L A T I N - A M E R I C A N J O U R N A L O F F U N D A M E N T A L PSYCHOPATHOLOGY O N L I N E ano VI, n. 2, nov/ 2 0 06 Latin-American Journal of Fundamental Psychopathology on Line, VI, 2, 56-68 Entre a Mãe ideal e a Medicina ideal: síndrome de Münchhausen transferida, um transtorno factício* Adela Stoppel de Gueller 56 O trabalho analisa artigos de revistas especializadas de pediatria e psiquiatria que tratam da síndrome de Münchhausen transferida. Contextualiza-se historicamente o transtorno para interrogar os determinantes discursivos que deram lugar a essa configuração. Procura-se desmistificar o pressuposto do instinto materno sobre o qual se apóia e situar a relação mãe-filho como resultado de um laço simbolicamente construído. Palavras-chave: Síndrome de Münchhausen transferida, transtorno factício, psicanálise, medicina, relação mãe-filho Ciência e religião acabam em categóricos fracassos ao empurrar até o impossível os limites da subjetividade na objetalização por excesso de submissão ou por excesso de desafio. Marta Gerez-Ambertin * Trabalho apresentado em reunião científica no Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, em setembro de 2002. ARTIGOS ano VI, n. 2, nov/ 2 0 06 Do Emile aos nossos dias A injunção do amor materno pode ser datada em 1762, inscrevendo-se na cultura pelo Emile, de Jean-Jacques Rousseau. Rousseau naturalizou o lugar da mulher que, como mãe, deveria se sacrificar por seus filhos. Antes, como mostrou E. Badinter (1985), prevaleciam a indiferença ou as recomendações de frieza e um aparente desinteresse das mães pelo bebê que acabava de nascer. Guiando-se pelas idéias de Rousseau sobre a maternidade, o discurso médico aliou-se aos interesses do Estado. A partir da metade do século XVIII os corpos das crianças como fatores produtivos da sociedade começam a ser importantes. Não se podia mais deixá-las morrer antes de atingirem uma idade que permitisse extrair-lhes algum proveito. Os higienistas reintroduziram, então, a mulher na família, devidamente convertida ao amor filial e aos serviços médicos. A responsabilidade e a culpa pelo destino da criança passaram a ser circunscrições do casal. A criança é o novo centro do universo familiar. O amor materno é reduzido à categoria de instinto, e acede assim ao campo da ciência. Dois séculos mais tarde, a ciência afirma ter localizado o instinto materno na molécula de ocitocina, definida em 1992 por Niles Newton como o “hormônio do amor”. (Odent, 2000, p. 11) Em 1912, realizou-se em Túnis a 22a sessão do congresso dos alienistas e neurologistas da França e dos países de língua francesa. Dupré apresentou um informe psiquiátrico sobre as perversões 57 L A T I N - A M E R I C A N J O U R N A L O F F U N D A M E N T A L PSYCHOPATHOLOGY O N L I N E ano VI, n. 2, nov/ 2 0 06 58 instintivas? por muito tempo considerado clássico? em que não reformulou a clínica, mas a maneira de decifrá-la e de situar as perversões no conjunto da patologia mental. As perversões sexuais entravam num apartado mais geral, que tratava dos instintos reprodutores, o que permitiu acrescentar a uma lista já conhecida o infanticídio, o martírio das crianças, o incesto e as alterações do amor filial como desvios do instinto de reprodução. O importante desse informe é o novo lugar das perversões no discurso médico. Perversos são os atos que não tendem à reprodução da espécie (Lanteri-Laura, 1994). As marcas dos discursos de Rousseau e Dupré são visíveis ainda na contemporaneidade. Na edição de 1971 da Larousse, descreve-se o instinto materno como “uma tendência primordial que cria em toda mulher normal um desejo de maternidade e que, uma vez satisfeito esse desejo, incita a mulher a zelar pela proteção física e moral dos filhos” (apud Badinter, 1985, p. 71). Uma vez situado o amor materno como um instinto, também se pode definir sua perversão? o