28 Parece-nos que aqui ainda não se trata
de um ministério constituído, em todos os casos não nos termos que conhecemos hoje,
mas de tarefas ou funções exercidas por pessoas dentro da ekklêsia.29
Contudo, o que chama a atenção é que estes termos do mundo técnicoadministrativo e de embarcações são arrolados em meio a carismas ou dons espirituais
dados para o bem do corpo de Cristo. Isso é uma conotação poimênica/pastoral que
deixa evidente que liderança na comunidade cristã tem a finalidade de servir e não de
ser servido, muito menos de exercer domínio, mostrar força. Ela também transcende
capacidades tecnicamente adquiridas (quer dizer, por treinamento) e não deve ser
confundida com “conhecimento de causa” na área técnico-administrativa. Em última
instância, ela se inspira e espelha no próprio Jesus, que está na contramão do domínio
usual no mundo (Mc 10.35-45; cf. também 2Co 1.24; 1Pe 5.1-4). Daqui abstrai-se uma
coerência entre liderança cristã e a natureza da “liderada” ou dos liderados, no caso a
ekklêsia de Deus, cuja existência se deve à vocação superior do próprio Deus (Rm 9.24;
Ef 4.1; 2Tm 1.9).
2.2.2 Autoridade (e poder)
Autoridade (e poder) é conferida por um superior a alguém inferior ou subordinado.
Ninguém pode dar-se autoridade por si mesmo. Caso o faça, se trata de arrogância,
arbitrariedade e despotismo. Obviamente, autoridade conferida não tem imunidade
contra arrogância, arbitrariedade e despotismo.
Autoridade e poder não dependem da terminologia em si, mas a transcendem.
Contudo, existem termos que se destacam neste quesito; trata-se acima de tudo da
palavra exousia (e)cousi/a) e dynamis (du/namij) e cognatos. Cada uma dessas palavras
pode ocorrer de forma isolada e figurar como sinônimo da outra (Cf. Mt 10.1; At 1.8), mas
elas também podem ocorrer uma ao lado da outra e variar de sentido ou representação
(por exemplo: At 1.7-8; 1Pe 3.22). Ambas as palavras não são prerrogativas cristãs (quer
Cf. GINGRICH, F. Wilbur; DANKER, Frederick W. Léxico do Novo Testamento grego/português.
São Paulo: Vida Nova, 1984 (reimpressão em 1986). p. 122.
27
Quer dizer dirigir bem, com bondade.
28
GINGRICH; DANKER, 1984 (reimpressão 1986), p. 176.
29
Cf. LOHRMANN, Walter. Fruto e dons do Espírito Santo. Tradução de Arthur H. Stahlke. São Bento
do Sul: União Cristã, 2008. Várias páginas.
26
Revista Batista Pioneira v. 4, n. 2, dezembro/2015
dizer, de testemunhas diretas do evangelho). Por exemplo: Pilatos tem poder sobre
Jesus (Jo 19.10-11; 1Co 2.6-8, especialmente o v. 8), o tentador (diabo/Satanás) tem
poder ou arroga ter autoridade sobre os reinos do mundo (Lc 4.6; cf. também 2Co 4.34), autoridades seculares instituídas têm poder (Rm 13.1-7), há poderes e autoridades
opostos ao evangelho, à vida e também a quem segue a Jesus Cristo (Rm 8.38; Ef 2.2;
6.11-12; Ap 13.2).
De forma breve, queremos destacar aspectos centrais concernentes à autoridade
(e)cousi/a) cristã (quer dizer, dos seguidores de Jesus):
a) Autoridade é conferida ou outorgada. Ninguém pode outorgá-la a si mesmo nem
reivindicá-la para si. Mesmo Jesus - o “portador” da autoridade por excelência (Mc 2.10;
Jo 10.18) - não a arrogou para si e nem se apegou a ela como a um direito que lhe assiste,
mas a recebeu de seu Pai celeste no tempo devido (Fp 2.5-11; Mt 28.18). Jesus não é
solista da autoridade. Ele a outorga a seus seguidores para tarefas específicas e para o
ministério (serviço/diaconia) como tal (ex.: Mt 10.1; At 2.14ss.; 4.8ss., principalmente
os v. 19-20). Autoridade e poder não podem ser usurpados nem negociados, tampouco
é truque ou magia humana que se possa imitar (At 8.18-20; At 19.13-20).
b) Autoridade é perceptível (por exemplo: Mc 1.22; Mt 7.28-29; cf. também Lc
10.17-20; At 4.13),30 mas ela não é sinônimo de êxito ou sucesso. O ministério terreno de
Jesus e dos apóstolos não foi coroado de aplausos e honrarias.
c) Autoridade não é concessão ou direito adquirido por (con)curso espiritual
ou qualquer capricho humano. Ela pode ser revogada ou retirada.31 Neste caso, o
que resta é fazer barulho, palavreado, talvez exercitar poder sugestivo, manipular
psicologicamente pessoas e tentar coagí-las em “nome de Deus ou de Jesus” - o que
configuraria abuso de poder, talvez inconsciente, talvez consciente.
d) Poimênica ou pastoralmente falando, o “mistério” de autoridade cristã na vida
da pessoa é o permanecer em Jesus Cristo e em sua palavra, tal qual nos é dito na
figura da videira, do agricultor e dos ramos em Jo 1532 (Cf. também 1Co 9.26-27). Existe
uma postura coerente ou incoerente com autoridade e poder procedentes de Deus: exousia
Em At 4.13 aparece a palavra intrepidez (parrêsia - parrhsi/a) e retrata o que é autoridade, a liberdade
e destemor interior para falar, independente das circunstâncias exteriores (cf. também Jo 7.26; 16.29; At
2.29).
31
Um exemplo de revogação da autoridade é o rei Saul (1Sm 10ss. Cf. também 1Sm 2.22-36; 3.1).
32
Cf. também SCHRENK, Gottlob. Geistliche Vollmacht heute. Basel: Verlag von Heinrich Majer, 1946;
KEMNER, Heinrich. Vollmacht und Sendung. Stuttgart-Sillenburg: Verlag Goldene Worte (sem ano de
publicação); SORG, Theo. Ruf und Vollmacht. Von den Grundlagen geistlichen Dienstes. Giessen; Basel:
Brunnen Verlag, 1965; HAACKER, Klaus. Vollmacht und Ohnmacht - Charisma und Kerygma. Bibelarbeit
über Apg 14, 8-20. In: HAACKER, Klaus; SORG, Theo (Edit.). Theologische Beiträge. Wuppertal: Verlag
Rolf Brockhaus, 1988. p. 317-324.
