AbrAce o cristo Pobre

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Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
Abrace o
Cristo Pobre
A Espiritualidade
de Santa Clara de Assis
Frei José Carlos Pedroso
1
Frei José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap
Sumário
1ª parte: O “Ponto de partida”...................................................................................................................................... 3
2ª parte: Espiritualidade................................................................................................................................................ 7
3ª parte: Mística............................................................................................................................................................ 10
4ª parte: Santa Clara e o Cristo Esposo..................................................................................................................... 13
5ª parte: Clara Esposa de Cristo................................................................................................................................. 16
6ª parte: Clara celebrou Cristo Esposo...................................................................................................................... 20
7ª parte: Francisco, figura do Esposo......................................................................................................................... 23
8ª parte: Eles viveram uma profunda amizade......................................................................................................... 26
9ª parte: Na amizade com Francisco Clara viveu a esponsalidade com Deus...................................................... 28
10ª parte: Cada um por si, mas também juntos, eles sentiram falta da plenitude de Deus e a buscaram.......... 32
11ª parte: Clara e os Místicos de seu tempo................................................................................................................ 37
12ª parte: Beatriz de Nazaré (1200-1268).................................................................................................................... 40
13ª parte: Alguns fundamentos do Esponsais............................................................................................................ 44
14ª parte: Guilherme de Saint-Thierry........................................................................................................................ 47
15ª parte: A Aliança Esponsal nos Santos Padres...................................................................................................... 50
16ª parte: Orígenes - História, ferida e fecundidade................................................................................................. 52
17ª parte: Três temas na mística origineana............................................................................................................... 54
18ª parte: Gregório de Nissa - A caminhada até a União.......................................................................................... 57
19ª parte: Até a contemplação eterna da Beleza de Deus que nos transforma em sua imagem.......................... 60
20ª parte: O Esposo na Aliança Bíblica....................................................................................................................... 62
21ª parte: A Aliança e os Profetas................................................................................................................................. 66
22ª parte: Oséias............................................................................................................................................................. 68
23ª parte: A nova Aliança – Jesus é o Esposo............................................................................................................. 71
24ª parte: A Igreja, Esposa do Verbo........................................................................................................................... 73
25ª parte: O ser humano existe para desposar Deus.................................................................................................. 76
26ª parte: Clara saiu para estar com Ele...................................................................................................................... 78
27ª parte: Uma situação liminar................................................................................................................................... 81
28ª parte: Orar no “Não-lugar”..................................................................................................................................... 84
29ª parte: O Reino do “Não-Lugar”............................................................................................................................. 86
30ª parte: ....................................................................................................................As Irmãs-Esposas88
31ª parte: ........................................................................................... A vida das clarissas como Irmãs
19
32ª parte: .......................................... Elas refletem umas para as outras o Cristo Esposo e Espelho
49
33ª parte: .....................................A contribuição das Irmãs-Esposas para a Ordem e para a Igreja
89
34ª parte: .................................................................................... A clausura das Irmãs de Santa Clara
001
35ª parte: ........................................................................................................Contemplando o Esposo
301
36ª parte: ...............................................................................Contemplação dominada pela gratidão
801
37ª parte: ......................................................................................................................... “Mãe de Jesus”
311
Final: Divinizar o humano e humanizar o Divino....................................................................116
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1ª parte
1. O “Ponto de partida”
Na sua segunda Carta a Inês de Praga, Santa Clara fez uma exortação premente: “Não perca
de vista seu ponto de partida” (2CtIn 11).
Para entender toda a força do que ela quis dizer, é preciso ter em conta que essa carta era
uma resposta a uma questão também premente de Inês sobre o que deveria fazer diante de uma
ordem recebida do papa para que tivesse propriedades.
Para Clara, não era uma questão simples. Para ela, não querer ter propriedades não era uma
veleidade: estava no núcleo de seu compromisso de amor pessoal com Jesus Cristo. Alguns anos
antes, quando o papa Gregório IX quisera forçá-la a ter propriedades e chegara a dizer: - “Se o
seu problema é o voto de pobreza, você sabe que eu sou o papa e posso dispensá-la”, ela dissera
com firmeza: - “Não me dispense de seguir o meu Senhor Jesus Cristo!”. Não se tratava de nenhum voto formal de pobreza, mas de viver como Jesus, de ter “os mesmos sentimentos de Jesus, que não se achou grande por ser Deus: pelo contrário, esvaziou-se até ser encontrado como
um servo, como um de nós, para nos salvar” (cf Fl 2).
Desde o começo, é importante deixar bem claro um dos fundamentos da espiritualidade
francisclariana: Por que Clara, como Francisco, quer seguir os passos de Jesus Cristo, crucificado e pobre?
São João disse que “Deus é Amor”. Ou Deus é o Amor? São Francisco diz que Deus é o Bem,
todo o Bem, o sumo Bem ... É outra maneira de dizer que “Deus é o Amor”.
Amar é dar-se. Quando nós amamos, nos damos à pessoa amada. Mesmo pensando que esse
dar-se vai até o fim da vida, sabemos que nunca vamos nos dar totalmente, porque nunca chega3
Frei José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap
remos - pelo menos nesta terra - a nos conhecer inteiros, nem a conhecer a pessoa inteira para
nos dar a ela inteira. Mas Deus, o Deus Pai e Filho e Espírito Santo, quando ama se dá inteiro. Se
Deus é capaz de se dar inteiro, nós podemos concluir - dentro de nossa maneira limitada porque
humana - que não sobra nada.
Foi ao pensar que Deus se dá inteiro sem sobrar nada que Francisco e Clara chegaram à conclusão de que Deus é o maior pobre.
Uma conseqüência: Quando damos tudo, ficamos plenamente livres. Como São João chegou
à grande afirmação “Deus é o Amor”, os Santos Padres chegaram à afirmação: Deus é a Liberdade. Então, Deus não é amoroso, ele é o próprio Amor. Deus não é livre, ele é a própria Liberdade.
Ora, se ele é todo o Amor, sempre que nós amamos vivemos o Deus Amor, partilhamos o
seu Amor. Em outras palavras: estamos usando o Amor dele, estamos vivendo o Amor que Ele
é. E se ele é toda a Liberdade, quando somos livres partilhamos da sua Liberdade. Em outras
palavras: usamos a Liberdade dele, vivemos a Liberdade que Ele é.
Outra conseqüência: Quando o Verbo se fez Carne, esvaziou-se para nos ensinar a amar,
esvaziou-se para nos ensinar a ser livres.
Mais uma conseqüência: percebemos melhor porque Francisco não entendia a obediência
como um cumprir ordens, mas como um corresponder ao amor recebido. Entendemos por que
Clara e Francisco quiseram seguir com tanto amor o Cristo crucificado e pobre: quanto mais
eles amavam, mais se tomavam pobres; quanto mais pobres, tornavam-se mais livres. Pobres
como Jesus, livres como Jesus.
Foi por isso que eles viveram um esponsal contínuo: um contínuo relacionamento de amor
entre a própria pessoa e a pessoa muito concreta de Jesus Cristo.
***
Todos nós somos sedentos de amor, não é verdade? Todos nós somos sedentos de liberdade,
não é mesmo? Teremos tudo isso na medida em que vivermos o nosso compromisso pessoal - o
nosso compromisso esponsal - com Jesus Cristo. Aquele que se esvaziou para nos salvar.
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Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
Observemos: Salvar é a mesma coisa que libertar.
Por seu imenso amor a Jesus Cristo, Clara tinha partido da casa de seus pais sem propriedade
alguma, totalmente livre depois de ter vendido e distribuído todos os seus bens, para “abraçar o
Cristo pobre como uma virgem pobre”, como escreveu logo adiante na mesma Carta 2 a Inês de
Praga, que fora agraciada pela mesma vocação.
Compreenderemos melhor essa maneira de dizer se nos lembrarmos de que para Clara nesse ponto discípula de São Bernardo - virgindade era entendida de uma maneira significativamente diferente da nossa. É como se ela dissesse: “Sou tanto mais virgem quanto mais espaço
dou dentro de mim para Deus”. Sua vida era um correr ao encontro do Cristo pobre como uma
virgem pobre. Esse haveria de ser o ponto de chegada; já tinha sido o ponto de partida.
Por essa mesma razão, Clara insiste com Inês, na sua segunda carta, que
“em rápida corrida, com passo ligeiro e pé seguro, de modo que seus passos nem recolham
a poeira e avance confiante pelo caminho da bem-aventurança” (2Ctln 12).
A decisão de Clara é tão segura que ela tem a ousadia de dizer, logo diante:
“Não confie em ninguém, não consinta com nada que queira afastá-la desse propósito, que
seja tropeço no caminho para não cumprir seus votos ao Altíssimo na perfeição em que o Espírito do Senhor a chamou ... Se alguém lhe disser outra coisa ou sugerir algo diferente, que impeça a sua perfeição ou parecer contrário ao chamado de Deus, mesmo que mereça a sua veneração, não siga o seu conselho. Abrace o Cristo pobre como uma virgem pobre” (2Ctln 14,17-18).
De fato, essa era a recomendação que São Francisco lhe dera pouco antes de morrer, quando
lhe enviou a “Última Vontade”:
“Eu, Frei Francisco, pequenino, quero seguir a vida de pobreza do Altíssimo Senhor Jesus
Cristo e de sua santíssima Mãe e nela perseverar até o fim. Rogo-vos, senhoras minhas, e vos
aconselho a que vivais sempre nessa santíssima vida e pobreza. Guardai-vos bastante de vos
afastardes dela de maneira alguma, pelo ensinamento de quem quer que seja (RSC 6,7-9).
Como as outras três, essa segunda carta de Clara a Inês fala da sua ‘espiritualidade dos esponsais”, ou do caminho de relacionamento pessoal cada vez mais profundo entre a nossa pessoa
e a pessoa de Jesus Cristo. Logo no início, Clara saúda Inês como “esposa digníssima de Jesus
Cristo” (2Ctln 1-2). Depois recorda sua união “ao rei no tálamo celeste” (2Ctln 5), exortando-a
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Frei José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap
a “olhar, considerar e contemplar o seu esposo, o mais belo entre os filhos dos homens feito por
sua salvação o mais vil de todos, desprezado, ferido e tão flagelado em todo o corpo, morrendo
no meio das angústias próprias da cruz” (2Ctln 20). No fim se despede dizendo: “Adeus, irmã
querida, senhora minha pelo Senhor que é seu esposo” (2Ctln 24).
Realmente, a nota característica da espiritualidade de Santa Clara é ser uma “espiritualidade
dos esponsais”, com o mais sólido fundamento nas Sagradas Escrituras, nos Santos Padres e na
experiência dos místicos que a precederam, como vamos ver.
“Abraçar o Cristo pobre como uma virgem pobre” vai ser a espinha dorsal do “ponto de partida” da espiritualidade de Santa Clara no estudo aprofundado que queremos fazer.
Para isso, devemos recordar alguns pontos:
Santa Clara nasceu em Assis, na Úmbria, Itália, em 1193 ou 1194 e morreu nessa mesma cidade em 1253. Com São Francisco, fundou a Ordem posteriormente chamada “das Clarissas”. É
uma santa extraordinária, que esteve durante séculos à sombra de seu conterrâneo mais famoso,
mas esta sendo redescoberta como uma grande mestra espiritual desde o final do século XX.
Neste nosso trabalho, estamos tentando apresentar - de maneira sucinta, mas bem fundamentada - como podemos entender a sua espiritualidade. Porque, além de ter colaborado validamente
para o que sempre se conheceu por espiritualidade franciscana, ela teve valores muito próprios.
Tanto que, a partir do século XX, começou-se a dizer que a espiritualidade do movimento franciscano pode ser chamada de espiritualidade francisclariana.
Nós vamos entendê-la à luz do que a Igreja conhece como espiritualidade dos esponsais, falando mesmo em teologia dos esponsais.
(*) Este texto faz parte do Curso de Verão do Centro de Espiritualidade de Piracicaba
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2ª parte
1.1 Espiritualidade
A palavra espiritualidade vem do latim spiritus, que quer dizer sopro, vento, impulso e, por
isso mesmo, já tem um sentido dinâmico. O amor dos esponsais não é parado. Penetra sem cessar no mistério sem fim do Amor.
Mas também pensamos claramente no Espírito de que o Antigo Testamento já falava: uma força de Deus. Jesus revelou que, na realidade, ele era o Espírito Santo, uma
das Pessoas da Trindade. Mais do que isso: na revelação de Jesus, Ele é o Paráclito ou
companheiro chamado para ficar conosco e morar em nossos corações. Lá dentro,
exerce a mesma função que tem na Trindade: é o turbilhão avassalador do amor entre
o Pai e Filho.
Hoje, usamos a expressão espiritualidade até para falar da visão que outras religiões têm
sobre Deus. Para nós, cristãos, lembra aquela força que perpassa toda a Bíblia, desde quando “a
terra era vazia e confusa” até quando a humanidade - e cada um de nós - vai saber dizer no mais
autêntico uníssono com o Espírito Santo: “Vem, Senhor Jesus, vem!”
A Igreja é rica de “espiritualidades”, como a beneditina, a cisterciense, a carmelita, a inaciana,
e falamos até em “espiritualidade conjugal”. Nós vamos falar mais na “francisclariana”, mas todas
elas vivem esse valor do esponsais.
Espiritualidade é um caminho. Precisamos conhecer o próprio caminho e ter boa
companhia. O caminho que Santa Clara apresenta é Jesus, aquele que disse “Eu sou o
caminho”. São Francisco também falava em “seguir os vestígios de Jesus crucificado e
pobre”.
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Frei José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap
1.2 Esponsais
Na prática, a palavra Esponsais é um sinônimo de casamento: da celebração do compromisso
entre um homem e uma mulher. Pode ser a união mais profunda e duradoura entre duas pessoas e, por isso, é excelente para falar do compromisso que o Deus da Bíblia quis estabelecer com
a humanidade e com cada um de nós.
