2. Tese sobre Margarida Alves

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA - UFPB
CENTRO DE EDUCAÇÃO - CE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
ANA PAULA ROMÃO DE SOUZA FERREIRA
A TRAJETÓRIA POLÍTICO-EDUCATIVA DE MARGARIDA MARIA ALVES:
Entre o velho e o novo sindicalismo rural
JOÃO PESSOA-PB
2010
ANA PAULA ROMÃO DE SOUZA FERREIRA
A TRAJETÓRIA POLÍTICO-EDUCATIVA DE MARGARIDA MARIA ALVES:
Entre o velho e o novo sindicalismo rural
TESE apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal da Paraíba, na linha
de Movimentos Sociais, como requisito parcial para a
obtenção do título de Doutora em Educação.
ORIENTADOR: Prof. Dr. Charliton José dos Santos
Machado.
JOÃO PESSOA-PB
2010
ANA PAULA ROMÃO DE SOUZA FERREIRA
A TRAJETÓRIA POLÍTICO-EDUCATIVA DE MARGARIDA MARIA ALVES:
Entre o velho e o novo sindicalismo rural
APROVADA EM ___/___/___
BANCA EXAMINADORA
__________________________
Prof. Dr. Charliton José dos S. Machado
(Orientador/PPGE/UFPB)
__________________________
Profa. Dra. Neide Miele
(Examinadora externa/PPGCR/UFPB)
__________________________
Prof. Dr. Paulo Giovani Antonino Nunes
(Examinador externo/PPGH/UFPB)
__________________________
Profa. Dra. Maria do Socorro Xavier Batista
(Examinadora do PPGE/UFPB)
__________________________
Profa. Dra. Maria Lúcia Nunes da Silva
(Examinadora do PPGE/UFPB)
JOÃO PESSOA-PB
2010
DEDICO este trabalho ao Movimento de
Mulheres Trabalhadoras do Brejo e às
memórias de Margarida Maria Alves e
da companheira Maria da Penha do
Nascimento Silva.
AGRADECIMENTOS
A Deus, força-luz que tem iluminado as nossas trilhas...
À Fundação Ford, pelo investimento através do Programa de Bolsas de Pós-Graduação em Ação
Afirmativa, durante o período do mestrado e pelo suporte de publicação de vários artigos
científicos, durante o doutorado.
Ao Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE), da Universidade Federal da Paraíba.
Ao Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional (NDIHR) seu corpo técnico de
funcionários e professores.
Ao meu pai Antônio (in memoriam). À minha mãe Elidriana Geralda Romão (ex-trabalhadora
rural) e aos meus irmãos Freud, Francisco e Alexandre, pelo que me ensinaram com seu exemplo
de amor.
Aos pequenos Carol e Raul, razão e dádivas na minha vida – que a esperança de um mundo melhor
preencha o nosso futuro.
Às companheiras do Movimento de Mulheres Camponesas, pela força de continuar lutando com
tantas dificuldades; em especial, à companheira Maria da Soledade, que em muito contribuiu para
esta realização.
Ao companheiro Wilson Aragão, principal incentivador não apenas deste trabalho, mas da minha
existência como mulher e pesquisadora; simplesmente te amo.
Ao Prof. Dr. Charliton Machado, meu orientador, pelo cuidado teórico, sensibilidade e militância
na temática das relações de gênero.
À Professora Rosa Godoy, pelas lições de pesquisa, de cidadania, de vida e de História.
À amiga-irmã, professora Dra. Ignez Pinto Navarro, pela sua força constante em nossos elos
afetivos e profissionais. E pela revisão e colaboração em nossa tese.
Às professoras Dra. Maria do Socorro Xavier; Dra. Maria Lúcia Nunes e à Dra. Neide Miele,
membros da banca do Seminário de Tese, por terem contribuído com este trabalho, que ora
apresento em nossa defesa final. Do mesmo modo, agradeço ao prof. Dr. Paulo Giovani por ter
vindo somar novas contribuições.
Ao Fórum de Mulheres da UFPB, particularmente à companheira Wilma Martins de Mendonça.
Aos companheiros (as) do Partido dos Trabalhadores (as); da CUT e da CPT.
Aos colegas do mestrado e do doutorado, pelo que vivenciamos de encantos e desencantos na busca
não apenas do título, mas de sólidos referenciais em nosso aprofundamento acadêmico e societário.
Aos sujeitos contribuintes da nossa pesquisa: Luís Silva, Antônio Barbosa, Romero Antônio,
Roberto Veras, Luciana Rangel, Edvam Silva, Pedro e Júnior Targino.
RESUMO
Este estudo tem como objetivo primordial analisar a formação política e educativa de
Margarida Maria Alves (1933-1983), em sua trajetória nos movimentos sociais e, de forma
mais focalizada, no movimento sindical rural. Busca, ainda, compreender a disputa de
representações sociais vivenciada sobre a sua experiência política, em um período
histórico conflitante entre o velho e os novos movimentos sociais. A perspectiva é a de
focalizar o sentido histórico-cultural das suas aprendizagens e representações, construídas
a partir de conflitos político-sindicais-partidários e das suas próprias lutas reivindicatórias,
frente às políticas emanadas pela cultura oligárquica, durante as duas últimas décadas do
século XX. Neste sentido, defendo a tese de que Margarida Maria Alves foi um
personagem social em conflito com a transição do velho para o novo sindicalismo
rural. E que essa transição, representou uma perspectiva de ruptura (s) política (s) de
subserviências oligárquicas para uma práxis sindical combativa, refletida através da
Educação Popular, a partir da auto-experiência da classe camponesa. Situado no campo das
abordagens teórico-metodológicas da História Social e da Nova História Cultural, o
mencionado enfoque, tomando como base a ampliação do seu leque temático, em especial,
da chamada história dos vencidos, possibilitou configurar o universo histórico-social,
através das categorias: experiência, representação e práxis, entre outras. Para tanto,
pesquisei através de múltiplas fontes: jornais, documentos oficiais, cadernos de formação
e, sobretudo, da história oral. Isto permitiu recuperar marcas, pistas e fragmentos que
expressam a luta histórica e a vida da referida sindicalista, suplantando o silêncio
intelectual do conservadorismo acerca das suas convicções e de sua trajetória políticoeducativa. Neste cenário, onde prevalece a inegável riqueza da atuação das lutas
camponesas da Paraíba, foi possível perceber a importância da formação sindical e da
formação de gênero, dentro do território da cultura rural, como contraponto à disputa de
poder na sociedade patriarcal. Assim, a contribuição da representação de lutas em espaços
de conflitos de classe social e de gênero direcionou a um novo referencial formador nas
práticas educativas dos movimentos sociais.
Palavras-chave: Mulheres Camponesas – Movimentos Sociais – Educação Popular Margarida Maria Alves – Representações Sociais.
ABSTRACT
This study's main objective is to analyze the formation of educational politics and
Margarida Maria Alves (1933-1983) in his career in social movements, more focused, the
rural labor movement. The aim is to also understand the social representations of race lived
on his political experience in a historical period conflict between the old and the new social
movements. The perspective is to focus on the cultural-historical sense of their learning
and representations, built from the political-party-union and their own struggles
revendicating, compared to the policies issued by the oligarchic culture during the last two
decades of the twentieth . In this sense, we defend the thesis that: Margarida Maria Alves
has a social character in conflict with the transition from old to new rural labor
movement. And that transition was a prospect of breaks politics of subservience to an
oligarchic practice combative union reflected through popular education, from the selfexperience of the peasantry. Situated in the field of theoretical and methodological
approaches in Social History and the New Cultural History, the mentioned approach, based
on the expansion of its range of areas, particularly the so-called history of the conquered,
allowed to set the historical and social universe through the categories: experience,
representation and practice, among others. Therefore, we researched through multiple
sources: newspapers, official documents, books and training, especially oral history. This
made good marks, tracks and fragments that express the historical struggle and the life of
that union, overcoming the silence of intellectual conservatism about his beliefs and his
political-educational trajectory. In this scenario, where there is the undeniable richness of
the performance of the peasant struggles of Paraíba, it was revealed the importance of
union formation and training of gender within the territory of the rural culture, as opposed
to the power struggle in a patriarchal society. Thus, the contribution of the representation
of fighting in the conflict areas of social class gender directed to set new standards in
teacher education practices of social movements.
Keywords: Rural Women - Social Movements - Popular Education – Margarida Maria
Alves - Social Representations.
RESUMEN
El Principal objetivo de este estudio es analizar la formación de la política educativa y
Margarida Maria Alves (1933-1983) en su carrera en los movimientos sociales, más
centrado, el movimiento de la mano de obra rural. El objetivo es también comprender las
representaciones sociales de la carrera vivió en su experiencia política en un conflicto
período histórico entre los antiguos y los nuevos movimientos sociales. La perspectiva es
centrarse en el sentido histórico-cultural de su aprendizaje y representaciones, construido a
partir de la política de partido-sindicato y sus propias luchas revendicating, en
comparación con las políticas dictadas por la cultura oligárquica durante las dos últimas
décadas del siglo XX . En este sentido, defendemos la tesis de que: Margarida Maria
Alves tiene un carácter social en conflicto con la transición del antiguo al nuevo
sindicalismo. Y que la transición era una perspectiva de ruptura (s) política (s) de la
subordinación a una práctica oligárquica sindicato combativo refleja a través de la
educación popular, de la propia experiencia de los campesinos. Situado en el terreno de
enfoques teóricos y metodológicos de la historia social y la nueva historia cultural, el
enfoque mencionado, basado en la expansión de su gama de áreas, en particular la historia
de los llamados de los vencidos, les permite establecer el universo histórico y social a
través de la categorías: la experiencia, la representación y la práctica, entre otros. Por lo
tanto, hemos investigado a través de múltiples fuentes: periódicos, documentos oficiales,
libros y formación, especialmente la historia oral. Este hecho buenas notas, canciones y
fragmentos que expresan la lucha histórica y la vida de esa unión, superar el silencio de
conservadurismo intelectual sobre sus creencias políticas y su trayectoria educativa. En
este escenario, donde existe la riqueza indiscutible de los resultados de las luchas
campesinas de Paraíba, se reveló la importancia de la formación de sindicatos y la
formación de género en el territorio de la cultura rural, en contraposición a la lucha de
poder en una sociedad patriarcal. Así, la contribución de la representación de los combates
en las zonas de conflicto de género, clase social, destinada a establecer nuevos estándares
en las prácticas de formación docente de los movimientos sociales.
Palabras clave: Mujer Rural - Movimientos Sociales - Educación Popular – Margarida
Maria Alves - Representaciones Sociales.
LISTA DE SIGLAS
CENTRU
- Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural
CONTAG
- Confederação dos Trabalhadores da Agricultura
CNTR
- Congresso Nacional dos/ as Trabalhadores/as Rurais
CPT
- Comissão Pastoral da Terra
CUT
- Central Única dos Trabalhadores
EP
- Educação Popular
FETAPE
- Federação dos Trabalhadores Rurais
FUNESC
- Fundação Espaço Cultural
FUNRURAL
- Fundo de Amparo ao Trabalhador Rural
MASTER
- Movimento dos Agricultores Sem Terra
MDB
- Movimento Democrático Brasileiro
MMB
- Movimento de Mulheres do Brejo
MMC
- Movimento Nacional de Mulheres Camponesas
MMT
- Movimento de Mulheres Trabalhadoras do Brejo
MST
- Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra
MSTTR
- Movimento Sindical dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais
NMS
Novos Movimentos Sociais
NDIHR
- Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional
PIBIC
- Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica
PRÓÁLCOOL
- Programa Nacional do Álcool
PFL
- Partido da Frente Liberal
PT
- Partido dos Trabalhadores
PMDB
- Partido do Movimento Democrático Brasileiro
STRs
- Sindicatos Rurais
UDR
- União Democrática Ruralista
ULTAB
- União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO........................................................................................................................
12
1.1 A minha aproximação com a pesquisa: um pouco dessa história............................................
12
1.2 Margarida Maria Alves: uma história política complexa........................................................
21
1.2.1 Margarida no front do conflito político-sindical-partidário: problematizando a TESE.......
32
1.3 Caminhos metodológicos de uma pesquisa histórica.............................................................
34
1.3.1 A História Oral: a opção da técnica......................................................................................
37
2 OS FUNDAMENTOS TEÓRICO-HISTÓRICOS DA PESQUISA....................................
40
2.1 A História Social e a Nova História........................................................................................
44
2.1.1 A História Social: a experiência em foco.............................................................................
44
2.1.2 A Nova História Cultural: a representação em foco...........................................................
48
2.2 A Educação Popular (EP): o diálogo entre a experiência e a práxis.......................................
54
2.3 O Velho e os Novos Movimentos Sociais (NMS)...................................................................
62
2.3.1 O Velho e o Novo Sindicalismo Rural.................................................................................
70
2.3.2 Os NMS no Movimento de Mulheres: feministas e não-feministas.....................................
76
3 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DA(S) EXPERIÊNCIA (S) POLÍTICA(S) DE
MARGARIDA MARIA ALVES................................................................................................
86
3.1 O papel do CENTRU na formação da transição política de Margarida Maria Alves.............
86
3.2 O Movimento de Mulheres Camponesas na Paraíba e Margarida Maria Alves.....................
92
3.3 Margarida Maria Alves: entre o velho e o novo sindicalismo................................................. 114
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................... 129
REFERÊNCIAS..........................................................................................................................
APÊNDICES
ANEXOS
135
Foi uma líder sindical
Determinada, aguerrida,
No meio do canavial
Pondo em risco sua vida
Lá estava conscientizando,
Com paciência, educando,
Toda uma classe sofrida.
Na entidade abria escolas,
Contratava educadores,
Comprava livros, sacolas,
Para os seus trabalhadores
Onde se aprendia o ABC
E as condições de entender
As causas dos seus horrores.
No meio dos canaviais
Estava lá Margarida
Dando lições sindicais
Àquela gente excluída.
Indiferente pra sinais
Ela entrava nas usinas
Pondo em risco a própria vida.
Repetia da exploração
Que as energias consome
Provocando a inanição
De quem, raramente, come
“Que é preferível, marchando,
A gente morrer lutando
Do que morrer pela fome.”
Medeiros Braga
1 INTRODUÇÃO
1.1 A minha aproximação com a pesquisa: um pouco dessa história
...Têm certos dias, em que eu penso em minha gente, e sinto
assim todo o meu peito se apertar, porque parece que
acontece de repente, como um desejo de eu viver sem me
notar...
(Vinícius de Moraes)
Realizar este estudo sobre “a trajetória político-educativa de Margarida Maria
Alves” aponta razões, de um lado, da minha opção acadêmica, buscando originar a
continuidade dos estudos anteriores, mediante um esforço para aprofundá-los e, até
mesmo, contradizê-los. Para tanto, resolvi iniciar esse esforço acadêmico partindo do meu
memorial, que traz, por outro lado, razões subjetivas que se entrelaçam com a presente
tese.
Neste sentido, recuperar a minha trajetória de vida1 significa descortinar relações de
uma vivência familiar, acadêmica, profissional e ativista, de mulher-nordestina, filha, mãe,
aluna, professora, feminista e militante que teve na busca do conhecimento e da afetividade
sua identidade reconstruída.
Nasci em João Pessoa-PB, numa família pobre, com poucos recursos financeiros.
Quando nasci, o meu pai era dono de um pequeno bar, no bairro de Cruz das Armas, nessa
cidade. Minha mãe, ex-agricultora de um pequeno povoado, conhecido como Passa e Fica,
localizado no Rio Grande do Norte – recém chegada deste município, no início da década de
1970 - havia sido a cozinheira do bar do meu pai, antes de morarem juntos.
Posteriormente ao meu nascimento (1973), o bar fechou e houve um longo período de
desemprego do meu pai, que conseguiu ser admitido como portuário, iniciando-se como
1
Essa trajetória de minha vida é aqui entendida como a aproximação dos sujeitos da pesquisa e no campo
historiográfico representa o que Georges Duby chamou de Ego-História. A Ego-História não se trata de uma
história biográfica, mas permite perceber os nexos entre o narrador e a história narrada, quando se trata de
experiências vivenciadas em uma mesma conjuntura ou com proximidade dos fatos vivenciados por ambos.
servente de convés até ser guarda noturno, profissão em que ficaria até o fim de sua vida.
Tratava-se de um emprego garantido por troca de „favores‟ prestados por meu avô paterno aos
militares, em virtude de sua posição social que era considerada de certo destaque nesse meio.
Não tive irmãs, e sim quatro irmãos, dois mais velhos e dois mais novos, o que gerou
uma convivência demarcada pela preeminência masculina. Hoje, meu pai é falecido, minha
mãe aposentada e meus irmãos casados. Embora nunca tenhamos passado fome, também não
podíamos desfrutar de muito conforto, tínhamos apenas o necessário à nossa sobrevivência.
Na minha infância, alguns momentos marcantes se passaram no pequeno município de
Passa e Fica, na região do Curimataú, sertão nordestino, onde presenciei de perto a seca e
suas conseqüências, a dificuldade de se obter água e comida. Este retorno me permite construir
através da memória uma parte de minha história.
Fui alfabetizada por um professor amigo da família2. Em seguida, estudei a maior parte
da educação básica em escolas públicas. Mudei muito de escolas, em virtude das viagens de
meu pai. Quando ele embarcava por longos períodos, íamos para Passa e Fica, permanecer
junto ao núcleo familiar materno; existia uma rejeição para com a minha mãe, por parte dos
familiares paternos, pela sua origem muito humilde, mas é dessa origem que constituí as
minhas raízes.
Passei por vários colégios da Paraíba e do Rio Grande do Norte, escolas urbanas e
rurais, e pude perceber que a escola pública estava entregue ao descaso dos governos desses
dois Estados, que sempre tinham oligarquias se revezando no poder. Este contexto me
despertou, ainda que instigada através de alguns professores/as, para o fato de que devíamos
lutar cotidianamente por uma educação pública e de qualidade, superando os programas
oficiais de ensino, impostos por esses governos.
Esta percepção de mudanças no rumo da educação foi aprofundada no ano de 1988.
Em João Pessoa, aos 15 anos de idade, estudava no Lyceu Paraibano, quando eclodiu uma
greve conjunta de professores e alunos, na luta por salários dignos dos profissionais da rede
estadual de ensino e por reforma curricular, onde participei de várias mobilizações: passeatas,
teatro popular de protesto, panfletagens, pixações. Tais fatores contribuíram para a minha
2
Recentemente (2006) tive o prazer de tê-lo como aluno do curso de História, quando lecionei em uma
instituição de ensino privada. A sensação desse retorno foi única: ele era o mestre e não „eu‟; ele era o eterno
mestre Quirino. Foi com ele que aprendi a ler o mundo e não apenas a juntar letras. Daí, a constatação de que
essa sensação apontava uma transição importante, a de vivenciar a dupla condição de ser docente e ser
aprendente cotidianamente.
participação no grêmio estudantil, engajamento em organizações juvenis de esquerda e, um
pouco mais tarde, no movimento estudantil universitário.
Em 1990 ingressei no Partido dos Trabalhadores (PT). Partido que trazia, naquele
momento, um programa de mudanças para o curso do país em relação a um passado recente de
autoritarismo. Congregava vários grupamentos políticos com formação direcionada para
modelos de orientações socialistas marxistas diversos: leninistas, trotskistas, maoístas. Isto
representava diferentes modelos de enfrentamento ao modelo capitalista vigente, tipos de
resistência e de disputas tácitas nas mais variadas esferas de poder: movimentos sociais,
conselhos populares, parlamentos e governos.
Participei de vários cursos de formação política a nível regional e nacional. Passei a
conhecer e conviver com pessoas de várias gerações. Jovens da mesma faixa etária (tinha 17
anos) e com vários militantes (entre 30 e 50 anos) que haviam enfrentado a ditadura militar ou,
mesmo, haviam atuado pela redemocratização do país e pela anistia dos presos políticos. Para
mim, tudo aquilo era muito intenso e passei a me dedicar integralmente à militância. Mas a
pressão da minha família era forte para que eu me afastasse de todo esse ativismo que já
ocupava um grande espaço da minha vida. Muitas vezes, tive enfrentamentos diretos com meu
pai no meio de passeatas; ele me „arrastava‟ para que eu não participasse das mobilizações.
Resolvi, então, que deveria sair de casa. Aos 18 anos (1991), fui aprovada em concurso
público, na cidade de Cabedelo – PB, na função de Regente de Ensino, assumindo sala de aula
num vilarejo da praia do Jacaré. As condições de ensino eram péssimas, o índice de evasão, do
mesmo modo. O conjunto dos professores implantou uma ação interdisciplinar intitulada
“sextas de leitura” e formação de grupo de capoeira de crianças; após o primeiro ano, já se via
resultados, fruto do empenho dos professores/as e da prática em educação popular, junto à
comunidade.
O salário que recebia mal dava para as passagens de João Pessoa a Cabedelo, não dava
para sair de casa naquelas condições e, o principal não era mais a militância no partido, mas a
educação popular em curso naquela escola. Esta experiência na educação infantil descortinou
o meu desejo de continuar a lecionar.
Foi neste contexto que me casei e tive a minha primeira filha (1992), uma menina
negra linda! O pai era negro, situação que gerou muitos conflitos com meus familiares. As
dificuldades econômicas e sociais e a vontade de ficar perto de minha filha determinaram o
meu pedido de exoneração desse emprego.
Em 1994, nasceu meu segundo filho, forte e bonito, porém a sua irmã ainda estava
muito pequena. E agora? Em vez de um eram dois para cuidar; mesmo assim, decidi que devia
voltar a estudar. E, ao fazer vestibular no final daquele ano, a opção não fora na área de
educação. Fui vencida pelos “conselhos familiares” de pai, mãe e marido, para cursar uma
profissão que tivesse “melhores condições salariais”. Dessa forma, ingressei no curso de
Administração, da UFPB, e cursei os dois primeiros anos.
Ser mãe de dois filhos, aos 20 anos, não foi fácil para conciliar estudo e formação
profissional. E ter, como marido, um homem negro e militante do Partido dos Trabalhadores
(PT) foi uma situação cada vez mais rejeitada pela minha família. Assistir aulas com menino e
amamentar foi um exercício cotidiano e as dificuldades de conciliar o casamento com a
pauperização crescente e os estudos, sem o apoio da família, e posteriormente, até do marido,
conduziram a muitos conflitos conjugais, e se transformaram num desamor tamanho que gerou
até violência física.
Após a separação conjugal, inevitável, foi quando percebi que, de fato, havia passado
de menina para mulher, com a mesma sorte que as nossas primeiras mães, índias e negras, que
passaram, a partir da dor, pelo desamor e pela violência, e que, como eu, muitas mulheres
ainda têm essa mesma sorte.
No mesmo ano, em 1998, estabeleci outras rupturas. Deixei o curso de Administração e
ingressei no curso de História na UFPB. Almejava lecionar, continuar a militância política e
desenvolver projetos de educação popular e descobri, nesse curso e no movimento de
mulheres, razões, sensibilidades e apoio para a definição de onde deveria atuar. No entanto,
tive de superar, além da separação conjugal, a morte do meu pai; foram tempos muito difíceis.
Cursar história foi fascinante, reforçava a sensação de que o passado não pode ser
destruído, nem o coletivo/social, nem o dos indivíduos. Portanto, meu compromisso tinha que
ir além da história factual e de heróis, consistia na opção pela história dos de baixo, a história
da transformação; dessa forma, voltava a minha memória às dificuldades da infância, como as
conseqüências da seca, na cidade de Passa e Fica – RN.
Através da aprendizagem militante fui convidada a trabalhar no Centro da Mulher 08
de março, uma ONG feminista, onde atuei na coordenação de pesquisa, realizando palestras,
cursos e oficinas sobre as seguintes temáticas: A Mulher na História; Mulher e Mercado de
Trabalho; Gênero, Classe e Etnia, entre outros.
Além
disso,
a
militância
no
setorial
de
mulheres
do
PT,
desenvolvida
concomitantemente com trabalhos em assessorias e consultorias a parlamentares do PT,
objetivava acompanhar reivindicações dos movimentos de mulheres com o propósito de
construir políticas públicas que atendessem aos seus anseios. Isto possibilitou, a partir daí, o
meu engajamento em várias mobilizações contra a impunidade dos assassinos da líder sindical
Margarida Maria Alves e o primeiro contato com a Marcha das Margaridas, que repercutia
fortemente junto aos movimentos sociais organizados na Paraíba, como a Comissão Pastoral da
Terra (CPT), a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST).
Essa Marcha foi construída pelo Movimento de Mulheres
Trabalhadoras do Campo (MMC), responsável pelo elo campo/cidade dos movimentos de
mulheres.
Em 1999, fiquei totalmente voltada para a Academia: ensino, pesquisa e extensão.
Participei do Projeto Zé Peão, no Centro de Educação/UFPB, uma curta e intensa experiência,
seja pela perspectiva de abordagem que o projeto propunha, seja pelo tipo diferente de sala de
aula e, também, pelo fascínio do debate crítico da educação de jovens e adultos, fruto de uma
parceria coerente entre universidade e sindicato da construção civil.
Assim, após alguns meses de minha vivência no Projeto Zé Peão, fui convidada, pela
professora Rosa Maria Godoy Silveira, a participar da seleção do PIBIC e trabalhar com ela no
Núcleo de Informação e Documentação Histórica e Regional (NDIHR), da UFPB, na linha
temática “Questão Agrária”. Tal convite possibilitou o meu ingresso na pesquisa e no
aprofundamento teórico que deu, ainda mais, consistência a minha formação acadêmica e ao
papel social que desempenhava.
Nesta oportunidade, durante três anos, tive a pesquisa como condição principal de minha
atividade acadêmica. Trabalhei com fontes primárias, no arquivo público da Fundação Espaço
Cultural (FUNESC), habilitei-me como arquivista-técnica em um curso patrocinado aos
pesquisadores do NDIHR.
Este contato com a pesquisa resultou na monografia de final de curso Descolonização e
Lei de Terras em Cena: A Constituição Fundiária do Município de Souza–PB, um estudo de
caso que tentou responder questões acerca das ocupações, demarcações e conflitos agrários no
período imperial da história da Paraíba, no município de Souza. Isto representou uma rica
experiência no campo do aprendizado da investigação científica, despertando, naquela
circunstância, uma inquietação para continuar a pesquisar sobre os estudos agrários e
campesinos.
Fui premiada, em 2001, no X Encontro de Pesquisa e Extensão da UFPB, com o
trabalho A questão de terras no sertão da Paraíba, desenvolvido no grupo de estudo e
pesquisa do referido núcleo, e que teve seu resultado transformado em ensaio, após um ano,
possibilitando a minha primeira publicação. Dessa ascendência adveio a inquietação para
continuar a pesquisar sobre os sujeitos históricos que atuaram (atuam) na luta pela terra, num
recorte de Gênero.
Após a conclusão da graduação, o meu tempo passou a ser dividido entre a pesquisa no
NIDHR, a militância nos fóruns de mulheres e o exercício do magistério, onde lecionei
História, nos níveis do ensino fundamental e médio, no supletivo da UFPB, na condição de
docente em regime emergencial, enquanto me preparava para o ingresso em cursos de PósGraduação.
A intenção de trabalho começava a se materializar na direção de pesquisa sobre a vida
de três mulheres baluartes na luta pela terra, na Paraíba: Elizabeth Teixeira, Margarida Maria
Alves e Maria da Penha Nascimento. Do ponto de vista teórico e prático, pairavam várias
dúvidas; uma delas, a responsabilidade de continuar a investigar três biografias, valendo-nos
da concepção de biografia 3 da análise de Morais:
tentar compreender uma vida, ou vidas, é também munir-se de cuidados
para não se cair no senso comum de percebê-la como uma trajetória, um
percurso orientado com princípio, meio e fim, como um deslocamento
linear, unidirecional. Mas perceber a sociedade em que esteja inserida, e a
estrutura das relações objetivas, que permeiam o contexto social, ora em
análise (MORAIS, 1999, p. 05).
Além da responsabilidade para com os sujeitos e com o ato de pesquisar, nesse recorte
biográfico e/ou memorialístico, havia o elemento da admiração por algumas pesquisadoras, da
Universidade Federal da Paraíba – que por exercerem militância extra-universidade me
encantavam. Estas mulheres, as sociólogas Neide Miele e Lourdes Bandeira e a historiadora
Rosa Godoy Silveira (a minha ex-orientadora) assessoravam e historiavam as condições de
vida das mulheres camponesas com extrema profundidade teórica. As duas últimas, Lourdes
3
Esta posição sobre o fazer biográfico inspira-se em Pierre Bourdieu e é adotada na Base de Pesquisa Gênero e
Práticas Cultutrais: abordagens históricas, educativas e literárias, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação
em Educação da UFRN, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, coordenada pela profa. Dra. Mª Arisnete
Câmara de Morais.
Bandeira e Rosa Godoy, foram fundadoras do grupo de mulheres feminista, o Maria Mulher.4
Já a professora Neide Miele assessorou e exerceu militância no Centro de Educação e Cultura
dos trabalhadores/as rurais (CENTRU), núcleo referência de assessoria aos movimentos
camponeses.
Elas traduziram a história viva, a partir da convivência e do companheirismo da luta;
sofreram juntas muitas indignações contra o latifúndio e o machismo. Tudo foi luta e dor, até
que as verdadeiras intelectuais orgânicas, como diria Gramsci, registrassem essas histórias.
Foi a publicação EU MARCHAREI NA TUA LUTA: A Vida de Elizabeth Teixeira,
(1997), que mais me sensibilizou. O estudo expressou não apenas as marcas da vida e atuação
da mulher Elizabeth Teixeira nas Ligas Camponesas, mas demarcou, também, um registro
que, para muitos sujeitos dos movimentos sociais, significou uma contribuição da memória
coletiva na construção do paradigma de lutas.
Além disto, a obra contribuiu para a compreensão histórica dessa pioneira, Elizabeth
Teixeira que, aos 80 anos, continua fazendo história e influindo, decisivamente, na formação
da juventude e das mulheres na luta por reforma agrária e contra as injustiças que se impõem
às camadas excluídas da nossa sociedade. Daí o anseio de beber nessas fontes
Em 2003, ingressei no mestrado, no Programa de Pós-Graduação em Educação da
UFPB, onde concluí, em setembro de 2005, a dissertação Margarida, Margaridas: memória
de Margarida Maria Alves e as práticas educativas das camponesas na Paraíba.
Ao ingressar no mestrado participei da seleção 2003 para o Programa de Ação
Afirmativa, da Fundação Ford, concorrendo com mais de 2.000 candidatos/as para um total de
40 vagas, em todo o país. A minha trajetória de vida, contando com a origem social de mulher
nordestina, arrimo de família e histórico de liderança, preencheu um dos critérios do Programa,
e a relevância da temática, além da apresentação do projeto de pesquisa de forma adequada,
consistiu no outro critério científico que garantiu a minha aprovação.
O projeto Ação Afirmativa da Fundação Ford trabalha com a perspectiva da formação
continuada, e propiciou não apenas uma bolsa de estudos, mas a aquisição de bens materiais e
culturais, como equipamento necessário à pesquisa e o custeio das visitas de campo, além do
4
O primeiro grupo feminista da Paraíba foi criado em 1979, com o nome de Centro da Mulher Paraibana. E em
1980 foi criado o grupo feminista Maria Mulher por professoras universitárias. O grupo Maria Mulher foi extinto
em 1988, quando as suas integrantes (a maioria ligada à universidade) se dispersam. Só na década de 1990, é que
outros grupos de mulheres se constituíram na cidade de João Pessoa: o Centro da Mulher 8 de Março e o Coletivo
Feminista Cunhã . Eles tiveram como fundadoras principalmente mulheres que fizeram parte do Maria Mulher .
fortalecimento intelectual do sujeito pesquisador, através do patrocínio a vários eventos
científicos e de uma viagem ao exterior.
Diante de mais essa oportunidade, participei de um curso de imersão de inglês, por três
meses, na Universidade do Arkansas – USA; ao mesmo tempo, entrei em contato com várias
ONGs norte-americanas que trabalham com temáticas étnico-culturais. A minha participação
contava com uma delegação de outros estudantes de Pós-Graduação de vários países da
América Latina, do Vietnã, China, Indonésia, Rússia, Moçambique e Guiné-Bissau, e todos
com trabalhos desenvolvidos sobre movimentos sociais. Na ocasião, tivemos a oportunidade de
trabalhar com os povos Cherokees (índigenas); o centro Luther King de estudo dos povos
negros e hispânicos (latino-americanos) e fazer visitas às comunidades agrícolas que
desenvolvem pesquisas com alimentos orgânicos, como contra-ponto à agricultura transgênica,
imposta pela hegemonia norte-americana.
Em 2003, fiz também parte da construção do Fórum de Mulheres da UFPB, que
aglutinou mulheres dos três segmentos da instituição e que formou parceria junto às
camponesas da Paraíba, neste mesmo ano. Este FÓRUM vem realizando vários eventos
acadêmicos e aglutinando vários/as pesquisadores/as nas discussões de gênero.
Durante esse período, a presença de outros pesquisadores/as que atuavam nessa área foi
fundamental em minha formação. Destaco, aqui, o professor Charliton José Machado. A sua
tese de doutoramento foi defendida em 2001: A dimensão da palavra: práticas de escrita de
mulheres pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e retratou a história de
vida de mulheres que viveram no município de Nova Palmeira – PB e participaram ativamente
de movimentos populares. Cheguei a assistir a sua defesa e este trabalho, mais tarde, iria trazer
contribuições riquíssimas às minhas escolhas teórico-metodológicas.
O mesmo foi o meu orientador no mestrado e, atualmente, no doutorado. Tem se
dedicado, constantemente, para que seus orientandos/as consigam firmar-se no campo da
pesquisa com muito rigor científico, porém, sem se perder no labirinto puramente academicista.
Sua trajetória de pesquisador e docência em Educação e Direitos Humanos, além de sua prática
militante-acadêmica, corrobora essa essência, ao mesmo tempo em que orienta e dialoga para
não nos perdermos nos crivos do puro ativismo, nesse momento de aprofundamento teórico.
Atualmente coordena o grupo de estudos e pesquisa: História, Sociedade e Educação no Brasil
(HISTEDBR).
Todavia, mesmo com toda essa orientação, tem sido muito cativante e prazerosa a nossa
convivência com as camponesas. O meu contato com Maria Soledade e com outras mulheres
que atuavam na região do brejo, no MMT, através do meio militante, permitiram que os nossos
laços se estreitassem mais e mais. A vontade e o sonho de construir um centro de educação,
cultura e cooperativa agrícola só para mulheres nos tem mobilizado até os dias atuais. O que
talvez seja possível, com a doação de um terreno para a construção da associação do MMT, que
elas receberam há cerca de três anos. Ainda assim, sinto que tenho feito pouco por isso, devido
ao tempo inteiramente comprometido com o trabalho e o estudo.
Após lecionar no ensino superior da rede privada e ter sido professora substituta da
UFPB fui selecionada em concurso pela UNESCO, como Consultora, para avaliar um convênio
do MEC, da UFCG e da Pastoral Afro-Brasileira, que co-participa do programa social
Universidade e Diversidade, desenvolvido pelo atual governo federal. Esta experiência
possibilitou a ampliação do meu currículo e um crescimento profissional cada vez maior.
Foi assim que, há um ano e meio, passei no concurso para professora efetiva, nível
assistente, na UFPB. O que, por um lado me deixa com pouco tempo disponível para realizar as
minhas pesquisas e escrever a tese, mas por outro, me garante uma estabilidade profissional
fundamental em minha vida.
E, como diz Frei Betto ao prefaciar o livro de Pedagogia da Autonomia de Freire (2008,
capa, grifo meu): “foram as suas idéias, professor, que me permitiram chegar aqui (...); a sua
pedagogia, professor, permitiu que os pobres se tornassem sujeitos políticos (...). Graças às suas
obras, professor, descobriu-se que os pobres têm uma pedagogia própria (...); muito obrigado
professor [...]”.
Além de agradecer a Freire, congratulo-me a muitas outras pessoas, umas já
mencionadas aqui, e outras que não poderia deixar de falar e que me acompanharam nessa
caminhada, como as companheiras Wilma Mendonça e Ignez Navarro; com a primeira divido
uma convivência mais antiga, marcada por amizade e militância roxa! E, a segunda, tem se
tornado cada dia mais imprescindível em meu cotidiano. E a minha mãe que, aos 60 e poucos
anos de idade, entrou para uma universidade e vai ser a primeira (talvez única) de uma família
de 12 irmãos/ãs que conseguiu passar do 2° ano do ensino fundamental. Posso dizer, mãe, que
você hoje é o meu referencial da educação inclusiva.
Mas ninguém contribuiu tanto com este trabalho quanto o companheiro Wilson Aragão,
incentivador primeiro dessa pesquisa. Seus diálogos; suas dicas; sua história entrelaçada com o
contexto da época, pois foi fundador do PT, presidente da CUT e esteve diretamente em
diversas das mobilizações contra os assassinos de Margarida Alves foram decisivas no meu
processo de formação. E as nossas tantas outras cumplicidades: de trabalho, de militância, de
projetos futuros e de vida. Ele me fez acreditar que o que existe em comum em mim e nessas
mulheres que - muito mais do que eu - ousaram e venceram, são os seus saberes, suas
experiências únicas, porém emaranhadas com a identidade de quem busca incessantemente a
sua autonomia, a sua condição de sujeito histórico.
Como disse no início desta introdução, a tese aqui apresentada traz reflexões iniciadas já
durante o mestrado mas, para além disto, anseia outra pretensão social: contribuir, de fato, para
o movimento de mulheres camponesas, com essas „novas cogitações‟. Cogitações essas que
foram sendo motivadas por uma latente aprendizagem de querer „ser‟ uma intelectual orgânica,
desde que foi lançada a semente da luta contra as injustiças [caída das beiras das estradas de
Passa e Fica que ficou], e veio propiciar esse novo casamento, entre a militância e a academia.
1.2 Margarida Maria Alves: uma história política complexa
É melhor morrer na luta do que morrer de fome...
Margarida Maria Alves (1933-1983)
Há 25 anos foi arrancada, brutalmente, da luta sindical, a camponesa Margarida
Maria Alves, líder dos trabalhadores rurais da Paraíba e Presidenta do Sindicato Rural de
Alagoa Grande. O seu assassinato provocou profunda indignação em nossa sociedade,
traduzida pela onda de manifestações que se propagou pelo estado, com repercussão em
todo o país.
Desde 1983, anualmente, os trabalhadores e trabalhadoras rurais passaram a
relembrar, no dia 12 de agosto, a figura de Margarida Alves, enquanto denunciam a
impunidade dos seus assassinos e a renitente violência no campo, em meio aos discursos
em defesa da Reforma Agrária. Desta forma, tornam atual a luta e o martírio dessa líder
sindical, chegando a instituir o dia 12 de agosto como o Dia Nacional Contra a Violência
no Campo e pela Reforma Agrária.