30
Aspectos teológico-pastorais de igreja, ministério, liderança e autoridade cristãs no Novo Testamento com enfoque em Paulo
453
Revista Batista Pioneira v. 4, n. 2, dezembro/2015
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divina permanece vinculada ao Senhor crucificado e ressurreto, o que exclui qualquer
arrogância - seja ela intelectual ou espiritual (1Co 2.1-5). Fraqueza humana não é
impedimento para a exousia (Cf. 2Co 12-1-10), mas permanecer no pecado sim (Jo 15).33
2.3 Líderes na igreja cristã das origens
Werner Wiese
Trata-se de mencionar nomes conhecidos de líderes ou autoridades da Igreja cristã
das origens e destacar algumas características e/ou funções que exerciam.
2.3.1 Os doze apóstolos34
O destaque de Pedro entre os demais apóstolos no NT está muito claro. Ele foi
o primeiro líder da Comunidade cristã primitiva em Jerusalém, mas não o único. Os
outros apóstolos também exerceram funções de liderança em Jerusalém, porém não
durante muito tempo. Entretanto, enquanto permaneceram em Jerusalém, os apóstolos
como colegiado dirigiram a Comunidade dos seguidores de Jesus como um todo, ou
seja, tanto a comunidade de fala aramaica35 quanto a parte da comunidade de fala grega.
A partir dos dados registrados no NT, especialmente no livro de Atos, Pedro era o
“presidente”36 do colegiado dos apóstolos. Outros fatores eram mais importantes do que
as funções específicas que os doze apóstolos exerciam, por exemplo: o número doze é
significativo, pois tinha uma função-sinal de que o chamado à meia-volta valia para todo o
Israel e não só para uns poucos ou para um resto. “Essa função”, diz Schenke, “os ‘doze’
só podem ter exercido como grupo”. Consequentemente também devem ter aparecido
conjuntamente em público.37 Neste sentido, eles estão na tradição ou na continuidade
do próprio Senhor Jesus (Mt 10) e, inicialmente, não transcenderam o espaço geográfico
da própria Jerusalém, pois lá esperavam a irrupção do reino de Deus.
O que causa estranheza é o fato de sabermos tão pouco no NT da maioria deles.
Apenas o nome de dois dentre eles é preservado por escritos específicos no NT - Pedro
e João (1 e 2 Pedro, e os escritos joaninos). Ademais, chama a atenção que, por ocasião
da sua primeira viagem para Jerusalém, Paulo escreve ter-se encontrado apenas com
Cf. HERBST, Michael. Mit Vollmacht predigen. In: HAACKER, Klaus; HEMPELMANN, Heinzpeter;
HENNIG, Gergard (Edit.). Theologische Beiträge. Haan: Brockhaus Verlag. 1999. p. 60-73, aqui
especialmente p. 64-65.
34
Referente a apóstolo, cf. WIESE, Werner. Apóstolo. In: Dicionário brasileiro de teologia. São Paulo:
ASTE, 2008. p. 60-64.
35
Possivelmente um dialeto.
36
SCHENKE, Ludger. Die Urgemeinde. Geschichtliche und theologische Entwicklung. Stuttgart; Berlin;
Köln: Verlag W. Kohlhammer, 1990. p. 75.
37
SCHENKE, 1990, p. 75.
33
Revista Batista Pioneira v. 4, n. 2, dezembro/2015
Pedro e, além de Pedro, não ter visto nenhum dos outros apóstolos, exceto Tiago, o
irmão do Senhor (Gl 1.18-19). Essa viagem ocorreu três anos depois da conversão de
Paulo, i.e., em torno de cinco anos depois do surgimento da Igreja cristã primitiva em
Jerusalém. A pergunta é: Por que Paulo não encontrou ou menciona os outros apóstolos?
Uma hipótese com certo grau de probabilidade é que já naquela época os doze não se
encontravam mais em Jerusalém como colegiado de líderes. E catorze anos mais tarde
(Gl 2.1ss.), Paulo novamente viajou para Jerusalém e cita apenas três como “reputados
colunas” - Tiago (irmão do Senhor), Cefas (Pedro) e João (Gl 2.9). Cronologicamente
a segunda viagem de Paulo para Jerusalém situa-se em torno do ano 48/49 d.C., que é
também a época do Concílio dos apóstolos. Isso quer dizer que a esta altura os “doze”38
como colegiado não exerciam mais uma função significativa em Jerusalém.39
O que teria acontecido? No NT não encontramos uma resposta de todo satisfatória
para essa pergunta. É possível imaginar que o episódio em torno de Estevão (At 6-8)
tenha “frustrado” a expectativa da irrupção do reino de Deus que teria em Jerusalém seu
centro de convergência, que não só atrairia os judeus da diáspora para a cidade santa,
mas inclusive os gentios para adorarem ao Deus verdadeiro. Isso não quer dizer que os
apóstolos abandonaram a tarefa de chamar todo o Israel à meia-volta, só que realizar isso
em Jerusalém não era mais possível, pois a cidade santa e seus líderes não só haviam
resistido a este chamado, como também perseguido os “mensageiros de Jesus”. Por esta
razão o chamado à meia-volta teve que ser levado para o Israel disperso - o Israel na
diáspora. É possível imaginar que em função disto os doze como mensageiros de Jesus
deixaram Jerusalém para cumprir sua tarefa fora da cidade santa.40 Apesar de isso ter
sido possível, causa estranheza que as pegadas da maioria dos doze desaparecem no
crepúsculo do tempo. Pedro e João são exceções.
2.3.2 Pedro
Ele foi o primeiro líder que conhecemos da Igreja cristã primitiva em Jerusalém. Por
quê? Certamente por vários motivos, porém o mais importante deles parece ter sido
o fato de Jesus tê-lo escolhido para essa função primária. As provas textuais do NT
mais importantes são: Mt 16.17-19; Lc 22.31-32; Jo 21.15-17; 1Co 15.(3-)5 (-8); Lc 5.1-11,
“Doze” é modo de dizer, pois Tiago, irmão de João, já tinha sido morto por Herodes Agripa I (At 12), no
início da década de 40 d.C.
39
Para informações adicionais, cf. BIEBERSTEIN, Sabine; KOSCH, Daniel. Paulus und die Anfänge der
Kirche. Zurich: Theologischer Verlag Zürich, 2012. p. 29-31; ALMEIDA, Antonio José de. O ministério dos
presbíteros-epíscopos do Novo Testamento. São Paulo: Paulus, 2001. p. 33-35.