desvio ou a ausência do que se considera normal e natural para toda mulher. Ciência, política e maternidade dão mais um passo a partir da primeira metade do século XX: a medicina consegue erradicar a mortalidade materna e infantil no parto. A partir de então, entrelaçam-se a medicina e a procriação sob o imperativo de se salvar o par mãe-criança dos riscos mortais do nascimento (Chatel, 1995, p. 139). Que o amor materno seja contingente e não necessário, como um instinto animal, provoca angústia e incerteza, põe em questão o conceito de natureza da ciência positivista, o determinismo natural e a ordem que deles deriva. Mas os dados históricos mostram mudanças muito significativas, que a cultura procura eliminar. A ciência transveste em objetividade e racionalidade o que há na cultura de convenção, tentando esconder a face arbitrária da norma. A descrição de uma nova síndrome alinha-se a essa tendência. A síndrome de Münchhausen por poder Datar a injunção do amor materno e a inscrição de sua perversão permitem datar também a síndrome de Münchhausen por poder. Ela é descrita pela primeira vez em 1977, por Meadow, e reconhecida pela psiquiatria em 1980, quando se a inclui no DSM-3. E que nova síndrome é essa? Trata-se de uma resposta particular ao ideal materno instaurado na modernidade? Se sim, que determinantes sociais favorecem a configuração dessa nova forma de violência categorizada como mautrato infantil? ARTIGOS ano VI, n. 2, nov/ 2 0 06 O nome provém de um quadro descrito primeiramente em adultos. Em 1951, Ascher introduziu a denominação síndrome de Münchhausen 1 para definir os pacientes que “fabricavam” histórias clínicas com falsos sintomas e absurdas evidências sobre enfermidades, submetiam-se a múltiplas investigações médicas, operações e tratamentos desnecessários, mesmo correndo risco de vida (Ascher, 1951, p. 339). 2 Ela consta hoje nos manuais de psiquiatria entre os transtornos factícios ou fictícios, 3 ao lado dos simuladores, mas distinguindo-se deles por não ter uma clara motivação como a evasão de um processo criminal ou do recrutamento militar, a obtenção de moradia ou de drogas ou a compensação financeira. A única motivação aceita, compatível com o diagnóstico de Münchhausen, é a de querer ocupar o papel de doente. Meadow propôs a denominação síndrome de Münchhausen por poder ou transferida (SMT) para designar um transtorno fictício pelo qual se sugere a doença do filho, induzida ou fabricada pela pessoa mais próxima dele na maior parte dos casos, a mãe. A classificação do transtorno como fictício é quase marginal dentro desses mesmos manuais, já que implica um paradoxo. Pode-se classificar como um verdadeiro transtorno um quadro cuja característica central é a falsificação? Em outros termos, pode um falso transtorno ser um transtorno verdadeiro? Essa indagação – não formulada explicitamente pelo discurso médico – subjaz às descrições encontradas na literatura científica, e pode ser determinante dos modos de agir e pensar da medicina atual, analogamente ao que aconteceu com a histérica, no século XIX. 1. Essa denominação refere-se ao clássico personagem da literatura alemã que ficou famoso pelos relatos absurdamente exagerados e fantasiosos de suas façanhas (Burger, 1990). 2. Como antecessor deste quadro se encontra um relato de caso de 1911 categorizado como “patomemia” (simulação mórbida de doença). 3. A distinção entre factício e fictício não é fácil de ser apreendida. Estamos entre dois significantes e é só numa letra que se suporta a diferença. Se procurarmos no dicionário, ele nos remete indefinidamente de um verbete a outro. É interessante ver que essa distinção é a mesma que se mantém desde o latim. O Aurélio diz: Factício (Do lat. facticiu.) Adj. 1. Produzido ou imitado pela arte; artificial. 