56 Entre a Mãe ideal e a Medicina ideal: síndrome de Münchhausen

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Latin-American Journal of Fundamental Psychopathology on Line, VI, 2, 56-68
Entre a Mãe ideal e a Medicina ideal:
síndrome de Münchhausen transferida,
um transtorno factício*
Adela Stoppel de Gueller
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O trabalho analisa artigos de revistas especializadas de pediatria
e psiquiatria que tratam da síndrome de Münchhausen transferida.
Contextualiza-se historicamente o transtorno para interrogar os
determinantes discursivos que deram lugar a essa configuração.
Procura-se desmistificar o pressuposto do instinto materno sobre o qual
se apóia e situar a relação mãe-filho como resultado de um laço
simbolicamente construído.
Palavras-chave: Síndrome de Münchhausen transferida, transtorno
factício, psicanálise, medicina, relação mãe-filho
Ciência e religião acabam em categóricos fracassos ao empurrar
até o impossível os limites da subjetividade na objetalização por
excesso de submissão ou por excesso de desafio.
Marta Gerez-Ambertin
* Trabalho apresentado em reunião científica no Departamento de Pediatria da Faculdade
de Medicina da Universidade de São Paulo, em setembro de 2002.
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Do Emile aos nossos dias
A injunção do amor materno pode ser datada em 1762,
inscrevendo-se na cultura pelo Emile, de Jean-Jacques Rousseau.
Rousseau naturalizou o lugar da mulher que, como mãe, deveria se
sacrificar por seus filhos. Antes, como mostrou E. Badinter (1985),
prevaleciam a indiferença ou as recomendações de frieza e um
aparente desinteresse das mães pelo bebê que acabava de nascer.
Guiando-se pelas idéias de Rousseau sobre a maternidade, o
discurso médico aliou-se aos interesses do Estado. A partir da
metade do século XVIII os corpos das crianças como fatores
produtivos da sociedade começam a ser importantes. Não se podia
mais deixá-las morrer antes de atingirem uma idade que permitisse
extrair-lhes algum proveito.
Os higienistas reintroduziram, então, a mulher na família,
devidamente convertida ao amor filial e aos serviços médicos. A
responsabilidade e a culpa pelo destino da criança passaram a ser
circunscrições do casal. A criança é o novo centro do universo
familiar. O amor materno é reduzido à categoria de instinto, e acede
assim ao campo da ciência. Dois séculos mais tarde, a ciência afirma
ter localizado o instinto materno na molécula de ocitocina, definida
em 1992 por Niles Newton como o “hormônio do amor”. (Odent,
2000, p. 11)
Em 1912, realizou-se em Túnis a 22a sessão do congresso dos
alienistas e neurologistas da França e dos países de língua francesa.
Dupré apresentou um informe psiquiátrico sobre as perversões
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instintivas? por muito tempo considerado clássico? em que não reformulou a
clínica, mas a maneira de decifrá-la e de situar as perversões no conjunto da
patologia mental. As perversões sexuais entravam num apartado mais geral, que
tratava dos instintos reprodutores, o que permitiu acrescentar a uma lista já
conhecida o infanticídio, o martírio das crianças, o incesto e as alterações do
amor filial como desvios do instinto de reprodução. O importante desse informe
é o novo lugar das perversões no discurso médico. Perversos são os atos que não
tendem à reprodução da espécie (Lanteri-Laura, 1994).
As marcas dos discursos de Rousseau e Dupré são visíveis ainda na
contemporaneidade. Na edição de 1971 da Larousse, descreve-se o instinto
materno como “uma tendência primordial que cria em toda mulher normal um
desejo de maternidade e que, uma vez satisfeito esse desejo, incita a mulher a zelar
pela proteção física e moral dos filhos” (apud Badinter, 1985, p. 71).
Uma vez situado o amor materno como um instinto, também se pode definir
sua perversão? o desvio ou a ausência do que se considera normal e natural para
toda mulher.
