GT 3 Rodrigo da Costa

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Diversidade de linguagens e práticas de sala de aula
MÚSICA NA SALA DE AULA: MÚSICAS DE CAETANO VELOSO PARA O
ENSINO DA DITADURA
Rodrigo Henrique Araújo da Costa1
Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
[email protected]
Introdução ao método: conjuntura histórica, música e política
Este trabalho trata sobre o intercâmbio de diálogos entre as linguagens historiográficas
e o ensino sobre a Ditadura Militar no Brasil (1964-1985), com a aplicação em sala de
aula de algumas músicas dos anos 1967 a 1972 do artista brasileiro Caetano Veloso. O
objetivo é trazer ao conhecimento dos alunos, além das emblemáticas canções “Alegria,
Alegria” e “Tropicália”, uma música (e sua respectiva letra) de cada um dos seis álbuns
musicais produzido por Caetano e relacioná-las com a Ditadura, dando visão sobre a
Música e a militância artística naquele cenário. Os álbuns são: Caetano Veloso (Philips,
1968), Tropicália ou Panis et Circensis (Philips, 1968), Caetano Veloso (Famous/Philips,
1969), Caetano Veloso (Famous/Philips, 1971), Caetano Veloso – Transa (Philips, 1972)
e Araçá Azul (Philips, 1972).
A metodologia traz à tona a atuação artística de protesto e possibilita debatermos junto
com os alunos os fatos políticos e históricos do período ditatorial entre 1967 e 1972, como
a repressão, a tortura, o Ato Institucional Nº. 5, a censura, a supressão da liberdade de
expressão e a prisão e expulsão do país de vários artistas. É importante trazermos para sala
de aula as novas linguagens e didáticas outras, como método de mediarmos
conhecimentos junto com os alunos de modo mais dinâmico e pedagógico. Como nos diz
Oliveira, “A prática do ensino estimula os profissionais envolvidos na atividade docente a
elaborarem estratégias que visem dinamizar as aulas, no intuito de prender a atenção do
aluno, melhorar o desempenho e, sobretudo, estimular a criatividade do discente (...)
(2007, p. 137). O método utilizado embasa-se junto aos estudos sobre Cultura Política,
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Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba
(PPGH/UFPB/Bolsista CNPq). Desenvolve pesquisa para Dissertação sobre três pinturas do pintor italiano
Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571-1610), as duas versões do “São Mateus e o Anjo” e o “Amor
Vitorioso”, sob orientação do Prof. Dr. Carlos André Macêdo Cavalcanti.
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pela análise da linguagem musical de protesto, aplicando a conjuntura sócio-políticocultural em interligação com a apresentação das músicas aos alunos.
Caetano Veloso foi fruto das influências culturais mais ricas de uma época. Fora na
amplidão de influências recebidas por Caetano que brotou uma movimentação encabeçada
por ele chamada Tropicália. Focamos Caetano Veloso como fundamental para a
transformação da produção musical do Brasil e como referência de produtor artístico,
crítico e consciente sobre a realidade política vivida pelo Brasil naqueles anos. Esteve à
frente como vanguarda cultural dinâmica e interessada em discutir, debater e enfrentar os
problemas sociais e políticos brasileiros através da música, ampliando a reação contra a
censura, radicalizando os antigos paradigmas conservadores no meio artístico e no
comportamento e se posicionando contrários à ditadura militar e à sociedade pró-ditadura.
Para tanto, é necessário que o plano de aula introduza aos alunos uma contextualização
e ambiantação sócio-político-cultural do período estudado. Debatemos sobre a
movimentação da música popular brasileira durante o regime militar, caracterizado como
Estado de exceção repressor que se instaurou no país a partir de 1964. Caetano Veloso e
sua produção artística no âmbito da Tropicália entre os anos de 1968 e 1972 é analisado
para aplicação no ensino de História sobre o período da Ditadura Militar no Brasil, não
somente politicamente, mas também trazendo aos discentes a efervescência artística que
naqueles anos eclodiram.
O objetivo deste trabalho foi o de analisar algumas canções mais relevantes, o
comportamento, a estética, a importância histórica da Música, os registros das letras das
músicas como documentos históricos e artísticos, focalizando alguns trabalhos musicais
de Caetano Veloso, que, na perspectiva adotada, num olhar histórico e segundo o trato
metodológico, soaram como de maior relevância, no sentido ideológico, musical e
vanguardístico que representaram, por isso, tão importantes para o uso pedagógico. O
estudo das letras, como registro histórico, tem por objetivo de relacioná-las com o
contexto político e social, enfatizando também as modificações estéticas e as
características artísticas, dando margem de visão histórica ampliada aos alunos.
Importante analisar a trajetória de Caetano Veloso, desde suas primeiras intervenções
nos Festivais. O projeto tropicalista foi engendrado por ele e por um grupo de
vanguardistas que a ele estava ligado, até ser preso e forçadamente exilado em 1969. Fora
na amplidão de influências que adensavam-se em torno de Caetano Veloso que essa
necessidade de uma manifestação encabeçada pela vanguarda musical dinâmica e criativa
da época sintetizou e tomou corpo como Tropicália.
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Era o tempo dos festivais, da novidade musical fortemente envolvida pela Bossa
Nova e de um dinamismo cultural, artístico, social e político. Essa nova movimentação
cultural foi, em grande parte, influenciada pela intelectualidade de esquerda voltada para a
discussão dos problemas sociais e políticos brasileiros; tempo dos que resistiam à
opressão da ditadura.
Uma época de entusiasmos e agitações políticas e artísticas que já ferviam o embate de
classes desde o início do governo do Presidente João Goulart, mas que com o golpe se
radicalizou na esquerda com a mesma rapidez que foi abafada, principalmente, em 13 de
dezembro de 1968 com a publicação do Ato Institucional Nº. 5 e em 29 de setembro de
1969 com a Lei de Segurança Nacional2.