Tertuliano, um dos grandes Padres da Igreja nos primeiros séculos,já tinha dito que as virgens
consagradas eram “esposas de Cristo”. Em tempos mais recentes, essa expressão foi mal entendida e
ridicularizada, como se quisesse dizer que alguém é uma “mulher de Jesus”, ou algo parecido. Não é
isso. Recordo que a raiz da palavra esponsal, como a de esposo ou esposa é a mesma de responder,
responsabilidade, corresponder. E, “pessoas consagradas”no batismo, também nós somos esposos.
Recordo também que foi o próprio Deus quem se chamou de Esposo do Povo da antiga e da
nova Aliança. E nos convida a ser a esposa, como povo e como indivíduos, sem importar se somos
mulheres ou homens. O importante é o compromisso pessoal que assumimos de corresponder a
Deus. E não perder de vista que o laço que Deus quer estabelecer conosco é de amor. Mesmo o
pacto social que estabeleceu com o povo de Israel foi sempre envolvido de afeto e de carinho.
A proposta cristã também vê a realização de toda pessoa humana - e de toda a raça humana
- numa união perfeita em que seremos felizes porque “Deus vai ser tudo em todos”.
1.3 Linguagem simbólica
Quando falamos em esponsais, estamos usando uma linguagem simbólica: comparamos
nosso relacionamento com Deus ao relacionamento entre os esposos. Até quando falamos em
espiritualidade, estamos usando linguagem simbólica. Dizemos: “é como o spiritus, o vento”.
Foi o símbolo que Jesus usou quando conversou sobre o novo nascimento com Nicodemos. O
homem sempre procurou usar uma linguagem que lhe permitisse expressar o inefável. Para isso,
usa os símbolos. Por isso, inventou as artes.
A palavra símbolo pode ter muitos usos. Há simbolos na matemática e na química, na poesia,
na mística. O símbolo era originariamente um sinal para reconhecer alguma coisa ou pessoa,
e exigia um complemento. Por isso é importante notar: a linguagem simbólica só se aproxima
- não resolve de uma vez - de uma realidade que a ultrapassa e que ela não consegue explicar.
O ser humano já foi chamado de “animal que fala”. Nisso é diferente de todos os outros seres
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Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
e, por isso, pode de alguma maneira recriar seu mundo: o interior e o exterior, dando-lhes nomes, chamando, narrando. Mas é o seu ser inteiro que comunica, até com uma linguagem não
verbal. Pode dizer muito, mais com um olhar do que com um livro e mostrar o que pensa com
um gesto. Mesmo assim, há realidades que não dá para expressar: são inefáveis.
1.4 Sol e Lua
Os esponsais de que falamos são uma expressão simbólica em que nossa relação com Deus
é comparada à relação entre o homem e a mulher. É histórica e essencial uma tensão entre
homem-mulher. O homem sentiu-se muitas vezes vítima de uma mulher tentadora, ou temida
por seu ministério. Outras vezes, sentiu-se salvador da mulher frágil. A partir daí, pôs a mulher
em segundo lugar, para defender-se ou para defendê-la. Mas a tensão é positiva: dela nasce vida.
Os antigos já tinham percebido que há uma diferença grande entre ser homem-mulher e ser
macho-fêmea como entre os animais e as plantas: não somos homens e mulheres só para nos
reproduzir. Mais que tudo, é para nos relacionar. E o relacionamento pressupõe que haja de
parte a parte algo masculino e algo feminino. Em linguagem simbólica, chamaram o masculino
de Sol, e o feminino de Lua.
Um ser humano Mulher apresenta exteriormente um predomínio da Lua (palavra simbólica
para feminino), mas tem interiormente um equilíbrio solar, que permite que ela se relacione
com o homem e seja plenamente humana.
Um ser humano Homem apresenta exteriormente um predomínio do Sol (palavra simbólica
para o masculino), mas tem interiormente um equilíbrio lunar, que permite que ele se relacione
com as mulheres e seja plenamente humano. Alguns gregos antigos já tinham dito que somos
plenamente humanos quando realizamos interiormente um hierós-gámos, isto é, um casamento sagrado entre Sol e Lua que moram em nosso interior.
O homem e a mulher não estão um ao lado ao outro, mas um diante do outro, numa oposição que não contradiz, mas afirma o outro. A oposição polar comporta uma reciprocidade
que assume o outro, mas não o anula. São duas realidades que não se confundem, não derivam
uma da outra, mas não podem ser pensadas isoladamente. Homem e mulher vivem a realidade
inteira a partir de seu sexo.
Como a Bíblia nos ensina, é nossa linha que podemos pensar em um relacionamento mais
objetivo entre cada um de nós e Deus.
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3ª parte
1.5 Mística
Diante do mistério que o transborda, o homem expressa sua incapacidade de falar pelo silêncio, pela mística: quer designar realidades secretas da ordem religiosa e moral. Mística vem
do grego myo = fechar os olhos ou a boca: para não ver o segredo e para não revelar nada. O
silêncio saudável. Na linguagem do amor, feita de palavras e de silêncios, nós nos movemos
num modo de falar que pode parecer impreciso para quem não descobriu a precisão da arte tão
carregada de força e de verdade. Nela, o homem se ajoelha para recolher as riquezas do mistério.
Celebra-o. Quando o mistério é muito grande, adora. Mas não foge do mistério, vive dele.
Desde que tomou consciência das realidades que existem ao seu redor e de que têm um
nexo entre eles mesmos, os humanos foram místicos. E o ato de muitos terem perdido o uso da
mística quando encontraram algumas explicações racionais, não acabou com ela. Os místicos
cresceram. Vamos nos dedicar, aqui, apenas aos místicos dos tempos antigos e medievais que
viveram da revelação bíblica porque queremos que os medievais Clara de Assis e Francisco nos
ajudem a viver a mística do século XXI em diante.
Para todos esses místicos, o mistério maior é o Amor. E o amor é relação. E nós vamos dar a
maior seriedade possível a esse aprofundamento. Já foi dito: “O homem do terceiro milênio vai
ser um místico ou não vai ser nada”.
1.6 A Trindade e o ser humano
Assim como as perfeições invisíveis do Criador podem ser contempladas em suas obras,
especialmente na grandeza e beleza de suas criaturas, nosso ser homem-mulher é um especial
reflexo da Trindade: do que ama (Pai), do que é amado (o Filho) e do Amor (o Espírito Santo).
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Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
O encontro afetivo entre o homem e a mulher carrega em si um convite para se descobrir e
se dar progressivamente que inclui uma abertura para o transcendente, porque nos convida a
ultrapassar a nós mesmos. Em toda relação amorosa em que há uma abertura para o mundo sobrenatural, eterno e infinito, há uma superação da relação como tal, no sentido de que a própria
dinâmica da experiência leva a penetrar em uma forma suprema de comunhão interpessoal: a
que acontece entre seres que se comunicam em Deus, a quem buscam juntos e amam juntos.
Na Bíblia, Deus mesmo comparou o amor que tem por nós ao amor entre o homem e a mulher. A partir dessa realidade nossa e da revelação de Deus ao seu Povo, vamos olhar a realidade
e viver o concreto de nossa vida na perspectiva da espiritualidade dos esponsais.
Em Santa Clara, a dimensão trinitária foi posta como um fundamento desde que São Francisco, à sua entrada na Ordem, lhe propôs como “Forma de Vida”, incluída mais tarde por ela
no coração da sua Forma de Vida, isto é, da sua Regra, aprovada por uma bula de Inocêncio
IV em 1253. É uma proposta que pode ser entendida em sua plenitude quando consideramos
outros dois escritos de São Francisco: a Antífona de Nossa Senhora que ele colocou no Ofício
da Paixão, e o início da Carta aos Fiéis.
Os textos são os seguintes:
a) Forma de vida
“Desde quem por inspiração divina, vos fizestes filhas e servas do Altíssimo Sumo Rei Pai
celeste e desposastes o Espírito Santo, optando por uma vida de acordo com a perfeição do Santo Evangelho, eu quero e prometo, por mim e por meus frades, ter por vós o mesmo cuidado
diligente e uma solicitude especial, como por eles”(RSC 6,3-4)
b) Antífona de Nossa Senhora
“Santa Virgem Maria, não nasceu nenhuma semelhante a vós entre as mulheres neste mundo, filha e serva do altíssimo sumo Rei e Pai Celeste, Mãe do nosso santíssimo Senhor nosso Jesus Cristo, esposa do Espírito Santo: Rogai por nós com São Miguel Arcanjo e todas as virtudes
dos céus e todos os santos junto a vosso santíssimo dileto Filho, Nosso Senhor e Mestre! Glória
ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. Como era no princípio, agora e sempre, Amém!”
c) Carta aos Fiéis
“Oh! Como são bem-aventurados e benditos, eles e elas, enquanto fazem essas coisas e nelas
perseveram porque descansará sobre eles o espírito do Senhor (cf. Is 11,2) e neles fará sua casa
e morada (cf. Jo 14,23), e são filhos do Pai celeste (cf. Mt 5,45), cujas obras fazem, e são esposos,
irmãos e mães de nosso Senhor Jesus Cristo (cf. Mt 12,50). Somos esposos, quando pelo Espírito
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Santo une-se a alma fiel a nosso Senhor Jesus Cristo. Somos seus irmãos quando fazemos a vontade do Pai que está nos céus (Mt 12,50). Mães, quando o levamos em nosso coração e em nosso
corpo (cf. 1Cor 6,20), pelo amor divino e a consciência pura e sincera; e o damos à luz pela santa
operação, que deve iluminar os outros com o exemplo (cf. Mt 5,16). Oh! como é glorioso, santo
e grande ter nos céus um Pai! Oh! como é santo ter tal esposo: paráclito, belo e admirável! Oh!
como é santo e dileto ter tal irmão e filho, agradável, humilde, pacífico, doce, amável e sobre
todas as coisas desejável: Nosso Senhor Jesus Cristo!”(1CtFi 5-13).
***
Não continue a ler este escrito sem ter a certeza que já assimilou os diversos princípios apresentados nesta Introdução. Volte a eles de vez em quando. Não perca de vista o seu ponto de
partida. Nós queremos ser humanos: cada um de nós necessita no mais profundo do seu ser
abraçar o Cristo pobre como uma virgem pobre.
1.7. Um Cântico de Amor
A espiritualidade de Clara parte da união com o Cristo Esposo numa intensa comunicação
amorosa, que transbordou na forma de um cântico.
Ela aprendeu e praticou esse relacionamento cantado com Francisco.
Ela se encontrou com a linguagem amorosa nos místicos que lhe falaram do Cântico dos Cânticos.
Através dos místicos ela foi encontrar o Cântico nos Santos Padres.
Através dos Padres ela foi encontrar o Cântico na Bíblia.
Através da Bíblia ela repassou os pactos de aliança como Povo.
Vestiu-se de Sol,
Coroou-se de estrelas,
Apoiou-se na Lua,
E clamou com o Espírito: Vem, Senhor Jesus! Vem!
Fazendo-o nascer cada dia numa continua atualização da Encarnação.
A celebração da Encarnação é celebração da morte e da ressurreição. Encarnação, morte e
ressurreição continuam porque nós continuamos. Vamos continuar até que todos os humanos
estejamos reunidos para celebrar a ceia com o Cristo-Esposo na eternidade.
Toda a vida de Clara foi um cântico de amor. Como vai ser a nossa para sempre. Um transbordamento da alegria de amar e de saber amado.
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4ª parte
2. Santa Clara e o Cristo Esposo
Acreditamos que a principal contribuição de Clara para o Movimento Franciscano foi a maneira de ver Deus Esposo em Jesus e nos ensinar a vivê-lo na sua contemplação transformante.
Queremos dar uma perspectiva para a leitura de alguns textos de suas Fontes: observando que,
em tudo, Clara celebrou e nos ensinou a celebrar Deus Esposo em Jesus Cristo.
Vamos considerar três perspectivas:
1. Santa Clara escreveu a Inês de Praga sobre o Cristo Esposo.
2. As Fontes históricas apresentam Clara como esposa de Cristo.
3. Clara celebrou o Cristo Esposo.
2.1 Cristo apresentado como Esposo a Inês de Praga
Inês de Praga foi a amiga com quem Clara partilhou a sua espiritualidade dos esponsais (1).
Vamos apresentar apenas as citações em que Clara usa as palavras Esposo ou Esposa, deixando de lado as numerosas outras expressões com que ele se refere à união pessoal e conjugal
com Jesus Cristo.
Na Carta I, Clara chama Jesus uma vez de esposo, refereindo-se a Inês:
“...tomando um esposo da mais nobre estirpe, o Senhor Jesus Cristo, que guardará vossa virgindade sempre imaculada e intacta”(1Ctln 7).
Também chama Inês de esposa duas vezes:
“Portanto, irmã caríssima, ou melhor, senhora muito digna de veneração, porque sois esposa,
mãe e irmã do meu Senhor Jesus Cristo...” (1 Ctln 12). “Merecestes ser chamada, com quase toda
a dignidade, de irmã, esposa e mãe do Filho do Pai Altíssimo e da gloriosa Virgem (1Ctln 24).
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Frei José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap
Da mesma maneira, na Carta II, Jesus é chamado de esposo duas vezes: A primeira:
“Com o desejo de imitá-lo, mui nobre rainha, olhe, considere, contemple o seu esposo, o mais
belo entre os filhos dos homens, feito por sua salvação o mais vil de todos, desprezado, ferido
e tão flagelado em todo o corpo, morrendo no meio das angústias próprias da cruz (2Ctln 20).
E a segunda:
“Adeus, irmã querida, senhora minha pelo Senhor que é seu esposo”(2Ctln 24).