Ciência, política e maternidade dão mais um passo a partir da primeira metade
do século XX: a medicina consegue erradicar a mortalidade materna e infantil no
parto. A partir de então, entrelaçam-se a medicina e a procriação sob o imperativo
de se salvar o par mãe-criança dos riscos mortais do nascimento (Chatel, 1995,
p. 139).
Que o amor materno seja contingente e não necessário, como um instinto
animal, provoca angústia e incerteza, põe em questão o conceito de natureza da
ciência positivista, o determinismo natural e a ordem que deles deriva. Mas os
dados históricos mostram mudanças muito significativas, que a cultura procura
eliminar. A ciência transveste em objetividade e racionalidade o que há na cultura
de convenção, tentando esconder a face arbitrária da norma. A descrição de uma
nova síndrome alinha-se a essa tendência.
A síndrome de Münchhausen por poder
Datar a injunção do amor materno e a inscrição de sua perversão permitem
datar também a síndrome de Münchhausen por poder. Ela é descrita pela primeira
vez em 1977, por Meadow, e reconhecida pela psiquiatria em 1980, quando se a
inclui no DSM-3. E que nova síndrome é essa? Trata-se de uma resposta particular
ao ideal materno instaurado na modernidade? Se sim, que determinantes sociais
favorecem a configuração dessa nova forma de violência categorizada como mautrato infantil?
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O nome provém de um quadro descrito primeiramente em adultos. Em 1951,
Ascher introduziu a denominação síndrome de Münchhausen 1 para definir os
pacientes que “fabricavam” histórias clínicas com falsos sintomas e absurdas
evidências sobre enfermidades, submetiam-se a múltiplas investigações médicas,
operações e tratamentos desnecessários, mesmo correndo risco de vida (Ascher,
1951, p. 339). 2
Ela consta hoje nos manuais de psiquiatria entre os transtornos factícios ou
fictícios, 3 ao lado dos simuladores, mas distinguindo-se deles por não ter uma
clara motivação como a evasão de um processo criminal ou do recrutamento
militar, a obtenção de moradia ou de drogas ou a compensação financeira. A única
motivação aceita, compatível com o diagnóstico de Münchhausen, é a de querer
ocupar o papel de doente.
Meadow propôs a denominação síndrome de Münchhausen por poder ou
transferida (SMT) para designar um transtorno fictício pelo qual se sugere a doença
do filho, induzida ou fabricada pela pessoa mais próxima dele na maior parte dos
casos, a mãe.
A classificação do transtorno como fictício é quase marginal dentro desses
mesmos manuais, já que implica um paradoxo. Pode-se classificar como um
verdadeiro transtorno um quadro cuja característica central é a falsificação? Em
outros termos, pode um falso transtorno ser um transtorno verdadeiro?
Essa indagação – não formulada explicitamente pelo discurso médico – subjaz
às descrições encontradas na literatura científica, e pode ser determinante dos
modos de agir e pensar da medicina atual, analogamente ao que aconteceu com
a histérica, no século XIX.
1. Essa denominação refere-se ao clássico personagem da literatura alemã que ficou famoso pelos
relatos absurdamente exagerados e fantasiosos de suas façanhas (Burger, 1990).
2. Como antecessor deste quadro se encontra um relato de caso de 1911 categorizado como
“patomemia” (simulação mórbida de doença).
3. A distinção entre factício e fictício não é fácil de ser apreendida. Estamos entre dois significantes
e é só numa letra que se suporta a diferença. Se procurarmos no dicionário, ele nos remete
indefinidamente de um verbete a outro. É interessante ver que essa distinção é a mesma que se
mantém desde o latim. O Aurélio diz: Factício (Do lat. facticiu.) Adj. 1. Produzido ou imitado
pela arte; artificial. 2. Artificial, convencional; não natural: & [Var.: fatício. Cf. fictício.] Fictício
[Do lat. ficticiu.] Adj. 1. Em que há ficção; imaginário, ilusório, fabuloso: 2 & 2. Aparente,
simulado, falso: 2 [Cf. factício.]