40
Cf. SCHENKE, 1990, p. 76-77.
38
Aspectos teológico-pastorais de igreja, ministério, liderança e autoridade cristãs no Novo Testamento com enfoque em Paulo
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456
especialmente o v. 10. Ainda outros textos mais poderiam ser arrolados aqui, mas
isso não é necessário. Embora Pedro não apareça sozinho, não há como negar que ele
ocupa uma função de destaque. A expressão é perigosa, mas dá para arriscar dizer
que a igreja cristã também hoje não se pode dar o luxo de ignorar Pedro, ou seja,
de ouvir atentamente seu testemunho registrado no NT, sob pena de sofrer prejuízo
substancial. Nenhum outro apóstolo testemunha ocular do ministério de Jesus é
mencionado tantas vezes como Pedro no NT. Pode-se objetar e dizer que Paulo é
mencionado mais que Pedro no NT, especialmente a influência de Paulo no NT é
maior do que a de Pedro. Porém, Paulo é testemunha ocular “fora de tempo” (1Co
15.8-9).
Em que sentido a função de Pedro se destaca como líder? Por um lado, do ponto
de vista teológico-querigmático41 (Cf. especialmente At 2-5), Pedro era testemunha
e hermeneuta dos grandes feitos de Deus (At 2.11, 14ss.). Por outro lado, ele era um
organizador e estrategista, muito semelhante a Paulo, diz Hengel,42 por exemplo: ele
propõe a escolha de um apóstolo para preencher o lugar deixado por Judas (At
1.15ss.); assumiu a palavra na festa no primeiro Pentecostes depois da ressurreição
de Jesus (At 2.14ss.); proferiu a sentença sobre Ananias e Safira (At 5.1ss.) e foi portavoz da “nova Comunidade messiânica” diante da hierarquia religiosa em Jerusalém
em vários momentos. Juntamente com João, Pedro visitou os novos convertidos ao
evangelho em Samaria; censurou Simão, o mágico que tentou “comprar” com dinheiro
a autoridade (exousia) de Pedro e João (At 8.14ss.), etc.43 Liderança e autoridade cristãs
estão unidas na pessoa de Pedro.
2.3.3 Tiago - irmão do Senhor
O NT não cultiva o nome de celebridades. Desta forma, como com a maioria dos
apóstolos, o nome de Tiago não é muito mencionado no NT. Porém, a partir de certo
momento ele teve muita influência na comunidade cristã das origens. Desconhecemos
a razão disto. É imaginável que a ressurreição de Jesus e o efeito dela tenha sido a
razão maior, pois durante o ministério terreno de Jesus, Tiago antes parece ter sido
cético do que compreensivo para com seu meio-irmão, especialmente o que este fazia.44
Querigmático é um adjetivo grego que deriva de kêrygma, que significa proclamação, pregação.
Cf. HENGEL, Martin. Der unterschätzte Petrus. Tübingen: Mohr Siebeck, 2007. p. 145ss.
43
HENGEL, 2007, p. 145ss.
44
Aliás, em torno da pessoa de Tiago formou-se uma tradição muito rica, que não perde em nada para Pedro
e Paulo ou qualquer um dos outros apóstolos. Para tal, cf. PRATSCHER, Wilhelm. Der Herrenbruder
Jakobus und die Jakobustradition. Göttingen: Vandenheock & Ruprecht, 1987. p. 11ss., e outras.
41
42
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Em todos os casos, o mais tardar a partir da perseguição de Herodes Agripa
I contra os seguidores de Jesus em Jerusalém (At 12), o irmão de Jesus assumiu a
liderança da Igreja cristã primitiva na cidade (At 12). De lá em diante, tornou-se um
dos líderes mais importantes dentro do cristianismo emergente. Ele é mencionado por
Paulo em Gl 1.18-19; 2.9 e aparece como um dos principais dirigentes do Concílio dos
apóstolos em Jerusalém (At 15). Em Gl 2.12 Paulo menciona mais uma vez seu nome,
embora não se saiba bem como entender a expressão “alguns da parte de Tiago”.45
Além disto, Paulo o menciona com destaque em 1Co 15.7 no contexto das testemunhas
oculares da ressurreição de Jesus. Na pesquisa do NT quase que se convencionou
Paulo e Tiago como opositores irreconciliáveis nas suas convicções teológicas deduzíveis
dos conteúdos das suas cartas. Há inclusive quem diga que a carta de Tiago é uma
apologia indiretamente feita contra Paulo e, na visão de Paulo, Tiago seria um dos
“falsos apóstolos” e dos “obreiros fraudulentos”, alegados em 2Co 11.13ss.46 Chama a
atenção que na viagem para Jerusalém que redundou no aprisionamento de Paulo, este
foi encontrar-se com Tiago, o que o confirma mais uma vez como líder e destaca sua
influência para além das fronteiras geográficas da Igreja cristã primitiva em Jerusalém
(At 21.17ss).
Em todos os casos, entre Paulo e Tiago existem diferenças teológicas. Elas
transparecem, sim, quando se faz uma leitura comparativa das cartas paulinas com a
carta de Tiago. Enquanto Paulo enfatiza com muita veemência a salvação por graça,
ou seja, pela fé em Jesus Cristo (Cf. Gl 2.16,20; Rm 3.21ss, etc.), Tiago destaca a prática
da fé (Cf. Tg 2.14ss). Contudo, as diferenças constatáveis entre os dois líderes não são
base suficiente para sustentar incompatibilidade teológica excludente de ambos. Parte das
diferenças pode estar relacionada a circunstâncias peculiares dos destinatários das
suas cartas e da situação específica da comunidade cristã em Jerusalém.47 Enquanto
Paulo escreve às comunidades cristãs compostas por judeus e gentios, sendo que estes
últimos se tornaram maioria numérica, Tiago escreve “às doze tribos que se encontram
na Dispersão” (Tg 1.1). Isso faz uma grande diferença. As convicções bíblico-teológicas
PRATSCHER, Wilhelm. Der Herrenbruder Jakobus und die Jakobustradition. Göttingen:
Vandenheock & Ruprecht, 1987. p. 71ss.
46
Cf. SCHMITHALS, Walter. Paulus und Jakobus. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1963.