E também chama Inês de esposa de Jesus:
“Clara, serva inútil e indigna das pobres damas, saúda dona Inês, filha do Rei dos reis, serva
do Senhor dos senhores, esposa digníssima de Jesus Cristo e por isso rainha nobilíssima, augurando que viva sempre na mais alta pobreza”(2Ctln 1-2).
Na Carta III, Jesus não é chamado de Esposo, mas Inês é lembrada como usa esposa:
“Clara, humílima e indigna servidora de Cristo e serva das senhoras pobres, à reverendíssima senhora em Cristo, sua irmã Inês, a mais amável de todos os mortais, irmã do ilustre rei da
Boêmia e, agora, irmã e esposa do sumo Rei dos céus”(3Ctln 1-2)
Na Carta IV, Jesus é chamado uma vez de esposo, mas não se refere necessariamente a Inês:
“Arrasta-me atrás de4 ti! Corramos no odor dos teus bálsamos, ó esposo celeste! (4Ctln 30).
Mas Inês é chamada de esposa de Jesus cinco vezes:
“À outra metade da minha alma, singular sacrário do meu cordial amor, a ilustre rainha, esposa do Cordeiro, Rei eterno, dona Inês, minha caríssima mãe e filha, especial entre todas as outras...” (4Ctln 1). “Ó mãe e filha, esposa do Rei de todos os séculos, embora não tenha escrito mais
vezes, como a minha alma e a sua igualmente desejam e de certa forma até necessitariam”(4Ctln
4). “Mas agora, podendo escrever à minha querida, alegro-me e exulto com você, é esposa de
Cristo, na alegria do espírito”(4Ctln 7). “Olhe dentro desse espelho todos os dias, ó rainha, esposa de Jesus Cristo, e espelhe nele, sem cessar, o seu rosto”(4Ctln 15). “Ornada também com as
flores e roupas das virtudes todas, ó filha e esposa caríssima do sumo Rei”(4 Ctln 17).
Em resumo, esposa e esposa em relação a Jesus são palavras usadas treze vezes. Fora das Cartas, Clara não usa nem uma vez os termos esposo e esposa, ainda que deixe claro no Testamento
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Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
e na Forma de Vida que Jesus é o seu Caminho e o Centro de sua vida. Mas ela usa diversas
outras expressões equivalentes para falar do Cristo Esposo, como esta:
“Você se fez seguidora da santíssima pobreza em espírito de grande humildade e do mais ardente amor, juntando-se aos passos daquele com quem mereceu unir-se em matrimônio”(2Ctln 7).
Na primeira Carta, ainda seria possível pensar que Clara tivesse aludido ao Cristo esposo
simplesmente para fazer uma comparação entre o possível casamento de Inês com o Imperador da Alemanha e sua decisão de se fazer uma religiosa, unindo-se a Cristo. Mas a insistência
nas outras cartas, especialmente na quarta, escrita dezenove anos mais tarde, mostra que falar
de Jesus Esposo é transmitir à discípula Inês um fundamento da espiritualidade clariana. Bem
longe do que pensam os que vêm nesses esponsais uma “sublimação” (2). Clara tem um sólido
fundamento bíblico, patrístico e místico para se referir a esse ponto chave de sua espiritualidade. Vamos estudar esse fundamento em outros capítulos.
Notas
(1) Inês de Praga, ou da Boêmia, foi filha do rei otocar I da Boêmia e da Rainha Constância da Hungria. Nasceu em
1205 e morreu em 1282. Foi prometida como noiva a diversos princípes, inclusive ao futuro Henrique VII, que seria imperador. Teve uma educação esmerada, em diversos mosteiros e cortes. Sempre se dedicou às obras de caridade e, depois
que conheceu os frades menores, que chegaram à sua cidade em 1225, animada também pelo testemunho de sua prima
Santa Isabel da Hungria, decidiu seguir o exemplo das Irmãs de São Damião. Construiu uma grande obra, em que havia
um hospital, um mosteiro e uma igreja de São Francisco. Entrou para a ordem 1234, com grande repercussão em toda
a cristandade. Mesmo sem nunca terem tido a oportunidade de se conhecerem pessoalmente, ela e Clara estabeleceram
uma profunda amizade.
Das muitas cartas que Clara deve ter escrito, sobraram apenas quatro, cujo tema é sempre Jesus Cristo: Jesus Cristo
crucificado, Jesus Cristo pobre, Jesus Cristo esposo. A entrega a ele é feita em uma virgindade cada vez maior.
(2) Cf. Roberto Zavaloni, A personalidade de Santa Clara de Assis, p. 210
15
5ª parte
2.2. Clara Esposa de Cristo
As Fontes Clarianas são ricas na apresentação de Santa Clara como Esposa de Cristo. Vamos
selecionar algumas das principais citações. Logo de início, podemos ter a impressão de que foi
São Francisco quem fez Clara pensar em ser esposa de Jesus, nos primeiros encontros que eles
tiveram antes que ela entrasse na Ordem:
“O pai Francisco exortava-a a desprezar o mundo, mostrando com vivas expressões que a
esperança do século é seca e sua aparência enganadora. Instilou em seu ouvido o doce esponsal
com Cristo, persuadindo-a a reservar a jóia da pureza virginal para o bem-aventurado Esposo a
quem o amor fez homem”(LSC 5,5-6).
Mas é possível que a própria Clara tenha falado inicialmente sobre isso porque, quando ela
e Francisco tiveram os primeiros encontros, os parentes já achavam que ela estava adiando o
casamento e ninguém ignorava o particular amor que ela tinha por Jesus Cristo:
“Quando os pais quiseram que ela se casasse com um homem, negou-se, desejando os esponsais com Cristo esposo, cujas agradáveis delícias já pudera provar...” (LgV 5 214).
Em todo caso, São Francisco insistiu, porque - provavelmente logo depois que ela entrou
na Ordem - apresentou-lhe uma “Forma de Vida” em que dizia que Clara e suas Irmãs tinham
“desposado o Espírito Santo”, como ela recorda em sua Regra:
“... [o bem-aventurado pai,] movido de piedade, escreveu-nos uma forma de vida deste modo:
“Desde que, por inspiração divina, vos fizestes filhas e servas do Altíssimo Sumo Rei Pai celeste
e desposastes o Espírito Santo, optando por uma vida de acordo com a perfeição do santo Evangelho, eu quero e prometo, por mim e por meus Frades, ter por vós o mesmo cuidado diligente
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Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
e uma solicitude especial, como por eles”(RSC 6,2-5).
Esse texto adquire um valor todo especial comparado com a Antífona do Ofício da Paixão,
em que Francisco saúda Nossa Senhora com expressões idênticas às da Forma de Vida, dizendo: “Santa Virgem Maria [...], filha e serva do altíssimo sumo Rei Pai celeste, mãe do santíssimo
Senhor nosso Jesus Cristo, esposa do Espírito Santo...” (Ofp ant. 1-2).
O próprio Papa Inocênio IV, na bula Gloriosus Deus, em que mandou abrir o seu Processo de
Canonização, mostra que Clara foi generosa e decidida na adesão a Cristo como Esposo: “Não
perdeu tempo nem demorou a cumprir prontamente o que lhe deleitava ouvir, mas imediatamente, abnegando a si mesma, a seus parentes e a todas as suas coisas, feita já uma adolescente do
reino celestial, elegeu e chamou seu Esposo Jesus Cristo pobre, Rei dos reis, e dovotando-se a Ele
totalmente, com a mente e o corpo em espírito de humildade, prometeu-lhe especialmente estas
duas coisas boas como dote: o dom da pobreza e o voto da castidade virginal”(ProcC Bula, 3).
O papa usa uma chave bíblica tomada do Salmo 44, um salmo nupcial, para explicar a atitude
de entrega total e exclusiva: a filiação familiar, a pertença a um povo..., isto é, o que constitui
uma pessoa por dentro e por fora, fica em suspenso diante do chamado de Deus que convoca:
“Ouve, filha, e vê e inclina teu teu ouvido, esquece teu povo e tua casa de teu pai, porque o Rei
desejou tua beleza” (ProcC Bula 2).
E também comenta que ela ouviu de verdade e consagrou sua vida a viver esses esponsais: “E
assim a virgem pudica uniu-se aos desejados abraços do esposo virgem...” (ProcC Bula 4).
Ela deu o passo decisivo na igrejinha da Porciúncula, sob o olhar da Mãe de Jesus: “Depois
que a humilde serva recebeu as insígnias da santa penitência junto ao altar da bem-aventurada
Maria, como se desposasse Cristo junto ao leito da Virgem...” (LSC 8).
Pelas Fontes, esse fato foi apenas uma iniciação, aceita e contemplada com solenidade pela
própria Virgem Maria, muitos anos depois, quando Clara estava no final de sua carreira:
“... Viu entrar uma porção de virgens vestidas de branco, todas com grinaldas de ouro na cabeça. Entre elas, caminhava uma mais preclara que as outras... que mudava a própria noite em
dia luminoso dentro de casa. Ela foi até a cama em que estava a esposa de seu Filho e, inclinando-se com todo amor sobre ela, deu-lhe o mais terno abraço. As virgens trouxeram um pálio de
maravilhoso beleza e, estendendo-o, deixaram o corpo de Clara coberto e o tálamo adornado”
(LSC 46).
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Frei José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap
O biógrafo mostraria que ela fez dessa união com o Cristo-Esposo o fundamento da vida
contemplativa que viveu até o fim com suas Irmãs: “Assim, unida imutavelmente a seu nobre
Esposo no mundo mutável, deliciava-se continuamente nas coisas do alto. Firme em virtude
estável no rodar versátil, guardando o tesouro da glória em vaso de barro, tinha o corpo na terra
e a alma nas alturas”(LSC 20).
Sobre isso mesmo, o autor de sua Legenda diria: “A Virgem Clara fechou-se no cárcere desse
lugar apertado por amor ao Esposo Celeste” (LSC)
Nesse “cárcere” ela teve oportunidade de se entregar totalmente ao amor do Esposo: “Muitas
vezes, prostrada em oração com o rosto em terra, regava o chão com lágrimas e o acariciava com
beijos: parecia ter sempre o seu Jesus entre as mãos, derramando aquelas lágrimas em seus pés,
a que beijava” (LSC 19).
Comentando que São Francisco a animara aos esponsais com Cristo, Celano fala de sua generosidade e de seu espírito decidido, que fariam dela uma mestra de espiritualidade:
“Ouvindo o pai santíssimo, que procedia habilmente como o mais fiel padrinho, a jovem não
retardou seu consentimento. Abriu-se-lhe então a visão dos gozos celestes, diante dos quais o
próprio mundo é desprezível. Seu desejo derreteu-a por dentro, seu amor fez com que ansiasse
pelos esponsais eternos”(LSC 6).
Logo depois de sua morte, durante o velório na Igreja de São Damião, algum secretário da
Cúria Romana observou em uma carta escrita a todos os mosteiros das Damianitas:
“Quando dona Clara, guia, mãe venerável e mestra chamada pelo mensageiro que desagrega
a união da carne, voou para o tálamo do Esposo celestial” (CcNm)
E ela fez escola, tanto que, pouco depois da canonização de São Francisco, em 1228, quando
a Santa ainda tinha 25 anos de vida pela frente, o biógrafo Tomás de Celano enumerou diversas
qualidades das Irmãs de Clara, destacando, entre outras, com a maior admiração.
“Em terceiro lugar, o lírio da virgindade e da pureza perfuma-as todas, a ponto de esquecerem os pensamentos terrenos e desejarem apenas meditar nos celestiais. Essa fragrância acende
em seus corações tão grande amor pelo Esposo eterno, que a plenitude desse sagrado afeto apaga toda lembrança da visa passada...” (1Cel 19).
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Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
Sobre a admiração das Irmãs pelo exemplo de Clara como esposa de Cristo, escreveu:
“Acolhiam o carinho afetuoso da mãe, respeitavam na mestra o cargo de governo, acompanhavam o procedimento correto da formadora e admiravam na esposa de Deus a prerrogativa
de uma santidade tão completa” (LSC 38).
Ela valorizava sua vocação e queria que outras a partilhassem. Tanto que desejou esse mesmo
dom para a irmã querida que ficara em casa:
“Pedia insistentemente ao Pai da misericórdia que o mundo perdesse o gosto e que Deus
fosse doce para Inês, a irmã deixada em casa, mudando-a da perspectiva de um casamento
humano para a união de seu amor, desposando com ela, em vigindade perpétua, o Esposo da
glória!” (CcNm).
O autor da Legenda Versificada de Santa Clara sublinha esses esponsais com Cristo em muitas passagens. Destaco duas em que compara Clara a esposa do Cântico dos Cânticos 2,5:
... suspensa pelo prazer da mente e sentindo-se doce por seus favos, enlanguescia por seu
amor (LgV 5,219)... pede para ser sustentada com maçãs, apoiada em flores, dizendo qual a
causa: “porque morro de amor” (LgV 8,367).
Esse autor demonstra não ter entendido o espírito de Clara, mas observa:
“Esta comandante sagrada mostrava às senhoras de estirpe real como desprezar os enganos
da carne petulante e as delícias do mundo, a não querer mnaridos que iam morrer, mas, a seu
exemplo, desposar o Esposo celestial” (LgV 10,345). O fato é que ela partilhou os esponsais por
ela vividos de uma forma profunda, bonita, cheia de unção, com sua Irmã Inês de Praga.
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6ª parte
2.3 Clara celebrou Cristo Esposo
Etimologicamente, celebrar é voltar com frequência a um lugar onde se descobriu que
pode haver algo interessante e proveitoso. Para dar um exemplo, as pessoas célebres são
as que aparecem com frequência nos meios de comunicação.
Nós celebramos mistérios. Mistério é uma realidade que se descobriu ser muito importante, que não se conhece toda, que pode ser inesgotável. Ao contrário do que muita
gente parece pensar, mistério não é uma realidade proibida, não é uma afirmação que
não se pode tirar a limpo nem uma verdade que não dá para compreender. É uma fonte
inesgotável de onde podemos tirar água indefinidamente, e dela viver sem receio de que
venha a falar.