Os festivais de música representaram a vontade de parte da juventude brasileira de
lançar sua voz, atitude e ousadia e possibilitava a concretização de discursos e protestos,
trazendo à tona grandes nomes da MPB que até hoje ainda são reconhecidos. É relevante a
posição de Caetano durante a movimentação da Tropicália, em meio a outros movimentos
artísticos do período estudado, como o Cinema Novo, o Concretismo na literatura poética,
do Neo-Concretismo nas artes plásticas, da Bossa Nova e do Rock iê-iê-iê da Jovem
Guarda.
Além da influência da produção musical de 1968, tanto no âmbito nacional como no
internacional, como com os Beatles, a Tropicália também bebeu do engajamento do teatro
político, que abalava a cabeça do espectador, do Teatro de Arena, do Oficina, do Opinião,
e dos CPC’s (Centros de Cultura Popular realizados pela UNE), enfim, foram muitas as
tendências, movimentações e inquietações daqueles anos. As atitudes de Caetano Veloso
foram fomentadoras daquilo que de novo era inaugurado na música brasileira.
É importante ressaltar as novas percepções culturais de Caetano no e sobre o Brasil.
Caetano teve a capacidade de trazer para si todas as movimentações culturais de seu
tempo, ao passo que funcionou como uma espécie de prisma catalizador, ou seja, como
aquele que incorporou e captou luzes difusas e difundiu com novas cores a sua produção.
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Segundo Maria Helena Moreira Alves, “O AI-5 introduziu um terceiro ciclo de repressão. O primeiro ciclo, em
1964, concentrara-se no expurgo de pessoas politicamente ligadas a anteriores governos populistas [...]. A
repressão física direta limitara-se a trabalhadores e camponeses, numa estratégia de classe destinada a eliminar a
resistência naqueles setores da população. O segundo ciclo (1965-1966), após a promulgação do Ato
Institucional N° 2, objetivara concluir os expurgos na burocracia de Estado e nos cargos eleitorais; não incluiu o
emprego direto e generalizado da violência. O terceiro ciclo caracterizou-se por amplos expurgos em órgãos
políticos representativos, universidades, redes de informação e no aparato burocrático de Estado, acompanhados
de manobras militares em larga escala, com indiscriminado emprego da violência contra todas as classes. [...]
Desse modo, as campanhas de busca e detenção em escala nacional estenderam-se a setores da população até
então não atingidos” (1984, p. 141).
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Neste sentido, lançou-se, antes de tudo, um modo de comportamento – chamado de
‘desbunde’ - mais do quê um ‘estilo’ musical no sentido estrito palavra, como descreve
Holanda, os tropicalistas aparecem no cenário para revolucionar o corpo e o
comportamento e para subverter valores debochando-se das atitudes bem comportadas.
Entretanto, estes distintos projetos e concepções de arte e cultura do fim da década de 60
se digladiavam no campo artístico e político em constante tensão. Esse tencionamento
incidiu sobre Caetano de modo a delinear suas pretensões artísticas e políticas.
Caetano pensava os ortodoxos posicionamentos da esquerda nacionalista e o regime
autoritário que se instaurara no Brasil, além de desconfiar dos mitos nacionalista e
populista e de todo extremismo, principalmente, da direita. Caetano, neste sentido,
preferia muitas vezes uma flexibilização de sua postura perante o mundo. Tal postura
política acabou por produzir descontentamentos nos que viam um caminho unívoco para a
MPB como algo homogêneo, puro, em defesa do tradicional e do nacional-popular3.
Observamos o trabalho mais representativo da vanguarda tropicalista, olhando
criticamente as realizações de Caetano, no álbum Panis et Circensis que foi organizado no
ano de 1968, antes do maior cerceamento repressivo com o Ato Institucional Nº. 5, em
dezembro de 1968. Esta oportunidade traz Caetano Veloso à tona como personagem
significativo para dar forma e margem ampliada à ressignificação das imagens e das novas
linguagens e fontes históricas, no caso tratado, a Música, pretendida pela renovação
historiográfica e das linguagens historiográficas para sala de aula.
A análise das letras das canções é parte importante desse trabalho, no sentido de
encontrar o inconformismo com a política e injustiças sociais, como também de refletir as
influências exercidas sobre os tropicalistas para que as composições fossem realizadas
com o mote de denúncia social.
Há uma perspectiva dual neste trabalho, ou seja, entre o escrever e o ouvir. Queremos
levar à sala de aula, através deste escrito, que o que ouvimos de Caetano foi algo que
transformou a História da Música Popular Brasileira e que gerou muito mais provocações
do quê apresentou resoluções, como o próprio Caetano disse, no frisson da Tropicália,
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Para tanto, a discussão sobre o nacional-popular é fundamental para se entender esta parte do trabalho, no
entanto, tal debate pode ser melhor apresentado no tópico “Considerações sobre Nacional popular” de Chauí,
Marilena de Sousa. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. 7° ed. – São Paulo: Cortez,
1997. Podemos ainda observar uma passagem de Napolitano e Villaça em que a questão do nacional-popular é
analisada com propriedade, “Ao problematizar o consumo da canção (e a canção enquanto consumo), o
tropicalismo abriu um leque de novas possibilidades de escuta, que a diretriz ideológica do nacional-popular, já
em crise como gênero reconhecível pelo público, não mais comportava” (in: Tropicalismo: as relíquias do
Brasil em debate (1998, p. 72).
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“Não posso definir ‘Tropicalismo’. Mas, o problema não é de definições. Eu tenho coisas
para contar e não colocações para definir” (COELHO e COHN. 2008, p. 133).