47
Desde a perseguição aos cristãos em Jerusalém apoiada por Herodes Agripa I nos anos 40, a existência
da comunidade cristã judaica em Jerusalém estava ameaçada, inclusive comunidades cristãs de tradição
judaica fora de Jerusalém, i.e., na diáspora, ligadas à sinagoga sofriam pressões para que se mantivessem
fiéis à lei mosaica. Tiago teme pelo futuro da comunidade mãe. “Para a comunidade em Jerusalém ele (Tiago)
quer alcançar um modus vivendi com as autoridades judaicas...”, diz SCHNABEL, Eckhard J. Urchristliche
Mission. Wuppertal: Brockhaus Verlag, 2002. p. 963. Cf. também SCHMITHALS, Walter. Paulus und
Jakobus. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1963. p. 85ss., especialmente p. 86.
45
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básicas de Tiago e de Paulo48 não devem ter estado tão distantes umas das outras como
à primeira vista pode parecer. Acrescenta-se a isso que, como Paulo, Tiago também se
tornou mártir por causa da fé em Jesus Cristo: por volta de 62 d.C., sob a tutela do sumo
sacerdote Ananos, judeus o apedrejaram até a morte.49
2.3.4 Paulo
Ele nasceu em Tarso por volta de 5 d.C. como filho de pais judeus, descendentes da
tribo de Benjamim, “hebreu de hebreus”. Seus pais eram leais à lei judaica e pertenciam
aos círculos dos fariseus e o próprio Paulo tornou-se fariseu letrado e rigoroso observador
da lei e das tradições judaicas (Gl 1.13-14; Fp 3.5-6; At 23.4-6). Ele conhecia a Lei mosaica
e as tradições judaicas como poucos outros em sua época. Em Damasco, teve um
encontro inesperado com o Senhor Ressurreto (At 9.1ss). Esse encontro transformou
Paulo de um zeloso observador da Lei mosaica e resoluto perseguidor da igreja de Deus
num pregador zeloso do evangelho entre judeus e gentios. Tornou-se o líder cristão que
influenciou mais do que qualquer outro apóstolo a igreja cristã da segunda metade do
séc. I d.C. e de todos os tempos. Dos 27 livros do NT, 13 cartas levam o nome de Paulo
como remetente; em 7 delas são citados dois ou mais remetentes (1Co; 2Co; Fp; Cl; 1Ts;
2Ts e Fm).
Esse fato já é um indício de como Paulo exercia a liderança. Ele era líder em equipe.
Não é por acaso que nas cartas que levam seu nome e no livro de Atos são mencionados
nominalmente em torno de 100 pessoas, das quais 38 eram colaboradores de Paulo.50
Suas cartas são de uma profundidade teológica singular no NT. Foi ele quem mais
aprofundou o significado teológico da morte e ressurreição de Jesus Cristo, articulou
a realidade do Espírito Santo, da salvação, dos dons carismáticos e sua finalidade, refletiu
sobre a identidade da Igreja de Deus, definiu a função de líderes na Igreja de Deus, etc.
Tudo isso o apóstolo Paulo fez no “horizonte da parusia do Kyrios, a nova existência em
Cristo”, diz Schnelle.51 Tanto como fariseu pré-cristão quanto como apóstolo de Jesus
Cristo, Paulo era alguém de personalidade forte, de convicção, vontade e determinação.
Deve-se pensar aqui especialmente em questões como a circuncisão como “exigência” feita aos gentios para
poderem fazer parte integral do povo de Deus (Cf. as posições defendidas no Concílio dos apóstolos em
At 15) e na comensalidade entre judeus e gentios (Gl 2.11ss.). Quem eram estes “alguns da parte de Tiago”
ainda precisaria ser esclarecido melhor; talvez esses “alguns” fizessem uso de má fé do nome de Tiago.
49
POPKES, W. Jakobus. In: BURKHARDT, Helmut; GRÜNZWEIG, Fritz; LAUBACH, Fritz; MAIER,
Gerhard (Edit.). Das Grosse Bibellexikon. Wuppertal, Giessen: Brockhaus Verlag & Brunnen Verlag,
1988. v. 2, p. 646.
50
SCHNABEL, Eckhard J. Urchristliche Mission. Wuppertal: Brockhaus Verlag, 2002. p. 1365-1367.
51
SCHNELLE, Udo. Paulo: vida e pensamento. Santo André: Academia Cristã;São Paulo: Paulus, 2010. p. 19.
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Certamente nem sempre foi fácil lidar com ele, mas ele também pôde chorar com os que
choravam e se alegrar com os que se alegravam (Rm 12.15; cf. também 2Co 2.1ss). Depois
de Jesus, Paulo é o personagem mais influente da igreja cristã das origens, especialmente
da segunda metade do séc. I d.C. Também foi ele que em boa medida foi objeto de
articulações teológicas ao longo da história da igreja e Teologia.
3. A RELAÇÃO ENTRE INSTITUIÇÃO, DONS ESPIRITUAIS E OFÍCIO
3.1 Notas preliminares
Acima já abordamos a questão da igreja como realidade teológico-espiritual e
empírico-social ou visível. Também já foi destacado que elas se condicionam mutuamente
- uma implica a outra e elas não são divisíveis e separáveis no sentido de dizer: num
lugar se encontra a realidade teológico-espiritual e noutro lugar a realidade empíricosocial.52 Na última parte deste trabalho trata-se de olhar brevemente a instituição ou
organização que congrega pessoas, que, em casos extremos, novamente exclui pessoas
e a questão do agir do Espírito Santo. Em outras palavras: Como se relacionam carisma
e ofício/função, Espírito e direito (eclesial) ou justiça, liberdade e autoridade, profecia e
tradição? O que em última análise está em jogo é a “unidade da comunidade”,53 também
externa e visivelmente.
Se pessoas congregam regularmente num lugar para um determinado fim, em mais
ou menos tempo, surge uma instituição ou organização como sinal de pertença - e este
não se limita a aspectos jurídicos no sentido de pessoa jurídica. É uma instituição que
tem rosto, quer dizer, lida com pessoas concretas. A ekklêsia no NT não foi diferente. E
hoje não é diferente. A partir desta perspectiva, a conhecida frase: “não se trata de copiar
a imagem da comunidade do Novo Testamento, mas de captá-la”54 não nos autoriza a
negligenciarmos a realidade social concreta da comunidade ou igreja local.
3.2 A função ou importância da ekklêsia como instituição e a admissão nela
3.2.1 A função ou importância da instituição
A função - e nisto está sua importância - da instituição é criar espaço para que o
evangelho possa ser proclamado e pessoas cheguem à fé em Jesus Cristo e possam
crescer na fé, i.e., que a fé em Jesus Cristo seja relevante para o cotidiano - lá
onde a vida acontece e as decisões centrais na vida são tomadas. Nesse sentido, a
Cf. os itens 1.1 e 1.2 deste trabalho.