Santa Clara celebrou o mistério do Cristo Esposo em sua vida, com suas irmãs, no
Santuário de São Damião e nas raízes do movimento franciscano. Ela foi penetrando cada
vez mais dentro da revelação do Filho de Deus feito homem, do Deus-Esposo da Bíblia
nele revelado, e foi tirando desse conhecimento uma riqueza infinita para viver cada vez
melhor, para ela mesma, para as pessoas próximas, para a construção da humanidade.
Para dar um exemplo, pelo que ela escreveu e viveu poderíamos pensar que tinha um
imenso amor ao seu voto de pobreza. Mas, quando o papa Gregório IX disse que poderia
dispensá-la do voto, ela respondeu que não queria ser dispensada de seguir “ o meu Senhor Jesus Cristo”. A pobreza era para ela, uma característica do Cristo Esposo, como ela
chegou a cantar na primeira Carta a Inês de Praga.
Foi a comunicação de que era uma celebrante do mistério de Cristo Esposo que ela
quis partilhar com sua amiga Inês quando lhe escreveu cartas tão ricas de conteúdo. De
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Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
fato, analisando e refletindo sobre cada frase dessas cartas, descobrimos como ela voltou
incessantemente ao descobrimento do Cristo Esposo na Bíblia, nos Santos Padres da Igreja, nos místicos do seu tempo. E como sempre tirou desse conhecimento decisões muito
concretas para caminhar com alegria e proveito no caminho que tinha escolhido. Oitocentos anos depois, ainda podemos nos maravilhar com o que ela descobriu, festejou,
partilhou e serve ainda hoje para que nossos horizontes sejam mais abertos e nossa vida
mais rica de sentido e de felicidade.
A leitura das Cartas a Inês de Praga demonstra que Clara teria sido incapaz de escrever
reflexões tão profundas e apaixonadas sobre Jesus Cristo se não as tivesse vivido ela mesma intensamente. Os textos são numerosos. Indico um dos mais interessantes, que, aliás,
só pode ser plenamente entendido por quem puder apreciá-lo em latim.
“Feliz, decerto, é você, que pode participar desse banquete sagrado para unir-se com
todas as fibras do coração àquele cuja beleza todos os batalhões bem-aventurados dos
céus admiram sem cessar, cuja afeição apaixona, cuja contemplação restaura, cuja bondade nos sacia, cuja suavidade preenche, cuja lembrança ilumina suavemente, cujo perfume
dará vida aos mortos, cuja visão gloriosa tornará felizes todos os cidadãos da celeste Jerusalém, pois é o esplendor da glória (Hb 1,3) eterna, o brilho da luz perpétua e o espelho
sem mancha (Sb 7,26)” (4Ctln 9-14).
Chamo a atenção para o fato de que o texto acima foi feito com o ritmo de um cântico. Clara transborda de felicidade por ter descoberto o Cristo Esposo e por festejar essa
felicidade com uma Irmã que tinha feito a mesma descoberta. Podemos dizer que toda a
sua vida foi um cântico de celebração.
Nesta reflexão, queremos mostrar como os contemporâneos reconheceram em Clara
o brilho do Esposo e como ela celebrou com Inês de Praga o que sempre estivera descobrindo “em rápida corrida, com passo ligeiro e pé seguro, de modo que seus pés nem
recolhiam a poeira, confiante e alegre, avançando com cuidado pelo caminho da felicidade” (cf. 2Ctln 12-13), e “abraçando o Cristo pobre como uma virgem pobre” (cf. 2Ctln
18), isto é, cultivando o vazio interior para que o Cristo kenótico, esvaziado (cf. Fl 2,5-8),
tivesse em sua interioridade um espaço cada vez maior.
Faço uma proposta aos leitores e leitoras. Não leiam este capítulo como uma simples
coleção de dados sobre Santa Clara. Procurem considerar como uma das citações e considerações poderiam ter recupercussões em vocês mesmos, ajudando-os a crescer no seu
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Frei José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap
relacionamento pessoal com Deus na pessoa de Jesus Cristo.
Proponho algumas reflexões:
1. Essa linguagem de esponsais, esposo e esposa, provoca alguma reação positiva em você?
Você seria capaz de anotá-la em um papel, mesmo que seja só para o seu uso particular?
2. É possível - para você - um relacionamento pessoal com a pessoa de Jesus Cristo? Se sim,
como está crescendo esse relacionamento? Se não, você acha que isso não faz falta? OU está
buscando?
3. O seu relacionamento com Deus desperta alegria? Provoca alguma vontade de cantar?
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7ª parte
3. Francisco, figura do Esposo
Clara e Francisco não foram companheiros de um modo superficial: fizeram da amizade um
lugar de mútua ajuda para encontrar sua vocação única e crescer nela com apaixonada e apaixonante fidelidade. Corresponderam a partir do afeto a um desígnio maior do que eles mesmos.
Descobriram que eram “amigos” enquanto estavam buscando Deus, e essa busca marcou profundamente sua relação. É uma “amizade por causa de Deus Esposo”, perfeitamente iluminada
a partir do sentido esponsal com o que o Evangelho de São João fala do Batista: ser o “amigo do
Esposo”.
3.1 Francisco, o amigo do Esposo
“Amigos do esposo”, na cultura da Terra Santa, eram os companheiros do noivo na celebração do casamento. O principal deles era quem organizava tudo. João Batista preparou a entrada
de Jesus no anúncio do Reino e Francisco preparou Clara para ir ao encontro do Senhor. Na
Legenda de Santa Clara Virgem lemos o seguinte:
“O pai Francisco exortava-a a desprezar o mundo, mostrando com vivas expressões que a
esperança do século é seca e sua aparência enganadora. Instilou em seu ouvido o doce esponsal
com Cristo, persuadindo-a a reservar a jóia da pureza virginal para o bem-aventurado Esposo
a quem o amor fez homem... Ouvindo o pai santíssimo, que agia habilmente como o mais fiel
padrinho, a jovem não retardou seu consentimento... Então, submeteu-se toda ao conselho de
Francisco, tomando-o de seu caminho, depois de Deus. Por isso, sua alma ficou pendente de
suas santas exortações, e acolhia num coração caloroso tudo que ele lhe ensinava sobre o bom
Jesus (cf. LSC 5-6, passim)”.
A expressão “padrinho”, no texto das Fontes Clarianas está traduzindo a palavra “paraninfo”,
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Frei José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap
do latim original. Essa palavra vinha do grego e significava justamente aquele que ia ao lado
(pará) do noivo (nynphos) nos esponsais.
Clara já deveria ter pensado antes da união com Cristo, porque sempre rejeitara a insistência
da família para que se casasse. Mas foi o ardor da união com Deus vivida com Francisco que a
levou a São Damião e, principalmente através dos cistercienses apresentados pelo cardeal Hugolino, a conhecer São Bernardo e os outros místicos medievais, a aprofundar de maneira única
o conhecimento e o amor do Esposo encontrado com a ajuda dos Santos Padres no Novo e no
Antigo Testamento.
Mais adiante, voltaremos a considerar essas raízes profundas da espiritualidade esponsal de
Clara. Agora, queremos mostrar como ela reconheceu que Francisco a introduziu nesse caminho, que, com ele, ela viveu a esponsabilidade divina a partir deuma esponsabilidade humana.
Clara e Francisco se ajudaram para encontrar a concreta vontade de Deus. Clara foi explícita ao dizer como Francisco supôs uma ajuda extraordinária, uma mediação única não só para
encontrar a vocação, mas também para crescer nela:
“Entre outros benefícios que temos recebido e ainda recebemos diariamente da generosidade
do Pai de toda misericórdia, e pelos quais temos que agradecer ao glorioso Pai de Cristo, está a
nossa vocação, que , quanto maior e mais perfeita, mais a Ele é devida” (TestCl 9-14).
Clara atribuiu esse papel mediador a Francisco, que profetizou sobre as Irmãs quando estava
restaurando São Damião. Era a voz de Deus, que ela ouviu e haveria de seguir para sempre:
“Nisso, podemos considerar, portanto, a copiosa bondade de Deus para conosco, pois em sua
imensa misericórdia e amor, dignou-se contar essas coisas sobre nossa vocação e eleição, através
do seu santo. E o nosso bem-aventurado pai Francisco não profetizou issosó a nosso respeito,
mas também sobre as outras que haveriam de vir, na santa vocação em que Deus nos chamou”
(TestCl 15-17).
E também:
“...[o bem-aventurado pai], movido de piedade, escreveu-nos uma forma de vida deste modo:
“Desde que, por inspiração divina, vos fizestes filhas e servas do Altíssimo Sumo Rei Pai celeste
e desposastes o Espírito Santo, optando por uma vida de acordo com a perfeição do santo Evangelho, eu quero e prometo, por mim e por meus Frades, ter por vós o mesmo cuidado diligente
e uma solicitude especial, como por eles” (RSC 6,2-5).
Clara terá o maior cuidado de inserir em sua Regra esses dois elementos: a pobreza e o vínculo espiritual e jurisdicional com a Ordem dos Frades Menores.
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Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
Há, nesse texto, uma teologia mariana e nupcial em que se ressalta o mistério da Encarnação, ponto alto da revelação de Deus e possibilidade para chegar a ser amigos do Esposo: “para
Francisco, Clara é filha e serva do Altíssimo Pai celeste e esposa do Espírito Santo, para encarnar
Cristo seguindo o Evangelho (RgCl VI,3): como Maria, a “virgem feita Igreja” (SVM). Por este
paralelismo com Maria, Clara é para Francisco “esposa do Espírito Santo”.
Entretanto para mostrar melhor como Clara reconheceu em Francisco o seu “paraninfo” nos
esponsais divinos, vou apresentar mais passagens do seu Testamento:
“O Filho de Deus fez-se por nós o Caminho, que nosso bem-aventurado pai Francisco nos
mostrou e ensinou por palavra e exemplo, ele que o amou e o seguiu de verdade”... “Por isso,
queridas Irmãs, devemos considerar os imensos benefícios que Deus nos concedeu, mas, entre
outros, aqueles que Ele se dignou realizar em nós por seu dileto servo, nosso pai São Francisco”..
(Test Cl 5) “Depois que o Altíssimo Pai,por sua misericórdia e graça, se dignou iluminar meu
coração para fazer penitência, segundo o exemplo e o ensino de nosso bem-aventurado pai
Francisco com algumas Irmãs que Deus me dera... eu lhe prometi obediência voluntariamente
(TestCl 6-7).
“E assim, por vontade de Deus e do; nosso bem-aventurado pai Francisco, fomos morar junto da Igreja de São Damião... Depois escreveu para nós uma forma de vida, principalmente para
que perseverássemos sempre na santa pobreza. E não se contentou em exortar-vos durante a
sua vida com muitos sermões e exemplos ao amor e observância da santa pobreza, mas nos deu
muitos escritos, para que depois de sua morte não nos desviássemos dela de modo algum, como
o Filho de Deus, enquanto viveu neste mundo, não quis jamais afastar-se da sua santa pobreza...
(TestC 30-36 passim)”.
Para captarmos o alcance dessas palavras é preciso lembrar que a “santa Pobreza” é o próprio Senhor Jesus Cristo, “que se fez para nós caminho”. Quando escreveu a Forma de Vida,
Francisco plantou a sua muda (plantinha) no jardim do Senhor e lembrou que as Irmãs tinham
“desposado o Espírito Santo”, palavras que só podem ser entendidas à luz do que o Poverello
escreveu na Carta aos Fiéis:
“Somos esposos, quando pelo Espírito Santo une-se a alma fiel a nosso Senhor Jesus Cristo
(1CtFi 8).
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8ª parte
3.2 Eles viveram uma profunda amizade
Ficamos sabendo, ultimamente, que não dá mais para entender São Francisco sem conhecer
Santa Clara, como não dá para conhecer melhor Santa Clara sem conhecer São Francisco. E isso
é verdade porque os dois se encontraram em Cristo Esposo. É esclarecedor reler o que foi dito
pelo papa João Paulo II em Assis, 1983, dirigindo-se às Clarissas:
“É realmente difícil separar estes dois nomes: Francisco e Clara... O binômio Francisco-Clara
é uma realidade que só se entende com categorias cristãs, espirituais, do céu. Mas também é
uma realidade desta terra... Não se trata só do espírito; nem são nem eram espíritos puros; eram
corpos, pessoas, espíritos... Na tradição viva da Igreja, do cristianismo inteiro, não ficou apenas
a lenda. Ficou o modo como São Francisco via sua irmã, o modo como ele se desposou com
Cristo; ele via a si mesmo na imagem dela, imagem de Cristo, em que via retratada a santidade que devia imitar; via a si mesmo como um irmão, um pobrezinho à imagem da santidade
desta esposa autêntica de Cristo em que encontrava a imagem da Esposa mais que perfeita do
Espírito Santo, Maria Santíssima... São Francisco descobriu Deus uma vez, mas depois voltou a
descobri-lo com Clara ao seu lado” (Ver em Fontes Clarianas, págs. 397-398).
Essas palavras são muito oportunas. Colocam nos seus devidos termos a impressão despertada no povo mais simples pelo imenso amor observado entre Francisco e Clara. Romances e
filmes modernos, bem como lendas populares antigas apresentam os dois como namorados.
Devemos dizer que por diversas razões, eles não foram namorados, ainda que uma situação
dessas não tivesse prejudicado em nada a sua santidade.
Ainda que suas casas em Assis fossem bem próximas, Clara era nobre e Francisco rico, mas
plebeu. Ela teve que sair da cidade em 1198, quando não tinha mais do que quatro anos e Francisco já completara dezesseis. Quando ela voltou, Francisco já estava totalmente dedicado a sua vida
consagrada havia diversos anos.