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Pronto, socorro!
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Vejamos um caso de SMT, descrito num artigo médico. Uma mãe leva sua
filha de um mês de idade ao hospital, com um quadro de diarréia e infecção
pulmonar. A mãe é descrita pela equipe médica como um exemplo de devoção
materna. Interna-se a criança e a mãe começa a se apresentar repetidamente no
lugar onde as enfermeiras centralizam suas tarefas, com o bebê sofrendo
convulsões. Para elucidar a natureza das convulsões, os médicos fazem uma série
de exames, com resultados negativos. Percebem então que os ataques só se
produziam quando a mãe acompanhava a criança, mas não na sua ausência. Um
deles descobre uma mancha peribucal que aparecia nos ataques, que o faz lembrar
de experiências no laboratório de fisiologia, quando observava o processo de
asfixia experimental em animais. Com esses dados, a assistente social e o
psiquiatra começam a trabalhar com a mãe, que acaba descrevendo como produzia
os ataques: introduzia um dedo na garganta da criança até vê-la ficar “azul”. Ela
conta também que, nesse momento, interrompia a manobra e acudia a pedir ajuda
às enfermeiras. A mãe explicou que, desde sua internação, durante a gravidez,
sentia-se muito só e provocava os ataques para ter mais atenção e “calor” por parte
da equipe médica. A mãe era considerada uma trabalhadora competente, que se
ocupava de crianças, uma boa mãe e uma filha dedicada, já que sempre tinha
cuidado de seu pai, que era um doente crônico. Em sua adolescência, tivera
conflitos com a mãe e, no início da vida adulta, sofreu desmaios que foram
considerados de tipo histérico-conversivos.4
O caso atesta que estamos bem longe do abandono ou da indiferença de
1700, mas em que lugar se põe a criança nessa configuração? Suspendamos a
pergunta e analisemos os elementos mais importantes do quadro:
1. A modalidade da ação é a falsificação, que se dá de três formas diferentes: a)
como relatos falsos (nos casos mais leves); b) alterando-se o material de
laboratório; ou c) provocando-se sintomas no corpo da criança (como no caso
descrito).
2. Produzem-se sintomas ou signos para serem decifrados ou diagnosticados,
cuja variedade é limitada pelo número de conhecimentos médicos que a mãe
possa ter. As formas mais comuns são: em 44% dos casos, hemorragias (para
as quais se usa geralmente o próprio sangue menstrual ou sangue de animais);
em 42% dos casos, convulsões; em 19%, depressão do sistema nervoso
central; em 15%, apnéia; em 11%, diarréia; em 10%, vômitos; e, em 9%,
exantema. (Rosenberg, 1987, 11, p. 547-63).
4. Caso extraído de Stelzer e Karpf, n. 95, 1981, p. 141-2.
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3. O alvo da ação é o médico (ou a equipe médica) ou, talvez, a própria Medicina.
4. O objeto é a criança.
5. Qual seria a finalidade da conduta da mãe? Por que e para quê uma mãe
sugeriria, induziria ou produziria sintomas no filho? Inicialmente, Meadow
destaca uma motivação sádica: para praticar procedimentos cruéis na criança.
Mas quando o quadro passa da pediatria para os manuais de psiquiatria
(DSM -IV e CID 10), o objetivo alegado é querer ocupar indiretamente o papel
de doente. Em outros termos, tornar-se objeto de cuidados. O preço pago ?
o sofrimento ? passa a ser secundário. Entretanto, parece-nos que a finalidade
da conduta da mãe deve ser rastreada na trilha do desejo de que o filho seja
investigado e tratado pelo sistema médico. Voltaremos a essa afirmação.
A categorização do quadro como um tipo de mau-trato infantil mostra a
permanência da questão do sadismo como tema nas discussões, intrigando os
médicos que ainda consideram o amor e a devoção materna como um dado
instintual, ou seja, primário.