RIESNER, 1978, p. 11.
54
Citado em RIESNER, 1978, p. 101. A tradução é nossa.
52
53
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instituição - a ekklêsia organizada - é um espaço de acolhimento, abrigo e orientação
para as pessoas que a compõem. De forma alguma a “comunhão de pessoas” que creem
em Jesus Cristo deve ser substituída “por uma instituição administrativa legal”.55
Obviamente, isso pode acontecer, mas não é motivo para desprezar, por princípio, a
instituição. Riesner56 escreve (na nossa percepção, acertadamente) que “a longo prazo,
comunidades (Gemeinschaften)57 só podem sobreviver se elas criam instituições que são
expressão autêntica das suas convicções”.58
Neste sentido, a instituição é uma forma de identidade pública e a via para passar às
próximas gerações o modo de vida como expressão de fé viva em Jesus Cristo. A fé
em Jesus Cristo não fica oculta: ela se exterioriza. Valemo-nos outra vez de palavras
de Riesner: “Muitas coisas que na fase do advento (surgimento) de um movimento
acontecem quase que por si só (automaticamente), mais tarde precisam ser protegidas
e estimuladas por meio de ordens”.59 De forma alguma isso é um sinal automático de
decadência espiritual. Isso só é o caso em que a instituição e suas ordens assumem
caráter tutelar e mecanizam a congregação das pessoas. Por essa razão enfatiza-se que
a instituição tem a tarefa de criar espaço para ouvir e compartilhar a Palavra de Deus e
estar aberta para o agir do Espírito Santo e suas implicações.60
3.2.2 Admissão à comunidade
“Admissão” tem som cartorial e trabalhista. Não é disso que se trata. Pensa-se
no aspecto empírico da comunidade local que tem identidade pública. Isso quer dizer
que no mínimo no domicílio ela é pública - identificável. Isso pode abranger desde
grupos pequenos com identidade pública até um número grande de pessoas de uma
igreja conhecida de longa data. No mérito de cada uma delas não se pode entrar aqui.
Citamos mais uma vez palavras de Riesner: “Uma comunidade que quer preservar
sua identidade frente ao mundo dará valor à (sic) critérios claros de admissão e
exclusão”.61 “Mundo” se refere ao meio social - às pessoas que conhecem a identidade
da comunidade, mas que não pertencem a ela.
Historicamente se toma o batismo como referência ou critério e exigência para
admissão ou inclusão de pessoas na ekklêsia (comunidade). Ao mesmo tempo, a
Cf. BRUNNER, 2000, p. 20.
RIESNER, 1978, p. 60.
57
Comunidades, aqui, significa grupos de comunhão na fé em Jesus Cristo.
58
A tradução é nossa.
59
RIESNER, 1978, p. 61.
60
Cf. mais adiante o item 3.4.
61
RIESNER, 1978, p. 61.
55
56
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compreensão de batismo na história eclesiástica é controvertida e divisor de águas entre
muitas denominações cristãs. Não é aqui o lugar de mencionar o que pesa a favor e
contra as diversas compreensões de batismo. No NT, batismo não é tema próprio ou
isolado. Aliás, nem em todos os livros ele é tematizado muito menos sinal inconteste
de inclusão na ekklêsia. Limitamo-nos a alguns breves destaques do livro de Atos e de
cartas de Paulo:
a) Em Atos 2.38 estão, por assim dizer, resumidos os principais elementos para a
admissão ou inclusão na ekklêsia: “Arrependei-vos, e cada um seja batizado em nome de
Jesus Cristo para remissão dos vossos pecados, e recebereis o dom do Espírito Santo”.
Os v. 39-41, obviamente, fazem parte do assunto em questão: “... Salvai-vos desta
geração perversa. Então, os que lhe aceitaram a palavra foram batizados, havendo um
acréscimo naquele dia de quase três mil pessoas”. Lendo-se os versículos seguintes,
nada se diz em que consiste o “dom do Espírito Santo”.
Outros textos de Atos voltam a falar de batismo, recebimento do Espírito Santo,
inclusive de falar em línguas e profetizar, por exemplo: At 8.36-38; 9.18; 10.44-48; 11.1516; 16.30-34; 18.8; 19.1-7; 22.16. Uma leitura atenciosa destes textos deixa evidente que
(1) nem todos os textos falam explicitamente de perdão dos pecados e recebimento do
Espírito Santo no contexto do batismo;62 (2) um texto fala de recebimento do Espírito
Santo antes de as pessoas serem batizadas (At 10.44-48) e (3) conclui-se que do livro
de Atos não se pode fazer um esquema doutrinário harmonioso fechado - qualquer que
seja. Se o fizermos, o fazemos a favor de uma e em detrimento de outra prova textual.
Isso não significa que cada qual pode fazer o que bem entende com esses textos e
assuntos ligados a eles. Um bom abstrato teológico é o seguinte: “Depois da Páscoa, com
base na ordem do Ressurreto,63 a comunidade das origens também começou a batizar.
Com a cruz, a ressurreição e derramamento do Espírito, o tema do fim definitivamente
havia irrompido”.64
b) Paulo praticamente nada diz a respeito de admissão ou inclusão na ekklêsia. Isso
se deve ao fato de suas cartas se destinarem a seguidores de Jesus - pessoas que já faziam
parte da ekklêsia. Contudo, em vários lugares das cartas ele menciona o batismo, por
exemplo: 1Co 12.13; Gl 3.26-29; Rm 6.3ss; Ef 4.4.5; Cl 2.11-13. Mas Paulo não tematiza o
batismo nem o menciona para dizer a seus leitores que por meio do ato ou rito batismal
começou a nova vida e que por meio deste rito foram incorporados à comunidade. Não
Provavelmente isso seja pressuposto.
Mt 28.19; Mc 16.16s.
64
RIESNER, 1978, p. 62.