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Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
João Paulo II disse que tanto Francisco como Clara foram “esposos” de Jesus Cristo e, com
isso, nos abriu para uma interessante reflexão sobre a amizade espiritual.
3.2.1 O que é a verdadeira amizade?
Lemos na Bíblia: “Quem encontrou um amigo, encontrou um tesouro” (Cf. Eclo 6,14), pois
só é possível encontrar “um entre mil” (Cf. Eclo 6,6). Os sábios das mais diversas culturas sempre exaltaram o valor da amizade como algo que supera o próprio amor entre pais e filhos e até
o amor entre o homem e a mulher. Só para dar alguns exemplos, Aristóteles escreveu páginas
admiráveis sobre a amizade em seu livro “Ética a Nicômaco”, e Cícero deixou uma obra-prima
no seu “Lélio”, ou “Diálogo sobre a amizade”. Também encontramos páginas interessantes em
Santo Agostinho e em Santo Tomás de Aquino.
Dentro da Igreja, o grande mestre em amizade foi Santo Aelred de Rievaulx, abade cisterciense inglês que viveu de 1110 a 1175, isto é, não muito anterior a Santa Clara e a São Francisco. Ele escreveu
três livros sobre o assunto, onde ensinou que o amor e a amizade são a maior alegria da vida, são o sinal mais evidente da presença de Deus neste mundo, são a própria essência do mundo que há de vir.
De fato, se é verdade que “Deus é Amor”(1Jo 4,8.16), todo verdadeiro amor mostra que Deus
está presente. Como Deus é Amor, quando Jesus diz que seu jugo é suave está falando da caridade; quando diz que seu peso é leve, está falando do amor fraterno.
Aelred achava que o Amor é não somente a nossa vocação mas também o remédio para
curar nossa vontade doente e para restaurar e nós a imagem de Deus. Seus livros são carregados
de excelentes indicações e advertências, com as quais vai ensinando como descobrir e cultivar
a verdadeira amizade.
Ele lembrou que Cícero, um filósofo, orador e político pagão que viveu antes de Cristo ensinou que amizade era “uma comunhão entre duas ou mais pessoas, com caridade e benevolência, nas coisas divinas e nas humanas”. Para ele, a caridade (ele usou essa palavra mesmo) queria
dizer acolher, e benevolência queria dizer dar-se, entregar-se. E advertiu que não existe amizade
entre pessoas más ou que se unem para fazer o mal.
Aelred chega ao ponto alto quando mostra que a amizade espiritual sempre envolve os dois
amigos e a pessoa de Jesus Cristo, porque cada um descobre a imagem de Deus no outro e na
imagem de Deus conhece e ama melhor o seu amigo. É aí que encontramos o fundamento do
que foi dito pelo papa João Paulo II em Assis. É bom reler.
É nisso, também, que podemos entender todas as carinhosas recordações de Clara sobre seu
amigo Francisco no seu Testamento espiritual.
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9ª parte
3.2.2. Na amizade com Francisco Clara viveu a esponsalidade com Deus
Com Clara abre-se uma perspectiva: sua relação humana, espiritual carismática com Francisco. É a mediação particular de alguém que se fez eco de outra Voz e transparência de outro
Rosto. Vamos apresentar a amizade entre Clara e Francisco como fruto do esforço dos dois, mas
também como um dom, um carisma, dado em benefício deles mesmos e da Igreja. Sem essa
amizade, o carisma não teria acontecido. Por isso, temos que falar de uma complementaridade
carismática e ao mesmo tempo de um carisma complementar: Clara e Francisco foram unidos
em uma comunhão que não os bloqueou nem aprisionou, mas que os sustentou e abriu para
acolher a luz do mundo invisível; cada um foi para o outro o dom do companheiro, que Deus
às vezes concede na vida espiritual, em que encontraram a luz que nos lembra de onde viemos,
onde está nossa vida, e qual é o nosso último destino.
Eles foram companheiros porque quando se encontraram descobriram que estavam na mesma busca: queriam ver Deus. E Deus já estav começando a se revelar para eles na figura de Jesus.
Foi assim que eles foram vendo pouco a pouco o Filho Primogênito no rosto um do outro e
puderam abrir a estrada larga por onde estão caminhando tantas pessoas há oito séculos.
Eles só podiam ser amigos porque no mesmo Cristo descobriram que eram filhos do mesmo
Pai. Era a abertura para o amor da eternidade, em que Deus vai ser tudo em todos.
A experiência esponsal com Deus pode parecer incompatível com uma amizade entre um homem e uma mulher que se dedicaram a pertencer só ao Altíssimo e não podem possuir ninguém.
Será que uma pessoa que se esvaziou interiormente para se encher de Deus ainda permanece humanamente incompleta e precisa encontrar um parceiro para se complementar? No meio religioso, muitas vezes se acreditou que é incomparável a amizade entre pessoas chamadas a pertencer
afetivamente ao Senhor com um coração indiviso. Muitos vêem a amizade como uma espécie de
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Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
“consolação” nas carências afetivas tantas vezes manifestadas em ambientes religiosos: descontentamento habitual, crítica sistemática, espírito de contradição, amargura constante, autoritarismo,
sensibilidade de mais ou de menos, inveja, descontrole da sexualidade, etc. Francisco e Clara mostraram que pertencemos a Deus “acima” de todos esses problemas, não “contra” eles.
Clara e Francisco de Assis, partilhando o tesouro escondido de suas vidas - o arrebatamento
de sua mesma busca insaciável -, foram para nós uma parábola viva, expressa numa amizade
profunda de verdadeiro amor, onde se juntam o Amor, a amizade humana e a santidade divina.
Eles mostraram que nós, os seres humanos, podemos nos amar de uma maneira muito semelhante à da Trindade, em que cada Pessoa dá tudo, recebe tudo e, no nosso caso, transforma-se
no infinito. Cada um deles fez que o outro acreditasse nesse caminho.
Há um tipo de amizade que cresce com a experiência vocacional da pertença a Deus. O celibato não se opõe ao amor exclusivo a Deus em contraposição a toda vinculação afetiva: só se
opõe à divisão do coração e ao amor de casal... Por que não seria possível ter um amigo ou uma
amiga, a quem dar a vida se necessário? Deus, longe de ser rival de alguém, possibilita tudo. Basta que esse amigo/a não roube um átomo de meu coração, que pertence totalmente ao Senhor.
Fomos criados por um Deus que é comunhão de Pessoas, e por isso nos compreendemos
em comunhão recíproca de amor. Quando Deus se revelou não soube dizê-lo de outro modo e,
contando-nos o que está por dentro dele, descreveu o que está por dentro de nós, que é outro
modo de dizer que somos imagem e semelhança dele. A tal ponto chega a proximidade com
Deus que Ele escolheu a experiência humana, especialmente a relacionada com o mundo do
amor para nos revelar também o seu segredo essencial.
Clara e Francisco receberam o dom de fazer de sua história de amizade um lugar para entrar
na história de Deus. Essa aventura humana e divina é o espelho do Deus em que eles acreditaram, a partir do qual se amaram e no qual descansam eternamente unidos.
Já que o Deus de Jesus Cristo é relação, Ele foi se revelando a nós como lar acolhedor, como
comunidade e família, como comunhão de Pessoas, como Trindade. Essa marca trinitária ficou
impressa no coração da criação, que é a obra de Deus Pai que cria pelo Filho no Espírito, de
maneira que a profundidade de todas as coisas “sofre” de saudades do amor trinitário.
3.2.3 Sabedoria de Clara depois da morte de Francisco
Clara sabia muito bem que a vocação para a união com o Cristo Esposo, descoberto com
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Frei José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap
Francisco, precisava ser preservada para o futuro, porque era um carisma a ser partilhado com
as Irmãs e Irmãos que Deus continuaria a chamar.
Ela teve a oportunidade de presenciar os grandes problemas e agitações que sacudiram a
Ordem dos Frades depois da morte de Francisco. E escreveu em seu Testamento:
“Eu, Clara, serva de Cristo e das Irmãs Pobres do mosteiro de São Damião, embora indigna,
e verdadeira plantinha do santo pai, considerando com as minhas outras Irmãs a nossa tão alta
profissão e o mandamento de tão grande pai, como também a fragilidade de outras, que temíamos em nós mesmas depois do falecimento do nosso pai São Francisco, que era a nossa coluna e
única consolação depois de Deus e o nosso apoio, repetidas vezes fizemos nossa entrega voluntária a nossa santíssima Senhora Pobreza, para que, depois de minha morte, as Irmãs que estão
e as que vierem não possam de maneira alguma afastar-se dela” (TestC 37-39).
Esse Testamento foi escrito provavelmente antes de 1250, numa ocasião que ela se sentiu à
morte e antes de o Papa Inocêncio abrir uma brecha que a animou a escrever a sua Regra, ou
“Forma de Vida”. Como o Senhor lhe concedeu mais alguns anos de vida, conseguiu em 1252 e
1253 a aprovação dessa original Regra, a primeira escrita por uma mulher e para mulheres. No
Testamento colocou toda a força do seu ardor por Francisco, a figura do Esposo. Na Regra, ela
incluiu bem no cerne dois textos fundamentais que Francisco lhe dera:
A “Forma de Vida”, que já vimos acima:
“Desde que, por inspiração divina, vos fizestes filhas e servas do Altíssimo Sumo Rei Pai celeste e desposastes o Espírito Santo, optando por uma vida de acordo com a perfeição do santo
Evangelho, eu quero e prometo, por mim e por meus Frades, ter por vós o mesmo cuidado diligente e uma solicitude especial, como por eles”(RgCl 6,3-4).
E a sua “Última Vontade”:
“Eu, Frei Francisco, pequenino, quero seguir a vida e a pobreza do Altíssimo Senhor nosso
Jesus Cristo e de sua santíssima Mãe e nela perseverar até o fim. Rogo-vos, senhoras minhas, e
vos aconselho a que vivais sempre nessa santíssima vida e pobreza. Guardai-vos bastante de vos
afastardes dela de maneira alguma pelo ensinamento de quem quer que seja”( RSC 6,7-9).
E teve um cuidado materno por suas Irmãs presentes e futuras:
“Com que solicitude, então, com que zelo da mente e do corpo devemos observar o que foi
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Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
mandado por Deus e por nosso pai, para restituir o talento multiplicado, com a colaboração do
Senhor! Pois o próprio Senhor colocou-nos não só como modelo, exemplo e espelho para os outros, mas também para nossas irmãs, que ele vai chamar para a nossa vocação, para que também
elas sejam espelho e exemplo para os que vivem no mundo. Portanto, se o Senhor nos chamou
a coisas tão elevadas que em nós possam espelhar-se as que deverão ser exemplo e espelho para
os outros, estamos bem obrigadas a bendizer e louvar a Deus, dando força ainda maior uma às
outras para fazer o bem no Senhor” (TestC 18-22).
Mas também pelos companheiros de Francisco, que acorriam constantemente a ela e, por
ocasião de sua morte, estavam até mesmo ao redor de sua cama, como podemos ler em um trecho admirável da Legenda de Santa Clara Virgem:
“Mas quando o Senhor agiu mais de perto e já parecia às portas, quis ser assistida por sacerdotes e frades espirituais, para recitarem a paixão do Senhor e suas santas palavras. Aparecendo
com eles, Frei Junípero, egrégio menestrel do Senhor, que costumava soltar ditos ardentes de
Deus, cheia de renovada alegria, ela perguntou se tinha algo novo sobre o Senhor. Ele abriu a
boca, deixou sair centelhas ardentes da fornalha do fervoroso coração, e a virgem de Deus ficou
muito consolada com suas parábolas... Quem pode contar o resto sem chorar? Aí estão dois
benditos companheiros de São Francisco: um, Ângelo, mesmo triste, consola os tristes; outro,
Leão, beija a cama da moribunda... (LSC 45).
Na mesma ocasião, conta a Legenda que - confirmando o papel de Francisco como “amigo do esposo”- ela deu uma resposta muito significativa a um grande que quis consolá-la em seu sofrimento:
“Exortada pelo bondoso Frei Reinaldo a ser paciente no longo martírio de todas essas doenças, respondeu com voz mais solta: “Irmão querido, desde que conheci a graça de meu Senhor
Jesus Cristo por meio do seu servo Francisco, nunca mais pena alguma me foi molesta, nenhuma penitência foi pesada, doença alguma foi dura” (LSC 44).
Por isso, ela não esqueceu dos “filhos” em sua bênção, e a sua Legenda lembra que ela suscitou vocações até entre os rapazes (cf. LSC 10)”.
31
10ª parte
3.3 Cada um por si, mas também juntos, eles sentiram falta da plenitude
de Deus e a buscaram
São Francisco dividiu sua Carta aos Fiéis em duas partes: “Os que fazem penitência” e
“Os que não fazem penitência”. Mas é interessante observar que ele não está falando de nossas “penitências” como as entendemos hoje. Ele vai ao cerne da palavra latina “paenitentia”, que dá sentido de sentir-se em falta, sentir falta. Na sua carta, os que fazem penitência
são aqueles que nem se dão conta da falta de Deus e não buscam. De fato, foi só quando a
fonética latina passou a dar tanto ao ditongos ae como oe a leitura de um e que começou
a se fazer uma confusão com a palavra “poenitentia”, que vinha do grego poiné e tinha o
significado de “aguentar a pena” (3)
Clara e Francisco foram penitentes porque nunca se saciaram na sua busca de Deus. Como
bons filhos do século XIII, eles estavam na busca do Santo Graal, o tesouro da interioridade que
daria toda a salvação ao mundo. Os dois tiveram que abandonar sua terra e caminhar, livres de
tudo, para o que Deus queria mostrar-lhes. Sua segurança era estar nas mãos dele. Eles precisavam do Esposo.