Caetano Veloso, acontecimentos e influências de época: a música na Ditadura
O Brasil, em idos dos anos 60, recebia as influências da bipolaridade ideológica entre
EUA e URSS, neste caso, principalmente, intervenções da política estado-unidense nas
Américas de total apoio aos Golpes de Estado e a regimes autoritários como forma de
barrar o avanço comunista e as Revoluções socialistas pretendidas pela esquerda e pelo
chamado foquismo guerrilheiro latino-americano. Instaurou-se no país, em abril de 1964,
um regime ditatorial, de direita e tecnocrático, com um projeto econômico arrojado e
“racionalista” para aplacar os descontentamentos e inseguranças da sociedade. Estava
sendo vendido à população brasileira o ideário de Segurança Nacional da ditadura que
prometia maior desenvovimento sem as instabilidades dos governos anteriores e sem
comunistas à espreita do poder.
No plano externo, o exemplo da Revolução Popular da China (1949), a Revolução
Cubana (1959), a Guerra do Vietnã, a Guerra das Coréias e das repressões soviéticas nos
países do leste europeu, são exemplos do conturbado momento da Guerra Fria que dividia
o mundo em duas frentes, ideologicamente, antagônicas.
Inconformados com esta situação de “perigo” ao planeta Terra, os ânimos aflorados da
juventude iam às ruas por melhores condições de existência, por paz na Terra, por amor
entre as pessoas. Esses entusiasmos provinham do movimento pacifista hippie, do maio de
68 em Paris, do psicodelismo, do Rock n’roll dos Beatles, daquilo que se chama ContraCultura (tendo as artes plásticas um papel muito importante com Andy Warhol e
Lichtenstein, por exemplo), dos Movimentos gays e contra a repressão aos homossexuais
(na Califórnia, Estados Unidos), tempo de Jimi Hendrix e Janis Joplin reverberando no
Festival de Woodstock, também como da geração Beat dos EUA, da Nouvelle Vague no
cinema francês e da Pop Art na cultura de massas. Nesse contexto, a juventude teve um
papel muito importante como questionadora aos conservadorismos e preconceitos, tendo
como bandeira a liberdade de expressão e o livre amor, resumida no jargão “Paz e Amor”.
Em contrapartida, a juventude e a esquerda sofria com o abafamento progressivo
provocado pelo regime militar. A UNE já se encontrava desestruturada pela Ditadura. A
resistência de esquerda que já se exauria em 68 partia para a guerrilha urbana e rural.
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Qualquer pessoa poderia ser acusado e preso como suspeito de crimes e de terrorismo.
Segundo Alves, entre 1968 e 1969, com o AI-5 e a Lei de Segurança Nacional foi
publicada a “sustentação legal à repressão de qualquer pessoa ou grupo que se oponha à
política do Estado de Segurança Nacional” (1984, p. 158).
Analisamos o movimento crítico da década de 60, em embate com a massificação
midiática, através de Aires,
Nesse contexto de explosão de movimentos sociais diversos, os tabus,
as instituições, o sistema, a cultura oficial passaram a ser alvo de
críticas. [...] As imagens fotográficas e televisivas contribuíram para
disseminar as ideologias de esquerda e de direita no contexto da
Guerra Fria; também buscavam legitimar os regimes autoritários que
emergiam na parte latina do continente americano; os outdoors
espalhados por vários espaços, invadindo nosso cotidiano; a televisão,
da mesma forma, ganhando massificação (2008, p. 50)
Na música de meados dos anos 60 no Brasil, principalmente, depois do Golpe, entre as
opções possíveis estavam um engajamento na esquerda, com músicas de protesto e
músicas de denúncia social. Percebíamos um caminho de se alinhar a uma alienação em
relação ao momento político de ditadura no País; também verificava-se uma corrente apta
a voltar à tradição musical do samba como Chiquinha Gonzaga, Noel Rosa, Lamartine
Babo, Pixinguinha e renová-la; uma outra opção que queria ir além da tradição e da linha
que vinha despontando e que se colocava como evolutiva em buscar padrões renovadores
para sua produção artística como o que foi desencadeada por João Gilberto e Vinícius de
Morais com a Bossa Nova; e o ‘fenômeno’ complexo e mais mercadológico do iê-iê-iê.
Flávio Macedo Soares nos explica que “[...] a música popular brasileira se viu incluída
em várias crises consecutivas que nos colocaram diante de novos problemas a enfrentar,
novas soluções a procurar” (COELHO e COHN. 2008, p. 18). Geralmente, estas
discussões giravam em torno do que deveria ser conservado e continuado e do quê deveria
ser modificado. Muitos pesquisadores do período falam da faca de dois gumes que a MPB
levantava ora em prol da “ruptura” ora a favor de uma “continuidade”. Muitas críticas já
caiam em cima de Caetano pelo uso de instrumentos eletrônicos como a guitarra elétrica.
Respondeu propriamente Caetano, em 1967, antes de “Alegria, Alegria” ser
conhecida, “[...] está mal-informado ou de má-fé quem se vê no direito de ‘proibir’ o uso
desse instrumento, em nome de uma pureza tradicional que não tem mais cabimento”
(COELHO e COHN. 2008, p. 77). Caetano não só utilizou a guitarra elétrica como cantou
e provocou acompanhado por uma banda de rock no Festival de 67.
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Sem dúvida, o que se pretendia no período era uma maior vinculação da música com a
prática social, com um projeto político-ideológico, e a música estando em consonância
com as outras artes de modo ampliado e passando por uma vinculação política. Caetano e
os tropicalistas não ficavam em cima do muro ou titubeantes em suas opiniões, ao
contrário, tomavam partido de modo aberrante e polêmico.
Esse movimento também propiciou uma aproximação com “o mundo pop” iniciada
com o iê-iê-iê e a Jovem Guarda, mote que Caetano também irá utilizar para dar suporte à
veiculação de sua música. Caetano Veloso propunha uma retomada do que melhor havia
sido produzido no âmbito das conquistas musicais da MPB. Para ele, isso não poderia ser
feito sem a contribuição de João Gilberto. Algo fica claro quanto a isso quando Caetano
nos diz, “[...] não proponho uma volta àquele momento e sim uma retomada das melhores
conquistas (as mais profundas) desse momento” (COELHO e COHN. 2008, p. 23).