2. Artificial, convencional; não natural: & [Var.: fatício. Cf. fictício.] Fictício [Do lat. ficticiu.] Adj. 1. Em que há ficção; imaginário, ilusório, fabuloso: 2 & 2. Aparente, simulado, falso: 2 [Cf. factício.] 59 L A T I N - A M E R I C A N J O U R N A L O F F U N D A M E N T A L PSYCHOPATHOLOGY O N L I N E ano VI, n. 2, nov/ 2 0 06 Pronto, socorro! 60 Vejamos um caso de SMT, descrito num artigo médico. Uma mãe leva sua filha de um mês de idade ao hospital, com um quadro de diarréia e infecção pulmonar. A mãe é descrita pela equipe médica como um exemplo de devoção materna. Interna-se a criança e a mãe começa a se apresentar repetidamente no lugar onde as enfermeiras centralizam suas tarefas, com o bebê sofrendo convulsões. Para elucidar a natureza das convulsões, os médicos fazem uma série de exames, com resultados negativos. Percebem então que os ataques só se produziam quando a mãe acompanhava a criança, mas não na sua ausência. Um deles descobre uma mancha peribucal que aparecia nos ataques, que o faz lembrar de experiências no laboratório de fisiologia, quando observava o processo de asfixia experimental em animais. Com esses dados, a assistente social e o psiquiatra começam a trabalhar com a mãe, que acaba descrevendo como produzia os ataques: introduzia um dedo na garganta da criança até vê-la ficar “azul”. Ela conta também que, nesse momento, interrompia a manobra e acudia a pedir ajuda às enfermeiras. A mãe explicou que, desde sua internação, durante a gravidez, sentia-se muito só e provocava os ataques para ter mais atenção e “calor” por parte da equipe médica. A mãe era considerada uma trabalhadora competente, que se ocupava de crianças, uma boa mãe e uma filha dedicada, já que sempre tinha cuidado de seu pai, que era um doente crônico. Em sua adolescência, tivera conflitos com a mãe e, no início da vida adulta, sofreu desmaios que foram considerados de tipo histérico-conversivos.4 O caso atesta que estamos bem longe do abandono ou da indiferença de 1700, mas em que lugar se põe a criança nessa configuração? Suspendamos a pergunta e analisemos os elementos mais importantes do quadro: 1. A modalidade da ação é a falsificação, que se dá de três formas diferentes: a) como relatos falsos (nos casos mais leves); b) alterando-se o material de laboratório; ou c) provocando-se sintomas no corpo da criança (como no caso descrito). 2. Produzem-se sintomas ou signos para serem decifrados ou diagnosticados, cuja variedade é limitada pelo número de conhecimentos médicos que a mãe possa ter. As formas mais comuns são: em 44% dos casos, hemorragias (para as quais se usa geralmente o próprio sangue menstrual ou sangue de animais); em 42% dos casos, convulsões; em 19%, depressão do sistema nervoso central; em 15%, apnéia; em 11%, diarréia; em 10%, vômitos; e, em 9%, exantema. (Rosenberg, 1987, 11, p. 547-63). 4. Caso extraído de Stelzer e Karpf, n. 95, 1981, p. 141-2. ARTIGOS ano VI, n. 2, nov/ 2 0 06 3. O alvo da ação é o médico (ou a equipe médica) ou, talvez, a própria Medicina. 4. O objeto é a criança. 5. Qual seria a finalidade da conduta da mãe? Por que e para quê uma mãe sugeriria, induziria ou produziria sintomas no filho? Inicialmente, Meadow destaca uma motivação sádica: para praticar procedimentos cruéis na criança. Mas quando o quadro passa da pediatria para os manuais de psiquiatria (DSM -IV e CID 10), o objetivo alegado é querer ocupar indiretamente o papel de doente. Em outros termos, tornar-se objeto de cuidados. O preço pago ? o sofrimento ? passa a ser secundário. Entretanto, parece-nos que a finalidade da conduta da mãe deve ser rastreada na trilha do desejo de que o filho seja investigado e tratado pelo sistema médico. Voltaremos a essa afirmação. A categorização do quadro como um tipo de mau-trato infantil mostra a permanência da questão do sadismo como tema nas discussões, intrigando os médicos que ainda consideram o amor e a devoção materna como um