Não soa estranho que alguém queira ocupar o lugar de paciente. Um pouco
mais difícil é aceitar que esse alguém se torne objeto de intricados e dolorosos
exames médicos. Mesmo assim, é possível, até aí, pensar no masoquismo erógeno
ou no masoquismo moral. Mas transferir essa posição para o filho levanta uma
série de perguntas. É o masoquismo transferível? Trata-se de uma reversão para
o sadismo? Em todo caso, já que o nome do quadro traduz by proxy por
transferido, podemos nos perguntar o que se está transferindo aí? Se é verdade
que a criança tem mais apelo social que o adulto, trata-se então de transferir o
poder de apelação?
Ainda questionando a categorização de mau-trato, vale a pena observar que,
à diferença de outros tipos de abuso, nesses casos, a ação não é só direta. Tratase de fazer com que outro continue a ação ou a exerça, do que resulta que o
médico e os enfermeiros acabem produzindo o mau-trato, agora configurado como
iatrogenia. Essa é uma diferença importante e intrigante em relação a outros tipos
de maus-tratos, que são usualmente situações duais, em que justamente falta uma
instância terceira. Aqui, essa instância é convocada, mas para ocupar que lugar?
Ao investigar sintomas que foram provocados como signos falsos, o médico
é levado a infringir o juramento hipocrático. O que se deslocou, portanto, é o
sujeito, o agente da ação. Não se trata mais da mãe nem da própria criança. No
terreno da iatrogenia, o sujeito é o médico e a única alternância possível consiste
em passar do sujeito ao objeto gramatical, já que a etimologia não permite
distinguir se a iatrogenia se refere à criação de uma doença ou a uma criação do
médico (genitivo objetivo e genitivo subjetivo).
O deslocamento do sujeito implica também um deslocamento da
responsabilidade. Por isso os médicos se questionam, se culpam e encolerizam
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perante esses casos. Se é difícil para eles aceitarem que desempenham um papel
na gênese dessa configuração, mais difícil ainda é compreenderem os efeitos
devastadores da ação médica sobre a subjetividade, mesmo considerando que já
estamos diante de uma subjetividade em estado terminal. Daí que, na demanda por
investigação e tratamento médico, sejam freqüentes as cirurgias de retirada de
órgãos. Oferecer o próprio corpo ou o do filho dessa maneira lembra os rituais
religiosos de purificação e mortificação, nos quais pela via do sofrimento o sujeito
intenta mudar sua posição simbólica. Os ritos de passagem marcam geralmente
o início da vida adulta ou religiosa; mas que tipo de inscrição se busca aqui? É
forçoso admitir que, para criar ou produzir intencionalmente sintomas no próprio
filho, uma mãe deve ter uma boa razão, ainda que não seja consciente.
A medicina ideal
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À diferença do que acontecia com a histeria do século XIX, aqui a medicina
é convocada para um outro lugar. São os instrumentos tecnológicos usados para
o diagnóstico que estão sacralizados e mesmo fetichizados, e não o lugar dos
médicos. Esse deslocamento implica transferir o investimento do olhar de quem
sabe para o olho que tudo vê.
O deslocamento do saber do médico para seus instrumentos diagnósticos
produz o concomitante deslocamento do médico para a Medicina e, poderíamos
nos arriscar a perguntar, da neurose para a perversão? Estamos no campo dos
ideais desencarnados, e não mais no das figuras idealizadas. É por esse viés que
o quadro nos permite ver o que nos escondem os exames: a cessão de poder que
o médico passou para seus instrumentos ou, em outros termos, o que Lacan
denominou a esquize do olho e do olhar. Mas quais as conseqüências dessa
mudança? Será que já não estamos mais no campo da subjetividade, mas
simplesmente naquele da produção?