Ter a Bossa Nova como parâmetro musical de sofisticação na forma estética de
traduzir regeneração à MPB, paralelamente, à pretensão de canções engajadas e de
protesto, foi imprescindível para uma maior introdução na mídia de massas como única
saída para a circulação dessas músicas durante a censura e, com elas, suas idéias.
“Alegria, Alegria” encaixada dentro daquele momento cultural e político, foi um abre
alas para o que viria em seguida com a música Tropicália do disco solo de Caetano, nome
dado em referência direta à ambiência de Hélio Oiticica, o vanguardista das Artes. A
partir daí, a música deixa de ser bem comportada nos “padrões e comportamentos”, ou
seja, deixa de se limitar ao que era pedido pela conservadora elite da classe média
apoiadora do Governo Militar.
A música brasileira de vanguada também vai ‘rachar’ neste momento pós- música
Tropicália, com a esquerda mais ortodoxa, embora, não ‘rache’ com o esquerdismo
político, ou seja, mantinham-se contra a ditadura conservadora. Observamos isto, não
somente em termos das letras das canções, que continuavam através de Caetano Veloso
sendo políticas e provocadoras, mas, também das performances desinibidas no palco.
A intensidade artítica deve ficar bem explicada aos alunos: a música popular passou a
se expandir, a poesia concreta nos mostrou um novo caminho na literatura brasileira, e no
cinema tínhamos a reverberação do chamado Cinema Novo encabeçado por Glauber
Rocha. A genialidade de Glauber Rocha com os dois longas Deus e o Diabo na Terra do
Sol (1964) e, principalmente, Terra em Transe (1967), em em filmes emblemáticos como
Macunaíma (1969) de Joaquim Pedro de Andrade transformaram-se em parâmetro a ser
seguido pelos jovens artistas engajados em mudanças sociais e que faziam de sua
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produção artística um mote para inserir as lutas sociais dentro do contexto político do
Estado opressivo. Como diz Veloso em Verdade Tropical,
Entre 64 e 68 o movimento cultural brasileiro não apenas intensificouse: ele tomou uma feição ainda mais marcadamente esquerdista por
unir autores, atores, cantores, diretores, peças, filmes, e público numa
espécie de resistência do espírito contra a ditadura. [...] vi-me em meio
a uma perene exigência de caracterização política das criações
artísticas e dos atos individuais (2008. p. 308 - 309)
Essa passagem deve ser frisada no plano de aula sobre a Ditadura: o artista ganhava
uma dimensão de cidadania política muito mais ampla, devendo para isso, posicionar-se
politicamente de forma contínua. Essa característica da época, como nos fala Veloso,
proporcionou uma vinculação imiscuível entre arte, cultura e política. Isso se deveu à
necessidade de uma oposição aos militares, “[...] medito sobre como isso é representativo
– mesmo emblemático – da coincidência, no Brasil, da fase da ditadura militar como auge
da maré da contracultura. Esse é, com efeito, o pano de fundo do tropicalismo: foi, em
parte por antecipação, o tema de nossa poesia” (VELOSO, 2008. p. 356).
Fica nítida a posição guerrilheira de escancaramento com a ditadura perpetrado por
Caetano e os tropicalistas, um vez que, atrás do ‘palco’ em que se apresentavam estava a
ditadura, a violência institucionalizada, o medo, o terror, e isso se tornou, de fato, o
elemento fomentador para a criação transformadora da Tropicália.
A música de Caetano “Tropicália” é um reflexo dessa colcha de retalhos que era a
cultura brasileira e de sua tentativa de aproximação com a cultura popular e a cultura de
massas. Dando vivas a muitos elementos constitutivos do que se pensa sobre Cultura e
Arte brasileira, a música elencará, alegoricamente, os muitos “brasis”, como por exemplo,
a Carmem Miranda, a bossa nova, a mulata, a mata atlântica, a roça do Brasil rural,
Iracema e Ipanema. Traz contrapontos e posições sobre o que viria a se constituir como
Tropicália e abrangendo uma vasta relação com o imagético representativo do cenário
nacional e internacional. Por isso, devido a importância da música Tropicália chama-se
esta canção de Caetano de música-manifesto do movimento tropicalista.
Esse manifesto de Caetano Veloso confronta esses ‘brasis’ num tencionamento que
aglutina os aspectos formadores do contexto da época, como a política, por exemplo, em
que Caetano cita a dicotomia esquerda e direita de maneira a explicá-los num patamar
ideológico castrador e duvidoso. Há em Tropicália, como diz Favaretto, “[...] um
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movimento progressivo de descarnavalização, através da pletora de referências às formas
de alívio das pressões políticas que é efetuado pelos meios de comunicação” (2000, p. 77).
Para a exposição aos alunos é necessário dialogar novamente com o que se passava no
país. Os anos anteriores ao Ato Institucional Nº. 5 caracterizaram-se como de ampliação
dos interesses pela cultura nacional e também por mutações no modo de fazer e de pensar
a produção cultural brasileira, dando a ela uma maior responsabilidade em expor a
ditadura e os problemas do Brasil. Segundo Schwarz, “Apesar da ditadura da direita
[houve] relativa hegemonia cultural da esquerda no país” (2009, p. 8). Existe um lugar
comum para todas as tendências artísticas surgidas no Brasi: a renovação, da linguagem,
da música, da poesia, do cinema, “repaginar-se” e “refazer-se” foi o trunfo de ideário
estético que aqui no Brasil ganhava força diferenciada e cada vez mais adequada à
realidade crua, dura e difícil pela qual o país passava.
A música deveria revoltar-se e libertar-se das algemas que a prendiam; denunciar a
tortura e a opressão, mas isso de modo não tão direto, subliminar, velado, maquiado com
poesia porque a existência de Órgãos de censura e a Institucionalização da violência
poderia não deixar passar qualquer introjecção de influências que “ofendessem” a moral, a
família e a pátria brasileira, ou seja, que fosse contra a ideologia dos militares. Frederico
Coelho nos diz sobre o que possibilitou a união de artistas tão diferentes em torno do que
se conhece hoje como tropicália: “O ponto de união que aglutinou esses nomes ao redor
do tropicalismo foi um projeto de alterar radicalmente o quadro estagnado e dividido da
produção cultural brasileira de então”. (COELHO e COHN, 2008, p. 14).