Na vida de Francisco há um momento inicial, marcado por um saber humilde e obscuro:
já sabia o que não queria, mas não tinha idéia do que desejava. Até então era ele quem decidia o que fazer, de acordo com suas pretensões e expectativas pessoais. A novidade decisiva
que marca um momento forte em uma biografia humana é esta ruptura de nível que arranca
a pessoa de seus esconderijos e enganos, para levá-la a uma vida em transparência e verdade.
Se Francisco não tivesse tido paciência com tudo o que não estava resolvido em seu coração,
teria enganado a si mesmo e se convenceria de que suas perguntas essenciais tinham resposta
no prestígio e no poder, no dinheiro e na fama, e jamais teria chegado a descobrir Deus como
seu Tudo.
32
Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
Segundo a Legenda dos Três Companheiros, Deus lhe disse:
“Francisco, se quiseres conhecer a minha vontade, deverás desprezar e odiar tudo o que carnalmente amaste e desejasse possuir. Depois que começares a fazer isso, as coisas que antes te
pareciam suaves e doces serão para ti insuportáveis e amargas, mas das que te causavam horror
poderás haurir uma grande doçura e uma suavidade imensa”.
Ele diria no fim da vida:
“... O que me parecia amargo converteu-se para mim em doçura da alma e do corpo” (Test 3).
A saída para uma nova terra aconteceu quando ele ouviu o Evangelho da missão da Porciúncula: “...Na mesma hora, pulando de alegria, cheio do Espírito do Senhor, exclamou: “É isso que
eu quero, é isto que eu procuro, é isto que no fundo de meu coração quero pôr em prática” (1Cel
22). Só faltava desenvolver com discernimento eclesial o que tinha descoberto, uma nova forma
de vida na qual se haviam unificado o que Deus queria e o que ele desejava: viver sua vida e seu
destino a partir da vontade do Outro. E isso que fosse ele mesmo pela primeira vez.
Com Clara, não foi muito diferente. Será que ela, quando fugiu de casa no domingo de Ramos, também sabia só o que não queria, mas desconhecia o que o Senhor desejava dela? Era
a atitude típica do crente que se deixa levar pelo Outro, sem negociar nem combinar nenhum
planejamento. Estamos no mesmo impasse que já tinha acontecido com Francisco: abandonar a
terra velha, mas ignorar onde e quando poderia pôr os pés na terra nova, a prometida?
Ela só conseguiu escrever sua Regra quarenta anos depois. Houve um processo de busca, de
exôdos, até ver sancionada a Regra como “verdadeira e autêntica vida cristã”. Não foi simples
receber o carisma de uma forma de vida que era uma notável novidade.
Ela não se uniria ao monacato tradicional nem ao monacato renovado do movimento cisterciense, tão infuente na sua espiritualidade pessoal, e também não se uniria a nenhum dos
grupos leigos femininos - como o das beguinas ou outras semelhantes que havia na Itália. E nem
às mulheres reclusas que estavam no vale de Espoleto e em Santo Angelo de Panço.
Ela teria que reunir um projeto contemplativo e semelhante ao monástico com um estilo de
vida franciscano, sem que isso a levasse a um Caminho apostólico como o das beguinas. Recebeu uma forma de vida contemplativa e claustral, fraterna e eclesial, pobre, menor... e em sintonia com as opções evangélicas de Francisco: essa era toda a novidade de seu carisma pessoal.
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Frei José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap
Esse carisma não tinha sido acolhido por nenhum dos possíveis caminhos existentes naquele
momento: era dado por Deus com a vida de Clara. Agora era preciso reconhecê-lo, abraçá-lo
e desenvolvê-lo vivendo-o.
Clara sabia que seria acompanhada por Francisco, que provocaria sua vocação de desposar
Jesus Cristo. Esse foi o ponto de partida desses especiais amigos: uma busca de tudo que Deus
queria em suas existências. Nesse momento, Francisco é mediação para Clara. Mas eles continuariam a buscar o Rosto desse Esposo divino, e, então, Clara seria mediação para Francisco.
Clara e Francisco não se detiveram no ponto de partida. Tinham que chegar à terra nova,
deixando que Deus fosse completado e aperfeiçoando o que Ele mesmo começara. Há uma atitude de permanente busca, que define o verdadeiro peregrino, quando descobre que a terra anelada no fim de todos nossos passos é só Deus, como se reflete na experiência de Moisés: também
nele se verificou essa nota de “irrealização” no esforço por chegar a essa terra nunca alcançada,
pela qual houve um dia em que se começou a caminhar.
Francisco escreveu na Carta a toda a Ordem:
“Dai a nós, míseros, fazer, por Vós mesmos o que sabemos que Vós quereis, e sempre querer
o que vos apraz” (CtOr 50).
É óbvio que isso só é possível quando se assumiu uma postura pobre e menor de querer viver
a partir do Outro. Clara e Francisco se ajudaram para encontrar a concreta vontade de Deus...
O vínculo entre Clara e Francisco está no fato de ela e suas Irmãs terem escolhido Deus. Este
é o valor do “quia”(porque) latino com o que começa forma vivendi, uma partícula causal que
determina todo o resto do escrito. Então, o discurso de Francisco em que se manifesta a entrega
firme e delicada a Clara e às Irmãs em seu nome e no dos Irmãos, é a consequência de uma entrega prévia de Clara a Deus, feita por inspiração divina. Esses são os termos em que Clara fixa a
memória de Francisco, a finalidade dessa lembrança e a mútua fidelidade que decidiram um ao
outro. Entre o Espírito que inspira e Clara que com Ele se desposa, há um nexo fundamental: a
mediação de Francisco. Ela faz uma memória da pessoa de Francisco como quem reconhece e
agradece nele os benefícios de Deus. Especialmente o Testamento de Clara é uma homenagem
ao mediador de Deus em sua vida: Francisco.
Clara também exerceu esse papel mediador quando seu Irmão teve que discernir se Deus o
queria como contemplativo itinerante ou estável, isto é, na vida apostólica ou na vida retirada.
34
Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
Ela foi, para Francisco e para os primeiros frades, um discernimento em ato, uma parábola viva
do que significa buscar e permanecer abraçados à vontade de Deus. E nesse itinerário de mútua ajuda, de amizade no Espírito, Francisco para Clara e Clara para Francisco serão mediação
recíproca.
Se for certo que Clara era como um “reflexo” de Francisco, e nele “se via toda como em um
espelho”(4), não há dúvida de que, na comunhão do mesmo Espírito, a luz da pureza e da pobreza de Clara iluminou o rosto do Poverello, assim como sua recordação e a certeza de sua oração
o animaram em momentos de dificuldade e de prova. Por isso, Clara está indissoluvelmente
unida a Francisco e a mensagem evangélica dos dois é complementar. Eram amigos no mesmo
Cristo-Esposo.
“O caminho franciscano - diz Chiara Augusta Lainati - tem duas dimensões: a contemplativa, como abertura à Palavra, e a ativa, como testemunho dela. São as duas dimensões do amor,
que é, por sua vez, sempre contemplativo e sempre ativo, quando é amor; porque enquanto trabalha, pensa no repouso com o Amado; e quando repousa com ele, sonha em realizar grandes
empresas para testemunhá-lo por toda parte” (5).
3.4 Os Cânticos de São Francisco
No começo de 1225, São Francisco esteve um bom tempo em São Damião, morando em
uma cabana junto dos frades, mas ao lado do mosteiro de Santa Clara. Foi nessa oportunidade
que ele compôs o conhecido Cântico de Frei Sol e também o menos conhecido cântico Ouvi,
pobrezinhas, que dedicou a Clara e as suas Irmãs.
Neste último, ele recorda às irmãs que, um dia, serão “coroadas no céu como a Virgem Maria”. Mas vou chamar a atenção para alguns aspectos notáveis do Cântico do Frei Sol na perspectiva de Francisco que celebra Jesus Cristo com Clara:
Em primeiro lugar, observo que o Cântico é celebrado em dois coros: o dos frades e o das
Irmãs de Clara: eles estavam ali, no mesmo terreno. O Sol, o Fogo e o Vento recebem o título de
Frate: em português Frade ou Frei, não simplesmente irmão (fratello). A Lua, a Terra e a Água
são Irmãs: Irmãs Freiras, Sore e não sorelle. No Processo de Canonização de Clara sua irmã
Beatriz se apresenta como Sora Beatrice, sorella di Chiara. E cada Frate forma um par com uma
Sora.
Em segundo lugar chamo a atenção para o fato de a Morte também ser uma Sora, não uma
35
Frei José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap
Sorella. Seu par não aparece como um Frate, nem tem nome. Mas está bem determinado: são
os “que perdoam por teu amor e suportam em paz enfermidade e tribulações” (cf. CSol 10-11).
Eles têm a “perfeita alegria”, porque “serão coroados” como Jesus. Em outras palavras, todos os
que são como Jesus abraçam a morte, cantam de alegria e serão coroados. O companheiro da
Irmã Morte é o Frei Jesus, o Esposo. O mesmo Jesus que Francisco convidou para cantar o nome
de Deus nesse cântico. Isso pode ser confirmado pelo confronto com a invocação ao Esposo
feita na Regra não bulada (RNB 23,5).
“E porque todos nós, miseráveis e pecadores, não somos dignos de te nomear, imploramos
suplicantes que nosso Senhor Jesus Cristo, teu Filho dileto, em quem bem te comprazeste, junto
com o Espírito Santo Paráclito te dê graças, como agrada a ti e a ele, por todos, ele que sempre
te basta para tudo, por quem tantas coisas nos fizeste. Aleluia”.
(3) Cf. R. Herrera e outros, Los Escritos de San Francisco de Assis, Murcia, 1985, pág. 586.
(4) cf. ProcC 3,29; 4,16; 6,13; 7,10.
(5) Chiara Augusta Lainatti
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11ª parte
4 Clara e os Místicos do seu tempo
Francisco foi o grande companheiro, “o amigo do esposo”, na experiência mística de Clara com
Jesus Cristo. Ela nunca perdeu esse ponto de partida: abraçar o Cristo cujo amor foi tão grande que
o tornou pobre, livre e crucificado. Mas ela também conheceu e aprofundou os místicos medievais.
Para falar deles, parece-me interessante começar repetindo aqui o que dissemos sobre o misticismo no Capítulo 1, com alguns acréscimos.
Diante do mistério que o transborda, o homem expressa sua incapacidade de falar pelo silêncio, pela mística. Essa palavra vem do grego mystikós, que indicava a iniciação a um mistério
religioso. É a busca da comunhão com uma realidade final, que pode ou não ser chamada de
Deus, através de uma experiência direta ou intuitiva.
Essa experiência é sentida como incomunicável e sua origem é o verbo grego myo = fechar
os olhos ou a boca: para não ver o segredo e para não revelar nada. O silêncio é saudável. Na
linguagem do amor, feita de palavras e de silêncios, nós nos movemos num modo de falar que
pode parecer impreciso para quem não descobriu a precisão da arte, tão carregada de força e de
verdade. Nela, o homem se ajoelha para recolher as riquezas do mistério. Celebra-o. Quando o
mistério é muito grande, adora. Mas não foge do mistério, vive dele.
Desde que tomou consciência das realidades que existem ao seu redor e de que têm um
nexo entre eles mesmos, os homens foram místicos. E o fato de muitos terem perdido o uso da
mística quando encontraram algumas explicações racionais não acabou com ela. Os místicos
cresceram. Vamos nos dedicar, aqui, apenas aos místicos dos tempos antigos e medievais que
viveram da revelação bíblica porque queremos que os medievais Clara de Assis e Francisco nos
ajudem a viver a mística do século XXI em diante.
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Frei José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap
Para todos esses místicos, o mistério maior é o Amor. E o amor é relação. E nós vamos dar a
maior seriedade possível a esse aprofundamento. Já foi dito: “O homem do terceiro milênio vai
ser um místico ou não vai ser nada”.
Nos séculos XII e XIII floresceu na Europa a literatura mística. Foram muitos os autores, quase
sempre monges ou monjas. Essa época foi marcada por uma linguagem amorosa especial, usada
tanto no amor profano quanto no religioso. O amor cantado pelos travadores foi o mesmo dos
autores espirituais. Místicos e poetas contemplaram juntos o mistério que sempre está por trás
do amor: o Infinito. E os místicos foram mais longe. A terminologia é quase comum. A literatura
monástica da época dos travadores aplicou à relação de amor com Deus a linguagem realista do
amor recíproco entre pessoas humanas, de modo especial no âmbito esponsal-conjugal.
Como e por que apareceram muitos místicos nos séculos XII e XIII? Seria uma redescoberta
feita por monges renovados que tinham conservado e estavam redescobrindo os Santos Padres?
São Bernardo chega a ser considerado o último dos Santos Padres. Foram especialmente os
monges, ou quem dependeu de sua orientação, que surgiu a mística medieval.
Com os místicos medievais, Clara aprender a cantar. E foi introduzida ao Cântico dos Cânticos. Ela começou ouvindo o cântico dos jograis. Os místicos a levaram aos Santos Padres, que
os tinham introduzido ao Cântico da Bíblia.
Numa visão concisa, quero apresentar um pouco das mulheres místicas medievais e também
destacar a contribuição de alguns grandes cistercienses. Clara parece não ter tido muita influência dessas mulheres que, na maioria, só floresceram no seu tempo ou depois dela. Mas elas
podem ajudam a conhecer o que vicejava naquele tempo, pelo menos entre algumas mulheres
que deixaram escritos. É mais fácil perceber em Clara a influência dos cistercienses: eles a precederam historicamente e é possível que Clara tenha conhecido suas obras escritas, pelo menos
através dos “bons pregadores” que ela convidava, conforme o testemunho das Irmãs no seu
Processo de Canonização.
4.1 As mulheres místicas do tempo de Clara
Algumas mulheres romperam com o mutismo do chamado “sexo fraco”, e inauguraram um
espaço (o mosteiro) em que as mulheres eram as protagonistas de suas exigências, de suas expectativas, de sua linguagem.
