UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA - UFPB CENTRO DE EDUCAÇÃO - CE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO ANA PAULA ROMÃO DE SOUZA FERREIRA A TRAJETÓRIA POLÍTICO-EDUCATIVA DE MARGARIDA MARIA ALVES: Entre o velho e o novo sindicalismo rural JOÃO PESSOA-PB 2010 ANA PAULA ROMÃO DE SOUZA FERREIRA A TRAJETÓRIA POLÍTICO-EDUCATIVA DE MARGARIDA MARIA ALVES: Entre o velho e o novo sindicalismo rural TESE apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba, na linha de Movimentos Sociais, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutora em Educação. ORIENTADOR: Prof. Dr. Charliton José dos Santos Machado. JOÃO PESSOA-PB 2010 ANA PAULA ROMÃO DE SOUZA FERREIRA A TRAJETÓRIA POLÍTICO-EDUCATIVA DE MARGARIDA MARIA ALVES: Entre o velho e o novo sindicalismo rural APROVADA EM ___/___/___ BANCA EXAMINADORA __________________________ Prof. Dr. Charliton José dos S. Machado (Orientador/PPGE/UFPB) __________________________ Profa. Dra. Neide Miele (Examinadora externa/PPGCR/UFPB) __________________________ Prof. Dr. Paulo Giovani Antonino Nunes (Examinador externo/PPGH/UFPB) __________________________ Profa. Dra. Maria do Socorro Xavier Batista (Examinadora do PPGE/UFPB) __________________________ Profa. Dra. Maria Lúcia Nunes da Silva (Examinadora do PPGE/UFPB) JOÃO PESSOA-PB 2010 DEDICO este trabalho ao Movimento de Mulheres Trabalhadoras do Brejo e às memórias de Margarida Maria Alves e da companheira Maria da Penha do Nascimento Silva. AGRADECIMENTOS A Deus, força-luz que tem iluminado as nossas trilhas... À Fundação Ford, pelo investimento através do Programa de Bolsas de Pós-Graduação em Ação Afirmativa, durante o período do mestrado e pelo suporte de publicação de vários artigos científicos, durante o doutorado. Ao Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE), da Universidade Federal da Paraíba. Ao Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional (NDIHR) seu corpo técnico de funcionários e professores. Ao meu pai Antônio (in memoriam). À minha mãe Elidriana Geralda Romão (ex-trabalhadora rural) e aos meus irmãos Freud, Francisco e Alexandre, pelo que me ensinaram com seu exemplo de amor. Aos pequenos Carol e Raul, razão e dádivas na minha vida – que a esperança de um mundo melhor preencha o nosso futuro. Às companheiras do Movimento de Mulheres Camponesas, pela força de continuar lutando com tantas dificuldades; em especial, à companheira Maria da Soledade, que em muito contribuiu para esta realização. Ao companheiro Wilson Aragão, principal incentivador não apenas deste trabalho, mas da minha existência como mulher e pesquisadora; simplesmente te amo. Ao Prof. Dr. Charliton Machado, meu orientador, pelo cuidado teórico, sensibilidade e militância na temática das relações de gênero. À Professora Rosa Godoy, pelas lições de pesquisa, de cidadania, de vida e de História. À amiga-irmã, professora Dra. Ignez Pinto Navarro, pela sua força constante em nossos elos afetivos e profissionais. E pela revisão e colaboração em nossa tese. Às professoras Dra. Maria do Socorro Xavier; Dra. Maria Lúcia Nunes e à Dra. Neide Miele, membros da banca do Seminário de Tese, por terem contribuído com este trabalho, que ora apresento em nossa defesa final. Do mesmo modo, agradeço ao prof. Dr. Paulo Giovani por ter vindo somar novas contribuições. Ao Fórum de Mulheres da UFPB, particularmente à companheira Wilma Martins de Mendonça. Aos companheiros (as) do Partido dos Trabalhadores (as); da CUT e da CPT. Aos colegas do mestrado e do doutorado, pelo que vivenciamos de encantos e desencantos na busca não apenas do título, mas de sólidos referenciais em nosso aprofundamento acadêmico e societário. Aos sujeitos contribuintes da nossa pesquisa: Luís Silva, Antônio Barbosa, Romero Antônio, Roberto Veras, Luciana Rangel, Edvam Silva, Pedro e Júnior Targino. RESUMO Este estudo tem como objetivo primordial analisar a formação política e educativa de Margarida Maria Alves (1933-1983), em sua trajetória nos movimentos sociais e, de forma mais focalizada, no movimento sindical rural. Busca, ainda, compreender a disputa de representações sociais vivenciada sobre a sua experiência política, em um período histórico conflitante entre o velho e os novos movimentos sociais. A perspectiva é a de focalizar o sentido histórico-cultural das suas aprendizagens e representações, construídas a partir de conflitos político-sindicais-partidários e das suas próprias lutas reivindicatórias, frente às políticas emanadas pela cultura oligárquica, durante as duas últimas décadas do século XX. Neste sentido, defendo a tese de que Margarida Maria Alves foi um personagem social em conflito com a transição do velho para o novo sindicalismo rural. E que essa transição, representou uma perspectiva de ruptura (s) política (s) de subserviências oligárquicas para uma práxis sindical combativa, refletida através da Educação Popular, a partir da auto-experiência da classe camponesa. Situado no campo das abordagens teórico-metodológicas da História Social e da Nova História Cultural, o mencionado enfoque, tomando como base a ampliação do seu leque temático, em especial, da chamada história dos vencidos, possibilitou configurar o universo histórico-social, através das categorias: experiência, representação e práxis, entre outras. Para tanto, pesquisei através de múltiplas fontes: jornais, documentos oficiais, cadernos de formação e, sobretudo, da história oral. Isto permitiu recuperar marcas, pistas e fragmentos que expressam a luta histórica e a vida da referida sindicalista, suplantando o silêncio intelectual do conservadorismo acerca das suas convicções e de sua trajetória políticoeducativa. Neste cenário, onde prevalece a inegável riqueza da atuação das lutas camponesas da Paraíba, foi possível perceber a importância da formação sindical e da formação de gênero, dentro do território da cultura rural, como contraponto à disputa de poder na sociedade patriarcal. Assim, a contribuição da representação de lutas em espaços de conflitos de classe social e de gênero direcionou a um novo referencial formador nas práticas educativas dos movimentos sociais. Palavras-chave: Mulheres Camponesas – Movimentos Sociais – Educação Popular Margarida Maria Alves – Representações Sociais. ABSTRACT This study's main objective is to analyze the formation of educational politics and Margarida Maria Alves (1933-1983) in his career in social movements, more focused, the rural labor movement. The aim is to also understand the social representations of race lived on his political experience in a historical period conflict between the old and the new social movements. The perspective is to focus on the cultural-historical sense of their learning and representations, built from the political-party-union and their own struggles revendicating, compared to the policies issued by the oligarchic culture during the last two decades of the twentieth . In this sense, we defend the thesis that: Margarida Maria Alves has a social character in conflict with the transition from old to new rural labor movement. And that transition was a prospect of breaks politics of subservience to an oligarchic practice combative union reflected through popular education, from the selfexperience of the peasantry. Situated in the field of theoretical and methodological approaches in Social History and the New Cultural History, the mentioned approach, based on the expansion of its range of areas, particularly the so-called history of the conquered, allowed to set the historical and social universe through the categories: experience, representation and practice, among others. Therefore, we researched through multiple sources: newspapers, official documents, books and training, especially oral history. This made good marks, tracks and fragments that express the historical struggle and the life of that union, overcoming the silence of intellectual conservatism about his beliefs and his political-educational trajectory. In this scenario, where there is the undeniable richness of the performance of the peasant struggles of Paraíba, it was revealed the importance of union formation and training of gender within the territory of the rural culture, as opposed to the power struggle in a patriarchal society. Thus, the contribution of the representation of fighting in the conflict areas of social class gender directed to set new standards in teacher education practices of social movements. Keywords: Rural Women - Social Movements - Popular Education – Margarida Maria Alves - Social Representations. RESUMEN El Principal objetivo de este estudio es analizar la formación de la política educativa y Margarida Maria Alves (1933-1983) en su carrera en los movimientos sociales, más centrado, el movimiento de la mano de obra rural. El objetivo es también comprender las representaciones sociales de la carrera vivió en su experiencia política en un conflicto período histórico entre los antiguos y los nuevos movimientos sociales. La perspectiva es centrarse en el sentido histórico-cultural de su aprendizaje y representaciones, construido a partir de la política de partido-sindicato y sus propias luchas revendicating, en comparación con las políticas dictadas por la cultura oligárquica durante las dos últimas décadas del siglo XX . En este sentido, defendemos la tesis de que: Margarida Maria Alves tiene un carácter social en conflicto con la transición del antiguo al nuevo sindicalismo. Y que la transición era una perspectiva de ruptura (s) política (s) de la subordinación a una práctica oligárquica sindicato combativo refleja a través de la educación popular, de la propia experiencia de los campesinos. Situado en el terreno de enfoques teóricos y metodológicos de la historia social y la nueva historia cultural, el enfoque mencionado, basado en la expansión de su gama de áreas, en particular la historia de los llamados de los vencidos, les permite establecer el universo histórico y social a través de la categorías: la experiencia, la representación y la práctica, entre otros. Por lo tanto, hemos investigado a través de múltiples fuentes: periódicos, documentos oficiales, libros y formación, especialmente la historia oral. Este hecho buenas notas, canciones y fragmentos que expresan la lucha histórica y la vida de esa unión, superar el silencio de conservadurismo intelectual sobre sus creencias políticas y su trayectoria educativa. En este escenario, donde existe la riqueza indiscutible de los resultados de las luchas campesinas de Paraíba, se reveló la importancia de la formación de sindicatos y la formación de género en el territorio de la cultura rural, en contraposición a la lucha de poder en una sociedad patriarcal. Así, la contribución de la representación de los combates en las zonas de conflicto de género, clase social, destinada a establecer nuevos estándares en las prácticas de formación docente de los movimientos sociales. Palabras clave: Mujer Rural - Movimientos Sociales - Educación Popular – Margarida Maria Alves - Representaciones Sociales. LISTA DE SIGLAS CENTRU - Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural CONTAG - Confederação dos Trabalhadores da Agricultura CNTR - Congresso Nacional dos/ as Trabalhadores/as Rurais CPT - Comissão Pastoral da Terra CUT - Central Única dos Trabalhadores EP - Educação Popular FETAPE - Federação dos Trabalhadores Rurais FUNESC - Fundação Espaço Cultural FUNRURAL - Fundo de Amparo ao Trabalhador Rural MASTER - Movimento dos Agricultores Sem Terra MDB - Movimento Democrático Brasileiro MMB - Movimento de Mulheres do Brejo MMC - Movimento Nacional de Mulheres Camponesas MMT - Movimento de Mulheres Trabalhadoras do Brejo MST - Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra MSTTR - Movimento Sindical dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais NMS Novos Movimentos Sociais NDIHR - Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional PIBIC - Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica PRÓÁLCOOL - Programa Nacional do Álcool PFL - Partido da Frente Liberal PT - Partido dos Trabalhadores PMDB - Partido do Movimento Democrático Brasileiro STRs - Sindicatos Rurais UDR - União Democrática Ruralista ULTAB - União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO........................................................................................................................ 12 1.1 A minha aproximação com a pesquisa: um pouco dessa história............................................ 12 1.2 Margarida Maria Alves: uma história política complexa........................................................ 21 1.2.1 Margarida no front do conflito político-sindical-partidário: problematizando a TESE....... 32 1.3 Caminhos metodológicos de uma pesquisa histórica............................................................. 34 1.3.1 A História Oral: a opção da técnica...................................................................................... 37 2 OS FUNDAMENTOS TEÓRICO-HISTÓRICOS DA PESQUISA.................................... 40 2.1 A História Social e a Nova História........................................................................................ 44 2.1.1 A História Social: a experiência em foco............................................................................. 44 2.1.2 A Nova História Cultural: a representação em foco........................................................... 48 2.2 A Educação Popular (EP): o diálogo entre a experiência e a práxis....................................... 54 2.3 O Velho e os Novos Movimentos Sociais (NMS)................................................................... 62 2.3.1 O Velho e o Novo Sindicalismo Rural................................................................................. 70 2.3.2 Os NMS no Movimento de Mulheres: feministas e não-feministas..................................... 76 3 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DA(S) EXPERIÊNCIA (S) POLÍTICA(S) DE MARGARIDA MARIA ALVES................................................................................................ 86 3.1 O papel do CENTRU na formação da transição política de Margarida Maria Alves............. 86 3.2 O Movimento de Mulheres Camponesas na Paraíba e Margarida Maria Alves..................... 92 3.3 Margarida Maria Alves: entre o velho e o novo sindicalismo................................................. 114 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................... 129 REFERÊNCIAS.......................................................................................................................... APÊNDICES ANEXOS 135 Foi uma líder sindical Determinada, aguerrida, No meio do canavial Pondo em risco sua vida Lá estava conscientizando, Com paciência, educando, Toda uma classe sofrida. Na entidade abria escolas, Contratava educadores, Comprava livros, sacolas, Para os seus trabalhadores Onde se aprendia o ABC E as condições de entender As causas dos seus horrores. No meio dos canaviais Estava lá Margarida Dando lições sindicais Àquela gente excluída. Indiferente pra sinais Ela entrava nas usinas Pondo em risco a própria vida. Repetia da exploração Que as energias consome Provocando a inanição De quem, raramente, come “Que é preferível, marchando, A gente morrer lutando Do que morrer pela fome.” Medeiros Braga 1 INTRODUÇÃO 1.1 A minha aproximação com a pesquisa: um pouco dessa história ...Têm certos dias, em que eu penso em minha gente, e sinto assim todo o meu peito se apertar, porque parece que acontece de repente, como um desejo de eu viver sem me notar... (Vinícius de Moraes) Realizar este estudo sobre “a trajetória político-educativa de Margarida Maria Alves” aponta razões, de um lado, da minha opção acadêmica, buscando originar a continuidade dos estudos anteriores, mediante um esforço para aprofundá-los e, até mesmo, contradizê-los. Para tanto, resolvi iniciar esse esforço acadêmico partindo do meu memorial, que traz, por outro lado, razões subjetivas que se entrelaçam com a presente tese. Neste sentido, recuperar a minha trajetória de vida1 significa descortinar relações de uma vivência familiar, acadêmica, profissional e ativista, de mulher-nordestina, filha, mãe, aluna, professora, feminista e militante que teve na busca do conhecimento e da afetividade sua identidade reconstruída. Nasci em João Pessoa-PB, numa família pobre, com poucos recursos financeiros. Quando nasci, o meu pai era dono de um pequeno bar, no bairro de Cruz das Armas, nessa cidade. Minha mãe, ex-agricultora de um pequeno povoado, conhecido como Passa e Fica, localizado no Rio Grande do Norte – recém chegada deste município, no início da década de 1970 - havia sido a cozinheira do bar do meu pai, antes de morarem juntos. Posteriormente ao meu nascimento (1973), o bar fechou e houve um longo período de desemprego do meu pai, que conseguiu ser admitido como portuário, iniciando-se como 1 Essa trajetória de minha vida é aqui entendida como a aproximação dos sujeitos da pesquisa e no campo historiográfico representa o que Georges Duby chamou de Ego-História. A Ego-História não se trata de uma história biográfica, mas permite perceber os nexos entre o narrador e a história narrada, quando se trata de experiências vivenciadas em uma mesma conjuntura ou com proximidade dos fatos vivenciados por ambos. servente de convés até ser guarda noturno, profissão em que ficaria até o fim de sua vida. Tratava-se de um emprego garantido por troca de „favores‟ prestados por meu avô paterno aos militares, em virtude de sua posição social que era considerada de certo destaque nesse meio. Não tive irmãs, e sim quatro irmãos, dois mais velhos e dois mais novos, o que gerou uma convivência demarcada pela preeminência masculina. Hoje, meu pai é falecido, minha mãe aposentada e meus irmãos casados. Embora nunca tenhamos passado fome, também não podíamos desfrutar de muito conforto, tínhamos apenas o necessário à nossa sobrevivência. Na minha infância, alguns momentos marcantes se passaram no pequeno município de Passa e Fica, na região do Curimataú, sertão nordestino, onde presenciei de perto a seca e suas conseqüências, a dificuldade de se obter água e comida. Este retorno me permite construir através da memória uma parte de minha história. Fui alfabetizada por um professor amigo da família2. Em seguida, estudei a maior parte da educação básica em escolas públicas. Mudei muito de escolas, em virtude das viagens de meu pai. Quando ele embarcava por longos períodos, íamos para Passa e Fica, permanecer junto ao núcleo familiar materno; existia uma rejeição para com a minha mãe, por parte dos familiares paternos, pela sua origem muito humilde, mas é dessa origem que constituí as minhas raízes. Passei por vários colégios da Paraíba e do Rio Grande do Norte, escolas urbanas e rurais, e pude perceber que a escola pública estava entregue ao descaso dos governos desses dois Estados, que sempre tinham oligarquias se revezando no poder. Este contexto me despertou, ainda que instigada através de alguns professores/as, para o fato de que devíamos lutar cotidianamente por uma educação pública e de qualidade, superando os programas oficiais de ensino, impostos por esses governos. Esta percepção de mudanças no rumo da educação foi aprofundada no ano de 1988. Em João Pessoa, aos 15 anos de idade, estudava no Lyceu Paraibano, quando eclodiu uma greve conjunta de professores e alunos, na luta por salários dignos dos profissionais da rede estadual de ensino e por reforma curricular, onde participei de várias mobilizações: passeatas, teatro popular de protesto, panfletagens, pixações. Tais fatores contribuíram para a minha 2 Recentemente (2006) tive o prazer de tê-lo como aluno do curso de História, quando lecionei em uma instituição de ensino privada. A sensação desse retorno foi única: ele era o mestre e não „eu‟; ele era o eterno mestre Quirino. Foi com ele que aprendi a ler o mundo e não apenas a juntar letras. Daí, a constatação de que essa sensação apontava uma transição importante, a de vivenciar a dupla condição de ser docente e ser aprendente cotidianamente. participação no grêmio estudantil, engajamento em organizações juvenis de esquerda e, um pouco mais tarde, no movimento estudantil universitário. Em 1990 ingressei no Partido dos Trabalhadores (PT). Partido que trazia, naquele momento, um programa de mudanças para o curso do país em relação a um passado recente de autoritarismo. Congregava vários grupamentos políticos com formação direcionada para modelos de orientações socialistas marxistas diversos: leninistas, trotskistas, maoístas. Isto representava diferentes modelos de enfrentamento ao modelo capitalista vigente, tipos de resistência e de disputas tácitas nas mais variadas esferas de poder: movimentos sociais, conselhos populares, parlamentos e governos. Participei de vários cursos de formação política a nível regional e nacional. Passei a conhecer e conviver com pessoas de várias gerações. Jovens da mesma faixa etária (tinha 17 anos) e com vários militantes (entre 30 e 50 anos) que haviam enfrentado a ditadura militar ou, mesmo, haviam atuado pela redemocratização do país e pela anistia dos presos políticos. Para mim, tudo aquilo era muito intenso e passei a me dedicar integralmente à militância. Mas a pressão da minha família era forte para que eu me afastasse de todo esse ativismo que já ocupava um grande espaço da minha vida. Muitas vezes, tive enfrentamentos diretos com meu pai no meio de passeatas; ele me „arrastava‟ para que eu não participasse das mobilizações. Resolvi, então, que deveria sair de casa. Aos 18 anos (1991), fui aprovada em concurso público, na cidade de Cabedelo – PB, na função de Regente de Ensino, assumindo sala de aula num vilarejo da praia do Jacaré. As condições de ensino eram péssimas, o índice de evasão, do mesmo modo. O conjunto dos professores implantou uma ação interdisciplinar intitulada “sextas de leitura” e formação de grupo de capoeira de crianças; após o primeiro ano, já se via resultados, fruto do empenho dos professores/as e da prática em educação popular, junto à comunidade. O salário que recebia mal dava para as passagens de João Pessoa a Cabedelo, não dava para sair de casa naquelas condições e, o principal não era mais a militância no partido, mas a educação popular em curso naquela escola. Esta experiência na educação infantil descortinou o meu desejo de continuar a lecionar. Foi neste contexto que me casei e tive a minha primeira filha (1992), uma menina negra linda! O pai era negro, situação que gerou muitos conflitos com meus familiares. As dificuldades econômicas e sociais e a vontade de ficar perto de minha filha determinaram o meu pedido de exoneração desse emprego. Em 1994, nasceu meu segundo filho, forte e bonito, porém a sua irmã ainda estava muito pequena. E agora? Em vez de um eram dois para cuidar; mesmo assim, decidi que devia voltar a estudar. E, ao fazer vestibular no final daquele ano, a opção não fora na área de educação. Fui vencida pelos “conselhos familiares” de pai, mãe e marido, para cursar uma profissão que tivesse “melhores condições salariais”. Dessa forma, ingressei no curso de Administração, da UFPB, e cursei os dois primeiros anos. Ser mãe de dois filhos, aos 20 anos, não foi fácil para conciliar estudo e formação profissional. E ter, como marido, um homem negro e militante do Partido dos Trabalhadores (PT) foi uma situação cada vez mais rejeitada pela minha família. Assistir aulas com menino e amamentar foi um exercício cotidiano e as dificuldades de conciliar o casamento com a pauperização crescente e os estudos, sem o apoio da família, e posteriormente, até do marido, conduziram a muitos conflitos conjugais, e se transformaram num desamor tamanho que gerou até violência física. Após a separação conjugal, inevitável, foi quando percebi que, de fato, havia passado de menina para mulher, com a mesma sorte que as nossas primeiras mães, índias e negras, que passaram, a partir da dor, pelo desamor e pela violência, e que, como eu, muitas mulheres ainda têm essa mesma sorte. No mesmo ano, em 1998, estabeleci outras rupturas. Deixei o curso de Administração e ingressei no curso de História na UFPB. Almejava lecionar, continuar a militância política e desenvolver projetos de educação popular e descobri, nesse curso e no movimento de mulheres, razões, sensibilidades e apoio para a definição de onde deveria atuar. No entanto, tive de superar, além da separação conjugal, a morte do meu pai; foram tempos muito difíceis. Cursar história foi fascinante, reforçava a sensação de que o passado não pode ser destruído, nem o coletivo/social, nem o dos indivíduos. Portanto, meu compromisso tinha que ir além da história factual e de heróis, consistia na opção pela história dos de baixo, a história da transformação; dessa forma, voltava a minha memória às dificuldades da infância, como as conseqüências da seca, na cidade de Passa e Fica – RN. Através da aprendizagem militante fui convidada a trabalhar no Centro da Mulher 08 de março, uma ONG feminista, onde atuei na coordenação de pesquisa, realizando palestras, cursos e oficinas sobre as seguintes temáticas: A Mulher na História; Mulher e Mercado de Trabalho; Gênero, Classe e Etnia, entre outros. Além disso, a militância no setorial de mulheres do PT, desenvolvida concomitantemente com trabalhos em assessorias e consultorias a parlamentares do PT, objetivava acompanhar reivindicações dos movimentos de mulheres com o propósito de construir políticas públicas que atendessem aos seus anseios. Isto possibilitou, a partir daí, o meu engajamento em várias mobilizações contra a impunidade dos assassinos da líder sindical Margarida Maria Alves e o primeiro contato com a Marcha das Margaridas, que repercutia fortemente junto aos movimentos sociais organizados na Paraíba, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Essa Marcha foi construída pelo Movimento de Mulheres Trabalhadoras do Campo (MMC), responsável pelo elo campo/cidade dos movimentos de mulheres. Em 1999, fiquei totalmente voltada para a Academia: ensino, pesquisa e extensão. Participei do Projeto Zé Peão, no Centro de Educação/UFPB, uma curta e intensa experiência, seja pela perspectiva de abordagem que o projeto propunha, seja pelo tipo diferente de sala de aula e, também, pelo fascínio do debate crítico da educação de jovens e adultos, fruto de uma parceria coerente entre universidade e sindicato da construção civil. Assim, após alguns meses de minha vivência no Projeto Zé Peão, fui convidada, pela professora Rosa Maria Godoy Silveira, a participar da seleção do PIBIC e trabalhar com ela no Núcleo de Informação e Documentação Histórica e Regional (NDIHR), da UFPB, na linha temática “Questão Agrária”. Tal convite possibilitou o meu ingresso na pesquisa e no aprofundamento teórico que deu, ainda mais, consistência a minha formação acadêmica e ao papel social que desempenhava. Nesta oportunidade, durante três anos, tive a pesquisa como condição principal de minha atividade acadêmica. Trabalhei com fontes primárias, no arquivo público da Fundação Espaço Cultural (FUNESC), habilitei-me como arquivista-técnica em um curso patrocinado aos pesquisadores do NDIHR. Este contato com a pesquisa resultou na monografia de final de curso Descolonização e Lei de Terras em Cena: A Constituição Fundiária do Município de Souza–PB, um estudo de caso que tentou responder questões acerca das ocupações, demarcações e conflitos agrários no período imperial da história da Paraíba, no município de Souza. Isto representou uma rica experiência no campo do aprendizado da investigação científica, despertando, naquela circunstância, uma inquietação para continuar a pesquisar sobre os estudos agrários e campesinos. Fui premiada, em 2001, no X Encontro de Pesquisa e Extensão da UFPB, com o trabalho A questão de terras no sertão da Paraíba, desenvolvido no grupo de estudo e pesquisa do referido núcleo, e que teve seu resultado transformado em ensaio, após um ano, possibilitando a minha primeira publicação. Dessa ascendência adveio a inquietação para continuar a pesquisar sobre os sujeitos históricos que atuaram (atuam) na luta pela terra, num recorte de Gênero. Após a conclusão da graduação, o meu tempo passou a ser dividido entre a pesquisa no NIDHR, a militância nos fóruns de mulheres e o exercício do magistério, onde lecionei História, nos níveis do ensino fundamental e médio, no supletivo da UFPB, na condição de docente em regime emergencial, enquanto me preparava para o ingresso em cursos de PósGraduação. A intenção de trabalho começava a se materializar na direção de pesquisa sobre a vida de três mulheres baluartes na luta pela terra, na Paraíba: Elizabeth Teixeira, Margarida Maria Alves e Maria da Penha Nascimento. Do ponto de vista teórico e prático, pairavam várias dúvidas; uma delas, a responsabilidade de continuar a investigar três biografias, valendo-nos da concepção de biografia 3 da análise de Morais: tentar compreender uma vida, ou vidas, é também munir-se de cuidados para não se cair no senso comum de percebê-la como uma trajetória, um percurso orientado com princípio, meio e fim, como um deslocamento linear, unidirecional. Mas perceber a sociedade em que esteja inserida, e a estrutura das relações objetivas, que permeiam o contexto social, ora em análise (MORAIS, 1999, p. 05). Além da responsabilidade para com os sujeitos e com o ato de pesquisar, nesse recorte biográfico e/ou memorialístico, havia o elemento da admiração por algumas pesquisadoras, da Universidade Federal da Paraíba – que por exercerem militância extra-universidade me encantavam. Estas mulheres, as sociólogas Neide Miele e Lourdes Bandeira e a historiadora Rosa Godoy Silveira (a minha ex-orientadora) assessoravam e historiavam as condições de vida das mulheres camponesas com extrema profundidade teórica. As duas últimas, Lourdes 3 Esta posição sobre o fazer biográfico inspira-se em Pierre Bourdieu e é adotada na Base de Pesquisa Gênero e Práticas Cultutrais: abordagens históricas, educativas e literárias, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRN, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, coordenada pela profa. Dra. Mª Arisnete Câmara de Morais. Bandeira e Rosa Godoy, foram fundadoras do grupo de mulheres feminista, o Maria Mulher.4 Já a professora Neide Miele assessorou e exerceu militância no Centro de Educação e Cultura dos trabalhadores/as rurais (CENTRU), núcleo referência de assessoria aos movimentos camponeses. Elas traduziram a história viva, a partir da convivência e do companheirismo da luta; sofreram juntas muitas indignações contra o latifúndio e o machismo. Tudo foi luta e dor, até que as verdadeiras intelectuais orgânicas, como diria Gramsci, registrassem essas histórias. Foi a publicação EU MARCHAREI NA TUA LUTA: A Vida de Elizabeth Teixeira, (1997), que mais me sensibilizou. O estudo expressou não apenas as marcas da vida e atuação da mulher Elizabeth Teixeira nas Ligas Camponesas, mas demarcou, também, um registro que, para muitos sujeitos dos movimentos sociais, significou uma contribuição da memória coletiva na construção do paradigma de lutas. Além disto, a obra contribuiu para a compreensão histórica dessa pioneira, Elizabeth Teixeira que, aos 80 anos, continua fazendo história e influindo, decisivamente, na formação da juventude e das mulheres na luta por reforma agrária e contra as injustiças que se impõem às camadas excluídas da nossa sociedade. Daí o anseio de beber nessas fontes Em 2003, ingressei no mestrado, no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPB, onde concluí, em setembro de 2005, a dissertação Margarida, Margaridas: memória de Margarida Maria Alves e as práticas educativas das camponesas na Paraíba. Ao ingressar no mestrado participei da seleção 2003 para o Programa de Ação Afirmativa, da Fundação Ford, concorrendo com mais de 2.000 candidatos/as para um total de 40 vagas, em todo o país. A minha trajetória de vida, contando com a origem social de mulher nordestina, arrimo de família e histórico de liderança, preencheu um dos critérios do Programa, e a relevância da temática, além da apresentação do projeto de pesquisa de forma adequada, consistiu no outro critério científico que garantiu a minha aprovação. O projeto Ação Afirmativa da Fundação Ford trabalha com a perspectiva da formação continuada, e propiciou não apenas uma bolsa de estudos, mas a aquisição de bens materiais e culturais, como equipamento necessário à pesquisa e o custeio das visitas de campo, além do 4 O primeiro grupo feminista da Paraíba foi criado em 1979, com o nome de Centro da Mulher Paraibana. E em 1980 foi criado o grupo feminista Maria Mulher por professoras universitárias. O grupo Maria Mulher foi extinto em 1988, quando as suas integrantes (a maioria ligada à universidade) se dispersam. Só na década de 1990, é que outros grupos de mulheres se constituíram na cidade de João Pessoa: o Centro da Mulher 8 de Março e o Coletivo Feminista Cunhã . Eles tiveram como fundadoras principalmente mulheres que fizeram parte do Maria Mulher . fortalecimento intelectual do sujeito pesquisador, através do patrocínio a vários eventos científicos e de uma viagem ao exterior. Diante de mais essa oportunidade, participei de um curso de imersão de inglês, por três meses, na Universidade do Arkansas – USA; ao mesmo tempo, entrei em contato com várias ONGs norte-americanas que trabalham com temáticas étnico-culturais. A minha participação contava com uma delegação de outros estudantes de Pós-Graduação de vários países da América Latina, do Vietnã, China, Indonésia, Rússia, Moçambique e Guiné-Bissau, e todos com trabalhos desenvolvidos sobre movimentos sociais. Na ocasião, tivemos a oportunidade de trabalhar com os povos Cherokees (índigenas); o centro Luther King de estudo dos povos negros e hispânicos (latino-americanos) e fazer visitas às comunidades agrícolas que desenvolvem pesquisas com alimentos orgânicos, como contra-ponto à agricultura transgênica, imposta pela hegemonia norte-americana. Em 2003, fiz também parte da construção do Fórum de Mulheres da UFPB, que aglutinou mulheres dos três segmentos da instituição e que formou parceria junto às camponesas da Paraíba, neste mesmo ano. Este FÓRUM vem realizando vários eventos acadêmicos e aglutinando vários/as pesquisadores/as nas discussões de gênero. Durante esse período, a presença de outros pesquisadores/as que atuavam nessa área foi fundamental em minha formação. Destaco, aqui, o professor Charliton José Machado. A sua tese de doutoramento foi defendida em 2001: A dimensão da palavra: práticas de escrita de mulheres pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e retratou a história de vida de mulheres que viveram no município de Nova Palmeira – PB e participaram ativamente de movimentos populares. Cheguei a assistir a sua defesa e este trabalho, mais tarde, iria trazer contribuições riquíssimas às minhas escolhas teórico-metodológicas. O mesmo foi o meu orientador no mestrado e, atualmente, no doutorado. Tem se dedicado, constantemente, para que seus orientandos/as consigam firmar-se no campo da pesquisa com muito rigor científico, porém, sem se perder no labirinto puramente academicista. Sua trajetória de pesquisador e docência em Educação e Direitos Humanos, além de sua prática militante-acadêmica, corrobora essa essência, ao mesmo tempo em que orienta e dialoga para não nos perdermos nos crivos do puro ativismo, nesse momento de aprofundamento teórico. Atualmente coordena o grupo de estudos e pesquisa: História, Sociedade e Educação no Brasil (HISTEDBR). Todavia, mesmo com toda essa orientação, tem sido muito cativante e prazerosa a nossa convivência com as camponesas. O meu contato com Maria Soledade e com outras mulheres que atuavam na região do brejo, no MMT, através do meio militante, permitiram que os nossos laços se estreitassem mais e mais. A vontade e o sonho de construir um centro de educação, cultura e cooperativa agrícola só para mulheres nos tem mobilizado até os dias atuais. O que talvez seja possível, com a doação de um terreno para a construção da associação do MMT, que elas receberam há cerca de três anos. Ainda assim, sinto que tenho feito pouco por isso, devido ao tempo inteiramente comprometido com o trabalho e o estudo. Após lecionar no ensino superior da rede privada e ter sido professora substituta da UFPB fui selecionada em concurso pela UNESCO, como Consultora, para avaliar um convênio do MEC, da UFCG e da Pastoral Afro-Brasileira, que co-participa do programa social Universidade e Diversidade, desenvolvido pelo atual governo federal. Esta experiência possibilitou a ampliação do meu currículo e um crescimento profissional cada vez maior. Foi assim que, há um ano e meio, passei no concurso para professora efetiva, nível assistente, na UFPB. O que, por um lado me deixa com pouco tempo disponível para realizar as minhas pesquisas e escrever a tese, mas por outro, me garante uma estabilidade profissional fundamental em minha vida. E, como diz Frei Betto ao prefaciar o livro de Pedagogia da Autonomia de Freire (2008, capa, grifo meu): “foram as suas idéias, professor, que me permitiram chegar aqui (...); a sua pedagogia, professor, permitiu que os pobres se tornassem sujeitos políticos (...). Graças às suas obras, professor, descobriu-se que os pobres têm uma pedagogia própria (...); muito obrigado professor [...]”. Além de agradecer a Freire, congratulo-me a muitas outras pessoas, umas já mencionadas aqui, e outras que não poderia deixar de falar e que me acompanharam nessa caminhada, como as companheiras Wilma Mendonça e Ignez Navarro; com a primeira divido uma convivência mais antiga, marcada por amizade e militância roxa! E, a segunda, tem se tornado cada dia mais imprescindível em meu cotidiano. E a minha mãe que, aos 60 e poucos anos de idade, entrou para uma universidade e vai ser a primeira (talvez única) de uma família de 12 irmãos/ãs que conseguiu passar do 2° ano do ensino fundamental. Posso dizer, mãe, que você hoje é o meu referencial da educação inclusiva. Mas ninguém contribuiu tanto com este trabalho quanto o companheiro Wilson Aragão, incentivador primeiro dessa pesquisa. Seus diálogos; suas dicas; sua história entrelaçada com o contexto da época, pois foi fundador do PT, presidente da CUT e esteve diretamente em diversas das mobilizações contra os assassinos de Margarida Alves foram decisivas no meu processo de formação. E as nossas tantas outras cumplicidades: de trabalho, de militância, de projetos futuros e de vida. Ele me fez acreditar que o que existe em comum em mim e nessas mulheres que - muito mais do que eu - ousaram e venceram, são os seus saberes, suas experiências únicas, porém emaranhadas com a identidade de quem busca incessantemente a sua autonomia, a sua condição de sujeito histórico. Como disse no início desta introdução, a tese aqui apresentada traz reflexões iniciadas já durante o mestrado mas, para além disto, anseia outra pretensão social: contribuir, de fato, para o movimento de mulheres camponesas, com essas „novas cogitações‟. Cogitações essas que foram sendo motivadas por uma latente aprendizagem de querer „ser‟ uma intelectual orgânica, desde que foi lançada a semente da luta contra as injustiças [caída das beiras das estradas de Passa e Fica que ficou], e veio propiciar esse novo casamento, entre a militância e a academia. 