Margarida Maria Alves nasceu em 5 de agosto de 1933, no Sítio do Jacu, Alagoa
Grande, interior da Paraíba, e faleceu em 12 de agosto de 1983, vítima de uma emboscada
patrocinada por usineiros e latifundiários da região do Brejo paraibano. Era filha de
Manoel Lourenço Alves e de Alexandrina Inácia da Conceição, sendo a filha mais nova de
9 (nove) irmãos. Seu pai possuía traços indígenas e sua mãe trazia a negritude na cor da
pele, assim, Margarida Maria Alves possuía fortes traços étnico-racial indígena e afrobrasileiro (FERREIRA, 2006).
Começou a estudar no sítio Agreste, aos 6 (seis) anos. Aos 8 (oito) já trabalhava na
agricultura. Estudou até a 4ª série do antigo ensino primário. Aos 28 (vinte e oito) anos, foi
morar na Rua da Olinda, no centro de Alagoa Grande, onde permaneceria até o desfecho
da sua morte. Casou-se em 1971 com Severino Cassimiro Alves e teve seu único filho,
José de Arimatéia Alves, em 11 de junho de 1975.
Durante vinte e três anos, esta liderança participou do Sindicato de Alagoa Grande
e atuou na organização de outros sindicatos de trabalhadores rurais na região da lavoura
canavieira da Paraíba, chegando a influenciar nas políticas da Confederação dos
Trabalhadores da Agricultura (CONTAG). Por doze anos, Margarida Alves dirigiu os
trabalhadores rurais de Alagoa Grande. Durante todo esse período, ela conheceu e
estreitou relações com outras mulheres camponesas, que se engajariam na luta campesina,
tornando-se lideranças sindicais, num espaço historicamente marcado pela pouca
participação feminina.
Em 1972, conheceu Maria da Penha Nascimento5, que passou a atuar no Sindicato
de Alagoa Grande; em 1975, conheceu a camponesa Maria da Soledade Leite,
camponesa-repentista que, juntamente com as mulheres do Brejo paraibano e demais
camponesas, se dedicariam à luta pela punição dos assassinos de Margarida Maria Alves.
Luta inglória. Surdas aos apelos dos camponeses da Paraíba, as autoridades paraibanas
deixariam prescrever esse crime.
Maria da Soledade diz que quando conheceu Margarida Alves várias identidades se
constituíram: a sua origem humilde, a sua ligação com a terra, a sua personalidade forte e
meiga e a sua capacidade de falar e de escutar os seus parceiros e parceiras, na luta pela
5
Maria da Penha do Nascimento Silva (1949-1991), conhecida por Penha, nasceu em Alagoa Grande-PB, foi
camponesa, líder sindical, feminista e escritora. Após o assassinato de Margarida Alves, Penha intensificou
sua luta contra a violência e a impunidade dos latifundiários. Participou da criação da CUT/PB, da qual
também foi diretora e do PT em Alagoa Grande-PB. Candidatou-se a vereadora, onde conseguiu suplência e,
posteriormente, candidatou-se à deputada federal, não tendo tido uma votação tão expressiva. No início da
década de 1990, passou a dedicar-se, de forma mais intencional, ao movimento de mulheres. Foi uma das
fundadoras do Movimento de Mulheres do Brejo e integrou a Comissão de Mulheres da CUT. Faleceu em
um desastre automobilístico no dia 8 de março de 1991, quando participava das atividades comemorativas ao
dia Internacional da Mulher. Escreveu dois livros: „Violência rural e Reforma Agrária‟ e „Por que trabalhar
com mulheres‟. Sua representação na memória coletiva ficou registrada com a frase: „Só quem luta é que
sabe a dor que a gente sente‟. (SCHUMAHER, 2000).
terra. Acentuou a reconhecida religiosidade de Margarida Maria Alves, religiosidade esta
claramente entrelaçada ao seu fazer político. São características de uma identidade formada
pela vida sofrida, com marcas de sensibilidade feminina que, também, são características
das demais trabalhadoras rurais, que são mães, esposas, donas-de-casa e companheiras.
Margarida Alves, a líder de Alagoa Grande, foi expulsa da terra em 1962, no
mesmo ano em que foi assassinado João Pedro Teixeira, líder das Ligas Camponesas, a
mando, também, do chamado Grupo da Várzea 6, grupo de coronéis que aterrorizou,
durante décadas, os trabalhadores e trabalhadoras rurais do Brejo da Paraíba.
Em minhas pesquisas anteriores, na dissertação, constatei que, no decorrer do
percurso histórico como sindicalista, a camponesa Margarida Maria Alves direcionou suas
lutas para a defesa da sindicalização, para a conquista dos direitos trabalhistas, a exemplo
das reivindicações por carteiras assinadas, por férias, pelo décimo-terceiro salário, pelo
repouso remunerado e pela participação organizada das mulheres camponesas. Participou
da construção e fundação do Centro de Educação do Trabalhador Rural – CENTRU –
tendo como objetivo o desenvolvimento de ações pedagógicas que contribuíssem para a
formação política dos (as) camponeses (as). Além disto, foi uma das fundadoras da
primeira organização composta só por mulheres, da América Latina, o Movimento de
Mulheres do Brejo (MMB).
É preciso situar, aqui, entre outras coisas, o tempo e a espacialidade nos quais os
sujeitos históricos estão envolvidos, como forma de perceber o elo entre os sujeitos e seu
contexto, tendo-se claro que este espaço constitui-se de um universo de crenças, costumes
e hábitos que se configura em um dado mundo de convívio social. Faz-se necessária a
compreensão de como se formou o lugar que motivou os/as trabalhadores/as rurais a se
organizarem em sindicatos, ou as mulheres a construírem as esferas de auto-organização e
busca do saber.
Vale salientar que a configuração ora considerada retrata as décadas de 1970 e 1980,
recorte do período em que a líder sindical Margarida Maria Alves consolidou a sua
participação no sindicato de Alagoa Grande e, após a sua morte, outras camponesas que
atuavam no sindicato se sentiram estimuladas à resistência contra o latifúndio e ao
6
Este grupo era formado pelos usineiros da zona canavieira paraibana, com abrangência política e econômica
nas cidades de Santa Rita, Tibiri, Pilar, Mogeiro, Ingá, Sapé e Alagoa Grande, e tinha como maiores
expressões duas famílias: os Veloso Borges e os Ribeiro Coutinho.
machismo. Constitui, pois, a sua auto-organização, no período de expansão dos novos
movimentos sociais.
O espaço é o do Brejo paraibano, da região nordeste7 do Brasil. O Brejo paraibano está
situado na região do agreste, entre as regiões do litoral e do sertão, mais precisamente no
agreste alto, diferenciando-se como recorte de terras úmidas no interior do próprio Agreste.
O relevo e a posição geográfica contribuem para a permanência do clima
úmido, a região detém solos férteis e uma hidrografia perene, condições
estas muito favoráveis ao desenvolvimento da agricultura (MOREIRA,
1997, p.85).
A cana-de-açúcar inicialmente era cultivada juntamente com as plantações de
subsistência, como o arroz, o milho, o feijão, a mandioca, entre outros. A sua finalidade era
relacionada à produção do açúcar mascavo, da rapadura e da aguardente. Mas ainda no
período colonial, quando se construíram as casas de engenhos, logo se expandiu e
reafirmou o seu caráter monocultor e escravista, assim como já ocorria no litoral paraibano
e adjacências.
As ocupações desenvolvidas ainda no início do séc. XX estão relacionadas às
atividades de subsistência, mas foi o algodão o grande responsável pelo povoamento.
Posteriormente, a região do Brejo funcionava como ponto de abastecimento dos vaqueiros,
a partir das feiras de gado, devido ao fato de, em seu deslocamento para o litoral, ser
passagem obrigatória desses animais, cuja comercialização era a principal fonte de renda
do sertão.
Nas décadas de 1970 e 1980, deu-se a expansão canavieira mas, até 1970, a canade-açúcar ainda tinha finalidades concentradas para o açúcar, a rapadura e a aguardente.
Nesse período, consolidava-se o abacaxi como produto de consumo interno e de
exportação, especialmente na cidade de Sapé.
No entanto, um fato iria mudar a finalidade da cana-de-açúcar e iria,
concomitantemente, aumentar a pretensão dos latifundiários, a exploração dos
7
Segundo Silveira (2009, p. 15), o Nordeste constitui o espaço mais antigo do país, em termos de ocupação
demográfica e econômica, disto resultando uma identidade objetiva, geográfica e cultural, diferenciada de
outros espaços posteriormente ocupados, e mantendo sobre os mesmos uma hegemonia de praticamente três
séculos. Esta identidade se consubstancia, ainda, através de um longo processo, em um pensamento
regionalista.
trabalhadores/as e os conflitos no campo. Em 1975, segundo Moreira (1997, p.105),
através do Decreto – Lei nº 76.593/75, como forma de enfrentar a crise energética do país,
foi criado o Programa Nacional do Álcool (PROALCOOL) apoiado numa
forte política de incentivos e créditos [...], financiando até 80% do valor
do investimento fixo nas destilarias que utilizassem a cana-de-açúcar
como matéria-prima.
O PROALCOOL foi criado com o objetivo de se tornar alternativa para a crise do
petróleo que estava em alta, em decorrência dos conflitos existentes no mercado
internacional no Oriente Médio. Estes conflitos fizeram com que a aplicação de incentivos
fiscais e créditos agrícolas redirecionassem a política agrária para a monocultura da canade-açúcar, inclusive retirando grande número de pequenos proprietários de suas terras.
Como forma de reduzir, ainda mais, os encargos previdenciários dos grandes proprietários
rurais, o governo cria o FUNRURAL8, que gera um desmonte dos direitos trabalhistas no
meio rural. Sobre esse momento, considera-se a análise a seguir:
uma das fórmulas encontradas pelo Estado para “compensar” esses
pequenos produtores das perdas sofridas foi a criação do FUNRURAL.
Na verdade, este tipo de previdência social dirigida aos trabalhadores do
campo, foi estabelecido visando mais a liberação dos proprietários de
terra da contribuição previdenciária vigente para o mundo urbano. Isto
lhes permitiria grande redução nos custos sociais com a sua mão-de-obra
[...] e se traduziu, na verdade, na transformação de pequenos produtores proprietários, moradores, arrendatários - em uma massa de trabalhadores
de caráter temporário, sem quaisquer possibilidades de absorver as
“vantagens” dessas relações capitalistas de trabalho impostas aos setores
sociais mais frágeis da agropecuária (FERNANDES, 1999, p. 95).
Este processo de assalariamento das relações de trabalho iria instituir várias
diferenças entre os direitos trabalhistas do setor urbano em relação aos direitos trabalhistas
do homem e da mulher do campo. Estabelece-se, assim, uma maior concentração fundiária
e a super exploração dos/das trabalhadores/as causando, entre outras coisas, a desnutrição
aguda nas crianças, gerada pela fome, uma vez que a terra era cada vez menos utilizada
para a agricultura de subsistência.
8
O FUNRURAL foi criado pela Lei Complementar nº 11, de 25 de maio de 1971, e regulamentado pela Lei
nº 6.260, de 6 de novembro de 1975.
É nesse cenário que os latifundiários se estruturam em grandes associações, como o
Grupo da Várzea, e elegem vários parlamentares, tanto estaduais quanto federais, pela
Aliança Renovadora Nacional (ARENA) – partido de sustentação dos governos militares
criado em 1966, que instituiu o bipartidarismo 9, ampliando a acumulação de terras e do
poder local. Por outro lado, os trabalhadores/as rurais na região do brejo paraibano passam
a consolidar as campanhas trabalhistas e têm em Alagoa Grande, a partir de 1975, com os
efeitos do PROALCOOL, seu primeiro foco de organização na região do Brejo.
A cidade de Alagoa Grande foi fundada em 1864, ocupa uma extensão territorial de
333, 7 km e, atualmente, conta com uma população de 29. 677 habitantes, segundo dados
do IBGE de 2000. A origem do nome da cidade, bem como seu embelezamento, decorrem
do fato de a mesma comportar uma lagoa extensa, exatamente onde veio a ser o centro da
localidade.
Alagoa Grande ostenta uma bonita paisagem de muito verde e serras que cercam a
mesma. Atualmente, o comércio interno e externo possibilita o mercado de produtos
advindos da indústria fabril de costuras e rendas e oferece essa outra fonte de recursos,
além da agricultura de subsistência e do plantio da cana-de-açúcar.
O sindicato dos/as trabalhadores/as rurais fica localizado na Rua Francisco
Montenegro, não muito próxima à rua onde morava Margarida Maria Alves, a Rua da
Olinda que, por sua vez, fica bem próxima da igreja de N. S. de Boa Viagem, fundada em
1868.
A líder sindical Margarida Alves encontrava-se na segunda janela, da direita para a
esquerda, da sua casa, quando foi abordada pelos homens que lhes assassinaram. O crime
ocorreu durante o final da tarde, no momento em que as pessoas que trabalhavam na Zona
Canavieira, homens, mulheres e crianças, costumavam chegar em suas residências.
Neste cenário, percebe-se que a cidade de Alagoa Grande-PB, a exemplo de tantas
outras cidades nordestinas, registra uma situação de pobreza acentuada, de pouco
9
O bipartidarismo foi instituído pelo Ato Institucional n. 3, implantado no governo Castelo Branco, que,
além dessa limitação de legendas partidárias, dava plenos direitos ao governo de legislar por decretos-leis.
Portanto, só os dois partidos permitidos durante a ditadura militar, com a implantação do bipartidarismo
foram a ARENA e o MDB. Ambos já sofreram várias dissidências. Os dissidentes da antiga ARENA,
agremiação de apoio à ditadura militar, fundaram o PDS, depois o PFL, e atualmente o DEM. Já o MDB, foi
transformado em Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), em 1982, quando foi permitida a
legalidade de outros partidos.
desenvolvimento sócio-econômico. Detém, no trabalho rural, uma de suas principais fontes
de recursos, tendo os camponeses e camponesas uma ligação direta com a terra, tanto como
trabalhadores/as do latifúndio quanto na agricultura familiar, produzindo alimentos e
outros bens necessários ao bem-estar.
Assim, mereceram destaque as mobilizações com as mulheres rurais e as denúncias
de violência, a exemplo de uma ação contra um jovem fazendeiro que agredira uma mulher
idosa e paralítica, sua moradora; além da participação na construção do Centro de
Educação e Cultura do Trabalhador Rural (CENTRU), tendo por objetivo o
desenvolvimento da formação na perspectiva da Educação Popular (EP).
Margarida Alves percebeu que os princípios político-pedagógicos de uma
sociedade devem estar constituídos e identificados com a sua história e realidade, ou seja,
acreditava na educação como forma de transformação social. As práticas educativas estão
mencionadas de forma histórica e simbólica, pois a sua trajetória política e a sua referência
de massa, além do que foi desencadeado após o seu assassinato, possibilitam reflexões e
ações diretas na composição de um aprendizado popular.
Ela teve ao seu lado outros/as trabalhadores/as rurais, dirigentes sindicais que
compunham o sindicalismo pelego, e também os que romperam e construíram o novo
sindicalismo: intelectuais; feministas e religiosos.
Segundo Margarida Alves, a sua crença 10 católica orientava-a inicialmente na vida
conjugal e nas dimensões educativa e política. O marido, Severino Cassimiro Alves,
exerceu forte influência sobre sua atuação, por ter sido o primeiro presidente do referido
sindicato e também devido ao poder presente na relação conjugal do homem sobre a
esposa. Sobre a sua relação com a Igreja católica, encontramos o seguinte posicionamento
de Margarida, citado por Rocha (1996) em uma matéria jornalística, posteriormente
publicada em brochura:
[...] eu me lembro que, em 1962, quando o sindicato foi fundado, se
falava muito nas ligas camponesa, em jornada de trabalho, que o
trabalhador trabalhava dez, onze, doze horas. As Ligas estavam falando a
verdade. Mas o padre não dava apoio às Ligas. E como eu era muito
religiosa, aí não fiquei com as Ligas. Mas sempre achando que as Ligas
tinham razão. Então a Igreja ajudou a fundar os sindicatos dizendo que os
sindicatos eram desejo do Papa João XXIII. Veio a Revolução de 64. Foi
um pega fogo, foi nego preso, morto e perseguido. Cassimiro foi
10
O registro dessa „crença católica‟ está registrado em Rocha (1996).
perseguido, mesmo sendo do sindicato do padre. Cassimiro ficou doente
dos nervos, pois ele ficou sozinho. A Igreja tirou o pezinho de banda,
como se diz. “Fica aí, agora, Cassimiro, que não tem mais problema”. A
Igreja ficou do lado latifundiário, entendeu? (ROCHA apud
FERREIRA, 2006, p.71),
Esta reflexão de Margarida coloca-a perante uma manifestação crítica à Igreja,
diante dos efeitos opressores da ditadura militar. Mesmo mantendo sua crença religiosa,
passa a observar algumas atitudes da Igreja como omissão e percebe que a categoria dos
trabalhadores recebeu adesão de religiosos, mas que essa condição de apoio não era
permanente. Nessa conjuntura, Margarida estabeleceu fortes laços ideológicos com outras
(os) parceiras (os), passando a fazer parte da CPT e atuando em direção oposta aos
latifundiários. Provocou enfrentamentos diretos com os “donos das terras”, o já então
conhecido Grupo da Várzea.
A CPT foi criada em 1975, em meio às lutas pelo fim da ditadura e pela abertura
política em nosso país. A CPT avulta, hoje, como a organização camponesa mais antiga em
plena atividade, em nosso e em outros Estados brasileiros. Entidade rural ligada à Igreja
Católica, a CPT também desfruta do privilégio de ter sido a primeira organização pastoral
a introduzir a discussão de gênero nos debates de formação religiosa. Desta discussão que,
longe de arrefecer, permaneceria em pauta ao longo desses anos, participariam,
inicialmente, várias camponesas do Brejo paraibano que criaram, em 1981, dentro da
própria CPT, o Movimento de Mulheres Trabalhadoras do Brejo.
Aliás, a autonomia da liderança Margarida Maria Alves, revelada na forma de
orientar os passos que devia seguir, sejam religiosos ou políticos, provocou ainda mais a
ira desse grupo, uma vez que, segundo fontes orais, Margarida Alves chegou a ser
simpatizante do antigo Partido Democrático Social (PDS), partido já extinto que substituía
a Aliança Renovadora Nacional (ARENA), criada pela ditadura militar.
Entretanto, o debate sobre a sua opção partidária gerou e tem gerado muitas
discussões. Devido às suas ligações com o PDS, para alguns sujeitos dos movimentos
sociais, Margarida Alves assumia uma dúbia identidade, conforme relato de um
sindicalista (E-2)11: “[...] Margarida ora era progressista, quando defendia os interesses dos
trabalhadores, ora era reacionária, quando apoiou Aércio Pereira, naquela época”
11
Militante do movimento de luta pela moradia, Alagoa Grande, entrevista em14/07/2004. (E-2).
Coloca-se o debate, então, permeado de vários conflitos de representação no
mundo social, necessitando-se estabelecer um diálogo com outros relatos e novas fontes,
para posterior apreciação e, possivelmente, configurar novas argumentações nessa análise.
Contudo, o que ficou gravado de forma mais expressiva na memória dos mais
variados sujeitos sociais, chegando a constituir-se em símbolo social, foram a experiência e
o empenho de Margarida Maria Alves na organização das campanhas salariais que, entre
outros atos, passava a ser encarada pelos latifundiários da região como ameaça
permanente.
Tendo sido ventilados, na imagem pública, como os maiores interessados na morte
de Margarida Alves – os latifundiários – através de seus representantes no parlamento
estadual - passaram a disputar a opinião pública na imprensa local, levantando outras
suposições, ou seja, acusando o conjunto de sujeitos sociais ligados aos movimentos
sindicais de terem sido, estes, os mandantes do crime de Margarida Alves.
Os princípios ideológicos de Margarida caminhavam na contramão do PDS.
Segundo Rocha (1996), no ano do seu assassinato, em 1983, o usineiro Agnaldo Veloso
Borges, na ocasião um dos principais acusados de ser o mandante do crime de Margarida,
hoje comprovado nos autos criminais, detinha total hegemonia do PDS: Agnaldo Veloso
Borges liderava um grupo de 3 deputados federais, 5 deputados estaduais, 50 prefeitos do
interior e pelo menos 10 de um colégio eleitoral dos 27 representantes da Paraíba. Todos
eles votaram em Maluf, dizia a manchete do jornal O NORTE em 21/08/1983, referindo-se
às eleições indiretas presidenciais de 1985.
Nessa ocasião - conforme relatos de representantes da CONTAG -, no início da
década de 1980, Margarida Alves liderava no Brejo uma massiva campanha salarial que
visava, também, à incorporação de dois hectares de terras para os (as) trabalhadores (as) da
região. No entanto, além das fortes raízes em defesa da terra, outro espaço em sua atuação
despertava a insatisfação das oligarquias rurais do Brejo paraibano, conforme discurso
proferido na frente do sindicato, em 06/05/1982:
recebemos ameaças dos poderosos latifundiários, todos os dias, e o
sindicato não pode ficar dividido, descobri que além da nossa
organização, a melhor arma que teremos é a luta por educação, muitos de
nós não lutamos por nossos direitos, porque acreditamos que o patrão tem
a razão. Eles falam e parece que a verdade está com eles, eles dizem que
sabem da lei, e isto basta para calarmos. Outro dia, quando o Sr. Manoel
pegou a dita lei que estava com o sobrinho do Dr. Agnaldo, lá dizia o
contrário, lá dizia que a terra era da família do sr. Manoel [....] Nós
queremos o que é nosso, queremos educação. (FERREIRA, 2006, p. 74).
Esta percepção de Margarida identifica-se com os princípios pedagógicos de uma
sociedade constituída a partir de sua história e realidade e demonstra todo o seu
compromisso assumido com a causa do movimento camponês e educativo durante o seu
trabalho e permanência no CENTRU.
Na sua atuação sindical, também participou da defesa de outros direitos
constitucionais, além dos já mencionados, e construiu, junto com outras companheiras,
reivindicações para as mulheres rurais, quando esta batalha ainda se iniciava no setor
urbano, por ocasião da sua defesa, no 2º Congresso da CONTAG, em prol da incorporação
da luta pelo salário maternidade.
Em Alagoa Grande-PB, a notícia foi recebida com deboches por aqueles que já
julgavam um absurdo a reivindicação da carteira assinada para os trabalhadores chefes de
família. De acordo com o informe apresentado por uma das diretoras do sindicato, os
proprietários de terra se expressaram da seguinte forma: “mulher agricultora tem que parir
dentro das canas, e os meninos, desde pequenos, devem saber que já nascem devendo o
comer que eles mesmos vão plantar” [fala registrada] 12.
Ao refletir sobre essa situação no sindicato, Margarida expressava que estava
convencida de que “se morre daquilo que se foge” e que a luta das mulheres também era
sua luta.
O que se escutava, em Alagoa Grande, traduz as várias nuances de opressões pelos
quais passavam as trabalhadoras rurais, carregando as marcas das escravas negras e
indígenas e vendo, diante de seus olhos, a exploração do trabalho infantil.
A influência da Igreja Católica no cotidiano e trajetória de vida e morte de
Margarida Alves teve um papel significativo tanto no que diz respeito à assessoria política,
12
Registrou-se na Ata do sindicato o informe de Maria da Penha Nascimento em 1976.
que era voltada para a maioria dos trabalhadores rurais dos sindicatos, inicialmente através
das CEBs e, posteriormente, através da CPT, considerados setores13 progressistas da Igreja,
influenciados pelas ações da teologia da libertação.
Por várias vezes, os padres que passaram pela Paróquia Católica da cidade de
Alagoa Grande – PB estiveram presentes na sede do sindicato e participaram de reuniões
com os/as camponeses, mas Margarida Alves levou a missa ao sindicato e demonstrou,
com essa prática, a idéia de espaços próximos e misturados, entre a fé e a política.
Quanto ao empenho determinante nas mobilizações que ocorreram após a sua
morte, vejamos um relato do bispo de Guarabira - PB, à época:
D. MARCELO: a indignação toma conta das populações.
o bispo de Guarabira, dom Marcelo Cavalheira, em entrevista por
telefone, mostrou-se, ontem, desejoso de “uma apuração rápida e honesta
do brutal assassinato de que foi vítima Margarida Maria Alves”. Disse d.
Marcelo que o sentimento de indignação toma conta das populações da
área. O assassinato, segundo ele, foi uma resposta violenta à ação em
favor da justiça e dos direitos dos pobres”. Contou d. Marcelo que
Margarida Maria costumava freqüentar muito a Diocese de Guarabira e
participar de encontros promovidos pela igreja na região...esperamos que
as autoridades, sobre as quais recai o encargo das investigações,
promovam a apuração rápida, eficaz e honesta dos fatos, para imediata
punição dos responsáveis por ato de tanta indignação e maldade –
concluiu dom Marcelo. (FERREIRA, 2006, p. 77). [Jornal O NORTE, João
Pessoa, 14 ago. 1983. Cidades, p.05].
Esta discussão sobre o comprometimento da Igreja Católica, em seu trabalho de
fazer viva a memória de Margarida Alves, requer algumas reflexões. Primeiro, a tonalidade
da forma bárbara de seu assassinato foi vista pelo conjunto dos agentes pastorais como um
forte atentado ao movimento mas, sobretudo, à vida humana. Tal defesa está
intrinsecamente ligada a um dos direitos humanos mais elementares da filosofia cristã, que
é o direito à vida e o repúdio aos atos de violência e assassinato.
Segundo, a discussão que outros sujeitos sociais realizavam quanto ao fato de
Margarida pertencer ao PDS, o partido que representava o interesse dos latifundiários, era
13
Esse setor considerado progressista da Igreja Católica passou a atuar na organização „Ação Popular (AP)‟
que disputava direção e formação política nos movimentos sociais, com outras organizações de esquerda de
perfil comunista (stalinista, maoísta ou trotskista), principalmente no setor jovem e sindical. Nos períodos
mais críticos da ditadura Militar, formaram-se alianças entre os adeptos da AP e setores comunistas, como
forma de unir forças contra a ofensiva da ditadura militar.
o que menos interessava à Igreja. Pois, de um lado, estava o PDS, partido reacionário e
compromissado com a ditadura militar, polarizando; de outro o PT, que era um partido que
estava nascendo e que trazia, em seu seio, uma série de princípios e um programa que iam
desde a luta por direitos trabalhistas até a proclamação do socialismo, o que era visto
ainda, por muitos setores da Igreja, em pleno contexto da guerra fria, como a ideologia que
mais ameaçava a fé cristã, por sua tonalidade materialista e agnóstica.
A luta contra a impunidade do crime de Margarida Maria Alves continua sendo um
dos símbolos da Igreja, dos movimentos sociais e dos Centros de Defesa dos Direitos
Humanos14, o que se estende ao movimento contra a impunidade de tantos outros crimes
que ocorrem no país.
1.2.1 Margarida no front do conflito político-sindical-partidário: problematizando a
TESE
A experiência política de Margarida Maria Alves pode ter sido contraditória ao
conviver com práticas sindicais que oscilavam entre o velho e o novo sindicalismo rural.
Vivenciou um período de transição disputado por forças hegemônicas contrárias, em vários
campos sociais, econômicos e culturais.
Disputas estas que estavam vinculadas a vários fatores: à relação capital versus
trabalho, representada pela dicotomia trabalhador/a rural versus latifundiário; às
concepções no campo partidário mundial, direita versus esquerda, especificamente, das
décadas de 1970-1980, período auge da Guerra Fria. E, finalmente, à transição política do
próprio Estado brasileiro, ditadura versus democratização.
Sendo assim, podemos percebê-la [Margarida Maria Alves], no centro dessas
disputas da seguinte forma: como uma expressão forte no movimento sindical que
combatia veemente as oligarquias e lutava por direitos trabalhistas da classe trabalhadora.
Inclusive, passando a refletir, teoricamente, a sua situação de exclusão social através da
14
O 1º Centro de Defesa dos Direitos Humanos construído na década de 1980, na Paraíba, teve à frente o
então advogado Wanderley Caixe. A participação ativa de religiosos, professores/as, estudantes e
sindicalistas, atualmente, está identificada como a Fundação Margarida Maria Alves. Esta entidade
acompanha o processo jurídico do crime de Margarida Alves, tendo como advogado principal o dr. Antônio
Barbosa, que também assessora juridicamente os sindicatos rurais do Estado.
Formação Política desenvolvida pelo CENTRU e SEDUP, tendo por base uma reflexão
pedagógica emancipatória. E, contraditoriamente, com inclinação para um campo político
conservador, quando já como liderança consolidada no meio rural, votou em parlamentares
que representavam os usineiros da região, o que necessita ser aprofundado para se analisar
se este fato representou um compromisso tácito15 ou aliancista16 com essa classe
oligárquica.
Trabalhamos com uma hipótese de que essa „formação pedagógica‟ desenvolvida
nas décadas de 1970-1980, pelos referidos centros, especialmente o CENTRU, pode ter
fortalecido um novo papel, para Margarida Alves, na representação social, o de
sindicalista autônoma.
Pretendemos, neste sentido, aprofundar análises sobre os métodos de formação
política do CENTRU que supostamente conduziam a auto-reflexões do/a camponês/a
partindo da própria experiência, o que teria levado Margarida Alves a compartilhar uma
consciência de classe camponesa na luta sindical.
Portanto, após algumas pistas investigativas recorrentes dos meus estudos
anteriores no mestrado, postulo algumas questões que norteiam novas inquietações: como
as experiências políticas da líder camponesa Margarida Maria Alves transitaram entre o
velho e os novos movimentos sociais? Como se constituiu a sua formação/educação
política no CENTRU? E qual a representação social da sua práxis militante após o seu
assassinato, junto aos movimentos sociais?
O meu objetivo central, portanto, busca analisar a sua formação educativa e
política, em sua trajetória nos movimentos sociais, de forma mais focalizada, no
movimento sindical rural. Sendo assim, defendo a TESE de que: Margarida Maria Alves
foi um personagem social em conflito com a transição do velho para o novo
sindicalismo rural.
15
Entendo como compromissos tácitos a representação de acordos políticos pontuais em correlações de
forças desiguais com um campo ideológico oposto – que normalmente ocorrem em conjunturas muito
específicas, mas não representam o abandono dos interesses ou dos projetos políticos de nenhum dos
envolvidos.
16
Destarte, compreendo os compromissos aliancistas dessa conjuntura como representações das relações
clientelistas entre latifundiários e setores do velho sindicalismo conhecidos como sindicalistas pelegos. O
peleguismo condiz à traição da classe [trabalhadora] que deveria estar sendo defendida, em seu projeto
emancipatório, nesse propósito, pelo direito à terra. Esses representantes „pelegos‟ propõem alianças como
propósito da troca de apoio político por favores ou prestígio, fornecidos pelos latifundiários.
Desenho da TESE
TESE
Margarida Maria Alves foi um
personagem social em conflito
com a transição do velho para
o novo sindicalismo rural.
ANTÍTESE
REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
CONFLITANTES:
Contradições na prática
política entre o velho e os
novos movimentos sociais.
SÍNTESE
NOVAS REPRESENTAÇÕES
SOCIAIS:
Aproximação efetiva dos
NMS, através de uma
consciência
autônoma
formada politicamente, em
práticas de Educação
Popular.
1.3 Caminhos Metodológicos de uma Pesquisa Histórica
Esta tese tem como percurso metodológico a pesquisa histórica. Entende-se a
história não como o estudo do passado, como “[...] um objeto morto, como uma ruína, nem
como uma autoridade, mas como uma experiência. Uma experiência aprendida [...]”.
(RODRIGUES, 1980, p. 212).
Compreendo, além disto que, por mais arrogante que seja o presente, é no próprio
que se ancoram as forças do passado, sem cujo conhecimento a concepção deste seria
incompleta. Para tanto, encontramos na História Social e na Nova História Cultural pilares
para essa apreensão.
Como não acredito na neutralidade científica, mas também não posso correr o risco
de distorcer as pistas deixadas pelas fontes e enquadrar o “objeto”, hegemonicamente,
nesse ou naquele referencial preestabelecido, ou seja, ou só a História Social, ou só a Nova
História Cultural, optei pelo diálogo possível, nessa construção teórica. Diálogo
metodológico, do mesmo modo, entre as fontes: bibliográficas; documentais e da história
oral.
Neste sentido, concordo com Nunes (1995), pesquisadora de história da educação,
que – numa abordagem sociocultural – estudou a escola pública na cidade do Rio de
Janeiro, no período de instalação e institucionalização da modernidade pedagógica no
Brasil. Ao refletir sobre a utilização exclusiva de alguma teoria específica para a
interpretação dos dados, assim se posicionou:
O exclusivismo pode ser identificado como uma centralização teórica
perniciosa que trata inadequadamente o setorial, à medida que o
transforma numa totalidade que ele não é. O uso exclusivista de qualquer
matriz teórica torna-se então um discurso que cala os outros e em seu alto
grau de generalidade não estabelece seus próprios domínios e limitações.
Esta atitude nada inocente corporifica um abuso de poder do pesquisador
que torna estreito e monolítico o seu discurso (NUNES, 1995, p. 57)
Através desta forma não–exclusivista de trabalhar a relação teoria e empiria,
defendida por Nunes, com a qual concordo, é que pretendo construir este trabalho sem, no
entanto, distanciar-me das mencionadas concepções históricas.
Os procedimentos metodológicos de coleta, organização e análise dos dados já
foram trabalhados, numa pista de mão dupla, ou seja, ao mesmo tempo em que coletei os
dados, selecionei, analisei e elaborei uma primeira versão de abordagem do objeto.
Para a realização deste estudo com aportes sócio-culturais, segundo Cardoso
(2005), necessitei adotar para a coleta dos dados os seguintes procedimentos básicos:
pesquisa bibliográfica, pesquisa documental e entrevistas.
Por meio da pesquisa bibliográfica busquei realizar uma revisão na literatura
existente sobre os aportes teóricos da história, no campo da História Social e da Nova
História Cultural, aprofundando então os entrelaces dessas correntes historiográficas e a
concepção de Experiência e Representação.
Destaco, na seqüência, outras categorias: práxis e ideologia. Sobre a práxis,
procurei captar as principais reflexões sobre a práxis presente dos movimentos sociais, que
são detentores de uma formação teórica voltada para estudos de cunho econômico e
cultural. E, também, de uma prática educativa ancorada na Educação Popular.
Na literatura da Educação Popular (EP) e dos Movimentos Sociais, detive-me sobre
o objeto da EP rumo à apreensão dos saberes experienciados de uma educação não-formal
e dos princípios de uma pedagogia da autonomia. E, dos referenciais atuais dos Novos
Movimentos Sociais (NMS), enfatizei, principalmente, o novo sindicalismo e o novo
movimento de mulheres, bebendo em literatura de cunho feminista e não feminista.
A pesquisa documental desenvolveu-se, num primeiro momento, junto a
documentos oficiais dos sindicatos rurais, da CPT e do MMT, como atas e panfletos desses
movimentos. Além disso, considerei, nessa análise, alguns apontamentos presentes em
materiais elaborados para a formação político-educativa dos sujeitos envolvidos nos Novos
Movimentos Sociais: um caderno de formação de lideranças sindicais – elaborado pelo
CENTRU.
O Caderno de formação sindical aborda conceitos sobre várias concepções de
sindicalismo rural, as limitações do mesmo no contexto do velho sindicalismo e o perfil do
que deveria ser o novo movimento sindical, suas lutas, direitos e conquistas. Igualmente,
como deveria se dar a formação autônoma dos sindicalistas e as relações entre estes e sua
base classista.
O parâmetro dessas escolhas documentais decorre das sugestões das próprias
militantes que expressaram: “(...) a nossa formação se dá na luta e nas reflexões (...); a
gente adota a cartilha do CENTRU, entre outras, como a da CUT e a do Movimento
Nacional das Mulheres Camponesas (MMC), que o MMT é filiado nele (sic)”. (E-4, em
fev/2007).
Além das fontes documentais foram realizadas entrevistas (ver História. Oral). A
apreciação dos dados foi ancorada na análise de conteúdo e revela a necessidade de um
diálogo constante com a triangulação das fontes: teoria e empiria. Vale salientar que essa
pesquisa decorre de um trabalho que se iniciou no mestrado e que, por isto, já existiam
algumas entrevistas (material de campo) coletadas e transcritas, aqui retomadas em uma
nova perspectiva de análise.
1.3.1 A História Oral: a opção da técnica
Em virtude de a pesquisa se dar sobre aportes do universo cultural, num passado
recente, adotou-se a técnica da história oral, no terceiro momento da pesquisa.
A história oral pode ser trabalhada como método e/ou como técnica. Aqui, a nossa
opção foi como técnica, porém sem deixar de vislumbrar-se com a riqueza que esse
trabalho teria tido se tivéssemos, de fato, o abordado segundo o método da História Oral, o
que não foi possível em virtude do tempo, pois compreendi que necessitaria de uma
dedicação exclusiva, para tal investigação.
A técnica, aqui trabalhada, não representou simplesmente uma etapa em si, mas o
percurso para a construção da narrativa: a preparação das entrevistas, o contato com os
sujeitos da pesquisa, a ficha de identificação, o momento da entrevista, o uso do gravador,
a carta de consentimento, o caderno de campo, a transcrição, a textualização e uso das
entrevistas.
Mesmo assim, é importante perceber que a história oral não se trata puramente de
métodos ou técnicas. “[...] a história oral permite a possibilidade de tornar a vivenciar as
experiências do outro/a, a que se tem acesso sabendo compreender as expressões de sua
vivência” (ALBERTI, 2004, p. 19).
Esta mesma autora coloca que reconhecer os paradigmas que estão na base do
sucesso da história oral não implica renunciar a sua capacidade de ampliar o conhecimento
sobre o passado.
Segundo Alberti, “a escolha dos entrevistados não deve ser predominantemente
orientada por critérios quantitativos, por uma preocupação com amostragens, e sim a partir
da posição do entrevistado no grupo, do significado de sua experiência” (2004a, p. 31).
Assim sendo, entrevistei o grupo destacado abaixo:
1) 05 camponesas – sendo 04 delas do Movimento de Mulheres do Brejo da
Paraíba e 01 do Movimento de Mulheres da CUT Nacional/CONTAG;
2) 04 ex-assessores do CENTRU, sendo que um deles também foi advogado no
caso de Margarida Alves, e todos possuíram experiência em Movimentos
Sociais, particularmente no movimento sindical, do meio rural e/ou urbano;
3) 02 atuais sindicalistas – um membro do Movimento de Luta por Moradia na
região de Alagoa Grande-PB. E, o outro, que preside a Central Única dos
Trabalhadores, na Paraíba.