dado instintual, ou seja, primário. Não soa estranho que alguém queira ocupar o lugar de paciente. Um pouco mais difícil é aceitar que esse alguém se torne objeto de intricados e dolorosos exames médicos. Mesmo assim, é possível, até aí, pensar no masoquismo erógeno ou no masoquismo moral. Mas transferir essa posição para o filho levanta uma série de perguntas. É o masoquismo transferível? Trata-se de uma reversão para o sadismo? Em todo caso, já que o nome do quadro traduz by proxy por transferido, podemos nos perguntar o que se está transferindo aí? Se é verdade que a criança tem mais apelo social que o adulto, trata-se então de transferir o poder de apelação? Ainda questionando a categorização de mau-trato, vale a pena observar que, à diferença de outros tipos de abuso, nesses casos, a ação não é só direta. Tratase de fazer com que outro continue a ação ou a exerça, do que resulta que o médico e os enfermeiros acabem produzindo o mau-trato, agora configurado como iatrogenia. Essa é uma diferença importante e intrigante em relação a outros tipos de maus-tratos, que são usualmente situações duais, em que justamente falta uma instância terceira. Aqui, essa instância é convocada, mas para ocupar que lugar? Ao investigar sintomas que foram provocados como signos falsos, o médico é levado a infringir o juramento hipocrático. O que se deslocou, portanto, é o sujeito, o agente da ação. Não se trata mais da mãe nem da própria criança. No terreno da iatrogenia, o sujeito é o médico e a única alternância possível consiste em passar do sujeito ao objeto gramatical, já que a etimologia não permite distinguir se a iatrogenia se refere à criação de uma doença ou a uma criação do médico (genitivo objetivo e genitivo subjetivo). O deslocamento do sujeito implica também um deslocamento da responsabilidade. Por isso os médicos se questionam, se culpam e encolerizam 61 L A T I N - A M E R I C A N J O U R N A L O F F U N D A M E N T A L PSYCHOPATHOLOGY O N L I N E ano VI, n. 2, nov/ 2 0 06 perante esses casos. Se é difícil para eles aceitarem que desempenham um papel na gênese dessa configuração, mais difícil ainda é compreenderem os efeitos devastadores da ação médica sobre a subjetividade, mesmo considerando que já estamos diante de uma subjetividade em estado terminal. Daí que, na demanda por investigação e tratamento médico, sejam freqüentes as cirurgias de retirada de órgãos. Oferecer o próprio corpo ou o do filho dessa maneira lembra os rituais religiosos de purificação e mortificação, nos quais pela via do sofrimento o sujeito intenta mudar sua posição simbólica. Os ritos de passagem marcam geralmente o início da vida adulta ou religiosa; mas que tipo de inscrição se busca aqui? É forçoso admitir que, para criar ou produzir intencionalmente sintomas no próprio filho, uma mãe deve ter uma boa razão, ainda que não seja consciente. A medicina ideal 62 À diferença do que acontecia com a histeria do século XIX, aqui a medicina é convocada para um outro lugar. São os instrumentos tecnológicos usados para o diagnóstico que estão sacralizados e mesmo fetichizados, e não o lugar dos médicos. Esse deslocamento implica transferir o investimento do olhar de quem sabe para o olho que tudo vê. O deslocamento do saber do médico para seus instrumentos diagnósticos produz o concomitante deslocamento do médico para a Medicina e, poderíamos nos arriscar a perguntar, da neurose para a perversão? Estamos no campo dos ideais desencarnados, e não mais no das figuras idealizadas. É por esse viés que o quadro nos permite ver o que nos escondem os exames: a cessão de poder que o médico passou para seus instrumentos ou, em outros termos, o que Lacan denominou a esquize do olho e do olhar. Mas quais as conseqüências dessa mudança? Será que já não estamos mais no campo da subjetividade, mas simplesmente naquele da produção? Olho por