Análise das letras e uso em sala de aula - Superbacana, Batmacumba, Acrilírico, If
you hold a stone, Triste bahia e Épico - debates musicais para a conjuntura da
Ditadura Militar de 68 a 72
Escolhemos, além da contextualização das músicas “Alegria, Alegria” e“Tropicália”,
mais cinco músicas, uma de cada álbum. Em todos os discos analisados, observamos
letras e arranjos em que muitas incrementações são feitas no que podemos chamar de
superposição estética. Misturam-se com palavras do português dos trópicos a língua
estrangeira; são incorporados e evidenciados os cantos e danças históricos do Brasil como
indígenas e afro-descendentes. Tais elementos culturais estiveram muito presentes e
tornaram-se referencias para a Tropicália: o coco, a ciranda, o maracatu, o baião, e a
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cultura popular. O iê-iê-iê e a Bossa Nova foram referências que vinculou a Tropicália à
indústria cultural.
É senso comum que Caetano Veloso sabia unir bem o arcaico com o moderno, uma
coisa nova com um algo das antigas canções. Ele soube chamar atenção para a
importância dos elementos populares da música brasileira e criar uma música brasileira
autêntica frente ao moderno e ao mercadológico. Sobre isso, Favaretto nos diz que “o
efeito crítico não provém da simples justaposição do arcaico e do moderno, que poderiam
conviver numa desordem ‘mantida’, mas do estilhaçamento do painel que se vai
montando” (2000, p. 67). Sobre o ponto de vista musical, alguns acham esta questão
abordada por Favaretto o ponto fraco de Caetano Veloso, outros o forte, contudo, sobre a
perspectiva histórica nada igual na Música Brasileira havia sido produzido até aquela data.
Muitas das músicas do LP solo de Caetano trazem uma escondida criticidade ao
regime militar como em Alegria, Alegria: “Sem livros e sem fuzil, sem fome, sem
telefone, no coração do Brasil”. Sem livros, se explicaria como a não-necessidade das
teorias e ideologias que se espalhavam por todos os lados. Sobre isso, Caetano, em defesa
contra as críticas da esquerda, dizia que o grupo tropicalista “estava à esquerda da
esquerda”. E sem fuzil, no caso, sem a necessidade das armas dos militares.
Não podemos deixar de dizer do peso que Caetano deu á Tropicália de estar discutindo
em música muitas questões. Mesmo se unindo à industria cultural, tendo uma posição
muitas vezes inconstante e “acendendo uma vela para deus outra pro diabo”, Caetano
consegue burlar e transmitir uma música popular no Brasil, sendo representante de
relevância na consolidação da MPB. Ele observava tudo que era extemporâneo e
constitutivo ao mundo, o que estava no interior do país, no terreiro de umbanda, nas
caladas da noite da Ditadura, da exploração capitalista das indústrias, dos bares, das
avenidas, das mulheres, da arte, dos gays, às cores, aos nomes, às tecnologias, aos santos
da Igreja Católica, ao subdesenvolvimento.
Caetano introduz a ‘Coca-Cola’ na música Alegria, Alegria e o símbolo da ‘Esso’ na
música Paisagem Útil. Nunca na história da música brasileira havia se utilizado e
incorporado o nome de marcas nas letras das canções. Por isso, elementos estéticos
tropicalistas transmitiam uma estranheza. Essas ‘estranhas’ introjecções foram alvo de
muitas críticas, geralmente, pelos defensores atrozes da música brasileira tradicional e
resumida à música social ou de protesto.
Sobre a inserção das marcas, os argumentos críticos enfocavam que Caetano estaria
reforçando as empresas donas do capital e da exploração alienante sobre os consumidores,
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como se Caetano, na verdade, defendesse o consumo dessas marcas. No entanto, ele trazia
às canções aquilo que é próprio do mundo em que estava inserido, um mundo vinculado
às publicidades do mercado.
Na música manifesto Tropicália o Carnaval é posto como um dos Monumentos do
Brasil merecedor de vários ‘Vivas!’ aos elementos que o compõem. Favaretto nos diz que
Caetano menciona o carnaval como um ápice; um ápice que realmente o é na cultura
brasileira, ápice que sincroniza todos os ritmos, sons, cores, credos e etnias em um
‘movimento’ e em um ‘monumento’, “Em Tropicália, a música–acontecimento prolonga a
expectativa até a inserção da palavra ‘carnaval’, quando se resolve no baião-estribilho,
que num hino festivo, metamorfoseia o movimento” (Favaretto, 2000, p. 66).
Para a sala de aula, depois de apresentadas “Alegria, Alegria” e “Tropicália”,
contextualizadamente, fazemos uma relação de análise entre as canções citadas neste
tópico. Superbacana (LP solo de Caetano) como construção e prelúdio para BatMacumba
(Gil e Caetano, LP conjunto Panis et Circensis), da poesia cantada com recursos nunca
trabalhados em Acrilírico (Caetano Veloso e Rogério Duprat, álbum de Caetano 1969),
misturando vozes e sons de coisas do mundo, como o som de uma cidade grande e o som
dos gelos caindo em um copo de vidro. Isso também se observa na radicalidade dos sons
observada no álbum Panis et Circensis, quando o som de estilhaços de vidro e de bombas,
e gritos irônicos a imitar ambulâncias e polícias aparecem misturada com as melodias.
Ficam nítidas a denúncia da repressão, violência e o deboche à censura.