62
63
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se contesta que vida nova, batismo e incorporação à comunidade têm ligação um com
o outro. Lendo atentamente esses e outros textos de Paulo, arriscamos com Riesner
uma linguagem um pouco mais radical e aguda:
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Para Paulo, em nenhum lugar o batismo como tal é o início
da nova vida com Deus. O ressuscitar-com se consuma
por meio da fé (Cl 2.11). Também 1Co 12.13 não diz que o
batismo automaticamente media o Espírito. Como mostra
o paralelo 11.9 (sic),65 en pneúmati = ‘por meio do Espírito’ se
refere ao sujeito, que desencadeia todo o acontecimento de
fé e batismo. De forma semelhante acontece com Tt 3.5, onde
vários veem ensinado um ‘novo nascimento pelo batismo’
(‘Taufwiedergeburt’). Caso o apóstolo tivesse considerado o
batismo como o início da nova vida com Deus propriamente
dito, ficaria incompreensível porque ele estava contente de não
ter batizado muitos (1Co 1.14-16). Para Paulo, a nova vida surge
por meio da pregação e fé. Como pai espiritual, ele gerou os
cristãos corintos ‘por meio do evangelho’ (4.15).66
Concluindo: não resta dúvida de que essas palavras são desafiadoras. Mas esse
é o objetivo “teológico-pastoral” de elas serem incluídas aqui. Elas não devem ser
vistas como uma apologia do contra o que é caro para muitos seguidores de Jesus
Cristo. Ademais, segundo o testemunho do NT, pertencer à comunidade de fé em
Jesus Cristo não é algo aleatório ou por acaso, mas consciente, individualmente e
coletivamente, i.e., tanto de quem se “filia” como membro do corpo quanto de quem
e daqueles que acolhem um “novo membro do corpo”.
3.3 Admissão e possibilidade de exclusão - um assunto delicado
A ekklêsia como lugar onde o evangelho é proclamado para que pessoas cheguem
à fé em Jesus Cristo e possam crescer na fé, i.e., que a fé em Jesus Cristo seja
relevante para o cotidiano - lá onde a vida acontece e as decisões centrais na vida
são tomadas - é um testemunho público nos termos das palavras de Mt 5.13-14: “Vós
sois o sal da terra... Vós sois a luz do mundo...”. Contudo, o sal pode tornar-se inútil
e acender uma luz e colocá-la debaixo de um recipiente fechado e não transparente
é um contrassenso. Aplicado à comunidade ou a quem faz parte dela significaria
viver na contramão da identidade como “membro do Corpo de Cristo” e colocar a
autenticidade da própria comunidade em xeque.
Em vez de 11.9 é 12.9.
RIESNER, 1978, p. 64. A tradução é nossa. Cf. também SCHÖNWEISS, Hans. Gemeinde - Gemeinschaft
- Brudwerschaft. Metzingen: Brunnquell-Verlag, 1966. p. 9.
65
66
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Se uma comunidade quiser manter sua autenticidade, ela deve estar disposta à
disciplina eclesiástica. Ou seja, ela não só precisa de critérios de admissão, mas em
casos extremos também de critérios de exclusão. Por exemplo, se membros ferem
“convicções fundamentais” da comunidade, requer-se medidas corretivas, que
podem implicar exclusão. Aliás, em alguns casos como engano ou erro teológico
fundamental, as pessoas que persistem nele se separam do próprio Cristo. Neste
caso, Paulo é muito duro (Cf. Gl 1.6-9). Por outro lado, ele também pode ser duro
ou radical em questões éticas no interior da comunidade (1Co 5-6 e outros textos).
Aliás, em 1Co 5.12-13 (contexto em que fala da disciplina eclesiástica), ele distingue
entre “os de fora” e “os de dentro”.67 Quer dizer, disciplina cristã não é questão para
quem não faz parte da comunidade.
De qualquer forma, uma exclusão é um assunto delicado e doloroso, porque
fere a quem feriu e nem sempre as consequências são previsíveis. Mas nem por
isso a comunidade - a comunhão de pessoas que querem seguir a Jesus Cristo pode negligenciar e ignorar o que compromete seu testemunho. Se o fizer, nega o
que diz ser. Por esta razão é importante registrar algumas coisas para reflexão e
aprofundamento em estudo adicionais:
a) A exclusão não é a primeira medida para condutas extremas, mas a última de
todas as medidas (Mt 18.15-17).
b) Quando de fato é preciso recorrer a ela, deve acontecer no horizonte de que
a última palavra sobre pessoas não é de pessoas, mas de Deus, que sonda mentes e
corações - também os corações daqueles a quem cabe exercer a disciplina.
c) Por isso, a disciplina de fato deve ter o objetivo de recuperar a quem está
sendo diretamente atingido por ela e proteger a comunidade que é atingida pelas
consequências da indisciplina (1Co 5.3-8).
d) O exercício de disciplina na comunidade não se limita a casos extremos nem
devia começar com eles. Uma disciplina fraterna mútua no horizonte maior do juízo
de Deus certamente poderia evitar casos extremos.
e) Disciplina fraterna implica não só correção mútua, mas também consolação
mútua. Por melhor que isso possa soar, disciplina na maioria das vezes é um
assunto delicado, porque envolve sentimentos que nem sempre permitem discernir
adequadamente entre objetividade e subjetividade - entre o que de fato é espiritual e
o que é meramente psíquico na comunhão cristã.
67
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RIESNER, 1978, p. 70.
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Para concluir, remetemos a Bonhoeffer, que chama a atenção para o risco
de se confundir entre amor anímico e amor espiritual na comunhão e vivência
cristã. Anímico quer dizer psíquico do grego psychê (alma), que toma como base o
sentimento e buscar não o irmão e a irmã, mas seus próprios interesses. Conforme
Bonhoeffer,68 o amor psíquico não suporta disciplina na comunidade que, por causa
da comunhão verdadeira, rompa com comunhão não verdadeira - não espiritual.
Colocações dessa natureza chocam o sentimento “humanístico”, segundo o qual
o “diálogo” é a “virtude”. E quebrá-lo é quase um pecado capital. De fato, aqui
não se advoga um desumanismo nem indisposição para o diálogo. Em jogo está a
autenticidade do testemunho da ekklêsia. Encerramos com palavras de Riesner que
diz: “Uma comunidade que não conhece a exclusão como uma última possibilidade,
certamente também não poderá crer que existe uma rejeição no juízo final”.69
Werner Wiese
3.4 Dons espirituais e ministério (ordenado)
Um já falecido “ministro”70 em certa ocasião disse: “Se a igreja quer acabar com
alguém, ela lhe dá um ofício” (Amt - um cargo ou uma função de liderança).71 Tarefas
ou cargos oficiais podem colocar as pessoas dentro de uma camisa de força e anulá-las.