olho Voltemos ao lugar que ocupa a tecnologia médica nesse quadro. A mãe solicita avidamente a realização de exames e procedimentos. Isso não pode deixar de nos chamar atenção, porque o quadro se configura simultaneamente à sua introdução na medicina. Hoje, o diagnóstico se apóia muito mais em análises paraclínicas do que clínicas, o que distancia o corpo do doente do do médico. Não ARTIGOS ano VI, n. 2, nov/ 2 0 06 se trata, contudo, da mera substituição de um olhar por um aparelho óptico, da intermediação da tecnologia entre os corpos do doente e do médico. Não se trata de um descaso do médico para com o corpo do paciente. O médico nunca esteve interessado no corpo em si. Para a medicina, o corpo sempre foi o lugar onde se inscrevia a doença. O objeto do médico sempre foi a doença, e não o corpo em si. Mas a tecnologia aplicada à medicina introduziu mudanças substanciais na relação médico-paciente. No século passado, podia-se esperar que um paciente morresse para se saber o que ele tinha. Hoje, a tecnologia “violenta a natureza”, agindo sobre o corpo vivo. E, aqui, é exatamente essa violência que é solicitada, mostrando o novo lugar do corpo/cadáver vivo (Clavrel, 1983, p.129). Mas um instrumento de diagnóstico não pode, sozinho, produzir um ato eminentemente simbólico como o que produz o ato médico e, assim, inclinamonos a pensar que, por trás da demanda de exames, há um apelo que não consegue se fazer ouvir e fica prisioneiro num endereço errado. A subjetividade, contudo, se imiscui exatamente no lugar de onde foi desalojada, pela única via que resta aberta nesse endereço: a falsificação. O olho que tudo vê do tomógrafo, do microscópio ou da ressonância magnética ainda pode ser enganado, porque não vê a intencionalidade do agente da produção. A oferta cria demanda A síndrome de Münchhausen transferida permite ler um contrato implícito firmado entre as mães e a pediatria, mas, ao invés de ser simplesmente acatado, o caráter fictício/factício do quadro nos alerta para uma tentativa de subversão. Vimos que o saber materno foi usurpado às mães pela medicina. Temos aqui uma espécie de retorno, de revanche contra essa usurpação. Há uma tentativa de reapropriação de um saber que, entretanto, não parece atingir o objetivo. Será que a pediatria, disciplina tardia e artificial a serviço da maternagem, na defesa da saúde e da harmonia do desenvolvimento das crianças, pode oferecer esse socorro? Qual novos cavaleiros da Idade Média, os pediatras são chamados na defesa da vítima desvalida nem tanto frente à doença, mas sobretudo ao desconhecimento das mães, todas “ignorantes” de como tomar conta de seus filhos. Com efeito, a destituição do saber da mãe, qualificando-o como “instintivo” ou “natural”, assim como sua discordância com o saber científicomédico, marcam decididamente a aplicação à criança de uma tecnologia política a partir da qual podem ser separadas as crianças sadias das doentes e as mães obedientes às instruções de seus médicos das mães que desconhecem os princípios mínimos de puericultura, que um médico já definiu como “uma cultura pueril”. (Volnovich, 1993, p. 24) 63 L A T I N - A M E R I C A N J O U R N A L O F F U N D A M E N T A L PSYCHOPATHOLOGY O N L I N E ano VI, n. 2, nov/ 2 0 06 Mas, se pode falhar o laço que une a mãe ao filho, é porque a relação entre ambos não é dada por um componente instintual. Por esse viés, a síndrome de Münchhausen por poder questiona uma série de pressupostos da medicina que se encontram tanto na teoria quanto na prática pediátrica. Pode-se chegar longe... 