Acrescentamos ainda como pontos em comum a música If You Hold a Stone (Caetano
Veloso, LP de 1971) e Triste Bahia (Caetano Veloso, LP de 1972) por serem bons
exemplos da ‘fusão’ do antigo com o novo e do ‘arcaico’ com o ‘moderno’. Conectamos
com o álbum de retorno ao Brasil, o Araça Azul (Caetano Veloso, LP de 1971), em que
Caetano se faz mais solto criativamente, assim, o Araçá Azul é uma continuidade do que
ele vinha fazendo até então, porém, portador de imesa radicalidade musical. Para esse
disco vamos esmiuçar a música Épico. Seguem primeiro as letras e, adiante, o
desenvolvimento proposto de apresentar e ouvir as músicas e debatê-las em aula.
Superbacana
Toda essa gente se engana
Ou então finge que não vê que
Eu nasci pra ser o Superbacana
Eu nasci pra ser o Superbacana
Superbacana, Superbacana, Superbacana
Super-homem
12
Superflit
Supervinc
Superhist
Superbacana
Estilhaços sobre Copacabana
O mundo em Copacabana
Tudo em Copacabana, Copacabana
O mundo explode
Longe muito longe
O sol responde
O tempo esconde
O vento espalha
E as migalhas caem todas sobre
Copacabana me engana
Esconde o superamendoim
O espinafre, o biotônico
O comando do avião supersônico
Do parque eletrônico
Do poder atômico
Do avanço econômico
A moeda nº 1 do Tio Patinhas não é minha
Um batalhão de Cowboys
Barra a entrada da legião dos super-heróis
E eu Superbacana
Vou sonhando até explodir colorido
No sol, nos cinco sentidos
Nada no bolso ou nas mãos
Batmacumba
Batmakumbayêyê batmakumbaoba
Batmakumbayêyê batmakumbao
Batmakumbayêyê batmakumba
Batmakumbayêyê batmakum
Batmakumbayêyê batman
Batmakumbayêyê bat
Batmakumbayêyê ba
Batmakumbayêyê
Batmakumbayê
Batmakumba
Batmakum
Batman
Bat
Ba
Bat
Batman
Batmakum
Batmakumba
Batmakumbayê
Batmakumbayêyê
Batmakumbayêyê ba
Batmakumbayêyê bat
Batmakumbayêyê batman
Batmakumbayêyê batmakum
Batmakumbayêyê batmakumbao
Batmakumbayêyê batmakumbaoba
Acrilírico
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Olhar colírico
Lírios plásticos do campo e do contracampo
Telástico cinemascope teu sorriso tudo isso
Tudo ido e lido e lindo e vindo do vivido
Na minha adolescidade
Idade de pedra e paz
Teu sorriso quieto no meu canto
Ainda canto o ido o tido o dado
O dado o consumido
O consumado
Ato
Do amor morto motor da saudade
Diluído na grandicidade
Idade de Pedra ainda
Canto quieto o que conheço
Quero o que não mereço
O começo
Quero canto de vinda
Divindade do duro totem futuro total
Tal qual quero canto
Por enquanto apenas mino o campo ver-te
Acre e lírico o sorvete
Acrílico Santo Amargo da Putrificação
If You Hold a Stone
If you hold a stone, hold it in your hand
If you feel the weight, you'll never be late
To understand
But if you hold the stone, hold it in your hand
If you feel the weight, you'll never be late
To understand
If you hold a stone, marinheiro só
Hold it in your hand, marinheiro só
If you feel the weight, marinheiro só
you'll never be late, marinheiro só
To understand...
Mas eu não sou daqui
Marinheiro só
Eu não tenho amor
Eu sou da Bahia
De São Salvador
Eu não vim aqui
Para ser feliz
Cadê meu sol dourado
E cadê as coisas do meu país
Triste Bahia
(A primeira estrofe da música é parte do poema homônimo de Gregório de
Mattos)
Triste Bahia, oh, quão dessemelhante estás
E estou do nosso antigo estado
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Pobre te vejo a ti, tu a mim empenhado
Rico te vejo eu, já tu a mim abundante
Triste Bahia, oh, quão dessemelhante
A ti tocou-te a máquina mercante
Quem tua larga barra tem entrado
A mim vem me trocando e tem trocado
Tanto negócio e tanto negociante
Triste, oh, quão dessemelhante, triste...
Pastinha já foi à África
Pastinha já foi à África
Pra mostrar capoeira do Brasil
Eu já vivo tão cansado
De viver aqui na Terra
Minha mãe, eu vou pra lua
Eu mais a minha mulher
Vamos fazer um ranchinho
Tudo feito de sapê, minha mãe eu vou pra lua
E seja o que Deus quiser
Triste, oh, quão dessemelhante
Ê, ô, galo canta
O galo cantou, camará
Ê, cocorocô, ô cocorocô, camará
Ê, vamo-nos embora, ê vamo-nos embora camará
Ê, pelo mundo afora, ê pelo mundo afora camará
Ê, triste Bahia, ê triste Bahia, camará
Bandeira branca enfiada em pau forte
Afoxé leî, leî, leô
Bandeira branca, bandeira branca enfiada em pau forte
O vapor da cachoeira não navega mais no mar
Triste recôncavo, oh, quão dessemelhante
Maria pegue o mato é hora, arriba a saia e vamo-nos embora
Pé dentro, pé fora, quem tiver pé pequeno vai embora
Oh, virgem mãe puríssima
Bandeira branca enfiada em pau forte
Trago no peito a estrela do norte
Bandeira branca enfiada em pau forte
Épico
Ê, saudade
Todo mundo protestando contra a poluição
Até a revistas de Walt Disney
Contra a poluição
Ê, Hermeto
Smetak, Smetak & Musak & Smetak
& Musak & Smetak & Musak
& Razão
Ê, cidade
Sinto calor, sinto frio
Nor-destino no Brasil?