1.2 Margarida Maria Alves: uma história política complexa É melhor morrer na luta do que morrer de fome... Margarida Maria Alves (1933-1983) Há 25 anos foi arrancada, brutalmente, da luta sindical, a camponesa Margarida Maria Alves, líder dos trabalhadores rurais da Paraíba e Presidenta do Sindicato Rural de Alagoa Grande. O seu assassinato provocou profunda indignação em nossa sociedade, traduzida pela onda de manifestações que se propagou pelo estado, com repercussão em todo o país. Desde 1983, anualmente, os trabalhadores e trabalhadoras rurais passaram a relembrar, no dia 12 de agosto, a figura de Margarida Alves, enquanto denunciam a impunidade dos seus assassinos e a renitente violência no campo, em meio aos discursos em defesa da Reforma Agrária. Desta forma, tornam atual a luta e o martírio dessa líder sindical, chegando a instituir o dia 12 de agosto como o Dia Nacional Contra a Violência no Campo e pela Reforma Agrária. Margarida Maria Alves nasceu em 5 de agosto de 1933, no Sítio do Jacu, Alagoa Grande, interior da Paraíba, e faleceu em 12 de agosto de 1983, vítima de uma emboscada patrocinada por usineiros e latifundiários da região do Brejo paraibano. Era filha de Manoel Lourenço Alves e de Alexandrina Inácia da Conceição, sendo a filha mais nova de 9 (nove) irmãos. Seu pai possuía traços indígenas e sua mãe trazia a negritude na cor da pele, assim, Margarida Maria Alves possuía fortes traços étnico-racial indígena e afrobrasileiro (FERREIRA, 2006). Começou a estudar no sítio Agreste, aos 6 (seis) anos. Aos 8 (oito) já trabalhava na agricultura. Estudou até a 4ª série do antigo ensino primário. Aos 28 (vinte e oito) anos, foi morar na Rua da Olinda, no centro de Alagoa Grande, onde permaneceria até o desfecho da sua morte. Casou-se em 1971 com Severino Cassimiro Alves e teve seu único filho, José de Arimatéia Alves, em 11 de junho de 1975. Durante vinte e três anos, esta liderança participou do Sindicato de Alagoa Grande e atuou na organização de outros sindicatos de trabalhadores rurais na região da lavoura canavieira da Paraíba, chegando a influenciar nas políticas da Confederação dos Trabalhadores da Agricultura (CONTAG). Por doze anos, Margarida Alves dirigiu os trabalhadores rurais de Alagoa Grande. Durante todo esse período, ela conheceu e estreitou relações com outras mulheres camponesas, que se engajariam na luta campesina, tornando-se lideranças sindicais, num espaço historicamente marcado pela pouca participação feminina. Em 1972, conheceu Maria da Penha Nascimento5, que passou a atuar no Sindicato de Alagoa Grande; em 1975, conheceu a camponesa Maria da Soledade Leite, camponesa-repentista que, juntamente com as mulheres do Brejo paraibano e demais camponesas, se dedicariam à luta pela punição dos assassinos de Margarida Maria Alves. Luta inglória. Surdas aos apelos dos camponeses da Paraíba, as autoridades paraibanas deixariam prescrever esse crime. Maria da Soledade diz que quando conheceu Margarida Alves várias identidades se constituíram: a sua origem humilde, a sua ligação com a terra, a sua personalidade forte e meiga e a sua capacidade de falar e de escutar os seus parceiros e parceiras, na luta pela 5 Maria da Penha do Nascimento Silva (1949-1991), conhecida por Penha, nasceu em Alagoa Grande-PB, foi camponesa, líder sindical, feminista e escritora. Após o assassinato de Margarida Alves, Penha intensificou sua luta contra a violência e a impunidade dos latifundiários. Participou da criação da CUT/PB, da qual também foi diretora e do PT em Alagoa Grande-PB. Candidatou-se a vereadora, onde conseguiu suplência e, posteriormente, candidatou-se à deputada federal, não tendo tido uma votação tão expressiva. No início da década de 1990, passou a dedicar-se, de forma mais intencional, ao movimento de mulheres. Foi uma das fundadoras do Movimento de Mulheres do Brejo e integrou a Comissão de Mulheres da CUT. Faleceu em um desastre automobilístico no dia 8 de março de 1991, quando participava das atividades comemorativas ao dia Internacional da Mulher. Escreveu dois livros: „Violência rural e Reforma Agrária‟ e „Por que trabalhar com mulheres‟. Sua representação na memória coletiva ficou registrada com a frase: „Só quem luta é que sabe a dor que a gente sente‟. (SCHUMAHER, 2000). terra. Acentuou a reconhecida religiosidade de Margarida Maria Alves, religiosidade esta claramente entrelaçada ao seu fazer político. São características de uma identidade formada pela vida sofrida, com marcas de sensibilidade feminina que, também, são características das demais trabalhadoras rurais, que são mães, esposas, donas-de-casa e companheiras. Margarida Alves, a líder de Alagoa Grande, foi expulsa da terra em 1962, no mesmo ano em que foi assassinado João Pedro Teixeira, líder das Ligas Camponesas, a mando, também, do chamado Grupo da Várzea 6, grupo de coronéis que aterrorizou, durante décadas, os trabalhadores e trabalhadoras rurais do Brejo da Paraíba. Em minhas pesquisas anteriores, na dissertação, constatei que, no decorrer do percurso histórico como sindicalista, a camponesa Margarida Maria Alves direcionou suas lutas para a defesa da sindicalização, para a conquista dos direitos trabalhistas, a exemplo das reivindicações por carteiras assinadas, por férias, pelo décimo-terceiro salário, pelo repouso remunerado e pela participação organizada das mulheres camponesas. Participou da construção e fundação do Centro de Educação do Trabalhador Rural – CENTRU – tendo como objetivo o desenvolvimento de ações pedagógicas que contribuíssem para a formação política dos (as) camponeses (as). Além disto, foi uma das fundadoras da primeira organização composta só por mulheres, da América Latina, o Movimento de Mulheres do Brejo (MMB). É preciso situar, aqui, entre outras coisas, o tempo e a espacialidade nos quais os sujeitos históricos estão envolvidos, como forma de perceber o elo entre os sujeitos e seu contexto, tendo-se claro que este espaço constitui-se de um universo de crenças, costumes e hábitos que se configura em um dado mundo de convívio social. Faz-se necessária a compreensão de como se formou o lugar que motivou os/as trabalhadores/as rurais a se organizarem em sindicatos, ou as mulheres a construírem as esferas de auto-organização e busca do saber. Vale salientar que a configuração ora considerada retrata as décadas de 1970 e 1980, recorte do período em que a líder sindical Margarida Maria Alves consolidou a sua participação no sindicato de Alagoa Grande e, após a sua morte, outras camponesas que atuavam no sindicato se sentiram estimuladas à resistência contra o latifúndio e ao 6 Este grupo era formado pelos usineiros da zona canavieira paraibana, com abrangência política e econômica nas cidades de Santa Rita, Tibiri, Pilar, Mogeiro, Ingá, Sapé e Alagoa Grande, e tinha como maiores expressões duas famílias: os Veloso Borges e os Ribeiro Coutinho. machismo. Constitui, pois, a sua auto-organização, no período de expansão dos novos movimentos sociais. O espaço é o do Brejo paraibano, da região nordeste7 do Brasil. O Brejo paraibano está situado na região do agreste, entre as regiões do litoral e do sertão, mais precisamente no agreste alto, diferenciando-se como recorte de terras úmidas no interior do próprio Agreste. O relevo e a posição geográfica contribuem para a permanência do clima úmido, a região detém solos férteis e uma hidrografia perene, condições estas muito favoráveis ao desenvolvimento da agricultura (MOREIRA, 1997, p.85). A cana-de-açúcar inicialmente era cultivada juntamente com as plantações de subsistência, como o arroz, o milho, o feijão, a mandioca, entre outros. A sua finalidade era relacionada à produção do açúcar mascavo, da rapadura e da aguardente. Mas ainda no período colonial, quando se construíram as casas de engenhos, logo se expandiu e reafirmou o seu caráter monocultor e escravista, assim como já ocorria no litoral paraibano e adjacências. As ocupações desenvolvidas ainda no início do séc. XX estão relacionadas às atividades de subsistência, mas foi o algodão o grande responsável pelo povoamento. Posteriormente, a região do Brejo funcionava como ponto de abastecimento dos vaqueiros, a partir das feiras de gado, devido ao fato de, em seu deslocamento para o litoral, ser passagem obrigatória desses animais, cuja comercialização era a principal fonte de renda do sertão. Nas décadas de 1970 e 1980, deu-se a expansão canavieira mas, até 1970, a canade-açúcar ainda tinha finalidades concentradas para o açúcar, a rapadura e a aguardente. Nesse período, consolidava-se o abacaxi como produto de consumo interno e de exportação, especialmente na cidade de Sapé. No entanto, um fato iria mudar a finalidade da cana-de-açúcar e iria, concomitantemente, aumentar a pretensão dos latifundiários, a exploração dos 7 Segundo Silveira (2009, p. 15), o Nordeste constitui o espaço mais antigo do país, em termos de ocupação demográfica e econômica, disto resultando uma identidade objetiva, geográfica e cultural, diferenciada de outros espaços posteriormente ocupados, e mantendo sobre os mesmos uma hegemonia de praticamente três séculos. Esta identidade se consubstancia, ainda, através de um longo processo, em um pensamento regionalista. trabalhadores/as e os conflitos no campo. Em 1975, segundo Moreira (1997, p.105), através do Decreto – Lei nº 76.593/75, como forma de enfrentar a crise energética do país, foi criado o Programa Nacional do Álcool (PROALCOOL) apoiado numa forte política de incentivos e créditos [...], financiando até 80% do valor do investimento fixo nas destilarias que utilizassem a cana-de-açúcar como matéria-prima. O PROALCOOL foi criado com o objetivo de se tornar alternativa para a crise do petróleo que estava em alta, em decorrência dos conflitos existentes no mercado internacional no Oriente Médio. Estes conflitos fizeram com que a aplicação de incentivos fiscais e créditos agrícolas redirecionassem a política agrária para a monocultura da canade-açúcar, inclusive retirando grande número de pequenos proprietários de suas terras. Como forma de reduzir, ainda mais, os encargos previdenciários dos grandes proprietários rurais, o governo cria o FUNRURAL8, que gera um desmonte dos direitos trabalhistas no meio rural. Sobre esse momento, considera-se a análise a seguir: uma das fórmulas encontradas pelo Estado para “compensar” esses pequenos produtores das perdas sofridas foi a criação do FUNRURAL. Na verdade, este tipo de previdência social dirigida aos trabalhadores do campo, foi estabelecido visando mais a liberação dos proprietários de terra da contribuição previdenciária vigente para o mundo urbano. Isto lhes permitiria grande redução nos custos sociais com a sua mão-de-obra [...] e se traduziu, na verdade, na transformação de pequenos produtores proprietários, moradores, arrendatários - em uma massa de trabalhadores de caráter temporário, sem quaisquer possibilidades de absorver as “vantagens” dessas relações capitalistas de trabalho impostas aos setores sociais mais frágeis da agropecuária (FERNANDES, 1999, p. 95). Este processo de assalariamento das relações de trabalho iria instituir várias diferenças entre os direitos trabalhistas do setor urbano em relação aos direitos trabalhistas do homem e da mulher do campo. Estabelece-se, assim, uma maior concentração fundiária e a super exploração dos/das trabalhadores/as causando, entre outras coisas, a desnutrição aguda nas crianças, gerada pela fome, uma vez que a terra era cada vez menos utilizada para a agricultura de subsistência. 8 O FUNRURAL foi criado pela Lei Complementar nº 11, de 25 de maio de 1971, e regulamentado pela Lei nº 6.260, de 6 de novembro de 1975. É nesse cenário que os latifundiários se estruturam em grandes associações, como o Grupo da Várzea, e elegem vários parlamentares, tanto estaduais quanto federais, pela Aliança Renovadora Nacional (ARENA) – partido de sustentação dos governos militares criado em 1966, que instituiu o bipartidarismo 9, ampliando a acumulação de terras e do poder local. Por outro lado, os trabalhadores/as rurais na região do brejo paraibano passam a consolidar as campanhas trabalhistas e têm em Alagoa Grande, a partir de 1975, com os efeitos do PROALCOOL, seu primeiro foco de organização na região do Brejo. A cidade de Alagoa Grande foi fundada em 1864, ocupa uma extensão territorial de 333, 7 km e, atualmente, conta com uma população de 29. 677 habitantes, segundo dados do IBGE de 2000. A origem do nome da cidade, bem como seu embelezamento, decorrem do fato de a mesma comportar uma lagoa extensa, exatamente onde veio a ser o centro da localidade. Alagoa Grande ostenta uma bonita paisagem de muito verde e serras que cercam a mesma. Atualmente, o comércio interno e externo possibilita o mercado de produtos advindos da indústria fabril de costuras e rendas e oferece essa outra fonte de recursos, além da agricultura de subsistência e do plantio da cana-de-açúcar. O sindicato dos/as trabalhadores/as rurais fica localizado na Rua Francisco Montenegro, não muito próxima à rua onde morava Margarida Maria Alves, a Rua da Olinda que, por sua vez, fica bem próxima da igreja de N. S. de Boa Viagem, fundada em 1868. A líder sindical Margarida Alves encontrava-se na segunda janela, da direita para a esquerda, da sua casa, quando foi abordada pelos homens que lhes assassinaram. O crime ocorreu durante o final da tarde, no momento em que as pessoas que trabalhavam na Zona Canavieira, homens, mulheres e crianças, costumavam chegar em suas residências. Neste cenário, percebe-se que a cidade de Alagoa Grande-PB, a exemplo de tantas outras cidades nordestinas, registra uma situação de pobreza acentuada, de pouco 9 O bipartidarismo foi instituído pelo Ato Institucional n. 3, implantado no governo Castelo Branco, que, além dessa limitação de legendas partidárias, dava plenos direitos ao governo de legislar por decretos-leis. Portanto, só os dois partidos permitidos durante a ditadura militar, com a implantação do bipartidarismo foram a ARENA e o MDB. Ambos já sofreram várias dissidências. Os dissidentes da antiga ARENA, agremiação de apoio à ditadura militar, fundaram o PDS, depois o PFL, e atualmente o DEM. Já o MDB, foi transformado em Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), em 1982, quando foi permitida a legalidade de outros partidos. desenvolvimento sócio-econômico. Detém, no trabalho rural, uma de suas principais fontes de recursos, tendo os camponeses e camponesas uma ligação direta com a terra, tanto como trabalhadores/as do latifúndio quanto na agricultura familiar, produzindo alimentos e outros bens necessários ao bem-estar. Assim, mereceram destaque as mobilizações com as mulheres rurais e as denúncias de violência, a exemplo de uma ação contra um jovem fazendeiro que agredira uma mulher idosa e paralítica, sua moradora; além da participação na construção do Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural (CENTRU), tendo por objetivo o desenvolvimento da formação na perspectiva da Educação Popular (EP). Margarida Alves percebeu que os princípios político-pedagógicos de uma sociedade devem estar constituídos e identificados com a sua história e realidade, ou seja, acreditava na educação como forma de transformação social. As práticas educativas estão mencionadas de forma histórica e simbólica, pois a sua trajetória política e a sua referência de massa, além do que foi desencadeado após o seu assassinato, possibilitam reflexões e ações diretas na composição de um aprendizado popular. Ela teve ao seu lado outros/as trabalhadores/as rurais, dirigentes sindicais que compunham o sindicalismo pelego, e também os que romperam e construíram o novo sindicalismo: intelectuais; feministas e religiosos. Segundo Margarida Alves, a sua crença 10 católica orientava-a inicialmente na vida conjugal e nas dimensões educativa e política. O marido, Severino Cassimiro Alves, exerceu forte influência sobre sua atuação, por ter sido o primeiro presidente do referido sindicato e também devido ao poder presente na relação conjugal do homem sobre a esposa. Sobre a sua relação com a Igreja católica, encontramos o seguinte posicionamento de Margarida, citado por Rocha (1996) em uma matéria jornalística, posteriormente publicada em brochura: [...] eu me lembro que, em 1962, quando o sindicato foi fundado, se falava muito nas ligas camponesa, em jornada de trabalho, que o trabalhador trabalhava dez, onze, doze horas. As Ligas estavam falando a verdade. Mas o padre não dava apoio às Ligas. E como eu era muito religiosa, aí não fiquei com as Ligas. Mas sempre achando que as Ligas tinham razão. Então a Igreja ajudou a fundar os sindicatos dizendo que os sindicatos eram desejo do Papa João XXIII. Veio a Revolução de 64. Foi um pega fogo, foi nego preso, morto e perseguido. Cassimiro foi 10 O registro dessa „crença católica‟ está registrado em Rocha (1996). perseguido, mesmo sendo do sindicato do padre. Cassimiro ficou doente dos nervos, pois ele ficou sozinho. A Igreja tirou o pezinho de banda, como se diz. “Fica aí, agora, Cassimiro, que não tem mais problema”. A Igreja ficou do lado latifundiário, entendeu? (ROCHA apud FERREIRA, 2006, p.71), Esta reflexão de Margarida coloca-a perante uma manifestação crítica à Igreja, diante dos efeitos opressores da ditadura militar. Mesmo mantendo sua crença religiosa, passa a observar algumas atitudes da Igreja como omissão e percebe que a categoria dos trabalhadores recebeu adesão de religiosos, mas que essa condição de apoio não era permanente. Nessa conjuntura, Margarida estabeleceu fortes laços ideológicos com outras (os) parceiras (os), passando a fazer parte da CPT e atuando em direção oposta aos latifundiários. Provocou enfrentamentos diretos com os “donos das terras”, o já então conhecido Grupo da Várzea. A CPT foi criada em 1975, em meio às lutas pelo fim da ditadura e pela abertura política em nosso país. A CPT avulta, hoje, como a organização camponesa mais antiga em plena atividade, em nosso e em outros Estados brasileiros. Entidade rural ligada à Igreja Católica, a CPT também desfruta do privilégio de ter sido a primeira organização pastoral a introduzir a discussão de gênero nos debates de formação religiosa. Desta discussão que, longe de arrefecer, permaneceria em pauta ao longo desses anos, participariam, inicialmente, várias camponesas do Brejo paraibano que criaram, em 1981, dentro da própria CPT, o Movimento de Mulheres Trabalhadoras do Brejo. Aliás, a autonomia da liderança Margarida Maria Alves, revelada na forma de orientar os passos que devia seguir, sejam religiosos ou políticos, provocou ainda mais a ira desse grupo, uma vez que, segundo fontes orais, Margarida Alves chegou a ser simpatizante do antigo Partido Democrático Social (PDS), partido já extinto que substituía a Aliança Renovadora Nacional (ARENA), criada pela ditadura militar. Entretanto, o debate sobre a sua opção partidária gerou e tem gerado muitas discussões. Devido às suas ligações com o PDS, para alguns sujeitos dos movimentos sociais, Margarida Alves assumia uma dúbia identidade, conforme relato de um sindicalista (E-2)11: “[...] Margarida ora era progressista, quando defendia os interesses dos trabalhadores, ora era reacionária, quando apoiou Aércio Pereira, naquela época” 11 Militante do movimento de luta pela moradia, Alagoa Grande, entrevista em14/07/2004. (E-2). Coloca-se o debate, então, permeado de vários conflitos de representação no mundo social, necessitando-se estabelecer um diálogo com outros relatos e novas fontes, para posterior apreciação e, possivelmente, configurar novas argumentações nessa análise. Contudo, o que ficou gravado de forma mais expressiva na memória dos mais variados sujeitos sociais, chegando a constituir-se em símbolo social, foram a experiência e o empenho de Margarida Maria Alves na organização das campanhas salariais que, entre outros atos, passava a ser encarada pelos latifundiários da região como ameaça permanente. Tendo sido ventilados, na imagem pública, como os maiores interessados na morte de Margarida Alves – os latifundiários – através de seus representantes no parlamento estadual - passaram a disputar a opinião pública na imprensa local, levantando outras suposições, ou seja, acusando o conjunto de sujeitos sociais ligados aos movimentos sindicais de terem sido, estes, os mandantes do crime de Margarida Alves. Os princípios ideológicos de Margarida caminhavam na contramão do PDS. Segundo Rocha (1996), no ano do seu assassinato, em 1983, o usineiro Agnaldo Veloso Borges, na ocasião um dos principais acusados de ser o mandante do crime de Margarida, hoje comprovado nos autos criminais, detinha total hegemonia do PDS: Agnaldo Veloso Borges liderava um grupo de 3 deputados federais, 5 deputados estaduais, 50 prefeitos do interior e pelo menos 10 de um colégio eleitoral dos 27 representantes da Paraíba. Todos eles votaram em Maluf, dizia a manchete do jornal O NORTE em 21/08/1983, referindo-se às eleições indiretas presidenciais de 1985. Nessa ocasião - conforme relatos de representantes da CONTAG -, no início da década de 1980, Margarida Alves liderava no Brejo uma massiva campanha salarial que visava, também, à incorporação de dois hectares de terras para os (as) trabalhadores (as) da região. No entanto, além das fortes raízes em defesa da terra, outro espaço em sua atuação despertava a insatisfação das oligarquias rurais do Brejo paraibano, conforme discurso proferido na frente do sindicato, em 06/05/1982: recebemos ameaças dos poderosos latifundiários, todos os dias, e o sindicato não pode ficar dividido, descobri que além da nossa organização, a melhor arma que teremos é a luta por educação, muitos de nós não lutamos por nossos direitos, porque acreditamos que o patrão tem a razão. Eles falam e parece que a verdade está com eles, eles dizem que sabem da lei, e isto basta para calarmos. Outro dia, quando o Sr. Manoel pegou a dita lei que estava com o sobrinho do Dr. Agnaldo, lá dizia o contrário, lá dizia que a terra era da família do sr. Manoel [....] Nós queremos o que é nosso, queremos educação. (FERREIRA, 2006, p. 74). Esta percepção de Margarida identifica-se com os princípios pedagógicos de uma sociedade constituída a partir de sua história e realidade e demonstra todo o seu compromisso assumido com a causa do movimento camponês e educativo durante o seu trabalho e permanência no CENTRU. Na sua atuação sindical, também participou da defesa de outros direitos constitucionais, além dos já mencionados, e construiu, junto com outras companheiras, reivindicações para as mulheres rurais, quando esta batalha ainda se iniciava no setor urbano, por ocasião da sua defesa, no 2º Congresso da CONTAG, em prol da incorporação da luta pelo salário maternidade. Em Alagoa Grande-PB, a notícia foi recebida com deboches por aqueles que já julgavam um absurdo a reivindicação da carteira assinada para os trabalhadores chefes de família. De acordo com o informe apresentado por uma das diretoras do sindicato, os proprietários de terra se expressaram da seguinte forma: “mulher agricultora tem que parir dentro das canas, e os meninos, desde pequenos, devem saber que já nascem devendo o comer que eles mesmos vão plantar” [fala registrada] 12. Ao refletir sobre essa situação no sindicato, Margarida expressava que estava convencida de que “se morre daquilo que se foge” e que a luta das mulheres também era sua luta. O que se escutava, em Alagoa Grande, traduz as várias nuances de opressões pelos quais passavam as trabalhadoras rurais, carregando as marcas das escravas negras e indígenas e vendo, diante de seus olhos, a exploração do trabalho infantil. A influência da Igreja Católica no cotidiano e trajetória de vida e morte de Margarida Alves teve um papel significativo tanto no que diz respeito à assessoria política, 12 Registrou-se na Ata do sindicato o informe de Maria da Penha Nascimento em 1976. que era voltada para a maioria dos trabalhadores rurais dos sindicatos, inicialmente através das CEBs e, posteriormente, através da CPT, considerados setores13 progressistas da Igreja, influenciados pelas ações da teologia da libertação. Por várias vezes, os padres que passaram pela Paróquia Católica da cidade de Alagoa Grande – PB estiveram presentes na sede do sindicato e participaram de reuniões com os/as camponeses, mas Margarida Alves levou a missa ao sindicato e demonstrou, com essa prática, a idéia de espaços próximos e misturados, entre a fé e a política. Quanto ao empenho determinante nas mobilizações que ocorreram após a sua morte, vejamos um relato do bispo de Guarabira - PB, à época: D. MARCELO: a indignação toma conta das populações. o bispo de Guarabira, dom Marcelo Cavalheira, em entrevista por telefone, mostrou-se, ontem, desejoso de “uma apuração rápida e honesta do brutal assassinato de que foi vítima Margarida Maria Alves”. Disse d. Marcelo que o sentimento de indignação toma conta das populações da área. O assassinato, segundo ele, foi uma resposta violenta à ação em favor da justiça e dos direitos dos pobres”. Contou d. Marcelo que Margarida Maria costumava freqüentar muito a Diocese de Guarabira e participar de encontros promovidos pela igreja na região...esperamos que as autoridades, sobre as quais recai o encargo das investigações, promovam a apuração rápida, eficaz e honesta dos fatos, para imediata punição dos responsáveis por ato de tanta indignação e maldade – concluiu dom Marcelo. (FERREIRA, 2006, p. 77). [Jornal O NORTE, João Pessoa, 14 ago. 1983. Cidades, p.05]. Esta discussão sobre o comprometimento da Igreja Católica, em seu trabalho de fazer viva a memória de Margarida Alves, requer algumas reflexões. Primeiro, a tonalidade da forma bárbara de seu assassinato foi vista pelo conjunto dos agentes pastorais como um forte atentado ao movimento mas, sobretudo, à vida humana. Tal defesa está intrinsecamente ligada a um dos direitos humanos mais elementares da filosofia cristã, que é o direito à vida e o repúdio aos atos de violência e assassinato. Segundo, a discussão que outros sujeitos sociais realizavam quanto ao fato de Margarida pertencer ao PDS, o partido que representava o interesse dos latifundiários, era 13 Esse setor considerado progressista da Igreja Católica passou a atuar na organização „Ação Popular (AP)‟ que disputava direção e formação política nos movimentos sociais, com outras organizações de esquerda de perfil comunista (stalinista, maoísta ou trotskista), principalmente no setor jovem e sindical. Nos períodos mais críticos da ditadura Militar, formaram-se alianças entre os adeptos da AP e setores comunistas, como forma de unir forças contra a ofensiva da ditadura militar. o que menos interessava à Igreja. Pois, de um lado, estava o PDS, partido reacionário e compromissado com a ditadura militar, polarizando; de outro o PT, que era um partido que estava nascendo e que trazia, em seu seio, uma série de princípios e um programa que iam desde a luta por direitos trabalhistas até a proclamação do socialismo, o que era visto ainda, por muitos setores da Igreja, em pleno contexto da guerra fria, como a ideologia que mais ameaçava a fé cristã, por sua tonalidade materialista e agnóstica. A luta contra a impunidade do crime de Margarida Maria Alves continua sendo um dos símbolos da Igreja, dos movimentos sociais e dos Centros de Defesa dos Direitos Humanos14, o que se estende ao movimento contra a impunidade de tantos outros crimes que ocorrem no país. 1.2.1 Margarida no front do conflito político-sindical-partidário: problematizando a TESE A experiência política de Margarida Maria Alves pode ter sido contraditória ao conviver com práticas sindicais que oscilavam entre o velho e o novo sindicalismo rural. Vivenciou um período de transição disputado por forças hegemônicas contrárias, em vários campos sociais, econômicos e culturais. Disputas estas que estavam vinculadas a vários fatores: à relação capital versus trabalho, representada pela dicotomia trabalhador/a rural versus latifundiário; às concepções no campo partidário mundial, direita versus esquerda, especificamente, das décadas de 1970-1980, período auge da Guerra Fria. E, finalmente, à transição política do próprio Estado brasileiro, ditadura versus democratização. Sendo assim, podemos percebê-la [Margarida Maria Alves], no centro dessas disputas da seguinte forma: como uma expressão forte no movimento sindical que combatia veemente as oligarquias e lutava por direitos trabalhistas da classe trabalhadora. Inclusive, passando a refletir, teoricamente, a sua situação de exclusão social através da 14 O 1º Centro de Defesa dos Direitos Humanos construído na década de 1980, na Paraíba, teve à frente o então advogado Wanderley Caixe. A participação ativa de religiosos, professores/as, estudantes e sindicalistas, atualmente, está identificada como a Fundação Margarida Maria Alves. Esta entidade acompanha o processo jurídico do crime de Margarida Alves, tendo como advogado principal o dr. Antônio Barbosa, que também assessora juridicamente os sindicatos rurais do Estado. Formação Política desenvolvida pelo CENTRU e SEDUP, tendo por base uma reflexão pedagógica emancipatória. E, contraditoriamente, com inclinação para um campo político conservador, quando já como liderança consolidada no meio rural, votou em parlamentares que representavam os usineiros da região, o que necessita ser aprofundado para se analisar se este fato representou um compromisso tácito15 ou aliancista16 com essa classe oligárquica. Trabalhamos com uma hipótese de que essa „formação pedagógica‟ desenvolvida nas décadas de 1970-1980, pelos referidos centros, especialmente o CENTRU, pode ter fortalecido um novo papel, para Margarida Alves, na representação social, o de sindicalista autônoma. Pretendemos, neste sentido, aprofundar análises sobre os métodos de formação política do CENTRU que supostamente conduziam a auto-reflexões do/a camponês/a partindo da própria experiência, o que teria levado Margarida Alves a compartilhar uma consciência de classe camponesa na luta sindical. Portanto, após algumas pistas investigativas recorrentes dos meus estudos anteriores no mestrado, postulo algumas questões que norteiam novas inquietações: como as experiências políticas da líder camponesa Margarida Maria Alves transitaram entre o velho e os novos movimentos sociais? Como se constituiu a sua formação/educação política no CENTRU? E qual a representação social da sua práxis militante após o seu assassinato, junto aos movimentos sociais? O meu objetivo central, portanto, busca analisar a sua formação educativa e política, em sua trajetória nos movimentos sociais, de forma mais focalizada, no movimento sindical rural. Sendo assim, defendo a TESE de que: Margarida Maria Alves foi um personagem social em conflito com a transição do velho para o novo sindicalismo rural. 15 Entendo como compromissos tácitos a representação de acordos políticos pontuais em correlações de forças desiguais com um campo ideológico oposto – que normalmente ocorrem em conjunturas muito específicas, mas não representam o abandono dos interesses ou dos projetos políticos de nenhum dos envolvidos. 16 Destarte, compreendo os compromissos aliancistas dessa conjuntura como representações das relações clientelistas entre latifundiários e setores do velho sindicalismo conhecidos como sindicalistas pelegos. O peleguismo condiz à traição da classe [trabalhadora] que deveria estar sendo defendida, em seu projeto emancipatório, nesse propósito, pelo direito à terra. Esses representantes „pelegos‟ propõem alianças como propósito da troca de apoio político por favores ou prestígio, fornecidos pelos latifundiários. Desenho da TESE TESE Margarida Maria Alves foi um personagem social em conflito com a transição do velho para o novo sindicalismo rural. ANTÍTESE REPRESENTAÇÕES SOCIAIS CONFLITANTES: Contradições na prática política entre o velho e os novos movimentos sociais. SÍNTESE NOVAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS: Aproximação efetiva dos NMS, através de uma consciência autônoma formada politicamente, em práticas de Educação Popular. 1.3 Caminhos Metodológicos de uma Pesquisa Histórica Esta tese tem como percurso metodológico a pesquisa histórica. Entende-se a história não como o estudo do passado, como “[...] um objeto morto, como uma ruína, nem como uma autoridade, mas como uma experiência. Uma experiência aprendida [...]”. (RODRIGUES, 1980, p. 212). Compreendo, além disto que, por mais arrogante que seja o presente, é no próprio que se ancoram as forças do passado, sem cujo conhecimento a concepção deste seria incompleta. Para tanto, encontramos na História Social e na Nova História Cultural pilares para essa apreensão. Como não acredito na neutralidade científica, mas também não posso correr o risco de distorcer as pistas deixadas pelas fontes e enquadrar o “objeto”, hegemonicamente, nesse ou naquele referencial preestabelecido, ou seja, ou só a História Social, ou só a Nova História Cultural, optei pelo diálogo possível, nessa construção teórica. Diálogo metodológico, do mesmo modo, entre as fontes: bibliográficas; documentais e da história oral. Neste sentido, concordo com Nunes (1995), pesquisadora de história da educação, que – numa abordagem sociocultural – estudou a escola pública na cidade do Rio de Janeiro, no período de instalação e institucionalização da modernidade pedagógica no Brasil. Ao refletir sobre a utilização exclusiva de alguma teoria específica para a interpretação dos dados, assim se posicionou: O exclusivismo pode ser identificado como uma centralização teórica perniciosa que trata inadequadamente o setorial, à medida que o transforma numa totalidade que ele não é. O uso exclusivista de qualquer matriz teórica torna-se então um discurso que cala os outros e em seu alto grau de generalidade não estabelece seus próprios domínios e limitações. Esta atitude nada inocente corporifica um abuso de poder do pesquisador que torna estreito e monolítico o seu discurso (NUNES, 1995, p. 57) Através desta forma não–exclusivista de trabalhar a relação teoria e empiria, defendida por Nunes, com a qual concordo, é que pretendo construir este trabalho sem, no entanto, distanciar-me das mencionadas concepções históricas. Os procedimentos metodológicos de coleta, organização e análise dos dados já foram trabalhados, numa pista de mão dupla, ou seja, ao mesmo tempo em que coletei os dados, selecionei, analisei e elaborei uma primeira versão de abordagem do objeto. Para a realização deste estudo com aportes sócio-culturais, segundo Cardoso (2005), necessitei adotar para a coleta dos dados os seguintes procedimentos básicos: pesquisa bibliográfica, pesquisa documental e entrevistas. Por meio da pesquisa bibliográfica busquei realizar uma revisão na literatura existente sobre os aportes teóricos da história, no campo da História Social e da Nova História Cultural, aprofundando então os entrelaces dessas correntes historiográficas e a concepção de Experiência e Representação. Destaco, na seqüência, outras categorias: práxis e ideologia. Sobre a práxis, procurei captar as principais reflexões sobre a práxis presente dos movimentos sociais, que são detentores de uma formação teórica voltada para estudos de cunho econômico e cultural. E, também, de uma prática educativa ancorada na Educação Popular. Na literatura da Educação Popular (EP) e dos Movimentos Sociais, detive-me sobre o objeto da EP rumo à apreensão dos saberes experienciados de uma educação não-formal e dos princípios de uma pedagogia da autonomia. E, dos referenciais atuais dos Novos Movimentos Sociais (NMS), enfatizei, principalmente, o novo sindicalismo e o novo movimento de mulheres, bebendo em literatura de cunho feminista e não feminista. A pesquisa documental desenvolveu-se, num primeiro momento, junto a documentos oficiais dos sindicatos rurais, da CPT e do MMT, como atas e panfletos desses movimentos. Além disso, considerei, nessa análise, alguns apontamentos presentes em materiais elaborados para a formação político-educativa dos sujeitos envolvidos nos Novos Movimentos Sociais: um caderno de formação de lideranças sindicais – elaborado pelo CENTRU. O Caderno de formação sindical aborda conceitos sobre várias concepções de sindicalismo rural, as limitações do mesmo no contexto do velho sindicalismo e o perfil do que deveria ser o novo movimento sindical, suas lutas, direitos e conquistas. Igualmente, como deveria se dar a formação autônoma dos sindicalistas e as relações entre estes e sua base classista. O parâmetro dessas escolhas documentais decorre das sugestões das próprias militantes que expressaram: “(...) a nossa formação se dá na luta e nas reflexões (...); a gente adota a cartilha do CENTRU, entre outras, como a da CUT e a do Movimento Nacional das Mulheres Camponesas (MMC), que o MMT é filiado nele (sic)”. (E-4, em fev/2007). Além das fontes documentais foram realizadas entrevistas (ver História. Oral). A apreciação dos dados foi ancorada na análise de conteúdo e revela a necessidade de um diálogo constante com a triangulação das fontes: teoria e empiria. Vale salientar que essa pesquisa decorre de um trabalho que se iniciou no mestrado e que, por isto, já existiam algumas entrevistas (material de campo) coletadas e transcritas, aqui retomadas em uma nova perspectiva de análise. 