64 Se o amor materno pode faltar, é porque decorre de um laço que é simbolicamente construído. Contudo, o que não falta no SMT é a devoção materna. Ela é uma componente essencial dessa nova configuração, fazendo parte dos dados que permitem seu diagnóstico. A mãe se apresenta como uma mãe preocupada por não saber o que está acontecendo ao filho. É uma mãe “exemplar” que pede socorro, geralmente nas urgências dos hospitais. Por que essa mãe devota é vista como exemplar? O que se espera hoje de uma mãe? Ou, em outros termos, qual é o ideal materno proposto pelo Outro social da contemporaneidade? Para sublinhar essa componente, mencione-se que os dois casos mais conhecidos de STM chegaram até a Casa Branca e foram premiados pelas primeiras-damas norte-americanas com o emblema de mãe exemplar: Em 1988, Yvonne Eldrige foi eleita “Mãe do Ano” pela então primeira dama Nancy Reagan. Suas duas filhas adotivas passaram por dezenas de médicos e se submeteram a cirurgias por problemas intestinais. Hoje, Eldrige é acusada de não ter alimentado as meninas e de ter descrito sintomas que jamais existiram. Em 1994, Kathleen Bush foi recebida por Hillary Clinton e homenageada pela devoção que demonstrava ter por sua filha Jennifer. A menina sofria de problemas intestinais crônicos. Foi hospitalizada cerca de 200 vezes, para diagnóstico, e submetida a 40 cirurgias. Mais do que isso, as sindicâncias médicas instauradas após as denúncias concluíram que todas aquelas cirurgias, nas quais se removeram a vesícula biliar, o apêndice e parte dos intestinos, foram absolutamente desnecessárias, tendo sido realizadas apenas em função da insistência da mãe junto aos médicos (Folha de S. Paulo. Editorial: Mais! Maio 18, 1997). Quase deu certo ou, talvez, foi bom enquanto durou. Quantos casos que não encontram explicação não terão essa mesma origem? E o que isso nos leva a pensar? Do que é capaz o sujeito para ter um lugar de reconhecimento social, para que sua singularidade tenha um espaço? Tamanha devoção, que lembra o fanatismo dos conversos, põe-se ao avesso quando os exames dão resultados negativos e os médicos informam que não ARTIGOS ano VI, n. 2, nov/ 2 0 06 encontram a causa orgânica para os sintomas da criança. A mãe exemplar se transforma: de solícita, amorosa e cuidadosa, ela passa a ser querelante, desconfiada, desagradável e obscena. Poder-se-ia pensar que sua reação remete à raiva que sobrevém quando os médicos acabam com seu jogo ou simplesmente a ameaçam de desistir. Isso parece se confirmar, mas há algo mais nessa súbita transformação. Nossa hipótese é que, pela via do factício ou do fictício, a mãe faz um apelo. A investigação médica almejada seria um equivalente simbólico do caminho que usualmente a mãe faz para decifrar os signos que seu filho lhe endereça. A falha do laço entre a mãe e o filho tentaria uma suplência pela via da medicina. Pode ser que se trate, como na histeria, de um apelo de escuta endereçado ao médico como lugar de saber, mas pode também ser um apelo de inscrição numa ordem simbólica fracassada. Nesse caso, o apelo estaria endereçado ao ato médico de nomeação implicado no diagnóstico. O diagnóstico supriria um buraco de saber materno que é recusado. O médico seria convocado a um lugar simbólico tanto para suprir o não saber da mãe quanto para possibilitar uma separação simbólica necessária para interditar o gozo incestuoso do filho e da mãe. A falta de um saber simbólico que permita criar um laço maternal tenta suprir-se com conhecimentos médicos. A mãe comparece ao hospital pedindo amparo e sabe que o médico acolherá seu pedido se ela lhe oferecer signos a decifrar. O que ela recusa é sua impossibilidade de ser mãe, de se situar como Outro para a criança, a ponto de apresentar-se como modelo exemplar, ou seja, com as vestes que a sociedade identifica como emblemas da mãe ideal. Ela se autoriza a tanto pela aliança entre a pediatria e a maternidade, que, como, vimos está historicamente datada. Ora, falar de estrutura num transtorno descrito pela psiquiatria envolve alguns riscos, sobretudo porque o diagnóstico não é realizado sob transferência. Podemos, ainda assim, considerar certas