Olho por olho
Voltemos ao lugar que ocupa a tecnologia médica nesse quadro. A mãe
solicita avidamente a realização de exames e procedimentos. Isso não pode deixar
de nos chamar atenção, porque o quadro se configura simultaneamente à sua
introdução na medicina. Hoje, o diagnóstico se apóia muito mais em análises
paraclínicas do que clínicas, o que distancia o corpo do doente do do médico. Não
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se trata, contudo, da mera substituição de um olhar por um aparelho óptico, da
intermediação da tecnologia entre os corpos do doente e do médico. Não se trata
de um descaso do médico para com o corpo do paciente. O médico nunca esteve
interessado no corpo em si. Para a medicina, o corpo sempre foi o lugar onde se
inscrevia a doença. O objeto do médico sempre foi a doença, e não o corpo em
si. Mas a tecnologia aplicada à medicina introduziu mudanças substanciais na
relação médico-paciente. No século passado, podia-se esperar que um paciente
morresse para se saber o que ele tinha. Hoje, a tecnologia “violenta a natureza”,
agindo sobre o corpo vivo. E, aqui, é exatamente essa violência que é solicitada,
mostrando o novo lugar do corpo/cadáver vivo (Clavrel, 1983, p.129).
Mas um instrumento de diagnóstico não pode, sozinho, produzir um ato
eminentemente simbólico como o que produz o ato médico e, assim, inclinamonos a pensar que, por trás da demanda de exames, há um apelo que não consegue
se fazer ouvir e fica prisioneiro num endereço errado. A subjetividade, contudo,
se imiscui exatamente no lugar de onde foi desalojada, pela única via que resta
aberta nesse endereço: a falsificação. O olho que tudo vê do tomógrafo, do
microscópio ou da ressonância magnética ainda pode ser enganado, porque não
vê a intencionalidade do agente da produção.
A oferta cria demanda
A síndrome de Münchhausen transferida permite ler um contrato implícito
firmado entre as mães e a pediatria, mas, ao invés de ser simplesmente acatado,
o caráter fictício/factício do quadro nos alerta para uma tentativa de subversão.
Vimos que o saber materno foi usurpado às mães pela medicina. Temos aqui uma
espécie de retorno, de revanche contra essa usurpação. Há uma tentativa de
reapropriação de um saber que, entretanto, não parece atingir o objetivo. Será que
a pediatria, disciplina tardia e artificial a serviço da maternagem, na defesa da saúde
e da harmonia do desenvolvimento das crianças, pode oferecer esse socorro?
Qual novos cavaleiros da Idade Média, os pediatras são chamados na defesa
da vítima desvalida nem tanto frente à doença, mas sobretudo ao
desconhecimento das mães, todas “ignorantes” de como tomar conta de seus
filhos. Com efeito, a destituição do saber da mãe, qualificando-o como
“instintivo” ou “natural”, assim como sua discordância com o saber científicomédico, marcam decididamente a aplicação à criança de uma tecnologia política
a partir da qual podem ser separadas as crianças sadias das doentes e as mães
obedientes às instruções de seus médicos das mães que desconhecem os
princípios mínimos de puericultura, que um médico já definiu como “uma cultura
pueril”. (Volnovich, 1993, p. 24)
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Mas, se pode falhar o laço que une a mãe ao filho, é porque a relação entre
ambos não é dada por um componente instintual. Por esse viés, a síndrome de
Münchhausen por poder questiona uma série de pressupostos da medicina que se
encontram tanto na teoria quanto na prática pediátrica.
Pode-se chegar longe...
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Se o amor materno pode faltar, é porque decorre de um laço que é
simbolicamente construído. Contudo, o que não falta no SMT é a devoção
materna. Ela é uma componente essencial dessa nova configuração, fazendo parte
dos dados que permitem seu diagnóstico.
A mãe se apresenta como uma mãe preocupada por não saber o que está
acontecendo ao filho. É uma mãe “exemplar” que pede socorro, geralmente nas
urgências dos hospitais. Por que essa mãe devota é vista como exemplar? O que
se espera hoje de uma mãe? Ou, em outros termos, qual é o ideal materno
proposto pelo Outro social da contemporaneidade?