1.3.1 A História Oral: a opção da técnica Em virtude de a pesquisa se dar sobre aportes do universo cultural, num passado recente, adotou-se a técnica da história oral, no terceiro momento da pesquisa. A história oral pode ser trabalhada como método e/ou como técnica. Aqui, a nossa opção foi como técnica, porém sem deixar de vislumbrar-se com a riqueza que esse trabalho teria tido se tivéssemos, de fato, o abordado segundo o método da História Oral, o que não foi possível em virtude do tempo, pois compreendi que necessitaria de uma dedicação exclusiva, para tal investigação. A técnica, aqui trabalhada, não representou simplesmente uma etapa em si, mas o percurso para a construção da narrativa: a preparação das entrevistas, o contato com os sujeitos da pesquisa, a ficha de identificação, o momento da entrevista, o uso do gravador, a carta de consentimento, o caderno de campo, a transcrição, a textualização e uso das entrevistas. Mesmo assim, é importante perceber que a história oral não se trata puramente de métodos ou técnicas. “[...] a história oral permite a possibilidade de tornar a vivenciar as experiências do outro/a, a que se tem acesso sabendo compreender as expressões de sua vivência” (ALBERTI, 2004, p. 19). Esta mesma autora coloca que reconhecer os paradigmas que estão na base do sucesso da história oral não implica renunciar a sua capacidade de ampliar o conhecimento sobre o passado. Segundo Alberti, “a escolha dos entrevistados não deve ser predominantemente orientada por critérios quantitativos, por uma preocupação com amostragens, e sim a partir da posição do entrevistado no grupo, do significado de sua experiência” (2004a, p. 31). Assim sendo, entrevistei o grupo destacado abaixo: 1) 05 camponesas – sendo 04 delas do Movimento de Mulheres do Brejo da Paraíba e 01 do Movimento de Mulheres da CUT Nacional/CONTAG; 2) 04 ex-assessores do CENTRU, sendo que um deles também foi advogado no caso de Margarida Alves, e todos possuíram experiência em Movimentos Sociais, particularmente no movimento sindical, do meio rural e/ou urbano; 3) 02 atuais sindicalistas – um membro do Movimento de Luta por Moradia na região de Alagoa Grande-PB. E, o outro, que preside a Central Única dos Trabalhadores, na Paraíba. Através de um diálogo mais cotidiano, selecionei, inicialmente, quatro camponesas, que contribuiriam com essa investigação. Os critérios dessas escolhas tiveram a ver com a aproximação das suas experiências e as de Margarida Maria Alves no campo do trabalho rural e da prática sindical. Além disso, o fato de duas delas terem sido vítimas de emboscadas patrocinadas por latifundiários, sofrido discriminação de gênero no espaço sindical e familiar e terem estado, ainda, presentes nos cursos de formação política da década de 1980, me propiciou um retrato de Margarida Alves e da conjuntura social da época. Reportarei as camponesas do Movimento de Mulheres Trabalhadoras do Brejo com as seguintes abreviações de entrevistados/as: (E–3); (E-4); (E-5) e (E-6). Outras lideranças e assessores educacionais do movimento sindical rural foram escolhidos/as pelo fato de terem exercido, simplesmente, militância político-educativa, nos novos movimentos sociais, sem necessariamente manterem tantos laços de proximidade com Margarida Alves, como as quatro primeiras. E estarão denominados/as nas abreviações: (E-1); (E-2); (E-7); (E-8); (E-9); (E-10) e (E-11). Compreendo, deste modo, que a técnica da história oral pode auxiliar na reconstituição das histórias de vida, bem como na história das experiências, em que “pessoas ou grupos efetuaram suas experiências, incluindo situações de aprendizagens e decisões estratégicas” (ALBERTI, 2004). Tive o cuidado de elaborar um roteiro semi-estruturado para as entrevistas como um todo, em especial nos momentos dos círculos de cultura, com as duas primeiras entrevistadas escolhidas. (Ver Apêndices). Elaborei uma ficha de identificação e uma carta de cessão. Na ficha de identificação, constaram os seguintes itens: nome, endereço, tipo de profissão, religião, idade, naturalidade, tipo de atividade militante: sindicatos, movimentos de mulheres, ou outros; Tipos de cursos de formação-político-educativa, que participaram com detalhes sobre os mesmos. Dados esses que não podem aqui serem revelados nominalmente por questões éticas. A carta de cessão foi organizada a partir de um texto escrito, o qual previu a autorização das entrevistadas em ceder os direitos da entrevista para o uso da autora desta tese, algo que, durante o mestrado não tinha efetuado, o que foi um descuido como pesquisadora e revelou um excesso de confiança das camponesas, pelos nossos laços militantes. Vale salientar, porém, que, na dissertação, depois do mestrado, cada camponesa entrevistada recebeu uma cópia completa do trabalho final, outra cópia foi destinada para o Movimento de Mulheres Trabalhadoras do Brejo (MMT) e mais 100 publicações do livro, quando a dissertação foi editada em 2006. Assim, do mesmo modo, pretendemos proceder devolvendo esta tese ao movimento das mulheres camponesas e à Central Única dos Trabalhadores. É que compreendo, igualmente, que a história oral me permitiu realizar um quadro significativo de representação da trajetória política de Margarida Maria Alves, em um período marcado por transições importantes entre os velhos e os novos movimentos sociais. Mas, somadas aos ricos depoimentos advindos da técnica da história oral, vieram as fontes documentais jornalísticas, principalmente de três veículos informativos de nosso Estado: Correio da Paraíba, O Norte e a União, que aí, sim, propiciaram uma visualização, ainda mais detalhada, de algumas experiências políticas de Margarida Alves que, em meu entendimento, contribuíram e muito para uma maior compreensão da conjuntura histórica e para validar esta tese. 2 OS FUNDAMENTOS TEÓRICO-HISTÓRICOS DA PESQUISA A minha clivagem no campo teórico-metodológico ancora-se na História Social e na Nova História Cultural. Para tanto, dialogo sobre o contexto de cada corrente historiográfica e suas interseções, ou melhor, expresso seus nexos e fios tecidos na escrita da História17. O início do século XX trouxe consigo momentos de muitas disputas por territórios nas ciências sociais, na busca pela compreensão da sociedade e dos acontecimentos. No campo historiográfico, essas disputas se deram entre a história e outras áreas, como a geografia, a sociologia, a antropologia, a filosofia, a lingüística, a psicanálise, a economia, entre outras do campo das ciências humanas. E, concomitantemente, ocorreram disputas internas na própria essência da Clio 18, que se prolongaram até os dias atuais. Foram divergências sobre o próprio sentido da história. Qual a forma de escrita mais adequada para se escrever a história, narrada (descrita) ou contextualizada? Quais os tipos de fontes mais pertinentes à reconstrução dos fatos, só os grafados ou, também, a fonte oral? Quem faz a história: atores, sujeitos ou expectadores dos/nos acontecimentos? Outrossim, qual abrangência do tempo deveria ser mais aprofundada: o passado longínquo ou o passado recente? Como deveria se entender o objeto estudado, pela análise das estruturas ou pela conjuntura? Enfim, quais os limites da História? Uma coisa é precisa, tudo isto foi posto em questão principalmente pelos próprios historiadores de ofício. E, no seio desse debate, vinha à tona novamente uma dúvida atroz: se existiria ou não a história ou só várias versões da mesma. E, se fossem só versões, qual seria a 17 A palavra história etimologicamente tem suas raízes no oriente indo-europeu (povos jônios), possuindo a raiz wid-weid, significando ver. Apreendida pela etimologia grega que associa na raiz wid-weid e seu étimo id que também está em eidos e em Idea, ao ist. E, com o passar do tempo a raiz weid, ver, no sânscrito, vettas, passou a significar testemunha. Por possuir relação com o verbo ver foi entendida pelos gregos como sendo relato-testemunho. Le Goff localiza nessa concepção de visão como fonte essencial do conhecimento a idéia de que histor, aquele que vê, é também aquele que sabe. Enfim, Historien, em grego antigo, é procurar saber, informar-se. Historie significa, portanto, procurar, investigar. (FELIX, 1998, pp. 21-24). 18 Para os gregos Clio é a Deusa da História, filha de Zeus (o Deus dos deuses) com Mnemósine, a Deusa da Memória. (idem, ibidem). verdadeira? A oficial ou outras submersas, silenciadas? A dos vencedores ou a dos vencidos? Para Burke (1992), isto fez com que a História deixasse de ser compreendida como ciência e passasse a ser encarada como política. Havia uma frase vitoriana de Sir John Seeley, catedrático de história em Cambridge, que expressava bem isto: “História é a política passada: política é a história presente”. (idem, ibidem, p. 10). Não tenho a intenção de esgotar as abordagens teóricas sobre esses conflitos, mas de apontar possibilidades de distinguir e entender este processo constituído de constante diálogo e entrecruzamento de representações, tempos e espaços. Ora, a História havia sido encarada, desde Heródoto19, no século V a.C., como sendo uma narrativa dos fatos exaltando heróis e batalhas. Para tanto, os filósofos gregos entenderam, em sua obra, e em outras similares, um sentido de „lógica progressiva‟, já que a história havia se emancipado dos Mitos, constituindo-se em „narrativa histórica‟ diferente de „narrativa literária‟ e, desde então, possuía objetividade dos fatos e tempo determinado. Para Bittencourt (2004), tudo isto só foi colocado em xeque no século XX, porque o tabuleiro do xadrez foi armado, ainda, no século XIX, com a disputa acirrada entre o positivismo e o marxismo. Duas correntes historiográficas, presentes, até hoje, nas mesmas discussões! A história foi concebida como o conhecimento do passado dos homens e por princípio, cabia aos historiadores, recolher, por intermédio de uma variedade de documentos, os fatos mais importantes, ordená-los cronologicamente e narrá-los. Essa tendência historiográfica constituída no século XIX que está relacionada ao historiador prussiano Leopoldo Von Ranke (1795-1886) possibilitou um caráter científico à história [...] e os historiadores, impedidos de emitir qualquer juízo de valor, mantendose sempre uma atitude imparcial e neutra diante dos fatos, têm como objetivo „mostrar o que realmente aconteceu‟ [...]; essa tendência passou a ser denominada de historicismo, cuja metodologia foi conhecida como positivismo, por basear-se nos princípios da objetividade e da neutralidade no trabalho do historiador (BITTENCOURT, 2004, p. 140141), 19 Heródoto é considerado pela historiografia eurocêntrica como sendo o „Pai da História‟, a partir da elaboração de sua obra: História, que narrou as guerras médicas, entre gregos e persas, além de relatar costumes e tradições de vários povos do oriente e ocidente, por onde viajou, na época. Assim, o historicismo concebeu o positivismo 20 na história. A narrativa foi duramente criticada; porém até os dias atuais ainda está muito presente na pedagogia escolar, que privilegia o Estado, os chefes militares, reis e elites. Ao tentar dar um status de não ficção à história, a narrativa terminou constituindo uma „totalidade orgânica, com princípio, meio e fim, um conjunto com tempo bem determinado dentro de uma ordenação linear” (idem, ibidem, p. 143). Não tardou para que a crítica ao determinismo histórico da narrativa eclodisse, no final do século XIX. E esta foi fundamentada pelo pensamento marxista 21, proposto por Karl Marx (1818-1883), economista e filósofo alemão, cuja episteme histórica tornarse-á outro referencial marcante nas análises sociais. A história marxista passou a certificar o valor científico da história, porém vinculando-a a uma epistemologia dialética entre passado e futuro. Para os estudos das sociedades humanas, o marxismo utilizou como conceitos fundamentais: o modo de produção, a formação econômico-social e as classes sociais. O marxismo inaugurou a História Econômica como contraponto à História Factual do historicismo; essas duas visões de mundo articularam as peças do xadrez da história, no século XIX, cujo jogo seguiu seu curso nos séculos XX e XXI. As críticas às análises marxistas não tardaram, visto que, que inicialmente, se propunham a investigar exclusivamente o estudo do tempo capitalista e a formação econômica das sociedades, situando o indivíduo de acordo com o lugar ocupado por ele no processo produtivo: burguesia ou proletariado. 20 O Positivismo surgiu como desenvolvimento sociológico do Iluminismo, da crise social e moral do fim da Idade Média e do nascimento da sociedade industrial - processos que tiveram como grande marco a Revolução Francesa (1789-1799). Augusto Comte (1798-1857) foi quem na primeira metade do século XIX sistematizou o sentido do positivismo como método científico nas pesquisas das ciências sociais, adptando o método de René Descartes (1596-1650), das ciências naturais, que estabelecia: a verificação, o fracionamento, a quantificação e a elaboração de leis nas análises dos experimentos (BOTTOMORE, 1988). 21 O Marxismo é o conjunto de idéias filosóficas, econômicas, políticas e sociais elaboradas inicialmente mente por Karl Marx e Friedrich Engels e desenvolvidas mais tarde por outros seguidores. Baseado na concepção materialista e dialética da História, interpreta a vida social conforme a dinâmica da base produtiva das sociedades e das lutas de classes daí conseqüentes. O marxismo compreende o homem como um ser social, histórico (BOTTOMORE, 1988). O Estruturalismo 22 se firmou reivindicando o direito de „filho rebelde do marxismo‟ e estabelecendo um modelo explicativo das estruturas, que produziam conceitos capazes de explicar tudo em qualquer sociedade em diferentes épocas e espaços, e não apenas no tempo do „capitalismo‟. Teve seu ponto de partida com os estudos de Ferdinand de Saussure (1857-1913) para analisar a língua, acabando por fortalecer a lingüistica como ciência. Claude Lévi-Strauss (1908- ??) a transformou em método para as análises antropológicas e etnográficas; dentre seus estudos mais famosos estão as suas pesquisas sobre mitos e graus de parentescos das famílas primitivas. Louis Althusser (1918-1990), por sua vez, trabalhou o estruturalismo em pesquisas sociais diversas, principalmente as relacionadas à educação. Outros nomes que defenderam o estruturalismo foram: Jacques Lacan; Michael Foulcaut e Jacques Derrida. Ocorreu, então, nas pesquisas estruturalistas, um deslocamento para a ênfase no campo das „super-estruturas‟ da sociedade. Ou seja, voltaram-se aos objetos estudados dando-lhes uma ênfase cultural, porém o fizeram distanciando-se tanto das análises econômicas que passaram a receber inúmeras críticas científicas. O que foi bem diferente do que fora colocado por outras correntes e pensadores marxistas que, também, trabalharam com prismas culturais: a Escola de Frankfurt23 – com as categorias „indústria cultural‟ e „cultura de massa‟ – ou, por Georg Lukács (1885-1971) – com a categoria ideologia – e, principalmente, Antônio Gramsci (1891-1937), que trabalhou com o aporte de uma nova concepção marxiana de Estado, de intelectuais orgânicos e de hegemonia, mas sem distanciar-se do referencial econômico e das classes sociais. 22 O Estruturalismo é uma abordagem que veio a se tornar método de análise nas ciências sociais. O estruturalismo procura explorar as inter-relações (as "estruturas") através das quais o significado é produzido dentro de uma cultura. De acordo com a teoria estrutural, os significados dentro de uma cultura são produzidos e reproduzidos através de várias práticas, fenômenos e atividades que servem como sistemas de significação (BOTTOMORE, 1988; WIKIPEDIA, 2008). 23 Escola de Frankfurt é o nome dado a um grupo de filósofos e cientistas sociais de tendências marxistas que se encontram no final dos anos 1920. A Escola de Frankfurt se associa diretamente à chamada Teoria Crítica da Sociedade. A primeira obra coletiva dos frankfurtianos são os Estudos sobre Autoridade e Família, escritos em Paris, onde estes fazem um diagnóstico da estabilidade social e cultural das sociedades burguesas contemporâneas. Alguns de seus representantes foram: Theodor Adorno; Max Horkheimer; Walter Benjamin; Herbert Marcuse e Jürgen Habermas (BOTTOMORE, 1988; WIKIPÉDIA, 2008). 2.1 A História Social e a Nova História 2.1.1 A História Social: a experiência em foco A História Social eclode com força total criticando o estruturalismo e novamente recuperando do marxismo o sujeito histórico, procurando visualisá-lo ao tentar explicar os confrontos entre os grupos sociais, na chamada luta de classes, só que não mais enfatizando o homos economicus e, sim, o homos socialis. O historiador inglês E. P. Thompson (1924-1993) lança crítica aberta ao modelo estruturalista com o sugestivo título: Miséria da teoria ou um planetário de erros – uma crítica ao pensamento de Althusser. Thompson marcou uma série de críticas ao estruturalismo e passou a dar ênfase a conteúdos sociais, articulando o conceito de classe social ao de cultura. A partir de então, a História Social surge como reelaboração da história econômica marxista, trazendo à tona vários problemas sociais (BITTENCOURT, 2004). Profundamente influenciada pelo marxismo gramsciano, a história social tem nos historiadores ingleses os seus principais representantes: E. P Thompson, Eric Hobsbawm, Christopher Hill, Rodney Hilton, Dona Torr, entre outros/as. Suas pesquisas foram centradas, principalmente em: sindicalismo, partidos, movimentos sociais, mulheres, escravidão, campesinato, crimes e movimentos transgressores da ordem [capitalista] estabelecida. Thompson, em sua clássica obra A formação da classe operária inglesa, nos conduz à produção de métodos similares aos meus estudos. Nesta obra, ele retrata como foco central o contexto de vida dos trabalhadores/as ingleses, suas mobilizações, ansiedades, rituais e símbolos coletivos, em um ambiente oponente ao reconhecimento dos seus paradigmas sociais e culturais fundados na tradição comunal da sociedade inglesa. Nas próprias palavras de Thompson, ele explicita o que trata no primeiro volume da sua obra, publicada em três volumes: [...] na parte I, trato das tradições populares vigentes no século XVIII que influenciaram a fundamental aceitação jacobina no ano de 1790. Na parte II, passo das influências subjetivas para as objetivas - as experiências dos grupos de trabalhadores durante a Revolução Industrial que me parecem de especial relevância. [...] Na parte III, recolho a história do radicalismo plebeu, levando-a, através do luddismo, até a época histórica no final das Guerras Napoleônicas. Finalmente, discuto alguns aspectos da teoria e da consciência de classe nos anos 1820 'e 1830 (THOMPSON, 1987, v. 1, p. 12). Ele considera ainda não ter tido a pretensão de elaborar um estudo com narrativas seqüenciadas, e sim, uma reflexão na abordagem da historiografia temática e dialética. Thompson desenvolveu sua tese mostrando que o ponto principal para o entendimento do processo de transformação dos trabalhadores em "classe" não foram as condições objetivas externas ou estruturais do capitalismo industrial, mas a própria experiência e ação coletiva dos grupos de trabalhadores, na chamada luta de classes. Os trabalhadores, "em sua maioria vieram a sentir uma identidade de interesses entre si e contra seus dirigentes e empregadores" (idem, ibidem, v. I, p. 12). Em suas análises, Thompson destaca a experiencia histórica como um dado que deve ser cercado pela memória dos sujeitos. Pela experiência os homens [e mulheres] se tornam sujeitos, experimentam situações e relações produtivas como necessidades e interesses, como antagonismos. Eles tratam essa experiência em sua consciência e cultura e não apenas a introjetam. Ela não tem um caráter só acumulativo. Ela é fundamentalmente qualitativa. (THOMPSON, 1981, p.182 /grifo meu]. Para Gohn (2002), Thompson é fundamental para os estudos atuais de movimentos sociais. Produzir sua (re) leitura desmistifica que a experiência histórica seja entendida como um mero sinônimo de empirismo. [...] Thompson retoma uma categoria básica de análise, nos marcos do materialismo histórico, que é a da experiência histórica e cultural das pessoas. Adotando uma postura teórico-metodológica nada ortodoxa, ele se propõe a trabalhar com as experiências das pessoas não apenas como simples atos de idéias mas também como sentimentos, valores, consciência, enfim, experiências acumuladas que se sedimentaram. (GOHN, 2002, p. 204). Para Thompson (1987, p. 09), a categoria experiência resume-se em “um fenômeno histórico, que ocorre tanto na matéria-prima do empirismo como na consciência”. A reconstrução da experiência humana na história da classe trabalhadora tem, nos aspectos do cotidiano, que não se dão nas instituições, campos férteis de lutas e resistências. Thompson (1987), assim, entende o processo da experiência indissociado da luta de classes, considerando que a luta surgiu antes da classe e foi a luta (a experiência) que construiu a classe. Nas concepções clássicas, a classe social é um bloco social que está posicionado dentro da estrutura econômica ou da relação dos meios de produção. Os dois blocos que medem forças sociais seriam, por um lado, os que detém os meios de produção e, por outro, os que vendem a sua força de trabalho. Mas, o que seria a concepção de classe social, para Thompson? Thompson afirma que a classe é uma categoria histórica que descreve as pessoas em termos de seu relacionamento ao longo do tempo, num ativo processo de criação [...] é uma categoria heurística, não pode ser separada da noção de luta de classes. (DESAN, 2006, p. 68-69) Para Desan (2006, p.68), a relação de Thompson com o marxismo é bastante complexa, porém direta: “ele foi membro do Partido Comunista Inglês até 1956, e um dos principais editores da New Left Review [...] e vê as suas análises como um preenchimento de alguns dos „silêncios‟ de Marx”. Já Gohn, considera que a originalidade dos estudos de Thompson está no fato de ele ter analisado a experiência como estatuto da práxis humana, na circularidade completa do viés sócio-histórico-econômico-político-cultural: Thompson trabalha questões tais como valores, cultura e teoria política de forma crítica, desmistificando os argumentos que situam a experiência como sinônimo de empirismo. Situa a experiência como estatuto da práxis. Podemos observar em suas formulações que ele não só retoma o caminho trilhado pelos historicistas e pelos téoricos da consciência, como Lukács, mas bebeu em fontes da historiografia francesa do grupo dos Annales24 (GOHN, 2000, p. 204). A história social se propôs a apreender os mecanismos de resistênca à opressão, de rebeldia da ordem dominante, caracterizando uma luta na contra-mão dos costumes e das tradições. Os motins do século XVIII foram estudados sob o prisma da crise da modernidade. Já os do século XIX evidenciaram as lutas populares que avançaram no sentido de entender as contradições dos interesses econômicos das classes sociais. Na atualidade, o legado de Thompson se reafirma pela validade de: 24 O grupo dos Annales está associado à corrente historiográfica da Nova História, que surgiu quase no mesmo período e, aqui, será abordada no próximo sub-capítulo. [...] observar o cotidiano das camadas populares, no sentido de apreender como o vivenciaram. A situação de carência ganha relevância, não pela objetividade da coisa em si, mas pela forma como as pessoas vivenciaram as carências. Os sentimentos de injustiça e exclusão surgem desta vivência e podem, em determinados contextos, expressar-se socialmente como revolta. São momentos de ruptura da ordem na vida das pessoas e não da ordem social mais ampla. Thompson retoma a idéia marxista da classe como sujeito, da classe como categoria histórica, ampliando seu significado, enquanto relação. Não há um projeto político previamente demarcado, ele se costrói na práxis (GOHN, 2000, p. 205). Essa essência marxista da práxis25, na perspectiva da História Social, ganha força na era dos movimentos sociais dos séculos XX e XXI, que buscam incorporar às lutas por direitos subjetivos uma consciência de classe. E que pretendem, nas lutas que esboçam um viés puramente classista, fazer brotar tonalidades subjetivistas presentes em nossa sociedade. É assim que entendo a pertinência do foco da História Social com a temática do estudo aqui proposto sobre a trajetória política de Margarida Alves. Como ilustração, localizo, no discurso abaixo, elementos que entrelaçam tal pertinência: [...] Os trabalhadores rurais que eram filiados ao sindicato rural de Alagoa Grande, ela dava uma atenção, ela reunia e conversava. E onde havia uma violência, um tratamento desumano, em quase todos os engenhos, a homens e mulheres ela ia com uma FORÇA. Ela não tinha senso de proporção do risco. Ela não tinha medo e não tinha dimensão do risco, que aquela luta cotidiana oferecia, para defender os trabalhadores rurais; ela não tinha o medo de morrer, e é claro que ela recebia ameaças: diretas, veladas ou através de recados, mas ela não tinha medo. E, ela foi crescendo naquilo, no interior do trabalho do CENTRU que tinha voltado para os canavieiros do brejo paraibano [...]. [...] É, Margarida brigava com unhas e dentes para que os trabalhadores rurais que trabalhavam nos engenhos ou na usina, eles tivessem no mínimo em torno dos seus casebres, eles tivessem 2 hectares de terra, para a subsistência, o que era uma coisa. Essa briga pelos hectares de terra era uma coisa impressionante, porque os engenhos aldeavam os casebres, as casas de palha ou choupanas que tinham o chão de barro com o plantio da cana-de-açúcar até o terreiro. A casa era cercada. Margarida tinha aquilo como uma indignidade. (E-9 – Em 31/07/2009). 25 PRÁXIS: este termo vem da Antigüidade. Na obra de Marx ele está presente como elemento fundamental de transformação da sociedade e da natureza pela ação da humanidade. Significa prática transformadora do social, que se realiza em conexão com a atividade teórica, por meio da atividade política. (GOHN, 2000). Confirma-se, em uma breve análise dos dois fragmentos da entrevista acima, que encontramos uma „Margarida Alves‟ arraigada na circularidade do viés sócio-históricoeconômico-político e cultural, na medida em que, mesmo sem ter „senso de proporção do risco que corria‟, ela passou a desenvolver outros sensos: senso crítico de justiça, para com o próximo, senso organizacional da classe camponesa, senso de indignação com os opressores e de aprendizagem no interior do seu trabalho sindical. Portanto, passou a ser reconhecida como personagem social pela sua experiência política na história social do movimento sindical paraibano, entre outros movimentos sociais. 2.1.2 A Nova História Cultural: a representação em foco Tal circularidade que envolveu „Margarida‟, e que vai do econômico ao cultural assenta-se, ainda, em fontes historiográficas da Nova História Cultural. A Nova História Cultural é herdeira da História Nova que surgiu na França, na primeira metade do séc. XX, fruto de uma série de novos olhares sobre os acontecimentos, sobre a própria ciência, sobre as estruturas e as transformações da época. Sua primeira expressão foi formulada por Berr, em 1930, mas foi a partir das formulações de Le Goff (1988), segundo o próprio autor, que as discussões se desenvolveram sobre as novas pesquisas, os novos problemas, as novas abordagens e as novas fontes que a história nova ecoou na França e, juntamente com o movimento da Escola dos Annales, impulsionou a aglutinação de todos os debates da ocasião. A Escola dos Annales está diretamente ligada à revista dos Annales, intitulada em sua fundação de Annales d’histoire économique et sociale (1929), que teve lançamento e seu primeiro movimento com Marc Bloch e Lucien Febvre. Está dividida em três grandes movimentos conhecidos como: 1ª (primeira), 2 ª (segunda) e 3ª (terceira) gerações dos Annales. As duas primeiras gerações ficaram conhecidas como „História Nova‟ ou „Nova História‟ e só a última geração, a 3ª (terceira), recebeu a denominação de Nova História Cultural. A primeira geração, representada por Bloch e Febvre, combinou a história com a geografia, a economia e a sociologia para contrapor-se às tendências historicistas do século XIX. Vivenciou a época entre as guerras mundiais (1ª e 2ª), gerando perseguições e prisões. Suas militâncias políticas foram pontos importantes de suas reflexões, para firmarem no cenário mundial a História Nova. A segunda geração teve nos trabalhos desenvolvidos por Fernand Braudel seu grande marco. A obra de Braudel produziu uma ampla análise sobre o Mediterrâneo durante a era de Filipe II da Espanha. O seu método de análise foi desenvolvido em duas formas: a história serial26 e a história das mentalidades27. Nesse período, nas décadas de 1960 e 1970, os Annales receberam outra denominação, a de Annales Économies Societés Civilizations (1947). A terceira geração dos Annales é conduzida por Jacques Le Goff e Michel Foucault, ficando mais conhecida como a „Nova História Cultural‟, em que toda a atividade humana é considerada história. Os trabalhos produzidos, de lá para cá, a partir dos anos 1970, receberam influências e influenciaram várias outras correntes historiográficas, principalmente o Estruturalismo e a História Social. Ela foi capaz de se desdobrar em várias novas abordagens: História Vista Pelos de Baixo; História do Imaginário; História do Corpo; História do Além Mar; História das Imagens; História da Leitura; História das Mulheres, entre tantas outras. Algumas dessas pesquisas foram duramente criticadas por produzirem mais uma visão da „micro-história‟, ou „História em migalhas‟ que fica „presa‟ ou só ao passado, ou só ao presente, esta última caindo na esfera da sociologia, em vez de promover uma síntese dialética entre passado e presente. A História Nova, todavia, tem seu mérito reconhecido na atualidade nas ciências humanas como movimento teórico historiográfico. Desde o seu primeiro momento, buscou romper com a tradição da história vista pelos de cima, quando o historicismo ainda prevalecia contando a visão dos vencedores, dos generais e de heróis. Desta forma, refletiu 26 O método de análise da história serial associado à História Econômica incorpora análises quantificáveis, com variáveis do tipo: percentuais, índices de inflação, volume de exportação e importação, taxa de juros etc. (CARDOSO, 2005). 27 A história das mentalidades constituiu-se em abordagem teórica e metodológica. Está próxima da psicologia social e da antropologia, incorporando a psicanálise e a etnografia como métodos para apreender de uma dada sociedade analisada seus medos, comportamentos, costumes, crenças etc. (CARDOSO, 2005). uma história que não fosse só a factual28, bem como desenvolveu outras abordagens que não fossem perceber as transformações apenas pelo foco econômico e/ou político. Conforme explicita Burke (1992, p. 23) “a história tradicional marginalizou muitos aspectos das atividades humanas, pois para a nova história, toda a atividade humana é portadora de uma história; é desta idéia que a Escola dos Annales atribui a expressão história total”. É, também, daí, que a representação se firma como categoria de estudo cultural. No campo da produção da nova história cultural, tanto em apanhados teóricos quanto metodológicos, as realizações de biografias de mulheres e sobre grupos coletivos possibilitam desvelar a história dos excluídos e dos de baixo, o que representa, simultaneamente, um novo campo de investigação e uma renovação em nível de problemática. A terceira geração dos Annales , a da História Cultural, é a que prima mais pela história temática, adotando, como novas fontes, as análises de práticas de leituras, práticas de escritas, análises de discursos, além de perceber a fotografia como expressiva fonte documental. Uma importante percepção foi a de Michele Perrot, que faz parte dessa terceira geração, e elaborou suas investigações na perspectiva da „história dos excluídos‟, ou „vista pelos de baixo‟, que foi inaugurada por Guy Bois. Perrot (2001) colocou em suas análises as relações de poder e história considerando algumas práticas culturais de mulheres e as suas possibilidades de emancipação. Ela cita o resultado de duas pesquisas efetuadas em comunidades rurais no nordeste da França do século XIX. Na primeira pesquisa, as mulheres desenvolvem suas táticas de sobrevivência através do poder informal. De fato, controlam recursos e decisões no espaço familiar, mas não se encarna a mulher com autonomia e com vida pública que possibilite o seu destaque nas atuações políticas e sociais. Na segunda investigação, as mulheres têm regras diferentes de herança. Também não ocorre comunicação entre elas, diminuindo, assim, até mesmo os ditos poderes informais. A conclusão da autora é a de que não existe modelo único para todas as 28 Na primeira e segunda Geração dos Annales se combate explicitamente a história factual, mas já na terceira geração há um retorno, porém percebendo-a como um acontecimento contextual envolvendo vários aspectos interligados, como a sociedade, a economia e a cultura, entre outros. necessidades das mulheres na sociedade rural e que a autonomia dessas mulheres depende de ações, individuais e coletivas, para uma completa emancipação. Esse estudo provocou amplos debates, pois a autora concluía apontando que esses sujeitos, mulheres rurais da França, ao mesmo tempo em que possuíam a condição de excluídas, também podiam ser encaradas como construtoras de uma nova representação social. As mulheres que ousaram uma nova rebeldia, um novo espaço, uma nova história, propagaram as suas experiências que se constituíram em fonte de aprendizagem e esperança de sociedades mais igualitárias. A perspectiva de registrar a história de vida de uma mulher que atuou na luta pela terra nos remete, portanto, ao propósito da história das (os) excluídas (os), ou da história vista pelos de baixo. Trazer à tona a história política de Margarida Maria Alves é fazer o percurso „oficial‟ inverso, de baixo para cima, e não de cima para baixo! Esta perspectiva da „historia de baixo para cima‟ traz nuances essenciais de uma história nova que contribuiu para a percepção de uma história transformadora, não apenas das estruturas, mas, essencialmente, do cotidiano, através da experiência dos seus sujeitos e de outras formas de representação social. Para Chartier (1990), a história cultural tem por principal foco identificar o modo como em diferentes espaços e temporalidades uma determinada realidade social é „construída, pensada, dada a ler‟, e, principalmente, como pode ser representada. Uma tarefa desse tipo supõe vários caminhos, a apreensão que se busca é a síntese entre o mundo apresentado, dito mundo real e o não-dito ou silenciado do mundo social. Assim: as lutas de representações têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são os seus, e o domínio. Ocupar-se dos conflitos de classificações ou de delimitações não é, portanto, afastar-se do social – como julgou durante muito tempo uma história de vistas demasiado curtas -, muito pelo contrário, consiste em localizar os pontos de afrontamento tanto mais decisivos quanto menos imediatamente materiais. (CHARTIER, 1990, p. 17). Para remeter-se ao entendimento dos princípios da representação, Chartier observou duas razões, a representação como um dado a ver uma coisa ausente, „o que supõe uma distinção radical entre o que representa e o que é representado‟. E, numa segunda ordem, seria entender a representação como exibição de uma presença, como „apresentação pública de algo ou de alguém‟. Chartier considera, ainda que, a partir dos trabalhos do sociólogo Pierre Bourdieu, a história cultural descobriu a sua âncora em termos de categoria teórico-metodológica para não cair no poço ahistórico do estruturalismo, e atualmente, tanto a sociologia e a antropologia quanto a história têm optado pela busca da representação dos seus objectos. É necessário retomar, portanto, que Bourdieu comprende a representação como um símbolo ou signo, onde o dado imaterial passa a fazer parte do dado material; ou seja, a subjetividade torna-se inseparável da compreensão histórica dos fatos. Tomar um conceito de representação em sua relação histórica e simbólica para os grupos que a disputam significa que “a relação de representação – entendida como relacionamento de uma imagem presente e de um objecto ausente, valendo aquela por este, por lhe estar conforme – modela toda a teoria do signo” (CHARTIER,1990, p.21). Por último, na percepção de Chartier pode-se distinguir a „representação‟ do „representado‟ e o signo do significado, ou não, dependendo das pluralidades (compreensões ou incompreensões) propostas nas imagens, textos e discursos, do dito mundo social. A abordagem da Nova História Cultural condiz com esse diálogo entre a experiência e a representação social. Vejamos o que afirma Fonseca: [...] a História Cultural apresenta-se como um campo historiográfico caracterizado por princípios de investigação herdados das propostas inauguradas com o movimento dos Annales e dotado de pressupostos teórico-metodológicos que lhe são próprios (mesmo que alguns deles tenham se originado em outros campos do conhecimento, como a antropologia ou a lingüística). Por isso, a História Cultural é reconhecida pela utilização de determinados conceitos, como o de representação – visto como central para este campo – e do imaginário, e por uma relação específica com a temporalidade, não mais vista linearmente (como na história tradicional) e nem apenas na longa duração (traço da influência estruturalista). (FONSECA, 2003, p.56). O sentido de representação das premissas teórico-ideológicas desta TESE bebe nas fontes da História Social e da História Cultural e me conduz a analisar com mais propriedade a problemática aqui colocada, sobre os conflitos sociais presentes nos movimentos sociais. Entendo ainda que a presente pesquisa requer, nesse estudo sócio-histórico do presente, uma preocupação com a concepção de cultura e de ideologia, que foram refletidas por Gramsci, com bastante propriedade. Para Gramsci, essa triologia, Cultura, Ideologia e Dialética residem em um sentido da própria dialética: A função e o significado da dialética só podem ser concebidos em toda a sua fundamentalidade se a filosofia da práxis for concebida como uma filosofia integral e original, que inicia uma nova fase na história e no desenvolvimento mundial do pensamento, na medida em que supera (e, superando, inclui em si os seus elementos vitais) tanto do idealismo, quanto do materialismo tradicional, expressão da velha sociedade. (BOBBIO, 1999, p. 29). Não é por acaso, que existe na tessitura dos estudos da história social e cultural essa linha gramsciana, que propõe um significado dialético. Esse „significado‟ dialoga com uma filosofia da práxis e com a história. Mas, de qual concepção de história estamos falando? Da história que abarca distintas representações sociais de uma dada realidade, contida na subjetividade da hegemonia e da contra-hegemonia social. A linha gramsciana incita, mesmo, novas análises historiográficas, para um sentido educativo das próprias lutas emancipatórias. Daí que esse conjunto de experiências da trajetória política de Margarida Maria Alves configura um importante período histórico como algo possível de ser apreendido, registrando as marcas de uma história social e cultural. Pretendo, portanto, entender a trajetória política de Margarida Maria Alves, através de discursos presentes em documentos, jornais e falas de sujeitos que conviveram com Margarida Maria Alves. As falas e os textos nos mostram a representação de Margarida Alves como alguém presente nos movimentos sociais, até mesmo, simbolicamente, após o seu assassinato. E, em outros momentos, demonstra conflitos e contradições de sua postura político-sindical-partidária, nessa trajetória política. Essa simbologia das suas práticas políticas, para os agentes pastorais e movimentos sociais, principalmente o camponês e o de mulheres, está carregada de signos e de práticas educativas, que vão sendo resenhadas na memória coletiva como ações voltadas para a concepção de um sindicalismo de luta, necessário à disputa de hegemonia na luta de classes sociais. 