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Vivo entre São Paulo e Rio
Porque não posso chorar
Ê, começo
Destino eu faço não peço
Tenho direito ao avesso
Botei todos os fracassos
Nas paradas de sucessos
Ê, João
Os pontos em comum encontrados nestas músicas revelam uma previsão das
consequências que Caetano e a Tropicália produziriam, de se tornar uma influência difusa,
não homogênea. Provindo de uma chuva de referenciais, mas brotando como porto do que
viria a ser produzido em seguida. Foi com e através disto que a música brasileira pode ir
em diversas direções que não ocorreriam se o movimento não tivesse sido levado a cabo
tão arriscadamente por Caetano. Jorge Mautner fala que “o próprio Caetano faz questão de
dizer que é um movimento que se encerrou, que se estilhaçou e propôs toda essa
fragmentação criativa” (CYNTRÃO, 2000 p. 198).
A começar pela crítica em Superbacana: o mundo explode diante de um contexto de
desenvolvimento industrial e econômico; o mundo capitalista é rico, isso do âmbito
externo fica mais claro com o passar da música. Mas, as migalhas dessa explosão, dessa
crise, vêm cair logo aqui no Brasil, em Copacabana. Ou seja, nós brasileiros acabamos
sofrendo, pelo efeito dominó da economia globalizada e da bipolaridade ideológica, as
consequências mais terríveis de uma crise econômica. Os super-heróis e cowboys
estrangeiros do ‘primeiro mundo’ sofrem bem pouco, estão munidos de um aparato que os
protege. Mas os países ‘subdesenvolvidos’ como o Brasil acabam recebendo com bem
maior força as consequências deprimentes dessa crise.
Em Batmacumba: numa composição de inspiração concretista, essa crítica aos ícones
e heróis americanos também aparece. Mais brincalhona com a letra poesia-concreta, numa
crítica ao Batman, herói dos quadrinhos estadunidenses, rezada por uma desconstrutora e
desconcertante macumba brasileira para desfazer e refazer aquilo que sobre nós recai. A
letra é emblemática da renovação musical no Brasil daqueles anos.
Em Acrilírico: essa transmissão crítica se complexifica. Caetano Veloso relata que
apesar de tudo “o ido o tido o dito / O dado o consumido / O consumado Ato” ele
continuará a cantar da mesma maneira que ele deseja cantar “Tal qual quero canto”. Ou
seja, mesmo que seja impedido pela Ditadura não deixará de cantar como quiser, mesmo
que o censurem Caetano não se calará.
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A composição de acrilírico foi no pós-68 e Caetano já havia passado pela deprimente
prisão, se encontrando no forçoso exílio em Londres, que enfrentou em depressão
profunda. Caetano reflete nessa música que na sua juventude “Idade de pedra e paz”, era
preciso jogar pedras para pedir a paz - numa brincadeira com a Oswaldiana teoria de
evolução do homem da Idade da pedra, para a Idade da Pedrada, para a Idade de cair nas
Pedras.
Nesse sentido, naquele momento em que Caetano estava jovem tudo parecia mais real,
estava “Tudo ido, e lido e lindo e vindo do vivido” e sua atuação parecia mais instantânea
ao que acontecia no presente. Caetano relata depois o passado, como algo distante, porque
o tempo se passou e ele estava no exílio, mas ele tem uma sensação do presente como
incrivelmente artificial e, portanto, acrílico + lírico = acrilírico. Tudo está vertendo a
esconder e danificar a verdade, tudo está podre e manipulada está a verdade dos fatos –
numa crítica a propaganda da ditadura de que o país estava crescendo e que a democracia
existia. Inclusive, Caetano representa sua cidade natal como podre, transformando-se em
“Santo Amargo da Putrificação”. Ele ainda diz que o futuro será difícil em “Quero canto
de vinda / Divindade do duro totem futuro total”. Esse trabalho é um acontecimento
musical jamais visto na MPB. “A cabeça privilegiada de Caetano não aceitaria, como não
aceitou, restrições do que podia ou não ser feito” (COELHO e COHN. 2008, p. 9).
Em If You Hold a Stone: Caetano Veloso reafirma que é um brasileiro, um baiano, que
não é de Londres e que não tem nada a ver com aquela cultura. Salientaremos para os
alunos que Caetano chama como mote a música “Marinheiro só” que adaptara e arranjara
no disco anterior de 1969. Para que se entenda, “To understand”, o porque ele diz que não
é deste lugar, no caso, Londres, é importante que o aluno saiba o que seja o “Marinheiro
só” e o contexto apresentado anteriormente. Daí, que parta para uma compreensão na
perspectiva global encontrada em If You Hold a Stone. O lugar espacial de Caetano era
longe do Brasil e ele queria se aproximar de seu país, de seu povo, embora, longe e não
sendo daquele lugar. Sente-se liberto para entranhar sua canção com a inebriante soma do
canto popular brasileiro ao som estridente das guitarras elétricas, ‘like a Rolling Stones’.
O Marinheiro só é uma canção popular brasileira, de domínio público, o fato de Caetano
Veloso tê-la casado com o Rock em um disco no âmbito pop é singular e crucial para que
se possa entender a intenção renovadora do artista.
Caetano Veloso permaneceu fazendo isso em Triste Bahia: na incrível adaptação da
poesia de Gregório de Matos, Caetano conserva a orientação ao ouvinte de que está com
os olhos voltados para o Brasil, mais precisamente, para a Bahia como símbolo do país
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que emerge em descalabro repressivo. Caetano, portanto, localiza sua indignação com
aquilo que vem sendo realizado politicamente no Brasil, por isso, ele enfatiza dizendo
“Triste Recôncavo”. Mas, que lugar tão triste é este que, mesmo assim, Caetano deseja
tanto retornar? O recado de Caetano foi que o Brasil poderia parecer a ele
“dessemelhante”, mas ainda assim ele tinha consciência de onde veio, de suas raízes. Esse
âmbito caetaniano de encontrar num lugar aquilo que deseja transmitir ao público não se
restringe ao ‘lugar’ como entendemos. Este ‘lugar’ pode não ser onde, mas como e através
de quê. É de se observar que Triste Bahia é uma canção de cunho político evidente.