Elas tinham luz própria, próximas do fogo comum que é o Amor de Deus, em cujo abismo
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Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
se perdiam misticamente como os Santos Padres e os Autores Espirituais que elas mais liam,
sempre em torno do Cântico dos Cânticos: a bagagem patrística e monástica foi assumida sem
precisar reivindicar nada, apesar da clara misoginia de que tinham sido objeto pela arrogância
e agressividade de alguns eclesiásticos.
A oposição dessas místicas não é aos homens, mas a uma compreensão de Deus que não
correspondia ao que elas intuíam e queriam. Era um caminho diferente, alternativo, na maneira
de ver, de entender, de viver e de partilhar o que nelas e para elas significava Deus.
Podemos indicar duas vivências legítimas, mas diferentes do Mistério: uma foi desenvolvida
pelos místicos renano-flamengos (Wesenmystik) e os levou a um “abandono de Deus” (Gott
lassen) no sentido de libertar-se de qualquer imagem de Deus. A outra foi desenvolvida pela
mística feminina (Minnemystik ou Brautmystik) e levou a uma penetração afetiva no Mistério,
usando uma simbologia nupcial (6).
A mística nupcial se refere prefentemente ao simbolismo do amor e das bodas. Cristo é o
noivo (como em Jo 3,29) e a alma fiel é a noiva (2Cor 11,2 e Ef 5,25). A mulher mística refere-se principalmente à transcendência do Deus uno. A alma deve superar o mundo material em
que está imersa, as atividades que não a deixam chegar à unidade, e também todas as imagens
intermediárias e conceitos que mais ocultam Deus que o dão a conhecer.
A mulher era prisioneira de uma ética que assimilava o pecado da língua à gula, porta de outros
vícios, pecado tanto maior quando provinha de mulheres e elas pretendiam falar em público. Por isso
é preciso resgatar a palavra da mulher medieval como expoente e síntese de um momento cultural e
religioso de especial importância:; a conjunção entre o pensamento e a afetividade, entre a inteligência e o coração.
Seria longo fazer uma resenha de todas as mulheres da época de Santa Clara que deixaram
alguma coisa escrita. Mas queremos apresentar algumas personalidades que se destacaram:
(6) A bibliografia para este tema não é fácil encontrar. Por enquanto indicamos P. Dinzelbacher-D.R. Bauer, Movimento
religioso e mística femminile.
39
12ª parte
4.1.1. Beatriz de Nazaré (1200-1268)
Nessa contemporânea de Santa Clara há uma boa síntese de duas correntes do âmbito feminino medieval: as beguinas e as cistercienses. Há uma biografia dela escrita por um monge que
foi seu confessor.
É importante em Beatriz o peso que teve em sua vida e amadurecimento a amizade. Estamos na melhor linha cisterciense de Saint-Thierry e de Rievaulx. É destacável a amizade com
a beata Ida de Nivelles, desde que esta era noviça. Beatriz não gozou de uma grande personalidade nem teve os ricos dotes naturais de sua contemporânea Hadewijch, mas era muito
sensível, de temperamento tímido e afetivo, e sentia a necessidade da amizade. E foi isso que
dirigiu sua piedade para um encontro afetivo com Jesus, Homem Deus, na eucaristia e no
Sagrado Coração.
Já chamamos a atenção para a destacada amizade que uniu Clara a Francisco e Clara a Inês
de Praga.
Vamos nos limitar a um escrito de Beatriz em que podemos ver sua posição mística nitidamente afetiva e esponsal. É o breve tratado Seven manieren van Minne (Os sete graus do amor
de Deus). Não apresenta uma narração espiritual como a que faz em sua “autobiografia”, mas dá
uma síntese do que Beatriz viveu misticamente: é o seu itinerarium cordis in Deum. O elemento
ordenador, a estrutura fundante é o amor, a Minne.
O Iº grau fala do desejo ou saudades de Deus que nos criou à sua imagem e semelhança. Os
graus II e III introduzem no dinamismo interior do amor puro que permeia todas as atividades
do ser humano. O grau IV começa a descrever as primeiras experiências passivas, que no grau V
tornam-se luminosas e ardentes. Os dois últimos graus desembocam na verdadeira união mís40
Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
tica, pela qual a alma entra em uma ininterrupta união amorosa (grau VI) que enche de fruição
e paz, até chegar ao cumprimento do gozo imediato de Deus, na bem-aventurança eterna, grau
que nenhuma inteligência pode compreender.
Vemos essa monja cisterciense não só como uma mística que mede a vida espiritual a partir
da altura transbordante de uma união com Deus verdadeiramente sentida e gozada, mas também como uma mestra experimentada nos problemas mais árduos da teologia mística.
A doutrina mística de Beatriz está fundamente marcada pela preeminência do amor, considerado como graça doada, capaz de regenerar a vida e transformá-la até a união com a pessoa
amada. São notas muito comuns nas mulheres místicas que se movem neste horizonte de espiritual idade esponsal. Serão familiares quando lermos as cartas de Santa Clara.
4.1.2 Matilde de Magdeburgo (1210-1294)
É interessante a contribuição desta mística alemã, feita em um itinerário espiritual. Ela começou o seguimento de Cristo em Magdeburgo, por volta de 1230, quando se fez beguina sob
a direção espiritual dos dominicanos. Durante quase trinta anos, uniu o serviço aos pobres e
doentes com um progressivo crescimento espiritual, que a levou a abraçar a vida monástica.
Ainda beguina, entre 1250 e 1265 escreveu Das fliessende Licht der Gottheit (A luz fluida da
Divindade), composta de sete livros escritos em duas partes desiguais e diferenciadas: o último
foi escrito no mosteiro de Helfta, depois da morte de Henrique de Halle, seu confessor dominicano.
Ela usa um tom acusador, típico de um profetismo feminino encontrado mais tarde em Santa
Catarina de Sena, contra os males de uma Igreja enferma em seus pastores. Matilde não poupou
críticas à decadência do clero, do Império e mesmo da Ordem Dominicana. É uma crítica dura
e áspera quando lembra os pecados dos cônegos luxuriosos, mas se transforma em doce intercessão quando tem visões do tormento desses eclesiásticos.
Mas a obra de Matilde é um testemunho de sua profunda experiência da fluida luz de Deus.
Encontramos os tons modernos do Minnesang e seu canto de amor, mesmo quando se refere ao
Cântico dos Cânticos. Essas imagens amorosas e nupciais são transformadas, interiorizadas no
processo espiritual da própria experiência amorosa de Matilde. Se a influência da “metafísica da
Essência” é menos acentuada que em Beatriz, Hadewijch e Margarida Porete, o tema do retorno
à própria e verdadeira natureza vincula as quatro.
41
Frei José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap
Na obra de Matilde espelha-se uma vida abismada nos mistérios da divindade, sua progressiva separação do contingente, para entrar na vida íntima de Deus Trindade e da Encarnação do
Filho. Vai deixando a mística visionária para um caráter cada vez mais pessoal e afetivo.
4.1.3 Hadewijch de Amberes (séc. XIII)
Hadewijch pertenceu ao movimento leigo feminino que juntou a consagração a Deus e uma
intensa vida espiritual com uma entrega aos pobres e aos enfermos.
Esta mística é a grande desconhecida de toda aquela geração de mulheres escritoras dotadas
de uma especial graça espiritual. Pode ter sofrido a suspeita de heresia por sua proximidade
com alguns grupos de beguinas ou begardos que foram condenados. Só foi um pouco resgatada
no século Xx.
Todo o conjunto de sua doutrina espiritual gira em tomo do amor. Passando o amor cavalheiresco, a Minne, para o plano sobrenatural e metafísico, consegue dar-lhe um lugar central na
vida interior, afirmando também que o amor é a essência de tudo e o motivo de toda atividade
humana. O homem é criado para o amor e para possuir Deus no amor. Para isso, todo esforço
humano deve estar ao serviço do amor, esquecido de si e em plena submissão à vontade de
Deus. Esse amor é celebrado sob diversos aspectos e personificado na dama, rainha, mestra...
(amor é feminino em flamengo e em alemão).
Escreveu Poemas, Visões e Cartas. Os Poemas consagram Hadewijch como uma das criadoras da poesia flamenga. Têm um único tema: o amor.
As visões são do período juvenil, quando teve algumas experiências para-normais. Há um
tom de exuberância, que não encontraremos na sóbria maturidade de suas Cartas. Todas as Visões giram em torno do amor, experimentado com grande prazer a partir de uma vivência unitiva: ter acesso ao segredo íntimo de Deus até chegar a ser uma só coisa com Ele. Aí aparecem
temas como a Brautmystik, a união esponsal entre Deus e a alma e a fecundidade resultante de
um Deus que nasce dela.
4.2 Os cistercienses
No século anterior ao de Clara e Francisco, o movimento cisterciense foi o herdeiro dos Santos Padres na linha da espiritualidade dos esponsais. Deu forma viva aos estudos mantidos pelos
mosteiros e, nos comentários ao Cântico dos Cânticos, insistiu na relação Cristo-Igreja e, mais
ainda, na relação Cristo-alma. Teve a sensibilidade de dar uma resposta nova ao homem novo e
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Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
à nova realidade, que estavam surgindo da Reforma Gregoriana. Com os primeiros cistercienses
acentuaram-se a devoção à humanidade de Cristo e a experiência unitiva com Ele, entendendo
isso como uma união esponsal, tanto na dimensão afetiva como na intelectiva. Esse movimento
teve uma forte influência sobre os franciscanos, principalmente através de Santa Clara e do Cardeal Hugolino. Vamos destacar São Bernardo, Guilherme de Saint-Thierry e Aelredo de Rievaulx.
4.2.1 São Bernardo
4.2.1.1 A centralidade do amor
Na visão de São Bernardo, a união amorosa dos esponsais é o centro de tudo. Toda a sua
mística se fundamenta na semelhança do homem com o Criador, precisamente no amor (7). Se
Deus é amor e se para conhecê-lo é necessário que o amor esteja em nós, esse amor tem que ser
um dom de Deus. Essa é a origem da distinção entre o Amor que é Deus e o amor que está em
nós como dom dele. O dom do Amor é o dom do Espírito Santo. Dois sinais permitem reconhecer essa presença amorosa de Deus no homem: o primeiro no amor pelo próximo; o segundo é
a ausência de medo do Juízo final e, portanto, uma grande confiança na misericórdia de Deus.
A experiência espiritual aprendida na contemplação da humanidade de Jesus, no acento materno da mediação de Maria, na gratuidade da ação do Espírito de Deus e, sobretudo, na misericórdia e ternura divinas, abriu uma autêntica escola espiritual e teve uma salutar influência na
espiritualidade francisclariana.
4.2.1.1.2 O processo
Para chegar ao Amor dos Esponsais, São Bernardo apresentou um processo que - depois de
um esvaziamento interior - levaq em quatro degraus à contemplação do Verbo e à união com
Deus Esposo:
1) Temos a mesma natureza do Deus que se encarnou. Descobrimos o Amor que é Deus e o amor que está em nós como dom dele.
2) Aprendemos a permanecer na oração durante a prova. O espaço interior é o do coração que se converte e se abre à ação
da graça.
3) Chgamos ao prazer e à experiência de Deus Esposo, e a interioridade da alma se amplia.
4) Na meta, o espaço já serve só para voar em Deus. É o céu. De alguma forma, estamos transformados no próprio Deus.
Realizaram-se os Esponsais.
(7) Para um contato melhor com São Bernardo só lendo os seus textos em latim. Mas posso indicar o livro de E. Gilson, La
Teologia mística di San Bernardo (Milano, 1987). Ver também San Bernardo, Obras Completas, vol. V, “Sermones sobre el
Cantar de los Cantares”. J.M. de la Torre - I. Aranguren, Madrid 1987. E. Gowland - M. E. Tamborini, La amistad espiritual,
em Caridad, Amistad. Buenos Aires 1981.
43
13ª parte
4.2.1.1.3 Alguns fundamentos do Esponsais
Em 86 Sermões que fez para os seus monges sobre o “Cântico dos Cânticos”, São Bernardo
apresenta pelo menos quatro interessantes pontos fundamentais:
“O semelhante busca o seu semelhante”
Criaturas dotadas da capacidade de amar, nós somos semelhantes a Deus, que é o Amor. Por
isso, temos sede dele. Toda a mística esponsal se fundamenta numa visão do homem amplamente otimista: Ficamos estupefatos diante da criação e queremos apaixonadamente unir-nos à
semelhança perfeita de Deus, que é Jesus, o Verbo feito carne.
A Encarnação de Jesus é o primeiro chamado de Deus ao pecador mostrando até que
ponto Deus é capaz de se dar a ele, de amá-lo misericordiosamente: “Não fomos nós que o
amamos, foi Ele quem nos amou primeiro” (1Jo 4,10). Fazendo-se homem, Deus mostrou ao
homem sua dignidade e seu destino ... Mas isso é devido à condescendência divina e não à
natureza humana, não à condição humana, que é frágil e precária, mas com esperança pela
intervenção gratuita de Cristo em favor da alma. Deus acompanha o homem em seu itinerário, como Pastor bom e solícito. O Verbo dá o primeiro passo para unir a ele a alma infiel: o
homem tem que trabalhar a ascética esponsal para chegar à união-visão do Esposo em plenitude, ao matrimônio espiritual.
“O beijo da tua Boca”
São Bernardo trabalha bem a aproximação intelectual e afetiva ao mistério do amor de Deus
quando comenta o “Beijo na Boca” (Ct 1,1). Relaciona esse osculum oris - ponto alto do matrimônio espiritual - com a doutrina da Trindade, falando em quatro beijos na história da salvação.