2.2 A Educação Popular (EP): o diálogo entre a experiência e a práxis A disputa de hegemonia na luta de classes sociais está intimamente ligada à Educação. Que, como todo Direito Humano, foi fruto de conquistas históricas resultantes de conflitos, lutas, processos societários formais e não-formais, que se configuraram em distintos projetos sociais. É nessa perspectiva que entendo a Educação Popular e os saberes constituídos pelos sujeitos sócio-históricos que nela vêm se afirmando. Para tanto, indago: como foi constituída a Educação Popular (EP) na sociedade civil? E como os movimentos sociais, incorporaram essa práxis? A EP foi sendo construída a partir da leitura do mundo, nos dizeres de Freire (1992). São os sujeitos que sofreram discriminação, que foram oprimidos, que protagonizaram a defesa de educação e cultura popular. Para Freire (1980), o ser humano não nasce sujeito, e sim, torna-se sujeito histórico, a partir do momento em que começa a realizar reflexões e ações sobre seu ambiente concreto. Freire (1980) nos conduz a refletir sobre as práticas educativas entendidas como práticas educativas populares, em uma visão de classe social. Mas, mesmo antes do aparecimento da propriedade privada e da chamada divisão social de classes, ocorreu a divisão social do saber. E esta condição é a essência do movimento histórico que separou a educação, adjetivando-a em „popular‟ versus „erudita‟. Ora, o saber foi historicamente se constituindo através de falas, de símbolos, de códigos etc. A luta pela sobrevivência e o locus da convivência em grupos abrigaram o espaço das relações que produziram saberes. Neste sentido, o significado de „aprender‟ tornou-se a realização de cada experiência humana, que simbolizou um rito de passagem humano da natureza à cultura. Segundo Brandão, em algumas tribos, com pequenas diferenças, todos sabiam tudo e entre si se ensinavam e aprendiam, seja na rotina do trabalho, seja durante rituais sagrados, os homens falavam aos deuses, para, na verdade, ensinar a si próprios. Esta foi a primeira experiência de Educação Popular (BRANDÃO, 2006, p.24). Do mesmo modo, as aldeias e grupos tribais foram constituindo categorias específicas de sujeitos sociais (magos, feiticeiros, artistas, artesãos) que foram se separando do repertório comum do conhecimento. Esta reelaboração, com a qual os sujeitos foram se especializando, a partir das diferentes ocupações no mundo do trabalho, criou determinados saberes que se constituíram em „privilégios‟ e passaram a ser ensinados como um „segredo‟. Ainda conforme os estudos de Brandão (2006) sobre a divisão social do saber é preciso entender que não existiu primeiro um saber científico, tecnológico, artístico ou religioso „sábio e erudito‟ que, após levado a escravos, servos, camponeses e pequenos artesãos, tornou-se empobrecido, por se tornar um saber do povo. Houve primeiro um saber de todos que, separado e interdito, tornou-se „sábio e erudito‟. O saber legítimo que pronuncia a verdade e que, por oposição ao „erudito‟ estabeleceu-se como popular, ou seja, o saber do consenso, de onde se originou, ficou disperso. A diferença entre o saber popular e erudito não está em graus de qualidade, está no fato de que o „erudito‟ tornou-se centralizado e legítimo de um conhecimento a diferentes instâncias de poder, enquanto o popular restou difuso, não centralizado em uma agência de especialistas. Com a convivência de pendências entre o saber popular e o saber erudito, a sociedade passa a cobrar uma legitimação do ensino dos saberes à instância centralizadora destes, que nada mais é do que o Estado. Mas, o que vem a ser o Estado? Para Gramsci (1999), o Estado consiste na representação do poder formal, e reivindica para si, o status de produto final da razão; este se coloca a serviço da „Conservação-Regulação‟ da sociedade como um todo. Desde suas análises iniciais sobre o Estado que Gramsci percebeu em vários teóricos (Hobbes, Rousseau, Kant, Hegel e Marx), que este foi adquirindo uma complexidade de funções: administrativas, econômicas, jurídicas, políticas, militares etc. E, que, portanto, foi transformado em um „super-regulador‟ das normas sociais. E a sociedade civil? Para Gramsci, a sociedade civil não está no campo da estrutura, mas na esfera das super-estruturas. A sociedade civil seria um conjunto de organismos vivos e envolvidos por relações desenvolvidas pelos aparelhos ideológicos e culturais, que formam o todo do Estado. Hegel já havia afirmado que a sociedade civil, nada mais era do que „a porção ética do Estado‟ sendo, então, o Estado uma estrutura de caráter ético duvidoso, na sua complexidade (BOBBIO, 1999). Contudo, a distinção crucial entre o Estado e a sociedade civil, para Bobbio (1999) está no âmago das seguintes dicotomias: força e consenso; instituições e ideologias; estrutura e super-estrutura, sendo o Estado o primeiro móvel dessas dicotomias e, a sociedade civil, a segunda. Destarte, o Estado gera como resultado de seu funcionamento a produção de políticas públicas condicionadas à política constitucional, enquanto que a sociedade civil reivindica participar, „ser ouvida‟, intervir nas formulações dessas práticas, ou mesmo, questionar o sistema de governo que não esteja efetivando a política necessária à manutenção de garantias de sobrevivência, como: saúde, educação, trabalho, moradia etc. Anseia-se, do mesmo modo, no campo da educação, partilhar do saber acumulado pela humanidade, como forma de viver plenamente um estado de democracia, almejando o lugar coletivo da participação política, na elaboração das normas da vida coletiva. Daí, a busca de setores organizados da sociedade civil por seus direitos os colocou diante de uma forma alternativa de cobrá-los do Estado. O historiador inglês Erick Hobsbawm (1986) defende a tese de que os „Direitos‟ não existem no campo do abstrato, visto que eles só se concretizam quando as pessoas os exigem, ou quando se possa supor que elas estão conscientes da sua falta. Na sociedade brasileira, o campo das políticas públicas na educação foi historicamente marcado por um modelo de „Cidadania regulada‟, como assinalava José Murilo de Carvalho (2003), ao entender que o direito de reivindicar direitos foi duramente reprimido no Brasil, em quase todos os momentos decisivos. E foi na busca por direitos que a sociedade civil constituiu suas experiências de Educação Popular (EP), que se desenvolveram com os nomes de: educação de base, educação libertadora, educação popular. Esta educação surgiu no meio de grupos e movimentos da sociedade civil, ligada a setores estudantis, religiosos, setores de governos municipais, estaduais ou da federação, como movimentos de educadores, que trouxeram teorias e práticas militantes, da cultura popular, dos centros populares de cultura, de campanhas que surgiram em períodos de governos populistas. Foi encampada por uma classe intelectualizada, religiosa e partidária militante, que tinha em comum estender o saber „erudito‟ de „volta‟, a quem dele havia saído, „o povo‟, que também era capaz de ensinar, aos educadores, com suas experiências de vida e de cultura. No final da década de 1950, em um contexto de acirramento das contradições sociais em presença, o diagnóstico da educação brasileira era péssimo, um país de analfabetos! No entanto, a Pedagogia Libertária de Paulo Freire eclode! Numa ótica clara de propor um projeto alternativo de educação a toda a sociedade. Segundo Danilo Streck (2006), a educação popular trouxe à tona um axioma para a gestão da educação, no mundo, „a de que a educação sozinha não transforma o mundo, mas que sem ela, também, não haverá transformação‟. A educação popular surgiu à margem da sociedade. E, muitas vezes, abertamente contrária à educação formal, que consistia em processos opressores que servem muito mais à exclusão do que à inclusão social. As lutas pela educação laica e pública passariam a caminhar de mãos dadas com a educação popular, a partir da “pedagogia libertária” de Freire. É quando fica nítida a relação entre as relações conflituosas do Estado com a sociedade civil, em que interessa a apenas alguns setores desta última um projeto de educação das classes populares. Propondo-se a expandir um método revolucionário, que alfabetizava em 40 horas e em que os cidadãos pudessem aprender a ler a escrita e „ler o mundo‟, a partir de conhecimentos prévios e experiências culturais do mundo do trabalho, o método de Freire ganhou vários adeptos em todo o mundo. No Brasil foi desenvolvido o Movimento de Educação de Base (MEB). Com o golpe militar de 1964, foi interrompido o processo de implantação da Pedagogia Libertária, em curso pelo governo de João Goulart (Jango), e setores estudantis e religiosos da sociedade civil. Por outro lado, foi a partir das pressões populares da sociedade civil que a ditadura militar foi perdendo forças e o processo de abertura política tornou-se inevitável. A década de 1980 foi considerada por vários teóricos economistas como sendo uma „década perdida‟, do ponto de vista da estagnação financeira do desenvolvimento. Mas foi percebida por outros teóricos, no campo da Sociologia, da História e da Pedagogia, como sendo a década que forjou, na luta por direitos civis, os novos sujeitos históricos que passariam a formar os chamados „novos movimentos sociais‟. Para Gohn (2002), os novos movimentos sociais constituem uma eclosão de movimentos específicos da sociedade civil, cobrando políticas e/ou questionando o esgotamento do modelo excludente do sistema capitalista. São exemplos desses movimentos: o movimento de mulheres; de luta por moradia; dos ambientalistas; o movimento negro; dos homossexuais, de um novo tipo de sindicalismo, que não está atrelado ao governo, como no período Getulista, e do Movimento dos Sem Terra, que se formou um pouco mais tarde, na década de 1990, entre tantos outros. Esses movimentos desenvolveram uma pedagogia popular, baseada na Educação Popular que, até então, estava associada apenas à educação de jovens e adultos. Melo Neto (1999, p. 55), em seus estudos, disse que a Educação Popular consiste em: [...] um sistema aberto de trabalho educativo, que é depositário de uma filosofia – expressão da atividade humana sobre as práticas educativas em desenvolvimento, defrontando-se com a totalidade do real. Esse sistema de trabalho ao qual se refere o autor encaminha a um campo específico onde o simbólico e o cultural constituem a EP. E “através do simbólico os grupos constroem suas identidades” (idem, ibidem, p.52 ). Construir identidade ou buscar sua identidade na educação popular é uma forma de educação que, presente nos diversos grupos e nos diversos âmbitos de organização social, constitui-se como célula geradora da ação do homem na busca permanente por espaços e reconhecimento de si como sujeito social. Torna-se importante, portanto, perceber na compreensão de Sales (1999, p.122), que a Educação Popular não é algo restrito a um grupo social: a educação popular não é um programa, nem uma entidade. É um modo e uma perspectiva de atuar em todas as práticas econômicas, políticas e culturais. Por isso parece impossível fazer uma apologia das milhões de práticas diferentes, diferenciadas e mutáveis que acontecem no mundo. Essa reflexão permite-nos perceber a abrangência e os diversos caminhos que a EP percorre. A discussão sobre a “crise de paradigmas” e prática educativa recaiu e recai constantemente sobre o „sujeito‟. Reforça a necessidade de construção de um projeto participativo emancipatório, fundamentado em objetivos de classes subalternas, que revelam o nível de envolvimento de suas formas de organização, como estratégias que permitam aos indivíduos desenvolver um pensamento crítico. Como observa Gadotti (1998, p.01) “a educação popular como prática e como teoria pedagógica pode ser encontrada em todos os continentes, manifestada em concepções e práticas muito diferentes e até antagônicas”. Deve primar pelos ideais e as concepções que definam a ação nas distintas dimensões e níveis do processo de organização popular, em suas relações políticas, ideológicas e culturais. A versatilidade da EP como prática e sua interiorização como processo apresentase, como observa Melo Neto (1999, p.53) “como um conjunto de elementos teóricos que fundamentam as ações educativas relacionadas entre si e ordenadas segundo princípios e experiências”. Sua força como processo teórico que fundamenta as ações reside na sua penetração, permitindo que em diversos lugares ela exista. De acordo com Calado (1996, p.02): antes ou mais do que uma modalidade de educação a EP se apresenta como uma perspectiva, uma metodologia, uma ferramenta de apreensão, compreensão, interpretação propositiva, de produção e reinvenção de novas relações sociais e humanas. Assim, não importa onde se dá a Educação Popular porque ela se faz onde estiverem atuando protagonistas de uma ação educativa comprometida e engajada em uma caminhada coletiva, numa comunidade, com características específicas. Desta forma, as necessidades e revoltas produzidas pelas desigualdades nas relações sociais geram um conjunto de práticas a partir dos procedimentos dos indivíduos. Quando os grupos não encontram meios para se organizarem e lutar em âmbito geral, eles partem para o específico e na busca de um espaço próprio, valorizando uma reivindicação específica, ou como diria Foucault, disputando o micro-poder. Como forma de mobilização, a Educação Popular coloca-se como meio estratégico para a consolidação da organização daqueles que se articulam no sentido de atingir seus objetivos. Essas estratégias educativas são fundamentais para garantir a coerência entre projeto político, processos organizativos e suas diferentes formas. À medida em que as classes compreendidas como populares se mobilizam, elas conseguem estabelecer um projeto sobre as aspirações e necessidades que lhes digam respeito; na maioria dos casos, para então transformá-las em bandeiras de luta. Isto porque a EP permite que os grupos envolvidos incorporem as aspirações mais significativas como base de seu projeto, visando despertar nos indivíduos um conhecimento das suas condições de vida, em especial, a partir da valorização da experiência: experiência de saberes. É isto que configura a essência da EP. Para Sales (1999), a Educação Popular é a história do sujeito que busca a afirmação de sua identidade e que luta pela sua organização: afirmações de identidade de classe, de gênero, etnia, ambientalistas etc. É dessa perspectiva que a Pedagogia percorreu um desafio, a partir de ideais libertários e almeja chegar a resultados que garantam a autonomia do sujeito. Vejamos o que diz Cambi (1999), sobre o nascimento da Pedagogia e sua ponte com o viés humanista e/ou social, que fundamentou a EP: com a modernidade nasce a pedagogia como ciência: como saber da formação humana que tende a controlar racionalmente as complexas (e inúmeras) variáveis que ativam esse processo. Mas nasce também uma pedagogia social que se reconhece como parte orgânica da sociedade em seu conjunto, na qual ela desempenha uma função insubstituível e cada vez mais central: formar o homem-cidadão e formar o produtor, chegando depois, pouco a pouco, até o dirigente. Como também nasce uma pedagogia antropológico-utópica que tende a desafiar a existente e a colocar tal desafio como o verdadeiro sentido do pensar e fazer pedagogia (como faz Comenius, como faz Rousseau) (CAMBI, 1999, p.199). E porque não dizer, como fez, também, Paulo Freire, com a redefinição da Educação emancipatória, em seu fazer Popular. Mas não basta parafrasear Cambi e dar um salto histórico para unir ideais pedagógicos de libertação. É preciso entender que, dentro das chamadas questões emergentes da educação, em especial da Educação Popular, também se encontram elementos da “crise de paradigmas”. Segundo Freire (1980, p.39): para o homem, o mundo é uma realidade objetiva, independente dele, possível de ser conhecida. É fundamental, contudo, partirmos de que o homem, ser de relações e não só de contatos, não apenas está no mundo, mas com o mundo. Está com o mundo resulta de sua abertura à realidade, que o faz ser o ente de relações que é. A partir dessa afirmação já confrontamos que a visão de mundo em Freire pode ir além da perspectiva conduzida pela razão instrumental, em que o homem, ou a ação humana, são concebidos como parte da realidade objetiva e não como um ser de relações e não só de contatos que conduz e não apenas está no mundo, mas está com o mundo. Para Paulo Freire, em Pedagogia da Autonomia (2008), toda a lógica de opressão caracteriza uma relação de exclusão do sujeito oprimido. Toda opressão é uma atitude de violência, que pode ser física ou psicológica, provocando medos, baixa auto-estima, ou até assassinatos e suicídios. Por outro lado, pode ser gerada uma reação de contra-ponto à situação “opressora”, desde que o sujeito oprimido seja capaz de “sentir-se suficientemente fortalecido” para revidar e se libertar dessa situação. Essas características de opressão podem ser de ordem individual e coletiva e, ainda, se apresentarem em caráter de classe, gênero, intolerância religiosa, étnica etc. Também nesse debate, Freire (1996) coloca que a Pedagogia da Autonomia não se dá sem uma ação/ práxis, sem a crítica e autocrítica e, ao mesmo tempo, sem uma educação como prática de liberdade, que supõe uma permanente ação cultural que é sempre dialógica. Aí está uma outra discussão que foi refletida da seguinte forma: a questão da coerência entre a opção proclamada e a prática é uma das exigências que educadores críticos se fazem a si mesmos. É que sabem muito bem que não é o discurso o que ajuíza a prática, mas a prática que ajuíza o discurso (FREIRE, 1996, p.05). Também é essa prática que orienta a formação que deve ser a partir de uma omnilateralidade, ou seja, de uma formação voltada para uma apreensão total do ser humano, de ordem racional e subjetiva. É necessário estabelecer o que é o saber e posteriormente, descobri-lo através do auto-conhecimento e das relações de trocas de experiências. A autonomia vai dialogar diretamente com a auto-estima e, ao mesmo tempo, com a práxis da superação da transformação da história como possibilidade. O próximo passo é saber que sabe, e depois exercitar o saber fazer e o saber fazer, fazendo. A História, como Possibilidade, nos remete a entender que cada povo tem sua história, que cada ser tem, igualmente, uma história e que ela pode abrir os caminhos das transformações, transformações estas na esfera da emancipação. Podemos afirmar que a maior organização que congrega sujeitos que experienciaram práticas de uma educação popular vem se reunindo no Fórum Social Mundial (FSM) para contestar o modelo de economia global excludente e, também, socializar saberes/experiências. Este Fórum já foi realizado nas cidades do Rio Grande do Sul e do Pará, ocorrendo paralelamente ao encontro dos representantes dos países mais ricos do mundo, que acontece todo ano em Davos/Suíça. O FSM não reivindica um novo formato de „ser‟ dos movimentos sociais na sociedade civil organizada, mas vem demonstrando outra lógica de experiência social, respaldando-se em fontes da Educação Popular. Para tanto, propõe-se a novas experiências de educação, como: a escola plural, a escola sem fronteiras, a escola cidadã (MST) e tantas outras, voltadas para outro tipo de cidadania e de sociedade. 2.3 O Velho e os Novos Movimentos Sociais (NMS) A compreensão dos Movimentos sociais está elucidada por Gohn (2002), que os definiu da seguinte forma: movimentos sociais são ações sociopolíticas construídas por atores sociais coletivos pertencentes a diferentes classes e camadas sociais, articuladas em certos cenários da conjuntura socioeconômica e política de um país, criando um campo político de força social na sociedade civil. As ações se estruturam a partir de repertórios criados sobre temas e problemas em conflitos, litígios e disputas vivenciados pelo grupo na sociedade. As ações desenvolvem um processo social e político-cultural que cria uma identidade coletiva para o movimento, a partir dos interesses em comum (GOHN, 2002, p.251). Os movimentos sociais tiveram como referência fundante a classe social29, depois foram se incorporando outros, como: gênero, etnia, meio-ambiente, orientação sexual etc., associados à idéia de movimento e mobilizações. O chamado velho movimento social ficou situado historicamente por representar ações coletivas relacionadas às conjunturas econômicas, especialmente as referentes às contradições do sistema capitalista. Em uma visão marxista, este sujeito histórico, que representa o que hoje entendemos por „velho movimento social‟ seria, em sua essência, o movimento operário organizado em sindicatos, no final do séc. XIX e início do séc. XX, por toda a Europa. Lenin (1979, p. 104) entendia esse movimento da seguinte forma: [...]a luta econômica como uma das partes integrantes da luta de classes do proletariado (...) que os sindicatos de base ampla, como indica a experiência de todos os países capitalistas, são a organização mais adequada da classe operária tendo em vista a luta econômica e a luta política. No entanto, o processo de industrialização no Brasil chegou atrasado, fruto do capitalismo tardio o que fez com que o sindicalismo operário tivesse condições ideológicas muito diferentes do sindicalismo russo, ou mesmo do inglês, italiano, francês etc. 29 Em abordagens marxistas e neo-marxistas, como as colocadas pela História Social e Cultural. Para Matos (2009), comprendermos a formação da classe trabalhadora através do movimento sindical - neste contexto do início do século XX – se faz necessário focalizar uma fase de „levantes‟ que surgiram na região sudeste. Considerada, como marco inicial, tivemos o „levante dos padeiros‟ em Santos, no ano de 1876, organizado por João Mattos, que visava abolir os maus tratos a que eram cometidos os padeiros, pelos donos das padarias, além disso, se configuraram com um caráter abolicionista que passou a repercutir na grande São Paulo. Já no início do século XX, vários trabalhadores passaram a se organizar em associações, a exemplo, dos portuários, que se associaram na „União de estivadores‟, e na „Sociedade de Resistência dos Trapiches‟ fundadas em 1905. Matos (2009) chama ainda a atenção para a presença de trabalhadores negros nestas organizações que eram maioria na primeira greve que se tem notícia - a greve dos portuários do Rio de Janeiro - tendo sido registrado no jornal Correio da Manhã, em matéria do dia 14/10/1906. Desde então, que a presença de ex-escravos e de imigrantes europeus com ideias anarco-sindicalistas iniciaram um sindicalismo combatente (tipográfos e operários de setores diversificados), que só veio a ser disputado por uma força política partidária em 1922, quando da hegemonia do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Igualmente, Aragão (2007), aponta que o sindicalismo brasileiro, ao incorporar parte da mão de obra imigrante européia, com suas crenças e ideologias liberais, socialistas ou anarquistas, juntamente com os ex-escravos brasileiros de anseios libertários veio a se consolidar no período getulista, como uma estrutura plural, mas de cunho reivindicativo classista. Porém, esse sindicalismo classista ao ser consolidado enquanto movimento legalizado, no período getulista foi engolido pela ditadura do Estado Novo. Isto porque a legalização dos sindicatos foi baseada na „Carta Del Lavoro‟ de origem fascista, que orientava, através da intervenção do Estado, uma concepção de „harmonia social‟, estabelecendo as relações entre o capital e o trabalho. Se, por um lado, o Estado Novo garantiu vários direitos trabalhistas, até então não reconhecidos, por outro, o movimento sindical da época estava „engessado‟e não questionava o governo para o avanço de outras garantias sociais, que um Estado democrático possibilitaria. Além disto, vários sindicatos à época realizaram acordos com o governo getulista, ficando conhecidos como adeptos do sindicalismo pelêgo. Evidentemente que algumas correntes sindicais não corroboravam com a política de colaboração proposta pelos ideais fascistas adotados no Estado Novo, a exemplo do movimento anarco-sindical e de algumas correntes marxistas, mas essas correntes, principalmente as últimas, não tinham a direção do movimento, nesse período. Apesar da importância da resistência do sindicalismo classista (anarco-sindicalista, comunista e trotskista) ao sindicalismo coorporativista getulista, só no período democrático (1945-1964), é que a pluralidade sindicalista de forma oficial pode reestruturar-se. No entanto, com a ditadura militar, os avanços na organização sindical foram duramente reprimidos, mesmo assim, vale a pena registrar a tentativa de uma reorganização com as greves de Contagem e Osasco, no setor automobilístico. Desde então, que esta „quebra‟ do movimento sindical organizado passou a dá espaço para um sindicalismo assistencialista, apoiado por setores da Igreja Católica e pela ditadura militar, sendo visível a sua estruturação na zona rural brasileira (MATOS, 2003). A ruptura com essa estrutrura do „sindicalismo oficial‟ para um sindicalismo de lutas só veio a se consolidar no Brasil com as greves que eclodiram no ano de 1978, pelos metalúrgicos do ABC paulista. Segundo Antunes (1984;1991) este movimento foi complementado com outros movimentos grevistas urbanos e rurais: professores, médicos e com destaque para as greves dos canavieiros do nordeste. Daí o caráter político dessas greves, que se configuram em uma nova terminologia sociológica, passando a ser entendidas como expressões do novo sindicalismo, por ser um sindicalismo autonômo e de massas. Para Melucci (2001, p.29) quando abordamos os movimentos sociais estamos nos referindo “a um fenômeno coletivo que se apresenta com uma certa unidade externa, mas que, no seu interior, contém significados, formas de ação, modos de organização muito diferenciados”. Melucci ainda afirma que a ação coletiva não é o resultado de forças naturais ou de leis necessárias da história, nem de outro lado, simplesmente do produto das simbologias. É, também, necessário entender a história social, pela ótica de suas mudanças de cenários políticos e destacar o papel dos atores coletivos, em cada contexto. Sendo assim, entendo que as mudanças sociais, políticas e econômicas ocorridas no século XX foram enfatizadas em um conjunto temporal denominado, pelo historiador Hobsbawm, como a Era dos Extremos, abrangendo desde o início da Primeira Guerra (1914) até a desagregação da União Soviética (1989) e o esgotamento de possibilidades de desenvolvimento do chamado Terceiro Mundo – países dependentes econômica e politicamente da égide norte-americana. Esse autor analisa esse contexto temporal focalizando a principal característica histórica social do séc. XX, que foi a sua capacidade de polarização entre dois sistemas políticos em curso, capitalismo e socialismo, suas possibilidades e limites reais. A disputa pela hegemonia política produzida em ordem global remetia, a um só momento, a ofensivas e contra-ofensivas, suscitando, de tal modo, vários desdobramentos: duas guerras mundiais, fascismo, nazismo, socialismo, EUA X Rússia, Cuba, Vietnã; Irã X Iraque; descolonizações (Angola, Moçambique, Guiné-Bissau); ditaduras (América Latina); Teologia da Libertação; Maio de 68, black peoples, movimento hippie, sindicalismo, ecologismo e feminismo etc. O historiador inglês levou em consideração o que se convencionou chamar, no fim do séc. XX, de fim da história, dado o fato de que um dos pólos em disputa de hegemonia – o capitalismo – havia se apresentado como vitorioso. Assim, não existiriam mais formas de resistências, ou, ao menos, o pólo derrotado não ofereceria mais resistência. As matrizes ideológicas do capitalismo, sobretudo o neoliberalismo, conduziriam a história da humanidade como a única verdade possível. E o que, então, mudaria essa lógica tão absurda do pensamento único? No entanto, a experiência humana evocava outra condução histórica: a organização popular através dos chamados movimentos sociais, que continuam ocupando a cena e conseguem reafirmar que acompanham a humanidade por onde quer que ela ande! Os sujeitos sociais organizados em grupos refletem o desinteresse do Estado para com eles, fazendo com que o desemprego, o preconceito, a falta de moradia, de direito à terra, e o descaso com o meio ambiente, a educação, a saúde, as mulheres, os povos indígenas, os afro-descendentes, as crianças, os idosos e os portadores de necessidades especiais constituam os fios que configuram na sociedade espaços para conseguirem o que é seu por direito e que foi negado durante muito tempo. É na incapacidade de esse sistema econômico social e político atender às necessidades da sociedade civil que este produz, que nesta se reproduzem cada vez mais conflitos. Por conseguinte, os grupos sociais lutam, e se constroem historicamente, eles traçam objetivos - ações coletivas-, organizam-se - elaboram um projeto - e disputam poder - acumulam forças (SCHERER-WARREN & KRISCHKE, 1987). Esse projeto organizado disputa forças hegemônicas numa perspectiva de enfrentamento direto com o Estado, seja em suas bases de sustentação (estruturas), ou, ainda, nas reações do caldo cultural cotidiano constituinte do capitalismo – o patriarcado, o racismo, o consumismo e o xenofobismo, que combatem a desigualdade, a discriminação, o preconceito e a intolerância. Assim, na medida em que cada movimento social acumula ou perde força, no sentido de sua própria organização interna, e observa suas fronteiras e possibilidades de avançar em seu projeto, reflete-se, também, como a memória coletiva, a partir das lembranças de outros sujeitos que tombaram na luta, podendo fornecer novos elementos: táticas, formas de articulações, de solidariedade e fontes de aprendizagem relativas ao avanço da organização. Para alguns movimentos, trata-se de constituir ou reconstituir a sua própria história e tirar dela as melhores lições, no campo de uma educação que se proponha uma perspectiva popular. Ou, quem sabe, uma busca de espelhos que sirvam para projetar a luta de antes e seu reflexo hoje, possibilitando enxergar outros sujeitos históricos e a si mesmos/as, cruzando as dimensões entre o individual e o coletivo diante das transformações na sociedade atual. Entende-se, ainda, que diferentes representações sociais emergiram quando entraram em cena os chamados “novos” movimentos sociais, que surgiram na década de 1960 e se firmaram nos anos 1990. surgiram de novas modalidades de movimentos sociais – como o dos direitos civis nos Estados Unidos, ainda nos anos 1960; os das mulheres, pela paz, contra a guerra do Vietnã etc. – contribuiu para que novos olhares fossem lançados sobre a problemática (GOHN, 2002, p.331). São exemplos, no Brasil, o novo sindicalismo, o novo feminismo, e o movimento estudantil, que renovaram seus projetos, as estruturas, e as táticas e possibilitaram que novos sujeitos sociais entrassem em cena. Para o sociólogo Giddens30 (1991), os NMS são uma das características da sociedade atual, que propicia novas agendas políticas enfrentando o declínio do modelo ocidental, em termos de representação política. Ele compreende que “as civilizações têm 30 Anthony Giddens se insere no rol dos autores que interpretam os movimentos sociais em uma análise social pós-estruturalista e ideologicamente defende às suas ações em sintonia com as políticas de Estado, formando uma „terceira via‟ como contraponto aos modelos capitalistas e socialistas, que em sua tese estariam esgotados. Porém, ele postula essa „terceira via‟ com fundamentos que não são oposição ao sistema capitalista, mas sim um conjunto de reformas por dentro desse sistema, sem considerar alterações na concepção do lucro, por exemplo. seus períodos de juventude, maturidade e velhice e conforme elas são substituídas por outras, a distribuição regional de poderes globais se altera”. (GIDDENS, 1991, p. 50). Já para a minha concepção, embasada em Ferreira (2006), essa análise de Giddens é insuficiente para pensarmos a essência desses movimentos, pois o que caracteriza o „novo‟ não é simplesmente o esgotamento de um modelo econômico-cultural, mas a sua capacidade de (re) criar estes movimentos, com novos projetos e pautas sociais, que possam dar um sentido histórico que não foi resolvido, ainda, pelos velhos movimentos sociais. Exemplificamos-nos da seguinte forma: O novo sindicalismo que surge no final da década de 1970, com as greves do ABC paulista, combatendo o velho sindicalismo que nasceu em 1930 com o governo populista de Getúlio Vargas e torna-se atrelado ao Estado, ficando também conhecidos como sindicatos pelegos. O novo feminismo, da década de 1960, consiste na chamada segunda onda do movimento feminista que, diferentemente do feminismo que vigorou na primeira onda em 1930, de preponderância anticontestatória, torna-se reivindicativo, transgressor e rebelde contra a moral patriarcal. O movimento estudantil, pioneiro nesse contexto, refunda a UNE e atua na resistência à ditadura, inclusive através da via armada, possibilita forte expressão de massa na luta pela Anistia no Brasil e na América Latina, criando os Centros Populares de Cultura (CPCs). (FERREIRA, 2006, p. 48). Vale salientar, na mesma direção, outros movimentos populares que surgiram ou se consolidaram no mesmo contexto, como: da moradia, dos (as) negro (as), dos sem-tetos, dos homossexuais e ecológicos, entre outros. Vários desses movimentos tiveram como pauta comum a luta pela redemocratização, simbolizada no movimento pelas Diretas - Já, na década de 1980, o Fora Collor, na década de 1990 e, mais recentemente, a construção do Fórum Social Mundial (FSM), como pólo aglutinador de tais movimentos. A consolidação do capitalismo ocorreu concomitantemente à luta operária, na qual os operários tornam-se protagonistas no enfrentamento de tal sistema, como já frisei anteriormente. Como debate mais atual, Touraine31 (1994, p.120) coloca que o grande desafio, na atualidade, dos Novos Movimentos Sociais consiste em dar respostas à lacuna que o “movimento operário de massa deixou quando deixou de ser um movimento social para tornar-se uma força política e até mesmo incorporar-se ao poder de Estado”, e lança 31 Segundo Vilaça (2009), Alain Touraine passou a ser um dos autores mais lidos sobre os movimentos sociais, nas comunidades acadêmicas. Para ele, os movimentos sociais são uma opção central da sociologia e não apenas uma sociologia da ação. Ele considera e atribui uma responsabilidade quase exclusiva aos movimentos sociais no que diz respeito ao que se opera na sociedade, pois vê os movimentos sociais como atores principais da mudança social. um desafio: saber quais movimentos sociais poderiam ocupar o vácuo do movimento sindical de massa. Essa crítica de Touraine parece atingir, de fato, um debate recente que ocupa dois espaços: um, nos movimentos sociais e, outro, nos partidos políticos, em especial nos partidos de esquerda. Nele, estão intrínsecas outras nuances, como a crítica à burocracia sindical e partidária e a seguinte questão: até que ponto os mesmos sujeitos sociais que atuam em dupla militância, sindicato e partido, por exemplo, ao chegarem na esfera do poder estatal, se incorporam como correia de transmissão, ou dela se mantêm distanciados? Dentro dos movimentos sociais, percebe-se que, além das crises que vêm sistematicamente ocorrendo, desde 1989 até os dias atuais, após o marco da queda do muro de Berlim, em alguns deles, há uma lacuna no tocante à formação política, nos moldes de uma educação/formação continuada, como uma das formas privilegiadas para poder melhor entender a análise de conjuntura, a organização interna e, principalmente, atender à renovação de quadros militantes. Os pontos de discussão sobre as táticas que dizem respeito às direções dos movimentos permanecem conflitantes, mesmo porque, em seu percurso histórico, tais movimentos disputam hegemonia de forma externa e, também, interna. Para esses, tomar partido significa ir além do sentido partidário, enquanto aparelho político, e sim tomar uma posição política quando houver necessidade, significa uma disputa explícita, mas dialeticamente, oportuniza uma atitude de empoderamento32. Portanto, a busca deste empoderamento configura os espaços militantes, no campo partidário e no dos movimentos sociais. Evidencia-se, sobremaneira, nos espaços do movimento das mulheres, com maior alargamento no setor urbano, mas já demonstra visibilidade no movimento das camponesas. Acredito que, a partir da contribuição de uma análise sócio-histórica de uma de suas lideranças, Margarida Maria Alves, que teve atuação na luta pela terra e no movimento de mulheres, esse empoderamento pode ser melhor compreendido através de sua experiência no fazer político, inclusive da sua transição de um tipo de sindicalismo harmônico para um sindicalismo classista. 32 Empoderamento significa em geral a ação coletiva desenvolvida pelos indivíduos quando participam de espaços privilegiados de decisões, de consciência social dos direitos sociais. Essa consciência ultrapassa a tomada de iniciativa individual de conhecimento e superação de uma situação particular (realidade) em que se encontra, até atingir a compreensão de teias complexas de relações sociais que informam contextos econômicos e políticos mais abrangentes. O empoderamento possibilita tanto a aquisição da emancipação individual, quanto a consciência coletiva necessária para a superação da “dependência social e dominação política”. (PEREIRA, 2006, p.1) Foi com o movimento feminista que as campesinas buscaram e buscam entender a sua realidade de opressões, já percebida no âmbito do trabalho e na esfera da vida privada. Tiveram cursos de formação feminista em suas organizações internas e contatos diretos com várias feministas, desde as primeiras organizações das mulheres campesinas, ainda na década de 1970. Desde agosto de 2000, as camponesas organizam a Marcha das Margaridas, contra a fome, a pobreza e a violência sexista, reavivando permanentemente a memória de Margarida. Segundo as lideranças camponesas, a partir do acúmulo de suas reflexões, dois fatores sociais, além da pobreza, marcam essencialmente a vida das mulheres no campo: a violência e a sua exclusão da educação. Assim: sobre a violência, ocorre a violência que o próprio latifúndio impõe aos trabalhadores (as) rurais; a violência do trabalho escravo e infantil; a violência doméstica (familiar). E a exclusão educacional das mulheres rurais, que desde a década de 60 até os dias atuais é bem maior, entre nós, do que em relação aos homens.O que no setor urbano, hoje é diferente, as mulheres já terem conquistado seu espaço de direito aos estudos e nele permanecido. FONTE: (E-1) – Membro da Comissão de Mulheres da CONTAG, João Pessoa, em 13/07/2004. Ainda na década de 1980, as mulheres organizaram grupos de maior visibilidade, a exemplo de Comissões de Mulheres, nos sindicatos e partidos, e passaram a refletir e desenvolver políticas públicas, como creches e delegacias da mulher, cobrando, dos poderes instituídos, as condições mínimas de dignidade do ser humano. São vozes que se levantam para a incorporação da perspectiva de eqüidade de gênero, que hoje, tanto o movimento dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais (STRs) quanto do Movimento dos Trabalhadores Sem Terras (MST), percebem que é fundamental. Trata-se de “destacar a luta das mulheres em seus espaços de atuação, tanto no âmbito da propriedade, cuidando da terra e de animais, como fora dela, vendendo nas feiras livres as mercadorias por elas produzidas” (FIÚZA, 2001, p.99). E, indo além, podendo reivindicar não apenas o espaço de sobrevivência, mas o direito à reprodução e às condições de controle de natalidade, sem afetar a saúde. Além disto, o direito ao seu corpo, à sua opção sexual, à sua participação nos espaços públicos. Isto é possível mesmo que nem todas as mulheres organizadas em movimentos sociais sejam feministas. É o feminismo que se configura como referência dos movimentos sociais de mulheres. 