Através de um diálogo mais cotidiano, selecionei, inicialmente, quatro camponesas,
que contribuiriam com essa investigação. Os critérios dessas escolhas tiveram a ver com a
aproximação das suas experiências e as de Margarida Maria Alves no campo do trabalho
rural e da prática sindical. Além disso, o fato de duas delas terem sido vítimas de
emboscadas patrocinadas por latifundiários, sofrido discriminação de gênero no espaço
sindical e familiar e terem estado, ainda, presentes nos cursos de formação política da
década de 1980, me propiciou um retrato de Margarida Alves e da conjuntura social da
época. Reportarei as camponesas do Movimento de Mulheres Trabalhadoras do Brejo com
as seguintes abreviações de entrevistados/as: (E–3); (E-4); (E-5) e (E-6).
Outras lideranças e assessores educacionais do movimento sindical rural foram
escolhidos/as pelo fato de terem exercido, simplesmente, militância político-educativa, nos
novos movimentos sociais, sem necessariamente manterem tantos laços de proximidade
com Margarida Alves, como as quatro primeiras.
E estarão denominados/as nas
abreviações: (E-1); (E-2); (E-7); (E-8); (E-9); (E-10) e (E-11).
Compreendo, deste modo, que a técnica da história oral pode auxiliar na
reconstituição das histórias de vida, bem como na história das experiências, em que
“pessoas ou grupos efetuaram suas experiências, incluindo situações de aprendizagens e
decisões estratégicas” (ALBERTI, 2004).
Tive o cuidado de elaborar um roteiro semi-estruturado para as entrevistas como um
todo, em especial nos momentos dos círculos de cultura, com as duas primeiras
entrevistadas escolhidas. (Ver Apêndices).
Elaborei uma ficha de identificação e uma carta de cessão. Na ficha de
identificação, constaram os seguintes itens: nome, endereço, tipo de profissão, religião,
idade, naturalidade, tipo de atividade militante: sindicatos, movimentos de mulheres, ou
outros; Tipos de cursos de formação-político-educativa, que participaram com detalhes
sobre os mesmos. Dados esses que não podem aqui serem revelados nominalmente por
questões éticas.
A carta de cessão foi organizada a partir de um texto escrito, o qual previu a
autorização das entrevistadas em ceder os direitos da entrevista para o uso da autora desta
tese, algo que, durante o mestrado não tinha efetuado, o que foi um descuido como
pesquisadora e revelou um excesso de confiança das camponesas, pelos nossos laços
militantes.
Vale salientar, porém, que, na dissertação, depois do mestrado, cada camponesa
entrevistada recebeu uma cópia completa do trabalho final, outra cópia foi destinada para o
Movimento de Mulheres Trabalhadoras do Brejo (MMT) e mais 100 publicações do livro,
quando a dissertação foi editada em 2006.
Assim, do mesmo modo, pretendemos proceder devolvendo esta tese ao movimento
das mulheres camponesas e à Central Única dos Trabalhadores. É que compreendo,
igualmente, que a história oral me permitiu realizar um quadro significativo de
representação da trajetória política de Margarida Maria Alves, em um período marcado por
transições importantes entre os velhos e os novos movimentos sociais.
Mas, somadas aos ricos depoimentos advindos da técnica da história oral, vieram as
fontes documentais jornalísticas, principalmente de três veículos informativos de nosso
Estado: Correio da Paraíba, O Norte e a União, que aí, sim, propiciaram uma visualização,
ainda mais detalhada, de algumas experiências políticas de Margarida Alves que, em meu
entendimento, contribuíram e muito para uma maior compreensão da conjuntura histórica e
para validar esta tese.
2 OS FUNDAMENTOS TEÓRICO-HISTÓRICOS DA PESQUISA
A minha clivagem no campo teórico-metodológico ancora-se na História Social e
na Nova História Cultural. Para tanto, dialogo sobre o contexto de cada corrente
historiográfica e suas interseções, ou melhor, expresso seus nexos e fios tecidos na escrita
da História17.
O início do século XX trouxe consigo momentos de muitas disputas por territórios
nas ciências sociais, na busca pela compreensão da sociedade e dos acontecimentos. No
campo historiográfico, essas disputas se deram entre a história e outras áreas, como a
geografia, a sociologia, a antropologia, a filosofia, a lingüística, a psicanálise, a economia,
entre outras do campo das ciências humanas.
E, concomitantemente, ocorreram disputas internas na própria essência da Clio 18,
que se prolongaram até os dias atuais. Foram divergências sobre o próprio sentido da
história. Qual a forma de escrita mais adequada para se escrever a história, narrada
(descrita) ou contextualizada? Quais os tipos de fontes mais pertinentes à reconstrução dos
fatos, só os grafados ou, também, a fonte oral? Quem faz a história: atores, sujeitos ou
expectadores dos/nos acontecimentos?
Outrossim, qual abrangência do tempo deveria ser mais aprofundada: o passado
longínquo ou o passado recente? Como deveria se entender o objeto estudado, pela análise
das estruturas ou pela conjuntura? Enfim, quais os limites da História? Uma coisa é
precisa, tudo isto foi posto em questão principalmente pelos próprios historiadores de
ofício.
E, no seio desse debate, vinha à tona novamente uma dúvida atroz: se existiria ou
não a história ou só várias versões da mesma. E, se fossem só versões, qual seria a
17
A palavra história etimologicamente tem suas raízes no oriente indo-europeu (povos jônios), possuindo a
raiz wid-weid, significando ver. Apreendida pela etimologia grega que associa na raiz wid-weid e seu étimo
id que também está em eidos e em Idea, ao ist. E, com o passar do tempo a raiz weid, ver, no sânscrito,
vettas, passou a significar testemunha. Por possuir relação com o verbo ver foi entendida pelos gregos como
sendo relato-testemunho. Le Goff localiza nessa concepção de visão como fonte essencial do conhecimento
a idéia de que histor, aquele que vê, é também aquele que sabe. Enfim, Historien, em grego antigo, é
procurar saber, informar-se. Historie significa, portanto, procurar, investigar. (FELIX, 1998, pp. 21-24).
18
Para os gregos Clio é a Deusa da História, filha de Zeus (o Deus dos deuses) com Mnemósine, a Deusa da
Memória. (idem, ibidem).
verdadeira? A oficial ou outras submersas, silenciadas? A dos vencedores ou a dos
vencidos?
Para Burke (1992), isto fez com que a História deixasse de ser compreendida como
ciência e passasse a ser encarada como política. Havia uma frase vitoriana de Sir John
Seeley, catedrático de história em Cambridge, que expressava bem isto: “História é a
política passada: política é a história presente”. (idem, ibidem, p. 10).
Não tenho a intenção de esgotar as abordagens teóricas sobre esses conflitos, mas
de apontar possibilidades de distinguir e entender este processo constituído de constante
diálogo e entrecruzamento de representações, tempos e espaços.
Ora, a História havia sido encarada, desde Heródoto19, no século V a.C., como
sendo uma narrativa dos fatos exaltando heróis e batalhas. Para tanto, os filósofos gregos
entenderam, em sua obra, e em outras similares, um sentido de „lógica progressiva‟, já que
a história havia se emancipado dos Mitos, constituindo-se em „narrativa histórica‟ diferente
de „narrativa literária‟ e, desde então, possuía objetividade dos fatos e tempo determinado.
Para Bittencourt (2004), tudo isto só foi colocado em xeque no século XX, porque o
tabuleiro do xadrez foi armado, ainda, no século XIX, com a disputa acirrada entre o
positivismo e o marxismo. Duas correntes historiográficas, presentes, até hoje, nas mesmas
discussões!
A história foi concebida como o conhecimento do passado dos homens e
por princípio, cabia aos historiadores, recolher, por intermédio de uma
variedade de documentos, os fatos mais importantes, ordená-los
cronologicamente e narrá-los. Essa tendência historiográfica constituída
no século XIX que está relacionada ao historiador prussiano Leopoldo
Von Ranke (1795-1886) possibilitou um caráter científico à história [...] e
os historiadores, impedidos de emitir qualquer juízo de valor, mantendose sempre uma atitude imparcial e neutra diante dos fatos, têm como
objetivo „mostrar o que realmente aconteceu‟ [...]; essa tendência passou
a ser denominada de historicismo, cuja metodologia foi conhecida como
positivismo, por basear-se nos princípios da objetividade e da
neutralidade no trabalho do historiador (BITTENCOURT, 2004, p. 140141),
19
Heródoto é considerado pela historiografia eurocêntrica como sendo o „Pai da História‟, a partir da
elaboração de sua obra: História, que narrou as guerras médicas, entre gregos e persas, além de relatar
costumes e tradições de vários povos do oriente e ocidente, por onde viajou, na época.
Assim, o historicismo concebeu o positivismo 20 na história. A narrativa foi
duramente criticada; porém até os dias atuais ainda está muito presente na pedagogia
escolar, que privilegia o Estado, os chefes militares, reis e elites. Ao tentar dar um status de
não ficção à história, a narrativa terminou constituindo uma „totalidade orgânica, com
princípio, meio e fim, um conjunto com tempo bem determinado dentro de uma ordenação
linear” (idem, ibidem, p. 143).
Não tardou para que a crítica ao determinismo histórico da narrativa eclodisse, no
final do século XIX. E esta foi fundamentada pelo pensamento marxista 21, proposto por
Karl Marx (1818-1883), economista e filósofo alemão, cuja episteme histórica tornarse-á
outro referencial marcante nas análises sociais.
A história marxista passou a certificar o valor científico da história, porém
vinculando-a a uma epistemologia dialética entre passado e futuro. Para os estudos das
sociedades humanas, o marxismo utilizou como conceitos fundamentais: o modo de
produção, a formação econômico-social e as classes sociais. O marxismo inaugurou a
História Econômica como contraponto à História Factual do historicismo; essas duas
visões de mundo articularam as peças do xadrez da história, no século XIX, cujo jogo
seguiu seu curso nos séculos XX e XXI.
As críticas às análises marxistas não tardaram, visto que, que inicialmente, se
propunham a investigar exclusivamente o estudo do tempo capitalista e a formação
econômica das sociedades, situando o indivíduo de acordo com o lugar ocupado por ele no
processo produtivo: burguesia ou proletariado.
20
O Positivismo surgiu como desenvolvimento sociológico do Iluminismo, da crise social e moral do fim da
Idade Média e do nascimento da sociedade industrial - processos que tiveram como grande marco a
Revolução Francesa (1789-1799). Augusto Comte (1798-1857) foi quem na primeira metade do século XIX
sistematizou o sentido do positivismo como método científico nas pesquisas das ciências sociais, adptando o
método de René Descartes (1596-1650), das ciências naturais, que estabelecia: a verificação, o
fracionamento, a quantificação e a elaboração de leis nas análises dos experimentos (BOTTOMORE, 1988).
21
O Marxismo é o conjunto de idéias filosóficas, econômicas, políticas e sociais elaboradas inicialmente
mente por Karl Marx e Friedrich Engels e desenvolvidas mais tarde por outros seguidores. Baseado na
concepção materialista e dialética da História, interpreta a vida social conforme a dinâmica da base produtiva
das sociedades e das lutas de classes daí conseqüentes. O marxismo compreende o homem como um ser
social, histórico (BOTTOMORE, 1988).
O Estruturalismo 22 se firmou reivindicando o direito de „filho rebelde do marxismo‟
e estabelecendo um modelo explicativo das estruturas, que produziam conceitos capazes de
explicar tudo em qualquer sociedade em diferentes épocas e espaços, e não apenas no
tempo do „capitalismo‟. Teve seu ponto de partida com os estudos de Ferdinand de
Saussure (1857-1913) para analisar a língua, acabando por fortalecer a lingüistica como
ciência. Claude Lévi-Strauss (1908- ??) a transformou em método para as análises
antropológicas e etnográficas; dentre seus estudos mais famosos estão as suas pesquisas
sobre mitos e graus de parentescos das famílas primitivas. Louis Althusser (1918-1990),
por sua vez, trabalhou o estruturalismo em pesquisas sociais diversas, principalmente as
relacionadas à educação. Outros nomes que defenderam o estruturalismo foram: Jacques
Lacan; Michael Foulcaut e Jacques Derrida.
Ocorreu, então, nas pesquisas estruturalistas, um deslocamento para a ênfase no
campo das „super-estruturas‟ da sociedade. Ou seja, voltaram-se aos objetos estudados
dando-lhes uma ênfase cultural, porém o fizeram distanciando-se tanto das análises
econômicas que passaram a receber inúmeras críticas científicas.
O que foi bem diferente do que fora colocado por outras correntes e pensadores
marxistas que, também, trabalharam com prismas culturais: a Escola de Frankfurt23 – com
as categorias „indústria cultural‟ e „cultura de massa‟ – ou, por Georg Lukács (1885-1971)
– com a categoria ideologia – e, principalmente, Antônio Gramsci (1891-1937), que
trabalhou com o aporte de uma nova concepção marxiana de Estado, de intelectuais
orgânicos e de hegemonia, mas sem distanciar-se do referencial econômico e das classes
sociais.
22
O Estruturalismo é uma abordagem que veio a se tornar método de análise nas ciências sociais. O
estruturalismo procura explorar as inter-relações (as "estruturas") através das quais o significado é produzido
dentro de uma cultura. De acordo com a teoria estrutural, os significados dentro de uma cultura são
produzidos e reproduzidos através de várias práticas, fenômenos e atividades que servem como sistemas de
significação (BOTTOMORE, 1988; WIKIPEDIA, 2008).
23
Escola de Frankfurt é o nome dado a um grupo de filósofos e cientistas sociais de tendências marxistas
que se encontram no final dos anos 1920. A Escola de Frankfurt se associa diretamente à chamada Teoria
Crítica da Sociedade. A primeira obra coletiva dos frankfurtianos são os Estudos sobre Autoridade e Família,
escritos em Paris, onde estes fazem um diagnóstico da estabilidade social e cultural das sociedades burguesas
contemporâneas. Alguns de seus representantes foram: Theodor Adorno; Max Horkheimer; Walter
Benjamin; Herbert Marcuse e Jürgen Habermas (BOTTOMORE, 1988; WIKIPÉDIA, 2008).
2.1 A História Social e a Nova História
2.1.1 A História Social: a experiência em foco
A História Social eclode com força total criticando o estruturalismo e novamente
recuperando do marxismo o sujeito histórico, procurando visualisá-lo ao tentar explicar os
confrontos entre os grupos sociais, na chamada luta de classes, só que não mais
enfatizando o homos economicus e, sim, o homos socialis.
O historiador inglês E. P. Thompson (1924-1993) lança crítica aberta ao modelo
estruturalista com o sugestivo título: Miséria da teoria ou um planetário de erros – uma
crítica ao pensamento de Althusser. Thompson marcou uma série de críticas ao
estruturalismo e passou a dar ênfase a conteúdos sociais, articulando o conceito de classe
social ao de cultura. A partir de então, a História Social surge como reelaboração da
história econômica marxista, trazendo à tona vários problemas sociais (BITTENCOURT,
2004).
Profundamente influenciada pelo marxismo gramsciano, a história social tem nos
historiadores ingleses os seus principais representantes: E. P Thompson, Eric Hobsbawm,
Christopher Hill, Rodney Hilton, Dona Torr, entre outros/as. Suas pesquisas foram
centradas, principalmente em: sindicalismo, partidos, movimentos sociais, mulheres,
escravidão, campesinato, crimes e movimentos transgressores da ordem [capitalista]
estabelecida.
Thompson, em sua clássica obra A formação da classe operária inglesa, nos
conduz à produção de métodos similares aos meus estudos. Nesta obra, ele retrata como
foco central o contexto de vida dos trabalhadores/as ingleses, suas mobilizações,
ansiedades, rituais e símbolos coletivos, em um ambiente oponente ao reconhecimento dos
seus paradigmas sociais e culturais fundados na tradição comunal da sociedade inglesa.
Nas próprias palavras de Thompson, ele explicita o que trata no primeiro volume da sua
obra, publicada em três volumes:
[...] na parte I, trato das tradições populares vigentes no século XVIII que
influenciaram a fundamental aceitação jacobina no ano de 1790. Na parte
II, passo das influências subjetivas para as objetivas - as experiências dos
grupos de trabalhadores durante a Revolução Industrial que me parecem
de especial relevância. [...] Na parte III, recolho a história do radicalismo
plebeu, levando-a, através do luddismo, até a época histórica no final das
Guerras Napoleônicas. Finalmente, discuto alguns aspectos da teoria e da
consciência de classe nos anos 1820 'e 1830 (THOMPSON, 1987, v. 1, p.
12).
Ele considera ainda não ter tido a pretensão de elaborar um estudo com narrativas
seqüenciadas, e sim, uma reflexão na abordagem da historiografia temática e dialética.
Thompson desenvolveu sua tese mostrando que o ponto principal para o entendimento do
processo de transformação dos trabalhadores em "classe" não foram as condições objetivas
externas ou estruturais do capitalismo industrial, mas a própria experiência e ação coletiva
dos grupos de trabalhadores, na chamada luta de classes.
Os trabalhadores, "em sua maioria vieram a sentir uma identidade de interesses
entre si e contra seus dirigentes e empregadores" (idem, ibidem, v. I, p. 12). Em suas
análises, Thompson destaca a experiencia histórica como um dado que deve ser cercado
pela memória dos sujeitos.
Pela experiência os homens [e mulheres] se tornam sujeitos,
experimentam situações e relações produtivas como necessidades e
interesses, como antagonismos. Eles tratam essa experiência em sua
consciência e cultura e não apenas a introjetam. Ela não tem um caráter
só acumulativo. Ela é fundamentalmente qualitativa. (THOMPSON,
1981, p.182 /grifo meu].
Para Gohn (2002), Thompson é fundamental para os estudos atuais de movimentos
sociais. Produzir sua (re) leitura desmistifica que a experiência histórica seja entendida
como um mero sinônimo de empirismo.
[...] Thompson retoma uma categoria básica de análise, nos marcos do
materialismo histórico, que é a da experiência histórica e cultural das
pessoas. Adotando uma postura teórico-metodológica nada ortodoxa, ele
se propõe a trabalhar com as experiências das pessoas não apenas como
simples atos de idéias mas também como sentimentos, valores,
consciência, enfim, experiências acumuladas que se sedimentaram.
(GOHN, 2002, p. 204).
Para Thompson (1987, p. 09), a categoria experiência resume-se em “um fenômeno
histórico, que ocorre tanto na matéria-prima do empirismo como na consciência”.
A reconstrução da experiência humana na história da classe trabalhadora tem, nos
aspectos do cotidiano, que não se dão nas instituições, campos férteis de lutas e
resistências. Thompson (1987), assim, entende o processo da experiência indissociado da
luta de classes, considerando que a luta surgiu antes da classe e foi a luta (a experiência)
que construiu a classe.
Nas concepções clássicas, a classe social é um bloco social que está posicionado
dentro da estrutura econômica ou da relação dos meios de produção. Os dois blocos que
medem forças sociais seriam, por um lado, os que detém os meios de produção e, por
outro, os que vendem a sua força de trabalho. Mas, o que seria a concepção de classe
social, para Thompson?
Thompson afirma que a classe é uma categoria histórica que descreve as
pessoas em termos de seu relacionamento ao longo do tempo, num ativo
processo de criação [...] é uma categoria heurística, não pode ser separada
da noção de luta de classes. (DESAN, 2006, p. 68-69)
Para Desan (2006, p.68), a relação de Thompson com o marxismo é bastante
complexa, porém direta: “ele foi membro do Partido Comunista Inglês até 1956, e um dos
principais editores da New Left Review [...] e vê as suas análises como um preenchimento
de alguns dos „silêncios‟ de Marx”.
Já Gohn, considera que a originalidade dos estudos de Thompson está no fato de ele
ter analisado a experiência como estatuto da práxis humana, na circularidade completa do
viés sócio-histórico-econômico-político-cultural:
Thompson trabalha questões tais como valores, cultura e teoria política de
forma crítica, desmistificando os argumentos que situam a experiência
como sinônimo de empirismo. Situa a experiência como estatuto da
práxis. Podemos observar em suas formulações que ele não só retoma o
caminho trilhado pelos historicistas e pelos téoricos da consciência, como
Lukács, mas bebeu em fontes da historiografia francesa do grupo dos
Annales24 (GOHN, 2000, p. 204).
A história social se propôs a apreender os mecanismos de resistênca à opressão, de
rebeldia da ordem dominante, caracterizando uma luta na contra-mão dos costumes e das
tradições. Os motins do século XVIII foram estudados sob o prisma da crise da
modernidade. Já os do século XIX evidenciaram as lutas populares que avançaram no
sentido de entender as contradições dos interesses econômicos das classes sociais. Na
atualidade, o legado de Thompson se reafirma pela validade de:
24
O grupo dos Annales está associado à corrente historiográfica da Nova História, que surgiu quase no
mesmo período e, aqui, será abordada no próximo sub-capítulo.
[...] observar o cotidiano das camadas populares, no sentido de apreender
como o vivenciaram. A situação de carência ganha relevância, não pela
objetividade da coisa em si, mas pela forma como as pessoas vivenciaram
as carências. Os sentimentos de injustiça e exclusão surgem desta
vivência e podem, em determinados contextos, expressar-se socialmente
como revolta. São momentos de ruptura da ordem na vida das pessoas e
não da ordem social mais ampla. Thompson retoma a idéia marxista da
classe como sujeito, da classe como categoria histórica, ampliando seu
significado, enquanto relação. Não há um projeto político previamente
demarcado, ele se costrói na práxis (GOHN, 2000, p. 205).
Essa essência marxista da práxis25, na perspectiva da História Social, ganha força
na era dos movimentos sociais dos séculos XX e XXI, que buscam incorporar às lutas por
direitos subjetivos uma consciência de classe. E que pretendem, nas lutas que esboçam um
viés puramente classista, fazer brotar
tonalidades subjetivistas presentes em nossa
sociedade.
É assim que entendo a pertinência do foco da História Social com a temática do
estudo aqui proposto sobre a trajetória política de Margarida Alves. Como ilustração,
localizo, no discurso abaixo, elementos que entrelaçam tal pertinência:
[...] Os trabalhadores rurais que eram filiados ao sindicato rural de
Alagoa Grande, ela dava uma atenção, ela reunia e conversava. E onde
havia uma violência, um tratamento desumano, em quase todos os
engenhos, a homens e mulheres ela ia com uma FORÇA. Ela não tinha
senso de proporção do risco. Ela não tinha medo e não tinha dimensão do
risco, que aquela luta cotidiana oferecia, para defender os trabalhadores
rurais; ela não tinha o medo de morrer, e é claro que ela recebia ameaças:
diretas, veladas ou através de recados, mas ela não tinha medo. E, ela foi
crescendo naquilo, no interior do trabalho do CENTRU que tinha voltado
para os canavieiros do brejo paraibano [...].
[...] É, Margarida brigava com unhas e dentes para que os trabalhadores
rurais que trabalhavam nos engenhos ou na usina, eles tivessem no
mínimo em torno dos seus casebres, eles tivessem 2 hectares de terra,
para a subsistência, o que era uma coisa. Essa briga pelos hectares de
terra era uma coisa impressionante, porque os engenhos aldeavam os
casebres, as casas de palha ou choupanas que tinham o chão de barro com
o plantio da cana-de-açúcar até o terreiro. A casa era cercada. Margarida
tinha aquilo como uma indignidade. (E-9 – Em 31/07/2009).
25
PRÁXIS: este termo vem da Antigüidade. Na obra de Marx ele está presente como elemento fundamental
de transformação da sociedade e da natureza pela ação da humanidade. Significa prática transformadora do
social, que se realiza em conexão com a atividade teórica, por meio da atividade política. (GOHN, 2000).
Confirma-se, em uma breve análise dos dois fragmentos da entrevista acima, que
encontramos uma „Margarida Alves‟ arraigada na circularidade do viés sócio-históricoeconômico-político e cultural, na medida em que, mesmo sem ter „senso de proporção do
risco que corria‟, ela passou a desenvolver outros sensos: senso crítico de justiça, para com o
próximo, senso organizacional da classe camponesa, senso de indignação com os
opressores e de aprendizagem no interior do seu trabalho sindical. Portanto, passou a ser
reconhecida como personagem social pela sua experiência política na história social do
movimento sindical paraibano, entre outros movimentos sociais.
2.1.2 A Nova História Cultural: a representação em foco
Tal circularidade que envolveu „Margarida‟, e que vai do econômico ao cultural
assenta-se, ainda, em fontes historiográficas da Nova História Cultural. A Nova História
Cultural é herdeira da História Nova que surgiu na França, na primeira metade do séc. XX,
fruto de uma série de novos olhares sobre os acontecimentos, sobre a própria ciência, sobre
as estruturas e as transformações da época.
Sua primeira expressão foi formulada por Berr, em 1930, mas foi a partir das
formulações de Le Goff (1988), segundo o próprio autor, que as discussões se
desenvolveram sobre as novas pesquisas, os novos problemas, as novas abordagens e as
novas fontes que a história nova ecoou na França e, juntamente com o movimento da
Escola dos Annales, impulsionou a aglutinação de todos os debates da ocasião.
A Escola dos Annales está diretamente ligada à revista dos Annales, intitulada em
sua fundação de Annales d’histoire économique et sociale (1929), que teve lançamento e
seu primeiro movimento com Marc Bloch e Lucien Febvre. Está dividida em três grandes
movimentos conhecidos como: 1ª (primeira), 2 ª (segunda) e 3ª (terceira) gerações dos
Annales. As duas primeiras gerações ficaram conhecidas como „História Nova‟ ou „Nova
História‟ e só a última geração, a 3ª (terceira), recebeu a denominação de Nova História
Cultural.
A primeira geração, representada por Bloch e Febvre, combinou a história com a
geografia, a economia e a sociologia para contrapor-se às tendências historicistas do século
XIX. Vivenciou a época entre as guerras mundiais (1ª e 2ª), gerando perseguições e
prisões. Suas militâncias políticas foram pontos importantes de suas reflexões, para
firmarem no cenário mundial a História Nova.
A segunda geração teve nos trabalhos desenvolvidos por Fernand Braudel seu
grande marco. A obra de Braudel produziu uma ampla análise sobre o Mediterrâneo
durante a era de Filipe II da Espanha. O seu método de análise foi desenvolvido em duas
formas: a história serial26 e a história das mentalidades27. Nesse período, nas décadas de
1960 e 1970, os Annales receberam outra denominação, a de Annales Économies Societés
Civilizations (1947).
A terceira geração dos Annales é conduzida por Jacques Le Goff e Michel Foucault,
ficando mais conhecida como a „Nova História Cultural‟, em que toda a atividade humana
é considerada história. Os trabalhos produzidos, de lá para cá, a partir dos anos 1970,
receberam
influências
e
influenciaram
várias
outras
correntes
historiográficas,
principalmente o Estruturalismo e a História Social.
Ela foi capaz de se desdobrar em várias novas abordagens: História Vista Pelos de
Baixo; História do Imaginário; História do Corpo; História do Além Mar; História das
Imagens; História da Leitura; História das Mulheres, entre tantas outras. Algumas dessas
pesquisas foram duramente criticadas por produzirem mais uma visão da „micro-história‟,
ou „História em migalhas‟ que fica „presa‟ ou só ao passado, ou só ao presente, esta última
caindo na esfera da sociologia, em vez de promover uma síntese dialética entre passado e
presente.
A História Nova, todavia, tem seu mérito reconhecido na atualidade nas ciências
humanas como movimento teórico historiográfico. Desde o seu primeiro momento, buscou
romper com a tradição da história vista pelos de cima, quando o historicismo ainda
prevalecia contando a visão dos vencedores, dos generais e de heróis. Desta forma, refletiu
26
O método de análise da história serial associado à História Econômica incorpora análises quantificáveis,
com variáveis do tipo: percentuais, índices de inflação, volume de exportação e importação, taxa de juros etc.
(CARDOSO, 2005).
27
A história das mentalidades constituiu-se em abordagem teórica e metodológica. Está próxima da
psicologia social e da antropologia, incorporando a psicanálise e a etnografia como métodos para apreender
de uma dada sociedade analisada seus medos, comportamentos, costumes, crenças etc. (CARDOSO, 2005).
uma história que não fosse só a factual28, bem como desenvolveu outras abordagens que
não fossem perceber as transformações apenas pelo foco econômico e/ou político.
Conforme explicita Burke (1992, p. 23) “a história tradicional marginalizou muitos
aspectos das atividades humanas, pois para a nova história, toda a atividade humana é
portadora de uma história; é desta idéia que a Escola dos Annales atribui a expressão
história total”. É, também, daí, que a representação se firma como categoria de estudo
cultural.
No campo da produção da nova história cultural, tanto em apanhados teóricos
quanto metodológicos, as realizações de biografias de mulheres e sobre grupos coletivos
possibilitam desvelar a história dos excluídos e dos de baixo, o que representa,
simultaneamente, um novo campo de investigação e uma renovação em nível de
problemática.
A terceira geração dos Annales , a da História Cultural, é a que prima mais pela
história temática, adotando, como novas fontes, as análises de práticas de leituras, práticas
de escritas, análises de discursos, além de perceber a fotografia como expressiva fonte
documental.
Uma importante percepção foi a de Michele Perrot, que faz parte dessa terceira
geração, e elaborou suas investigações na perspectiva da „história dos excluídos‟, ou „vista
pelos de baixo‟, que foi inaugurada por Guy Bois. Perrot (2001) colocou em suas análises
as relações de poder e história considerando algumas práticas culturais de mulheres e as
suas possibilidades de emancipação. Ela cita o resultado de duas pesquisas efetuadas em
comunidades rurais no nordeste da França do século XIX.
Na primeira pesquisa, as mulheres desenvolvem suas táticas de sobrevivência
através do poder informal. De fato, controlam recursos e decisões no espaço familiar, mas
não se encarna a mulher com autonomia e com vida pública que possibilite o seu destaque
nas atuações políticas e sociais.
Na segunda investigação, as mulheres têm regras diferentes de herança. Também
não ocorre comunicação entre elas, diminuindo, assim, até mesmo os ditos poderes
informais. A conclusão da autora é a de que não existe modelo único para todas as
28
Na primeira e segunda Geração dos Annales se combate explicitamente a história factual, mas já na terceira
geração há um retorno, porém percebendo-a como um acontecimento contextual envolvendo vários aspectos
interligados, como a sociedade, a economia e a cultura, entre outros.
necessidades das mulheres na sociedade rural e que a autonomia dessas mulheres depende
de ações, individuais e coletivas, para uma completa emancipação.
Esse estudo provocou amplos debates, pois a autora concluía apontando que esses
sujeitos, mulheres rurais da França, ao mesmo tempo em que possuíam a condição de
excluídas, também podiam ser encaradas como construtoras de uma nova representação
social.
As mulheres que ousaram uma nova rebeldia, um novo espaço, uma nova história,
propagaram as suas experiências que se constituíram em fonte de aprendizagem e
esperança de sociedades mais igualitárias. A perspectiva de registrar a história de vida de
uma mulher que atuou na luta pela terra nos remete, portanto, ao propósito da história das
(os) excluídas (os), ou da história vista pelos de baixo. Trazer à tona a história política de
Margarida Maria Alves é fazer o percurso „oficial‟ inverso, de baixo para cima, e não de
cima para baixo!
Esta perspectiva da „historia de baixo para cima‟ traz nuances essenciais de uma
história nova que contribuiu para a percepção de uma história transformadora, não apenas
das estruturas, mas, essencialmente, do cotidiano, através da experiência dos seus sujeitos e
de outras formas de representação social.
Para Chartier (1990), a história cultural tem por principal foco identificar o modo
como em diferentes espaços e temporalidades uma determinada realidade social é
„construída, pensada, dada a ler‟, e, principalmente, como pode ser representada. Uma
tarefa desse tipo supõe vários caminhos, a apreensão que se busca é a síntese entre o
mundo apresentado, dito mundo real e o não-dito ou silenciado do mundo social. Assim:
as lutas de representações têm tanta importância como as lutas
econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo
impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que
são os seus, e o domínio. Ocupar-se dos conflitos de classificações ou de
delimitações não é, portanto, afastar-se do social – como julgou durante
muito tempo uma história de vistas demasiado curtas -, muito pelo
contrário, consiste em localizar os pontos de afrontamento tanto mais
decisivos quanto menos imediatamente materiais. (CHARTIER, 1990, p.
17).
Para remeter-se ao entendimento dos princípios da representação, Chartier
observou duas razões, a representação como um dado a ver uma coisa ausente, „o que
supõe uma distinção radical entre o que representa e o que é representado‟. E, numa
segunda ordem, seria entender a representação como exibição de uma presença, como
„apresentação pública de algo ou de alguém‟.
Chartier considera, ainda que, a partir dos trabalhos do sociólogo Pierre Bourdieu, a
história cultural descobriu a sua âncora em termos de categoria teórico-metodológica para
não cair no poço ahistórico do estruturalismo, e atualmente, tanto a sociologia e a
antropologia quanto a história têm optado pela busca da representação dos seus objectos.
É necessário retomar, portanto, que Bourdieu comprende a representação como um
símbolo ou signo, onde o dado imaterial passa a fazer parte do dado material; ou seja, a
subjetividade torna-se inseparável da compreensão histórica dos fatos. Tomar um conceito
de representação em sua relação histórica e simbólica para os grupos que a disputam
significa que “a relação de representação – entendida como relacionamento de uma
imagem presente e de um objecto ausente, valendo aquela por este, por lhe estar conforme
– modela toda a teoria do signo” (CHARTIER,1990, p.21). Por último, na percepção de
Chartier pode-se distinguir a „representação‟ do „representado‟ e o signo do significado, ou
não, dependendo das pluralidades (compreensões ou incompreensões) propostas nas
imagens, textos e discursos, do dito mundo social.
A abordagem da Nova História Cultural condiz com esse diálogo entre a
experiência e a representação social. Vejamos o que afirma Fonseca:
[...] a História Cultural apresenta-se como um campo historiográfico
caracterizado por princípios de investigação herdados das propostas
inauguradas com o movimento dos Annales e dotado de pressupostos
teórico-metodológicos que lhe são próprios (mesmo que alguns deles
tenham se originado em outros campos do conhecimento, como a
antropologia ou a lingüística). Por isso, a História Cultural é reconhecida
pela utilização de determinados conceitos, como o de representação –
visto como central para este campo – e do imaginário, e por uma relação
específica com a temporalidade, não mais vista linearmente (como na
história tradicional) e nem apenas na longa duração (traço da influência
estruturalista). (FONSECA, 2003, p.56).
O sentido de representação das premissas teórico-ideológicas desta TESE bebe nas
fontes da História Social e da História Cultural e me conduz a analisar com mais
propriedade a problemática aqui colocada, sobre os conflitos sociais presentes nos
movimentos sociais.
Entendo ainda que a presente pesquisa requer, nesse estudo sócio-histórico do
presente, uma preocupação com a concepção de cultura e de ideologia, que foram
refletidas por Gramsci, com bastante propriedade. Para Gramsci, essa triologia, Cultura,
Ideologia e Dialética residem em um sentido da própria dialética:
A função e o significado da dialética só podem ser concebidos em toda a
sua fundamentalidade se a filosofia da práxis for concebida como uma
filosofia integral e original, que inicia uma nova fase na história e no
desenvolvimento mundial do pensamento, na medida em que supera (e,
superando, inclui em si os seus elementos vitais) tanto do idealismo,
quanto do materialismo tradicional, expressão da velha sociedade.
(BOBBIO, 1999, p. 29).
Não é por acaso, que existe na tessitura dos estudos da história social e cultural essa
linha gramsciana, que propõe um significado dialético. Esse „significado‟ dialoga com
uma filosofia da práxis e com a história. Mas, de qual concepção de história estamos
falando? Da história que abarca distintas representações sociais de uma dada realidade,
contida na subjetividade da hegemonia e da contra-hegemonia social.
A linha gramsciana incita, mesmo, novas análises historiográficas, para um
sentido educativo das próprias lutas emancipatórias. Daí que esse conjunto de experiências
da trajetória política de Margarida Maria Alves configura um importante período histórico
como algo possível de ser apreendido, registrando as marcas de uma história social e
cultural.
Pretendo, portanto, entender a trajetória política de Margarida Maria Alves, através
de discursos presentes em documentos, jornais e falas de sujeitos que conviveram com
Margarida Maria Alves. As falas e os textos nos mostram a representação de Margarida
Alves como alguém presente nos movimentos sociais, até mesmo, simbolicamente, após o
seu assassinato. E, em outros momentos, demonstra
conflitos e contradições de sua
postura político-sindical-partidária, nessa trajetória política.
Essa simbologia das suas práticas políticas, para os agentes pastorais e
movimentos sociais, principalmente o camponês e o de mulheres, está carregada de signos
e de práticas educativas, que vão sendo resenhadas na memória coletiva como ações
voltadas para a concepção de um sindicalismo de luta, necessário à disputa de hegemonia
na luta de classes sociais.
2.2 A Educação Popular (EP): o diálogo entre a experiência e a práxis
A disputa de hegemonia na luta de classes sociais está intimamente ligada à
Educação. Que, como todo Direito Humano, foi fruto de conquistas históricas resultantes
de conflitos, lutas, processos societários formais e não-formais, que se configuraram em
distintos projetos sociais.
É nessa perspectiva que entendo a Educação Popular e os saberes constituídos pelos
sujeitos sócio-históricos que nela vêm se afirmando. Para tanto, indago: como foi
constituída a Educação Popular (EP) na sociedade civil? E como os movimentos sociais,
incorporaram essa práxis?
A EP foi sendo construída a partir da leitura do mundo, nos dizeres de Freire
(1992). São os sujeitos que sofreram discriminação, que foram oprimidos, que
protagonizaram a defesa de educação e cultura popular. Para Freire (1980), o ser humano
não nasce sujeito, e sim, torna-se sujeito histórico, a partir do momento em que começa a
realizar reflexões e ações sobre seu ambiente concreto.
Freire (1980) nos conduz a refletir sobre as práticas educativas entendidas como
práticas educativas populares, em uma visão de classe social. Mas, mesmo antes do
aparecimento da propriedade privada e da chamada divisão social de classes, ocorreu a
divisão social do saber. E esta condição é a essência do movimento histórico que separou a
educação, adjetivando-a em „popular‟ versus „erudita‟.
Ora, o saber foi historicamente se constituindo através de falas, de símbolos, de
códigos etc. A luta pela sobrevivência e o locus da convivência em grupos abrigaram o
espaço das relações que produziram saberes. Neste sentido, o significado de „aprender‟
tornou-se a realização de cada experiência humana, que simbolizou um rito de passagem
humano da natureza à cultura. Segundo Brandão,
em algumas tribos, com pequenas diferenças, todos sabiam tudo e
entre si se ensinavam e aprendiam, seja na rotina do trabalho, seja
durante rituais sagrados, os homens falavam aos deuses, para, na
verdade, ensinar a si próprios. Esta foi a primeira experiência de
Educação Popular (BRANDÃO, 2006, p.24).