Mas disto realmente não se trata quando falamos da relação entre dons do Espírito
Santo e ministério (ordenado). Colocamos a última palavra entre parênteses por duas
razões: uma é para sinalizar que ministério no NT não está atrelado ou limitado a uma
função de pessoas oficialmente encarregadas para pastorear uma comunidade. A
outra razão é para sinalizar que no NT cargos oficiais (pessoas “ordenadas”) não estão
“privados” dos dons do Espírito Santo. Consequentemente, não vamos distingui-los
na abordagem abaixo.
3.4.1 A realidade dos dons espirituais
O Espírito Santo é invisível. Contudo, sua presença e seu agir não são invisíveis.
No NT existe uma ligação intrínseca entre dons espirituais e ministério. Dons
espirituais são dons do Espírito Santo, também denominados de ta pneumatica (ta
BONHOEFFER, Dietrich. Vida em comunhão. São Leopoldo: Sinodal, 1982. Várias páginas. Aliás, o
livro todo é altamente recomendável para leitura e releitura no contexto da convivência na comunidade
e comunhão cristãs.
69
RIESNER, 1978, p. 71.
70
Subentenda-se servo, pois “ministro” deriva da palavra “ministério” que na língua grega do NT é diaconia serviço. Jesus define seu ministério como um servir (Mc 10.45; cf. também Jo 13.1-17).
71
Por motivos éticos, omite-se o nome daquele “ministro”.
68
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pneumatika), que significa “coisas ou assuntos espirituais”.72 A pessoa que recebeu
o ES é um pneumatikos (pneumatiko/j - cf. 1Co 2.14-15). A rigor, cada pessoa de fato
crente em Jesus como o Messias (Cristo) Redentor e Senhor é um pneumático. Os
dons espirituais são também denominados de ta charismata (ta/ xari/smata) que
significa simplesmente “os dons”. Da mesma palavra charisma (singular dom) deriva
charis (xa/rij) que na linguagem bíblica em língua portuguesa significa “graça”.73
Os dons espirituais literalmente são dons de graça - advindos da graça de Deus. Em
relação aos dons espirituais no NT e na igreja hoje existem compreensões e posturas
diferentes que causaram e ainda causam divisões no interior de congregações
(igrejas).74
O apóstolo Paulo não teve bloqueios e problemas ao falar de dons espirituais.
Ele não hesitou em arrolar inúmeros dons, por exemplo: 1Co 12-14, Rm 8.3-8.
Mas Paulo teve enormes problemas com pessoas agraciadas com dons espirituais,
principalmente na ekklêsia de Deus em Corinto. O apóstolo atesta aos coríntios
plenitude de dons: “... o testemunho de Cristo tem sido confirmado em vós, de maneira
que não vos falte nenhum dom...” (1Co 1.6-7). Apesar disso, viu-se na obrigação de
escrever: “Eu, porém, irmãos, não vos pude falar como a espirituais, e sim como a
carnais, como a crianças em Cristo” (1Co 3.1). Isto por causa de intrigas e desavenças
não resolvidas na ekklêsia em torno de preferências por um líder em detrimento de
outro, no caso Paulo e Apolo (e Pedro [1Co 3.3ss]).
Nos capítulos 12 até 14, o apóstolo entra em detalhes de dons espirituais e fala
deles como dádiva do Espírito de Deus (1Co 12.4ss, 11). Ao longo do capítulo 14
ele o reafirma, apesar de censurar algumas tendências na comunidade em Corinto.
Porém, não se trata de banir nem encabrestar ou domesticar os dons espirituais,
mas trata-se do uso deles correspondente com a finalidade com que foram dados:
a edificação do corpo de Cristo e a “evangelização” dos “indoutos ou incrédulos”
(14.12,23-25). Um problema sério parece ter sido uma soberba espiritual que não
permitia mais ouvir de fato o irmão, a irmã (14.37) e ver em determinados dons
motivo de disputa interna em detrimento de outros dons.
GINGRICH; DANKER, 1984 (reimpressão 1986), p. 170.
Cabe o registro que no NT a palavra charis (graça) na língua grega tem uso múltiplo, que não podemos
detalhar aqui. Para tal, cf. GINGRICH; DANKER, 1984 (reimpressão 1986), p. 222.
74
Cf. CARSON, D. A. A manifestação do Espírito: a contemporaneidade dos dons à luz de 1 Coríntios
12-14. Traduzido por Caio Peres. São Paulo: Vida Nova, 2003; STOTT, John. Batismo e plenitude do
Espírito Santo. O mover sobrenatural de Deus. Tradução de Hans Udo Fuchs. 3. ed. São Paulo: Vida Nova,
2001 (reimpressões: 2002, 2004, 2005); WEINGÄRTNER, Martin. Vem, Espírito Santo, vem! Curitiba:
Encontro, 2000; LOHRMANN, 2008.
72
73
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465
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Quem lê especialmente as cartas de Paulo, fica impressionado com a variedade
dos dons espirituais que o apóstolo menciona. Não queremos enumerar todos eles,
mas ao menos mencionar com brevidade alguns, alistados e abordados por Lohrmann
no seu livro Fruto e dons do Espírito Santo,75 com indicação das páginas em que aborda
os respectivos dons:
(1) Profecia (p. 62-64). Profetas e profecias são inseparáveis. Um dos traços
mais característicos deste dom no NT (na Nova Aliança) não são fenômenos
extraordinários, mas a atualização da Palavra de Deus para dentro de determinada
situação, principalmente no culto. A profecia traz clareza e não confusão para dentro
da comunidade.
(2) Interpretações de revelações do Espírito (p. 64-66). É comum que se fale de
revelações do Espírito, mas conforme o NT elas necessitam de interpretação, ou seja,
de avaliação na comunidade, para saber de quem procedem, pois nem toda revelação
é revelação de fato e muito menos procede de Deus (Cf. Mt 7.15,22; 1Ts 5.12-24; 1Co
2.14-16).
(3) Ensino (p. 66-68). Não se deve pensar em ensinos extraordinários que fogem
de toda e qualquer avaliação, mas da capacidade tanto de captar ou entender as
Escrituras e com elas a história de Deus com seu povo e com a humanidade e transmitir
isso de forma inteligível a outros. Conteúdo, habilidade técnica, pedagogia e vivência
de fé se transpassam mutuamente. Exemplos: Mt 7.28-29; At 20.27; 1Co 15.1ss.
(4) Feitos no poder do Espírito (p. 68). Aqui o livro de Atos nos serve de excelente
ilustração, mas outros textos também, por exemplo: 1Co 2.1-4, especialmente o v. 4;
1Ts 1.5; Rm 15.19. Naturalmente deve-se distinguir entre constatação de fatos que
ocorrem (indicativo) e ordem para fazer algo (imperativo).