2.3.1 O Velho e o Novo Sindicalismo Rural A organização sindical dos trabalhadores e trabalhadoras rurais, no Brasil, dá o seu primeiro passo ainda em 1938, com a fundação do primeiro sindicato em Campos, no Rio de Janeiro. Segundo documentos da Confederação dos Trabalhadores da Agricultura (CONTAG), na década de 1950, já existiam quase 48 sindicatos de trabalhadores rurais, dos quais apenas oito eram reconhecidos pelo Ministério do Trabalho - dados registrados nos Anais do 1º Congresso Nacional dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, realizado em Belo Horizonte, no ano de 1961: estes sindicatos atuavam na defesa dos direitos trabalhistas, voltados, principalmente, para os assalariados e assalariadas rurais. Além dos sindicatos, existiam, também, associações de "pequenos agricultores", que desenvolviam ações voltadas para os interesses dos arrendatários, parceiros, meeiros, posseiros e pequenos proprietários. (FERREIRA, 2006, p. 52). A luta pela posse da terra e por melhores condições de vida e de trabalho, naquele período, motivou a organização e participação dos camponeses em movimentos sociais rurais, como as Ligas Camponesas, no Nordeste, o Movimento dos Agricultores Sem Terra (MASTER), na Região Sul, e a União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTAB). As Ligas Camponesas constituíam-se na expressão mais forte da organização dos trabalhadores rurais do Nordeste. Surgiram em Pernambuco, no Engenho Galiléia, em 1954, mas tiveram sua maior base de sustentação através da Liga Camponesa de Sapé-PB, dirigida por João Pedro Teixeira, que foi barbaramente assassinado, pelos latifundiários, ligados ao também conhecido Grupo da Várzea, na Paraíba. Tendo permanecido como dirigente da Liga de Sapé a camponesa Elizabeth Teixeira, viúva de João Pedro. O principal objetivo das Ligas Camponesas era a luta pela reforma agrária. Construíram o seu programa de lutas combatendo as violências físicas e fiscais dos latifundiários, que cobravam o foro, através do Cambão 33, um imposto que deveria ser prestado com força de trabalho e configurava-se em mais uma super-exploração da relação capital-trabalho, na zona rural. As Ligas Camponesas possuíam uma orientação política vinculada ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e tinham na figura do advogado Francisco Julião um expoente de sustentação jurídica e política. Para Abreu & Lima (2009, p.06), as Ligas Camponesas: [...] falavam em reforma agrária “na lei ou na marra”, bem como na importância da Revolução Cubana. Parte de seus militantes passaram a propor a organização de uma guerrilha, cujo campo de treinamento foi desbaratado pelos militares, em Goiás. Alguns sindicatos ligados à esquerda, mesmo que desenvolvendo uma atuação política legalista, referiam-se ao socialismo e ao comunismo como metas, e colocavam a necessidade de uma ação política maior. As Ligas Camponesas passaram a ser vistas como o principal inimigo dos latifundiários, nas décadas de 1950 e 1960. Lemos (1996, p. 25) diz, que em 12 de julho de 1962, o „Jornal do Brasil‟, veiculava matéria em que situava as Ligas Camponesas como o inimigo da nação. Os latifundiários que quiserem recuperar o tempo perdido, uma das primeiras providências é procurar, no mercado do nordeste, os mais famosos jagunços para ajudá-los na tarefa de destruir as Ligas, constando em seus planos todo e qualquer tipo de ameaças, desde a eliminação pura e simples, e se necessária, dos principais articuladores. Lemos (1996) adianta, ainda, que em notícia veiculada no jornal O Momento, que vigorou entre as décadas de 1960-1980, o escritor Antônio Callado lembrava: „nesses incultos ducados nordestinos crescem a cana e o algodão que assalariados e foreiros plantam, mas estão crescendo também plantas daninhas ao latifúndio, como as Ligas Camponesas” (LEMOS, 1996, p. 21). Mas, na contramão da representação social do que os latifundiários queriam colocar, vários camponeses percebiam, nas Ligas, uma mensagem de esperança, em um mundo tão „castigado‟ pelo abandono do trabalhador rural. Pereira (2009), admite uma essência única de classe social da qual as Ligas seriam herdeiras de vários movimentos históricos, como: Canudos, Contestado, entre outros. Tal essência se traduz na busca da 33 O Cambão significava a obrigação que tinha o morador de dar dias de trabalho gratuito, sendo uma mão de obra familiar, em que entravam o chefe de família, a mulher, os filhos, o irmão, o cunhado etc. (GORENDER, 1999). condição de vida mais humana, porém tirando o seu sustento da „terra prometida‟. Na Paraíba, as Ligas se fortaleceram a tal ponto que tiveram uma enorme abrangência: As Ligas se espalharam pelo litoral, pela Várzea, pelo Brejo e pelo agreste da Paraíba, sendo organizadas em vários municípios: Sapé, Alhandra, Areia, Mamanguape, Rio Tinto, Guarabira, Mari, Itabaiana, Alagoa Grande, Oitizeiro, Espírito Santo, Mulungu, Alagoinha, Belém, Caiçara e Pedras de Fogo, Campina Grande e Santa Rita. No dia 22 de novembro de 1961 foi criada a Federação dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas de João Pessoa, conhecida como a Federação das Ligas Camponesas, constituída por 18 Ligas, tendo como presidente, Francisco de Assis Lemos e como vice, João Pedro Teixeira. (PEREIRA, 2009, p. 103) Por outro lado, vale ressaltar que, no início da década de 1960, o número de sindicatos no meio rural deu um salto, sendo a Igreja Católica sua maior incentivadora. O papel da Igreja constituía em entrar numa disputa pelo domínio das bases rurais, “usando para isso de todo o seu poder de intervenção junto ao trabalhador rural”. Essa constatação de CRUZ (1982, p. 81), pode ser melhor entendida, através da fala de um agente pastoral, que atuou no sindicalismo rural na década de 1960, no Rio Grande do Norte: [...] a posição da Igreja era uma posição assim, conservadora demais. E não admitia o avanço do Partido Comunista, naquela época (...)a posição da Igreja era uma posição conservadora e, às vezes, até radical, dependendo da própria direção da Igreja. Aqui no Rio Grande do Norte, D. Eugênio; no Brasil, D. Jaime Câmara do Rio de Janeiro. D. Eugênio, aqui, no RN, orientava que o partido comunista não podia avançar tanto (...) ele achou que devia mudar isso criando outros sindicatos, outras associações no campo (CRUZ, 1982, p. 81). Já na Paraíba, a mudança constante de arcebispos significava um constante retrocesso, porque em sua maioria partiam de uma mentalidade „anti-comunista‟, igual à de D. Eugênio, no RN, e, portanto, de combate às Ligas Camponesas. Lemos (1996, p. 95) argumenta que “a Igreja Católica, no Brasil, durante quatro séculos, era apoiada, no interior, pelos donos de terra e fazia de conta não ver a pobreza e a injustiça social, movimentou-se para neutralizar as Ligas Camponesas”. Não obstante, a religião católica predominava entre os camponeses, mas o número de protestantes começava a aumentar, o que preocupava bastante à Igreja. No período de 21 a 26 de maio de 1956, houve um encontro dos Bispos do Nordeste, em Campina Grande-PB. A sua promoção deveu-se à confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e foi presidida pelo então Arcebispo-auxiliar do Brasil, D. Hélder Câmara, tendo contado com a presença do Presidente Juscelino Kubitscheck (...). A CNBB produziu três documentos sobre a questão agrária: a Igreja e a reforma agrária; A Igreja e a situação do meio rural brasileiro e a Mensagem da Comissão Central, publicadas respectivamente em 1954, 1961 e 1963. Com esse evento (1956) e a produção teológica dos documentos, a partir de 1963 começam a ficar mais claras duas visões diferenciadas no seio da Igreja: de um lado, um bloco liderado por D. Hélder Câmara, em uma linha próxima dos ideias que seriam configurados, pouco mais tarde, pela Teologia da Libertação34, e por outro, D. Jaime Câmara, direcionando, ainda, uma parceria cautelosa no trato com os usineiros e de embate com os comunistas. Mesmo porque, a Igreja Católica atuava no movimento sindical rural brasileiro de forma conservadora para combater as Ligas Camponesas e os comunistas e, além disso, deu apoio ao Golpe Militar de 1964. A tendência de proximidade entre Igreja Católica e setores camponeses, na Paraíba, ficou mais sólida após a chegada à essa arquidiocesse de D. José Maria Pires35, em 1966, conhecido como D. Pelé. Quando adepto da Teologia da Libertação - no pós 1968 passou a corroborar com uma identidade camponesa, auxiliando organizações e militantes de esquerda no combate aos usineiros. A partir daí é que o sentido de uma parceria entre (ex) representantes das Ligas Camponesas e do sindicalismo rural orientado pela Igreja Católica fortaleceu o sindicalismo rural mais radical. Mesmo assim, a opção de D. Pelé era clara no apoio das organizações do sindicalismo rural e, não, no sentido de se ter uma volta das Ligas Camponesas. A exclusão da categoria trabalhadora rural, fortemente marcada pela fome, miséria e violência, motivou a realização de algumas lutas unificadas entre várias organizações de trabalhadores. O maior exemplo ocorreu em 1963, no Estado de Pernambuco, quando a Federação dos Trabalhadores Rurais - PE (FETAPE), as Ligas Camponesas e alguns sindicatos rurais organizaram uma das maiores greves do setor canavieiro. 34 A Teologia da Libertação tem como referência as posições do Concílio Vaticano II, mas só vai ter uma influência prática na América Latina a partir do Encontro de Medellín, na Colômbia, em 1968, onde a Igreja Católica faz a opção pelos pobres. 35 D. José Maria Pires era negro, filho de pais pobres e veio de Minas Gerais, em março de 1966, transferido da Diocese de Araçuaí, no norte daquele estado, num tempo muito especial. Havia terminado há pouco o Concílio Vaticano II, que introduziu profundas mudanças na Igreja Católica. Dom José participou ativamente daquele Concílio e era, portanto, um dos responsáveis pela nova Igreja que então surgia. (Dom Helder Câmara - O SANTO REBELDE, 2004). Neste sentido, essa construção real que já incitava um sindicalismo rural autônomo – não peleguista - começou a consolidar um novo sindicalismo antes mesmo do sindicalismo urbano. Há, porém, de se entender que quem estava na vanguarda dessas greves eram as Ligas Camponesas, e portanto, alguns sindicatos não se aproximavam da Ligas, mas outros sindicatos rurais de todo o Nordeste, não somente se aproximavam como passaram a assumir esse caráter classista, que as Ligas Camponesas já admitiam. No início da década de 1960, segundo Prado Jr (1996, p.46), o Brasil é marcado por um período de grande efervescência política, o povo brasileiro clamava por um modelo de desenvolvimento independente do capital estrangeiro, por uma reforma agrária radical e por liberdades políticas. Nesse clima de efervescência, em novembro de 1961, foi realizado o I Congresso Nacional dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, conhecido como o Congresso de Belo Horizonte. O tema central deste congresso foi a reforma agrária, que interessava aos trabalhadores (as) rurais e à sociedade brasileira como um todo, e o direito de organização sindical da categoria. Embora o sindicalismo rural elegesse como tarefa prioritária a sua organização, a corrente ideológica nacionalista estava impregnada em várias facções e grupos. Portanto, segundo o citado autor, os trabalhadores rurais deveriam aliar-se à burguesia industrial contra interesses estrangeiros e feudais, pois, com a reforma agrária, se aceleraria o ritmo da industrialização. Assim, estava em disputa de hegemonia não apenas o caráter da organização, mas a concepção de alteração na correlação de forças do país. Cerca de 1.400 delegados, articulados pela ULTAB, pelas Ligas Camponesas e pelo MASTER, aprovaram moções que reivindicavam mudanças estruturais, apontando para a construção de um novo modelo de desenvolvimento para o Brasil, tomando por base a realização de uma reforma radical que assegurasse aos trabalhadores rurais uma posição melhor na hierarquia social e a construção de uma sociedade justa e igualitária. Reivindicavam, ainda, o direito de organização dos trabalhadores rurais e a desapropriação por interesse social, mediante indenização dos trabalhadores rurais ou mediante indenização em títulos públicos. A importância desse congresso deve-se, principalmente, ao caráter aglutinador de organizações rurais e urbanas de trabalhadores e trabalhadoras, contando, inclusive, com a presença do presidente João Goulart, no encerramento dos trabalhos. Em março de 1963, o presidente da República, João Goulart, lança a Lei nº 4.214, conhecida como o Estatuto do Trabalhador Rural, estendendo aos trabalhadores (as) rurais os direitos sindicais e previdenciários garantidos aos trabalhadores e trabalhadoras urbanos. Mas, para a sua implementação efetiva, a luta ainda se daria até os dias atuais. A ofensiva para desestruturar os sindicatos rurais, após o golpe militar de 1964, contou, também, com serviços de inteligência norte-americana que passaram a pensar estratégias de cooptação das lideranças rurais, ao invés dos métodos violentos impretados pelos latifundiários, que contratavam jagunços para simplesmente eliminar os líderes dos movimentos. Retomava-se, portanto, uma concepção fascista sindical, que já havia dado certo no sindicalismo urbano durante o Estado Novo, no período getulista. O serviço de inteligência americano contruiu uma política conhecida como „política de apoio ao sindicalismo responsável‟, através do Instituto Americano para o Desenvolvimento do Sindicalismo Livre (IADESIL). O IADESIL passou a promover cursos para sindicalistas no Brasil, em Washington (USA), com o intuito de propiciar técnicas „acordos lúcidos‟ e, ao mesmo tempo, que esse tipo de sindicalista passasse a servir de espião daqueles que estavam contra o regime militar e a ordem cristã. Na época, a Revista Veja chegou a publicar matéria sobre os cursos do IADESIL; destamos a seguinte transcrição: O atual presidente da Federação dos empregados no Comércio e Hoteleiros de São Paulo, José Ferreira Neves, esteve nos Estados Unidos entre agosto e outubro do ano passado, para fazer novamente o curso. „Antes, em 1961, a gente via nesses cursos, conteúdos como cooperativismos, contratos coletivos e legislação, mas agora nós nem visitamos os sindicatos e vimos apenas lições sobre as multinacionais e sua importância na economia. Ensinaram, que embora prejudiciais elas são importantes porque empregam trabalhadores‟[...] (REVISTA VEJA. SEMPRE A CIA: um curso muito especial para sindicalistas, 1979). É nítida a abordagem direcionada do IADESIL para formar um padrão sindical voltado para assumir pactos relacionados à harmonia da relação capital-trabalho. Desta forma, a estratégia era a de cooptar quadros políticos esvaziando o sindicalismo voltado para as lutas de classes. Era, portanto, possível combater os movimentos sociais com essa tendência de cooptação. Outras políticas que tinham o mesmo objetivo foram sendo consolidadas em outros setores sociais, a exemplo do acordo MEC-USAID36 que, neste caso, ensejou uma dispersão no movimento estudantil. 2.3.2 Os NMS no Movimento de Mulheres: feministas e não-feministas Ser um homem público é a honra, Enquanto ser uma mulher pública é a vergonha! Para as mulheres, o privado é seu coração, a casa. Para os homens, o público e a política, seu santuário. Michele Perrot (1998). ************** É possível existir uma mulher feminista feminina? E, existindo, como ela é? Doce como açúcar, Ou braba que nem um jumento? (Fala de um sindicalista do meio urbano, dentro do STR de Alagoa Grande-PB, em 12 /08/1994). Entendo que toda a articulação da organização das mulheres camponesas na Paraíba, em sua pluralidade de experiências políticas, perpassou as mais variadas organizações campesinas já citadas até aqui: Ligas Camponesas, sindicatos rurais, comissões de centrais sindicais e partidárias, entre outras. Entretanto, as mulheres camponesas definiram uma práxis feminina, por vezes autônoma, dentro dessas entidades, até porque muitas mulheres foram influenciadas pelo movimento feminista. Outras mulheres não concordaram com tal orientação feminista mas, ainda assim, em vários momentos, estabeleceram laços de posicionamento político comum, combatendo a preeminência do „cabra-macho‟ nesses espaços, que se configurava em uma espécie de hegemonia da „razão masculina‟. Neste sentido, considero que a identidade social da mulher, durante séculos, foi construída através de um “modelo” que a sociedade lhe atribuiu de “vida doméstica”, que 36 O Acordo MEC-USAID também foi pensado pelo serviço secreto de inteligência da CIA – ratificado secretamente em 1967 - para implantar a reforma universitária, que corresponde ao espírito da ditadura, privatizando as universidades públicas e dissolvendo as organizações estudantis (WIKIPEDIA, 2009). consolidou as diferentes funções biológicas entre os sexos em desigualdades sociais, conferindo-lhe, historicamente, a exclusão de desempenhar funções no mundo público. É-nos recorrente que, em pleno século XXI, mesmo garantidos direitos e espaços, ainda se perpetuam altos índices de violência e morte provocados principalmente por cônjuges, namorados e por homens próximos da convivência social das mulheres; que enfrentam também dificuldades estruturais de conciliar estudos, família e trabalho portanto, três jornadas de trabalho - e, mesmo quando capacitadas e inseridas igualmente nos espaços de poder, não conseguem ainda efetivar uma mudança cultural e política que de fato as legitime como autônomas e habituadas ao mundo público. Sobretudo hoje, temos mulheres em todos os domínios do campo social, econômico e cultural, mas, como nos diz Perrot (1998), as mulheres, apesar de conquistarem igualmente direitos civis, à instrução, à condição de assalariadas etc. têm bastante dificuldade em chegar aos comandos da cidade, tanto econômico quanto político, dada a predominância do domínio masculino no mundo. O movimento feminista, como ação organizada, contribuiu para mudar a situação da mulher na sociedade, tentando eliminar as discriminações a que ela está sujeita. Surgiu justamente da luta por uma educação voltada para o público e não para o privado (doméstico), com maiores oportunidades de acesso, ampliação do mercado de trabalho, salários e direitos trabalhistas iguais aos dos homens e maior proteção à maternidade. Faz-se necessário, então, promover uma breve discussão sobre o (s) movimento (s) feminista (s) e o movimento de mulheres, para o entendimento de um conjunto de práticas sociais, absorvidas ou questionadas por sujeitos sociais, que refletem acerca das relações de gênero. Entende-se que o conceito de gênero se desvencilha da centralidade conceitual do patriarcalismo, justificado pelo fato de o estudo das relações de gênero considerar outras nuances e novos focos de debates e de reflexão teórica, compreendendo o estudo das relações de gênero como parte de um conjunto complexo das relações sociais. Nesta discussão, porém, serão tratadas as relações de desigualdades de gênero, considerando o aporte de Scott (1992), na intenção de contribuir com a história das mulheres: a emergência da História das mulheres como um campo de estudo acompanhou as campanhas feministas para a melhoria das condições profissionais e envolveu a expansão dos limites da história. Mas esta não foi uma operação direta ou linear, não foi simplesmente uma questão de adicionar algo que estava anteriormente faltando. Em vez disso, há uma incômoda ambigüidade inerente ao projeto da história das mulheres, pois ela é ao mesmo tempo um suplemento inócuo à história estabelecida e um deslocamento radical dessa história (SCOTT, 1992, p.75). Nesta direção, importa refletir sobre a origem do patriarcalismo e de como os movimentos feministas vêm encarando este debate, sobretudo na perspectiva histórica de sua prática militante. Em seguida, é necessário lançar um olhar sobre a prática política de várias mulheres camponesas, inclusive a de Margarida Maria Alves, visando compreender se essa história estabeleceu, ou não, um deslocamento radical, como impacto social, na vida delas. Para Toscano (1992, p.17), retomar o fio da história do feminismo não deve ser entendido como um episódio que, “à semelhança das guerras e das biografias pessoais, tem suas datas extremas facilmente identificáveis”. Sabemos, no entanto, que, para considerar o feminismo como fato social significativo, até a sua afirmação como movimento social, devemos ponderar considerando duas análises: a primeira refere-se ao número de atores sociais envolvidos e à influência de tais atores no campo das relações, sejam elas de natureza política, ideológica, econômica ou social, e a segunda diz respeito à importância desse fato para o conjunto da sociedade, como desdobramentos das mudanças nas relações interpessoais (idem, ibidem). Entender essas duas análises dentro do processo histórico possibilita, ao mesmo tempo, compreender o fio da história e os vários registros sobre a conceituação do feminismo, tanto na perspectiva acadêmica, quanto na ótica do movimento feminista. Um desses olhares, segundo Toscano (1992, p.18), coloca de forma sistemática a seguinte formulação: “o movimento feminista denota uma ação organizada de caráter coletivo que visa mudar a situação da mulher na sociedade, eliminando as discriminações a que ela está sujeita”. Este olhar foi colocado quando se produziu um balanço do feminismo no Brasil em 1992 e tornou-se mais ou menos consensual dentro do movimento, uma vez que as diferenças mais explícitas estão no campo das estratégias adotadas pelos diversos grupos feministas. Esta avaliação foi discutida por alguns deles, a exemplo de Toscano e Goldenberg, que debateram o percurso dos movimentos organizados por mulheres: o feminismo, enquanto movimento organizado, aparece, entre nós, na segunda década do século XX e se expressa, no primeiro momento, na reivindicação pelo direito ao voto. Até então, essa bandeira só havia sido levantada, em caráter muito excepcional, por uma ou outra mulher de idéias mais avançadas, como foi o caso de Nísia Floresta (1810 –1885) (TOSCANO, 1992, p.25). Concomitantemente ao movimento pela reivindicação do voto, os primeiros passos do movimento feminista no Brasil resgatam a imagem de Nísia Floresta, uma das maiores representantes, no séc. XIX, da luta pelo acesso das mulheres à educação e ao sufrágio. Conforme Louro (2002), ainda naquele século, o magistério iria se transformar em trabalho de mulher, com a construção das escolas normais, e o sentido que se impregnava na sociedade era de que o magistério passava a ser encarado como extensão da maternidade. Então, no início do séc. XX, a partir das idéias de Nísia Floresta e da chamada feminização do magistério, formavam-se professoras primárias em série, algo que simbolizava um status de representação da mulher pública. A partir daí, inicia-se a reflexão pelo acesso à educação em todos os níveis, já que elas só conseguiam ir além quando detinham um alto status social e apoio familiar para concluir os estudos na Europa e, em seguida, a luta pelo direito ao voto. Foram decisivas, nessa abertura da chamada primeira onda do movimento feminista, as idéias de Bertha Lutz (1894–1976), bióloga que, influenciada pela imagem do movimento feminista da Europa e dos EUA, juntamente com outras mulheres, organizaram o movimento sufragista e com ele a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (1922). Depois, surgiram outras instituições, a exemplo da União Feminina de Mulheres Universitárias (1929), da Cruzada Feminista Brasileira (1931), da Obra de Fraternidade da Mulher Brasileira (1934) e da União Feminina do Brasil (1935). Esta última contava com nomes como o de Eugênia Álvaro Moreira, Maria Wernec, do Partido Comunista Brasileiro, e Norma Muniz, do Partido Trotskista. Para Toscano (1989), estes foram movimentos típicos de mulheres da alta sociedade brasileira, mesmo com a presença de algumas mulheres de classe média. Ligadas a partidos de esquerda, essas organizações não tinham por objetivo questionar a ordem: esse primeiro momento do feminismo organizado e atuante não se caracterizava por ser revolucionário ou abertamente contestatório. Ao contrário, na maior parte dos estatutos dessas organizações, vem registrada a sua intenção de manter-se fiel aos princípios da ordem e harmonia social (TOSCANO, 1989, p.29). Contudo, fora do debate dessas instituições, existia um outro debate proposto pelo movimento feminista anarquista que, nesse contexto, simbolizava as correntes contestatórias e já colocava, na pauta do feminismo, a discussão da opressão sexual à qual mulheres e homens estavam submetidos. Este movimento questionava, também, essas instituições de mulheres, por se pautarem em valores burgueses. Inclusive, não concordava com a campanha pelo sufrágio universal, denunciando que as mulheres iriam contribuir com o poder oligárquico vigente no país, uma vez que, para elas e para a própria ideologia anarquista, as transformações necessárias não podiam ser pautadas através das instituições, como o Poder Executivo, o Parlamentar e o Judiciário. Aliás, esta opção não-contestatória às oligarquias, por parte de alguns movimentos feministas, inclusive o da Federação Brasileira para o Progresso Feminino (1922), liderado por Bertha Lutz, já tomava contornos quando instituída em sua denominação a terminologia Progresso, como forma de incorporar a visão positivista e, conseqüentemente, a perspectiva liberal. Assumia, então, discursos que oscilavam entre o Estado progressista e o conservador, mas caminhavam na contramão da clara influência de idéias esquerdistas que ocorria no país, a exemplo da criação do Partido Comunista Brasileiro (1922), da Semana de Arte Moderna (1922), do Tenentismo (1922–1924) e da Coluna Prestes (1924 – 1927). Já na segunda onda do movimento feminista no Brasil, eclode, na década de 1960, o chamado novo feminismo. É quando passa a ser abordada uma revolução de contestação, inclusive no campo sexual, demarcada pela descoberta da pílula anticoncepcional. Não é mais um momento de se criarem novas instituições, mas de ousar transgredir os padrões da época. Esta inspiração norteadora tinha origem nas contribuições da obra de Beauvoir (1908–1986), O segundo sexo (1948). A condição feminina, para Beauvoir (1980), fora analisada em todas as suas dimensões: a sexual, a psicológica, a social e a política, no sentido de demarcar a libertação da mulher e também do homem. Coloca-se, portanto, uma série de debates e produções teóricas que resultam em mais força para o movimento. A partir de então, mesmo considerando a escrita, os discursos e as práticas sociais de outros ensaios, O segundo sexo representa uma análise exaustiva do que se convencionou chamar de patriarcalismo e suas conseqüências para mulheres e homens. O movimento feminista, nos anos 1980, que então se dividia de forma mais contundente entre o feminismo liberal e o feminismo socialista, passa a refletir mais quanto à própria organização interna e diverge sobre quais concepções de enfrentamento deverão se dar na luta contra o patriarcalismo. Na perspectiva do feminismo socialista, o patriarcalismo e o capitalismo – seu gestado/gestor – são faces da mesma moeda, conforme foi identificado como ponto de partida do chamado fio da história da origem da opressão da mulher, explicitado por Engels (1820-1895), quando de seu trabalho A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (1884). Engels defendeu que as diferenças sexuais que, supostamente, determinavam as relações de gênero, não eram frutos de um processo biológico, mas sim diferenças culturais e que o fim da poligamia exercido pelas comunidades primitivas iniciava o nascimento da família patriarcal e, com ela, o direito à herança e à propriedade privada, todos controlados pelo „nascente‟ Estado. Sua análise percebe a mulher em três fases históricas, a se considerarem: a primeira, demarcada pela sociedade sem classes, em que as mulheres estariam numa posição dominante (matriarcado original); a segunda, nas sociedades de classes ainda não capitalistas, em que as mulheres estariam na condição de escravas e tendo como único papel o espaço dedicado à reprodução doméstica; e, terceiro, no Estado capitalista, onde as mulheres seriam reinseridas na produção, tendo uma base para a sua emancipação, mas ao mesmo tempo, sendo exploradas duplamente, no mundo doméstico e fora dele. Mesmo assim, a sua grande contribuição para o debate feminista foi considerar o fato de que o homem, na maioria das sociedades, estava presente nas atividades ditas como do mundo externo, caças e guerras, construindo-se no mundo público. Assim, concordo com Engels no sentido de que, a partir desse espaço, o homem foi se apropriando do subproduto social e constituindo acumulação de poder e de capital. Segundo Godinho (1989), a forma de a família patriarcal reproduzir valores reacionários da ideologia burguesa determinou o feitio da divisão sexual do trabalho, a divisão entre a vida pública e a privada, a existência de uma dupla moral baseada na mercantilização das relações pessoais e o cultivo da violência do poder masculino. Estes mecanismos são centrais para a exploração da mulher dentro do capitalismo, pois “embora a opressão das mulheres não tenha surgido com o capitalismo, foi assimilada por ele como um dos pilares de sua dominação” (GODINHO, 1989, p.39). Ainda na década de 1980, os movimentos feministas passam a ter fortes debates acerca do que a industrialização capitalista provocou de abuso quanto à super-exploração das mulheres no mundo do trabalho, acarretando-lhes a dupla jornada de trabalho e acirrando a competição com as atividades masculinas. Mas foi no debate das estratégias dentro do movimento feminista que existiu uma discussão acirrada quanto à natureza do foco das lutas. Por um lado, as feministas de concepção liberal burguesa e algumas feministas nãosocialistas, mas de atuação na esquerda política, defendiam que a libertação da mulher dependesse apenas do seu enfrentamento direto ao modelo de família patriarcal, visualizando o homem como único opressor das desigualdades de gênero. Já as feministas socialistas e de outros movimentos de mulheres não-feministas, porém presentes em diversos movimentos sociais, achavam que a luta pela libertação das mulheres só seria possível a partir de uma compreensão da luta contra as desigualdades de gênero e de classes. Estas defendiam, concomitantemente, a auto-organização das mulheres e o enfrentamento na luta contra o patriarcalismo e o capitalismo. Somada a essas percepções, também há necessidade de reflexão sobre a opressão de algumas mulheres em relação a outras, a exemplo da representação das antigas senhoras de engenho com as suas escravas, das latifundiárias em relação às campesinas, das empresárias em relação às operárias, das patroas em relação às empregadas domésticas e de outras que estiveram, de alguma forma, no topo da hierarquia em relação a outras mulheres. Conseqüentemente, é preciso considerar o seguinte tripé de exclusão social: classe, gênero e etnia. Sobre o debate clássico das divergências quanto a estratégias do movimento feminista, ele está estritamente ligado, do ponto de vista histórico, às concepções dos movimentos liberais e de esquerda. E teve seu início ainda na Revolução Francesa, quando da aprovação dos Direitos da Mulher, proposto por Gouges (1748–1793), marco fundamental das primeiras organizações das mulheres na sociedade ocidental e que contou com o apoio apenas de parte dos ditos revolucionários, que propuseram a Declaração dos Direitos do Homem, fazendo então gerar outra discussão: a questão da inclusão ou não do parceiro homem na luta pela emancipação da mulher, ou, então, em quais circunstâncias se poderia caminhar unidos nas mesmas fileiras de luta, já que o mesmo (o homem) era a um só tempo juiz e parte da discussão. Em outro contexto, também ocorreram conflitos entre as feministas, no campo das lutas socialistas. Nos primeiros anos de formação do Estado da União Soviética, logo após a revolução socialista de 1917, teve início uma substancial mudança no que diz respeito à situação da mulher, como o direito ao divórcio, ao aborto e ao livre exercício da sexualidade, consolidados com o novo Código da Família, aprovado em 1918. Tratava-se de aspectos importantes contra a “dupla moral” existente anteriormente, sobretudo porque as mulheres vinham de uma situação dominada por forte tradição patriarcal, em que prevaleciam religiões que não admitiam mudanças tão radicais, como o cristianismo ortodoxo e o maometismo. Mas essas conquistas foram abolidas quando do acesso de Stálin ao poder. Desde Lênin, a maioria dos bolcheviques que assumiram o poder não via com nenhuma simpatia os desdobramentos da ascensão social e econômica da mulher. O que não impediu Allexandra Kollontai de tomar a si a tarefa de elaborar uma nova teoria da moral sexual, apoiando-se na metodologia marxista. Essa líder revolucionária tinha uma visão muito avançada do papel da mulher nas transformações rumo à sociedade socialista. Foi, contudo, com a ascensão de Stálin ao poder, que teve início o grande recuo nas conquistas revolucionárias adotadas pelo Código da Família de 1918 (TOSCANO, 1999, pp.22-23). Aquele contexto produziu o que mais tarde, em outras décadas do século XX, verificou-se nos espaços de esquerda, em especial no movimento operário e sindical, em que as feministas e outros movimentos de mulheres teriam que disputar voz, organização e direção, uma vez que já era visível o aumento do número de mulheres na força de trabalho, no acesso à educação e seu crescimento no espaço público, embora, poucas vezes, estivessem representadas em cargos de chefias e comando. No entanto, mesmo com a prática da dominação masculina persistindo, vale salientar a incorporação das reivindicações do movimento das trabalhadoras no tocante à exploração da mulher. Como atesta Godinho (1989, p.19) “já não é mais estranho que um dirigente sindical ou político faça referência, em seu discurso, à maior opressão e exploração das mulheres no trabalho e mesmo à dupla jornada”, embora, ainda na década de 1980 e no contexto da eclosão do novo sindicalismo, se tenha tido muita dificuldade de compreender a necessidade da luta pela libertação das mulheres como um aspecto específico da luta dos trabalhadores: mesmo a vanguarda do movimento, os setores mais politizados do PT e da CUT, têm tido dificuldades de compreender a necessidade da luta pela libertação das mulheres [...] e de incorporar o feminismo como um elemento da luta pela construção do socialismo. Essas dificuldades relacionam-se fundamentalmente a dois aspectos. Em primeiro lugar, à não compreensão efetiva do papel ativo que a ideologia patriarcal – os valores, a moral, a educação etc – joga na manutenção não apenas da opressão das mulheres, mas na dominação capitalista sobre a classe trabalhadora como um todo. O segundo aspecto relaciona-se ao papel que os homens desempenham nesta opressão, por obterem privilégios materiais, pessoais, afetivos, sexuais etc, decorrentes da subordinação das mulheres (GODINHO,1989, p.19). A distinção entre teoria e prática fizera-se uma constante entre os ditos homens da „vanguarda”, mesmo os que assumiam o discurso feminista, de defesa da participação política das mulheres. Esta prerrogativa não podia ser estendida às suas esposas, mas apenas às outras mulheres. Isto demarcava que o seu mundo era o que tinha de ser, o espaço público; e o da sua esposa/companheira, devia ser o privado, também fortalecendo o estereótipo de que as mulheres que atuassem nos partidos e sindicatos não podiam ser as casadas, mas as solteiras e as divorciadas/separadas, o que também representava a sua manutenção de privilégios sexuais, já colocada por Godinho. Várias foram (são) as denúncias contra alguns dirigentes sindicais que agrediam (agridem) verbal, psicológica e até fisicamente as suas esposas e companheiras do movimento sindical e partidário, o que tendia a não ser discutido, devido à defesa imbuída do discurso de que esse não era assunto público e sim privado. Para Maria da Penha do Nascimento (1949 –1991), militante do sindicato rural de Alagoa Grande e do Movimento de Mulheres do Brejo, essa discussão se fazia presente entre as mulheres sindicalistas daquela região. Ela, Margarida Maria Alves, D. Antônia, Soledade e tantas outras tinham muito presente a questão. Durante o I Congresso do Departamento Nacional dos Trabalhadores Rurais da CUT, em maio de 1990 , Maria da Penha do Nascimento fez o seguinte discurso: as feministas começaram a nos despertar como mulher. Mulher era vista como um objeto, simplesmente como um objeto, um inseto [...] eu acho que o movimento feminista tem uma abertura bem grande com a luta de classes . (NASCIMENTO, Maria da Penha. Ata do I CNTR , 1990, p. 12). Mas esta denúncia inovadora do movimento feminista, a partir da década de 1970, como atesta Machado (1997, p.27), também passou por abalos e nem sempre foi consenso entre o movimento feminista e outros movimentos de mulheres, pois, ao mesmo tempo em que aprofundou o debate acerca das opressões das mulheres, vivenciadas nos espaços públicos e privados, também pôs em discussão a liberdade e a autonomia do corpo feminino: “não só escandalizaram os meios institucionais machistas e conservadores, como também confundiram de forma polêmica todos os segmentos sociais femininos, até mesmo aqueles considerados mais organizados politicamente”. Então, nesse debate, algumas formulações tomam outras conotações sobre as conceituações feministas e sobre as suas particularidades, em relação a outras concepções dos movimentos de mulheres. A jornalista feminista Studart, assim alertava: a feminista é aquela mulher que não denuncia apenas a pobreza das trabalhadoras do seu sexo. Não é também aquela militante política que protesta contra a carga brutal de trabalho. A feminista vai mais longe e mais fundo. Ela denuncia e atua sobre a discriminação mais íntima, mais arcaica, mais dolorida e mais ameaçadora. Fala da tirania na relação homem-mulher. Protesta contra a mais velha das dominações, aquela que se faz sobre o estreito território do corpo [...] e escandaliza porque quer abolir uma lei muito antiga: a do comando do homem sobre a sexualidade da mulher. Diante dessa pretensão, desse desafio, não são só os homens que recuam, assustados e galhofeiros. A maioria das mulheres também se sente acuada e se defende com a frase: sou feminina, não sou feminista (MACHADO, 1997, p. 27). Muitas mulheres do mundo rural não se formaram nas organizações de práticas sindicais e feministas. E, sim, a partir dos debates sobre as condições de vida realizados em pequenos grupos, a maioria de matriz religiosa ligados às pastorais, ou de grupos de matriz laica formados pelo intuito de resistência às expulsões dos moradores das fazendas. (GIULANI, 2002). E, daí, havia uma resistência enorme de aceitar debates que falavam sobre o direito à sexualidade, preconizado pelo feminismo, por exemplo. Para o movimento contemporâneo de mulheres, em especial para as trabalhadoras urbanas e rurais, assume-se a representação feminina na luta contra todas as formas de discriminação à mulher no mundo do trabalho e na sociedade. Assim, as suas organizações, tanto no Brasil como na América Latina, na Europa e na América do Norte, refletem as suas articulações em comissões, associações e redes, como forma de discutir avanços e recuos do movimento feminista, em todas as suas frentes de atuação, contra a discriminação e exclusão feminina. 