Do mesmo modo, as aldeias e grupos tribais foram constituindo categorias
específicas de sujeitos sociais (magos, feiticeiros, artistas, artesãos) que foram se
separando do repertório comum do conhecimento. Esta reelaboração, com a qual os
sujeitos foram se especializando, a partir das diferentes ocupações no mundo do trabalho,
criou determinados saberes que se constituíram em „privilégios‟ e passaram a ser ensinados
como um „segredo‟.
Ainda conforme os estudos de Brandão (2006) sobre a divisão social do saber é
preciso entender que não existiu primeiro um saber científico, tecnológico, artístico ou
religioso „sábio e erudito‟ que, após levado a escravos, servos, camponeses e pequenos
artesãos, tornou-se empobrecido, por se tornar um saber do povo.
Houve primeiro um saber de todos que, separado e interdito, tornou-se „sábio e
erudito‟. O saber legítimo que pronuncia a verdade e que, por oposição ao „erudito‟
estabeleceu-se como popular, ou seja, o saber do consenso, de onde se originou, ficou
disperso.
A diferença entre o saber popular e erudito não está em graus de qualidade, está no
fato de que o „erudito‟ tornou-se centralizado e legítimo de um conhecimento a diferentes
instâncias de poder, enquanto o popular restou difuso, não centralizado em uma agência de
especialistas.
Com a convivência de pendências entre o saber popular e o saber erudito, a
sociedade passa a cobrar uma legitimação do ensino dos saberes à instância centralizadora
destes, que nada mais é do que o Estado. Mas, o que vem a ser o Estado?
Para Gramsci (1999), o Estado consiste na representação do poder formal, e
reivindica para si, o status de produto final da razão; este se coloca a serviço da
„Conservação-Regulação‟ da sociedade como um todo.
Desde suas análises iniciais sobre o Estado que Gramsci percebeu em vários
teóricos (Hobbes, Rousseau, Kant, Hegel e Marx), que este foi adquirindo uma
complexidade de funções: administrativas, econômicas, jurídicas, políticas, militares etc.
E, que, portanto, foi transformado em um „super-regulador‟ das normas sociais.
E a sociedade civil? Para Gramsci, a sociedade civil não está no campo da
estrutura, mas na esfera das super-estruturas. A sociedade civil seria um conjunto de
organismos vivos e envolvidos por relações desenvolvidas pelos aparelhos ideológicos e
culturais, que formam o todo do Estado. Hegel já havia afirmado que a sociedade civil,
nada mais era do que „a porção ética do Estado‟ sendo, então, o Estado uma estrutura de
caráter ético duvidoso, na sua complexidade (BOBBIO, 1999).
Contudo, a distinção crucial entre o Estado e a sociedade civil, para Bobbio (1999)
está no âmago das seguintes dicotomias: força e consenso; instituições e ideologias;
estrutura e super-estrutura, sendo o Estado o primeiro móvel dessas dicotomias e, a
sociedade civil, a segunda.
Destarte, o Estado gera como resultado de seu funcionamento a produção de
políticas públicas condicionadas à política constitucional, enquanto que a sociedade civil
reivindica participar, „ser ouvida‟, intervir nas formulações dessas práticas, ou mesmo,
questionar o sistema de governo que não esteja efetivando a política necessária à
manutenção de garantias de sobrevivência, como: saúde, educação, trabalho, moradia etc.
Anseia-se, do mesmo modo, no campo da educação, partilhar do saber acumulado
pela humanidade, como forma de viver plenamente um estado de democracia, almejando o
lugar coletivo da participação política, na elaboração das normas da vida coletiva. Daí, a
busca de setores organizados da sociedade civil por seus direitos os colocou diante de uma
forma alternativa de cobrá-los do Estado.
O historiador inglês Erick Hobsbawm (1986) defende a tese de que os „Direitos‟
não existem no campo do abstrato, visto que eles só se concretizam quando as pessoas os
exigem, ou quando se possa supor que elas estão conscientes da sua falta.
Na sociedade brasileira, o campo das políticas públicas na educação foi
historicamente marcado por um modelo de „Cidadania regulada‟, como assinalava José
Murilo de Carvalho (2003), ao entender que o direito de reivindicar direitos foi duramente
reprimido no Brasil, em quase todos os momentos decisivos.
E foi na busca por direitos que a sociedade civil constituiu suas experiências de
Educação Popular (EP), que se desenvolveram com os nomes de: educação de base,
educação libertadora, educação popular.
Esta educação surgiu no meio de grupos e movimentos da sociedade civil, ligada a
setores estudantis, religiosos, setores de governos municipais, estaduais ou da federação,
como movimentos de educadores, que trouxeram teorias e práticas militantes, da cultura
popular, dos centros populares de cultura, de campanhas que surgiram em períodos de
governos populistas.
Foi encampada por uma classe intelectualizada, religiosa e partidária militante, que
tinha em comum estender o saber „erudito‟ de „volta‟, a quem dele havia saído, „o povo‟,
que também era capaz de ensinar, aos educadores, com suas experiências de vida e de
cultura.
No final da década de 1950, em um contexto de acirramento das contradições
sociais em presença, o diagnóstico da educação brasileira era péssimo, um país de
analfabetos! No entanto, a Pedagogia Libertária de Paulo Freire eclode! Numa ótica clara
de propor um projeto alternativo de educação a toda a sociedade.
Segundo Danilo Streck (2006), a educação popular trouxe à tona um axioma para a
gestão da educação, no mundo, „a de que a educação sozinha não transforma o mundo, mas
que sem ela, também, não haverá transformação‟.
A educação popular surgiu à margem da sociedade. E, muitas vezes, abertamente
contrária à educação formal, que consistia em processos opressores que servem muito mais
à exclusão do que à inclusão social.
As lutas pela educação laica e pública passariam a caminhar de mãos dadas com a
educação popular, a partir da “pedagogia libertária” de Freire. É quando fica nítida a
relação entre as relações conflituosas do Estado com a sociedade civil, em que interessa a
apenas alguns setores desta última um projeto de educação das classes populares.
Propondo-se a expandir um método revolucionário, que alfabetizava em 40 horas e
em que os cidadãos pudessem aprender a ler a escrita e „ler o mundo‟, a partir de
conhecimentos prévios e experiências culturais do mundo do trabalho, o método de Freire
ganhou vários adeptos em todo o mundo. No Brasil foi desenvolvido o Movimento de
Educação de Base (MEB).
Com o golpe militar de 1964, foi interrompido o processo de implantação da
Pedagogia Libertária, em curso pelo governo de João Goulart (Jango), e setores estudantis
e religiosos da sociedade civil. Por outro lado, foi a partir das pressões populares da
sociedade civil que a ditadura militar foi perdendo forças e o processo de abertura política
tornou-se inevitável.
A década de 1980 foi considerada por vários teóricos economistas como sendo uma
„década perdida‟, do ponto de vista da estagnação financeira do desenvolvimento. Mas foi
percebida por outros teóricos, no campo da Sociologia, da História e da Pedagogia, como
sendo a década que forjou, na luta por direitos civis, os novos sujeitos históricos que
passariam a formar os chamados „novos movimentos sociais‟.
Para Gohn (2002), os novos movimentos sociais constituem uma eclosão de
movimentos específicos da sociedade civil, cobrando políticas e/ou questionando o
esgotamento do modelo excludente do sistema capitalista.
São exemplos desses movimentos: o movimento de mulheres; de luta por moradia;
dos ambientalistas; o movimento negro; dos homossexuais, de um novo tipo de
sindicalismo, que não está atrelado ao governo, como no período Getulista, e do
Movimento dos Sem Terra, que se formou um pouco mais tarde, na década de 1990, entre
tantos outros. Esses movimentos desenvolveram uma pedagogia popular, baseada na
Educação Popular que, até então, estava associada apenas à educação de jovens e adultos.
Melo Neto (1999, p. 55), em seus estudos, disse que a Educação Popular consiste
em:
[...] um sistema aberto de trabalho educativo, que é depositário de
uma filosofia – expressão da atividade humana sobre as práticas
educativas em desenvolvimento, defrontando-se com a totalidade
do real.
Esse sistema de trabalho ao qual se refere o autor encaminha a um campo
específico onde o simbólico e o cultural constituem a EP. E “através do simbólico os
grupos constroem suas identidades” (idem, ibidem, p.52 ).
Construir identidade ou buscar sua identidade na educação popular é uma forma de
educação que, presente nos diversos grupos e nos diversos âmbitos de organização social,
constitui-se como célula geradora da ação do homem na busca permanente por espaços e
reconhecimento de si como sujeito social.
Torna-se importante, portanto, perceber na compreensão de Sales (1999, p.122),
que a Educação Popular não é algo restrito a um grupo social:
a educação popular não é um programa, nem uma entidade. É um modo e
uma perspectiva de atuar em todas as práticas econômicas, políticas e
culturais. Por isso parece impossível fazer uma apologia das milhões de
práticas diferentes, diferenciadas e mutáveis que acontecem no mundo.
Essa reflexão permite-nos perceber a abrangência e os diversos caminhos que a EP
percorre. A discussão sobre a “crise de paradigmas” e prática educativa recaiu e recai
constantemente sobre o „sujeito‟. Reforça a necessidade de construção de um projeto
participativo emancipatório, fundamentado em objetivos de classes subalternas, que
revelam o nível de envolvimento de suas formas de organização, como estratégias que
permitam aos indivíduos desenvolver um pensamento crítico.
Como observa Gadotti (1998, p.01) “a educação popular como prática e como
teoria pedagógica pode ser encontrada em todos os continentes, manifestada em
concepções e práticas muito diferentes e até antagônicas”. Deve primar pelos ideais e as
concepções que definam a ação nas distintas dimensões e níveis do processo de
organização popular, em suas relações políticas, ideológicas e culturais.
A versatilidade da EP como prática e sua interiorização como processo apresentase, como observa Melo Neto (1999, p.53) “como um conjunto de elementos teóricos que
fundamentam as ações educativas relacionadas entre si e ordenadas segundo princípios e
experiências”. Sua força como processo teórico que fundamenta as ações reside na sua
penetração, permitindo que em diversos lugares ela exista. De acordo com Calado (1996,
p.02):
antes ou mais do que uma modalidade de educação a EP se apresenta
como uma perspectiva, uma metodologia, uma ferramenta de apreensão,
compreensão, interpretação propositiva, de produção e reinvenção de
novas relações sociais e humanas.
Assim, não importa onde se dá a Educação Popular porque ela se faz onde
estiverem atuando protagonistas de uma ação educativa comprometida e engajada em uma
caminhada coletiva, numa comunidade, com características específicas.
Desta forma, as necessidades e revoltas produzidas pelas desigualdades nas
relações sociais geram um conjunto de práticas a partir dos procedimentos dos indivíduos.
Quando os grupos não encontram meios para se organizarem e lutar em âmbito geral, eles
partem para o específico e na busca de um espaço próprio, valorizando uma reivindicação
específica, ou como diria Foucault, disputando o micro-poder.
Como forma de mobilização, a Educação Popular coloca-se como meio estratégico
para a consolidação da organização daqueles que se articulam no sentido de atingir seus
objetivos. Essas estratégias educativas são fundamentais para garantir a coerência entre
projeto político, processos organizativos e suas diferentes formas.
À medida em que as classes compreendidas como populares se mobilizam, elas
conseguem estabelecer um projeto sobre as aspirações e necessidades que lhes digam
respeito; na maioria dos casos, para então transformá-las em bandeiras de luta. Isto porque
a EP permite que os grupos envolvidos incorporem as aspirações mais significativas como
base de seu projeto, visando despertar nos indivíduos um conhecimento das suas condições
de vida, em especial, a partir da valorização da experiência: experiência de saberes. É isto
que configura a essência da EP.
Para Sales (1999), a Educação Popular é a história do sujeito que busca a afirmação
de sua identidade e que luta pela sua organização: afirmações de identidade de classe, de
gênero, etnia, ambientalistas etc. É dessa perspectiva que a Pedagogia percorreu um
desafio, a partir de ideais libertários e almeja chegar a resultados que garantam a
autonomia do sujeito.
Vejamos o que diz Cambi (1999), sobre o nascimento da Pedagogia e sua ponte
com o viés humanista e/ou social, que fundamentou a EP:
com a modernidade nasce a pedagogia como ciência: como saber da
formação humana que tende a controlar racionalmente as complexas (e
inúmeras) variáveis que ativam esse processo. Mas nasce também uma
pedagogia social que se reconhece como parte orgânica da sociedade em
seu conjunto, na qual ela desempenha uma função insubstituível e cada
vez mais central: formar o homem-cidadão e formar o produtor, chegando
depois, pouco a pouco, até o dirigente. Como também nasce uma
pedagogia antropológico-utópica que tende a desafiar a existente e a
colocar tal desafio como o verdadeiro sentido do pensar e fazer pedagogia
(como faz Comenius, como faz Rousseau) (CAMBI, 1999, p.199).
E porque não dizer, como fez, também, Paulo Freire, com a redefinição da
Educação emancipatória, em seu fazer Popular. Mas não basta parafrasear Cambi e dar um
salto histórico para unir ideais pedagógicos de libertação. É preciso entender que, dentro
das chamadas questões emergentes da educação, em especial da Educação Popular,
também se encontram elementos da “crise de paradigmas”. Segundo Freire (1980, p.39):
para o homem, o mundo é uma realidade objetiva, independente dele,
possível de ser conhecida. É fundamental, contudo, partirmos de que o
homem, ser de relações e não só de contatos, não apenas está no mundo,
mas com o mundo. Está com o mundo resulta de sua abertura à realidade,
que o faz ser o ente de relações que é.
A partir dessa afirmação já confrontamos que a visão de mundo em Freire pode ir
além da perspectiva conduzida pela razão instrumental, em que o homem, ou a ação
humana, são concebidos como parte da realidade objetiva e não como um ser de relações e
não só de contatos que conduz e não apenas está no mundo, mas está com o mundo.
Para Paulo Freire, em Pedagogia da Autonomia (2008), toda a lógica de opressão
caracteriza uma relação de exclusão do sujeito oprimido. Toda opressão é uma atitude de
violência, que pode ser física ou psicológica, provocando medos, baixa auto-estima, ou até
assassinatos e suicídios. Por outro lado, pode ser gerada uma reação de contra-ponto à
situação “opressora”,
desde que o sujeito oprimido seja capaz de “sentir-se
suficientemente fortalecido” para revidar e se libertar dessa situação. Essas características
de opressão podem ser de ordem individual e coletiva e, ainda, se apresentarem em caráter
de classe, gênero, intolerância religiosa, étnica etc.
Também nesse debate, Freire (1996) coloca que a Pedagogia da Autonomia não se
dá sem uma ação/ práxis, sem a crítica e autocrítica e, ao mesmo tempo, sem uma
educação como prática de liberdade, que supõe uma permanente ação cultural que é
sempre dialógica. Aí está uma outra discussão que foi refletida da seguinte forma:
a questão da coerência entre a opção proclamada e a prática é uma das
exigências que educadores críticos se fazem a si mesmos. É que sabem
muito bem que não é o discurso o que ajuíza a prática, mas a prática que
ajuíza o discurso (FREIRE, 1996, p.05).
Também é essa prática que orienta a formação que deve ser a partir de uma
omnilateralidade, ou seja, de uma formação voltada para uma apreensão total do ser
humano, de ordem racional e subjetiva. É necessário estabelecer o que é o saber e
posteriormente, descobri-lo através do auto-conhecimento e das relações de trocas de
experiências.
A autonomia vai dialogar diretamente com a auto-estima e, ao mesmo tempo, com
a práxis da superação da transformação da história como possibilidade. O próximo passo é
saber que sabe, e depois exercitar o saber fazer e o saber fazer, fazendo. A História, como
Possibilidade, nos remete a entender que cada povo tem sua história, que cada ser tem,
igualmente, uma história e que ela pode abrir os caminhos das transformações,
transformações estas na esfera da emancipação.
Podemos afirmar que a maior organização que congrega sujeitos que
experienciaram práticas de uma educação popular vem se reunindo no Fórum Social
Mundial (FSM) para contestar o modelo de economia global excludente e, também,
socializar saberes/experiências. Este Fórum já foi realizado nas cidades do Rio Grande do
Sul e do Pará, ocorrendo paralelamente ao encontro dos representantes dos países mais
ricos do mundo, que acontece todo ano em Davos/Suíça.
O FSM não reivindica um novo formato de „ser‟ dos movimentos sociais na
sociedade civil organizada, mas vem demonstrando outra lógica de experiência social,
respaldando-se em fontes da Educação Popular. Para tanto, propõe-se a novas experiências
de educação, como: a escola plural, a escola sem fronteiras, a escola cidadã (MST) e
tantas outras, voltadas para outro tipo de cidadania e de sociedade.
2.3 O Velho e os Novos Movimentos Sociais (NMS)
A compreensão dos Movimentos sociais está elucidada por Gohn (2002), que os
definiu da seguinte forma:
movimentos sociais são ações sociopolíticas construídas por atores
sociais coletivos pertencentes a diferentes classes e camadas sociais,
articuladas em certos cenários da conjuntura socioeconômica e política de
um país, criando um campo político de força social na sociedade civil. As
ações se estruturam a partir de repertórios criados sobre temas e
problemas em conflitos, litígios e disputas vivenciados pelo grupo na
sociedade. As ações desenvolvem um processo social e político-cultural
que cria uma identidade coletiva para o movimento, a partir dos
interesses em comum (GOHN, 2002, p.251).
Os movimentos sociais tiveram como referência fundante a classe social29, depois
foram se incorporando outros, como: gênero, etnia, meio-ambiente, orientação sexual etc.,
associados à idéia de movimento e mobilizações. O chamado velho movimento social
ficou situado historicamente por representar ações coletivas relacionadas às conjunturas
econômicas, especialmente as referentes às contradições do sistema capitalista.
Em
uma visão marxista, este
sujeito histórico, que representa o que hoje
entendemos por „velho movimento social‟ seria, em sua essência, o movimento operário
organizado em sindicatos, no final do séc. XIX e início do séc. XX, por toda a Europa.
Lenin (1979, p. 104) entendia esse movimento da seguinte forma:
[...]a luta econômica como uma das partes integrantes da luta de classes
do proletariado (...) que os sindicatos de base ampla, como indica a
experiência de todos os países capitalistas, são a organização mais
adequada da classe operária tendo em vista a luta econômica e a luta
política.
No entanto, o processo de industrialização no Brasil chegou atrasado, fruto do
capitalismo tardio o que fez com que o sindicalismo operário tivesse condições
ideológicas muito diferentes do sindicalismo russo, ou mesmo do inglês, italiano, francês
etc.
29
Em abordagens marxistas e neo-marxistas, como as colocadas pela História Social e Cultural.
Para Matos (2009), comprendermos a formação da classe trabalhadora através do
movimento sindical - neste contexto do início do século XX – se faz necessário focalizar
uma fase de „levantes‟ que surgiram na região sudeste. Considerada, como marco inicial,
tivemos o „levante dos padeiros‟ em Santos, no ano de 1876, organizado por João Mattos,
que visava abolir os maus tratos a que eram cometidos os padeiros, pelos donos das
padarias, além disso, se configuraram com um caráter abolicionista que passou a repercutir
na grande São Paulo.
Já no início do século XX, vários trabalhadores passaram a se organizar em
associações, a exemplo, dos portuários, que se associaram na „União de estivadores‟, e na
„Sociedade de Resistência dos Trapiches‟ fundadas em 1905. Matos (2009) chama ainda a
atenção para a presença de trabalhadores negros nestas organizações que eram maioria na
primeira greve que se tem notícia - a greve dos portuários do Rio de Janeiro - tendo sido
registrado no jornal Correio da Manhã, em matéria do dia 14/10/1906.
Desde então, que a presença de ex-escravos e de imigrantes europeus com ideias
anarco-sindicalistas iniciaram um sindicalismo combatente (tipográfos e operários de
setores diversificados), que só veio a ser disputado por uma força política partidária em
1922, quando da hegemonia do Partido Comunista Brasileiro (PCB).
Igualmente, Aragão (2007), aponta que o sindicalismo brasileiro, ao incorporar
parte da mão de obra imigrante européia, com suas crenças e ideologias liberais, socialistas
ou anarquistas, juntamente com os ex-escravos brasileiros de anseios libertários veio a se
consolidar no período getulista, como uma estrutura plural, mas de cunho reivindicativo
classista. Porém, esse sindicalismo classista ao ser consolidado enquanto movimento
legalizado, no período getulista foi engolido pela ditadura do Estado Novo. Isto porque a
legalização dos sindicatos foi baseada na „Carta Del Lavoro‟ de origem fascista, que
orientava, através da intervenção do Estado, uma concepção de „harmonia social‟,
estabelecendo as relações entre o capital e o trabalho.
Se, por um lado, o Estado Novo garantiu vários direitos trabalhistas, até então não
reconhecidos, por outro, o movimento sindical da época estava „engessado‟e não
questionava o governo para o avanço de outras garantias sociais, que um Estado
democrático possibilitaria. Além disto, vários sindicatos à época realizaram acordos com o
governo
getulista, ficando
conhecidos como
adeptos do
sindicalismo pelêgo.
Evidentemente que algumas correntes sindicais não corroboravam com a política de
colaboração proposta pelos ideais fascistas adotados no Estado Novo, a exemplo do
movimento anarco-sindical e de algumas correntes marxistas, mas essas correntes,
principalmente as últimas, não tinham a direção do movimento, nesse período.
Apesar da importância da resistência do sindicalismo classista (anarco-sindicalista,
comunista e trotskista) ao sindicalismo coorporativista getulista, só no período
democrático (1945-1964), é que a pluralidade sindicalista de forma oficial pode
reestruturar-se. No entanto, com a ditadura militar, os avanços na organização sindical
foram duramente reprimidos, mesmo assim, vale a pena registrar a tentativa de uma
reorganização com as greves de Contagem e Osasco, no setor automobilístico.
Desde então, que esta „quebra‟ do movimento sindical organizado passou a dá
espaço para um sindicalismo assistencialista, apoiado por setores da Igreja Católica e pela
ditadura militar, sendo visível a sua estruturação na zona rural brasileira (MATOS,
2003).
A ruptura com essa estrutrura do „sindicalismo oficial‟ para um sindicalismo de
lutas só veio a se consolidar no Brasil com as greves que eclodiram no ano de 1978, pelos
metalúrgicos do ABC paulista. Segundo Antunes (1984;1991) este movimento foi
complementado com outros movimentos grevistas urbanos e rurais: professores, médicos e
com destaque para as greves dos canavieiros do nordeste. Daí o caráter político dessas
greves, que se configuram em uma nova terminologia sociológica, passando a ser
entendidas como expressões do novo sindicalismo, por ser um sindicalismo autonômo e
de massas.
Para Melucci (2001, p.29) quando abordamos os movimentos sociais estamos nos
referindo “a um fenômeno coletivo que se apresenta com uma certa unidade externa, mas
que, no seu interior, contém significados, formas de ação, modos de organização muito
diferenciados”. Melucci ainda afirma que a ação coletiva não é o resultado de forças
naturais ou de leis necessárias da história, nem de outro lado, simplesmente do produto das
simbologias. É, também, necessário entender a história social, pela ótica de suas mudanças
de cenários políticos e destacar o papel dos atores coletivos, em cada contexto.
Sendo assim, entendo que as mudanças sociais, políticas e econômicas ocorridas no
século XX foram enfatizadas em um conjunto temporal denominado, pelo historiador
Hobsbawm, como a Era dos Extremos, abrangendo desde o início da Primeira Guerra
(1914) até a desagregação da União Soviética (1989) e o esgotamento de possibilidades de
desenvolvimento do chamado Terceiro Mundo – países dependentes econômica e
politicamente da égide norte-americana.
Esse autor analisa esse contexto temporal focalizando a principal característica
histórica social do séc. XX, que foi a sua capacidade de polarização entre dois sistemas
políticos em curso, capitalismo e socialismo, suas possibilidades e limites reais.
A disputa pela hegemonia política produzida em ordem global remetia, a um só
momento, a ofensivas e contra-ofensivas, suscitando, de tal modo, vários desdobramentos:
duas guerras mundiais, fascismo, nazismo, socialismo, EUA X Rússia, Cuba, Vietnã; Irã X
Iraque; descolonizações (Angola, Moçambique, Guiné-Bissau); ditaduras (América
Latina); Teologia da Libertação; Maio de 68, black peoples, movimento hippie,
sindicalismo, ecologismo e feminismo etc.
O historiador inglês levou em consideração o que se convencionou chamar, no fim
do séc. XX, de fim da história, dado o fato de que um dos pólos em disputa de hegemonia
– o capitalismo – havia se apresentado como vitorioso. Assim, não existiriam mais formas
de resistências, ou, ao menos, o pólo derrotado não ofereceria mais resistência. As matrizes
ideológicas do capitalismo, sobretudo o neoliberalismo, conduziriam a história da
humanidade como a única verdade possível. E o que, então, mudaria essa lógica tão
absurda do pensamento único?
No entanto, a experiência humana evocava outra condução histórica: a organização
popular através dos chamados movimentos sociais, que continuam ocupando a cena e
conseguem reafirmar que acompanham a humanidade por onde quer que ela ande!
Os sujeitos sociais organizados em grupos refletem o desinteresse do Estado para
com eles, fazendo com que o desemprego, o preconceito, a falta de moradia, de direito à
terra, e o descaso com o meio ambiente, a educação, a saúde, as mulheres, os povos
indígenas, os afro-descendentes, as crianças, os idosos e os portadores de necessidades
especiais constituam os fios que configuram na sociedade espaços para conseguirem o que
é seu por direito e que foi negado durante muito tempo.
É na incapacidade de esse sistema econômico social e político atender às
necessidades da sociedade civil que este produz, que nesta se reproduzem cada vez mais
conflitos. Por conseguinte, os grupos sociais lutam, e se constroem historicamente, eles
traçam objetivos - ações coletivas-, organizam-se - elaboram um projeto - e disputam
poder - acumulam forças (SCHERER-WARREN & KRISCHKE, 1987).
Esse projeto organizado disputa forças hegemônicas numa perspectiva de
enfrentamento direto com o Estado, seja em suas bases de sustentação (estruturas), ou,
ainda, nas reações do caldo cultural cotidiano constituinte do capitalismo – o patriarcado, o
racismo, o consumismo e o xenofobismo, que combatem a desigualdade, a discriminação,
o preconceito e a intolerância.
Assim, na medida em que cada movimento social acumula ou perde força, no
sentido de sua própria organização interna, e observa suas fronteiras e possibilidades de
avançar em seu projeto, reflete-se, também, como a memória coletiva, a partir das
lembranças de outros sujeitos que tombaram na luta, podendo fornecer novos elementos:
táticas, formas de articulações, de solidariedade e fontes de aprendizagem relativas ao
avanço da organização.
Para alguns movimentos, trata-se de constituir ou reconstituir a sua própria história
e tirar dela as melhores lições, no campo de uma educação que se proponha uma
perspectiva popular. Ou, quem sabe, uma busca de espelhos que sirvam para projetar a luta
de antes e seu reflexo hoje, possibilitando enxergar outros sujeitos históricos e a si
mesmos/as, cruzando as dimensões entre o individual e o coletivo diante das
transformações na sociedade atual.
Entende-se, ainda, que diferentes representações sociais emergiram quando
entraram em cena os chamados “novos” movimentos sociais, que surgiram na década de
1960 e se firmaram nos anos 1990.
surgiram de novas modalidades de movimentos sociais – como o dos
direitos civis nos Estados Unidos, ainda nos anos 1960; os das mulheres,
pela paz, contra a guerra do Vietnã etc. – contribuiu para que novos
olhares fossem lançados sobre a problemática (GOHN, 2002, p.331).
São exemplos, no Brasil, o novo sindicalismo, o novo feminismo, e o movimento
estudantil, que renovaram seus projetos, as estruturas, e as táticas e possibilitaram que
novos sujeitos sociais entrassem em cena.
Para o sociólogo Giddens30 (1991), os NMS são uma das características da
sociedade atual, que propicia novas agendas políticas enfrentando o declínio do modelo
ocidental, em termos de representação política. Ele compreende que “as civilizações têm
30
Anthony Giddens se insere no rol dos autores que interpretam os movimentos sociais em uma análise
social pós-estruturalista e ideologicamente defende às suas ações em sintonia com as políticas de Estado,
formando uma „terceira via‟ como contraponto aos modelos capitalistas e socialistas, que em sua tese
estariam esgotados. Porém, ele postula essa „terceira via‟ com fundamentos que não são oposição ao sistema
capitalista, mas sim um conjunto de reformas por dentro desse sistema, sem considerar alterações na
concepção do lucro, por exemplo.
seus períodos de juventude, maturidade e velhice e conforme elas são substituídas por
outras, a distribuição regional de poderes globais se altera”. (GIDDENS, 1991, p. 50).
Já para a minha concepção, embasada em Ferreira (2006), essa análise de Giddens é
insuficiente para pensarmos a essência desses movimentos, pois o que caracteriza o „novo‟
não é simplesmente o esgotamento de um modelo econômico-cultural, mas a sua
capacidade de (re) criar estes movimentos, com novos projetos e pautas sociais, que
possam dar um sentido histórico que não foi resolvido, ainda, pelos velhos movimentos
sociais. Exemplificamos-nos da seguinte forma:
O novo sindicalismo que surge no final da década de 1970, com as
greves do ABC paulista, combatendo o velho sindicalismo que nasceu em
1930 com o governo populista de Getúlio Vargas e torna-se atrelado ao
Estado, ficando também conhecidos como sindicatos pelegos. O novo
feminismo, da década de 1960, consiste na chamada segunda onda do
movimento feminista que, diferentemente do feminismo que vigorou na
primeira onda em 1930, de preponderância anticontestatória, torna-se
reivindicativo, transgressor e rebelde contra a moral patriarcal. O
movimento estudantil, pioneiro nesse contexto, refunda a UNE e atua na
resistência à ditadura, inclusive através da via armada, possibilita forte
expressão de massa na luta pela Anistia no Brasil e na América Latina,
criando os Centros Populares de Cultura (CPCs). (FERREIRA, 2006, p.
48).
Vale salientar, na mesma direção, outros movimentos populares que surgiram ou se
consolidaram no mesmo contexto, como: da moradia, dos (as) negro (as), dos sem-tetos,
dos homossexuais e ecológicos, entre outros. Vários desses movimentos tiveram como
pauta comum a luta pela redemocratização, simbolizada no movimento pelas Diretas - Já,
na década de 1980, o Fora Collor, na década de 1990 e, mais recentemente, a construção
do Fórum Social Mundial (FSM), como pólo aglutinador de tais movimentos.
A consolidação do capitalismo ocorreu concomitantemente à luta operária, na qual
os operários tornam-se protagonistas no enfrentamento de tal sistema, como já frisei
anteriormente. Como debate mais atual, Touraine31 (1994, p.120) coloca que o grande
desafio, na atualidade, dos Novos Movimentos Sociais consiste em dar respostas à lacuna
que o “movimento operário de massa deixou quando deixou de ser um movimento social
para tornar-se uma força política e até mesmo incorporar-se ao poder de Estado”, e lança
31
Segundo Vilaça (2009), Alain Touraine passou a ser um dos autores mais lidos sobre os movimentos
sociais, nas comunidades acadêmicas. Para ele, os movimentos sociais são uma opção central da sociologia e
não apenas uma sociologia da ação. Ele considera e atribui uma responsabilidade quase exclusiva aos
movimentos sociais no que diz respeito ao que se opera na sociedade, pois vê os movimentos sociais como
atores principais da mudança social.
um desafio: saber quais movimentos sociais poderiam ocupar o vácuo do movimento
sindical de massa.
Essa crítica de Touraine parece atingir, de fato, um debate recente que ocupa dois
espaços: um, nos movimentos sociais e, outro, nos partidos políticos, em especial nos
partidos de esquerda. Nele, estão intrínsecas outras nuances, como a crítica à burocracia
sindical e partidária e a seguinte questão: até que ponto os mesmos sujeitos sociais que
atuam em dupla militância, sindicato e partido, por exemplo, ao chegarem na esfera do
poder estatal, se incorporam como correia de transmissão, ou dela se mantêm distanciados?
Dentro dos movimentos sociais, percebe-se que, além das crises que vêm
sistematicamente ocorrendo, desde 1989 até os dias atuais, após o marco da queda do muro
de Berlim, em alguns deles, há uma lacuna no tocante à formação política, nos moldes de
uma educação/formação continuada, como uma das formas privilegiadas para poder
melhor entender a análise de conjuntura, a organização interna e, principalmente, atender à
renovação de quadros militantes.
Os pontos de discussão sobre as táticas que dizem respeito às direções dos
movimentos permanecem conflitantes, mesmo porque, em seu percurso histórico, tais
movimentos disputam hegemonia de forma externa e, também, interna. Para esses, tomar
partido significa ir além do sentido partidário, enquanto aparelho político, e sim tomar uma
posição política quando houver necessidade, significa uma disputa explícita, mas
dialeticamente, oportuniza uma atitude de empoderamento32.
Portanto, a busca deste empoderamento configura os espaços militantes, no campo
partidário e no dos movimentos sociais. Evidencia-se, sobremaneira, nos espaços do
movimento das mulheres, com maior alargamento no setor urbano, mas já demonstra
visibilidade no movimento das camponesas. Acredito que, a partir da contribuição de uma
análise sócio-histórica de uma de suas lideranças, Margarida Maria Alves, que teve atuação
na luta pela terra e no movimento de mulheres, esse empoderamento pode ser melhor
compreendido através de sua experiência no fazer político, inclusive da sua transição de
um tipo de sindicalismo harmônico para um sindicalismo classista.
32
Empoderamento significa em geral a ação coletiva desenvolvida pelos indivíduos quando participam de
espaços privilegiados de decisões, de consciência social dos direitos sociais. Essa consciência ultrapassa a
tomada de iniciativa individual de conhecimento e superação de uma situação particular (realidade) em que
se encontra, até atingir a compreensão de teias complexas de relações sociais que informam contextos
econômicos e políticos mais abrangentes. O empoderamento possibilita tanto a aquisição da emancipação
individual, quanto a consciência coletiva necessária para a superação da “dependência social e dominação
política”. (PEREIRA, 2006, p.1)
Foi com o movimento feminista que as campesinas buscaram e buscam entender a
sua realidade de opressões, já percebida no âmbito do trabalho e na esfera da vida privada.
Tiveram cursos de formação feminista em suas organizações internas e contatos diretos
com várias feministas, desde as primeiras organizações das mulheres campesinas, ainda na
década de 1970.
Desde agosto de 2000, as camponesas organizam a Marcha das Margaridas, contra
a fome, a pobreza e a violência sexista, reavivando permanentemente a memória de
Margarida. Segundo as lideranças camponesas, a partir do acúmulo de suas reflexões, dois
fatores sociais, além da pobreza, marcam essencialmente a vida das mulheres no campo: a
violência e a sua exclusão da educação. Assim:
sobre a violência, ocorre a violência que o próprio latifúndio impõe aos
trabalhadores (as) rurais; a violência do trabalho escravo e infantil; a
violência doméstica (familiar). E a exclusão educacional das mulheres
rurais, que desde a década de 60 até os dias atuais é bem maior, entre nós,
do que em relação aos homens.O que no setor urbano, hoje é diferente, as
mulheres já terem conquistado seu espaço de direito aos estudos e nele
permanecido.
FONTE: (E-1) – Membro da Comissão de Mulheres da CONTAG, João Pessoa,
em 13/07/2004.
Ainda na década de 1980, as mulheres organizaram grupos de maior visibilidade, a
exemplo de Comissões de Mulheres, nos sindicatos e partidos, e passaram a refletir e
desenvolver políticas públicas, como creches e delegacias da mulher, cobrando, dos
poderes instituídos, as condições mínimas de dignidade do ser humano.
São vozes que se levantam para a incorporação da perspectiva de eqüidade de
gênero, que hoje, tanto o movimento dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais (STRs)
quanto do Movimento dos Trabalhadores Sem Terras (MST), percebem que é fundamental.
Trata-se de “destacar a luta das mulheres em seus espaços de atuação, tanto no âmbito da
propriedade, cuidando da terra e de animais, como fora dela, vendendo nas feiras livres as
mercadorias por elas produzidas” (FIÚZA, 2001, p.99).
E, indo além, podendo reivindicar não apenas o espaço de sobrevivência, mas o
direito à reprodução e às condições de controle de natalidade, sem afetar a saúde. Além
disto, o direito ao seu corpo, à sua opção sexual, à sua participação nos espaços públicos.
Isto é possível mesmo que nem todas as mulheres organizadas em movimentos sociais
sejam feministas. É o feminismo que se configura como referência dos movimentos
sociais de mulheres.
2.3.1 O Velho e o Novo Sindicalismo Rural
A organização sindical dos trabalhadores e trabalhadoras rurais, no Brasil, dá o seu
primeiro passo ainda em 1938, com a fundação do primeiro sindicato em Campos, no Rio
de Janeiro. Segundo documentos da Confederação dos Trabalhadores da Agricultura
(CONTAG), na década de 1950, já existiam quase 48 sindicatos de trabalhadores rurais,
dos quais apenas oito eram reconhecidos pelo Ministério do Trabalho - dados registrados
nos Anais do 1º Congresso Nacional dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, realizado em Belo
Horizonte, no ano de 1961:
estes sindicatos atuavam na defesa dos direitos trabalhistas, voltados,
principalmente, para os assalariados e assalariadas rurais. Além dos
sindicatos, existiam, também, associações de "pequenos agricultores",
que desenvolviam ações voltadas para os interesses dos arrendatários,
parceiros, meeiros, posseiros e pequenos proprietários. (FERREIRA,
2006, p. 52).
A luta pela posse da terra e por melhores condições de vida e de trabalho, naquele
período, motivou a organização e participação dos camponeses em movimentos sociais
rurais, como as Ligas Camponesas, no Nordeste, o Movimento dos Agricultores Sem Terra
(MASTER), na Região Sul, e a União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil
(ULTAB).
As Ligas Camponesas constituíam-se na expressão mais forte da organização dos
trabalhadores rurais do Nordeste. Surgiram em Pernambuco, no Engenho Galiléia, em
1954, mas tiveram sua maior base de sustentação através da Liga Camponesa de Sapé-PB,
dirigida por João Pedro Teixeira, que foi barbaramente assassinado, pelos latifundiários,
ligados ao também conhecido Grupo da Várzea, na Paraíba. Tendo permanecido como
dirigente da Liga de Sapé a camponesa Elizabeth Teixeira, viúva de João Pedro.
O principal objetivo das Ligas Camponesas era a luta pela reforma agrária.