Para sublinhar essa componente, mencione-se que os dois casos mais
conhecidos de STM chegaram até a Casa Branca e foram premiados pelas
primeiras-damas norte-americanas com o emblema de mãe exemplar: Em 1988,
Yvonne Eldrige foi eleita “Mãe do Ano” pela então primeira dama Nancy Reagan.
Suas duas filhas adotivas passaram por dezenas de médicos e se submeteram a
cirurgias por problemas intestinais. Hoje, Eldrige é acusada de não ter alimentado
as meninas e de ter descrito sintomas que jamais existiram.
Em 1994, Kathleen Bush foi recebida por Hillary Clinton e homenageada pela
devoção que demonstrava ter por sua filha Jennifer. A menina sofria de problemas
intestinais crônicos. Foi hospitalizada cerca de 200 vezes, para diagnóstico, e
submetida a 40 cirurgias. Mais do que isso, as sindicâncias médicas instauradas
após as denúncias concluíram que todas aquelas cirurgias, nas quais se
removeram a vesícula biliar, o apêndice e parte dos intestinos, foram
absolutamente desnecessárias, tendo sido realizadas apenas em função da
insistência da mãe junto aos médicos (Folha de S. Paulo. Editorial: Mais! Maio
18, 1997).
Quase deu certo ou, talvez, foi bom enquanto durou. Quantos casos que não
encontram explicação não terão essa mesma origem? E o que isso nos leva a
pensar? Do que é capaz o sujeito para ter um lugar de reconhecimento social, para
que sua singularidade tenha um espaço?
Tamanha devoção, que lembra o fanatismo dos conversos, põe-se ao avesso
quando os exames dão resultados negativos e os médicos informam que não
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encontram a causa orgânica para os sintomas da criança. A mãe exemplar se
transforma: de solícita, amorosa e cuidadosa, ela passa a ser querelante,
desconfiada, desagradável e obscena. Poder-se-ia pensar que sua reação remete
à raiva que sobrevém quando os médicos acabam com seu jogo ou simplesmente
a ameaçam de desistir. Isso parece se confirmar, mas há algo mais nessa súbita
transformação.
Nossa hipótese é que, pela via do factício ou do fictício, a mãe faz um apelo.
A investigação médica almejada seria um equivalente simbólico do caminho que
usualmente a mãe faz para decifrar os signos que seu filho lhe endereça. A falha
do laço entre a mãe e o filho tentaria uma suplência pela via da medicina. Pode
ser que se trate, como na histeria, de um apelo de escuta endereçado ao médico
como lugar de saber, mas pode também ser um apelo de inscrição numa ordem
simbólica fracassada. Nesse caso, o apelo estaria endereçado ao ato médico de
nomeação implicado no diagnóstico. O diagnóstico supriria um buraco de saber
materno que é recusado. O médico seria convocado a um lugar simbólico tanto
para suprir o não saber da mãe quanto para possibilitar uma separação simbólica
necessária para interditar o gozo incestuoso do filho e da mãe.
A falta de um saber simbólico que permita criar um laço maternal tenta
suprir-se com conhecimentos médicos. A mãe comparece ao hospital pedindo
amparo e sabe que o médico acolherá seu pedido se ela lhe oferecer signos a
decifrar. O que ela recusa é sua impossibilidade de ser mãe, de se situar como
Outro para a criança, a ponto de apresentar-se como modelo exemplar, ou seja,
com as vestes que a sociedade identifica como emblemas da mãe ideal. Ela se
autoriza a tanto pela aliança entre a pediatria e a maternidade, que, como, vimos
está historicamente datada.
Ora, falar de estrutura num transtorno descrito pela psiquiatria envolve
alguns riscos, sobretudo porque o diagnóstico não é realizado sob transferência.