3 REPRESENTAÇÕES DA(S) EXPERIÊNCIAS(S) POLÍTICA(S) DE MARGARIDA MARIA ALVES 3.1 O papel do CENTRU na formação da transição política de Margarida Maria Alves O CENTRU foi construído em 1980. O seu congresso de fundação data de 9 de novembro de 1980, em Olinda, Pernambuco, estabelecendo sua sede nacional em RecifePE, e suas sub-sedes, na Paraíba e no Rio Grande do Norte, a partir das idéias de vários sujeitos sociais: trabalhadores/as dos movimentos rurais; assessores dos movimentos populares, a exemplo de professores universitários, além de estudantes e artistas. Teve, na expressão do líder sindical rural maranhense Manoel da Conceição Santos, atuante no Vale do Pindaré – MA, uma de suas grandes expressões, conforme atesta Batista (1997): na defesa dos trabalhadores rurais e de sua gente, Manoel da Conceição foi vítima da ditadura militar instalada no país em 1964. Foi preso e torturado, perdeu uma perna em conseqüência dos maus tratos na prisão. Ficou conhecida uma frase sua, a respeito deste episódio: “Minha perna é minha luta‟ (BATISTA, 1997, p. 134). Na percepção de Manoel da Conceição sobre Margarida Alves, o papel do CENTRU era o de um dos principais instrumentos de educação e da política. A educação constituía uma arma de luta frente ao latifúndio. As idéias de Paulo Freire inspiravam sonhos de organização, luta, esperança e liberdade. Aliados a essa idéia, vários outros/as trabalhadores/as rurais se unificaram, naquele contexto. Na Paraíba, mereceram destaques Luís Silva, do sindicato de São Sebastião do Umbuzeiro, José Martins, do STR de Serraria, Maria da Penha do Nascimento Silva e José Horácio, todos do sindicato de Alagoa Grande, além da professora Neide Miele, do professor Leôncio Camino e Vanderlei Amado, e os estudantes Romero Antônio Leite e Antônio Barbosa, entre outros. Os debates caminhavam no sentido da formação educacional e política, mas o congresso de fundação foi marcado por fortes divergências entre sindicalistas ligados à FETAPE, que se retiraram do debate e do congresso. Segundo Batista (1997, p.135): essas divergências diziam respeito se a direção do CENTRU devia ter em sua composição só trabalhadores rurais ou se necessitava ser composta também por assessores, educadores, intelectuais e outras personalidades. Eleita a nova diretoria do CENTRU regional, da qual Margarida Maria Alves e Luís Silva faziam parte, foi realizado um dos maiores congressos no Nordeste, nos dias 11, 12 e 13 de setembro de 1981, em Recife - PE, onde desenvolveram um programa de formação política do CENTRU. Um dos entrevistados, (E-09), descreve um pouco como via o CENTRU e como via a Margarida Alves, na participação desse Centro: já conheci D. Margarida como coordenadora do CENTRU – Centro (dos trabalhadores) de Educação e Cultura dos Trabalhadores Rurais, aliás o CENTRU atuava em rede, nós tínhamos o CENTRU da PB; no Maranhão; no Rio Grande do Norte e tínhamos uma célula do CENTRU na Bahia. E, faziam parte aquelas lideranças políticas; intelectuais; professores universitários; professores do estado – estes sujeitos – tinham um propósito e uma missão política de ampliar o CENTRU por todo o nordeste e, evidentemente, naquela época, não se percebia isso. Naquela época havia uma grande preocupação com a formação, com o formar lideranças, nos movimentos sociais e a partir de Alagoa Grande, a partir do Brejo paraibano, [região de referência dos movimentos campesinos]. Margarida, já naquela época, todos nós a víamos como uma mulher muito corajosa! (...) Ela era uma intelectual orgânica, segundo os princípios que estudávamos em Antônio Gramsci. Era uma pessoa que tinha senso de e da realidade que estava a sua volta. No Estado [paraibano] ela se apresentava como um quadro político à disposição da justiça e de lutar pelo sindicato com toda força para defender os trabalhadores (E-09 em 31/07/2009). Margarida Alves cresce com o trabalho do CENTRU e vai cada vez mais se envolvendo, com toda essa disposição de defender os direitos trabalhistas, mas passa a achar necessária a formação e capacitação dos quadros sindicais. Outras organizações sindicais adotaram o método de alfabetização de Freire, com um programa que alfabetizava em 40 (quarenta) horas, e que foi desenvolvido no seu livro Conscientização (1996). O CENTRU, mesmo tendo uma linha freireana, na visão de alguns ex-participantes, optou por um programa baseado em aulas/diálogos de análises de conjuntura, história geral e do Brasil, e formação política, abrangendo análises de dois sistemas políticos: capitalismo e socialismo. Logo a diante, registramos uma ilustração dos cadernos do CENTRU que foram elaborados sobre formação sindical. Fonte: Caderno do CENTRU, 1° caderno, 1981, p. 4. Através de uma linguagem lúdica, este caderno possibilitava uma compreensão crítica e sugeria debates quanto à formação do dirigente, para que ele não assumisse um perfil centralizador, nem personalista. Pois o texto conduz a uma simbologia em que o sujeito que representa o secretário do sindicato simplesmente não resolve nada. Ou seja, atribui as decisões ao presidente, que, por sua vez, estava sempre ausente do espaço físico sindical por assumir continuamente outros compromissos políticos. Essa é uma crítica, também, ao “sindicalismo oficial”, onde prevalecia o peleguismo. Logo em seguida, o mesmo caderno de formação do CENTRU coloca as seguintes questões para o debate: QUESTÕES PARA REFLEXÕES 1. A maioria dos associados do seu sindicato mora nos sítios ou nas pontas de rua? 2. De quanto em quanto tempo a diretoria se reúne? 3. Quem da diretoria realmente participa da vida sindical e o que faz? 4. O Compadre diz “a gente só vai poder mudar a situação participando no sindicato. De fora a gente não muda.” O que você acha disso? 5. Se o seu sindicato funciona como essa historiazinha o que você acha que deve se fazer para mudar? Fonte: Caderno do CENTRU, 1° caderno, 1981, p. 11. Bom, esse primeiro caderno de reflexões elaborado pelo CENTRU possibilitava reflexões através da própria experiência do sindicalista. Tratava-se de conduzir à crítica e à auto-crítica. Esta essência formativa freireana apontava na direção de uma prática problematizadora da realidade. Trata-se da leitura a priori, em que Freire (1988, p. 35) diz que “o homem chega a ser sujeito a partir do momento em que começa a fazer reflexão sobre sua situação, sobre o seu ambiente concreto. Quanto mais ele se esforça no sentido de ampliar esta prática, mais se manifesta diante dos problemas sócio-políticoeconômicos”. Preocupada, além disto, com o índice de analfabetismo do povo na zona rural, Margarida Alves ia se envolvendo cada vez mais nas discussões do CENTRU. E, como esta entidade prestava assessoria aos sindicatos rurais de quase todo o Nordeste buscando mecanismos para a implementação de uma educação política, tendo como objetivo a formação de quadros sindicais, Margarida Alves ia ampliando o seu leque de conhecimentos. Ainda no momento da abertura daquele congresso, Margarida Alves fez o seguinte pronunciamento: se a gente se isolar, se a gente faz uma concentração por aí outra por acolá, se o sindicato é dividido, eles tomam a frente porque eles estão sentindo que estamos desorganizados. É por isso que os poderosos ficam nos intimidando e até espionando pra ver qual o trabalhador que faz parte do sindicato...Nós não podemos calar diante dessa multidão de famintos e injustiçados, temos que denunciar a situação em que estamos. A gente nunca vai esmorecer, não queremos o que é de ninguém, nós queremos o que é nosso: Terra e educação (BRAZIL, 2000, p.362). O seu discurso demarcava, então, a necessidade da organização e o sentimento de reconhecer divergências presentes, embora fizesse um apelo à adesão das forças, no sentido de ter como objetivo principal a luta frente ao latifúndio, mas também a esperança do movimento por educação. Esse congresso contava com a presença de inúmeras caravanas de trabalhadoras/es rurais do Nordeste, dos assessores/as, além de outras personalidades. Assim estavam presentes: Paulo Freire, Herbert de Souza (Betinho) e Luís Inácio Lula da Silva (atual presidente da república). A fala de Paulo Freire era, ainda, uma das mais esperadas e sua participação se deu em dois dos três dias de Congresso. O seu envolvimento ocorreu em vários momentos de discussão, coordenação de grupos de trabalho sobre Educação e Prática da Liberdade; Educação e Formação Política. Além da explanação sobre educação popular, Paulo Freire falou sobre a necessidade de o CENTRU promover um Grupo de Trabalho sobre educação e luta das mulheres, uma vez que era visível a pouca participação das mulheres, sendo um congresso quase exclusivo de homens. O congresso também foi marcado por várias apresentações artísticas e culturais. Um desses momentos foi o teatro de bonecos ou, como as pessoas da região o chamavam, João Redondo, que teve na interpretação de um esquete, o que dois anos mais tarde iria mais uma vez acontecer, a violência do latifúndio contra os/as trabalhadores/as rurais. Também temas como a seca e o analfabetismo foram interpretados. Nesse contexto, merece destaque a participação de artistas mulheres, professoras, representando a fuga do povo nordestino, com a retirada das pessoas para o sul do país, interpretando as conseqüências do polígono das secas, devido à falta de políticas públicas para a região do Nordeste, a exemplo de falta de geração de emprego e renda, de escolas, de moradia, de saúde e saneamento básico. Essas professoras que interpretaram a peça teatral faziam parte de um grupo organizado do magistério da Paraíba, e ficaram conhecidas como as professoras do brejo; elas também assessoraram, mais tarde, em 1986, a organização do Movimento de Mulheres Trabalhadoras do Brejo. Outra discussão versava sobre a organização da classe trabalhadora e ocorreu de forma intensa, com grande ênfase durante o pronunciamento do líder nacional Luís Inácio Lula da Silva. Este momento trazia consigo outras inquietações, como a recente fundação da Comissão Pró - CUT (1979) 37 e a fundação do Partido dos Trabalhadores (PT), em 1980, com a crescente expansão dos sindicatos e a filiação de várias comissões provisórias do PT pelo interior da Paraíba. Uma das falas do líder Lula, segundo vários participantes, destacava a importância da unificação dos trabalhadores/as do campo e da cidade, como forma de acumular forças para as transformações indispensáveis no Brasil e na América Latina, bem como a necessária desmilitarização. As mobilizações das Diretas – Já só ocorreriam em 1984, mas o clima já era de luta pela redemocratização no país, inspirado pelas mobilizações com caráter de massa, como as que foram representadas pelas crescentes greves no ABC paulista. Havia um destaque, no Estado da Paraíba, para a organização sindical dos professores/as do magistério público da rede estadual de ensino, dos trabalhadores/as do sindicato dos têxteis e a crescente campanha por direitos trabalhistas por parte dos sindicatos rurais. Outra participação importante nesse seminário do CENTRU que ocorreu foi a contribuição de Herbert de Souza, o Betinho, que falou da necessidade de acalentar o sonho de se acabar com a fome no país, sobretudo nas regiões mais atingidas pela seca e pelo descaso dos governos militares, com a situação de fome de crianças, adultos e idosos. Àquela ocasião, constituía apenas uma das muitas falas do Betinho, nesse sentido, até se estruturarem em campanhas e ações de combate à fome, anos mais tarde, já na década de 1990, por ele lideradas. O término das discussões caminhou para uma agenda política e para a implementação do método Paulo Freire, o que cabia levar à conscientização da 37 A CUT só foi fundada em 1983. necessidade de uma educação libertária e avançar na linha da organização da luta de classes. A III assembléia geral do CENTRU ocorreu em agosto de 1983, na cidade de Guarabira-PB, exatamente no dia 12 de agosto. Durante as discussões chegava a notícia do assassinato de Margarida Maria Alves, que não comparecera no último dia, em virtude de outros compromissos assumidos com o sindicato, nos quais estava empenhada. Estava prevista a realização de um seminário de três dias, após o término da assembléia geral, para aprofundamento sobre o movimento sindical. Margarida, pela manhã do dia 12 (primeiro dia do seminário), por motivo de responsabilidade do sindicato, viaja para Alagoa Grande com o objetivo de voltar no dia seguinte. Não foi possível seu regresso, a mão armada do latifúndio ceifou sua vida, suprimindo o movimento camponês de uma liderança expressiva e combatente [...] é impossível descrever o sentimento dos participantes daquela assembléia, ao receberem tal notícia. Logo após serem tomadas as primeiras providências, o CENTRU elabora um boletim informativo extraordinário, e divulga a nível nacional e internacional o trágico acontecimento. (BATISTA, 1997, pp.139- 140). A indignação possibilitava a exigência da punição dos culpados e reafirmava a posição de continuar a campanha trabalhista em elaboração. E o avanço das lutas dessa campanha iria tomar uma conotação de luto e de dor. Por todo o país, as mobilizações ocorriam, e em todas as faixas estampava-se uma frase de Margarida que marcava a sua presença em todos os momentos: “É melhor morrer na luta do que morrer de fome”. 3.2 O Movimento de Mulheres Camponesas na Paraíba e Margarida Maria Alves Falar das lutas das mulheres trabalhadoras rurais passa por um olhar sobre as ações travadas pelo direito à liberdade, por melhores condições de trabalho e de vida, desde o período do Brasil Colônia e do massacre que se deu com as nossas índias, negras, pobres e outras mulheres, nesse percurso. Este trabalho é muito intenso, porque quase nenhuma mulher foi consagrada nas páginas dos livros e revistas que contam o lado oficial da história brasileira, tarefa historiográfica que tem sido elaborada por defensores da Nova História Cultural. Giulani (2002, p. 645) nos diz que há uma relação tênue entre “as mobilizações das trabalhadoras rurais e as potencialidades criadoras da crítica à divisão sexual do trabalho”, já que elas têm convicção de que foram exploradas pelo sistema patriarcal, dominante na sociedade rural brasileira. Ao tomar como referência a organização por dentro do sindicalismo rural, o viés feminista estava oculto, já que a participação destas trabalhadoras era pouco visível na maioria dos sindicatos. Em meu diálogo com as camponesas, percebi que muitas não se filiavam devido às opressões dos pais ou dos maridos, que se pronunciavam dizendo “isso é coisa de homem”. Esta realidade iria começar a tomar outra conotação durante a participação de algumas mulheres no I Congresso Nacional de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas (1961). Além de uma participação efetiva nos temas gerais, as mulheres camponesas, articuladas com as trabalhadoras urbanas, empunharam as bandeiras em defesa da reforma agrária, da previdência social, da educação e saúde pública, além de incorporar o debate sobre os direitos das mulheres e dos adolescentes possibilitando, dessa forma, revelar as dimensões feminista e classista da luta camponesa. Tanto é que, ainda nesse congresso, foram aprovadas as seguintes propostas na comissão de reivindicações sociais, com o recorte feminista: a campanha de alfabetização e ensino técnico, a cargo do poder público, com escolas itinerantes e rádio-escola, o incentivo ao movimento feminino rural e ao seu intercâmbio com o da cidade, comemoração nas zonas rurais do Dia Internacional da Mulher – 8 de março, assistência médica, odontológica e hospitais, dando-se prioridade à assistência, à maternidade e à infância, utilização de todas as entidades e recursos do poder público sob administração do município, criação de um fundo sob administração do município, e criação de um fundo especial pra esse fim, o qual poderá constituir-se de: imposto sobre o latifúndio; percentagem sobre o imposto de renda; contribuição patronal; contribuição do camponês; pagamento do salário mínimo às professoras rurais; assegurar o registro gratuito dos filhos de famílias pobres. FONTE: CONTAG (In: Mulheres rurais, nº especial, 2003, p.05). Sob a ameaça do governo militar, em maio de 1973, a CONTAG realiza o 2º Congresso Nacional de Trabalhadores Rurais, reunindo 700 delegados e delegadas sindicais em Brasília. A preparação deste congresso envolveu milhares de trabalhadores e trabalhadoras rurais de todos estados brasileiros, congregados em 19 federações estaduais, 1.500 sindicatos e uma delegacia regional. Foram realizados reuniões e congressos estaduais e regionais nas cidades de Curitiba, Belo Horizonte, Belém e Recife. O Congresso apresentou propostas para o acesso à terra, assistência técnica e comercialização, educação, organização do movimento sindical, normas de proteção ao trabalho e Previdência Social Rural, retratando as expectativas da categoria de combater as desvantagens entre a classe trabalhadora urbana e a rural. Surgem ali outras propostas voltadas especificamente para as mulheres e a juventude trabalhadora rural. Nesta luta, despontava a sindicalista rural de Alagoa Grande Margarida Maria Alves, que discutia as implicações legais contidas no Fundo de Amparo ao Trabalhador Rural (FUNRURAL) e, também, discursava na defesa da educação de qualidade no meio rural, conforme documentos da CONTAG (1961). A proteção social à maternidade é uma das primeiras bandeiras das mulheres trabalhadoras rurais do Movimento Sindical dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (MSTTR) pelo seu reconhecimento. Esta luta começa em 1973, quando elas reivindicavam que fosse concedido à trabalhadora rural o auxílio-gestante, no período compreendido entre seis semanas antes e seis semanas após o parto. Esta proposta não se constituía em novidade, pois o Art. 55, alínea "A", do Estatuto do Trabalhador Rural, já assegurava à mulher o salário-gestante. A novidade era sua extensão a todas as mulheres que prestam serviço no campo. As demais reivindicações, que incluíam implicitamente as mulheres, como salário-família, auxílio-natalidade, foram uma constante. A permanência da CONTAG junto às entidades do Pró-CUT, entretanto, tem vida curta. A Central Única dos Trabalhadores (CUT) é fundada em 1983, sem a CONTAG. Só mais tarde esta se afiliaria, devido à natureza de vários conflitos que ocorreram nas disputas dos sindicatos rurais em várias cidades do país. O 3º Congresso Nacional dos/as Trabalhadores/as Rurais (CNTR) garantiu, definitivamente, a entrada de um novo sujeito coletivo no cenário político e sindical: as mulheres trabalhadoras rurais. A luta por um salário-mínimo que garantisse uma vida digna para o/a trabalhador/a e sua família, por um salário igual para trabalho de igual valor e pelo reconhecimento dos trabalhadores em sítios e chácaras como da categoria trabalhadora rural e não trabalhador doméstico, indiscutivelmente, abriu as portas para incorporar na pauta sindical as primeiras reivindicações das trabalhadoras camponesas assalariadas. As proposições aprovadas em plenário defendiam alteração na legislação então em vigor, a fim de que fosse concedida, aos trabalhadores rurais, aposentadoria por velhice, aos 55 anos, quando homens, e aos 50 anos, quando mulher. E mais: que a aposentadoria por invalidez, o auxílio-funeral e a pensão por morte fossem concedidos à mulher ou companheira do trabalhador rural. Inicia-se a luta em defesa do salário-maternidade para as mulheres trabalhadoras camponesas. Essas proposições aparecem entre as reivindicações de auxílio-doença, salário-família, auxílio-reclusão. Aparece também a reivindicação de amparo à esposa ou companheira do trabalhador rural e seus filhos menores, desde que trabalhem em regime de economia familiar ou sob forma assalariada. Contudo, apesar dos avanços obtidos no 3º CNTR, este congresso reafirmou a cultura patriarcal, ao afirmar que a titulação da propriedade é apenas do homem "chefe de família", ou "dos jovens que venham a constituir família", reafirmando, portanto, a exclusão das mulheres trabalhadoras rurais da titulação da propriedade. Não era fácil falar na reunião do Conselho da CONTAG, era formado por presidentes, tesoureiros ou secretários (as) gerais, todo mundo se metia e a gente tinha que apresentar nossas propostas era ali, não tinha outro lugar, mas fico feliz em saber que o que somos hoje foi construído e conquistado por nós mesmas. FONTE: (E-2) – Membro da Comissão de Mulheres da CONTAG, João Pessoa, em 13/07/2004. Além da pertinência de a mulher ter que assumir uma dupla jornada militante dentro dos fóruns sindicais, em defesa dos direitos trabalhistas e das especificidades das desigualdades de gênero, ela necessitava de uma força interior renovada, a cada dia. As formas como seus maridos e companheiros foram perseguidos e assassinados, quando não as próprias, constituíam outra luta e dor que denunciavam o sofrimento vivido pelas mulheres trabalhadoras rurais, que tiveram que conviver com a violência da ditadura militar, buscando forças para proteger a si e a sua família de novos seqüestros e assassinatos. Nesse contexto, a morte do trabalhador rural João Pedro Teixeira, em 1962, das Ligas Camponesas, e a continuidade da luta por Elizabeth Teixeira constituíam-se na maior simbologia das discussões no meio das mulheres camponesas. Sua história de resistência foi contada no filme Cabra marcado para morrer, do cineasta Eduardo Coutinho (1984). Nela foi retratada toda a história de violência que se acometeu sobre a família de João Pedro e Elizabeth Teixeira. Ele, um camponês nordestino que disse que “não há nada como um dia depois do outro, a noite no meio e Deus lá em cima”. Com esta cena, Coutinho dirigia, narrava e interpretava a visão de mundo dos/das camponeses/as a partir da referência dos sujeitos de uma classe social excluídos/as da terra e esmagados pela ditadura, gradativamente implantada no pós-1964. Ela, a mulher Elizabeth Teixeira, atua no filme como protagonista que eternizou, na memória coletiva, a luta das Ligas Camponesas, seu surgimento, trajetória e desfecho. Mas foi a sua história de resistência aos latifundiários, assumida como liderança feminina contida no juramento diante do corpo do marido: Eu marcharei na tua luta, registrada por Bandeira e outras (1997), que se revelou com mais profundidade histórica o seu pioneirismo feminino nas lutas camponesas. Segundo várias participantes dos STRs, os últimos exilados (as) e presos políticos foram anistiados, a luta pela emancipação da mulher ganhava espaço e muitas organizações sociais passaram a desenvolver metodologias e conteúdos voltados para o resgate da cidadania e auto-estima das mulheres trabalhadoras rurais. As conquistas dos trabalhadores (as) brasileiros (as), em especial das mulheres trabalhadoras camponesas, precisaram, ainda, de muito tempo para ser regulamentadas. O MSTTR passou a desenvolver várias mobilizações e manifestações no sentido de garantir as conquistas obtidas, mesmo após a promulgação da Constituição Federal, em 1988. Entre essas conquistas, destacaram-se: reconhecimento da participação da mulher no processo produtivo e não mais dependente do marido, aposentadoria por idade diferenciada para homens aos 60 anos e mulheres aos 55, aposentadoria por tempo de serviço, aposentadoria e pensões pagas com o valor do salário-minimo vigente no país, FGTS com multa de 40% nas demissões sem justa causa, contratação individual, sindicalização da mulher trabalhadora rural, estabilidade no emprego ao delegado sindical e sua família, ato da demissão do empregado não estendido a toda sua família que trabalha no mesmo local, seguro-desemprego, salário de igual valor para o mesmo trabalho, igualdade de oportunidades e de salários entre mulheres e homens, licença maternidade de 120 dias com salário integral e serviços leves para as gestantes assalariadas rurais, bloco de notas de comercialização emitido em nome da mulher e do homem, indenização do governo às viúvas e familiares das lideranças sindicais assassinadas durante a ditadura militar e o aumento no pagamento dos programas de emergência nas regiões de seca (CONTAG apud MULHERES RURAIS, 2003, p. 12) As resoluções do 5º CNTR e dos congressos anteriores revelam que a especificidade da luta das mulheres traz para dentro do MSTTR um novo recorte da luta das mulheres e de classes, a discriminação de raça e etnia. As mulheres convocam o conjunto do MSTTR à responsabilidade de lutar contra a opressão de gênero, como tarefa de toda a classe trabalhadora, evidenciando o caráter político, social e ideológico dessa luta. Neste sentido, as mulheres rompem as fronteiras machistas do mundo sindical e fazem o debate político de questões antes reservadas ao mundo privado. Temas como o trabalho doméstico e a autonomia sobre o corpo são debatidos nas Comissões Temáticas do Congresso. Na Comissão de Assalariados, o debate sobre gênero e reprodução vem fortemente articulado com as mais diversas formas de exploração da força de trabalho feminina. As mulheres propõem que o MSTR denuncie as diversas práticas de discriminação e violência nas relações de trabalho, e novas propostas passam a ser incorporadas na pauta de reivindicações: contra a exigência de atestado de laqueadura de trompas no ato da contratação de mulheres assalariadas; ameaças de demissão das gestantes; violência nos locais de trabalho praticada por chefes e encarregados; redução da jornada de trabalho durante o ciclo menstrual; cota de 30% de mulheres na contratação por empresas; creches nos locais de trabalho (CONTAG apud MULHERES RURAIS, 2003, p.17). A incorporação dessas preocupações, aqui assinaladas, à reflexão das propostas dos movimentos sociais rurais sinalizava para a consolidação de uma autonomia construída na organização das mulheres, mas que simbolizava toda uma conquista da classe trabalhadora. Segundo uma das coordenadoras da Secretaria da Mulher da CONTAG, Raimunda Mascena: [...] na década de 1990, a estratégia foi o fortalecimento da organização dentro do MSTTR. Foram realizados seminários, encontros e plenárias nacionais. Em 1991, foi eleita a 1ª mulher na diretoria da CONTAG, Tereza dos Santos da Silva, de Araxá – MG; em 1995 foi constituída a comissão nacional de Mulheres Trabalhadoras rurais. Em 1997, no 7º Congresso, foi aprovada a política de cotas, e eleitas 03 (três) mulheres para a diretoria executiva na CONTAG; nesse congresso, as mulheres representavam 42% das congressistas. Em 1999, no 2º Congresso Extraordinário, foi aprovada a cota de, no mínimo 30% de mulheres como princípio estatutário para todas as instâncias do MSTTR e de 50% nos espaços formativos (LIMA, 2002, p.134). Atualmente, as mulheres ocupam variados cargos, em todas as instâncias do movimento sindical rural, mas outro grande desafio colocado para o conjunto do movimento, segundo Lima (2002, p.134) “é avançar na formulação e implantação de uma política transversal de gênero”. Como se vê, foram várias as atividades que contribuíram substancialmente para qualificar e articular as ações políticas das mulheres, na perspectiva de se assumirem como sujeitos políticos e, conseqüentemente, como dirigentes das organizações sociais, partidos, parlamentos, dentre outros. No atual contexto, os movimentos populares campesinos brasileiros, tanto no sindicalismo rural como no Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), entre outros, contemplam o estudo de gênero, na perspectiva feminista, na formação política e teórica das/os militantes, não apenas pelo entendimento de que a mulher está intimamente ligada à história da terra – indo da perspectiva mística até a classista -, mas na expectativa de que as lutas agrárias e das mulheres combinam-se e se complementam. Embora represente importantes avanços esse caminhar junto, ainda são muitas questões em aberto: como ressaltar que a luta como trabalhadora é apenas uma faceta da luta das mulheres? Como garantir um espaço que lhes assegure direitos de uma cidadania integral, num espaço marcado pela exclusão de classe e gênero? Daí a necessidade de movimentos autônomos das mulheres por dentro desses movimentos. Ao estabelecer esses questionamentos, passo a trilhar a busca de pistas históricas, sobretudo da memória de lideranças que fizeram e fazem transformações significativas no seio de seus movimentos, como também na sua prática familiar e militante, desenvolvendo sua práxis, com as leituras de suas experiências. Nessa perspectiva é que se ancora o olhar sobre as mulheres camponesas, que, feministas ou não, colocaram em suas bandeiras de luta o anseio e as ações de mudança na sua condição e conhecimento de vida. Mas, nessa construção da identidade de gênero em especial, busca-se a emancipação ou a construção do sujeito mulher, dotado da plenitude da sua sexualidade, da exposição dos seus desejos, da sua capacidade de falar e de ser ouvida nos espaços familiar, político, social etc. Faz-se, assim, necessário, entender a opção pela denominação “Movimento de Mulheres Camponesas” que, até o início desta década, se denominava “Movimento de Mulheres Rurais”; esta mudança se deu em virtude da compreensão de três momentos distintos, nos seus fóruns de discussão. Primeiro, no âmbito da constatação da força de trabalho desenvolvida por elas, pois, mesmo quando da denominação “mulheres rurais”, a essência do movimento sempre fora campesina, que é mais ampla, em virtude de o movimento incorporar não somente as mulheres sindicalistas rurais, mas as ribeirinhas, as quebradeiras de coco, as borracheiras, entre outras, em que toda a categoria trabalho está intimamente ligada à terra, independentemente de se a forma de utilização é a plantação e coleta ou a extração vegetal. Segundo, no âmbito simbólico, quando se incorporou a memória coletiva e a luta das Ligas Camponesas, procurou-se homenagear uma de suas maiores expressões, a camponesa Elizabeth Teixeira. A terceira dimensão é a política. Ser camponesa ou camponês é ter identidade de „campo‟, e não apenas do „rural‟. O campo é uma associação mais direta com a terra, do que o rural. O mundo rural já não é mais o mesmo. As maquinarias do agronegócio estão cada vez mais deixando o mundo rural „desterritorializado‟ e, portanto, distante da terra. As experiências anteriores com a educação popular vivenciadas por mulheres camponesas delineiam o sujeito camponês atual. Menciono, a seguir, algumas lideranças referências, por novas evidências em suas trajetórias. Elas estão, desta forma, associadas ao pioneirismo político-educativo sindical e popular. No caso da Paraíba, a relevância educativa, nos moldes da lutas populares de Elizabeth Teixeira, Margarida Maria Alves e Maria da Penha Nascimento, que se constituíram em expressões no cenário regional e nacional, tanto no movimento de luta pela terra quanto no movimento de mulheres, são por demais expressivas. O período em que atuaram tem em comum um marco de transição, no contexto que vai da ditadura militar à „reabertura democrática‟, possibilitando a eclosão dos movimentos de massa, como do movimento de organização dos trabalhadores (as) do campo, em que, além das Ligas Camponesas e sindicatos rurais, entram em cena a CPT e o MST. Embora, na Paraíba, nesse período, a maior atuação tenha passado pelas Ligas Camponesas, a CPT e os sindicatos rurais também se destacaram, em especial os localizados no Brejo paraibano, pois o MST se consolidaria apenas nos meados da década de 1990. Mas foi nesse contexto, também, que a educação popular alçou vôos. Como explicita Ghiraldelli (2003): no Brasil, entre os anos de 1960 e o início dos anos de 1980 [...] o movimento renovador do ensino, ou seja, o escolanovismo ganhou uma vertente especial que acabou até se desgarrando dele e se tornando um ideário educacional próprio: a pedagogia de Paulo Freire. (GHIRALDELLI, 2003, p.163). A influência de Paulo Freire, com a Pedagogia Libertadora, foi direcionada à educação popular, em especial à educação de jovens e adultos da cidade e do campo, e teve o apoio das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). A atuação da Campanha da Educação Popular (CEPLAR) na Paraíba, com a utilização do método Paulo Freire, fora direcionada aos camponeses, ainda no final de 1962. Tanto as Ligas Camponesas, como os sindicatos rurais, aliás estes, principalmente, caminhavam juntos com os setores progressistas da Igreja católica. Perceberam que a educação, sobretudo a alfabetização das/os camponesas/es, constituía uma arma dos excluídos. E que, de sua luta contra o latifúndio, emanava um caráter educativo para a sociedade como um todo, tornando-se, então, uma pista de mão dupla. Partindo desses pressupostos, percebe-se que o grau de apreensão de conhecimentos dessas lideranças as localiza, no seu espaço de atuação, como detentoras de um saber histórico, na perspectiva da história dos excluídos, em que revelam seus comprometimentos com as ações educativas. Para Elizabeth Teixeira, uma liderança que viveu dores similares, mas com especificidades históricas diferenciadas da luta enfrentada por Margarida Maria Alves, a necessidade de uma reforma agrária significava ir além do desencadeamento de mobilizações, pois se faziam necessárias outras habilidades, em especial a condição de ser liderança mulher: [...] ser líder no campo, Sr. Doutor, mesmo mulher, e hoje mãe e pai de família, precisa saber organizar. Organizar as famílias, em grupos, em núcleos. Precisa saber falar, também, com os latifundiários. Prá dizer sim, se tiver ganho, pra todo o núcleo. Prá dizer não, se não houver ganho. Olhar nos olhos dos jagunços, depois virar e não olhar pra trás, mesmo que venha tiros. FONTE: COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO. Ata da CPI do Campo, Livro XXII, Brasília, 1972, p.04. Esta fala de Elizabeth expressa, de forma articulada, várias dimensões do seu cotidiano, as quais se cruzam e se encontram, a exemplo da sua opção de resistência aos poderes locais e da sua formação política e disciplinar, advinda das Ligas Camponesas, sobretudo, das dificuldades, como mulher, de se reconhecer e ser reconhecida como liderança. Enfim, da sua crença ideológica que lhe forneceu as condições para dar continuidade às tarefas políticas, após a morte do seu marido, João Pedro Teixeira, expoente da luta pela terra. A constatação desse reconhecimento vai se solidificar, sobretudo, na sua luta incansável, na condição de mãe e de formadora de opinião, sobre suas vivências no campo. Tal postura crítica, contida no trecho da sua fala, simboliza a natureza educativa enunciada por Paulo Freire: a questão da coerência entre a opção proclamada e a prática é uma das exigências que educadores críticos se fazem a si mesmos. É que sabem muito bem que não é o discurso o que ajuíza a prática, mas a prática que ajuíza o discurso (FREIRE, 2001, p.05). Para além da atuação como liderança política, nesse exemplo, educadora popular das Ligas Camponesas, Elizabeth Teixeira, desde a década de 1960, alfabetizou 38 os seus filhos e outros camponeses. Também realizava a leitura dominical dos jornais para cerca de oitenta camponeses da região na sua casa. Nesse contexto, essas ações foram ganhando visibilidade junto aos fazendeiros locais, que organizavam constantes dispersões das aulas e das leituras dos jornais, na casa de Elizabeth. No entanto, a resistência motivou Elizabeth Teixeira a prosseguir suas tarefas no campo político sindical e no educacional. Não se trata de perceber a mulher Elizabeth como educadora formal 39, mas apenas registrar que essa tarefa era desempenhada devido ao fato de que a escola rural, muitas vezes, inexistia. A referência educativa do sujeito Elizabeth está expressa na formulação de Pinto, que a concebe da seguinte forma: a Educação é o processo pelo qual a sociedade forma seus membros à sua imagem e em função de seus interesses. Por conseqüência, a educação é formação (BILDUNG) do homem pela sociedade, ou seja, o processo pelo qual a sociedade atua constantemente sobre o desenvolvimento do ser humano no intento de integrá-lo no modo de ser social vigente e de conduzi-lo a aceitar e buscar os fins coletivos (PINTO, 1982, p.23). Tal definição aponta características em que a educação não pode ser apreendida apenas pelos mecanismos da lógica formal, mas a partir da história dos indivíduos e da história da comunidade, possibilitando, assim, a produção e a apropriação do conhecimento ao conjunto dos envolvidos. Como está escrito no Artigo 1º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), nº 9.394/1996: a Educação abrange os processos educativos que se desenvolvem na convivência humana, na vida familiar, no trabalho, nas instituições de ensino, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil, no esporte, no lazer, nas manifestações culturais e no contato com os meios de comunicação social (BRASIL, 1996, p. 11, grifo meu). 38 A professora escolar do meio rural, nesse contexto, quase sempre era leiga de formação acadêmica (o que ainda ocorre na atualidade) e algumas delas apenas sabiam ler e escrever. 