Construíram o seu programa de lutas combatendo as violências físicas e fiscais dos
latifundiários, que cobravam o foro, através do Cambão 33, um imposto que deveria ser
prestado com força de trabalho e configurava-se em mais uma super-exploração da relação
capital-trabalho, na zona rural. As Ligas Camponesas possuíam uma orientação política
vinculada ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e tinham na figura do advogado
Francisco Julião um expoente de sustentação jurídica e política.
Para Abreu & Lima (2009, p.06), as Ligas Camponesas:
[...] falavam em reforma agrária “na lei ou na marra”, bem como na
importância da Revolução Cubana. Parte de seus militantes passaram a
propor a organização de uma guerrilha, cujo campo de treinamento foi
desbaratado pelos militares, em Goiás. Alguns sindicatos ligados à
esquerda, mesmo que desenvolvendo uma atuação política legalista,
referiam-se ao socialismo e ao comunismo como metas, e colocavam a
necessidade de uma ação política maior.
As Ligas Camponesas passaram a ser vistas como o principal inimigo dos
latifundiários, nas décadas de 1950 e 1960. Lemos (1996, p. 25) diz, que em 12 de julho de
1962, o „Jornal do Brasil‟, veiculava matéria em que situava as Ligas Camponesas como o
inimigo da nação.
Os latifundiários que quiserem recuperar o tempo perdido, uma das
primeiras providências é procurar, no mercado do nordeste, os mais
famosos jagunços para ajudá-los na tarefa de destruir as Ligas, constando
em seus planos todo e qualquer tipo de ameaças, desde a eliminação pura
e simples, e se necessária, dos principais articuladores.
Lemos (1996) adianta, ainda, que em notícia veiculada no jornal O Momento, que
vigorou entre as décadas de 1960-1980, o escritor Antônio Callado lembrava: „nesses
incultos ducados nordestinos crescem a cana e o algodão que assalariados e foreiros
plantam, mas estão crescendo também plantas daninhas ao latifúndio, como as Ligas
Camponesas” (LEMOS, 1996, p. 21).
Mas, na contramão da representação social do que os latifundiários queriam
colocar, vários camponeses percebiam, nas Ligas, uma mensagem de esperança, em um
mundo tão „castigado‟ pelo abandono do trabalhador rural. Pereira (2009), admite uma
essência única de classe social da qual as Ligas seriam herdeiras de vários movimentos
históricos, como: Canudos, Contestado, entre outros. Tal essência se traduz na busca da
33
O Cambão significava a obrigação que tinha o morador de dar dias de trabalho gratuito, sendo uma mão de
obra familiar, em que entravam o chefe de família, a mulher, os filhos, o irmão, o cunhado etc.
(GORENDER, 1999).
condição de vida mais humana, porém tirando o seu sustento da „terra prometida‟. Na
Paraíba, as Ligas se fortaleceram a tal ponto que tiveram uma enorme abrangência:
As Ligas se espalharam pelo litoral, pela Várzea, pelo Brejo e pelo
agreste da Paraíba, sendo organizadas em vários municípios: Sapé,
Alhandra, Areia, Mamanguape, Rio Tinto, Guarabira, Mari, Itabaiana,
Alagoa Grande, Oitizeiro, Espírito Santo, Mulungu, Alagoinha, Belém,
Caiçara e Pedras de Fogo, Campina Grande e Santa Rita. No dia 22 de
novembro de 1961 foi criada a Federação dos Lavradores e
Trabalhadores Agrícolas de João Pessoa, conhecida como a Federação
das Ligas Camponesas, constituída por 18 Ligas, tendo como presidente,
Francisco de Assis Lemos e como vice, João Pedro Teixeira. (PEREIRA,
2009, p. 103)
Por outro lado, vale ressaltar que, no início da década de 1960, o número de
sindicatos no meio rural deu um salto, sendo a Igreja Católica sua maior incentivadora. O
papel da Igreja constituía em entrar numa disputa pelo domínio das bases rurais, “usando
para isso de todo o seu poder de intervenção junto ao trabalhador rural”. Essa constatação
de CRUZ (1982, p. 81), pode ser melhor entendida, através da fala de um agente pastoral,
que atuou no sindicalismo rural na década de 1960, no Rio Grande do Norte:
[...] a posição da Igreja era uma posição assim, conservadora demais. E
não admitia o avanço do Partido Comunista, naquela época (...)a posição
da Igreja era uma posição conservadora e, às vezes, até radical,
dependendo da própria direção da Igreja. Aqui no Rio Grande do Norte,
D. Eugênio; no Brasil, D. Jaime Câmara do Rio de Janeiro. D. Eugênio,
aqui, no RN, orientava que o partido comunista não podia avançar tanto
(...) ele achou que devia mudar isso criando outros sindicatos, outras
associações no campo (CRUZ, 1982, p. 81).
Já na Paraíba, a mudança constante de arcebispos significava um constante
retrocesso, porque em sua maioria partiam de uma mentalidade „anti-comunista‟, igual à de
D. Eugênio, no RN, e, portanto, de combate às Ligas Camponesas.
Lemos (1996, p. 95) argumenta que “a Igreja Católica, no Brasil, durante quatro
séculos, era apoiada, no interior, pelos donos de terra e fazia de conta não ver a pobreza e a
injustiça social, movimentou-se para neutralizar as Ligas Camponesas”. Não obstante, a
religião católica predominava entre os camponeses, mas o número de protestantes
começava a aumentar, o que preocupava bastante à Igreja.
No período de 21 a 26 de maio de 1956, houve um encontro dos Bispos
do Nordeste, em Campina Grande-PB. A sua promoção deveu-se à
confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e foi presidida pelo
então Arcebispo-auxiliar do Brasil, D. Hélder Câmara, tendo contado
com a presença do Presidente Juscelino Kubitscheck (...). A CNBB
produziu três documentos sobre a questão agrária: a Igreja e a reforma
agrária; A Igreja e a situação do meio rural brasileiro e a Mensagem da
Comissão Central, publicadas respectivamente em 1954, 1961 e 1963.
Com esse evento (1956) e a produção teológica dos documentos, a partir de 1963
começam a ficar mais claras duas visões diferenciadas no seio da Igreja: de um lado, um
bloco liderado por D. Hélder Câmara, em uma linha próxima dos ideias que seriam
configurados, pouco mais tarde, pela Teologia da Libertação34, e por outro, D. Jaime
Câmara, direcionando, ainda, uma parceria cautelosa no trato com os usineiros e de embate
com os comunistas. Mesmo porque, a Igreja Católica atuava no movimento sindical rural
brasileiro de forma conservadora para combater as Ligas Camponesas e os comunistas e,
além disso, deu apoio ao Golpe Militar de 1964.
A
tendência de proximidade entre Igreja Católica e setores camponeses, na
Paraíba, ficou mais sólida após a chegada à essa arquidiocesse de D. José Maria Pires35, em
1966, conhecido como D. Pelé. Quando adepto da Teologia da Libertação - no pós 1968 passou a corroborar com uma identidade camponesa, auxiliando organizações e militantes
de esquerda no combate aos usineiros. A partir daí é que o sentido de uma parceria entre
(ex) representantes das Ligas Camponesas e do sindicalismo rural orientado pela Igreja
Católica fortaleceu o sindicalismo rural mais radical. Mesmo assim, a opção de D. Pelé era
clara no apoio das organizações do sindicalismo rural e, não, no sentido de se ter uma volta
das Ligas Camponesas.
A exclusão da categoria trabalhadora rural, fortemente marcada pela fome, miséria
e violência, motivou a realização de algumas lutas unificadas entre várias organizações de
trabalhadores. O maior exemplo ocorreu em 1963, no Estado de Pernambuco, quando a
Federação dos Trabalhadores Rurais - PE (FETAPE), as Ligas Camponesas e alguns
sindicatos rurais organizaram uma das maiores greves do setor canavieiro.
34
A Teologia da Libertação tem como referência as posições do Concílio Vaticano II, mas só vai ter uma
influência prática na América Latina a partir do Encontro de Medellín, na Colômbia, em 1968, onde a Igreja
Católica faz a opção pelos pobres.
35
D. José Maria Pires era negro, filho de pais pobres e veio de Minas Gerais, em março de 1966, transferido
da Diocese de Araçuaí, no norte daquele estado, num tempo muito especial. Havia terminado há pouco o
Concílio Vaticano II, que introduziu profundas mudanças na Igreja Católica. Dom José participou ativamente
daquele Concílio e era, portanto, um dos responsáveis pela nova Igreja que então surgia. (Dom Helder
Câmara - O SANTO REBELDE, 2004).
Neste sentido, essa construção real que já incitava um sindicalismo rural autônomo
– não peleguista - começou a consolidar um novo sindicalismo antes mesmo do
sindicalismo urbano. Há, porém, de se entender que quem estava na vanguarda dessas
greves eram as Ligas Camponesas, e portanto, alguns sindicatos não se aproximavam da
Ligas, mas outros sindicatos rurais de todo o Nordeste, não somente se aproximavam como
passaram a assumir esse caráter classista, que as Ligas Camponesas já admitiam.
No início da década de 1960, segundo Prado Jr (1996, p.46), o Brasil é marcado por
um período de grande efervescência política, o povo brasileiro clamava por um modelo de
desenvolvimento independente do capital estrangeiro, por uma reforma agrária radical e
por liberdades políticas. Nesse clima de efervescência, em novembro de 1961, foi realizado
o I Congresso Nacional dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, conhecido como o
Congresso de Belo Horizonte. O tema central deste congresso foi a reforma agrária, que
interessava aos trabalhadores (as) rurais e à sociedade brasileira como um todo, e o direito
de organização sindical da categoria.
Embora o sindicalismo rural elegesse como tarefa prioritária a sua organização, a
corrente ideológica nacionalista estava impregnada em várias facções e grupos. Portanto,
segundo o citado autor, os trabalhadores rurais deveriam aliar-se à burguesia industrial
contra interesses estrangeiros e feudais, pois, com a reforma agrária, se aceleraria o ritmo
da industrialização. Assim, estava em disputa de hegemonia não apenas o caráter da
organização, mas a concepção de alteração na correlação de forças do país.
Cerca de 1.400 delegados, articulados pela ULTAB, pelas Ligas Camponesas e pelo
MASTER, aprovaram moções que reivindicavam mudanças estruturais, apontando para a
construção de um novo modelo de desenvolvimento para o Brasil, tomando por base a
realização de uma reforma radical que assegurasse aos trabalhadores rurais uma posição
melhor na hierarquia social e a construção de uma sociedade justa e igualitária.
Reivindicavam, ainda, o direito de organização dos trabalhadores rurais e a
desapropriação por interesse social, mediante indenização dos trabalhadores rurais ou
mediante indenização em títulos públicos. A importância desse congresso deve-se,
principalmente, ao caráter aglutinador de organizações rurais e urbanas de trabalhadores e
trabalhadoras, contando, inclusive, com a presença do presidente João Goulart, no
encerramento dos trabalhos.
Em março de 1963, o presidente da República, João Goulart, lança a Lei nº 4.214,
conhecida como o Estatuto do Trabalhador Rural, estendendo aos trabalhadores (as) rurais
os direitos sindicais e previdenciários garantidos aos trabalhadores e trabalhadoras
urbanos. Mas, para a sua implementação efetiva, a luta ainda se daria até os dias atuais.
A ofensiva para desestruturar os sindicatos rurais, após o golpe militar de 1964,
contou, também, com serviços de inteligência norte-americana que passaram a pensar
estratégias de cooptação das lideranças rurais, ao invés dos métodos violentos impretados
pelos latifundiários, que contratavam jagunços para simplesmente eliminar os líderes dos
movimentos. Retomava-se, portanto, uma concepção fascista sindical, que já havia dado
certo no sindicalismo urbano durante o Estado Novo, no período getulista. O serviço de
inteligência americano contruiu uma política conhecida como „política de apoio ao
sindicalismo responsável‟, através do Instituto Americano para o Desenvolvimento do
Sindicalismo Livre (IADESIL).
O IADESIL passou a promover cursos para sindicalistas no Brasil, em Washington
(USA), com o intuito de propiciar técnicas „acordos lúcidos‟ e, ao mesmo tempo, que esse
tipo de sindicalista passasse a servir de espião daqueles que estavam contra o regime
militar e a ordem cristã. Na época, a Revista Veja chegou a publicar matéria sobre os
cursos do IADESIL; destamos a seguinte transcrição:
O atual presidente da Federação dos empregados no Comércio e
Hoteleiros de São Paulo, José Ferreira Neves, esteve nos Estados Unidos
entre agosto e outubro do ano passado, para fazer novamente o curso.
„Antes, em 1961, a gente via nesses cursos, conteúdos como
cooperativismos, contratos coletivos e legislação, mas agora nós nem
visitamos os sindicatos e vimos apenas lições sobre as multinacionais e
sua importância na economia. Ensinaram, que embora prejudiciais elas
são importantes porque empregam trabalhadores‟[...]
(REVISTA VEJA. SEMPRE A CIA: um curso muito especial para
sindicalistas, 1979).
É nítida a abordagem direcionada do IADESIL para formar um padrão sindical
voltado para assumir pactos relacionados à harmonia da relação capital-trabalho. Desta
forma, a estratégia era a de cooptar quadros políticos esvaziando o sindicalismo voltado
para as lutas de classes. Era, portanto, possível combater os movimentos sociais com essa
tendência de cooptação. Outras políticas que tinham o mesmo objetivo foram sendo
consolidadas em outros setores sociais, a exemplo do acordo MEC-USAID36 que, neste
caso, ensejou uma dispersão no movimento estudantil.
2.3.2 Os NMS no Movimento de Mulheres: feministas e não-feministas
Ser um homem público é a honra,
Enquanto ser uma mulher pública é a vergonha!
Para as mulheres, o privado é seu coração, a casa.
Para os homens, o público e a política, seu santuário.
Michele Perrot (1998).
**************
É possível existir uma mulher feminista feminina?
E, existindo, como ela é?
Doce como açúcar,
Ou braba que nem um jumento?
(Fala de um sindicalista do meio urbano,
dentro do STR de Alagoa Grande-PB, em 12 /08/1994).
Entendo que toda a articulação da organização das mulheres camponesas na
Paraíba, em sua pluralidade de experiências políticas, perpassou as mais variadas
organizações campesinas já citadas até aqui: Ligas Camponesas, sindicatos rurais,
comissões de centrais sindicais e partidárias, entre outras.
Entretanto, as mulheres camponesas definiram uma práxis feminina, por vezes
autônoma, dentro dessas entidades, até porque muitas mulheres foram influenciadas pelo
movimento feminista. Outras mulheres não concordaram com tal orientação feminista mas,
ainda assim, em vários momentos, estabeleceram laços de posicionamento político comum,
combatendo a preeminência do „cabra-macho‟ nesses espaços, que se configurava em uma
espécie de hegemonia da „razão masculina‟.
Neste sentido, considero que a identidade social da mulher, durante séculos, foi
construída através de um “modelo” que a sociedade lhe atribuiu de “vida doméstica”, que
36
O Acordo MEC-USAID também foi pensado pelo serviço secreto de inteligência da CIA – ratificado
secretamente em 1967 - para implantar a reforma universitária, que corresponde ao espírito da ditadura,
privatizando as universidades públicas e dissolvendo as organizações estudantis (WIKIPEDIA, 2009).
consolidou as diferentes funções biológicas entre os sexos em desigualdades sociais,
conferindo-lhe, historicamente, a exclusão de desempenhar funções no mundo público.
É-nos recorrente que, em pleno século XXI, mesmo garantidos direitos e espaços,
ainda se perpetuam altos índices de violência e morte provocados principalmente por
cônjuges, namorados e por homens próximos da convivência social das mulheres; que
enfrentam também dificuldades estruturais de conciliar estudos, família e trabalho portanto, três jornadas de trabalho - e, mesmo quando capacitadas e inseridas igualmente
nos espaços de poder, não conseguem ainda efetivar uma mudança cultural e política que
de fato as legitime como autônomas e habituadas ao mundo público.
Sobretudo hoje, temos mulheres em todos os domínios do campo social, econômico
e cultural, mas, como nos diz Perrot (1998), as mulheres, apesar de conquistarem
igualmente direitos civis, à instrução, à condição de assalariadas etc. têm bastante
dificuldade em chegar aos comandos da cidade, tanto econômico quanto político, dada a
predominância do domínio masculino no mundo.
O movimento feminista, como ação organizada, contribuiu para mudar a situação
da mulher na sociedade, tentando eliminar as discriminações a que ela está sujeita. Surgiu
justamente da luta por uma educação voltada para o público e não para o privado
(doméstico), com maiores oportunidades de acesso, ampliação do mercado de trabalho,
salários e direitos trabalhistas iguais aos dos homens e maior proteção à maternidade.
Faz-se necessário, então, promover uma breve discussão sobre o (s) movimento
(s) feminista (s) e o movimento de mulheres, para o entendimento de um conjunto de
práticas sociais, absorvidas ou questionadas por sujeitos sociais, que refletem acerca das
relações de gênero.
Entende-se que o conceito de gênero se desvencilha da centralidade conceitual do
patriarcalismo, justificado pelo fato de o estudo das relações de gênero considerar outras
nuances e novos focos de debates e de reflexão teórica, compreendendo o estudo das
relações de gênero como parte de um conjunto complexo das relações sociais. Nesta
discussão, porém, serão tratadas as relações de desigualdades de gênero, considerando o
aporte de Scott (1992), na intenção de contribuir com a história das mulheres:
a emergência da História das mulheres como um campo de estudo
acompanhou as campanhas feministas para a melhoria das condições
profissionais e envolveu a expansão dos limites da história. Mas esta não
foi uma operação direta ou linear, não foi simplesmente uma questão de
adicionar algo que estava anteriormente faltando. Em vez disso, há uma
incômoda ambigüidade inerente ao projeto da história das mulheres, pois
ela é ao mesmo tempo um suplemento inócuo à história estabelecida e um
deslocamento radical dessa história (SCOTT, 1992, p.75).
Nesta direção, importa refletir sobre a origem do patriarcalismo e de como os
movimentos feministas vêm encarando este debate, sobretudo na perspectiva histórica
de sua prática militante. Em seguida, é necessário lançar um olhar sobre a prática
política de várias mulheres camponesas, inclusive a de Margarida Maria Alves, visando
compreender se essa história estabeleceu, ou não, um deslocamento radical, como
impacto social, na vida delas.
Para Toscano (1992, p.17), retomar o fio da história do feminismo não deve ser
entendido como um episódio que, “à semelhança das guerras e das biografias pessoais,
tem suas datas extremas facilmente identificáveis”. Sabemos, no entanto, que, para
considerar o feminismo como fato social significativo, até a sua afirmação como
movimento social, devemos ponderar considerando duas análises:
a primeira refere-se ao número de atores sociais envolvidos e à influência
de tais atores no campo das relações, sejam elas de natureza política,
ideológica, econômica ou social, e a segunda diz respeito à importância
desse fato para o conjunto da sociedade, como desdobramentos das
mudanças nas relações interpessoais (idem, ibidem).
Entender essas duas análises dentro do processo histórico possibilita, ao mesmo
tempo, compreender o fio da história e os vários registros sobre a conceituação do
feminismo, tanto na perspectiva acadêmica, quanto na ótica do movimento feminista.
Um desses olhares, segundo Toscano (1992, p.18), coloca de forma sistemática a
seguinte formulação: “o movimento feminista denota uma ação organizada de caráter
coletivo que visa mudar a situação da mulher na sociedade, eliminando as discriminações a
que ela está sujeita”. Este olhar foi colocado quando se produziu um balanço do feminismo
no Brasil em 1992 e tornou-se mais ou menos consensual dentro do movimento, uma vez
que as diferenças mais explícitas estão no campo das estratégias adotadas pelos diversos
grupos feministas. Esta avaliação foi discutida por alguns deles, a exemplo de Toscano e
Goldenberg, que debateram o percurso dos movimentos organizados por mulheres:
o feminismo, enquanto movimento organizado, aparece, entre nós, na
segunda década do século XX e se expressa, no primeiro momento, na
reivindicação pelo direito ao voto. Até então, essa bandeira só havia sido
levantada, em caráter muito excepcional, por uma ou outra mulher de
idéias mais avançadas, como foi o caso de Nísia Floresta (1810 –1885)
(TOSCANO, 1992, p.25).
Concomitantemente ao movimento pela reivindicação do voto, os primeiros
passos do movimento feminista no Brasil resgatam a imagem de Nísia Floresta, uma das
maiores representantes, no séc. XIX, da luta pelo acesso das mulheres à educação e ao
sufrágio. Conforme Louro (2002), ainda naquele século, o magistério iria se transformar
em trabalho de mulher, com a construção das escolas normais, e o sentido que se
impregnava na sociedade era de que o magistério passava a ser encarado como extensão
da maternidade.
Então, no início do séc. XX, a partir das idéias de Nísia Floresta e da chamada
feminização do magistério, formavam-se professoras primárias em série, algo que
simbolizava um status de representação da mulher pública. A partir daí, inicia-se a
reflexão pelo acesso à educação em todos os níveis, já que elas só conseguiam ir além
quando detinham um alto status social e apoio familiar para concluir os estudos na
Europa e, em seguida, a luta pelo direito ao voto.
Foram decisivas, nessa abertura da chamada primeira onda do movimento
feminista, as idéias de Bertha Lutz (1894–1976), bióloga que, influenciada pela imagem
do movimento feminista da Europa e dos EUA, juntamente com outras mulheres,
organizaram o movimento sufragista e com ele a Federação Brasileira pelo Progresso
Feminino (1922).
Depois, surgiram outras instituições, a exemplo da União Feminina de Mulheres
Universitárias (1929), da Cruzada Feminista Brasileira (1931), da Obra de Fraternidade
da Mulher Brasileira (1934) e da União Feminina do Brasil (1935). Esta última contava
com nomes como o de Eugênia Álvaro Moreira, Maria Wernec, do Partido Comunista
Brasileiro, e Norma Muniz, do Partido Trotskista. Para Toscano (1989), estes foram
movimentos típicos de mulheres da alta sociedade brasileira, mesmo com a presença de
algumas mulheres de classe média. Ligadas a partidos de esquerda, essas organizações
não tinham por objetivo questionar a ordem:
esse primeiro momento do feminismo organizado e atuante não se
caracterizava por ser revolucionário ou abertamente contestatório. Ao
contrário, na maior parte dos estatutos dessas organizações, vem
registrada a sua intenção de manter-se fiel aos princípios da ordem e
harmonia social (TOSCANO, 1989, p.29).
Contudo, fora do debate dessas instituições, existia um outro debate proposto pelo
movimento feminista anarquista que, nesse contexto, simbolizava as correntes
contestatórias e já colocava, na pauta do feminismo, a discussão da opressão sexual à qual
mulheres e homens estavam submetidos. Este movimento questionava, também, essas
instituições de mulheres, por se pautarem em valores burgueses. Inclusive, não concordava
com a campanha pelo sufrágio universal, denunciando que as mulheres iriam contribuir
com o poder oligárquico vigente no país, uma vez que, para elas e para a própria ideologia
anarquista, as transformações necessárias não podiam ser pautadas através das instituições,
como o Poder Executivo, o Parlamentar e o Judiciário.
Aliás, esta opção não-contestatória às oligarquias, por parte de alguns movimentos
feministas, inclusive o da Federação Brasileira para o Progresso Feminino (1922), liderado
por Bertha Lutz, já tomava contornos quando instituída em sua denominação a
terminologia Progresso, como forma de incorporar a visão positivista e, conseqüentemente,
a perspectiva liberal. Assumia, então, discursos que oscilavam entre o Estado progressista e
o conservador, mas caminhavam na contramão da clara influência de idéias esquerdistas
que ocorria no país, a exemplo da criação do Partido Comunista Brasileiro (1922), da
Semana de Arte Moderna (1922), do Tenentismo (1922–1924) e da Coluna Prestes (1924 –
1927).
Já na segunda onda do movimento feminista no Brasil, eclode, na década de 1960,
o chamado novo feminismo. É quando passa a ser abordada uma revolução de contestação,
inclusive no campo sexual, demarcada pela descoberta da pílula anticoncepcional. Não é
mais um momento de se criarem novas instituições, mas de ousar transgredir os padrões da
época. Esta inspiração norteadora tinha origem nas contribuições da obra de Beauvoir
(1908–1986), O segundo sexo (1948).
A condição feminina, para Beauvoir (1980), fora analisada em todas as suas
dimensões: a sexual, a psicológica, a social e a política, no sentido de demarcar a libertação
da mulher e também do homem. Coloca-se, portanto, uma série de debates e produções
teóricas que resultam em mais força para o movimento. A partir de então, mesmo
considerando a escrita, os discursos e as práticas sociais de outros ensaios, O segundo sexo
representa uma análise exaustiva do que se convencionou chamar de patriarcalismo e suas
conseqüências para mulheres e homens.
O movimento feminista, nos anos 1980, que então se dividia de forma mais
contundente entre o feminismo liberal e o feminismo socialista, passa a refletir mais quanto
à própria organização interna e diverge sobre quais concepções de enfrentamento deverão
se dar na luta contra o patriarcalismo.
Na perspectiva do feminismo socialista, o patriarcalismo e o capitalismo – seu
gestado/gestor – são faces da mesma moeda, conforme foi identificado como ponto de
partida do chamado fio da história da origem da opressão da mulher, explicitado por
Engels (1820-1895), quando de seu trabalho A Origem da Família, da Propriedade
Privada e do Estado (1884).
Engels defendeu que as diferenças sexuais que, supostamente, determinavam as
relações de gênero, não eram frutos de um processo biológico, mas sim diferenças culturais
e que o fim da poligamia exercido pelas comunidades primitivas iniciava o nascimento da
família patriarcal e, com ela, o direito à herança e à propriedade privada, todos controlados
pelo „nascente‟ Estado.
Sua análise percebe a mulher em três fases históricas, a se considerarem: a
primeira, demarcada pela sociedade sem classes, em que as mulheres estariam numa
posição dominante (matriarcado original); a segunda, nas sociedades de classes ainda não
capitalistas, em que as mulheres estariam na condição de escravas e tendo como único
papel o espaço dedicado à reprodução doméstica; e, terceiro, no Estado capitalista, onde as
mulheres seriam reinseridas na produção, tendo uma base para a sua emancipação, mas ao
mesmo tempo, sendo exploradas duplamente, no mundo doméstico e fora dele.
Mesmo assim, a sua grande contribuição para o debate feminista foi considerar o
fato de que o homem, na maioria das sociedades, estava presente nas atividades ditas como
do mundo externo, caças e guerras, construindo-se no mundo público. Assim, concordo
com Engels no sentido de que, a partir desse espaço, o homem foi se apropriando do
subproduto social e constituindo acumulação de poder e de capital.
Segundo Godinho (1989), a forma de a família patriarcal reproduzir valores
reacionários da ideologia burguesa determinou o feitio da divisão sexual do trabalho, a
divisão entre a vida pública e a privada, a existência de uma dupla moral baseada na
mercantilização das relações pessoais e o cultivo da violência do poder masculino. Estes
mecanismos são centrais para a exploração da mulher dentro do capitalismo, pois “embora
a opressão das mulheres não tenha surgido com o capitalismo, foi assimilada por ele como
um dos pilares de sua dominação” (GODINHO, 1989, p.39).
Ainda na década de 1980, os movimentos feministas passam a ter fortes debates
acerca do que a industrialização capitalista provocou de abuso quanto à super-exploração
das mulheres no mundo do trabalho, acarretando-lhes a dupla jornada de trabalho e
acirrando a competição com as atividades masculinas. Mas foi no debate das estratégias
dentro do movimento feminista que existiu uma discussão acirrada quanto à natureza do
foco das lutas.
Por um lado, as feministas de concepção liberal burguesa e algumas feministas nãosocialistas, mas de atuação na esquerda política, defendiam que a libertação da mulher
dependesse apenas do seu enfrentamento direto ao modelo de família patriarcal,
visualizando o homem como único opressor das desigualdades de gênero. Já as feministas
socialistas e de outros movimentos de mulheres não-feministas, porém presentes em
diversos movimentos sociais, achavam que a luta pela libertação das mulheres só seria
possível a partir de uma compreensão da luta contra as desigualdades de gênero e de
classes. Estas defendiam, concomitantemente, a auto-organização das mulheres e o
enfrentamento na luta contra o patriarcalismo e o capitalismo.
Somada a essas percepções, também há necessidade de reflexão sobre a opressão de
algumas mulheres em relação a outras, a exemplo da representação das antigas senhoras de
engenho com as suas escravas, das latifundiárias em relação às campesinas, das
empresárias em relação às operárias, das patroas em relação às empregadas domésticas e
de outras que estiveram, de alguma forma, no topo da hierarquia em relação a outras
mulheres. Conseqüentemente, é preciso considerar o seguinte tripé de exclusão social:
classe, gênero e etnia.
Sobre o debate clássico das divergências quanto a estratégias do movimento
feminista, ele está estritamente ligado, do ponto de vista histórico, às concepções dos
movimentos liberais e de esquerda. E teve seu início ainda na Revolução Francesa, quando
da aprovação dos Direitos da Mulher, proposto por Gouges (1748–1793), marco
fundamental das primeiras organizações das mulheres na sociedade ocidental e que contou
com o apoio apenas de parte dos ditos revolucionários, que propuseram a Declaração dos
Direitos do Homem, fazendo então gerar outra discussão: a questão da inclusão ou não do
parceiro homem na luta pela emancipação da mulher, ou, então, em quais circunstâncias se
poderia caminhar unidos nas mesmas fileiras de luta, já que o mesmo (o homem) era a um
só tempo juiz e parte da discussão.
Em outro contexto, também ocorreram conflitos entre as feministas, no campo das
lutas socialistas. Nos primeiros anos de formação do Estado da União Soviética, logo após
a revolução socialista de 1917, teve início uma substancial mudança no que diz respeito à
situação da mulher, como o direito ao divórcio, ao aborto e ao livre exercício da
sexualidade, consolidados com o novo Código da Família, aprovado em 1918. Tratava-se
de aspectos importantes contra a “dupla moral” existente anteriormente, sobretudo porque
as mulheres vinham de uma situação dominada por forte tradição patriarcal, em que
prevaleciam religiões que não admitiam mudanças tão radicais, como o cristianismo
ortodoxo e o maometismo. Mas essas conquistas foram abolidas quando do acesso de
Stálin ao poder.
Desde Lênin, a maioria dos bolcheviques que assumiram o poder não via
com nenhuma simpatia os desdobramentos da ascensão social e
econômica da mulher. O que não impediu Allexandra Kollontai de tomar
a si a tarefa de elaborar uma nova teoria da moral sexual, apoiando-se na
metodologia marxista. Essa líder revolucionária tinha uma visão muito
avançada do papel da mulher nas transformações rumo à sociedade
socialista. Foi, contudo, com a ascensão de Stálin ao poder, que teve
início o grande recuo nas conquistas revolucionárias adotadas pelo
Código da Família de 1918 (TOSCANO, 1999, pp.22-23).
Aquele contexto produziu o que mais tarde, em outras décadas do século XX,
verificou-se nos espaços de esquerda, em especial no movimento operário e sindical, em
que as feministas e outros movimentos de mulheres teriam que disputar voz, organização e
direção, uma vez que já era visível o aumento do número de mulheres na força de trabalho,
no acesso à educação e seu crescimento no espaço público, embora, poucas vezes,
estivessem representadas em cargos de chefias e comando.
No entanto, mesmo com a prática da dominação masculina persistindo, vale
salientar a incorporação das reivindicações do movimento das trabalhadoras no tocante à
exploração da mulher. Como atesta Godinho (1989, p.19) “já não é mais estranho que um
dirigente sindical ou político faça referência, em seu discurso, à maior opressão e
exploração das mulheres no trabalho e mesmo à dupla jornada”, embora, ainda na década
de 1980 e no contexto da eclosão do novo sindicalismo, se tenha tido muita dificuldade de
compreender a necessidade da luta pela libertação das mulheres como um aspecto
específico da luta dos trabalhadores:
mesmo a vanguarda do movimento, os setores mais politizados do
PT e da CUT, têm tido dificuldades de compreender a necessidade
da luta pela libertação das mulheres [...] e de incorporar o
feminismo como um elemento da luta pela construção do
socialismo. Essas dificuldades relacionam-se fundamentalmente a
dois aspectos. Em primeiro lugar, à não compreensão efetiva do
papel ativo que a ideologia patriarcal – os valores, a moral, a
educação etc – joga na manutenção não apenas da opressão das
mulheres, mas na dominação capitalista sobre a classe trabalhadora
como um todo. O segundo aspecto relaciona-se ao papel que os
homens desempenham nesta opressão, por obterem privilégios
materiais, pessoais, afetivos, sexuais etc, decorrentes da
subordinação das mulheres (GODINHO,1989, p.19).
A distinção entre teoria e prática fizera-se uma constante entre os ditos homens da
„vanguarda”, mesmo os que assumiam o discurso feminista, de defesa da participação
política das mulheres. Esta prerrogativa não podia ser estendida às suas esposas, mas
apenas às outras mulheres. Isto demarcava que o seu mundo era o que tinha de ser, o
espaço público; e o da sua esposa/companheira, devia ser o privado, também fortalecendo
o estereótipo de que as mulheres que atuassem nos partidos e sindicatos não podiam ser as
casadas, mas as solteiras e as divorciadas/separadas, o que também representava a sua
manutenção de privilégios sexuais, já colocada por Godinho.
Várias foram (são) as denúncias contra alguns dirigentes sindicais que agrediam
(agridem) verbal, psicológica e até fisicamente as suas esposas e companheiras do
movimento sindical e partidário, o que tendia a não ser discutido, devido à defesa imbuída
do discurso de que esse não era assunto público e sim privado.
Para Maria da Penha do Nascimento (1949 –1991), militante do sindicato rural de
Alagoa Grande e do Movimento de Mulheres do Brejo, essa discussão se fazia presente
entre as mulheres sindicalistas daquela região. Ela, Margarida Maria Alves, D. Antônia,
Soledade e tantas outras tinham muito presente a questão. Durante o I Congresso do
Departamento Nacional dos Trabalhadores Rurais da CUT, em maio de 1990 , Maria da Penha do
Nascimento fez o seguinte discurso:
as feministas começaram a nos despertar como mulher. Mulher era vista
como um objeto, simplesmente como um objeto, um inseto [...] eu acho
que o movimento feminista tem uma abertura bem grande com a luta de
classes . (NASCIMENTO, Maria da Penha. Ata do I CNTR , 1990, p.
12).
Mas esta denúncia inovadora do movimento feminista, a partir da década de 1970,
como atesta Machado (1997, p.27), também passou por abalos e nem sempre foi consenso
entre o movimento feminista e outros movimentos de mulheres, pois, ao mesmo tempo em
que aprofundou o debate acerca das opressões das mulheres, vivenciadas nos espaços
públicos e privados, também pôs em discussão a liberdade e a autonomia do corpo
feminino: “não só escandalizaram os meios institucionais machistas e conservadores, como
também confundiram de forma polêmica todos os segmentos sociais femininos, até mesmo
aqueles considerados mais organizados politicamente”.
Então, nesse debate, algumas formulações tomam outras conotações sobre as
conceituações feministas e sobre as suas particularidades, em relação a outras concepções
dos movimentos de mulheres. A jornalista feminista Studart, assim alertava:
a feminista é aquela mulher que não denuncia apenas a pobreza das
trabalhadoras do seu sexo. Não é também aquela militante política que
protesta contra a carga brutal de trabalho. A feminista vai mais longe e
mais fundo. Ela denuncia e atua sobre a discriminação mais íntima, mais
arcaica, mais dolorida e mais ameaçadora. Fala da tirania na relação
homem-mulher. Protesta contra a mais velha das dominações, aquela que
se faz sobre o estreito território do corpo [...] e escandaliza porque quer
abolir uma lei muito antiga: a do comando do homem sobre a sexualidade
da mulher. Diante dessa pretensão, desse desafio, não são só os homens
que recuam, assustados e galhofeiros. A maioria das mulheres também se
sente acuada e se defende com a frase: sou feminina, não sou feminista
(MACHADO, 1997, p. 27).
Muitas
mulheres do mundo rural não se formaram nas organizações de práticas
sindicais e feministas. E, sim, a partir dos debates sobre as condições de vida realizados em
pequenos grupos, a maioria de matriz religiosa ligados às pastorais, ou de grupos de matriz
laica formados pelo intuito de resistência às expulsões dos moradores das fazendas.
(GIULANI, 2002). E, daí, havia uma resistência enorme de aceitar debates que falavam
sobre o direito à sexualidade, preconizado pelo feminismo, por exemplo.
Para o movimento contemporâneo de mulheres, em especial para as trabalhadoras
urbanas e rurais, assume-se a representação feminina na luta contra todas as formas de
discriminação à mulher no mundo do trabalho e na sociedade. Assim, as suas organizações,
tanto no Brasil como na América Latina, na Europa e na América do Norte, refletem as
suas articulações em comissões, associações e redes, como forma de discutir avanços e
recuos do movimento feminista, em todas as suas frentes de atuação, contra a
discriminação e exclusão feminina.
3
REPRESENTAÇÕES
DA(S)
EXPERIÊNCIAS(S)
POLÍTICA(S)
DE
MARGARIDA MARIA ALVES
3.1 O papel do CENTRU na formação da transição política de Margarida Maria
Alves
O CENTRU foi construído em 1980. O seu congresso de fundação data de 9 de
novembro de 1980, em Olinda, Pernambuco, estabelecendo sua sede nacional em RecifePE, e suas sub-sedes, na Paraíba e no Rio Grande do Norte, a partir das idéias de vários
sujeitos sociais: trabalhadores/as dos movimentos rurais; assessores dos movimentos
populares, a exemplo de professores universitários, além de estudantes e artistas. Teve, na
expressão do líder sindical rural maranhense Manoel da Conceição Santos, atuante no Vale
do Pindaré – MA, uma de suas grandes expressões, conforme atesta Batista (1997):
na defesa dos trabalhadores rurais e de sua gente, Manoel da Conceição
foi vítima da ditadura militar instalada no país em 1964. Foi preso e
torturado, perdeu uma perna em conseqüência dos maus tratos na prisão.
Ficou conhecida uma frase sua, a respeito deste episódio: “Minha perna é
minha luta‟ (BATISTA, 1997, p. 134).
Na percepção de Manoel da Conceição sobre Margarida Alves, o papel do CENTRU
era o de um dos principais instrumentos de educação e da política. A educação constituía
uma arma de luta frente ao latifúndio. As idéias de Paulo Freire inspiravam sonhos de
organização, luta, esperança e liberdade. Aliados a essa idéia, vários outros/as
trabalhadores/as rurais se unificaram, naquele contexto.