Podemos, ainda assim, considerar certas variantes possíveis dentro do mesmo
quadro: que a mãe procure o diagnóstico como um ato eminentemente simbólico
que possa transformar sua real relação com o filho numa relação simbólica (nos
encaminharia à psicose), que se ponha a serviço da Medicina para se beneficiar
desse lugar (nos faria pensar em perversão) e que procure que seu filho – e, por
decorrência, ela própria – sejam reconhecidos como a exceção que precisa ser
estudada e acompanhada (nos faria pensar no apelo fálico da neurose). Mas, em
qualquer um desses casos, importa destacar que essas variantes só são possíveis
porque o hospital, principalmente o hospital público, é ainda um lugar de
acolhimento social. Fora dele, os lugares de amparo, reconhecimento e inscrição
sociais para o sujeito parecem estar desaparecendo num ritmo intenso. Assim, o
hospital torna-se uma opção onde se buscam, além de amparo, reconhecimento
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e inscrição. Talvez se possa pensar que é por isso que o número desses casos vem
crescendo de forma alarmante. Estima-se hoje que até 2% dos pacientes
internados em hospitais pediátricos se possam classificar nesse quadro. A cifra
é considerável.
Lucien Israel alertava os médicos: “Não sucumbir à equiparação, não
renunciar a criar relações privilegiadas são os imperativos do inconsciente
histérico, e o médico terá que favorecer a expressão, se não quiser vê-las
expressarem-se de forma mais perigosa” (1979, p. 246).
O quadro parece ser já um efeito dessa falta de acolhimento da singularidade
que a medicina também promoveu ao situar como axioma biomédico no século
XX que só se poderia colocar a possibilidade de um transtorno funcional ou de
uma causa psicogênica quando se tivessem descartado completamente as causas
orgânicas.
Mas, como afirmamos no início, o discurso médico não está desarticulado
de outros discursos dominantes no âmbito social. O que podemos dizer é que,
hoje, o discurso médico e suas instituições suportam um peso cada vez maior de
outras instâncias sociais que davam suportes simbólicos ao sujeito. A medicina
ainda sobrevive, embora venha sofrendo mutações, e o hospital talvez seja, hoje,
um dos poucos lugares onde qualquer um pode entrar.
Referências
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Resumos
El trabajo analiza artículos de revistas especializadas de pediatría y psiquiatría
que abordan el síndrome de Münchhausen transferido. Se contextualiza históricamente
el trastorno para poder investigar los determinantes discursivos que posibilitaron esa
configuración. Objetivase desmitificar la suposición de instinto materno sobre la cual
se apoya y situar la relación madre-hijo como resultado de un lazo simbólicamente
construido.
Palabras claves: Síndrome de Münchhausen transferida, trastorno facticio,
psicoanálisis, medicina, relación madre-hijo
Le travail a analysé des articles de révues spécialisées en pédiatrie et en
psychiatrie qui parlent de la syndrome de Münchhausen transfert. On a mis le trouble
dans son contexte historique pour interroger les déterminants discursives qu’ont donné
place à cette configuration. On a essayé de démythifier l’amour maternel, sur lequel
s’appuie , et on a essayé de situer la relation mère-enfant comme le résultat d’un lien
symboliquement construit.
Mots clés: Syndrome de Münchhausen transferte, trouble factice, psycanalise, medicine,
relation mère-enfant
This work revues articles of specialized journals of pediatrics and psychiatry that
address the Münchhausen syndrome by proxy. This disorder was historically
contextualized in order to inquire into the discursive determinants that give rise to this
configuration. It was tried to clear up the assumption of a mother instinct on which this
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L A T I N - A M E R I C A N
J O U R N A L
O F
F U N D A M E N T A L
PSYCHOPATHOLOGY
O N
L I N E
ano VI, n. 2, nov/ 2 0 06
disorder is based and to put the mother-child relation as a result of a symbolically built
bound.
Key words: Münchhausen syndrome by proxy, factitious illness, psychoanalysis,
medicine, mother-child relation
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