39 Para aprofundar sobre a História da Educação no campo, e em particular como atualmente o MST vem refletindo e implementando práticas pedagógicas, ver o livro Pedagogia do movimento sem terra: escola é mais do que escola, de autoria de Caldart (2000). Maria da Penha Nascimento, além de fundadora do MMB, atuava ao lado de Margarida no sindicato de Alagoa Grande. Foi integrante da Comissão Estadual de Mulheres da CUT/PB e Secretária de Formação da Executiva da CUT Estadual, além de candidata a vereadora, algumas vezes, pelo Partido dos Trabalhadores. A produção de textos escritos por Penha pode ser considerada vasta. Escreveu vários textos sobre as ações de resistência ao latifúndio, em especial após a morte de Margarida. Lançou livros: Violência Rural e Reforma Agrária (1986), e Por que Trabalhar com Mulheres (1988), em parceria com outros autores e entidades. A sua preocupação com os registros escritos também se estendia à construção de acervos e bibliotecas nos sindicatos. Da sua atuação militante estava convencida de que a prática da luta cotidiana era a melhor arma, quando costumava falar: “só quem luta é que sabe a dor que a gente sente”. Em sua frase está contida uma reflexão, a do aprendizado com a essência da experiência entrelaçada ao sentimento que conhece que primeiro vem a luta como anunciante e, portanto, a formadora da classe. O debate de formação das camponesas, na década de 1980, incorporou essas concepções de classe e gênero e foi baseado em cursos teóricos, cuja reflexão maior se dava a partir da própria experiência. Três cartilhas nortearam a formação política no debate de gênero. A primeira cartilha de formação intitula-se „Sindicato e Feminismo‟ e foi produzida pelo grupo Maria Mulher: as camponesas a utilizaram em sua formação militante, ainda na década de 1980. Seus eixos principais são: A mulher na história: a sociedade primitiva, escravista, feudal, capitalista e construindo uma nova sociedade. Esta cartilha, elaborada de forma lúdica, contendo charges, colocava a desigualdade dos papéis sociais de homens e mulheres, a partir da visão da luta de classes sociais, como expressão das próprias desigualdades do sistema capitalista. O segundo caderno de formação „Mulheres na CUT: 10 anos de luta, resistência e conquistas‟ (1995), produzido pela comissão estadual de mulheres da CUT, contou, inclusive, com a participação de algumas das mulheres do Brejo na sua elaboração. Sua estrutura comporta os seguintes debates: Mulher e mercado de trabalho; Participação e organização da mulher no movimento sindical cutista; Creche: uma necessidade presente; Saúde, trabalho e Gênero; Gênero e classe; Luta, organização e construção de um espaço feminino na CUT. Este caderno de formação passou a representar um ponto de partida para a formação de novos quadros femininos no MMT. A dinâmica do curso consistia em leitura e debates dos textos. O terceiro caderno foi elaborado pelo Movimento de Mulheres Camponesas, a nível nacional (2007), sendo dedicado à formação atual de novas lideranças no Movimento Nacional de Mulheres Camponesas e já adotado pelo MMT. Intitula-se‟ Organizar a base, produzir alimentos saudáveis e construir caminhos de libertação‟. Enfatiza debates anteriores e atuais, da via campesina: (1) O cotidiano da mulher camponesa: qual é a saída? Como mudar a rotina pesada das mulheres do campo? Como transformar a indignação em organização das mulheres camponesas? (2) Produzir alimentos: uma missão camponesa! A mulher como protagonista na produção dos alimentos. (3) Organizando o trabalho de base: alicerce do MMC – nosso trabalho a gente faz; (4) Orientações metodológicas: como formar o grupobase; fazer reuniões; colocar as idéias; falar em público; cooperar; fazer críticas e formar as novas dirigentes. Tal publicação consolida, assim, os novos debates no campo da educação popular provocado pelas mulheres do brejo, que adotam as seguintes formas pedagógicas: leitura e debate de textos; análise de conjuntura e círculos de cultura.40 Enfim, o resultado destes cursos e publicações revelam uma prática educativa cotidiana que tem como pilares - base de um espaço público, o ser liderança, e do espaço privado, o ser mulher, que traz marcas específicas, a exemplo da condição de serem mães e educadoras dos próprios filhos, o que descortina uma atuação na história e na negação do silêncio sobre a participação feminina na construção das sociedades. Algumas foram caladas pela tragédia, outras pela força da brutalidade e da opressão do(s) poder (es), ou ainda, pelo silêncio do próprio saber histórico. Mas emancipadas pela sua práxis. Contudo, sem dúvida nenhuma, uma das expressões mais marcantes do movimento de mulheres na Paraíba tem sido o Movimento de Mulheres do Brejo (MMB), que foi constituído no ano de 1982, no estado da Paraíba. Faziam parte, inicialmente, do MMB, mulheres de quatro cidades da região do Brejo paraibano: Pirpirituba, Bananeiras, Guarabira e Alagoa Grande. 40 O Círculo de Cultura faz parte do método de Freire que consiste em tematizar, problematizar e contextualizar o diálogo, na práxis da EP. Nesse caso, o tema foi a memória de Margarida Maria Alves e sua identidade com as camponesas do MMT. O MMB tinha como objetivo inicial fortalecer lideranças atuantes nos Sindicatos Rurais (STRs), vinculados à Central Única dos Trabalhadores (CUT) e à Comissão Pastoral da Terra (CPT). As mulheres camponesas do brejo paraibano, aqui entendidas como sujeitos excluídos da história, atuaram inicialmente combatendo a exclusão de classe social, exercendo a sua militância na CPT e na CUT. As camponesas do Brejo da Paraíba participaram dos vários cursos de formação promovidos, na década de 1980, pelo Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural (CENTRU) que, em parceria com a CUT, entrelaçava às suas práticas educativas o cuidado com a formação de classe e a formação de gênero, conforme o depoimento de uma das fundadoras - (E-3) - do MMB, em 25/11/2004: [...] O CENTRU era uma coisa que trabalhava em prol dos trabalhadores, aqueles cursos, seminários de Formação para que as trabalhadoras e os trabalhadores rurais aprendesse alguma coisa. Inclusive eu cheguei até a participar de seminários para discurso, mas os cursos era mais de formação geral, a gente tinha cursos dos direitos trabalhistas, da sexualidade, a gente trabalhava as questões gerais do Brasil, a gente aprendia história, muita história sobre o capitalismo, o socialismo, sobre o feminismo. Aquelas pessoas que iam dar os cursos pra gente tornaram-se também nossos amigos. O que a gente trabalhava mais, quando aprendia a ler, era sobre a conjuntura do país, a conjuntura do Brasil, depois a gente trabalhou em conjunto como outras entidades, por exemplo, trabalhamos um seminário sobre sexualidade, em conjunto com o CUNHÂ. Trabalhávamos também com a juventude, tínhamos um projeto sobre o Jovem canavieiro. Nós tínhamos, além do movimento de mulheres, a gente trabalhava com os jovens canavieiros, que era de idade entre 12 e 16 anos. Era muito importante aqueles seminários porque a gente incentivava aqueles companheiros a se estruturar, tanto no mundo do trabalho, quanto na vida política e isso era uma coisa que a gente tava repassando e a gente tava aprendendo. (E-3). (FERREIRA, 2006, p. 108). O MMB, desde a sua constituição, em 1982, passou a promover cursos de capacitação e formação política, priorizando neles o debate de gênero41 e, mais tarde, na década de 1990, igualmente, o recorte de etnia. Muitas dessas atividades foram frutos de uma pauta comum com o movimento de mulheres urbanas. 41 Segundo Scott (1992), o Gênero é a organização social das relações entre os sexos. As origens sociais de um determinado padrão vigente de relações de gênero residem na constatação de que: se as causas da desigualdade são sociais, também são sociais as suas possibilidades de transformação. Assim sendo as relações de gênero são entendidas como uma construção social e histórica dos papéis masculino e feminino. (FERREIRA, 2006). Após o assassinato da líder sindical Margarida Maria Alves (1933-1983), já havia surgido a necessidade da ampliação dessa organização (MMB) para outras cidades do Brejo. Posteriormente, com a morte de outras duas sindicalistas em Alagoa Grande, a professora Serise, por motivo de doença, e a sucessora de Margarida Alves, a presidenta do sindicato rural, Maria da Penha Silva, em um acidente automobilístico, o MMB ampliou o seu leque de atuação. Com essa nova composição, consolidou seu caráter regional e passou a atuar em 9 (nove) municípios paraibanos, todos da região do Brejo. Adotou, daí por diante, a sigla MMT42: Movimento de Mulheres Trabalhadoras do Brejo. Buscou-se, assim, concomitantemente, preparar as camponesas não somente para os enfrentamentos dos conflitos de classe, como também para os conflitos de gênero, bastante acentuados no mundo camponês, como em toda nossa sociedade. Sendo assim, dessa perspectiva pedagógica, centrada na dialética, em que a consciência de nós (eu-classe) não descarta a consciência de si (eu – mulher), surgiu o Movimento de Trabalhadoras Rurais do Brejo (MMT) que, em 1985, se constitui como uma referência de organização camponesa, formada só por mulheres, na Paraíba e no Nordeste brasileiro. Uma de suas fundadoras traduziu essa precisão da auto-organização feminina camponesa e a consciência de si, necessária à busca de seus direitos: A gente já conquistou muito nesses anos de luta, mas nós queremos muito mais, porque se nós temos direito, os direitos terão que ser entregados às mulheres. Hoje nós temos mulheres no mundo do trabalho, a mulher hoje tem liberdade de trajar do jeito que ela quer, e de calçar da maneira que ela quer, de ir para onde ela quer. Não é mais aquele tempo que uma mulher não podia sair de casa sozinha porque o pessoal já ficava apontando, uma moça não podia sair de casa sozinha que ela já não era mais moça, que era isso, que era aquilo outro, e hoje nós andamos de cabeça erguida, nós temos nossos deveres e que importa que alguém olhe pra gente com o olho torto que danem-se. A mulher nasceu pra ser mulher e não pra ser escrava, a mulher não é objeto e a mulher não é propriedade de ninguém, a mulher é um ser humano da maneira que o homem é, e pronto. (E-5). (FERREIRA, 2006, p.107). As mulheres que compõem o MMT, na atualidade, continuam exercendo um trabalho voltado para a educação das mulheres, na perspectiva teórica feminista, 42 A sigla MMT já havia sido utilizada apenas no município de Alagoa Grande-PB, no ano de 1982. objetivando a formação de quadros militantes e uma construção permanente de intervenção, junto à via campesina, nos movimentos sociais. A memória de luta da líder sindical Margarida Maria Alves e de suas próprias experiências são repassadas através da história oral, para jovens dessa região, conforme está representado no discurso abaixo, onde se percebe a oralidade de uma das lideranças do MMB, em uma oficina direcionada à juventude: Eu conheci a d. Margarida já no tempo que ela era do sindicato, acho que em 79 e um dia eu disse, vou lá conhecer essa mulher que todo mundo fala [...]; ouvia falar bem dela, nunca escutei falar que ela não fosse desse jeito, destemida, e ao mesmo tempo, simples, e aí eu cheguei lá no sindicato, e fui mais prá conhecer e terminei me associando e ficando amiga da danada. (E-4). (FERREIRA, 2006, p. 97). Ao repassar a representação da memória de Margarida Maria Alves, simbolizando uma mulher, como outra qualquer, com simplicidade, a camponesa (E-4) elucida uma Margarida não como signo de uma liderança, mas sim do feminino, adocicado pelo jeito de mulher rural simples e fraterno. Em outro depoimento de um sindicalista e ex-assessor do CENTRU e do MMB pudemos perceber o retrato de uma Margarida que „maternou‟. Vi de perto, a Margarida na sua figura de mãe, de esposa sendo amada e paciente com o Sr. Cassimiro, com seu filho Arimatéia. O carinho com que tratava a sua mamãe e suas irmãs. Então, ela foi uma mulher que maternou. Ela se dirigia a Arimatéia, meio a essas turbulências, ao filho com muito carinho. Tratava o esposo pelo chamamento de „filhinho‟. Como líder sindical representava a figura de uma mulher valente e corajosa. Hoje eu tenho certeza de que ela não tinha dimensão do medo que corria. (E-09, Em 31/07/2009). E é interessante que Margarida Alves congrega essa dupla imagem feminina, forte e meiga; mãe e política. Ou seja, ora Maria, ora Madalena. Mas o que, no fragmento da entrevista de (E-09), a exprime e reforça é a mesma percepção de (E-4), de ver a Margarida Alves como uma mulher normal, admirada, mas absolutamente normal, sem nada de santa ou mítica. No ano de 2005, após 25 anos de sua morte, já havia ocorrido a prescrição do processo, mas nem por isso a representação de Margarida Alves é esquecida pelo movimento de Mulheres do Brejo. Conforme apresenta o depoimento emocionado de uma das sócias (E-3), lembrando-se de Margarida Alves: Em 1983, no dia 10 e 11 de agosto de 83, ela estava no seminário em Guarabira, com a Penha, com outros companheiros da CPT na época, e sindicatos também. E foi quando a Penha notou que a Margarida tava pensativa, ela tava triste, e alguma coisa a estava perturbando. E Penha começou a conversar com ela e dizer que ela não podia ficar presa sem abrir o jogo para os companheiros, e sem dizer o que é que estava se passando. Aí foi quando ela, no silêncio do quarto, falou para Penha que estava sendo ameaçada de morte, já tinha recebido cartas e telefonemas anônimos com ameaça de morte. Mas antes ela já tinha dito no discurso em Sapé, que era melhor morrer na luta do que morrer de fome, e que da luta ela não fugiria, isso foram frases dela já através das ameaças que ela vinha recebendo, mas sem dizer o porquê. Então quando ela confessou para Penha o que estava acontecendo, a Penha se prontificou que na segunda-feira, junto a ela e outros companheiros, procuraria a justiça para denunciar os acontecimentos. Infelizmente não deu tempo, quando foi no dia13, aliás no dia 12, que ela voltou para casa, quando ela chegou em casa, com pouquinho tempo, a irmã dela trouxe um pedaço de espiga de milho, ela dividiu esse milho para ela e para o filho dela, José Arimatéia, que na época tava com 6 ou 7 anos. E quando ela estava comendo foi quando o pistoleiro chegou. É vizinhos da Margarida, depois, no processo, disseram que, desde o dia 11, que esse cara rondava a casa e passava naquela rua de carro, mas ninguém sabia porque, nem qual era o objetivo deles, né? Só no dia 12, quando ele chegou na casa da Margarida e perguntou se ela era a Margarida, que ela disse que era, foi quando recebeu um tiro de espingarda calibre 12, que acabou com a vida da companheira [...] estourando toda a face dela.[...] e jogando os miolos na parede. Uma coisa triste. E fazem 22 anos que esta morte está impune, esse crime está impune, a justiça continua dormindo . (E-3). (FERREIRA, 2006, p. 101). Entre as ameaças de morte que Margarida chegou a receber, constava a imposição de abandonar o discurso que assumia frente à luta dos/das trabalhadores/as rurais. Ou seja, não se tratava apenas do afastamento do sindicato, isso também fazia parte das ameaças, mas o significado da opressão do discurso, mediado tanto pelo conteúdo das falas, que em sua maior parte, tratava da luta por um conjunto de direitos trabalhistas, quanto pelo fato de ser mulher, posto que contrariava a cultura arraigada do patriarcalismo. A presença da mulher na direção sindical não era condição pacífica. Isto se evidenciava nas gestões anteriores, que mantiveram os homens à frente das instâncias de decisões e onde não havia, no conjunto dos trabalhadores/as, uma força de articulação se expandido para outras frentes de trabalho, como a luta por educação e formação política. Da perseguição e das ameaças anônimas, tentativas de silenciar Margarida, resultaria sua morte. A forma como ela foi assassinada, com um tiro na sua face, além de destruir a sua vida, enviava um recado ao conjunto dos trabalhadores/as: não se podia falar como ela falava. Nesse contexto, todo o processo que gerou mobilizações passava pela crítica à impunidade e à lentidão da justiça. A crítica contra a forma com que as instituições da justiça, tais como delegacias, Fóruns de tribunais e a própria Secretaria de Segurança Pública, à época, conduziram o processo acentuou o descrédito dos/as trabalhadores/as nas leis. Porém mantiveram acesa a crença no combate às desigualdades, guardando o compromisso com a justiça social, resultante da organização popular. Assim, uma das formas mais expressivas dessas realizações foi a auto-organização por parte das trabalhadoras rurais, que estabeleceram empenho e ousadia para constituir seu reconhecimento e legitimidade. Lembro, ainda, que todos os anos, em 12 de agosto, ocorrem uma série de mobilizações e homenagens a sua memória. E, nesses momentos, também, é registrada uma associação entre a memória de Margarida Alves e às lutas, sindical e do movimento de mulheres, conforme explicita (E-3): Antes da morte de Margarida, antes dos seminários do CENTRU, antes da luta integrada aos movimentos da CUT e dos sindicatos, nós também não sabíamos o que era nossos direitos. A gente tinha que curvar a cabeça, a gente vivia de cabeça baixa, curvada perante a sociedade. A gente não se sentia mulher, porque a gente só fazia o que o povo queria. A gente obedecia a pai, a gente obedecia a patrão, a gente obedecia a marido, e era aquela coisa, a mulher tinha que baixar a cabeça em tudo, até nossos próprios pais passavam aquela imagem pra gente e dizia que na hora do casamento a mão da mulher ficava por baixo, e a mão do marido ficava por cima, porque a mulher ela tinha que ser submissa ao marido, toda hora a mulher tinha que ser a outra metade, mas a metade inferior do homem, e hoje, a gente sabe que não é isso. (E-3). (FERREIRA, 2006, p.106). O diálogo exposto possibilita entender como a mulher camponesa, Margarida Alves, e outras lideranças, constroem representações de lutas, permanentemente. A questão que se coloca é a contraposição ao desempenho da mulher nos moldes do papel social, da qual a única visibilidade possível é a da relação do grupo familiar, ou seja, uma identidade vinculada com a relação do mundo privado, tais como o casamento e a maternidade. As mulheres que estabeleceram o diálogo na pesquisa demonstraram o seu deslocamento ao ingressarem no mundo do trabalho, ao discutirem as relações de produção, os papéis assumidos com a divisão sexual do trabalho. Conseqüentemente, questionaram as decisões das autoridades estabelecidas pelos patrões, pelos maridos e pelos parceiros sindicalistas. Dessa forma, conquistam-se, a partir da consciência adquirida, direitos e saberes. Como afirma Freire (1980, p. 40), “o ser humano não pode participar, ativamente, na história, na sociedade e na transformação da realidade, se ele (a) não obtiver uma conscientização sobre a realidade e sobre o seu potencial para transformá-la”. Vale salientar que essa dicotomia entre o mundo doméstico e público possui um caráter acentuado na zona rural, como reflexo da base patriarcal na construção desses poderes no Nordeste. Essa reflexão fora estabelecida quando da contribuição de Freyre com o estudo Casa Grande e Senzala (1920). Seu aporte analítico já denunciava: na sociedade colonial produtora de cana-de-açúcar, os homens possuíam o poder absoluto e estavam associados ao domínio público da vida. As mulheres estavam confinadas ao espaço doméstico e delas se esperava um comportamento subserviente. A supremacia dos homens sobre as mulheres levou à subordinação dessas últimas, através do tempo (BRANCO, 2000, p. 33). Essas mulheres conseguiram transformar sua realidade e contribuíram para que outras pudessem ir além desses espaços de confinamentos do mundo doméstico. Assim, na representação do diálogo, pode-se conhecer mais sobre a origem de Margarida e o período de sua chegada à cidade de Alagoa Grande. Uma origem humilde e comum para a maioria das outras mulheres daquela região e do próprio Nordeste. Alguns fatos, porém, marcaram inicialmente essa sua opção, quando da expulsão da terra, de seus pais, em 1962, ano do assassinato do líder das Ligas Camponesas, João Pedro Teixeira, em Sapé, e da fundação do sindicato que lhe despertava a vontade de se engajar na luta. A consolidação como liderança não ocorreu do dia pra noite. Margarida Alves teve, na força dos seus discursos para o conjunto dos associados e demais trabalhadores/as, a segurança e o sustentáculo que eles necessitavam. Assim, o discurso da relação do sujeito com a história propicia alguns desafios, inclusive no trabalho da articulação com o social, e, posteriormente, da organização desses registros, conforme atesta Chartier (1994, p.109): a história das mulheres, formulada nos termos de uma história das relações entre os sexos, ilustra bem o desafio lançado aos historiadores: ligar construção discursiva do social e construção social do discurso. Um desses pilares adveio da formação educacional e política construída no CENTRU, sobretudo para o conhecimento das relações de desigualdades de gênero, a partir dos cursos de feminismo. Todavia essa força incide não só nos cursos de feminismo, nem só no marco da morte de Margarida, nem tampouco, na efervescência política de um dado momento histórico. Conforme colocou (E-3): [...] antes da morte de Margarida, antes dos seminários do CENTRU, antes da luta integrada aos movimentos da CUT e dos sindicatos, nós também não sabíamos o que era nossos direitos [...]. Ou seja, é o conjunto de todos esses fatores, somado às motivações subjetivas, que possibilitou a auto-organização. No curso histórico dos movimentos, em 1986, após várias discussões, as camponesas do sindicato rural de Alagoa Grande que, desde 1982, contava somente com a coordenação de mulheres, conquistaram o status de independência, conforme explicita Cruz (1999, pp. 84 - 85): realizou-se uma assembléia que elegeu uma coordenação com 09 (nove) membros, tendo como objetivo principal dinamizar e organizar a caminhada do grupo de maneira autônoma. O grupo passa a se chamar Movimento de Mulheres Trabalhadoras do Brejo tendo no início da década de 1990 a coordenação se ampliado para 13 (treze) membros. Em 15 de março de 1991, o MMB e todo o movimento de mulheres da Paraíba e do Brasil passavam por uma grande dor, a perda de duas grandes mulheres em um acidente automobilístico, vindo a falecer, na ocasião, a professora, socióloga e feminista Elizabeth Lobo, conhecida por Beth Lobo, que foi “capaz de integrar diferentes frentes de trabalho e luta: partido, sindicato, vida universitária, movimentos sociais e feministas” (BRAZIL, 2000: 112), e a líder sindical Maria da Penha, presidenta do sindicato de Alagoa Grande e secretária da CUT-PB, também fundadora do MMB. Essa tragédia, para algumas das suas companheiras, fomentou o desencanto e as desesperanças de continuar resistindo. Porém, embora de luto, o movimento continuou em sua luta. Em 1994, o MMB, após muitas dificuldades, junta-se ao Movimento de Mulheres Trabalhadoras (MMT), com sede em Pirpirituba-PB, uma associação ligada à Associação Nacional do Movimento de Trabalhadoras Rurais (ANMTR), que passava a atuar em nove municípios da região do Brejo. A institucionalização só se efetivaria em 1994. Após a junção, discutiu-se a passagem do MMT à constituição de uma ONG. A mudança de um movimento nãoinstitucionalizado para o status de ONG não foi pacífica. Primeiro porque, para algumas militantes, tinha-se o exemplo de outros movimentos de mulheres, quando de sua passagem para a condição de ONG, e a perda da identidade baseada na radicalidade face à mobilização e questionamento aos poderes públicos, passando, assim, a não reivindicar políticas públicas, que são prerrogativas do próprio Estado. Por outro lado, o alcance da autonomia passava por construir recursos próprios, ou seja, não podiam continuar dependentes do sindicato, posto que já possuíam diversas demandas. Mesmo nos aspectos de cooperação, existiam implicações por parte dos sindicalistas que não consideravam a mobilização das mulheres como decorrência das lutas conjuntas dos trabalhadores (as). A cooperação, de fato, só se deu de forma mais efetiva com a participação de mulheres na presidência do sindicato. Foi o caso das gestões de Maria da Penha Silva e de Maria da Soledade Leite, na época vinculadas ao MMB. Enfim, prevaleceu no debate a constituição da referida ONG que, na ocasião, deveria manter, dada a reflexão de seus limites, uma identidade de autonomia, além de se articular com outros movimentos sociais e outras ONGs que também cultivassem as características de radicalidade e de trabalhos direcionados à produção social. Sobre essa pauta, assevera Oliveira (2004, p. 163): nas falas das mulheres a respeito desse momento [de criação da ONG] havia a necessidade de se ter uma associação para facilitar o trabalho do grupo com o envio de projetos em busca de apoio financeiro, tanto de agências de cooperação internacionais e nacionais, governamentais e nãogovernamentais, bem como a importância de um intercâmbio e articulação com o movimento de trabalhadoras rurais em âmbitos mais ampliados. Consolidando esse objetivo, em 1994, o movimento ganhou expressão e vida organizativa, com definição de papéis, elaboração de projetos, captações de recursos, assessoria jurídica e um modelo de gestão democrática e participativa. Em 1997, o movimento já passava por várias dificuldades. Sem fontes de recursos, as necessidades foram aumentando, dificultando, assim, a elaboração de novos projetos. A manutenção do MMT passava (passa) pelo deslocamento de várias mulheres, de seus municípios de origem, ou dos sítios e assentamentos distantes de Pirpirituba, todas trabalhando sem remuneração, apenas em caráter voluntário. Vendiam agendas, faziam rifas, entre outras coisas. No entanto, os recursos tornaram-se a cada dia mais insuficientes para a manutenção das atividades cotidianas. Apesar dessa realidade, o movimento continua mantendo como práticas pedagógicas várias ferramentas, que são os recursos característicos da educação popular, tais como a leitura, a música, os cursos de teatro e, também, as oficinas de poesias. Conforme citado por Oliveira (2004, p.171): um dos pontos que merece uma consideração é o uso da poesia popular como recurso pedagógico, segundo a camponesa Maria Lúcia Félix, “uma companheira completou com uma poesia a falação de Alagoa Grande” e segue um trecho da intervenção cantada quando do encerramento dos trabalhos do I Encontro de Jovens da região, e que pediram a Soledade de Alagoa Grande para encerrar os trabalhos com uma despedida em poesia. A companheira disse: “Agradeço aos rapazes/A estas moças queridas/ Que vieram de distantes/Cidades e avenidas/Provando que nesta luta/Precisamos de Margaridas”. Exemplo de extensão dessas atividades são os Encontros de Mulheres Violeiras, que ocorrem desde 1990 e o I Encontro com Jovens “Desigualdade Social e Econômica”, realizado em maio de 1995. Nesta agenda, passaram a também realizar os Encontros de Casais, diferentemente da perspectiva religiosa, com o intuito de propiciar a formação de gênero, no sentido de provocar a idéia do movimento como espaço formativo não só das mulheres, mas também dos homens e, dessa forma, caminhar no percurso dos direitos humanos, na busca do fim das desigualdades e na perspectiva de que estas possam ser denunciadas, refletidas e vencidas historicamente 3.3 Margarida Maria Alves: entre o velho e os Novos Movimentos Sociais A questão da transição entre os velhos e os novos movimentos sociais, mais especificamente, do sindicalismo rural, na década de 1980, consiste em um dos elementos da matriz de representação que deu subsídios para esta análise da trajetória política da líder sindical Margarida Maria Alves. Desse modo, passo a construir uma linha tênue nessa disputa de representação, entre o velho e o novo movimento social, a partir de dois momentos. O primeiro, entendendo toda uma trama no cenário político do ano que antecedeu à sua morte, 1982, marcado por um quadro eleitoral de arcabouço clientelista, mas por outro, de grandes mobilizações sociais para a construção de uma central sindical nova, a CUT. E, em um segundo momento, o cenário do pós-morte de Margarida Alves, que alimenta o capítulo dois dessa disputa de representação quando essa querela de correlações de forças volta à tona, principalmente, nos tribunais de justiça e nos jornais do nosso Estado. 1982...o ano que não terminou, nem com a morte de Margarida Alves em 1983 Tinha-se um contexto marcado não só pela disputa ideológica entre „práticas clientelistas‟ versus „práticas democráticas‟ emanadas pelas oligarquias e refletidas na prática sindical. A questão colocada apontaria para um “novo sindicalismo emergente que estava relacionado com a abertura de espaço à participação das bases. A relação entre democracia e participação” (OLIVEIRA, 1994, p. 187). Logo, para (E-07): Margarida marcou uma diferença fundamental. Ela rompeu com as práticas sindicais clientelistas e assumiu o bloco dos sindicalistas combativos. Ela fez isso através das suas ações (...), presenciamos algumas vezes ela discordar de outros sindicalistas e, até mesmo, não aceitar realizar certas negociações dos acordos trabalhistas, que muitos desses sindicalistas, viciados nesses tipos de acordos, queriam que ela fizesse, para o sindicato, calar-se e ganhar o seu e, em contrapartida, o trabalhador se dá mal, só que ela começou dizer não a tudo isso! (...) Ela passou a incorporar as vozes do sindicalismo de base, mas esse posicionamento que ela já vinha fazendo na prática, só ficou mais claro aos olhos de todos, quando essas posturas políticas firmes foram ocorrendo, diariamente, e para coroar tudo isso, quando ela assinou o documento da I CONCLAT, em 1982. Aí, se alguém tinha alguma dúvida, não tinha mais, ali ela selou o seu compromisso com o sindicalismo de luta. (E-07, em 20/07/2009). (E-07), recorda-se, também, de Margarida Alves como um personagem central nessa participação sindical. Que foi capaz de estabelecer rupturas com uma cultura sindical peleguista, na prática social dos acordos trabalhistas. Trata-se da postura de uma „Margarida‟ ética; neste sentido, portadora de uma ética voltada para a sua classe camponesa. Sem dúvidas, o ano lembrado, 1982, foi um ano de muitos elementos para o entendimento dessa disputa de representação, tanto por ter sido um ano eleitoral, quanto por ser um ano que antecedeu à formação da CUT. Segundo Rocha (1996), no início de 1982, a sociedade brasileira assistia a um programa televisivo, intitulado “o povo e o presidente”, criado pelo governo do então presidente João Baptista de Figueiredo, que „tentava apresentar uma imagem democrática à população‟. Neste Programa, Figueiredo respondia as cartas e conversava com telespectadores, quando, em um desses programas, o presidente comentou uma carta que recebia de uma mulher paraibana: Em meados de 1982, Figueiredo tinha em suas mãos uma carta escrita por uma mulher, Margarida Maria Alves, enviada ao palácio do planalto de uma cidade no interior da Paraíba, Alagoa Grande. A cerca de 120 quilômetros da capital João Pessoa, Alagoa Grande fica no brejo paraibano – uma das regiões mais violentas do Estado. Margarida, presidente do sindicato dos Trabalhadores Rurais do município escrevera uma carta veemente, exigindo medidas urgentes contra que acontecia com os trabalhadores rurais. Margarida denunciava que, no Estado da Paraíba, era muito freqüente o desrespeito à legislação trabalhista. Os canavieiros ganhavam muito mal e nunca tinham seus direitos assegurados em lei, garantidos na prática. O presidente Figueiredo se mostrou „surpreso‟ com as denúncias, afirmando que as providências para eliminar esses abusos já tinham sido tomadas e que, daquele dia em diante, tudo seria controlado com maior rigor. (ROCHA, 1996, p. 5-6). Para Rocha (2006), ainda assim, não foi feito nada de concreto por parte do governo federal que pudesse ser constatado como uma medida, uma ação, ou programa específico de combate à violência no campo, mais precisamente no Estado da Paraíba. Até porque, para ser realizada alguma ação no Estado, deveria ser trabalhado algum tipo de parceria institucional entre governo federal com o governo local, e este último estava atrelado aos grupos que praticavam ou encobriam as ações de violência. Para o historiador Feitosa (2003), nas eleições de 1982, no estado da Paraíba, os principais grupos políticos eram ligados ao setor rural: Ribeiro Coutinho, Veloso Borges, Pereira de Lima, Gadelha e Maias. “Com exceção dessa última, todas as outras oligarquias apoiaram Wilson Braga, nas eleições de 1982, sendo decisivas na vitória do PDS na Paraíba”. Tal significado das eleições de 1982 apontava, ainda, para uma grave situação econômica, na Paraíba. (...) A situação econômica era grave, principalmente, no setor agropecuário, depois no setor industrial, que de 1970 a 1986, decrescia 7,6 ao ano. Esse declínio econômico no final do regime militar estava articulado com o avanço das relações capitalistas no campo e na cidade, trazendo aumento de desemprego e inchaço das grandes cidades do Estado, de forma desordenada e dando seqüência ao Êxodo Rural. (FEITOSA, 2003, p.46) Ainda, decorrente de suas análises, 3 (três) partidos disputaram as eleições de 1982: o PDS, o PMDB e o PT. Tendo sido candidatos, respectivamente, o então deputado federal Wilson Braga, o Sr. Antônio Mariz43 e o bancário-sindicalista Derly Pereira. Outros partidos não possuíam critérios mínimos para disputarem o então jogo eleitoral. É aí que muitos sindicalistas passaram a exercitar a sua representatividade política, apoiando candidatos e passando a assumir um papel ou de legitimação ou de questionamento do poder oligárquico vigente. Para o (E-09), nenhum outro sindicalista foi “tão vigiado” enquanto sua opção de voto partidário, quanto Margarida Alves, dada à sua representatividade no sindicalismo rural. Margarida se relacionava bem com todos os políticos da região, mas isso não significava a venda da sua ideologia sindical. (...) Ela não tinha vínculo partidário com legenda nenhuma, tinha aproximação com o prefeito de Alagoa Grande PB João Bosco Carneiro, que era do MDB (PMDB). Bosco tinha uma visão mais ou menos avançada já que era Promotor Público. E ele fazia um combate às oligarquias mais “ameno” que os canavieiros no sindicato. (...) Até porque se não, não conseguiria governar. (E-09, em 31/07/2009). 43 Antonio Mariz do PMDB formava uma aliança centrista, pelo caráter heterogêneo que a mesma possuía, de um lado era apoiado pela oligarquia dos Maia, que dominavam o sertão, e por outro, possuía apoio de grupos de esquerda, como o PC do B e o MR8. (FEITOSA, 2003). Ainda em sua entrevista E-09 coloca que o bloco de Agnaldo Veloso Borges, partidário do PDS, não via com bons olhos o prefeito de Alagoa Grande, pois não tinha influência direta sobre ele. Esse bloco operava com o apoio de dezenas de outros prefeitos, inúmeros vereadores e dezenas de deputados de regiões circunvizinhas e estes que já que recebiam apoio financeiro de Agnaldo pressionavam aqueles que não fossem do partido hegemônico nessa região - o PDS - amedrontando-os e ameaçando-os. Para tanto, tal aproximação entre Margarida Alves e João Bosco Carneiro não representava uma contradição ideológica, a priori. Porém, o fato mais contraditório da afirmação de (E-09) foi afirmar contundente que „Ela não tinha vínculo partidário com legenda nenhuma‟ referindo-se a Margarida Alves. Tal fato não é aceito por todos os entrevistados. Há quem diga, como (E-3), (E-05) e (E06), que Margarida Alves em 1982 havia se filiado ao PDS, sim, muito embora que por pressão do marido e sem concordar com o coronelismo vigente, por parte desta legenda (PDS). Já, no filme-documentário Uma Flor na Várzea44, o professor Vanderlei Amado, ex-assessor do CENTRU e um dos fundadores do PT afirmou, que Margarida Maria Alves hesitou bastante filiar-se em partido algum, até que assinou a ficha de filiação do PT, às vésperas do seu assassinato. Mas, todo esse debate iria se acirrar um pouco depois das eleições de 1982. A questão é que esta eleição, na Paraíba, consistia em barris de pólvora nas regiões usineiras, de onde se iniciava o festival de „distribuição de cargos em troca de favores‟ por todo o Estado. Segundo Melo citado por Nunes (2004, p. 65), nas eleições de 1982: [...] a descaracterização do estado paraibano recebeu um impulso, com o exagerado uso da máquina para eleger o candidato a governador Wilson Braga. Na ocasião, o então governador Clóvis Bezerra foi acusado de, em apenas dez meses de governo, nomear quatorze mil funcionários. Diante desse cenário de controle da máquina estatal, por parte do PDS, foi sendo potencializado o „grupo da Várzea‟, nas decisões políticas e no domínio econômico da zona canavieira. [...] Na região funcionava com muita força a usina TANQUES e só no município de Alagoa Grande tinham envolvido de 17 a 24 engenhos. E os engenhos naquele município e no Brejo, quase 60 engenhos, eram 44 Filme-documentário de duração de 19‟50” lançado em 2006, dirigido por Mislene Santos e Matheus Andrade - ambos estudantes de concluintes do Curso de Comunicação Social, pela UFPB. fornecedores de cana para Agnaldo Veloso Borges, naquela região. E a usina e os engenhos negavam pão e água aos trabalhadores rurais. [...] Naquele momento sob a égide do patriarca Agnaldo Veloso Borges, um dos últimos coronéis que restavam no Estado da Paraíba, surgia a figura do seu genro, por nome de José Buarque Gusmão Neto, conhecido como Zito Buarque que, na prática, como genro, cuidava dos negócios da usina e cuidava da parte administrativa. Ele cuidava, também, da relação com os partidos políticos de Alagoa Grande e até de toda a região do Brejo, cuidava da relação com o poder local. (E-09, em 31/07/2009). Com essas atitudes de „negar pão e água‟ aos trabalhadores canavieiros o controle social se materializava, também, em ações de profundas violações dos direitos humanos, pelo grupo da Várzea. Em contrapartida, foi o sindicato de Alagoa Grande que iniciou as campanhas salariais para fortalecer o trabalhador rural contra esta dependência vital, em que os usineiros, principalmente da usina TANQUES, ostentavam seu poderio econômico ao poder político local. A figura do Zito Buarque passava a utilizar tais poderes, para fortalecimento dessa oligarquia. (E-09), ainda, descreve como se dava esse modelo de gerir mão-de-obra e controle político: [...] a defesa daquele modelo atrasado da exploração da mão-de-obra absoluta, da mão-de-obra canavieira, estava fortificado e personalizado na pessoa do Zito Buarque. E a grande maioria daquelas pessoas que combatiam tudo isso, muitas daquelas pessoas que trabalhavam nos canaviais da usina ou da moita, na maioria das vezes nada podia fazer. [...] Lá na usina funcionava o Barracão, e era obrigado que eles comprassem alimentos no dito barracão para pagar no final de semana, e o desconto era feito no dia do pagamento, que era semanal. Aquela cesta que eles compravam fiado para alimentar o físico, quando eles descontavam, não sobrava quase nada. Esse foi outro ponto de indignação de Margarida Alves. Fonte: idem. Foi aí que toda a luta sindical, do chamado novo sindicalismo, nesse início dos anos de 1980, seria direcionada para organizar a primeira greve dos canavieiros na Paraíba. Para dois dos nossos entrevistados, que vivenciaram essa época como sindicalista e assessor jurídico, respectivamente, o envolvimento de Margarida Alves foi cada vez mais profícuo. “Ela já estava envolvida nos sindicatos da região na CONTAG e na FETAG, quando organizaram a primeira greve de canavieiros na PB”. Só em março de 1983, culminaria a celebração dos acordos, dissídios coletivos que foi a tribunal no início de 1983. De 1974 a 1983, segundo dados da CONTAG, nunca a Paraíba havia tido aquele debate. Ainda sobre o ano de 1982, quando se iniciou a organização de tal movimento, havia uma clara divisão do movimento sindical rural: de um lado o bloco peleguista – representativo do velho sindicalismo – que queria acordos com o grupo dos Veloso Borges e negociação direta com eles e, de outro, o bloco dos sindicalistas classistas – representado pelo novo sindicalismo – que partiram para organizar a greve. Porém ambos os grupos passaram a cobrar dos candidatos a governadores, na época, que incluíssem em seu programa de governo, as suas reivindicações por garantias de direitos trabalhistas. [...] nas eleições, nunca ninguém, nenhum candidato havia levado em conta as suas reivindicações [da classe trabalhadora rural]. E naquele ano se levou. Evidente que aqueles dissídios e os acordos que foram celebrados basicamente foram levados por aqueles que preconizavam à esquerda, sindical e partidária. Os usineiros estavam mais preparados para reprimir do que para negociar. Os donos de engenhos não suportavam no final de 1982 e naquele primeiro semestre de 1983 o volume de ações trabalhistas. O sindicato levou à justiça e representando os trabalhadores rurais, estes vão a Campina Grande e apresentam representação judicial à usina TANQUES, mais de 100 ações trabalhistas. Naquele momento a gente falava em ação trabalhista mesmo. Se cobrava o dissídio, e o que era de direito constitucional anteriormente já garantido ao dissídio. E a usina TANQUES teve uma ação que foi desproposital: O Zito Buarque, com seus seguranças, num certo dia do mês de junho de 1983, invadiu e entrou à força no intervalo da audiência que tratava das ações trabalhistas; intimidou os trabalhadores rurais e os próprios advogados dos trabalhadores rurais. Aliás, intimidou o juiz. Foi aquele espetáculo. Fonte: (E-09 – Em 31/07/2009).