Na Paraíba, mereceram destaques Luís Silva, do sindicato de São Sebastião do
Umbuzeiro, José Martins, do STR de Serraria, Maria da Penha do Nascimento Silva e José
Horácio, todos do sindicato de Alagoa Grande, além da professora Neide Miele, do
professor Leôncio Camino e Vanderlei Amado, e os estudantes Romero Antônio Leite e
Antônio Barbosa, entre outros.
Os debates caminhavam no sentido da formação educacional e política, mas o
congresso de fundação foi marcado por fortes divergências entre sindicalistas ligados à
FETAPE, que se retiraram do debate e do congresso. Segundo Batista (1997, p.135):
essas divergências diziam respeito se a direção do CENTRU devia ter em
sua composição só trabalhadores rurais ou se necessitava ser composta
também por assessores, educadores, intelectuais e outras personalidades.
Eleita a nova diretoria do CENTRU regional, da qual Margarida Maria Alves e Luís
Silva faziam parte, foi realizado um dos maiores congressos no Nordeste, nos dias 11, 12 e
13 de setembro de 1981, em Recife - PE, onde desenvolveram um programa de formação
política do CENTRU. Um dos entrevistados, (E-09), descreve um pouco como via o
CENTRU e como via a Margarida Alves, na participação desse Centro:
já conheci D. Margarida como coordenadora do CENTRU – Centro (dos
trabalhadores) de Educação e Cultura dos Trabalhadores Rurais, aliás o
CENTRU atuava em rede, nós tínhamos o CENTRU da PB; no
Maranhão; no Rio Grande do Norte e tínhamos uma célula do CENTRU
na Bahia. E, faziam parte aquelas lideranças políticas; intelectuais;
professores universitários; professores do estado – estes sujeitos – tinham
um propósito e uma missão política de ampliar o CENTRU por todo o
nordeste e, evidentemente, naquela época, não se percebia isso. Naquela
época havia uma grande preocupação com a formação, com o formar
lideranças, nos movimentos sociais e a partir de Alagoa Grande, a partir
do Brejo paraibano, [região de referência dos movimentos campesinos].
Margarida, já naquela época, todos nós a víamos como uma mulher muito
corajosa! (...) Ela era uma intelectual orgânica, segundo os princípios que
estudávamos em Antônio Gramsci. Era uma pessoa que tinha senso de e
da realidade que estava a sua volta. No Estado [paraibano] ela se
apresentava como um quadro político à disposição da justiça e de lutar
pelo sindicato com toda força para defender os trabalhadores (E-09 em
31/07/2009).
Margarida Alves cresce com o trabalho do CENTRU e vai cada vez mais se
envolvendo, com toda essa disposição de defender os direitos trabalhistas, mas passa a
achar necessária a formação e capacitação dos quadros sindicais.
Outras organizações sindicais adotaram o método de alfabetização de Freire, com
um programa que alfabetizava em 40 (quarenta) horas, e que foi desenvolvido no seu livro
Conscientização (1996). O CENTRU, mesmo tendo uma linha freireana, na visão de
alguns ex-participantes, optou por um programa baseado em aulas/diálogos de análises de
conjuntura, história geral e do Brasil, e formação política, abrangendo análises de dois
sistemas políticos: capitalismo e socialismo. Logo a diante, registramos uma ilustração dos
cadernos do CENTRU que foram elaborados sobre formação sindical.
Fonte: Caderno do CENTRU, 1° caderno, 1981, p. 4.
Através de uma linguagem lúdica, este caderno possibilitava uma compreensão
crítica e sugeria debates quanto à formação do dirigente, para que ele não assumisse um
perfil centralizador, nem personalista. Pois o texto conduz a uma simbologia em que o
sujeito que representa o secretário do sindicato simplesmente não resolve nada. Ou seja,
atribui as decisões ao presidente, que, por sua vez, estava sempre ausente do espaço físico
sindical por assumir continuamente outros compromissos políticos. Essa é uma crítica,
também, ao “sindicalismo oficial”, onde prevalecia o peleguismo.
Logo em seguida, o mesmo caderno de formação do CENTRU coloca as seguintes
questões para o debate:
QUESTÕES PARA REFLEXÕES
1. A maioria dos associados do seu sindicato mora nos sítios ou nas pontas de
rua?
2. De quanto em quanto tempo a diretoria se reúne?
3. Quem da diretoria realmente participa da vida sindical e o que faz?
4. O Compadre diz “a gente só vai poder mudar a situação participando no
sindicato. De fora a gente não muda.” O que você acha disso?
5. Se o seu sindicato funciona como essa historiazinha o que você acha que
deve se fazer para mudar?
Fonte: Caderno do CENTRU, 1° caderno, 1981, p. 11.
Bom, esse primeiro caderno de reflexões elaborado pelo CENTRU possibilitava
reflexões através da própria experiência do sindicalista. Tratava-se de conduzir à crítica e
à auto-crítica. Esta essência formativa freireana apontava na direção de uma prática
problematizadora da realidade. Trata-se da leitura a priori, em que Freire (1988, p. 35)
diz que “o homem chega a ser sujeito a partir do momento em que começa a fazer
reflexão sobre sua situação, sobre o seu ambiente concreto. Quanto mais ele se esforça no
sentido de ampliar esta prática, mais se manifesta diante dos problemas sócio-políticoeconômicos”.
Preocupada, além disto, com o índice de analfabetismo do povo na zona rural,
Margarida Alves ia se envolvendo cada vez mais nas discussões do CENTRU. E, como
esta entidade prestava assessoria aos sindicatos rurais de quase todo o Nordeste buscando
mecanismos para a implementação de uma educação política, tendo como objetivo a
formação de quadros sindicais, Margarida Alves ia ampliando o seu leque de
conhecimentos. Ainda no momento da abertura daquele congresso, Margarida Alves fez o
seguinte pronunciamento:
se a gente se isolar, se a gente faz uma concentração por aí outra por
acolá, se o sindicato é dividido, eles tomam a frente porque eles estão
sentindo que estamos desorganizados. É por isso que os poderosos ficam
nos intimidando e até espionando pra ver qual o trabalhador que faz parte
do sindicato...Nós não podemos calar diante dessa multidão de famintos e
injustiçados, temos que denunciar a situação em que estamos. A gente
nunca vai esmorecer, não queremos o que é de ninguém, nós queremos o
que é nosso: Terra e educação (BRAZIL, 2000, p.362).
O seu discurso demarcava, então, a necessidade da organização e o sentimento de
reconhecer divergências presentes, embora fizesse um apelo à adesão das forças, no
sentido de ter como objetivo principal a luta frente ao latifúndio, mas também a esperança
do movimento por educação. Esse congresso contava com a presença de inúmeras
caravanas de trabalhadoras/es rurais do Nordeste, dos assessores/as, além de outras
personalidades. Assim estavam presentes: Paulo Freire, Herbert de Souza (Betinho) e Luís
Inácio Lula da Silva (atual presidente da república).
A fala de Paulo Freire era, ainda, uma das mais esperadas e sua participação se deu
em dois dos três dias de Congresso. O seu envolvimento ocorreu em vários momentos de
discussão, coordenação de grupos de trabalho sobre Educação e Prática da Liberdade;
Educação e Formação Política.
Além da explanação sobre educação popular, Paulo Freire falou sobre a
necessidade de o CENTRU promover um Grupo de Trabalho sobre educação e luta das
mulheres, uma vez que era visível a pouca participação das mulheres, sendo um congresso
quase exclusivo de homens.
O congresso também foi marcado por várias apresentações artísticas e culturais.
Um desses momentos foi o teatro de bonecos ou, como as pessoas da região o chamavam,
João Redondo, que teve na interpretação de um esquete, o que dois anos mais tarde iria
mais uma vez acontecer, a violência do latifúndio contra os/as trabalhadores/as rurais.
Também temas como a seca e o analfabetismo foram interpretados. Nesse contexto,
merece destaque a participação de artistas mulheres, professoras, representando a fuga do
povo nordestino, com a retirada das pessoas para o sul do país, interpretando as
conseqüências do polígono das secas, devido à falta de políticas públicas para a região do
Nordeste, a exemplo de falta de geração de emprego e renda, de escolas, de moradia, de
saúde e saneamento básico. Essas professoras que interpretaram a peça teatral faziam parte
de um grupo organizado do magistério da Paraíba, e ficaram conhecidas como as
professoras do brejo; elas também assessoraram, mais tarde, em 1986, a organização do
Movimento de Mulheres Trabalhadoras do Brejo.
Outra discussão versava sobre a organização da classe trabalhadora e ocorreu de
forma intensa, com grande ênfase durante o pronunciamento do líder nacional Luís Inácio
Lula da Silva. Este momento trazia consigo outras inquietações, como a recente fundação
da Comissão Pró - CUT (1979)
37
e a fundação do Partido dos Trabalhadores (PT), em
1980, com a crescente expansão dos sindicatos e a filiação de várias comissões
provisórias do PT pelo interior da Paraíba.
Uma das falas do líder Lula, segundo vários participantes, destacava a importância
da unificação dos trabalhadores/as do campo e da cidade, como forma de acumular forças
para as transformações indispensáveis no Brasil e na América Latina, bem como a
necessária desmilitarização. As mobilizações das Diretas – Já só ocorreriam em 1984, mas
o clima já era de luta pela redemocratização no país, inspirado pelas mobilizações com
caráter de massa, como as que foram representadas pelas crescentes greves no ABC
paulista.
Havia um destaque, no Estado da Paraíba, para a organização sindical dos
professores/as do magistério público da rede estadual de ensino, dos trabalhadores/as do
sindicato dos têxteis e a crescente campanha por direitos trabalhistas por parte dos
sindicatos rurais.
Outra participação importante nesse seminário do CENTRU que ocorreu foi a
contribuição de Herbert de Souza, o Betinho, que falou da necessidade de acalentar o
sonho de se acabar com a fome no país, sobretudo nas regiões mais atingidas pela seca e
pelo descaso dos governos militares, com a situação de fome de crianças, adultos e
idosos. Àquela ocasião, constituía apenas uma das muitas falas do Betinho, nesse sentido,
até se estruturarem em campanhas e ações de combate à fome, anos mais tarde, já na
década de 1990, por ele lideradas.
O término das discussões caminhou para uma agenda política e para a
implementação do método Paulo Freire, o que cabia levar à conscientização da
37
A CUT só foi fundada em 1983.
necessidade de uma educação libertária e avançar na linha da organização da luta de
classes.
A III assembléia geral do CENTRU ocorreu em agosto de 1983, na cidade de
Guarabira-PB, exatamente no dia 12 de agosto. Durante as discussões chegava a notícia
do assassinato de Margarida Maria Alves, que não comparecera no último dia, em virtude
de outros compromissos assumidos com o sindicato, nos quais estava empenhada.
Estava prevista a realização de um seminário de três dias, após o término
da assembléia geral, para aprofundamento sobre o movimento sindical.
Margarida, pela manhã do dia 12 (primeiro dia do seminário), por motivo
de responsabilidade do sindicato, viaja para Alagoa Grande com o
objetivo de voltar no dia seguinte. Não foi possível seu regresso, a mão
armada do latifúndio ceifou sua vida, suprimindo o movimento camponês
de uma liderança expressiva e combatente [...] é impossível descrever o
sentimento dos participantes daquela assembléia, ao receberem tal
notícia. Logo após serem tomadas as primeiras providências, o CENTRU
elabora um boletim informativo extraordinário, e divulga a nível nacional
e internacional o trágico acontecimento. (BATISTA, 1997, pp.139-
140).
A indignação possibilitava a exigência da punição dos culpados e reafirmava a
posição de continuar a campanha trabalhista em elaboração. E o avanço das lutas dessa
campanha iria tomar uma conotação de luto e de dor. Por todo o país, as mobilizações
ocorriam, e em todas as faixas estampava-se uma frase de Margarida que marcava a sua
presença em todos os momentos: “É melhor morrer na luta do que morrer de fome”.
3.2 O Movimento de Mulheres Camponesas na Paraíba e Margarida Maria Alves
Falar das lutas das mulheres trabalhadoras rurais passa por um olhar sobre as ações
travadas pelo direito à liberdade, por melhores condições de trabalho e de vida, desde o
período do Brasil Colônia e do massacre que se deu com as nossas índias, negras, pobres e
outras mulheres, nesse percurso. Este trabalho é muito intenso, porque quase nenhuma
mulher foi consagrada nas páginas dos livros e revistas que contam o lado oficial da
história brasileira, tarefa historiográfica que tem sido elaborada por defensores da Nova
História Cultural.
Giulani (2002, p. 645) nos diz que há uma relação tênue entre “as mobilizações das
trabalhadoras rurais e as potencialidades criadoras da crítica à divisão sexual do trabalho”,
já que elas têm convicção de que foram exploradas pelo sistema patriarcal, dominante na
sociedade rural brasileira.
Ao tomar como referência a organização por dentro do sindicalismo rural, o viés
feminista estava oculto, já que a participação destas trabalhadoras era pouco visível na
maioria dos sindicatos. Em meu diálogo com as camponesas, percebi que muitas não se
filiavam devido às opressões dos pais ou dos maridos, que se pronunciavam dizendo “isso
é coisa de homem”.
Esta realidade iria começar a tomar outra conotação durante a participação de
algumas mulheres no I Congresso Nacional de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas
(1961). Além de uma participação efetiva nos temas gerais, as mulheres camponesas,
articuladas com as trabalhadoras urbanas, empunharam as bandeiras em defesa da reforma
agrária, da previdência social, da educação e saúde pública, além de incorporar o debate
sobre os direitos das mulheres e dos adolescentes possibilitando, dessa forma, revelar as
dimensões feminista e classista da luta camponesa.
Tanto é que, ainda nesse congresso, foram aprovadas as seguintes propostas na
comissão de reivindicações sociais, com o recorte feminista:
a campanha de alfabetização e ensino técnico, a cargo do poder público,
com escolas itinerantes e rádio-escola, o incentivo ao movimento
feminino rural e ao seu intercâmbio com o da cidade, comemoração nas
zonas rurais do Dia Internacional da Mulher – 8 de março, assistência
médica, odontológica e hospitais, dando-se prioridade à assistência, à
maternidade e à infância, utilização de todas as entidades e recursos do
poder público sob administração do município, criação de um fundo sob
administração do município, e criação de um fundo especial pra esse fim,
o qual poderá constituir-se de: imposto sobre o latifúndio; percentagem
sobre o imposto de renda; contribuição patronal; contribuição do
camponês; pagamento do salário mínimo às professoras rurais; assegurar
o registro gratuito dos filhos de famílias pobres. FONTE: CONTAG (In:
Mulheres rurais, nº especial, 2003, p.05).
Sob a ameaça do governo militar, em maio de 1973, a CONTAG realiza o 2º
Congresso Nacional de Trabalhadores Rurais, reunindo 700 delegados e delegadas
sindicais em Brasília.
A preparação deste congresso envolveu milhares de trabalhadores e trabalhadoras
rurais de todos estados brasileiros, congregados em 19 federações estaduais, 1.500
sindicatos e uma delegacia regional. Foram realizados reuniões e congressos estaduais e
regionais nas cidades de Curitiba, Belo Horizonte, Belém e Recife.
O Congresso apresentou propostas para o acesso à terra, assistência técnica e
comercialização, educação, organização do movimento sindical, normas de proteção ao
trabalho e Previdência Social Rural, retratando as expectativas da categoria de combater as
desvantagens entre a classe trabalhadora urbana e a rural.
Surgem ali outras propostas voltadas especificamente para as mulheres e a
juventude trabalhadora rural. Nesta luta, despontava a sindicalista rural de Alagoa Grande
Margarida Maria Alves, que discutia as implicações legais contidas no Fundo de Amparo
ao Trabalhador Rural (FUNRURAL) e, também, discursava na defesa da educação de
qualidade no meio rural, conforme documentos da CONTAG (1961).
A proteção social à maternidade é uma das primeiras bandeiras das mulheres
trabalhadoras rurais do Movimento Sindical dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais
(MSTTR) pelo seu reconhecimento. Esta luta começa em 1973, quando elas reivindicavam
que fosse concedido à trabalhadora rural o auxílio-gestante, no período compreendido
entre seis semanas antes e seis semanas após o parto. Esta proposta não se constituía em
novidade, pois o Art. 55, alínea "A", do Estatuto do Trabalhador Rural, já assegurava à
mulher o salário-gestante.
A novidade era sua extensão a todas as mulheres que prestam serviço no campo. As
demais reivindicações, que incluíam implicitamente as mulheres, como salário-família,
auxílio-natalidade, foram uma constante. A permanência da CONTAG junto às entidades
do Pró-CUT, entretanto, tem vida curta. A Central Única dos Trabalhadores (CUT) é
fundada em 1983, sem a CONTAG. Só mais tarde esta se afiliaria, devido à natureza de
vários conflitos que ocorreram nas disputas dos sindicatos rurais em várias cidades do país.
O 3º Congresso Nacional dos/as Trabalhadores/as Rurais (CNTR) garantiu,
definitivamente, a entrada de um novo sujeito coletivo no cenário político e sindical: as
mulheres trabalhadoras rurais.
A luta por um salário-mínimo que garantisse uma vida digna para o/a trabalhador/a
e sua família, por um salário igual para trabalho de igual valor e pelo reconhecimento dos
trabalhadores em sítios e chácaras como da categoria trabalhadora rural e não trabalhador
doméstico, indiscutivelmente, abriu as portas para incorporar na pauta sindical as primeiras
reivindicações das trabalhadoras camponesas assalariadas.
As proposições aprovadas em plenário defendiam alteração na legislação então em
vigor, a fim de que fosse concedida, aos trabalhadores rurais, aposentadoria por velhice,
aos 55 anos, quando homens, e aos 50 anos, quando mulher. E mais: que a aposentadoria
por invalidez, o auxílio-funeral e a pensão por morte fossem concedidos à mulher ou
companheira do trabalhador rural.
Inicia-se a luta em defesa do salário-maternidade para as mulheres trabalhadoras
camponesas. Essas proposições aparecem entre as reivindicações de auxílio-doença,
salário-família, auxílio-reclusão. Aparece também a reivindicação de amparo à esposa ou
companheira do trabalhador rural e seus filhos menores, desde que trabalhem em regime de
economia familiar ou sob forma assalariada.
Contudo, apesar dos avanços obtidos no 3º CNTR, este congresso reafirmou a
cultura patriarcal, ao afirmar que a titulação da propriedade é apenas do homem "chefe de
família", ou "dos jovens que venham a constituir família", reafirmando, portanto, a
exclusão das mulheres trabalhadoras rurais da titulação da propriedade.
Não era fácil falar na reunião do Conselho da CONTAG, era formado por
presidentes, tesoureiros ou secretários (as) gerais, todo mundo se metia e
a gente tinha que apresentar nossas propostas era ali, não tinha outro
lugar, mas fico feliz em saber que o que somos hoje foi construído e
conquistado por nós mesmas. FONTE: (E-2) – Membro da Comissão de
Mulheres da CONTAG, João Pessoa, em 13/07/2004.
Além da pertinência de a mulher ter que assumir uma dupla jornada militante
dentro dos fóruns sindicais, em defesa dos direitos trabalhistas e das especificidades das
desigualdades de gênero, ela necessitava de uma força interior renovada, a cada dia. As
formas como seus maridos e companheiros foram perseguidos e assassinados, quando não
as próprias, constituíam outra luta e dor que denunciavam o sofrimento vivido pelas
mulheres trabalhadoras rurais, que tiveram que conviver com a violência da ditadura
militar, buscando forças para proteger a si e a sua família de novos seqüestros e
assassinatos.
Nesse contexto, a morte do trabalhador rural João Pedro Teixeira, em 1962, das
Ligas Camponesas, e a continuidade da luta por Elizabeth Teixeira constituíam-se na maior
simbologia das discussões no meio das mulheres camponesas. Sua história de resistência
foi contada no filme Cabra marcado para morrer, do cineasta Eduardo Coutinho (1984).
Nela foi retratada toda a história de violência que se acometeu sobre a família de João
Pedro e Elizabeth Teixeira.
Ele, um camponês nordestino que disse que “não há nada como um dia depois do
outro, a noite no meio e Deus lá em cima”. Com esta cena, Coutinho dirigia, narrava e
interpretava a visão de mundo dos/das camponeses/as a partir da referência dos sujeitos de
uma classe social excluídos/as da terra e esmagados pela ditadura, gradativamente
implantada no pós-1964.
Ela, a mulher Elizabeth Teixeira, atua no filme como protagonista que eternizou,
na memória coletiva, a luta das Ligas Camponesas, seu surgimento, trajetória e desfecho.
Mas foi a sua história de resistência aos latifundiários, assumida como liderança feminina
contida no juramento diante do corpo do marido: Eu marcharei na tua luta, registrada por
Bandeira e outras (1997), que se revelou com mais profundidade histórica o seu
pioneirismo feminino nas lutas camponesas.
Segundo várias participantes dos STRs, os últimos exilados (as) e presos políticos
foram anistiados, a luta pela emancipação da mulher ganhava espaço e muitas
organizações sociais passaram a desenvolver metodologias e conteúdos voltados para o
resgate da cidadania e auto-estima das mulheres trabalhadoras rurais.
As conquistas dos trabalhadores (as) brasileiros (as), em especial das mulheres
trabalhadoras camponesas, precisaram, ainda, de muito tempo para ser regulamentadas. O
MSTTR passou a desenvolver várias mobilizações e manifestações no sentido de garantir
as conquistas obtidas, mesmo após a promulgação da Constituição Federal, em 1988. Entre
essas conquistas, destacaram-se:
reconhecimento da participação da mulher no processo produtivo e não
mais dependente do marido, aposentadoria por idade diferenciada para
homens aos 60 anos e mulheres aos 55, aposentadoria por tempo de
serviço, aposentadoria e pensões pagas com o valor do salário-minimo
vigente no país, FGTS com multa de 40% nas demissões sem justa causa,
contratação individual, sindicalização da mulher trabalhadora rural,
estabilidade no emprego ao delegado sindical e sua família, ato da
demissão do empregado não estendido a toda sua família que trabalha no
mesmo local, seguro-desemprego, salário de igual valor para o mesmo
trabalho, igualdade de oportunidades e de salários entre mulheres e
homens, licença maternidade de 120 dias com salário integral e serviços
leves para as gestantes assalariadas rurais, bloco de notas de
comercialização emitido em nome da mulher e do homem, indenização
do governo às viúvas e familiares das lideranças sindicais assassinadas
durante a ditadura militar e o aumento no pagamento dos programas de
emergência nas regiões de seca (CONTAG apud MULHERES RURAIS,
2003, p. 12)
As resoluções do 5º CNTR e dos congressos anteriores revelam que a
especificidade da luta das mulheres traz para dentro do MSTTR um novo recorte da luta
das mulheres e de classes, a discriminação de raça e etnia. As mulheres convocam o
conjunto do MSTTR à responsabilidade de lutar contra a opressão de gênero, como tarefa
de toda a classe trabalhadora, evidenciando o caráter político, social e ideológico dessa
luta.
Neste sentido, as mulheres rompem as fronteiras machistas do mundo sindical e
fazem o debate político de questões antes reservadas ao mundo privado. Temas como o
trabalho doméstico e a autonomia sobre o corpo são debatidos nas Comissões Temáticas
do Congresso.
Na Comissão de Assalariados, o debate sobre gênero e reprodução vem fortemente
articulado com as mais diversas formas de exploração da força de trabalho feminina. As
mulheres propõem que o MSTR denuncie as diversas práticas de discriminação e violência
nas relações de trabalho, e novas propostas passam a ser incorporadas na pauta de
reivindicações:
contra a exigência de atestado de laqueadura de trompas no ato da
contratação de mulheres assalariadas; ameaças de demissão das gestantes;
violência nos locais de trabalho praticada por chefes e encarregados;
redução da jornada de trabalho durante o ciclo menstrual; cota de 30% de
mulheres na contratação por empresas; creches nos locais de trabalho
(CONTAG apud MULHERES RURAIS, 2003, p.17).
A incorporação dessas preocupações, aqui assinaladas, à reflexão das propostas dos
movimentos sociais rurais sinalizava para a consolidação de uma autonomia construída na
organização das mulheres, mas que simbolizava toda uma conquista da classe trabalhadora.
Segundo uma das coordenadoras da Secretaria da Mulher da CONTAG, Raimunda
Mascena:
[...] na década de 1990, a estratégia foi o fortalecimento da organização
dentro do MSTTR. Foram realizados seminários, encontros e plenárias
nacionais. Em 1991, foi eleita a 1ª mulher na diretoria da CONTAG,
Tereza dos Santos da Silva, de Araxá – MG; em 1995 foi constituída a
comissão nacional de Mulheres Trabalhadoras rurais. Em 1997, no 7º
Congresso, foi aprovada a política de cotas, e eleitas 03 (três) mulheres
para a diretoria executiva na CONTAG; nesse congresso, as mulheres
representavam 42% das congressistas. Em 1999, no 2º Congresso
Extraordinário, foi aprovada a cota de, no mínimo 30% de mulheres
como princípio estatutário para todas as instâncias do MSTTR e de 50%
nos espaços formativos (LIMA, 2002, p.134).
Atualmente, as mulheres ocupam variados cargos, em todas as instâncias do
movimento sindical rural, mas outro grande desafio colocado para o conjunto do
movimento, segundo Lima (2002, p.134) “é avançar na formulação e implantação de uma
política transversal de gênero”.
Como se vê, foram várias as atividades que contribuíram substancialmente para
qualificar e articular as ações políticas das mulheres, na perspectiva de se assumirem como
sujeitos políticos e, conseqüentemente, como dirigentes das organizações sociais, partidos,
parlamentos, dentre outros.
No atual contexto, os movimentos populares campesinos brasileiros, tanto no
sindicalismo rural como no Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), entre outros,
contemplam o estudo de gênero, na perspectiva feminista, na formação política e teórica
das/os militantes, não apenas pelo entendimento de que a mulher está intimamente ligada à
história da terra – indo da perspectiva mística até a classista -, mas na expectativa de que as
lutas agrárias e das mulheres combinam-se e se complementam.
Embora represente importantes avanços esse caminhar junto, ainda são muitas
questões em aberto: como ressaltar que a luta como trabalhadora é apenas uma faceta da
luta das mulheres? Como garantir um espaço que lhes assegure direitos de uma cidadania
integral, num espaço marcado pela exclusão de classe e gênero? Daí a necessidade de
movimentos autônomos das mulheres por dentro desses movimentos.
Ao estabelecer esses questionamentos, passo a trilhar a busca de pistas históricas,
sobretudo da memória de lideranças que fizeram e fazem transformações significativas no
seio de seus movimentos, como também na sua prática familiar e militante,
desenvolvendo sua práxis, com as leituras de suas experiências.
Nessa perspectiva é que se ancora o olhar sobre as mulheres camponesas, que,
feministas ou não, colocaram em suas bandeiras de luta o anseio e as ações de mudança na
sua condição e conhecimento de vida. Mas, nessa construção da identidade de gênero em
especial, busca-se a emancipação ou a construção do sujeito mulher, dotado da plenitude
da sua sexualidade, da exposição dos seus desejos, da sua capacidade de falar e de ser
ouvida nos espaços familiar, político, social etc.
Faz-se, assim, necessário, entender a opção pela denominação “Movimento de
Mulheres Camponesas” que, até o início desta década, se denominava “Movimento de
Mulheres Rurais”; esta mudança se deu em virtude da compreensão de três momentos
distintos, nos seus fóruns de discussão.
Primeiro, no âmbito da constatação da força de trabalho desenvolvida por elas,
pois, mesmo quando da denominação “mulheres rurais”, a essência do movimento sempre
fora campesina, que é mais ampla, em virtude de o movimento incorporar não somente as
mulheres sindicalistas rurais, mas as ribeirinhas, as quebradeiras de coco, as borracheiras,
entre outras, em que toda a categoria trabalho está intimamente ligada à terra,
independentemente de se a forma de utilização é a plantação e coleta ou a extração
vegetal.
Segundo, no âmbito simbólico, quando se incorporou a memória coletiva e a luta
das Ligas Camponesas, procurou-se homenagear uma de suas maiores expressões, a
camponesa Elizabeth Teixeira.
A terceira dimensão é a política. Ser camponesa ou camponês é ter identidade de
„campo‟, e não apenas do „rural‟. O campo é uma associação mais direta com a terra, do
que o rural. O mundo rural já não é mais o mesmo. As maquinarias do agronegócio estão
cada vez mais deixando o mundo rural „desterritorializado‟ e, portanto, distante da terra.
As experiências anteriores com a educação popular vivenciadas por mulheres
camponesas delineiam o sujeito camponês atual. Menciono, a seguir, algumas lideranças
referências, por novas evidências em suas trajetórias. Elas estão, desta forma, associadas ao
pioneirismo político-educativo sindical e popular.
No caso da Paraíba, a relevância educativa, nos moldes da lutas populares de
Elizabeth Teixeira, Margarida Maria Alves e Maria da Penha Nascimento, que se
constituíram em expressões no cenário regional e nacional, tanto no movimento de luta
pela terra quanto no movimento de mulheres, são por demais expressivas.
O período em que atuaram tem em comum um marco de transição, no contexto que
vai da ditadura militar à „reabertura democrática‟, possibilitando a eclosão dos movimentos
de massa, como do movimento de organização dos trabalhadores (as) do campo, em que,
além das Ligas Camponesas e sindicatos rurais, entram em cena a CPT e o MST. Embora,
na Paraíba, nesse período, a maior atuação tenha passado pelas Ligas Camponesas, a CPT
e os sindicatos rurais também se destacaram, em especial os localizados no Brejo
paraibano, pois o MST se consolidaria apenas nos meados da década de 1990.
Mas foi nesse contexto, também, que a educação popular alçou vôos. Como
explicita Ghiraldelli (2003):
no Brasil, entre os anos de 1960 e o início dos anos de 1980 [...] o
movimento renovador do ensino, ou seja, o escolanovismo ganhou uma
vertente especial que acabou até se desgarrando dele e se tornando um
ideário educacional próprio: a pedagogia de Paulo Freire.
(GHIRALDELLI, 2003, p.163).
A influência de Paulo Freire, com a Pedagogia Libertadora, foi direcionada à
educação popular, em especial à educação de jovens e adultos da cidade e do campo, e
teve o apoio das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).
A atuação da Campanha da Educação Popular (CEPLAR) na Paraíba, com a
utilização do método Paulo Freire, fora direcionada aos camponeses, ainda no final de
1962.
Tanto as Ligas Camponesas, como os sindicatos rurais, aliás estes, principalmente,
caminhavam juntos com os setores progressistas da Igreja católica. Perceberam que a
educação, sobretudo a alfabetização das/os camponesas/es, constituía uma arma dos
excluídos. E que, de sua luta contra o latifúndio, emanava um caráter educativo para a
sociedade como um todo, tornando-se, então, uma pista de mão dupla.
Partindo desses pressupostos, percebe-se que o grau de apreensão de
conhecimentos dessas lideranças as localiza, no seu espaço de atuação, como detentoras de
um saber histórico, na perspectiva da história dos excluídos, em que revelam seus
comprometimentos com as ações educativas.
Para Elizabeth Teixeira, uma liderança que viveu dores similares, mas com
especificidades históricas diferenciadas da luta enfrentada por Margarida Maria Alves, a
necessidade de uma reforma agrária significava ir além do desencadeamento de
mobilizações, pois se faziam necessárias outras habilidades, em especial a condição de ser
liderança mulher:
[...] ser líder no campo, Sr. Doutor, mesmo mulher, e hoje mãe e pai de
família, precisa saber organizar. Organizar as famílias, em grupos, em
núcleos. Precisa saber falar, também, com os latifundiários. Prá dizer sim,
se tiver ganho, pra todo o núcleo. Prá dizer não, se não houver ganho.
Olhar nos olhos dos jagunços, depois virar e não olhar pra trás, mesmo
que venha tiros.
FONTE: COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO. Ata da CPI do
Campo, Livro XXII, Brasília, 1972, p.04.
Esta fala de Elizabeth expressa, de forma articulada, várias dimensões do seu
cotidiano, as quais se cruzam e se encontram, a exemplo da sua opção de resistência aos
poderes locais e da sua formação política e disciplinar, advinda das Ligas Camponesas,
sobretudo, das dificuldades, como mulher, de se reconhecer e ser reconhecida como
liderança. Enfim, da sua crença ideológica que lhe forneceu as condições para dar
continuidade às tarefas políticas, após a morte do seu marido, João Pedro Teixeira,
expoente da luta pela terra.
A constatação desse reconhecimento vai se solidificar, sobretudo, na sua luta
incansável, na condição de mãe e de formadora de opinião, sobre suas vivências no campo.
Tal postura crítica, contida no trecho da sua fala, simboliza a natureza educativa enunciada
por Paulo Freire:
a questão da coerência entre a opção proclamada e a prática é uma das
exigências que educadores críticos se fazem a si mesmos. É que sabem
muito bem que não é o discurso o que ajuíza a prática, mas a prática que
ajuíza o discurso (FREIRE, 2001, p.05).
Para além da atuação como liderança política, nesse exemplo, educadora popular
das Ligas Camponesas, Elizabeth Teixeira, desde a década de 1960, alfabetizou 38 os seus
filhos e outros camponeses. Também realizava a leitura dominical dos jornais para cerca de
oitenta camponeses da região na sua casa.
Nesse contexto, essas ações foram ganhando visibilidade junto aos fazendeiros
locais, que organizavam constantes dispersões das aulas e das leituras dos jornais, na casa
de Elizabeth. No entanto, a resistência motivou Elizabeth Teixeira a prosseguir suas tarefas
no campo político sindical e no educacional. Não se trata de perceber a mulher Elizabeth
como educadora formal 39, mas apenas registrar que essa tarefa era desempenhada devido
ao fato de que a escola rural, muitas vezes, inexistia.
A referência educativa do sujeito Elizabeth está expressa na formulação de Pinto,
que a concebe da seguinte forma:
a Educação é o processo pelo qual a sociedade forma seus membros à sua
imagem e em função de seus interesses. Por conseqüência, a educação é
formação (BILDUNG) do homem pela sociedade, ou seja, o processo pelo
qual a sociedade atua constantemente sobre o desenvolvimento do ser
humano no intento de integrá-lo no modo de ser social vigente e de
conduzi-lo a aceitar e buscar os fins coletivos (PINTO, 1982, p.23).
Tal definição aponta características em que a educação não pode ser apreendida
apenas pelos mecanismos da lógica formal, mas a partir da história dos indivíduos e da
história da comunidade, possibilitando, assim, a produção e a apropriação do conhecimento
ao conjunto dos envolvidos. Como está escrito no Artigo 1º da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB), nº 9.394/1996:
a Educação abrange os processos educativos que se desenvolvem na
convivência humana, na vida familiar, no trabalho, nas instituições de
ensino, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil, no
esporte, no lazer, nas manifestações culturais e no contato com os meios
de comunicação social (BRASIL, 1996, p. 11, grifo meu).
38
A professora escolar do meio rural, nesse contexto, quase sempre era leiga de formação acadêmica (o que
ainda ocorre na atualidade) e algumas delas apenas sabiam ler e escrever.
39
Para aprofundar sobre a História da Educação no campo, e em particular como atualmente o MST vem
refletindo e implementando práticas pedagógicas, ver o livro Pedagogia do movimento sem terra: escola é
mais do que escola, de autoria de Caldart (2000).
Maria da Penha Nascimento, além de fundadora do MMB, atuava ao lado de
Margarida no sindicato de Alagoa Grande. Foi integrante da Comissão Estadual de
Mulheres da CUT/PB e Secretária de Formação da Executiva da CUT Estadual, além de
candidata a vereadora, algumas vezes, pelo Partido dos Trabalhadores.
A produção de textos escritos por Penha pode ser considerada vasta. Escreveu
vários textos sobre as ações de resistência ao latifúndio, em especial após a morte de
Margarida. Lançou livros: Violência Rural e Reforma Agrária (1986), e Por que Trabalhar
com Mulheres (1988), em parceria com outros autores e entidades.
A sua preocupação com os registros escritos também se estendia à construção de
acervos e bibliotecas nos sindicatos. Da sua atuação militante estava convencida de que a
prática da luta cotidiana era a melhor arma, quando costumava falar: “só quem luta é que
sabe a dor que a gente sente”. Em sua frase está contida uma reflexão, a do aprendizado
com a essência da experiência entrelaçada ao sentimento que conhece que primeiro vem a
luta como anunciante e, portanto, a formadora da classe.
O debate de formação das camponesas, na década de 1980, incorporou essas
concepções de classe e gênero e foi baseado em cursos teóricos, cuja reflexão maior se
dava a partir da própria experiência.
Três cartilhas nortearam a formação política no debate de gênero. A primeira
cartilha de formação intitula-se „Sindicato e Feminismo‟ e foi produzida pelo grupo Maria
Mulher: as camponesas a utilizaram em sua formação militante, ainda na década de 1980.
Seus eixos principais são: A mulher na história: a sociedade primitiva, escravista, feudal,
capitalista e construindo uma nova sociedade. Esta cartilha, elaborada de forma lúdica,
contendo charges, colocava a desigualdade dos papéis sociais de homens e mulheres, a
partir da visão da luta de classes sociais, como expressão das próprias desigualdades do
sistema capitalista.
O segundo caderno de formação „Mulheres na CUT: 10 anos de luta, resistência e
conquistas‟ (1995), produzido pela comissão estadual de mulheres da CUT, contou,
inclusive, com a participação de algumas das mulheres do Brejo na sua elaboração. Sua
estrutura comporta os seguintes debates: Mulher e mercado de trabalho; Participação e
organização da mulher no movimento sindical cutista; Creche: uma necessidade presente;
Saúde, trabalho e Gênero; Gênero e classe; Luta, organização e construção de um espaço
feminino na CUT. Este caderno de formação passou a representar um ponto de partida para
a formação de novos quadros femininos no MMT. A dinâmica do curso consistia em
leitura e debates dos textos.
O terceiro caderno foi elaborado pelo Movimento de Mulheres Camponesas, a nível
nacional (2007), sendo dedicado à formação atual de novas lideranças no Movimento
Nacional de Mulheres Camponesas e já adotado pelo MMT. Intitula-se‟ Organizar a base,
produzir alimentos saudáveis e construir caminhos de libertação‟. Enfatiza debates
anteriores e atuais, da via campesina:
(1) O cotidiano da mulher camponesa: qual é a saída? Como mudar a rotina
pesada das mulheres do campo? Como transformar a indignação em organização das
mulheres camponesas? (2) Produzir alimentos: uma missão camponesa! A mulher como
protagonista na produção dos alimentos. (3) Organizando o trabalho de base: alicerce do
MMC – nosso trabalho a gente faz; (4) Orientações metodológicas: como formar o grupobase; fazer reuniões; colocar as idéias; falar em público; cooperar; fazer críticas e formar
as novas dirigentes.