Essa música nos faz compreender e entender outras ligações que a canção de protesto
e engajada pode desencadear, desenvolver e sustentar para além da música, numa trama
que mobiliza, como que cinematograficamente, guerreando contra aquilo que se apresenta
mesquinho e podre, a política autoritária e mentirosa. Dançar e cantar seria uma maneira
encontrada para reverter isso e perpetuar a resistência, assim como faziam os negros
escravos no Brasil colonial, a resistência pela música e pela dança. Dançar não é tão
óbvio, tão passivo, tem, antes de tudo, uma representatividade de arregimentar união,
espírito altruísta. Desta forma, como nos diz Medeiros,
O lugar que esta luta se exerce é o corpo. Daí que, acolhendo tal insurreição,
na busca de um lugar para o encontro da plenitude, a música tente reunir o
conceitual e o corporal num só signo, numa só manifestação(...) (2004, p.
54) (Grifo meu).
Sobre esta noção espacial e temporal que Caetano Veloso nos remete na arte,
diz que,
Holanda nos
O tropicalismo começa a sugerir uma preocupação com o aqui e agora,
começa a pensar a necessidade de revolucionar o corpo e o comportamento,
rompendo com o tom grave e a falta de flexibilidade da prática política
vigente. Será inclusive por esse aspecto da crítica comportamental, pelo
deboche diante das atitudes “bem comportadas’, que Caetano e Gilbero Gil
acabarão exilados [expulsos] pelo regime militar (1982, p. 70) (grifo meu).
Em Épico: Caetano consolida a conservação na MPB da linguagem do povo brasileiro.
Agora, porém, através do sotaque nordestino ao utilizar na letra o verbo não oficial típico
do nordeste ‘botar’ em “Botei todos os fracassos / Nas paradas de sucesso”. Uma crítica
fundamentada fica evidente em ‘Épico’ sobre a poluição e a Indústria Cultural (revistas de
Walt Disney). Todo o mundo capitalista relata suas preocupações sobre a poluição,
inclusive, a mídia estadunidense da alta burguesia industrialista e poluidora também traz
estampada, hipocritamente, suas preocupações com a poluição do mundo.
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Caetano cita em Épico três artistas imprescindíveis ao se falar de MPB, Hermeto
Pascoal, João Gilberto e Walter Smetak. Representando uma colocação requintada e
erudita perante a forte evidência do popular sotaque de aboio que Caetano gravou no meio
de uma cidade grande, escutando-se o som da cidade que por trás dele se movimenta.
Essa voz utilizada por Caetano Veloso, voz que remete aos cantadores populares, que
nunca fizeram uma produção massificada para a Indústria Midiática, foi uma proposta de
discutir a produção da cultura popular e da indústria cultural. O som da cidade grande é o
som que os nordestinos encontram quando migravam para SP e RJ em busca de trabalho e
de uma melhor condição de vida tendo em vista a passagem “Porque não posso chorar”.
A voz de Caetano, em contrapartida, é a voz que se encontra quando viajamos pelas
feiras do interior do nordeste. A música Épico é forma popular e forma clássica de uma
construção só. Não se distinguem com clareza os elementos componentes das duas
formas. E, ao final de tudo, a música se auto-consome e se joga em um despenhadeiro
liquidificante e não se distingue mais nada além do som do som épico dessa história.
Como diz Caetano, citando Walter Smetak no livro Alegria, Alegria, “ "Porque este novo
gênero que surge é uma fusão do oriente e do ocidente e não é erudito nem popular", disse
Smetak falando do seu próprio trabalho e me parece sensato espalhar sementes de sonho
por aí” (VELOSO. 1977, p. 36).
O sonho de Caetano era inovador, muito inventivo, nunca no mundo da música
brasileira até 1972 se viu nada igual. Este estilo musical chama-se Musak, e, ao sintonizar
com isso, Caetano introduz como “referência à referência” no corpo da canção, o
SMETAK & MUSAK. A idealizada junção dos dois é repetida pelo aboio como que para
confirmar um casamento. Em Épico algo surge como irreal, pela realização poética
sobrepujando a própria música, a melodia se torna estridente e grandiosa, como que
abalada pelas poucas palavras proferidas pelo cantor; a cada palavra um terremoto na
melodia. Segundo Ferraz,
Vê-se aí um desejo de engendrar, simultaneamente, uma estética e
uma ética. Digamos que a utopia desta fala seria fundar no seu próprio
ato uma espécie de escuta total: desnudamento, verticalidade,
afirmação da língua, da cultura, do corpo, da mobilidade, das
individualidades. Um ânimo “sem lenço e sem documento”, convite a
existências livres, empenhadas no exercício contínuo da aprendizagem
(2003. p. 12).
Historicamente, pensando os pontos da música, Caetano faz referências ao Brasil e ao
mundo daquele instante: a poluição, Walt Disney (símbolo da massificação do ideal
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estadunidense), Hermeto Pascoal, Smetak & Musak, o irracionalismo e o racionalismo, o
nordestino e a imigração à cidade grande, o começo de seu direito ao avesso, em que
Caetano pede lincença para ser o diferente, e João Gilberto, como muitos Joãos de todo o
Brasil, que como o Gilberto, são geniais. Ao final da música coloca tudo num
liquidificador de som, representando o turbilhão constante que era o mundo. Épico se
aproxima de Tropicália quando discute alguns conteúdos similares como a dualidade
desenvolvimento e subdesenvolvimento, erudito e popular, que se misturam a um nível de
impossibilidade de fragmentá-los em instâncias díspares na sociedade brasileira.
Depois de apresentadas e ouvidas as músicas em sala, os alunos terão uma
compreensão mais abrangente do período, tanto politicamente como artísticamente. Em
todas as músicas estudadas, Caetano Veloso situa bem o ouvinte, de forma que este não
fique confuso com o diferencial musical que ele propuha, e possa, dessa maneira, se
libertar para o novo som e a nova intenção musical de engajamento: a de ir contra a
Ditadura, a repressão, a censura, pela liberdade de expressão, pela democracia e pela
produção criativa livre.
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