[grifo meu]. A partir daí, os trabalhadores rurais passaram a se precaver mais, com relação aos desmandos da usina TANQUES. A brutalidade com que o Zito Buarque dirigiu represália aos trabalhadores sindicalizados foi gritante. Iniciavam-se, portanto, duas campanhas típicas de um conflito de classes sociais: a campanha salarial – dos sindicatos rurais versus a campanha da intimidação – protagonizada pela usina TANQUES. Vários sindicalistas receberam ameaças de morte, outros receberam convites para se aliarem ao PDS, como forma de proteção de qualquer „represália‟, pois se tornando „aliados‟ partidários, nesse contexto, o clima de „tranqüilidade‟ poderia ser restabelecido. Afinal, esta passava a ser a linha política do novo governador eleito, Wilson Braga: promover algumas cooptações dos quadros sindicais. Segundo um dos ex-secretários do STR de Alagoa Grande, Margarida Alves passou a receber os dois tipos de cartas, as de ameaças e as de „aproximações‟ com o PDS. [...] Mesmo com esse ato de hostilidade patrocinado pelo Zito Buarque e ameaça direta, além de muitos avisos, Margarida não parava e não entendia o risco que ela estava correndo. Ela espalhava esse fato [do Zito Buarque ter invadido o tribunal] aos quatro cantos de Alagoa Grande e da região [...], ela denunciava o que estava acontecendo. E entre o fim do mês de junho e início de agosto, os usineiros se reuniram para fortalecer o PDS e planejar o assassinato dela [Margarida Maria Alves]. E o desfecho fatal ocorreu em 12 de agosto de 1983, quando na porta da sua casa por volta das 17:h, o matador de aluguel, hoje, não há dúvidas disso, foi o soldado Betânio Carneiro dos Santos do 2° Batalhão de Polícia de Campina Grande, que era um perigoso pistoleiro. Ele tirou a vida de Margarida Alves junto com outros comparsas45. Figura que na região já respondia por mais de 20 homicídios. Fonte: (E-09 – Em 31/07/2009). [grifo meu]. Várias pessoas ligadas ao grupo da Várzea foram suspeitas e associadas ao crime de Margarida Alves. E, daí, iniciava-se um segundo capítulo dessa história debatida em quase todo o território nacional e internacional. Quem matou Margarida Alves? O mundo queria saber! Pois tentar „desvendar‟ quantos e quem haviam sidos os criminosos do seu assassinato colocaria em xeque uma questão fundamental: quem interrompeu o percurso da trajetória política de uma mulher camponesa, de traços afro-brasileiros, que se tornara uma grande expressão no movimento sindical atuando numa região onde prevalecia a força de um coronelismo tardio, enquanto oligarquia política, e raízes do patriarcalismo nordestino entranhadas na cultura local. O cenário político-social do pós-morte de Margarida Alves. Logo que ocorreu a morte de Margarida Maria Alves o movimento sindical, a Igreja e os partidos, o movimento como um todo, propagaram aos quatro continentes o que havia ocorrido. Para (E-09): 45 Amauri José do Rego e Amaro José do Rego, e Biu Genésio, motorista do veículo utilizado no crime e morto em janeiro de 1986 como “queima de arquivo”. Agnaldo Veloso Borges, José Buarque de Gusmão e Antônio Carlos Coutinho Regis também estavam envolvidos em conflitos na região. O que se tinha de ONGs naquele momento e entidades sindicais do mundo inteiro protestou. Da África do Sul à Inglaterra, vários sindicatos da Alemanha, Ásia e Israel. O mundo protestou contra a morte de Margarida. E, cobrou-se do Estado brasileiro por conta dessa grande pressão. Fonte: (E-09 – Em 31/07/2009). A propagação foi tão intensa que muitas organizações internacionais iniciaram um processo de visibilidade dos chamados novos movimentos sociais, ao mesmo tempo em que cobravam rigor nas apurações dos criminosos. Na casa onde Margarida Alves morava, que foi transformada em museu, identifiquei, neste, mais de 200 comunicados oficiais de representações internacionais, dirigidos às autoridades brasileiras e paraibanas, cobrando justiça, alguns chegaram a exaltar, também, o trabalho do CENTRU, junto aos trabalhadores rurais, referendando o papel educativo-formativo deste Centro. Diante dessa repercussão, vários movimentos sociais localizados em outros países da América Latina se posicionaram colocando que esse sindicalismo que estava surgindo, no Brasil, não era mais o sindicalismo do período getulista, nem no setor urbano, nem mais no rural. “Trata-se de um novo tipo de reação política, muito mais sério e forte do que já havíamos presenciado, na história do Brasil, anteriormente”, dizia um trecho do jornal de um sindicato de professores, localizado no Chile, recém saído da ditadura política do Pinochet. [...] trata-se de algo novo, tanto no sindicato dos metalúrgicos, no estado de São Paulo [na região do ABC paulista], como dos plantadores de cana de açúcar, de um Estado pequeno, conhecido como Paraíba, na região nordeste, que acaba de ser assassinada uma sindicalista, que ousou enfrentar os latifundiários [...]”. Fonte: Jornal do Sindicato dos Professores, no Chile, 1983. (trad.). (ROCHA, 1996, p. encarte). De fato ocorreu, nessa conjuntura fortalecida pela repercussão internacional, a formação de uma grande rede de movimentos sociais brasileiros, em Alagoa Grande: sujeitos do movimento estudantil, sindical, urbano e rural, de mulheres, meio ambiente, negro etc não arredavam o pé da cidade. Daí adveio, paralelamente à cobrança pela justiça da morte de Margarida Alves, uma solidariedade orgânica ao movimento dos trabalhadores rurais, cobrando a campanha salarial, que já estava em curso. CAMPONÊS FAZ PROTESTO DIA 28: Milhares de trabalhadores rurais da zona canavieira de Alagoa Grande vão realizar, no próximo dia 28, um ato público de protesto contra o assassinato da sindicalista Margarida Maria Alves. O ato também terá o objetivo de alertar os trabalhadores da região para a necessidade de continuarem a campanha salarial defendida por Margarida, que ia começar no dia 28. A informação do ato público foi fornecida pelo advogado Júlio César Ramalho, assessor jurídico da FETAG, que recebeu as informações dos sindicalistas de Alagoa Grande. Os sindicalistas garantem que darão continuidade aos trabalhos de Margarida pela conquista de salários condignos e pelo cumprimento da lei trabalhista, na zona canavieira de Alagoa Grande. O advogado anunciou ainda que do ato vão participar representantes sindicais do Estado e representantes da Federação dos Trabalhadores na Agricultura na Paraíba, Álvaro Diniz, e o presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, José Francisco. O trabalho com o objetivo de se chegar a um acordo coletivo de trabalho, entre usineiros e canavieiros, em Alagoa Grande, já havia sido iniciado pela sindicalista Maria Margarida, que marcou para o dia 28 a primeira assembléia do sindicato por ela dirigida. [O NORTE em 15 de 08 de 1983]. Fonte: Arquivo público Estadual FUNESC. Dados coletados pela pesquisadora em 10/06/2009. Mesmo com toda essa repercussão e mobilização ocorrendo, os latifundiários não paravam de ameaçar outros líderes sindicais, através de cartas e de recados. Só que, desta vez, as lideranças dos movimentos sociais começaram a ter espaço na grande mídia local. Como o caso de Margarida Alves, no calor do momento, dava bastante audiência, os jornais, a televisão, e principalmente o veículo do rádio, que era o mais propagado no meio popular, naquele contexto, não paravam de agendar entrevistas com sindicalistas, militantes dos movimentos sociais e agentes pastorais para escutar sobre possíveis pistas do caso de Margarida Alves. Em contrapartida, segundo (E-08), também, era estratégico, por parte dos militantes, dar visibilidade aos „novos‟ movimentos sociais, ao mesmo tempo em que cobravam justiça pelo caso de Margarida Alves. Tratava-se de uma forma de ganhar opinião e segurança públicas, para que novos assassinatos não ocorressem, ou seja, tratavase de uma ampliação dos espaços públicos, fortalecendo um movimento contrahegemônico. Destaco a seguir uma reportagem que saiu no jornal O Norte, de um sindicalista, que fora na seqüência da morte de Margarida Alves, ameaçado e tornou público essas ameaças: LÍDER RURAL ADVERTE PARA O PERIGO DE NOVOS CRIMES: O presidente dos trabalhadores rurais de Princesa Isabel, Miguel Vicente de Lucena, protestou, ontem, contra o assassinato de que foi vítima a presidente do sindicato dos trabalhadores rurais de Alagoa Grande, Margarida Maria Alves, ao mesmo tempo em que advertiu as autoridades estaduais para o perigo de novos crimes contra líderes sindicais da área rural, constantemente ameaçados por proprietários de terras “que não aceitam sob hipótese alguma que lutemos em defesa pelo reconhecimento dos direitos da classe trabalhadora rural, duramente espoliada desde os tempos coloniais”. O líder sindical princesense, que se encontra internado no hospital Edson Ramalho, onde foi submetido a uma cirurgia recentemente, lamentou não ter tido condições de assistir ao sepultamento de Margarida Maria Alves, anteontem, em Alagoa Grande, mas conclamou os seus companheiros de atividade sindical, em todo o Estado a não desestimularem diante desse fato, “porque acima de tudo está a luta pelo reconhecimento dos nossos direitos e para que as autoridades governamentais entendam que também somos brasileiros e os maiores responsáveis pelo desenvolvimento da Nação”. Miguel Vicente de Lucena confirmou as informações fornecidas pela Federação dos Trabalhadores na Agricultura na Paraíba: Margarida Maria Alves vinha recebendo ameaças de morte, ao mesmo tempo em que, também, revelou ter sido informado por ela, numa das reuniões da FETAG, a respeito dessas ameaças. “Margarida Maria Alves era uma pessoa muito decidida e corajosa que não se deixava amedrontar por ameaças de quem quer que seja. A sua morte de maneira tão trágica deixa um grande vazio em todos os seus companheiros, mas, por outro lado, ao contrário de quem possa pensar, nos estimula a continuar na luta em favor da reforma agrária e o pagamento das obrigações sociais pelos proprietários de terras aos agricultores, enfim, do reconhecimento de que também somos gente e que o período da escravidão acabou há quase um século, apesar de no momento a classe trabalhadora rural ainda ser tratada indiscriminadamente. [O NORTE em 17 de 08 de 1983, pág. 12]. Fonte: idem. A declaração acima firma-se como um marco de fortalecimento do movimento sindical, no meio rural. Ao mesmo tempo em que notifica a população das ameaças de morte a outros sindicalistas, conclamando a opinião pública à necessidade da luta por reforma agrária. Sentindo o alargamento do espaço que os movimentos sociais estavam conquistando através das mobilizações, o chamado grupo da Várzea começou a „cobrar‟ a punição dos culpados da morte de Margarida Alves, com a pretensão de disputar a opinião pública, dizendo-lhes na imprensa, ou através de seu grupo ideológico de parlamentares que „Margarida‟ também tinha proximidade política com o PDS, portanto com o grupo da Várzea, daí não seria „entre eles‟, que estariam os criminosos. Postularam, também, a necessidade de repensá-lo „não‟ como crime político e „sim‟ como um crime comum. Jornal O Norte Jornal A União PEDESSISTA vê um complô político Edme repudia o Assassinato, no Congresso o deputado Aércio Pereira (PDS) questionou ontem a posição de quem acredita ter sido o assassinato da líder sindical Margarida Maria Alves, de Alagoa Grande, uma resposta ao trabalho dela em defesa dos trabalhadores rurais do município. Aércio aventou a hipótese de ela ter sido morta a mando de um grupo político ao qual Margarida negou apoio nas últimas eleições, preferindo apoiar Edme Tavares e o próprio Aércio. “– Eu confesso a opinião de quem quer incriminar pessoas idôneas de Alagoa Grande, famílias representativas da sociedade local. Recomendo uma reflexão sobre o caso, pois Margarida Alves exercia o cargo de presidenta do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande há 20 anos, sempre defendendo o interesse dos O deputado Edme Tavares (PDS) repudiou, da Tribuna da Câmara dos deputados, a maneira como a presidente do sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande, Margarida Maria Alves, foi assassinada, na ultima sexta feira, naquele município. Dizendo que conhecia Margarida Alves de perto, aquele parlamentar afirmou que “a Câmara, que registra homenagens póstumas a tantas figuras ilustres, não pode deixar, também, de registrar a morte Margarida Alves, uma das maiores lideres camponesas que eu conheci”. O município de Alagoa Grande perdeu uma líder e o trabalhador rural sua defensora disse Edme Tavares, acrescentando que o trabalho de Margarida era reconhecido por todos. O parlamentar disse que “uma mão assassina e desumana roubou-lhe a vida, que era preciosa para os pobres e humildes”. Tavares também exaltou a maneira como Margarida Maria Alves se dedicava à causa dos pobres e injustiçados. agricultores sem que fosse registrado qualquer ato violento contra a sua pessoa”, enfatizou o deputado. Pereira vê a possibilidade de “um plano político para se aproveitar do lamentável fato”. Faz questão de ressalvar que Margarida “era uma [A UNIÃO em 20 de 08 de 1983]. Fonte: correlegionária nossa, uma pessoa ligada idem. ao meu partido, o PDS, e não mediremos esforços para que a sua morte não seja usada para interesses outros”, destacou. Jornal O NORTE, João Pessoa, 14 ago. 1983. Cidades, p.03]. Fonte: Ferreira (2006, p. 73). O então deputado Aércio Pereira tentou dividir a opinião pública, na ocasião, sobre o possível desfecho do assassinato de Margarida Alves. Associando possíveis „relações correlegionárias‟ entre ela com os grupos locais, proprietários de terras, inclusive o próprio, e que por serem todos ligados ao PDS, não haveria interesse destes em querer assassiná-la; Ao mesmo tempo, que redirecionou para possíveis „outros grupos político partidários‟, estarem ligados de alguma forma ao assassinato de Margarida. Aércio Pereira fazia referência aos militantes sindicais que eram vinculados a outras legendas. Por exemplo, ou ligados ao PMDB, oriundo do MDB, que há pouco tempo havia representado o único partido legalizado de contestação da ditadura militar que vigorou durante o bipartidarismo, ou ao recém criado Partido dos Trabalhadores (PT), partido que congregava várias organizações de esquerda, muitas delas, inclusive, que haviam resistido à ditadura em combate armado, portanto, era considerado uma „ameaça‟ aos latifundiários, ainda mais por defender claramente a reforma agrária. Passados alguns meses, a greve dos canavieiros foi deflagrada e se estendeu por todo o Nordeste. Os movimentos cresceram, outras mortes de trabalhadores rurais continuaram ocorrendo e os latifundiários de todo o país passaram a organizar uma legenda, intitulada União Democrática Ruralista, conhecida como UDR, fundada em 1986. Paralelamente, continuava-se as investigações do crime contra Margarida Alves, e fortes mobilizações promovidas pelos movimentos sociais concentravam-se nos tribunais, ou mesmo na frente da Igreja de Alagoa Grande, quando do aniversário de 8, de 15, de 30 dias, e depois a cada ano. [...] Agnaldo morreu, se eu não me engano, em 1990, sem ser processado como o mandante daquele crime. No primeiro momento ele foi indiciado, ele compareceu à polícia para prestar esclarecimento. Ele, junto com outros plantadores de cana de açúcar da região. É, mas não chegou a ser sentenciado, no processo penal que apurava o caso. A polícia, a justiça e o ministério público, naquela época, não tinham independência para processar uma figura como Agnaldo Veloso Borges. Isso num primeiro momento, posteriormente, porque na primeira fase do processo nós tivemos A. V. B. denunciado junto com os fornecedores de cana, dezenas deles, no município. Foi denunciado e processado Antônio Carlos de Almeida, um dos fornecedores conhecido como Carlinhos, mas o Betâneo Carneiro dos Santos, o autor dos disparos e os irmãos Amaro e Amauri José do Rêgo, eles eram dois toureiros que participaram de uma tourada em Alagoa Grande e conheceram, na ocasião, o Carlinhos que fez o contato direto, chegando inclusive a conhecerem d. Margarida no sindicato e levando um bolo, no dia 5 de agosto, dia do seu aniversário. O pai de Carlinhos nos parece que gastou uma parte de suas propriedades que tinha para defender o filho. O filho foi submetido a júri por três vezes e nas três vezes foi absorvido. O movimento sindical e social e o movimento local, em Alagoa Grande, não conformado com a primeira etapa do processo, recorreram. Pois os primeiros inquéritos apenas sentenciaram, mas não processaram todos os indiciados por terem tentado contra a vida de Margarida. (E-09, Em 31/07/2009). Daí, foram ocorrendo vários acontecimentos, várias mortes, e vários depoimentos que alertavam que tais mortes seriam „queima de arquivos‟ de pessoas que estavam envolvidas direta ou indiretamente no assassinato de Margarida Alves. E várias ONGs e movimentos sociais voltados para os Direitos Humanos passaram a levantar pistas, na tentativa de contribuir para o desvendamento do crime . [...] Corria os anos de 1988, antes da grande campanha presidencial de 1989, em que estava à frente da CUT o professor Wilson Aragão: grandes mobilizações. E a CUT, a CPT, a FETAG, e a CONTAG tiveram um papel importante em não se contentar com a impunidade que ocorreu no Estado. E, aí, nos movimentos sindicais e sociais, os advogados, passada essa primeira etapa, nós continuamos realizando uma investigação paralela. Descobrimos na cidade de Areia, uma senhora, funcionária pública federal, que trabalhava na FUNASA, chamava-se d. Socorro, que um dia ela nos procurou para conversar e nos deu um monte de informações, em que o marido dela [Biu de Genésio], juntamente com Betâneo Carneiro teria participado daquela emboscada à Margarida. E era uma pessoa da cozinha de Zito Buarque. E, com base no depoimento dela, levamos a cartório e as autoridades policiais e civil, novos fatos e novos documentos. (E-09, Em 31/07/2009). Tanto o (E-09) quanto o (E-10) colocam que, em 1988/1990 e 1991, a Secretaria de Segurança Pública designou um delegado especial para o caso Margarida. Tomou depoimento de Betâneo Carneiro, tomou depoimentos de alguns fornecedores de cana, e do pessoal da usina. E, a conclusão da morte da mesma foi de que os culpados foram: Agnaldo Veloso Borges – o mandante – e os outros principais envolvidos foram: José Buarque de Gusmão (o Zito Buarque), Antônio Carlos Coutinho Regis, os irmãos Amauri José do Rego e Amaro José do Rego, e Biu Genésio, motorista do veículo utilizado no crime e morto em janeiro de 1986 como “queima de arquivo”. O ministério público denunciou tudo isso numa batalha judicial muito grande. E, nos anos 1990 -1994, os movimentos sociais começaram a reclamar da condução do processo em Alagoa Grande. Entrava e saía promotor e vários deles foram sendo afastados. Fomos percebendo que vários deles faziam pouco do caso. Trouxemos, a CPT e a CUT, o caso ao tribunal de justiça, tendo à frente, o procurador Antônio Elias de Queiroga; de pronto ele concluiu que o empenho dos movimentos sociais e religiosos eram muito fortes e procedentes. De pronto ele indicou um juiz em caráter especial. Esse juiz, em 60 dias, ele instruiu o processo e mandou Zito Buarque para a cadeia, em que o mesmo ficou apenas 40 dias. Alguns atores do movimento sindical e sociais acharam pouco, mas, foi assim, para quem estava envolvido chegou a achar que seria impossível levar alguém um dos mandantes a cadeia. Portanto, essa prisão foi de suma importância. Bom, primeiro, foi um julgamento que levou muitas horas, ele ficou frente a frente da justiça, tendo que responder aquele interrogatório todo. Tinha que ter tudo isso, e ver o Zito Buarque preso por cerca de 40 dias no 2° batalhão representou um gosto de vitória da não impunidade! Ele ficou em sela especial, porque ele era médico e a legislação dava esse privilégio. Mas, a partir dali, a usina TANQUES degringolou, o prejuízo material e pessoal, para a família Borges, para o Agnaldo, também, foi um preço alto. Perderam a tranqüilidade e passaram a viver sem tranqüilidade. (E-09, Em 31/07/2009). (grifos meus). Posteriormente, alguns dos advogados do caso de Margarida Alves foram intimidados pelo próprio Zito Buarque. E os advogados que defenderam o Zito Buarque chegaram a alegar que ele apresentava problemas de saúde, e que “apostavam com os advogados de Margarida que dentro de quatro a três, ou quatro a dois, ele ganharia a absolvição” (idem). Foi neste momento que o caso Margarida passou a contar com apoio de novos advogados, que se ofereciam para acompanhar o processo. E nós recorremos por um novo júri, em Brasília, no ministério público, nós pedimos que se fosse pedido um novo julgamento. Mas, isso não ocorreu para o STJ ele se posicionou colocando que esse caso deveria ser arquivado. Tendo sido condenados, no final, apenas os pistoleiros. Aqueles que colaboraram indiretamente com o crime, como os fornecedores de Cana, foram se destruindo. E outras figuras envolvidas no crime, que no momento não me recordo agora, eles saíram matando uns aos outros. Betâneo matou Severino, depois desapareceu. Depois mataram Paes de Araújo. A gente contabilizou 7 (sete)mortos. E contabilizou, também, outra coisa importante; a tragédia que foi a morte de Margarida, foi uma morte que reforçou a luta no campo, na Paraíba [essa é a maior expressão de representação social dos novos movimentos sociais] e no Nordeste. (idem). [grifo meu]. Na visão de vários sindicalistas, os usineiros, eles buscavam pistoleiros em cidades circunvizinhas para realizar crimes no campo. Naquele momento, havia muita gente que se prestava à matança de aluguel, mas a morte de Margarida aconteceu no auge daqueles grupos oligárquicos, que três anos mais tarde se juntariam para formar a UDR, no Brasil e na PB. Agnaldo Veloso Borges foi a figura que liderou a UDR na Paraíba. “Mas, mesmo no auge, a repercussão e a comoção que houve com a morte de Margarida estancou os assassinatos”, afirma o (E-09): “Naquela época era 1 ou 2 por mês, essa situação reduziuse significativamente”. De lá para cá, cada vez mais os movimentos sociais do campo foram se firmando, durante toda a década de 1990, como protagonistas dos movimentos sociais, sendo o MST o principal deles. Mas, segundo Gohn (2003), não é possível „enquadrar‟ o MST como simplesmente um dos Novos Movimentos Sociais, nem tampouco do velho. Ele já nasceu representando um movimento com traços históricos únicos e „herdeiro‟, muito mais, das Ligas Camponesas, do que do novo sindicalismo, por exemplo. De lá para cá, outro fenômeno que destaco é que a economia canavieira foi perdendo subsídios e as usinas começaram a entrar em falência. [...] acabou que aqueles hectares de terras pelas quais Margarida tanto lutou antes de ser assassinada foram sendo conseguidos com mais „facilidade‟. Isso porque as usinas e os engenhos, não podendo indenizar os camponeses por direitos trabalhistas, começaram a indenizar dando pedaço de terra. Aí começou a pipocar as ocupações, a CPT já estava visibilizada e o cenário era outro. Logo depois chegou o MST em nosso Estado. Os assentamentos no estado da Paraíba forma crescendo, na medida que o conflito ia ficando forte vinham novas mortes de trabalhadores rurais. (idem). Atualmente, já passam de 200 assentamentos, em nosso Estado, que têm à frente a CPT ou o MST. Então, naquele momento, de Margarida Alves, se lutava por um pedaço de terra e, hoje, se luta por educação, saúde, assistência técnica, crédito agrícola, cultura e economia solidária sendo realizada diretamente nos assentamentos. A agricultura familiar tornou-se uma realidade. Mas, a via campesina, como está sendo chamada a organização do conjunto dos movimentos sociais do campo, continua sendo perseguida, ameaçada constantemente pelos latifundiários, que agora se aglutinam no chamado agronegócio. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A síntese das representações: do pé que plantou Margarida, muitas margaridas nasceram A análise realizada neste estudo voltou-se, sobretudo, para a história da líder sindical Margarida Maria Alves, a partir das variadas dimensões constituídas em sua trajetória de sindicalista mulher, que se formaram na atuação político-educativa em defesa dos direitos dos/das trabalhadores/as. Margarida Maria Alves tornou-se um personagem em conflito na almejada transição do Estado brasileiro, que oscilava entre uma economia conservadora para um estágio „que se pretendia modernizante‟, aos olhos do capital. Na verdade, um Estadonação endividado pelo „pouco‟ que conseguiu modernizar-se, através da industrialização, e que se tornou uma economia extremamente dependente do capital estrangeiro, sem conseguir se libertar da formação agro-exportadora de monoculturas. Tinha-se um Estado que atravessava, nesse início dos 80 (1980), uma lenta, muita lenta transição entre governos autoritários, dirigidos por ditaduras militares, para um estágio de volta aos direitos civis e democráticos, com um saldo enorme de mortos, de dívidas, e da falta de um projeto de nação. Margarida Alves vivenciou outro contexto de transição igualmente importante - a transição entre o velho e o novo sindicalismo, entre velhas e novas formas de movimentos sociais. Tratava-se de novas formas de fazer movimento, no sentido de colocar na pauta do debate o econômico e o cultural, cobrando ações coletivas do Estado, mas, também, do próprio conjunto social, novas formas de sociabilidade, para se obter direitos, sem ter que negociar outros, já conquistados. Este novo formato de ser dos movimentos sociais foi constituindo forças para combater, do mesmo modo, os mais variados preconceitos, onde quer que eles estivessem. Os Novos Movimentos Sociais surgiram, como nos diz Neruda, dos olhos dos meninos e meninas de rua, das profissionais do sexo, dos presidiários, dos desempregados, dos oprimidos sexualmente, dos anciões abandonados, dos negros e negras aparthaidos à brasileira, dos camponeses, enfim: dos Excluídos da História. Mas, será que Margarida Maria Alves conseguiu realizar toda essa transição? Ou, melhor dizendo, todo esse trânsito? Podemos relacionar esse personagem em conflito – como dito nesta tese - com uma nordestina atravessando o trânsito na Avenida Paulista, literalmente. Talvez, sim, talvez não. O sinal não ficou apenas vermelho para ela. Lhe atropelaram antes! Alguns insistiram que ela morrera na contramão. Coronéis das oligarquias [pais dos coronéis da ditadura militar] insistiram ainda mais: que ela morrera na contramão e ficou atrapalhando o trânsito, o seu e o dos outros. Margarida foi capaz de despertar na memória de outras camponesas a referência de uma mulher dirigente de espaços marcadamente masculinos. Simbolicamente, refletindo-se no empoderamento da transformação da dor em luta contra todo tipo de opressão. Despertou, ainda, formas de resistência e de auto-organização feminina no meio camponês. Daí, alguém poderia perguntar: mas, ela não era uma feminista? E daí? Para as feministas e para as não feministas dos movimentos sociais essa nunca foi uma questão de divisão de águas, aliás, na visão feminista da qual me acosto, lugar de mulher é em todo o lugar, inclusive no trânsito, a contragosto dos homens. Nas palavras de Rocha (1996, p.09), jornalista e repórter do jornal O Estado de São Paulo encontrei o seguinte pronunciamento sobre a morte de Margarida Alves: Margarida sonhou. Sonhou sempre, cotidianamente, insistentemente, ardentemente. E fez do sonho sal para enfrentar os poderosos. Os que se acham donos da terra, donos do trabalho alheio – escravizando-o -, donos do pensamento e do corpo de outras pessoas, donos da vida alheia. Margarida Maria Alves tornou-se figura quase lendária, como indica o texto de Rocha. A leitura do cenário no qual atuou Margarida revela, também, outros personagens femininos, ao mesmo tempo em que aponta para aqueles que a perseguiram. Porém há de se indagar: quem tinha medo dessa mulher? Quem queria calá-la? Voltando ao nosso passado, pode-se perceber essa resposta com uma leitura retroativa de nossa “história”. As possibilidades de respostas, então, poderão ser encontradas nos olhos dos oprimidos que hoje continuam na luta pela terra e que se organizam nos sindicatos rurais, na CPT, no MST e nas organizações campesinas, que foram sendo excluídos/as desde a nossa herança colonial, a mesma que dizimou índios, seqüestrou e escravizou negros/as e distribuiu terras para quem só queria plantar nela prestígio aristocrático, concentrando terras e poder político, poder das vidas alheias. Em meus estudos anteriores 46 , foi possível perceber que o processo de “distribuição” ou concentração das terras primeiro ocorreu de acordo com a conveniência monárquica através das capitanias hereditárias, por meio das medidas do ordenamento fundiário e decretado através de cartas régias, alvarás e ordenações religiosas do Sistema Sesmarial. Segundo, depois de loteado o Brasil, no período imperial, elabora-se a Lei de Terras, em 1850, anunciada como um projeto modernizador. Tal lei fora criada por uma bancada de parlamentares proprietários de terras, que trataram de regulamentar e legalizar o que já haviam tomado para si, frustrando não só a chamada modernização, mas configurando, efetivamente, a exclusão dos que não tinham seu pedaço de chão e queriam nele plantar e colher alimento. Desta forma, entram em cena, depois dos senhores sesmeiros, os novos herdeiros: os coronéis e os latifundiários, que ameaçavam, perseguiam e, quando ainda não satisfeitos, calavam as vozes dos que iam à luta e denunciavam a violência no campo. Assim aconteceu com Canudos, no período dos coronéis, com João Pedro Teixeira e Nego Fuba, das Ligas Camponesas, com Margarida Maria Alves, do sindicato rural de Alagoa Grande – PB, e com tantos outros e outras que tombaram em defesa de um pedaço de terra, onde o único crime era o desejo por uma reforma agrária, ainda que tardia. Daí nasce o mito: Margarida Maria Alves, que tem sido lembrada nos movimentos sociais como mártir da reforma agrária. Conflitantemente, esse mesmo personagem foi percebido como incoerente, dado o seu posicionamento ideológico, nas eleições de 1982, e a sua suposta filiação partidária ao PDS. Neste conflito, pude observar que Margarida Alves, já com uma postura política pública determinada em defesa dos trabalhadores rurais, ela – Margarida - ainda, 46 Para saber mais sobre esse estudo, ler “A Questão de terras na Paraíba”, artigo meu, em co-autoria com SILVEIRA, Rosa Maria Godoy. Premiado no X Encontro de Iniciação Científica da UFPB e publicado na revista Iniciados, em 2003. „escutava‟ o marido, condição que lhe prendia nas teias da cultura patriarcal. Este, por ser homem, marido e ex-sindicalista, do tipo que realizava práticas clientelistas presentes no chamado „velho sindicalismo‟, a influenciava em contextos políticos sindicais e/ou partidários decisivos, a exemplo das eleições de 1982. Compreendo, no entanto, que dessa relação de marido e mulher, entre o Sr. Cassimiro Alves e Margarida Alves, regada à afetividade de se chamarem de „filhinho‟ e „filhinha‟, Margarida Alves, também, conseguiu „influenciar‟ o cônjuge, concomitantemente, enquanto se formava no processo educativo, dos novos movimentos sociais. Tal formação-participação lhe conduziu - Cassimiro Alves - a esta consciência, de que os poderosos usineiros eram, sim, inimigos de classe. A representação dessa „influência‟ pode ser entendida na atitude do Sr. Cassimiro Alves, quando o mesmo não hesitou em momento algum de acreditar que teriam sido os usineiros os responsáveis por mandarem assassiná-la, indo denunciar, inclusive, na imprensa local. Nesse contexto, Margarida Alves foi capaz de ir além dos chamados limites femininos. Em seu aprendizado, manifestou a idéia de romper com a esfera do mundo privado e estender-se para a esfera do mundo público, na Igreja, no sindicato e no partido político. Essa confluência de ações e saberes lhe forneceria a capacidade de questionar a violência provocada pelo latifúndio. Não se considerava feminista, mas acreditava na contribuição do feminismo para o entendimento das opressões que fustigavam as mulheres, bem como sabia que o feminismo apontava táticas, não apenas para amenizar essa opressão, mas até mesmo para aboli-la. Após a sua morte, essa reflexão mais preponderante tem sido desenvolvida por outras contemporâneas. Tal entendimento está refletido como contou, nesta pesquisa, a (E3): [...] as outras mulheres não participavam do sindicato, nas assembléias, só os homens chegavam. Quando acontecia chegar uma ou duas mulheres, ficavam caladas, quando questionavam alguma coisa, os homens diziam que elas não tinham que falar, então, a gente viu a necessidade e a preocupação que se tinha que se ter com esse movimento das mulheres para que essas mulheres passassem a ter formação, começasse a elas se sentir gente também e lutar pelos seus direitos [...]. (E-3). (FERREIRA, 2006, p. 106). Entende-se, então, que essas identidades construídas em termos de alterações dos papéis desempenhados por homens e mulheres se dariam através da educação, de uma educação libertária que buscou estabelecer um diálogo para a transformação das relações sociais, no acesso à fala e aos cursos de formação iniciados com o CENTRU. Desta forma, se auto-organizaram e constituíram o movimento autônomo de mulheres campesinas e provocaram mudanças que foram além das estruturas, na perspectiva de se libertar das amarras impostas pela cultura patriarcal. Essas novas práticas educativas são similares às já preexistentes, quando das suas ações no sindicato, até porque não deixaram de continuar nas estruturas deste. Mas a autonomia necessária requeria e requer uma dupla jornada militante, já presenciada anteriormente, em outras experiências, e que se incompatibiliza com o discurso político dos homens no espaço sindical. Cabe lembrar que, nessa experiência, tive a oportunidade de conviver com algumas dessas discussões e de perceber suas lutas cotidianas e a incorporação das novas inquietações, que instigam a continuidade desses debates. Todavia, importa reforçar que é inegável o debate insurgido pelo feminismo, na perspectiva de um novo movimento social e do seu diálogo com outros movimentos populares, estabelecendo, além da auto-organização de grupos de mulheres, a auto-estima traduzida pela disposição do sujeito construído, o sujeito autônomo. Por fim, quero ressaltar que o debate de gênero introduzido no movimento sindical rural da Paraíba, na década de 1980, deu uma nova configuração aos movimentos sociais, proporcionando mudanças neste cotidiano sindical; em outras palavras, enriqueceu-os com as novas falas. São as falas de Margarida Maria Alves, Maria da Penha, Maria da Soledade, Maria do Céu, Antônia, Josefa e tantas outras que ousaram construir a sua autonomia, reivindicar direitos e buscar mais e mais espaços, do espaço da casa ao do sindicato, da organização das mulheres para muitos outros lugares, sem medo de enfrentar os “donos das terras” e a cultura patriarcal, mas demarcando e (re) afirmando a vontade de se construir sujeito da história. Compreendo que as aprendizagens – de classe e gênero - nestas transições só foram possíveis a partir de um conteúdo educativo colocado no cotidiano sindical e, posteriormente, apreendido por outros sujeitos individuais e coletivos, presentes nos mais variados movimentos sociais. Estes sujeitos foram capazes de desenvolver uma „consciência de direitos articulados‟, e não apenas de uma „busca por benefícios coorporativos‟. Direitos do trabalhador; direitos da mulher; direito a ter direitos. Gradativamente, essa „consciência‟ foi sendo mediada pelos necessários cursos de formação/educação política, que passaram a ocorrer dentro das instâncias de cada movimento social. Essa „consciência‟ representou, do mesmo modo, outra lição: a de que para se adquirir „direitos‟ seria necessário mais do que uma luta ideológica de classes sociais. Igualmente, seria necessária a reflexão das experiências, de suas coerências e incoerências, ou seja, de uma necessária práxis (auto) educativa. Ao defender, aqui, a tese de que Margarida Maria Alves foi um personagem social em conflito com a transição do velho para o novo sindicalismo rural, vivenciei, ao longo do processo de elaboração da mesma, muitas dúvidas sobre se seria possível ou não defendê-la. Primeiro, o argumento inicial da TESE foi sendo modificado, ou melhor, dizendo, sendo construído, desconstruído, transformado, lapidado, até que, em minhas orientações semi-finais, fiquei um pouco mais tranqüila. Foi quando entendi que o orientador dizia: “escute as suas fontes, pare e escute as suas fontes”, as fontes novas, orais e documentais. Passei a ouvi-las e percebi que já falavam por si só. Apontavam um ruído sonoro, igual à buzina de trânsito educada dizendo „Yes I can[...] Yes, I can‟. Sim, é possível afirmar que Margarida Maria Alves vivenciou vários conflitos de transições num contexto marcado por práticas autoritárias versus práticas democráticas e que conseguiu estabelecer algumas importantes rupturas. Rupturas no sentido de romper com práticas clientelistas. E rupturas no sentido de crescer, pois quando uma célula vegetal rompe o tecido, significa crescimento. Ela cresceu porque sonhou com o desejado projeto de nação que os novos movimentos sociais passaram a desenhar na história do Brasil e que, naquele contexto, queria resolver o latente desemprego, o alto índice de analfabetismo, as mortes por desnutrição, alcançar a estabilização da economia e, principalmente, estacionar o êxodo rural e a fome no Nordeste, realizando a principal reforma esperada pela sua classe – a dos camponeses – a reforma agrária. E quanto às rupturas que Margarida Alves não conseguiu concretizar, ou mesmo, algumas práticas políticas que possam ter sido interpretadas como contraditórias, na sua experiência política? Elas - as fontes - me convenceram, ainda, de que Margarida Maria Alves foi uma mulher que avançou em sua „consciência‟ de classe e de gênero, mas foi, também, uma mulher normal, com acertos e desacertos, com contradições e tudo o mais, contradições típicas de períodos de transições, contradições típicas de seres humanos. Quem não as tem? REFERÊNCIAS ABNT. 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