Tal publicação consolida, assim, os novos debates no campo da educação popular
provocado pelas mulheres do brejo, que adotam as seguintes formas pedagógicas: leitura e
debate de textos; análise de conjuntura e círculos de cultura.40
Enfim, o resultado destes cursos e publicações revelam uma prática educativa
cotidiana que tem como pilares - base de um espaço público, o ser liderança, e do espaço
privado, o ser mulher, que traz marcas específicas, a exemplo da condição de serem mães e
educadoras dos próprios filhos, o que descortina uma atuação na história e na negação do
silêncio sobre a participação feminina na construção das sociedades.
Algumas foram caladas pela tragédia, outras pela força da brutalidade e da
opressão do(s) poder (es), ou ainda, pelo silêncio do próprio saber histórico. Mas
emancipadas pela sua práxis.
Contudo, sem dúvida nenhuma, uma das expressões mais marcantes do movimento
de mulheres na Paraíba tem sido o Movimento de Mulheres do Brejo (MMB), que foi
constituído no ano de 1982, no estado da Paraíba. Faziam parte, inicialmente, do MMB,
mulheres de quatro cidades da região do Brejo paraibano: Pirpirituba, Bananeiras,
Guarabira e Alagoa Grande.
40
O Círculo de Cultura faz parte do método de Freire que consiste em tematizar, problematizar e
contextualizar o diálogo, na práxis da EP. Nesse caso, o tema foi a memória de Margarida Maria Alves e sua
identidade com as camponesas do MMT.
O MMB tinha como objetivo inicial fortalecer lideranças atuantes nos Sindicatos
Rurais (STRs), vinculados à Central Única dos Trabalhadores (CUT) e à Comissão
Pastoral da Terra (CPT). As mulheres camponesas do brejo paraibano, aqui entendidas
como sujeitos excluídos da história, atuaram inicialmente combatendo a exclusão de classe
social, exercendo a sua militância na CPT e na CUT.
As camponesas do Brejo da Paraíba participaram dos vários cursos de formação
promovidos, na década de 1980, pelo Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural
(CENTRU) que, em parceria com a CUT, entrelaçava às suas práticas educativas o cuidado
com a formação de classe e a formação de gênero, conforme o depoimento de uma das
fundadoras - (E-3) - do MMB, em 25/11/2004:
[...] O CENTRU era uma coisa que trabalhava em prol dos
trabalhadores, aqueles cursos, seminários de Formação para que as
trabalhadoras e os trabalhadores rurais aprendesse alguma coisa.
Inclusive eu cheguei até a participar de seminários para discurso, mas os
cursos era mais de formação geral, a gente tinha cursos dos direitos
trabalhistas, da sexualidade, a gente trabalhava as questões gerais do
Brasil, a gente aprendia história, muita história sobre o capitalismo, o
socialismo, sobre o feminismo. Aquelas pessoas que iam dar os cursos
pra gente tornaram-se também nossos amigos. O que a gente trabalhava
mais, quando aprendia a ler, era sobre a conjuntura do país, a conjuntura
do Brasil, depois a gente trabalhou em conjunto como outras entidades,
por exemplo, trabalhamos um seminário sobre sexualidade, em conjunto
com o CUNHÂ. Trabalhávamos também com a juventude, tínhamos um
projeto sobre o Jovem canavieiro. Nós tínhamos, além do movimento de
mulheres, a gente trabalhava com os jovens canavieiros, que era de idade
entre 12 e 16 anos. Era muito importante aqueles seminários porque a
gente incentivava aqueles companheiros a se estruturar, tanto no mundo
do trabalho, quanto na vida política e isso era uma coisa que a gente tava
repassando e a gente tava aprendendo. (E-3). (FERREIRA, 2006, p.
108).
O MMB, desde a sua constituição, em 1982, passou a promover cursos de
capacitação e formação política, priorizando neles o debate de gênero41 e, mais tarde, na
década de 1990, igualmente, o recorte de etnia. Muitas dessas atividades foram frutos de
uma pauta comum com o movimento de mulheres urbanas.
41
Segundo Scott (1992), o Gênero é a organização social das relações entre os sexos. As origens sociais de
um determinado padrão vigente de relações de gênero residem na constatação de que: se as causas da
desigualdade são sociais, também são sociais as suas possibilidades de transformação. Assim sendo as
relações de gênero são entendidas como uma construção social e histórica dos papéis masculino e feminino.
(FERREIRA, 2006).
Após o assassinato da líder sindical Margarida Maria Alves (1933-1983), já havia
surgido a necessidade da ampliação dessa organização (MMB) para outras cidades do
Brejo. Posteriormente, com a morte de outras duas sindicalistas em Alagoa Grande, a
professora Serise, por motivo de doença, e a sucessora de Margarida Alves, a presidenta do
sindicato rural, Maria da Penha Silva, em um acidente automobilístico, o MMB ampliou o
seu leque de atuação.
Com essa nova composição, consolidou seu caráter regional e passou a atuar em 9
(nove) municípios paraibanos, todos da região do Brejo. Adotou, daí por diante, a sigla
MMT42: Movimento de Mulheres Trabalhadoras do Brejo.
Buscou-se, assim, concomitantemente, preparar as camponesas não somente para os
enfrentamentos dos conflitos de classe, como também para os conflitos de gênero, bastante
acentuados no mundo camponês, como em toda nossa sociedade.
Sendo assim, dessa perspectiva pedagógica, centrada na dialética, em que a
consciência de nós (eu-classe) não descarta a consciência de si (eu – mulher), surgiu o
Movimento de Trabalhadoras Rurais do Brejo (MMT) que, em 1985, se constitui como
uma referência de organização camponesa, formada só por mulheres, na Paraíba e no
Nordeste brasileiro. Uma de suas fundadoras traduziu essa precisão da auto-organização
feminina camponesa e a consciência de si, necessária à busca de seus direitos:
A gente já conquistou muito nesses anos de luta, mas nós queremos
muito mais, porque se nós temos direito, os direitos terão que ser
entregados às mulheres. Hoje nós temos mulheres no mundo do
trabalho, a mulher hoje tem liberdade de trajar do jeito que ela quer, e de
calçar da maneira que ela quer, de ir para onde ela quer. Não é mais
aquele tempo que uma mulher não podia sair de casa sozinha porque o
pessoal já ficava apontando, uma moça não podia sair de casa sozinha que
ela já não era mais moça, que era isso, que era aquilo outro, e hoje nós
andamos de cabeça erguida, nós temos nossos deveres e que importa que
alguém olhe pra gente com o olho torto que danem-se. A mulher nasceu
pra ser mulher e não pra ser escrava, a mulher não é objeto e a mulher
não é propriedade de ninguém, a mulher é um ser humano da maneira
que o homem é, e pronto. (E-5). (FERREIRA, 2006, p.107).
As mulheres que compõem o MMT, na atualidade, continuam exercendo um
trabalho voltado para a educação das mulheres, na perspectiva teórica feminista,
42
A sigla MMT já havia sido utilizada apenas no município de Alagoa Grande-PB, no ano de 1982.
objetivando a formação de quadros militantes e uma construção permanente de
intervenção, junto à via campesina, nos movimentos sociais. A memória de luta da líder
sindical Margarida Maria Alves e de suas próprias experiências são repassadas através da
história oral, para jovens dessa região, conforme está representado no discurso abaixo,
onde se percebe a oralidade de uma das lideranças do MMB, em uma oficina direcionada à
juventude:
Eu conheci a d. Margarida já no tempo que ela era do sindicato, acho que
em 79 e um dia eu disse, vou lá conhecer essa mulher que todo mundo
fala [...]; ouvia falar bem dela, nunca escutei falar que ela não fosse desse
jeito, destemida, e ao mesmo tempo, simples, e aí eu cheguei lá no
sindicato, e fui mais prá conhecer e terminei me associando e ficando
amiga da danada. (E-4). (FERREIRA, 2006, p. 97).
Ao repassar a representação da memória de Margarida Maria Alves, simbolizando
uma mulher, como outra qualquer, com simplicidade, a camponesa (E-4) elucida uma
Margarida não como signo de uma liderança, mas sim do feminino, adocicado pelo jeito de
mulher rural simples e fraterno.
Em outro depoimento de um sindicalista e ex-assessor do CENTRU e do MMB
pudemos perceber o retrato de uma Margarida que „maternou‟.
Vi de perto, a Margarida na sua figura de mãe, de esposa sendo amada e
paciente com o Sr. Cassimiro, com seu filho Arimatéia. O carinho com
que tratava a sua mamãe e suas irmãs. Então, ela foi uma mulher que
maternou. Ela se dirigia a Arimatéia, meio a essas turbulências, ao filho
com muito carinho. Tratava o esposo pelo chamamento de „filhinho‟.
Como líder sindical representava a figura de uma mulher valente e
corajosa. Hoje eu tenho certeza de que ela não tinha dimensão do medo
que corria. (E-09, Em 31/07/2009).
E é interessante que Margarida Alves congrega essa dupla imagem feminina, forte e
meiga; mãe e política. Ou seja, ora Maria, ora Madalena. Mas o que, no fragmento da
entrevista de (E-09), a exprime e reforça é a mesma percepção de (E-4), de ver a Margarida
Alves como uma mulher normal, admirada, mas absolutamente normal, sem nada de santa
ou mítica.
No ano de 2005, após 25 anos de sua morte, já havia ocorrido a prescrição do
processo, mas nem por isso a representação de Margarida Alves é esquecida pelo
movimento de Mulheres do Brejo. Conforme apresenta o depoimento emocionado de uma
das sócias (E-3), lembrando-se de Margarida Alves:
Em 1983, no dia 10 e 11 de agosto de 83, ela estava no seminário em
Guarabira, com a Penha, com outros companheiros da CPT na época, e
sindicatos também. E foi quando a Penha notou que a Margarida tava
pensativa, ela tava triste, e alguma coisa a estava perturbando. E Penha
começou a conversar com ela e dizer que ela não podia ficar presa sem
abrir o jogo para os companheiros, e sem dizer o que é que estava se
passando. Aí foi quando ela, no silêncio do quarto, falou para Penha que
estava sendo ameaçada de morte, já tinha recebido cartas e telefonemas
anônimos com ameaça de morte. Mas antes ela já tinha dito no discurso
em Sapé, que era melhor morrer na luta do que morrer de fome, e que da
luta ela não fugiria, isso foram frases dela já através das ameaças que ela
vinha recebendo, mas sem dizer o porquê. Então quando ela confessou
para Penha o que estava acontecendo, a Penha se prontificou que na
segunda-feira, junto a ela e outros companheiros, procuraria a justiça
para denunciar os acontecimentos. Infelizmente não deu tempo, quando
foi no dia13, aliás no dia 12, que ela voltou para casa, quando ela chegou
em casa, com pouquinho tempo, a irmã dela trouxe um pedaço de espiga
de milho, ela dividiu esse milho para ela e para o filho dela, José
Arimatéia, que na época tava com 6 ou 7 anos. E quando ela estava
comendo foi quando o pistoleiro chegou. É vizinhos da Margarida,
depois, no processo, disseram que, desde o dia 11, que esse cara rondava
a casa e passava naquela rua de carro, mas ninguém sabia porque, nem
qual era o objetivo deles, né? Só no dia 12, quando ele chegou na casa da
Margarida e perguntou se ela era a Margarida, que ela disse que era, foi
quando recebeu um tiro de espingarda calibre 12, que acabou com a vida
da companheira [...] estourando toda a face dela.[...] e jogando os
miolos na parede. Uma coisa triste. E fazem 22 anos que esta morte está
impune, esse crime está impune, a justiça continua dormindo . (E-3).
(FERREIRA, 2006, p. 101).
Entre as ameaças de morte que Margarida chegou a receber, constava a imposição
de abandonar o discurso que assumia frente à luta dos/das trabalhadores/as rurais. Ou seja,
não se tratava apenas do afastamento do sindicato, isso também fazia parte das ameaças,
mas o significado da opressão do discurso, mediado tanto pelo conteúdo das falas, que em
sua maior parte, tratava da luta por um conjunto de direitos trabalhistas, quanto pelo fato
de ser mulher, posto que contrariava a cultura arraigada do patriarcalismo.
A presença da mulher na direção sindical não era condição pacífica. Isto se
evidenciava nas gestões anteriores, que mantiveram os homens à frente das instâncias de
decisões e onde não havia, no conjunto dos trabalhadores/as, uma força de articulação se
expandido para outras frentes de trabalho, como a luta por educação e formação política.
Da perseguição e das ameaças anônimas, tentativas de silenciar Margarida,
resultaria sua morte. A forma como ela foi assassinada, com um tiro na sua face, além de
destruir a sua vida, enviava um recado ao conjunto dos trabalhadores/as: não se podia falar
como ela falava. Nesse contexto, todo o processo que gerou mobilizações passava pela
crítica à impunidade e à lentidão da justiça.
A crítica contra a forma com que as instituições da justiça, tais como delegacias,
Fóruns de tribunais e a própria Secretaria de Segurança Pública, à época, conduziram o
processo acentuou o descrédito dos/as trabalhadores/as nas leis. Porém mantiveram acesa a
crença no combate às desigualdades, guardando o compromisso com a justiça social,
resultante da organização popular.
Assim, uma das formas mais expressivas dessas realizações foi a auto-organização
por parte das trabalhadoras rurais, que estabeleceram empenho e ousadia para constituir
seu reconhecimento e legitimidade.
Lembro, ainda, que todos os anos, em 12 de agosto, ocorrem uma série de
mobilizações e homenagens a sua memória. E, nesses momentos, também, é registrada
uma associação entre a memória de Margarida Alves e às lutas, sindical e do movimento
de mulheres, conforme explicita (E-3):
Antes da morte de Margarida, antes dos seminários do CENTRU, antes
da luta integrada aos movimentos da CUT e dos sindicatos, nós também
não sabíamos o que era nossos direitos. A gente tinha que curvar a
cabeça, a gente vivia de cabeça baixa, curvada perante a sociedade. A
gente não se sentia mulher, porque a gente só fazia o que o povo queria.
A gente obedecia a pai, a gente obedecia a patrão, a gente obedecia a
marido, e era aquela coisa, a mulher tinha que baixar a cabeça em tudo,
até nossos próprios pais passavam aquela imagem pra gente e dizia que
na hora do casamento a mão da mulher ficava por baixo, e a mão do
marido ficava por cima, porque a mulher ela tinha que ser submissa ao
marido, toda hora a mulher tinha que ser a outra metade, mas a metade
inferior do homem, e hoje, a gente sabe que não é isso. (E-3).
(FERREIRA, 2006, p.106).
O diálogo exposto possibilita entender como a mulher camponesa, Margarida
Alves, e outras lideranças, constroem representações de lutas, permanentemente. A questão
que se coloca é a contraposição ao desempenho da mulher nos moldes do papel social, da
qual a única visibilidade possível é a da relação do grupo familiar, ou seja, uma identidade
vinculada com a relação do mundo privado, tais como o casamento e a maternidade.
As mulheres que estabeleceram o diálogo na pesquisa demonstraram o seu
deslocamento ao ingressarem no mundo do trabalho, ao discutirem as relações de
produção, os papéis assumidos com a divisão sexual do trabalho. Conseqüentemente,
questionaram as decisões das autoridades estabelecidas pelos patrões, pelos maridos e
pelos parceiros sindicalistas.
Dessa forma, conquistam-se, a partir da consciência adquirida, direitos e saberes.
Como afirma Freire (1980, p. 40), “o ser humano não pode participar, ativamente, na
história, na sociedade e na transformação da realidade, se ele (a) não obtiver uma
conscientização sobre a realidade e sobre o seu potencial para transformá-la”.
Vale salientar que essa dicotomia entre o mundo doméstico e público possui um
caráter acentuado na zona rural, como reflexo da base patriarcal na construção desses
poderes no Nordeste. Essa reflexão fora estabelecida quando da contribuição de Freyre
com o estudo Casa Grande e Senzala (1920). Seu aporte analítico já denunciava:
na sociedade colonial produtora de cana-de-açúcar, os homens possuíam
o poder absoluto e estavam associados ao domínio público da vida. As
mulheres estavam confinadas ao espaço doméstico e delas se esperava
um comportamento subserviente. A supremacia dos homens sobre as
mulheres levou à subordinação dessas últimas, através do tempo
(BRANCO, 2000, p. 33).
Essas mulheres conseguiram transformar sua realidade e contribuíram para que
outras pudessem ir além desses espaços de confinamentos do mundo doméstico. Assim, na
representação do diálogo, pode-se conhecer mais sobre a origem de Margarida e o período
de sua chegada à cidade de Alagoa Grande. Uma origem humilde e comum para a maioria
das outras mulheres daquela região e do próprio Nordeste. Alguns fatos, porém, marcaram
inicialmente essa sua opção, quando da expulsão da terra, de seus pais, em 1962, ano do
assassinato do líder das Ligas Camponesas, João Pedro Teixeira, em Sapé, e da fundação
do sindicato que lhe despertava a vontade de se engajar na luta.
A consolidação como liderança não ocorreu do dia pra noite. Margarida Alves
teve, na força dos seus discursos para o conjunto dos associados e demais trabalhadores/as,
a segurança e o sustentáculo que eles necessitavam. Assim, o discurso da relação do
sujeito com a história propicia alguns desafios, inclusive no trabalho da articulação com o
social, e, posteriormente, da organização desses registros, conforme atesta Chartier (1994,
p.109):
a história das mulheres, formulada nos termos de uma história das
relações entre os sexos, ilustra bem o desafio lançado aos historiadores:
ligar construção discursiva do social e construção social do discurso.
Um desses pilares adveio da formação educacional e política construída no
CENTRU, sobretudo para o conhecimento das relações de desigualdades de gênero, a
partir dos cursos de feminismo. Todavia essa força incide não só nos cursos de feminismo,
nem só no marco da morte de Margarida, nem tampouco, na efervescência política de um
dado momento histórico. Conforme colocou (E-3):
[...] antes da morte de Margarida, antes dos seminários do CENTRU,
antes da luta integrada aos movimentos da CUT e dos sindicatos, nós
também não sabíamos o que era nossos direitos [...].
Ou seja, é o conjunto de todos esses fatores, somado às motivações subjetivas, que
possibilitou a auto-organização. No curso histórico dos movimentos, em 1986, após várias
discussões, as camponesas do sindicato rural de Alagoa Grande que, desde 1982, contava
somente com a coordenação de mulheres, conquistaram o status de independência,
conforme explicita Cruz (1999, pp. 84 - 85):
realizou-se uma assembléia que elegeu uma coordenação com 09 (nove)
membros, tendo como objetivo principal dinamizar e organizar a
caminhada do grupo de maneira autônoma. O grupo passa a se chamar
Movimento de Mulheres Trabalhadoras do Brejo tendo no início da
década de 1990 a coordenação se ampliado para 13 (treze) membros.
Em 15 de março de 1991, o MMB e todo o movimento de mulheres da Paraíba e do
Brasil passavam por uma grande dor, a perda de duas grandes mulheres em um acidente
automobilístico, vindo a falecer, na ocasião, a professora, socióloga e feminista Elizabeth
Lobo, conhecida por Beth Lobo, que foi “capaz de integrar diferentes frentes de trabalho e
luta: partido, sindicato, vida universitária, movimentos sociais e feministas” (BRAZIL,
2000: 112), e a líder sindical Maria da Penha, presidenta do sindicato de Alagoa Grande e
secretária da CUT-PB, também fundadora do MMB. Essa tragédia, para algumas das suas
companheiras, fomentou o desencanto e as desesperanças de continuar resistindo. Porém,
embora de luto, o movimento continuou em sua luta.
Em 1994, o MMB, após muitas dificuldades, junta-se ao Movimento de Mulheres
Trabalhadoras (MMT), com sede em Pirpirituba-PB, uma associação ligada à Associação
Nacional do Movimento de Trabalhadoras Rurais (ANMTR), que passava a atuar em nove
municípios da região do Brejo.
A institucionalização só se efetivaria em 1994. Após a junção, discutiu-se a
passagem do MMT à constituição de uma ONG. A mudança de um movimento nãoinstitucionalizado para o status de ONG não foi pacífica. Primeiro porque, para algumas
militantes, tinha-se o exemplo de outros movimentos de mulheres, quando de sua
passagem para a condição de ONG, e a perda da identidade baseada na radicalidade face à
mobilização e questionamento aos poderes públicos, passando, assim, a não reivindicar
políticas públicas, que são prerrogativas do próprio Estado.
Por outro lado, o alcance da autonomia passava por construir recursos próprios, ou
seja, não podiam continuar dependentes do sindicato, posto que já possuíam diversas
demandas. Mesmo nos aspectos de cooperação, existiam implicações por parte dos
sindicalistas que não consideravam a mobilização das mulheres como decorrência das lutas
conjuntas dos trabalhadores (as). A cooperação, de fato, só se deu de forma mais efetiva
com a participação de mulheres na presidência do sindicato. Foi o caso das gestões de
Maria da Penha Silva e de Maria da Soledade Leite, na época vinculadas ao MMB.
Enfim, prevaleceu no debate a constituição da referida ONG que, na ocasião,
deveria manter, dada a reflexão de seus limites, uma identidade de autonomia, além de se
articular com outros movimentos sociais e outras ONGs que também cultivassem as
características de radicalidade e de trabalhos direcionados à produção social. Sobre essa
pauta, assevera Oliveira (2004, p. 163):
nas falas das mulheres a respeito desse momento [de criação da ONG]
havia a necessidade de se ter uma associação para facilitar o trabalho do
grupo com o envio de projetos em busca de apoio financeiro, tanto de
agências de cooperação internacionais e nacionais, governamentais e nãogovernamentais, bem como a importância de um intercâmbio e
articulação com o movimento de trabalhadoras rurais em âmbitos mais
ampliados.
Consolidando esse objetivo, em 1994, o movimento ganhou expressão e vida
organizativa, com definição de papéis, elaboração de projetos, captações de recursos,
assessoria jurídica e um modelo de gestão democrática e participativa.
Em 1997, o movimento já passava por várias dificuldades. Sem fontes de recursos,
as necessidades foram aumentando, dificultando, assim, a elaboração de novos projetos. A
manutenção do MMT passava (passa) pelo deslocamento de várias mulheres, de seus
municípios de origem, ou dos sítios e assentamentos distantes de Pirpirituba, todas
trabalhando sem remuneração, apenas em caráter voluntário. Vendiam agendas, faziam
rifas, entre outras coisas. No entanto, os recursos tornaram-se a cada dia mais insuficientes
para a manutenção das atividades cotidianas.
Apesar dessa realidade, o movimento continua mantendo como práticas
pedagógicas várias ferramentas, que são os recursos característicos da educação popular,
tais como a leitura, a música, os cursos de teatro e, também, as oficinas de poesias.
Conforme citado por Oliveira (2004, p.171):
um dos pontos que merece uma consideração é o uso da poesia popular
como recurso pedagógico, segundo a camponesa Maria Lúcia Félix, “uma
companheira completou com uma poesia a falação de Alagoa Grande” e
segue um trecho da intervenção cantada quando do encerramento dos
trabalhos do I Encontro de Jovens da região, e que pediram a Soledade de
Alagoa Grande para encerrar os trabalhos com uma despedida em poesia.
A companheira disse: “Agradeço aos rapazes/A estas moças queridas/
Que vieram de distantes/Cidades e avenidas/Provando que nesta
luta/Precisamos de Margaridas”.
Exemplo de extensão dessas atividades são os Encontros de Mulheres Violeiras,
que ocorrem desde 1990 e o I Encontro com Jovens “Desigualdade Social e Econômica”,
realizado em maio de 1995. Nesta agenda, passaram a também realizar os Encontros de
Casais, diferentemente da perspectiva religiosa, com o intuito de propiciar a formação de
gênero, no sentido de provocar a idéia do movimento como espaço formativo não só das
mulheres, mas também dos homens e, dessa forma, caminhar no percurso dos direitos
humanos, na busca do fim das desigualdades e na perspectiva de que estas possam ser
denunciadas, refletidas e vencidas historicamente
3.3 Margarida Maria Alves: entre o velho e os Novos Movimentos Sociais
A questão da transição entre os velhos e os novos movimentos sociais, mais
especificamente, do sindicalismo rural, na década de 1980, consiste em um dos elementos
da matriz de representação que deu subsídios para esta análise da trajetória política da líder
sindical Margarida Maria Alves.
Desse modo, passo a construir uma linha tênue nessa disputa de representação,
entre o velho e o novo movimento social, a partir de dois momentos. O primeiro,
entendendo toda uma trama no cenário político do ano que antecedeu à sua morte, 1982,
marcado por um quadro eleitoral de arcabouço clientelista, mas por outro, de grandes
mobilizações sociais para a construção de uma central sindical nova, a CUT. E, em um
segundo momento, o cenário do pós-morte de Margarida Alves, que alimenta o capítulo
dois dessa disputa de representação quando essa querela de correlações de forças volta à
tona, principalmente, nos tribunais de justiça e nos jornais do nosso Estado.
1982...o ano que não terminou,
nem com a morte de Margarida Alves em 1983
Tinha-se um contexto marcado não só pela disputa ideológica entre „práticas
clientelistas‟ versus „práticas democráticas‟ emanadas pelas oligarquias e refletidas na
prática sindical. A questão colocada apontaria para um “novo sindicalismo emergente que
estava relacionado com a abertura de espaço à participação das bases. A relação entre
democracia e participação” (OLIVEIRA, 1994, p. 187).
Logo, para (E-07):
Margarida marcou uma diferença fundamental. Ela rompeu com as
práticas sindicais clientelistas e assumiu o bloco dos sindicalistas
combativos. Ela fez isso através das suas ações (...), presenciamos
algumas vezes ela discordar de outros sindicalistas e, até mesmo, não
aceitar realizar certas negociações dos acordos trabalhistas, que muitos
desses sindicalistas, viciados nesses tipos de acordos, queriam que ela
fizesse, para o sindicato, calar-se e ganhar o seu e, em contrapartida, o
trabalhador se dá mal, só que ela começou dizer não a tudo isso! (...) Ela
passou a incorporar as vozes do sindicalismo de base, mas esse
posicionamento que ela já vinha fazendo na prática, só ficou mais claro
aos olhos de todos, quando essas posturas políticas firmes foram
ocorrendo, diariamente, e para coroar tudo isso, quando ela assinou o
documento da I CONCLAT, em 1982. Aí, se alguém tinha alguma
dúvida, não tinha mais, ali ela selou o seu compromisso com o
sindicalismo de luta. (E-07, em 20/07/2009).
(E-07), recorda-se, também, de Margarida Alves como um personagem central
nessa participação sindical. Que foi capaz de estabelecer rupturas com uma cultura sindical
peleguista, na prática social dos acordos trabalhistas. Trata-se da postura de uma
„Margarida‟ ética; neste sentido, portadora de uma ética voltada para a sua classe
camponesa. Sem dúvidas, o ano lembrado, 1982, foi um ano de muitos elementos para o
entendimento dessa disputa de representação, tanto por ter sido um ano eleitoral, quanto
por ser um ano que antecedeu à formação da CUT.
Segundo Rocha (1996), no início de 1982, a sociedade brasileira assistia a um
programa televisivo, intitulado “o povo e o presidente”, criado pelo governo do então
presidente João Baptista de Figueiredo, que „tentava apresentar uma imagem democrática à
população‟. Neste Programa, Figueiredo respondia as cartas e conversava com
telespectadores, quando, em um desses programas, o presidente comentou uma carta que
recebia de uma mulher paraibana:
Em meados de 1982, Figueiredo tinha em suas mãos uma carta escrita por
uma mulher, Margarida Maria Alves, enviada ao palácio do planalto de
uma cidade no interior da Paraíba, Alagoa Grande. A cerca de 120
quilômetros da capital João Pessoa, Alagoa Grande fica no brejo
paraibano – uma das regiões mais violentas do Estado. Margarida,
presidente do sindicato dos Trabalhadores Rurais do município escrevera
uma carta veemente, exigindo medidas urgentes contra que acontecia
com os trabalhadores rurais. Margarida denunciava que, no Estado da
Paraíba, era muito freqüente o desrespeito à legislação trabalhista. Os
canavieiros ganhavam muito mal e nunca tinham seus direitos
assegurados em lei, garantidos na prática. O presidente Figueiredo se
mostrou „surpreso‟ com as denúncias, afirmando que as providências para
eliminar esses abusos já tinham sido tomadas e que, daquele dia em
diante, tudo seria controlado com maior rigor. (ROCHA, 1996, p. 5-6).
Para Rocha (2006), ainda assim, não foi feito nada de concreto por parte do
governo federal que pudesse ser constatado como uma medida, uma ação, ou programa
específico de combate à violência no campo, mais precisamente no Estado da Paraíba. Até
porque, para ser realizada alguma ação no Estado, deveria ser trabalhado algum tipo de
parceria institucional entre governo federal com o governo local, e este último estava
atrelado aos grupos que praticavam ou encobriam as ações de violência.
Para o historiador Feitosa (2003), nas eleições de 1982, no estado da Paraíba, os
principais grupos políticos eram ligados ao setor rural: Ribeiro Coutinho, Veloso Borges,
Pereira de Lima, Gadelha e Maias. “Com exceção dessa última, todas as outras oligarquias
apoiaram Wilson Braga, nas eleições de 1982, sendo decisivas na vitória do PDS na
Paraíba”. Tal significado das eleições de 1982 apontava, ainda, para uma grave situação
econômica, na Paraíba.
(...) A situação econômica era grave, principalmente, no setor
agropecuário, depois no setor industrial, que de 1970 a 1986, decrescia
7,6 ao ano. Esse declínio econômico no final do regime militar estava
articulado com o avanço das relações capitalistas no campo e na cidade,
trazendo aumento de desemprego e inchaço das grandes cidades do
Estado, de forma desordenada e dando seqüência ao Êxodo Rural.
(FEITOSA, 2003, p.46)
Ainda, decorrente de suas análises, 3 (três) partidos disputaram as eleições de 1982: o
PDS, o PMDB e o PT. Tendo sido candidatos, respectivamente, o então deputado federal
Wilson Braga, o Sr. Antônio Mariz43 e o bancário-sindicalista Derly Pereira. Outros
partidos não possuíam critérios mínimos para disputarem o então jogo eleitoral.
É aí que muitos sindicalistas passaram a exercitar a sua representatividade política,
apoiando candidatos e passando a assumir um papel ou de legitimação ou de
questionamento do poder oligárquico vigente.
Para o (E-09), nenhum outro sindicalista foi “tão vigiado” enquanto sua opção de
voto partidário, quanto Margarida Alves, dada à sua representatividade no sindicalismo
rural.
Margarida se relacionava bem com todos os políticos da região, mas isso
não significava a venda da sua ideologia sindical. (...) Ela não tinha
vínculo partidário com legenda nenhuma, tinha aproximação com o
prefeito de Alagoa Grande PB João Bosco Carneiro, que era do MDB
(PMDB). Bosco tinha uma visão mais ou menos avançada já que era
Promotor Público. E ele fazia um combate às oligarquias mais “ameno”
que os canavieiros no sindicato. (...) Até porque se não, não conseguiria
governar. (E-09, em 31/07/2009).
43
Antonio Mariz do PMDB formava uma aliança centrista, pelo caráter heterogêneo que a mesma possuía, de
um lado era apoiado pela oligarquia dos Maia, que dominavam o sertão, e por outro, possuía apoio de grupos
de esquerda, como o PC do B e o MR8. (FEITOSA, 2003).
Ainda em sua entrevista E-09 coloca que o bloco de Agnaldo Veloso Borges,
partidário do PDS, não via com bons olhos o prefeito de Alagoa Grande, pois não tinha
influência direta sobre ele. Esse bloco operava com o apoio de dezenas de outros prefeitos,
inúmeros vereadores e dezenas de deputados de regiões circunvizinhas e estes que já que
recebiam apoio financeiro de Agnaldo pressionavam aqueles que não fossem do partido
hegemônico nessa região - o PDS - amedrontando-os e ameaçando-os. Para tanto, tal
aproximação entre Margarida Alves e João Bosco Carneiro não representava uma
contradição ideológica, a priori.
Porém, o fato mais contraditório da afirmação de (E-09) foi afirmar contundente que
„Ela não tinha vínculo partidário com legenda nenhuma‟ referindo-se a Margarida Alves.
Tal fato não é aceito por todos os entrevistados. Há quem diga, como (E-3), (E-05) e (E06), que Margarida Alves em 1982 havia se filiado ao PDS, sim, muito embora que por
pressão do marido e sem concordar com o coronelismo vigente, por parte desta legenda
(PDS). Já, no filme-documentário Uma Flor na Várzea44, o professor Vanderlei Amado,
ex-assessor do CENTRU e um dos fundadores do PT afirmou, que Margarida Maria Alves
hesitou bastante filiar-se em partido algum, até que assinou a ficha de filiação do PT, às
vésperas do seu assassinato.
Mas, todo esse debate iria se acirrar um pouco depois das eleições de 1982. A questão
é que esta eleição, na Paraíba, consistia em barris de pólvora nas regiões usineiras, de onde
se iniciava o festival de „distribuição de cargos em troca de favores‟ por todo o Estado.
Segundo Melo citado por Nunes (2004, p. 65), nas eleições de 1982:
[...] a descaracterização do estado paraibano recebeu um impulso, com o
exagerado uso da máquina para eleger o candidato a governador Wilson
Braga. Na ocasião, o então governador Clóvis Bezerra foi acusado de, em
apenas dez meses de governo, nomear quatorze mil funcionários.
Diante desse cenário de controle da máquina estatal, por parte do PDS, foi sendo
potencializado o „grupo da Várzea‟, nas decisões políticas e no domínio econômico da
zona canavieira.
[...] Na região funcionava com muita força a usina TANQUES e só no
município de Alagoa Grande tinham envolvido de 17 a 24 engenhos. E os
engenhos naquele município e no Brejo, quase 60 engenhos, eram
44
Filme-documentário de duração de 19‟50” lançado em 2006, dirigido por Mislene Santos e Matheus
Andrade - ambos estudantes de concluintes do Curso de Comunicação Social, pela UFPB.
fornecedores de cana para Agnaldo Veloso Borges, naquela região. E a
usina e os engenhos negavam pão e água aos trabalhadores rurais.
[...] Naquele momento sob a égide do patriarca Agnaldo Veloso Borges,
um dos últimos coronéis que restavam no Estado da Paraíba, surgia a
figura do seu genro, por nome de José Buarque Gusmão Neto, conhecido
como Zito Buarque que, na prática, como genro, cuidava dos negócios da
usina e cuidava da parte administrativa. Ele cuidava, também, da relação
com os partidos políticos de Alagoa Grande e até de toda a região do
Brejo, cuidava da relação com o poder local. (E-09, em 31/07/2009).
Com essas atitudes de „negar pão e água‟ aos trabalhadores canavieiros o controle
social se materializava, também, em ações de profundas violações dos direitos humanos,
pelo grupo da Várzea. Em contrapartida, foi o sindicato de Alagoa Grande que iniciou as
campanhas salariais para fortalecer o trabalhador rural contra esta dependência vital, em
que os usineiros, principalmente da usina TANQUES, ostentavam seu poderio econômico
ao poder político local. A figura do Zito Buarque passava a utilizar tais poderes, para
fortalecimento dessa oligarquia. (E-09), ainda, descreve como se dava esse modelo de gerir
mão-de-obra e controle político:
[...] a defesa daquele modelo atrasado da exploração da mão-de-obra
absoluta, da mão-de-obra canavieira, estava fortificado e personalizado
na pessoa do Zito Buarque. E a grande maioria daquelas pessoas que
combatiam tudo isso, muitas daquelas pessoas que trabalhavam nos
canaviais da usina ou da moita, na maioria das vezes nada podia fazer.
[...] Lá na usina funcionava o Barracão, e era obrigado que eles
comprassem alimentos no dito barracão para pagar no final de semana, e
o desconto era feito no dia do pagamento, que era semanal. Aquela cesta
que eles compravam fiado para alimentar o físico, quando eles
descontavam, não sobrava quase nada. Esse foi outro ponto de indignação
de Margarida Alves. Fonte: idem.
Foi aí que toda a luta sindical, do chamado novo sindicalismo, nesse início dos anos
de 1980, seria direcionada para organizar a primeira greve dos canavieiros na Paraíba. Para
dois dos nossos entrevistados, que vivenciaram essa época como sindicalista e assessor
jurídico, respectivamente, o envolvimento de Margarida Alves foi cada vez mais profícuo.
“Ela já estava envolvida nos sindicatos da região na CONTAG e na FETAG, quando
organizaram a primeira greve de canavieiros na PB”. Só em março de 1983, culminaria a
celebração dos acordos, dissídios coletivos que foi a tribunal no início de 1983.
De 1974 a 1983, segundo dados da CONTAG, nunca a Paraíba havia tido aquele
debate. Ainda sobre o ano de 1982, quando se iniciou a organização de tal movimento,
havia uma clara divisão do movimento sindical rural: de um lado o bloco peleguista –
representativo do velho sindicalismo – que queria acordos com o grupo dos Veloso Borges
e negociação direta com eles e, de outro, o bloco dos sindicalistas classistas – representado
pelo novo sindicalismo – que partiram para organizar a greve. Porém ambos os grupos
passaram a cobrar dos candidatos a governadores, na época, que incluíssem em seu
programa de governo, as suas reivindicações por garantias de direitos trabalhistas.
[...] nas eleições, nunca ninguém, nenhum candidato havia levado em
conta as suas reivindicações [da classe trabalhadora rural]. E naquele ano
se levou. Evidente que aqueles dissídios e os acordos que foram
celebrados basicamente foram levados por aqueles que preconizavam à
esquerda, sindical e partidária. Os usineiros estavam mais preparados
para reprimir do que para negociar. Os donos de engenhos não
suportavam no final de 1982 e naquele primeiro semestre de 1983 o
volume de ações trabalhistas. O sindicato levou à justiça e
representando os trabalhadores rurais, estes vão a Campina Grande
e apresentam representação judicial à usina TANQUES, mais de 100
ações trabalhistas. Naquele momento a gente falava em ação trabalhista
mesmo. Se cobrava o dissídio, e o que era de direito constitucional
anteriormente já garantido ao dissídio. E a usina TANQUES teve uma
ação que foi desproposital: O Zito Buarque, com seus seguranças, num
certo dia do mês de junho de 1983, invadiu e entrou à força no intervalo
da audiência que tratava das ações trabalhistas; intimidou os
trabalhadores rurais e os próprios advogados dos trabalhadores rurais.
Aliás, intimidou o juiz. Foi aquele espetáculo. Fonte: (E-09 – Em
31/07/2009).[grifo meu].