(5) Dons de curar (p. 69-70). No NT não se fala apenas de dons de curar, mas curas
são registradas; curas não só realizadas por Jesus, mas também pelos apóstolos.
Inclusive, Jesus incumbe seus discípulos com a tarefa de curar enfermos (Mt 10.5ss.,
especialmente o v. 8) e em Mc 16.18 a restauração de enfermos por imposição de mãos
é um dos sinais que acompanham aqueles que creem. Por outro lado, não se registra
apenas curas realizadas ou ocorridas, mas fala-se de “dons das curas” como dons
dados a pessoas na comunidade cristã (Cf. 1Co 12.9,28,30; Tg 5.14-15).
Ademais, curas fazem parte da história de Deus com seu povo ao longo do tempo.
Disto não há nenhuma dúvida. Tão importante ou mais que as curas propriamente
75
Em LOHRMANN, 2008, p. 62-83.
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ditas é a finalidade delas (p. 69):76 não se trata apenas de superar um mal presente,
mas de ver a realidade teológica maior por trás da cura, que é: doença - morte - vitória
sobre a morte. Neste contexto, leia-se também Rm 5.12ss.; 6.23; 1Co 15.
(6) Oração em línguas e interpretação... (p. 70-74). Quanto ao falar em línguas em
si (glossolalia) não há dúvida no NT. Contudo, é acima de tudo um dom para a
edificação pessoal, por isso seu uso público é colocado sob “restrições” por Paulo.
O fenômeno como tal ainda não é prova de manifestação do Espírito Santo, pois
também existe em outras religiões.
(7) Dons de governo (p. 74-75). Aqui remetemos ao que que já foi dito no contexto
da definição de liderança.
(8) Entregar, o que significa “contribuir” e “distribuir” sem constrangimento ou
coação (p. 75-77).77
(9) Fé que remove montanhas (p. 77-78). Existe uma diferença entre fé em Jesus
Cristo para a salvação e fé como dom para agir ou empreender algo. Isso não implica
um espetáculo da fé ou em nome da fé.
(10) Palavra de sabedoria e conhecimento (p. 78-80). Em questão não está a soma de
informações que se pode adquirir, mas saber o que fazer com o que se “sabe” na hora
certa ou necessária. É perceber o tempo de Deus. Sabedoria e conhecimento não têm
nada em comum com arrogância intelectual nem espiritual (Cf. 1Co 8.1-3).
(11) Serviço - diaconia (p. 80-82). Embora todos os dons espirituais sejam dados
para servir e/ou edificar a comunidade (1Co 12.5), Paulo distingue entre servir e servir
- ele fala da diaconia como dom específico (Rm 12.7; cf. também At 9.36-43). Sem a
diaconia cristã, vinculada à misericórdia, a vida corre o risco de ser “robotizada”,
tornar-se insuportável e a sobrevivência especialmente de pessoas fragilizadas se
reduz sensivelmente.
(12) Assistência espiritual - poimênica (p. 82-83): exortação e compaixão jovial
(paraklhsij / eleoj). O termo jovial, aqui, não é bem feliz, poderia ser traduzido
como sereno ou alegre (“heiter”). A palavra poimênica na língua grega tem a mesma
raiz da palavra empregada no Evangelho de acordo com João para se referir ao
Consolador que virá, i.e., ao Espírito Santo - o termo é paraklêtos (para/klhtoj). Na
prática este dom é o que mais ocorre no NT, especialmente nas cartas de Paulo. Um
exemplo clássico é 2Co 1.3-11.
WIESE, Werner. Doença e cura - Perspectivas bíblicas e dilemas atuais. In: Vox Scripturae. Vol. XVI/2.
São Bento do Sul: União Cristã; FLT, 2008. p. 8-28.
77
Cf. nota de rodapé 86 em LOHRMANN, 2008, p. 75.
76
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3.4.2 O uso dos dons ou a relação entre fruto e dons espirituais - breves ponderações
Todos os dons, quaisquer que sejam, devem ser usados de forma coerente com
seu Doador. Ninguém é dono de dons, a não ser Deus. Assim como alguém que
lidera (pastoreia) a ekklêsia não é dono dela e como a autoridade não é dada para
ser exercida de forma arbitrária, mas consciente de que ela sempre só é autorização
para atuar de acordo com quem a outorgou e que ela pode ser revogada, da mesma
maneira nenhum dom é dado para o uso independente e para o engrandecimento
de pessoas.
Na verdade, os dons espirituais não devem ser desvinculados do Fruto do Espírito
(Gl 5.22-23).78 Valemo-nos de palavras de Lohrmann: “... todas as exposições bíblicas
essenciais de dons do Espírito estão colocadas num contexto que acentua a união
com a primazia do fruto - em geral e em sua forma mais importante como ágape:
‘A dádiva (dons da graça) está inserida no Fruto’”.79 Essas palavras podem figurar
como cerne do uso correto dos dons espirituais. Inversamente, caso se separe os
dons do fruto do Espírito, isso significa inevitavelmente abuso dos dons. Neste caso
eles degeneram sob nossas mãos, são pervertidos e tornam-se nocivos dentro da
ekklêsia. A alternativa para o abuso dos dons de Deus não é o congelamento ou um
distanciamento deles, mas obviamente seu uso com a finalidade com a qual foram
outorgados. As parábolas dos talentos em Mt 25.14ss e a dos lavradores maus em
Mt 22.33ss são uma boa ilustração do uso, desuso e mau uso dos dons concedidos
por Deus.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A imagem da ekklêsia no NT não é um ideal humano nem um sonho, mas uma
realidade teológico-espiritual e empírico-social inseparável. Líderes - “ministros
ordenados ou leigos” - responderão pela forma como lideraram e como exerceram
a autoridade outorgada a eles; outorgada em última instância por Deus, diante de
quem têm a responsabilidade decisiva (1Co 3.10-17; 4.1-5). Isso não os isenta da
responsabilidade diante de pessoas que lhes delegaram tarefas, pelo contrário. Mas
a consciência de em última instância estar na presença de Deus que fará a avaliação
final da ekklêsia e de todo ministério exercido para além daquilo que olhos humanos
veem (1Co 3.10-17; 4.1-5), livra-os da escravidão da subserviência humana e libera
para servir às pessoas na dynamis (força/poder) do evangelho.
78
79
Cf. LOHRMANN, 2008, p. 23-47, 84-110.
LOHRMANN, 2008, p. 105.
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