variantes possíveis dentro do mesmo quadro: que a mãe procure o diagnóstico como um ato eminentemente simbólico que possa transformar sua real relação com o filho numa relação simbólica (nos encaminharia à psicose), que se ponha a serviço da Medicina para se beneficiar desse lugar (nos faria pensar em perversão) e que procure que seu filho – e, por decorrência, ela própria – sejam reconhecidos como a exceção que precisa ser estudada e acompanhada (nos faria pensar no apelo fálico da neurose). Mas, em qualquer um desses casos, importa destacar que essas variantes só são possíveis porque o hospital, principalmente o hospital público, é ainda um lugar de acolhimento social. Fora dele, os lugares de amparo, reconhecimento e inscrição sociais para o sujeito parecem estar desaparecendo num ritmo intenso. Assim, o hospital torna-se uma opção onde se buscam, além de amparo, reconhecimento 65 L A T I N - A M E R I C A N J O U R N A L O F F U N D A M E N T A L PSYCHOPATHOLOGY O N L I N E ano VI, n. 2, nov/ 2 0 06 66 e inscrição. Talvez se possa pensar que é por isso que o número desses casos vem crescendo de forma alarmante. Estima-se hoje que até 2% dos pacientes internados em hospitais pediátricos se possam classificar nesse quadro. A cifra é considerável. Lucien Israel alertava os médicos: “Não sucumbir à equiparação, não renunciar a criar relações privilegiadas são os imperativos do inconsciente histérico, e o médico terá que favorecer a expressão, se não quiser vê-las expressarem-se de forma mais perigosa” (1979, p. 246). O quadro parece ser já um efeito dessa falta de acolhimento da singularidade que a medicina também promoveu ao situar como axioma biomédico no século XX que só se poderia colocar a possibilidade de um transtorno funcional ou de uma causa psicogênica quando se tivessem descartado completamente as causas orgânicas. Mas, como afirmamos no início, o discurso médico não está desarticulado de outros discursos dominantes no âmbito social. O que podemos dizer é que, hoje, o discurso médico e suas instituições suportam um peso cada vez maior de outras instâncias sociais que davam suportes simbólicos ao sujeito. A medicina ainda sobrevive, embora venha sofrendo mutações, e o hospital talvez seja, hoje, um dos poucos lugares onde qualquer um pode entrar. Referências ASCHER, R. (1951). Munchausen´s syndrome. Lancet. BADINTER, Elizabeth (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. B OOLS , Neale B. Meadow (1994). 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Palabras claves: Síndrome de Münchhausen transferida, trastorno facticio, psicoanálisis, medicina, relación madre-hijo Le travail a analysé des articles de révues spécialisées en pédiatrie et en psychiatrie qui parlent de la syndrome de Münchhausen transfert. On a mis le trouble dans son contexte historique pour interroger les déterminants discursives qu’ont donné place à cette configuration. On a essayé de démythifier l’amour maternel, sur lequel s’appuie , et on a essayé de situer la relation mère-enfant comme le résultat d’un lien symboliquement construit. Mots clés: Syndrome de Münchhausen transferte, trouble factice, psycanalise, medicine, relation mère-enfant This work revues articles of specialized journals of pediatrics and psychiatry that address the Münchhausen syndrome by proxy. This disorder was historically contextualized in order to inquire into the discursive determinants that give rise to this configuration. It was tried to clear up the assumption of a mother instinct on which this 67 L A T I N - A M E R I C A N J O U R N A L O F F U N D A M E N T A L PSYCHOPATHOLOGY O N L I N E ano VI, n. 2, nov/ 2 0 06 disorder is based and to put the mother-child relation as a result of a symbolically built bound. Key words: Münchhausen syndrome by proxy, factitious illness, psychoanalysis, medicine, mother-child relation 68