A partir daí, os trabalhadores rurais passaram a se precaver mais, com relação aos
desmandos da usina TANQUES. A brutalidade com que o Zito Buarque dirigiu represália
aos trabalhadores sindicalizados foi gritante. Iniciavam-se, portanto, duas campanhas
típicas de um conflito de classes sociais: a campanha salarial – dos sindicatos rurais versus a campanha da intimidação – protagonizada pela usina TANQUES. Vários
sindicalistas receberam ameaças de morte, outros receberam convites para se aliarem ao
PDS, como forma de proteção de qualquer „represália‟, pois se tornando „aliados‟
partidários, nesse contexto, o clima de „tranqüilidade‟ poderia ser restabelecido. Afinal,
esta passava a ser a linha política do novo governador eleito, Wilson Braga: promover
algumas cooptações dos quadros sindicais.
Segundo um dos ex-secretários do STR de Alagoa Grande, Margarida Alves passou
a receber os dois tipos de cartas, as de ameaças e as de „aproximações‟ com o PDS.
[...] Mesmo com esse ato de hostilidade patrocinado pelo Zito Buarque e
ameaça direta, além de muitos avisos, Margarida não parava e não
entendia o risco que ela estava correndo. Ela espalhava esse fato [do Zito
Buarque ter invadido o tribunal] aos quatro cantos de Alagoa Grande e da
região [...], ela denunciava o que estava acontecendo. E entre o fim do
mês de junho e início de agosto, os usineiros se reuniram para fortalecer o
PDS e planejar o assassinato dela [Margarida Maria Alves]. E o
desfecho fatal ocorreu em 12 de agosto de 1983, quando na porta da sua
casa por volta das 17:h, o matador de aluguel, hoje, não há dúvidas disso,
foi o soldado Betânio Carneiro dos Santos do 2° Batalhão de Polícia de
Campina Grande, que era um perigoso pistoleiro. Ele tirou a vida de
Margarida Alves junto com outros comparsas45. Figura que na região já
respondia por mais de 20 homicídios. Fonte: (E-09 – Em 31/07/2009).
[grifo meu].
Várias pessoas ligadas ao grupo da Várzea foram suspeitas e associadas ao crime de
Margarida Alves. E, daí, iniciava-se um segundo capítulo dessa história debatida em quase
todo o território nacional e internacional. Quem matou Margarida Alves? O mundo queria
saber! Pois tentar „desvendar‟ quantos e quem haviam sidos os criminosos do seu
assassinato colocaria em xeque uma questão fundamental: quem interrompeu o percurso da
trajetória política de uma mulher camponesa, de traços afro-brasileiros, que se tornara uma
grande expressão no movimento sindical atuando numa região onde prevalecia a força de
um coronelismo tardio, enquanto oligarquia política, e raízes do patriarcalismo nordestino
entranhadas na cultura local.
O cenário político-social do pós-morte de Margarida Alves.
Logo que ocorreu a morte de Margarida Maria Alves o movimento sindical, a Igreja
e os partidos, o movimento como um todo, propagaram aos quatro continentes o que havia
ocorrido. Para (E-09):
45
Amauri José do Rego e Amaro José do Rego, e Biu Genésio, motorista do veículo utilizado no crime e morto em
janeiro de 1986 como “queima de arquivo”. Agnaldo Veloso Borges, José Buarque de Gusmão e Antônio Carlos
Coutinho Regis também estavam envolvidos em conflitos na região.
O que se tinha de ONGs naquele momento e entidades sindicais do
mundo inteiro protestou. Da África do Sul à Inglaterra, vários sindicatos
da Alemanha, Ásia e Israel. O mundo protestou contra a morte de
Margarida. E, cobrou-se do Estado brasileiro por conta dessa grande
pressão. Fonte: (E-09 – Em 31/07/2009).
A propagação foi tão intensa que muitas organizações internacionais iniciaram um
processo de visibilidade dos chamados novos movimentos sociais, ao mesmo tempo em
que cobravam rigor nas apurações dos criminosos. Na casa onde Margarida Alves morava,
que foi transformada em museu, identifiquei, neste, mais de 200 comunicados oficiais de
representações internacionais, dirigidos às autoridades brasileiras e paraibanas, cobrando
justiça, alguns chegaram a exaltar, também, o trabalho do CENTRU, junto aos
trabalhadores rurais, referendando o papel educativo-formativo deste Centro.
Diante dessa repercussão, vários movimentos sociais localizados em outros países
da América Latina se posicionaram colocando que esse sindicalismo que estava surgindo,
no Brasil, não era mais o sindicalismo do período getulista, nem no setor urbano, nem mais
no rural. “Trata-se de um novo tipo de reação política, muito mais sério e forte do que já
havíamos presenciado, na história do Brasil, anteriormente”, dizia um trecho do jornal de
um sindicato de professores, localizado no Chile, recém saído da ditadura política do
Pinochet.
[...] trata-se de algo novo, tanto no sindicato dos metalúrgicos, no estado
de São Paulo [na região do ABC paulista], como dos plantadores de cana
de açúcar, de um Estado pequeno, conhecido como Paraíba, na região
nordeste, que acaba de ser assassinada uma sindicalista, que ousou
enfrentar os latifundiários [...]”. Fonte: Jornal do Sindicato dos
Professores, no Chile, 1983. (trad.). (ROCHA, 1996, p. encarte).
De fato ocorreu, nessa conjuntura fortalecida pela repercussão internacional, a
formação de uma grande rede de movimentos sociais brasileiros, em Alagoa Grande:
sujeitos do movimento estudantil, sindical, urbano e rural, de mulheres, meio ambiente,
negro etc não arredavam o pé da cidade. Daí adveio, paralelamente à cobrança pela justiça
da morte de Margarida Alves, uma solidariedade orgânica ao movimento dos trabalhadores
rurais, cobrando a campanha salarial, que já estava em curso.
CAMPONÊS FAZ PROTESTO DIA 28:
Milhares de trabalhadores rurais da zona canavieira de Alagoa Grande
vão realizar, no próximo dia 28, um ato público de protesto contra o
assassinato da sindicalista Margarida Maria Alves. O ato também terá o
objetivo de alertar os trabalhadores da região para a necessidade de
continuarem a campanha salarial defendida por Margarida, que ia
começar no dia 28. A informação do ato público foi fornecida pelo
advogado Júlio César Ramalho, assessor jurídico da FETAG, que recebeu
as informações dos sindicalistas de Alagoa Grande. Os sindicalistas
garantem que darão continuidade aos trabalhos de Margarida pela
conquista de salários condignos e pelo cumprimento da lei trabalhista, na
zona canavieira de Alagoa Grande. O advogado anunciou ainda que do
ato vão participar representantes sindicais do Estado e representantes da
Federação dos Trabalhadores na Agricultura na Paraíba, Álvaro Diniz, e
o presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura,
José Francisco. O trabalho com o objetivo de se chegar a um acordo
coletivo de trabalho, entre usineiros e canavieiros, em Alagoa Grande, já
havia sido iniciado pela sindicalista Maria Margarida, que marcou para o
dia 28 a primeira assembléia do sindicato por ela dirigida. [O NORTE em
15 de 08 de 1983]. Fonte: Arquivo público Estadual FUNESC. Dados
coletados pela pesquisadora em 10/06/2009.
Mesmo com toda essa repercussão e mobilização ocorrendo, os latifundiários não
paravam de ameaçar outros líderes sindicais, através de cartas e de recados. Só que, desta
vez, as lideranças dos movimentos sociais começaram a ter espaço na grande mídia local.
Como o caso de Margarida Alves, no calor do momento, dava bastante audiência, os
jornais, a televisão, e principalmente o veículo do rádio, que era o mais propagado no meio
popular, naquele contexto, não paravam de agendar entrevistas com sindicalistas,
militantes dos movimentos sociais e agentes pastorais para escutar sobre possíveis pistas
do caso de Margarida Alves.
Em contrapartida, segundo (E-08), também, era estratégico, por parte dos
militantes, dar visibilidade aos „novos‟ movimentos sociais, ao mesmo tempo em que
cobravam justiça pelo caso de Margarida Alves. Tratava-se de uma forma de ganhar
opinião e segurança públicas, para que novos assassinatos não ocorressem, ou seja, tratavase de uma ampliação dos espaços públicos, fortalecendo um movimento contrahegemônico.
Destaco a seguir uma reportagem que saiu no jornal O Norte, de um sindicalista,
que fora na seqüência da morte de Margarida Alves, ameaçado e tornou público essas
ameaças:
LÍDER RURAL ADVERTE PARA O PERIGO DE NOVOS CRIMES:
O presidente dos trabalhadores rurais de Princesa Isabel, Miguel Vicente
de Lucena, protestou, ontem, contra o assassinato de que foi vítima a
presidente do sindicato dos trabalhadores rurais de Alagoa Grande,
Margarida Maria Alves, ao mesmo tempo em que advertiu as autoridades
estaduais para o perigo de novos crimes contra líderes sindicais da área
rural, constantemente ameaçados por proprietários de terras “que não
aceitam sob hipótese alguma que lutemos em defesa pelo reconhecimento
dos direitos da classe trabalhadora rural, duramente espoliada desde os
tempos coloniais”. O líder sindical princesense, que se encontra internado
no hospital Edson Ramalho, onde foi submetido a uma cirurgia
recentemente, lamentou não ter tido condições de assistir ao sepultamento
de Margarida Maria Alves, anteontem, em Alagoa Grande, mas
conclamou os seus companheiros de atividade sindical, em todo o Estado
a não desestimularem diante desse fato, “porque acima de tudo está a luta
pelo reconhecimento dos nossos direitos e para que as autoridades
governamentais entendam que também somos brasileiros e os maiores
responsáveis pelo desenvolvimento da Nação”. Miguel Vicente de
Lucena confirmou as informações fornecidas pela Federação dos
Trabalhadores na Agricultura na Paraíba: Margarida Maria Alves vinha
recebendo ameaças de morte, ao mesmo tempo em que, também, revelou
ter sido informado por ela, numa das reuniões da FETAG, a respeito
dessas ameaças. “Margarida Maria Alves era uma pessoa muito decidida
e corajosa que não se deixava amedrontar por ameaças de quem quer que
seja. A sua morte de maneira tão trágica deixa um grande vazio em todos
os seus companheiros, mas, por outro lado, ao contrário de quem possa
pensar, nos estimula a continuar na luta em favor da reforma agrária e o
pagamento das obrigações sociais pelos proprietários de terras aos
agricultores, enfim, do reconhecimento de que também somos gente e
que o período da escravidão acabou há quase um século, apesar de no
momento a classe trabalhadora rural ainda ser tratada
indiscriminadamente. [O NORTE em 17 de 08 de 1983, pág. 12]. Fonte:
idem.
A declaração acima firma-se como um marco de fortalecimento do movimento
sindical, no meio rural. Ao mesmo tempo em que notifica a população das ameaças de
morte a outros sindicalistas, conclamando a opinião pública à necessidade da luta por
reforma agrária.
Sentindo o alargamento do espaço que os movimentos sociais estavam
conquistando através das mobilizações, o chamado grupo da Várzea começou a „cobrar‟ a
punição dos culpados da morte de Margarida Alves, com a pretensão de disputar a opinião
pública, dizendo-lhes na imprensa, ou através de seu grupo ideológico de parlamentares
que „Margarida‟ também tinha proximidade política com o PDS, portanto com o grupo da
Várzea, daí não seria „entre eles‟, que estariam os criminosos. Postularam, também, a
necessidade de repensá-lo „não‟ como crime político e „sim‟ como um crime comum.
Jornal O Norte
Jornal A União
PEDESSISTA vê um complô político
Edme repudia o Assassinato, no Congresso
o deputado Aércio Pereira (PDS) questionou
ontem a posição de quem acredita ter sido o
assassinato da líder sindical Margarida Maria
Alves, de Alagoa Grande, uma resposta ao
trabalho dela em defesa dos trabalhadores rurais
do município. Aércio aventou a hipótese de ela
ter sido morta a mando de um grupo político ao
qual Margarida negou apoio nas últimas
eleições, preferindo apoiar Edme Tavares e o
próprio Aércio. “– Eu confesso a opinião de
quem quer incriminar pessoas idôneas de
Alagoa Grande, famílias representativas da
sociedade local. Recomendo uma reflexão
sobre o caso, pois Margarida Alves exercia o
cargo de presidenta do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande há 20
anos, sempre defendendo o interesse dos
O deputado Edme Tavares (PDS) repudiou, da
Tribuna da Câmara dos deputados, a maneira
como a presidente do sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande,
Margarida Maria Alves, foi assassinada, na
ultima sexta feira, naquele município. Dizendo
que conhecia Margarida Alves de perto, aquele
parlamentar afirmou que “a Câmara, que
registra homenagens póstumas a tantas figuras
ilustres, não pode deixar, também, de registrar a
morte Margarida Alves, uma das maiores
lideres camponesas que eu conheci”. O
município de Alagoa Grande perdeu uma líder e
o trabalhador rural sua defensora disse Edme
Tavares, acrescentando que o trabalho de
Margarida era reconhecido por todos. O
parlamentar disse que “uma mão assassina e
desumana roubou-lhe a vida, que era preciosa
para os pobres e humildes”. Tavares também
exaltou a maneira como Margarida Maria Alves
se dedicava à causa dos pobres e injustiçados.
agricultores sem que fosse registrado
qualquer ato violento contra a sua pessoa”,
enfatizou o deputado. Pereira vê a
possibilidade de “um plano político para se
aproveitar do lamentável fato”. Faz questão
de ressalvar que Margarida “era uma [A UNIÃO em 20 de 08 de 1983]. Fonte:
correlegionária nossa, uma pessoa ligada idem.
ao meu partido, o PDS, e não mediremos
esforços para que a sua morte não seja
usada para interesses outros”, destacou.
Jornal O NORTE, João Pessoa, 14 ago. 1983.
Cidades, p.03]. Fonte: Ferreira (2006, p. 73).
O então deputado Aércio Pereira tentou dividir a opinião pública, na ocasião, sobre
o possível desfecho do assassinato de Margarida Alves. Associando possíveis „relações
correlegionárias‟ entre ela com os grupos locais, proprietários de terras, inclusive o próprio,
e que por serem todos ligados ao PDS, não haveria interesse destes em querer assassiná-la;
Ao mesmo tempo, que redirecionou para possíveis „outros grupos político partidários‟,
estarem ligados de alguma forma ao assassinato de Margarida. Aércio Pereira fazia
referência aos militantes sindicais que eram vinculados a outras legendas.
Por exemplo, ou ligados ao PMDB, oriundo do MDB, que há pouco tempo havia
representado o único partido legalizado de contestação da ditadura militar que vigorou
durante o bipartidarismo, ou ao recém criado Partido dos Trabalhadores (PT), partido que
congregava várias organizações de esquerda, muitas delas, inclusive, que haviam resistido
à ditadura em combate armado, portanto, era considerado uma „ameaça‟ aos latifundiários,
ainda mais por defender claramente a reforma agrária.
Passados alguns meses, a greve dos canavieiros foi deflagrada e se estendeu por
todo o Nordeste. Os movimentos cresceram, outras mortes de trabalhadores rurais
continuaram ocorrendo e os latifundiários de todo o país passaram a organizar uma
legenda, intitulada União Democrática Ruralista, conhecida como UDR, fundada em 1986.
Paralelamente, continuava-se as investigações do crime contra Margarida Alves, e
fortes mobilizações promovidas pelos movimentos sociais concentravam-se nos tribunais,
ou mesmo na frente da Igreja de Alagoa Grande, quando do aniversário de 8, de 15, de 30
dias, e depois a cada ano.
[...] Agnaldo morreu, se eu não me engano, em 1990, sem ser
processado como o mandante daquele crime. No primeiro momento
ele foi indiciado, ele compareceu à polícia para prestar
esclarecimento. Ele, junto com outros plantadores de cana de
açúcar da região. É, mas não chegou a ser sentenciado, no processo
penal que apurava o caso. A polícia, a justiça e o ministério
público, naquela época, não tinham independência para processar
uma figura como Agnaldo Veloso Borges. Isso num primeiro
momento, posteriormente, porque na primeira fase do processo nós
tivemos A. V. B. denunciado junto com os fornecedores de cana,
dezenas deles, no município. Foi denunciado e processado Antônio
Carlos de Almeida, um dos fornecedores conhecido como
Carlinhos, mas o Betâneo Carneiro dos Santos, o autor dos disparos
e os irmãos Amaro e Amauri José do Rêgo, eles eram dois
toureiros que participaram de uma tourada em Alagoa Grande e
conheceram, na ocasião, o Carlinhos que fez o contato direto,
chegando inclusive a conhecerem d. Margarida no sindicato e
levando um bolo, no dia 5 de agosto, dia do seu aniversário. O pai
de Carlinhos nos parece que gastou uma parte de suas propriedades
que tinha para defender o filho. O filho foi submetido a júri por três
vezes e nas três vezes foi absorvido. O movimento sindical e social
e o movimento local, em Alagoa Grande, não conformado com a
primeira etapa do processo, recorreram. Pois os primeiros
inquéritos apenas sentenciaram, mas não processaram todos os
indiciados por terem tentado contra a vida de Margarida. (E-09, Em
31/07/2009).
Daí, foram ocorrendo vários acontecimentos, várias mortes, e vários depoimentos
que alertavam que tais mortes seriam „queima de arquivos‟ de pessoas que estavam
envolvidas direta ou indiretamente no assassinato de Margarida Alves. E várias ONGs e
movimentos sociais voltados para os Direitos Humanos passaram a levantar pistas, na
tentativa de contribuir para o desvendamento do crime .
[...] Corria os anos de 1988, antes da grande campanha presidencial de
1989, em que estava à frente da CUT o professor Wilson Aragão: grandes
mobilizações. E a CUT, a CPT, a FETAG, e a CONTAG tiveram um
papel importante em não se contentar com a impunidade que ocorreu no
Estado. E, aí, nos movimentos sindicais e sociais, os advogados, passada
essa primeira etapa, nós continuamos realizando uma investigação
paralela. Descobrimos na cidade de Areia, uma senhora, funcionária
pública federal, que trabalhava na FUNASA, chamava-se d. Socorro, que
um dia ela nos procurou para conversar e nos deu um monte de
informações, em que o marido dela [Biu de Genésio], juntamente com
Betâneo Carneiro teria participado daquela emboscada à Margarida. E era
uma pessoa da cozinha de Zito Buarque. E, com base no depoimento
dela, levamos a cartório e as autoridades policiais e civil, novos fatos e
novos documentos. (E-09, Em 31/07/2009).
Tanto o (E-09) quanto o (E-10) colocam que, em 1988/1990 e 1991, a Secretaria de
Segurança Pública designou um delegado especial para o caso Margarida. Tomou
depoimento de Betâneo Carneiro, tomou depoimentos de alguns fornecedores de cana, e do
pessoal da usina. E, a conclusão da morte da mesma foi de que os culpados foram: Agnaldo
Veloso Borges – o mandante – e os outros principais envolvidos foram: José Buarque de
Gusmão (o Zito Buarque), Antônio Carlos Coutinho Regis, os irmãos Amauri José do
Rego e Amaro José do Rego, e Biu Genésio, motorista do veículo utilizado no crime e
morto em janeiro de 1986 como “queima de arquivo”.
O ministério público denunciou tudo isso numa batalha judicial muito
grande. E, nos anos 1990 -1994, os movimentos sociais começaram a
reclamar da condução do processo em Alagoa Grande. Entrava e saía
promotor e vários deles foram sendo afastados. Fomos percebendo que
vários deles faziam pouco do caso. Trouxemos, a CPT e a CUT, o caso ao
tribunal de justiça, tendo à frente, o procurador Antônio Elias de
Queiroga; de pronto ele concluiu que o empenho dos movimentos sociais
e religiosos eram muito fortes e procedentes. De pronto ele indicou um
juiz em caráter especial. Esse juiz, em 60 dias, ele instruiu o processo e
mandou Zito Buarque para a cadeia, em que o mesmo ficou apenas 40
dias. Alguns atores do movimento sindical e sociais acharam pouco, mas,
foi assim, para quem estava envolvido chegou a achar que seria
impossível levar alguém um dos mandantes a cadeia. Portanto, essa
prisão foi de suma importância. Bom, primeiro, foi um julgamento que
levou muitas horas, ele ficou frente a frente da justiça, tendo que
responder aquele interrogatório todo. Tinha que ter tudo isso, e ver o Zito
Buarque preso por cerca de 40 dias no 2° batalhão representou um gosto
de vitória da não impunidade! Ele ficou em sela especial, porque ele
era médico e a legislação dava esse privilégio. Mas, a partir dali, a usina
TANQUES degringolou, o prejuízo material e pessoal, para a família
Borges, para o Agnaldo, também, foi um preço alto. Perderam a
tranqüilidade e passaram a viver sem tranqüilidade. (E-09, Em
31/07/2009). (grifos meus).
Posteriormente, alguns dos advogados do caso de Margarida Alves foram
intimidados pelo próprio Zito Buarque. E os advogados que defenderam o Zito Buarque
chegaram a alegar que ele apresentava problemas de saúde, e que “apostavam com os
advogados de Margarida que dentro de quatro a três, ou quatro a dois, ele ganharia a
absolvição” (idem). Foi neste momento que o caso Margarida passou a contar com apoio
de novos advogados, que se ofereciam para acompanhar o processo.
E nós recorremos por um novo júri, em Brasília, no ministério público,
nós pedimos que se fosse pedido um novo julgamento. Mas, isso não
ocorreu para o STJ ele se posicionou colocando que esse caso deveria ser
arquivado. Tendo sido condenados, no final, apenas os pistoleiros.
Aqueles que colaboraram indiretamente com o crime, como os
fornecedores de Cana, foram se destruindo. E outras figuras envolvidas
no crime, que no momento não me recordo agora, eles saíram matando
uns aos outros. Betâneo matou Severino, depois desapareceu. Depois
mataram Paes de Araújo. A gente contabilizou 7 (sete)mortos. E
contabilizou, também, outra coisa importante; a tragédia que foi a
morte de Margarida, foi uma morte que reforçou a luta no campo, na
Paraíba [essa é a maior expressão de representação social dos novos
movimentos sociais] e no Nordeste. (idem). [grifo meu].
Na visão de vários sindicalistas, os usineiros, eles buscavam pistoleiros em cidades
circunvizinhas para realizar crimes no campo. Naquele momento, havia muita gente que se
prestava à matança de aluguel, mas a morte de Margarida aconteceu no auge daqueles
grupos oligárquicos, que três anos mais tarde se juntariam para formar a UDR, no Brasil e
na PB. Agnaldo Veloso Borges foi a figura que liderou a UDR na Paraíba. “Mas, mesmo
no auge, a repercussão e a comoção que houve com a morte de Margarida estancou os
assassinatos”, afirma o (E-09): “Naquela época era 1 ou 2 por mês, essa situação reduziuse significativamente”.
De lá para cá, cada vez mais os movimentos sociais do campo foram se firmando,
durante toda a década de 1990, como protagonistas dos movimentos sociais, sendo o MST
o principal deles. Mas, segundo Gohn (2003), não é possível „enquadrar‟ o MST como
simplesmente um dos Novos Movimentos Sociais, nem tampouco do velho. Ele já nasceu
representando um movimento com traços históricos únicos e „herdeiro‟, muito mais, das
Ligas Camponesas, do que do novo sindicalismo, por exemplo.
De lá para cá, outro fenômeno que destaco é que a economia canavieira foi
perdendo subsídios e as usinas começaram a entrar em falência.
[...] acabou que aqueles hectares de terras pelas quais Margarida tanto
lutou antes de ser assassinada foram sendo conseguidos com mais
„facilidade‟. Isso porque as usinas e os engenhos, não podendo indenizar
os camponeses por direitos trabalhistas, começaram a indenizar dando
pedaço de terra. Aí começou a pipocar as ocupações, a CPT já estava
visibilizada e o cenário era outro. Logo depois chegou o MST em nosso
Estado. Os assentamentos no estado da Paraíba forma crescendo, na
medida que o conflito ia ficando forte vinham novas mortes de
trabalhadores rurais. (idem).
Atualmente, já passam de 200 assentamentos, em nosso Estado, que têm à frente a
CPT ou o MST. Então, naquele momento, de Margarida Alves, se lutava por um pedaço de
terra e, hoje, se luta por educação, saúde, assistência técnica, crédito agrícola, cultura e
economia solidária sendo realizada diretamente nos assentamentos. A agricultura familiar
tornou-se uma realidade. Mas, a via campesina, como está sendo chamada a organização
do conjunto dos movimentos sociais do campo, continua sendo perseguida, ameaçada
constantemente pelos latifundiários, que agora se aglutinam no chamado agronegócio.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A síntese das representações:
do pé que plantou Margarida, muitas margaridas nasceram
A análise realizada neste estudo voltou-se, sobretudo, para a história da líder
sindical Margarida Maria Alves, a partir das variadas dimensões constituídas em sua
trajetória de sindicalista mulher, que se formaram na atuação político-educativa em defesa
dos direitos dos/das trabalhadores/as.
Margarida Maria Alves tornou-se um personagem em conflito na almejada
transição do Estado brasileiro, que oscilava entre uma economia conservadora para um
estágio „que se pretendia modernizante‟, aos olhos do capital. Na verdade, um Estadonação endividado pelo „pouco‟ que conseguiu modernizar-se, através da industrialização, e
que se tornou uma economia extremamente dependente do capital estrangeiro, sem
conseguir se libertar da formação agro-exportadora de monoculturas.
Tinha-se um Estado que atravessava, nesse início dos 80 (1980), uma lenta, muita
lenta transição entre governos autoritários, dirigidos por ditaduras militares, para um
estágio de volta aos direitos civis e democráticos, com um saldo enorme de mortos, de
dívidas, e da falta de um projeto de nação. Margarida Alves vivenciou outro contexto de
transição igualmente importante - a transição entre o velho e o novo sindicalismo, entre
velhas e novas formas de movimentos sociais.
Tratava-se de novas formas de fazer movimento, no sentido de colocar na pauta do
debate o econômico e o cultural, cobrando ações coletivas do Estado, mas, também, do
próprio conjunto social, novas formas de sociabilidade, para se obter direitos, sem ter que
negociar outros, já conquistados. Este novo formato de ser dos movimentos sociais foi
constituindo forças para combater, do mesmo modo, os mais variados preconceitos, onde
quer que eles estivessem. Os Novos Movimentos Sociais surgiram, como nos diz Neruda,
dos olhos dos meninos e meninas de rua, das profissionais do sexo, dos presidiários, dos
desempregados, dos oprimidos sexualmente, dos anciões abandonados, dos negros e negras
aparthaidos à brasileira, dos camponeses, enfim: dos Excluídos da História.
Mas, será que Margarida Maria Alves conseguiu realizar toda essa transição? Ou,
melhor dizendo, todo esse trânsito? Podemos relacionar esse personagem em conflito –
como dito nesta tese - com uma nordestina atravessando o trânsito na Avenida Paulista,
literalmente. Talvez, sim, talvez não. O sinal não ficou apenas vermelho para ela. Lhe
atropelaram antes! Alguns insistiram que ela morrera na contramão. Coronéis das
oligarquias [pais dos coronéis da ditadura militar] insistiram ainda mais: que ela morrera
na contramão e ficou atrapalhando o trânsito, o seu e o dos outros.
Margarida foi capaz de despertar na memória de outras camponesas a referência de
uma mulher dirigente de espaços marcadamente masculinos. Simbolicamente, refletindo-se
no empoderamento da transformação da dor em luta contra todo tipo de opressão.
Despertou, ainda, formas de resistência e de auto-organização feminina no meio camponês.
Daí, alguém poderia perguntar: mas, ela não era uma feminista? E daí? Para as feministas e
para as não feministas dos movimentos sociais essa nunca foi uma questão de divisão de
águas, aliás, na visão feminista da qual me acosto, lugar de mulher é em todo o lugar,
inclusive no trânsito, a contragosto dos homens.
Nas palavras de Rocha (1996, p.09), jornalista e repórter do jornal O Estado de São
Paulo encontrei o seguinte pronunciamento sobre a morte de Margarida Alves:
Margarida sonhou. Sonhou sempre, cotidianamente, insistentemente,
ardentemente. E fez do sonho sal para enfrentar os poderosos. Os que se
acham donos da terra, donos do trabalho alheio – escravizando-o -, donos
do pensamento e do corpo de outras pessoas, donos da vida alheia.
Margarida Maria Alves tornou-se figura quase lendária, como indica o texto de
Rocha. A leitura do cenário no qual atuou Margarida revela, também, outros personagens
femininos, ao mesmo tempo em que aponta para aqueles que a perseguiram. Porém há de
se indagar: quem tinha medo dessa mulher? Quem queria calá-la?
Voltando ao nosso passado, pode-se perceber essa resposta com uma leitura
retroativa de nossa “história”. As possibilidades de respostas, então, poderão ser
encontradas nos olhos dos oprimidos que hoje continuam na luta pela terra e que se
organizam nos sindicatos rurais, na CPT, no MST e nas organizações campesinas, que
foram sendo excluídos/as desde a nossa herança colonial, a mesma que dizimou índios,
seqüestrou e escravizou negros/as e distribuiu terras para quem só queria plantar nela
prestígio aristocrático, concentrando terras e poder político, poder das vidas alheias.
Em meus estudos anteriores
46
, foi possível perceber que o processo de
“distribuição” ou concentração das terras primeiro ocorreu de acordo com a conveniência
monárquica através das capitanias hereditárias, por meio das medidas do ordenamento
fundiário e decretado através de cartas régias, alvarás e ordenações religiosas do Sistema
Sesmarial.
Segundo, depois de loteado o Brasil, no período imperial, elabora-se a Lei de
Terras, em 1850, anunciada como um projeto modernizador. Tal lei fora criada por uma
bancada de parlamentares proprietários de terras, que trataram de regulamentar e legalizar
o que já haviam tomado para si, frustrando não só a chamada modernização, mas
configurando, efetivamente, a exclusão dos que não tinham seu pedaço de chão e queriam
nele plantar e colher alimento.
Desta forma, entram em cena, depois dos senhores sesmeiros, os novos herdeiros:
os coronéis e os latifundiários, que ameaçavam, perseguiam e, quando ainda não
satisfeitos, calavam as vozes dos que iam à luta e denunciavam a violência no campo.
Assim aconteceu com Canudos, no período dos coronéis, com João Pedro Teixeira e Nego
Fuba, das Ligas Camponesas, com Margarida Maria Alves, do sindicato rural de Alagoa
Grande – PB, e com tantos outros e outras que tombaram em defesa de um pedaço de terra,
onde o único crime era o desejo por uma reforma agrária, ainda que tardia.
Daí nasce o mito: Margarida Maria Alves, que tem sido lembrada nos movimentos
sociais como mártir da reforma agrária. Conflitantemente, esse mesmo personagem foi
percebido como incoerente, dado o seu posicionamento ideológico, nas eleições de 1982, e
a sua suposta filiação partidária ao PDS.
Neste conflito, pude observar que Margarida Alves, já com uma postura política
pública determinada em defesa dos trabalhadores rurais, ela – Margarida - ainda,
46
Para saber mais sobre esse estudo, ler “A Questão de terras na Paraíba”, artigo meu, em co-autoria com
SILVEIRA, Rosa Maria Godoy. Premiado no X Encontro de Iniciação Científica da UFPB e publicado na
revista Iniciados, em 2003.
„escutava‟ o marido, condição que lhe prendia nas teias da cultura patriarcal. Este, por ser
homem, marido e ex-sindicalista, do tipo que realizava práticas clientelistas presentes no
chamado „velho sindicalismo‟, a influenciava em contextos políticos sindicais e/ou
partidários decisivos, a exemplo das eleições de 1982.
Compreendo, no entanto, que dessa relação de marido e mulher, entre o Sr.
Cassimiro Alves e Margarida Alves, regada à afetividade de se chamarem de „filhinho‟ e
„filhinha‟,
Margarida
Alves,
também,
conseguiu
„influenciar‟
o
cônjuge,
concomitantemente, enquanto se formava no processo educativo, dos novos movimentos
sociais. Tal formação-participação lhe conduziu - Cassimiro Alves - a esta consciência, de
que os poderosos usineiros eram, sim, inimigos de classe. A representação dessa
„influência‟ pode ser entendida na atitude do Sr. Cassimiro Alves, quando o mesmo não
hesitou em momento algum de acreditar que teriam sido os usineiros os responsáveis por
mandarem assassiná-la, indo denunciar, inclusive, na imprensa local.
Nesse contexto, Margarida Alves foi capaz de ir além dos chamados limites
femininos. Em seu aprendizado, manifestou a idéia de romper com a esfera do mundo
privado e estender-se para a esfera do mundo público, na Igreja, no sindicato e no partido
político.
Essa confluência de ações e saberes lhe forneceria a capacidade de questionar a
violência provocada pelo latifúndio. Não se considerava feminista, mas acreditava na
contribuição do feminismo para o entendimento das opressões que fustigavam as mulheres,
bem como sabia que o feminismo apontava táticas, não apenas para amenizar essa
opressão, mas até mesmo para aboli-la.
Após a sua morte, essa reflexão mais preponderante tem sido desenvolvida por
outras contemporâneas. Tal entendimento está refletido como contou, nesta pesquisa, a (E3):
[...] as outras mulheres não participavam do sindicato, nas assembléias, só
os homens chegavam. Quando acontecia chegar uma ou duas mulheres,
ficavam caladas, quando questionavam alguma coisa, os homens diziam
que elas não tinham que falar, então, a gente viu a necessidade e a
preocupação que se tinha que se ter com esse movimento das mulheres
para que essas mulheres passassem a ter formação, começasse a elas se
sentir gente também e lutar pelos seus direitos [...]. (E-3). (FERREIRA,
2006, p. 106).
Entende-se, então, que essas identidades construídas em termos de alterações dos
papéis desempenhados por homens e mulheres se dariam através da educação, de uma
educação libertária que buscou estabelecer um diálogo para a transformação das relações
sociais, no acesso à fala e aos cursos de formação iniciados com o CENTRU. Desta forma,
se auto-organizaram e constituíram o movimento autônomo de mulheres campesinas e
provocaram mudanças que foram além das estruturas, na perspectiva de se libertar das
amarras impostas pela cultura patriarcal.
Essas novas práticas educativas são similares às já preexistentes, quando das suas
ações no sindicato, até porque não deixaram de continuar nas estruturas deste. Mas a
autonomia necessária requeria e requer uma dupla jornada militante, já presenciada
anteriormente, em outras experiências, e que se incompatibiliza com o discurso político
dos homens no espaço sindical.
Cabe lembrar que, nessa experiência, tive a oportunidade de conviver com algumas
dessas discussões e de perceber suas lutas cotidianas e a incorporação das novas
inquietações, que instigam a continuidade desses debates.
Todavia, importa reforçar que é inegável o debate insurgido pelo feminismo, na
perspectiva de um novo movimento social e do seu diálogo com outros movimentos
populares, estabelecendo, além da auto-organização de grupos de mulheres, a auto-estima
traduzida pela disposição do sujeito construído, o sujeito autônomo.
Por fim, quero ressaltar que o debate de gênero introduzido no movimento sindical
rural da Paraíba, na década de 1980, deu uma nova configuração aos movimentos sociais,
proporcionando mudanças neste cotidiano sindical; em outras palavras, enriqueceu-os com
as novas falas.
São as falas de Margarida Maria Alves, Maria da Penha, Maria da Soledade, Maria
do Céu, Antônia, Josefa e tantas outras que ousaram construir a sua autonomia, reivindicar
direitos e buscar mais e mais espaços, do espaço da casa ao do sindicato, da organização
das mulheres para muitos outros lugares, sem medo de enfrentar os “donos das terras” e a
cultura patriarcal, mas demarcando e (re) afirmando a vontade de se construir sujeito da
história.
Compreendo que as aprendizagens – de classe e gênero - nestas transições só foram
possíveis a partir de um conteúdo educativo colocado no cotidiano sindical e,
posteriormente, apreendido por outros sujeitos individuais e coletivos, presentes nos mais
variados movimentos sociais. Estes sujeitos foram capazes de desenvolver uma
„consciência de direitos articulados‟, e não apenas de uma „busca por benefícios
coorporativos‟. Direitos do trabalhador; direitos da mulher; direito a ter direitos.
Gradativamente, essa „consciência‟ foi sendo mediada pelos necessários cursos de
formação/educação política, que passaram a ocorrer dentro das instâncias de cada
movimento social. Essa „consciência‟ representou, do mesmo modo, outra lição: a de que
para se adquirir „direitos‟ seria necessário mais do que uma luta ideológica de classes
sociais. Igualmente, seria necessária a reflexão das experiências, de suas coerências e
incoerências, ou seja, de uma necessária práxis (auto) educativa.
Ao defender, aqui, a tese de que Margarida Maria Alves foi um personagem
social em conflito com a transição do velho para o novo sindicalismo rural, vivenciei,
ao longo do processo de elaboração da mesma, muitas dúvidas sobre se seria possível ou
não defendê-la. Primeiro, o argumento inicial da TESE foi sendo modificado, ou melhor,
dizendo, sendo construído, desconstruído, transformado, lapidado, até que, em minhas
orientações semi-finais, fiquei um pouco mais tranqüila.
Foi quando entendi que o orientador dizia: “escute as suas fontes, pare e escute as
suas fontes”, as fontes novas, orais e documentais. Passei a ouvi-las e percebi que já
falavam por si só. Apontavam um ruído sonoro, igual à buzina de trânsito educada dizendo
„Yes I can[...] Yes, I can‟. Sim, é possível afirmar que Margarida Maria Alves vivenciou
vários conflitos de transições num contexto marcado por práticas autoritárias versus
práticas democráticas e que conseguiu estabelecer algumas importantes rupturas.
Rupturas no sentido de romper com práticas clientelistas. E rupturas no sentido de
crescer, pois quando uma célula vegetal rompe o tecido, significa crescimento. Ela cresceu
porque sonhou com o desejado projeto de nação que os novos movimentos sociais
passaram a desenhar na história do Brasil e que, naquele contexto, queria resolver o latente
desemprego, o alto índice de analfabetismo, as mortes por desnutrição, alcançar a
estabilização da economia e, principalmente, estacionar o êxodo rural e a fome no
Nordeste, realizando a principal reforma esperada pela sua classe – a dos camponeses – a
reforma agrária.
E quanto às rupturas que Margarida Alves não conseguiu concretizar, ou mesmo,
algumas práticas políticas que possam ter sido interpretadas como contraditórias, na sua
experiência política? Elas - as fontes - me convenceram, ainda, de que Margarida Maria
Alves foi uma mulher que avançou em sua „consciência‟ de classe e de gênero, mas foi,
também, uma mulher normal, com acertos e desacertos, com contradições e tudo o mais,
contradições típicas de períodos de transições, contradições típicas de seres humanos.
Quem não as tem?
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Pirpirituba – PB, em 17/02/2005.
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em 31/07/2009.
Entrevista 10 – R. A. – Militante acadêmico – ex-assessor do CENTRU, em 17/06/2009.
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em 19/06/2009.
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