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Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
O primeiro foi quando Deus beijou os homens espirituais do AT para que o desejassem diretamente, sem intermediários. Sem os beijos de Moisés, que gaguejava; sem os de Isaías, que
tinha lábios impuros; sem os de Jeremias, que não sabia falar porque era um menino; sem os
dos profetas, que eram como mudos, para desejar com veemência o Beijo para o qual nascemos.
O segundo beijo foi o de Deus na natureza humana quando Jesus se encarnou. Nenhum de
nós é particularmente digno dele.
No terceiro beijo, São Bernardo se reconhece digno como parte dessa natureza humana do
Senhor: é a grande intervenção amorosa do Criador. Deus (o Verbo) beijou Jesus feito homem.
O quarto beijo é quando cada um se reconhece e acolhe a divindade do Verbo revelada na
humanidade de Cristo. É o “beijo da paz” que nem todos souberam ou quiseram receber: Simeão e os pastores acolheram; Acab e Herodes não quiseram. Deus beija aqueles que acolhem
a divindade do Verbo na humanidade.
Observemos que, em um beijo na boca, as duas pessoas atuam ao mesmo tempo, a comunicação é mútua. É no Sermão 8 que São Bernardo apresenta a doutrina mais profunda sobre isso:
o beijo do Cântico dos Cânticos representa a união entre o Pai e o Filho no seio da Trindade.
O amor no beijo entre o Pai e o Filho é o Espírito Santo. A pessoa do Espírito Santo é um beijo
inefável que nenhuma criatura humana experimentou e que representa o conhecimento e amor
recíproco entre o Pai e o Filho.
A Esposa pede um beijo e o Espírito Santo o dá, para entender com sabedoria e unção. Pedir
o beijo do Espírito é desejar entrar nessa intimidade divina, nesse conhecimento amoroso que
só Deus pode conceder a quem o suplica. É entender o que se ama e amar o que se entende.
Bernardo relaciona o beijo de Cant 1,1, com o texto de João: “soprou sobre eles e lhes disse:
recebei o Espírito Santo” (Jo 20,22). O beijo é o Espírito soprado, por Jesus em sua Igreja e em
cada fiel. A participação na vida divina se fundamenta em nossa relação pessoal com o Verbo
encarnado, que é o lugar de nossa inserção na Trindade.
A “Unidade do espírito”
Para explicar o mistério do matrimônio espiritual, Bernardo também lembra 1Cor 6, 15-17:
“estar unido ao Senhor é ser um só espírito com Ele”, em que a união carnal é comparada à espiritual. É a experiência da comunhão total, transformante e transformada, que faz alguém passar
a ser a pessoa amada sem perder a identidade, em total compenetração vital. O amor verdadeiro
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Frei José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap
gera união, comunhão, identificação, transformação na pessoa amada. Também restaura a semelhança originária até consumá-la em um ato de nova criação, de um novo nascimento.
“A casa espiritual”
No Sermão 46, comentando Ct 1,16-17: “Como é doce, como é verdejante o nosso leito! Cedros são as vigas de nossa casa e os ciprestes são o nosso teto”, Bernardo fala da beleza da Casa
da Igreja: constituída pelas atitudes dos crentes em uma comunidade que expressa o Autor de
todo bem.
Bernardo tem consciência de que só na vida futura será possível chegar à união completa.
Sublinha a condição de “peregrino”, própria da alma-esposa aqui na terra. Insiste mais no aspecto pessoal da relação com Deus, mas não exclui e até trata precisa e brevemente o aspecto
comunitário dessa relação. É uma teologia afetiva mais que especulativa. Esse amor é exclusivo
e inclusivo, como em toda a história de amor verdadeiro com Deus.
46
14ª parte
4.2.2.Guilherme de Saint-Thierry
Guilherme de Saint-Thierry tem uma visão serena sobre o corpo e sobre condição humana
do amor (8). É uma visão benévola do simplesmente humano como suporte e lugar em que o
discurso amoroso sobre Deus toma corpo. Uma amostra está no começo de seu comentário ao
Cântico, onde fala do beijo esponsal como perfume do Amado, um símbolo da união entre o
Esposo divino e a esposa mística. Quando os corpos se beijam unidos amorosamente, apertam
os lábios e unem a respiração (o spiritum) numa síntese que indica a pessoa inteira.
A arte de amar é a arte das artes, mas será preciso fazer um caminho de aproximação e de
conversão para a caridade: a vida amorosa com Deus. O amor é um sentimento natural inato no
homem. Criado por Deus, ele deveria continuar a ser como no início da criação, sem precisar de
que alguém o ensinasse a quem e como deve amar. Mas perdeu isso pelo pecado, e a realidade
não é tão inocente: houve um desvio em nossos sentimentos. A alma sente-se atraída por seu
destino, que é a bem-aventurança, mas perdeu o caminho e não o encontrará se alguém não o
ensinar de novo. É necessária uma reeducação do amor.
Ele via o mosteiro como uma “Escola de Amor”: os instrutores eram: o mestre de noviços, o
prior ou abade. Opunha-se às escolas em que se ensinava a literatura e a doutrina do amor profano, usando o De arte amatoria de Ovídio. O mosteiro seria a única verdadeira escola de vida,
envolvendo almas e corpos e transformando a comunidade monástica numa vida social similar
à dos santos no céu. O pensamento deve dar lugar ao amor, e a ciência à sabedoria. Quando
pensamos nas coisas de Deus e a vontade progride até se transformar em amor, o Espírito Santo
se infunde e vivifica tudo.
Guilherme vê o Esposo Cristo diante de uma esposa ao mesmo tempo perfeita e aperfeiçoável: é a esposa das bodas messiânicas que já goza da alegria de ter sido escolhida pelo Esposo,
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Frei José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap
mas ainda precisa de conversão. Trata-se do realismo antropológico de toda biografia espiritual,
devedora da graça e condicionada pelo pecado, chamada à unidade do espírito, mas reconhecendo-se limitada e pecadora para gozar dessa união transformante e transformada.
O pensamento teológico e místico de Guilherme é uma narração da história da semelhança divina: dada por Deus na criação, desfigurada no pecado, restaurada na redenção. Há uma
progressiva ascensão, não uma volta ao paraíso perdido, mas a penetração numa novidade não
suspeitada nem merecida: a semelhança com Deus que nos abriu para a encarnação, morte e
ressurreição do Filho de Deus. Deus é caridade, quem o amar e crescer no amor será semelhante
a ele.
Nesse processo há uma intervenção do Espírito Santo: assim como ele efetua a unidade do
espírito no seio da Trindade, significando e sendo a comunhão amorosa do Pai e do Filho, também realiza no homem que se abre a sua ação salvífica essa mesma comunhão filial com Deus:
o que o homem não consegue entender nem explicar - mas que em Deus é natureza - lhe é dado
de graça. Já estamos diante da unidade de semelhança, e de uma unidade de espírito. Os amantes são levados a ser uma só coisa.
O homem precisa irremediavelmente de Deus, porque sem Ele não pode entender a si mesmo. As experiências de paz e silêncio, gozo e liberdade, inteligência e amor, são energias dinâmicas da Trindade dentro de quem é sua imagem, a pessoa humana.
(8) Uma boa apresentação acessível de Guilherme de Saint-Thierry está em J. M. DECHANET, Lettre aux frères du Mont Dieu (Lettre d’Or), Sources Chrètienes, Paris, 1985.
4.2.3. Aelredo de Rievaulx
Aelredo achava possível transformar a abadia numa família de amigos: a amizade é um tipo
particular do amor, sua rara e perfeita culminação. Aelredo começa recordando sua juventude:
“nada me parecia mais doce, nada mais saboroso nem mais útil que ser amado e amar”. Ele construiu uma doutrina sólida sobre o amor e a amizade (9).
Tem o mérito de propor um caminho de santificação através do amor humano. Seguiu bastante o “diálogo da Amizade”, de Cícero e, como ele, ensinou que a amizade é um dom natural,
uma “inclinação da alma”. Mas introduziu uma novidade: a amizade acontece entre três: os dois
amigos e Cristo: “começa em Cristo, nele se conserva e a ele se dirige”. Se um amigo se une a
outro no espírito de Cristo vem a ser um só coração e uma só alma com Ele, e se ascender assim
do amor à amizade com Cristo, será com ele um só espírito e um só beijo.
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Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
Sua obra se estrutura em três diálogos. No primeiro trata da essência e da origem da amizade; no segundo, trabalha a excelência e os limites da amizade. No terceiro visa a prática: depois
de fundamentar o amor e a amizade em Deus, ensina os passos a seguir na verdadeira amizade:
a escolha, a prova, a admissão e o consenso.
Em Aelredo temos uma configuração espiritual ou mística do tema da amizade. No final de
sua obra declara a importância de toda amizade humana como sacramento e antecipação da
amizade eterna e divina.
... do santo amor com que abraçamos o amigo, somos elevados a aquele amor com que abraçamos Cristo, saboreando com prazer o fruto da amizade espiritual, cuja plenitude nós esperamos na eternidade, quando desaparecer o temor que agora sentimos uns pelos outros... Essa
amizade – que aqui só podemos admitir para poucos – vai transbordar para todos e de todos se
voltará para Deus, para que Deus seja tudo em todos”.
É claro que esse conhecimento dos místicos medievais teria levado Clara de Assis a descobrir
um sentido novo na Palavra de Deus. Ela leu o Cristo-Esposo à luz do Cântico dos Cânticos,
certamente ajudada pelos pregadores, porque é difícil pensar que ela tivesse uma Bíblia inteira
em São Damião. Por isso, nós vamos nos encontrar com os Santos Padres, que mais chamaram
a atenção para o Deus Esposo. E, depois, vamos beber nas próprias fontes bíblicas – no Cântico
e nos Profetas – como Deus quis e quer vir ao nosso encontro para uma união eterna.
(9) Ver E.Gowland – M. E. Tamborini, La amistad espiritual, em Caridad, Amistad. Buenos Aires.
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15ª parte
5. A Aliança Esponsal nos Santos Padres
Os místicos medievais beberam nos Santos Padres os fundamentos dos seus comentários
ao Cântico dos Cânticos. Pelo menos os monges tiveram ampla possibilidade de estudar toda
a riqueza da Patrística em suas bibliotecas. E partilharam os seus conhecimentos através das
citações que apresentaram. Pessoas sem recursos para ter uma biblioteca, como Clara, podem
não ter tido acesso direto aos Padres, pelo menos aos gregos - que melhor trataram o tema dos
esponsais - mas podem ter sido inspiradas a ler com outra visão ds textos bíblicos: além do Cântico, os profetas da Aliança.
A Espiritualidade dos esponsais, que encontramos no escritos de Santa Clara, está fundamentada nos Santos Padres, porque foram eles que mostraram como Jesus era o verdadeiro
esposo sonhado e prometido pelo Antigo Testamento e também abriram para a visão de que
Deus não é apenas o Esposo do Povo Bíblico mas da alma de cada fiel.
Há diversos testemunhos de que Clara convidava para falar em São Damião bons pregadores:
“A testemunha também disse que dona Clara gostava muito de ouvir a palavra de Deus. E,
embora não tivesse estudado letras, ouvia de boa vontade as pregações letradas” (ProcC 10,8).
“Não tinha formação literária, mas gostava de ouvir os sermões dos letrados, sabendo que
na casca das palavras ocultava-se o miolo que tinha a sutileza de alcançar e o gosto de saborear.
De qualquer sermão, conseguia tirar proveito para a alma, pois sabia que não vale menos poder
recolher de vez em quando uma flor de um áspero espinheiro que comer o fruto de uma árvore
de qualidade” (LSC 37).
A Bíblia é a revelação do Deus-Amor não criado, que quer partilhar com os homens a sua
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Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
infinita felicidade. A história da espiritualidade é a história dos homens na busca do Amor de
Deus, e dos meios que usaram para isso. A partir dos Santos Padres da Igreja - cristãos ricos da
cultura grega e romana dos primeiros séculos -, a Igreja foi estudando o que tinha sido revelado
por Jesus e construindo a sua doutrina e a sua espiritual idade.
A Carta aos Hebreus diz que não haverá mais revelação porque o Filho é a manifestação definitiva de Deus. Sua missão redentora está sendo continuada pelo Espírito Santo. Pentecostes
é o tempo da Igreja, em que o Espírito vai suscitando testemunhas do Ressuscitado que em diferentes situações, desafios e dificuldades narraram as maravilhas de Deus, a salvação recebida
para sempre em Jesus Cristo. O período dos “Padres” é a primeira etapa dessa caminhada.
Os “Pais da Igreja”, com suas pregações e escritos, foram decisivos no desenvolvimento da
doutrina e da vida cristã. O seu período, logo em seguida ao dos apóstolos, viveu intensamente
a organização das comunidades, da vida litúrgica, da promoção do pensamento cristão.
Foram os Santos Padres que nos ensinaram a ler a Sagrada Escritura “no spírito”, isto é, obter
uma “inteligência espiritual” dela. Nessa dimensão religiosa da Escritura há um sentido misterioso, interior, que não é uma verdade abstrata ou banal, mas um dinamismo que afeta toda a
existência.
Eles mostraram dois sentidos na Bíblia: o literal e o espiritual: a letra correspondia ao AT e
o espírito ao NT, identificando-se com a pessoa de Jesus. Por isso, tudo que se contava na Antiga Aliança era interpretado da pessoa de Jesus. Isso dá uma importância especial aos diversos
comentários dos Padres sobre o Cântico dos Cânticos, onde estão os primeiros pontos de uma
teologia e de uma espiritualidade esponsais. Deus é o amante fiel da esposa infiel, sedenta de seu
abraço divino. Não é uma simples alegoria em um povo que entende a palavra de Deus à letra:
é o descobrimento de que Deus se apaixonou “literalmente” pelo homem, tanto na Igreja como
em cada alma cristã: o eco desse cântico profético vai ressoar na alegria dos amigos do Esposo
que está com eles numa festa que vai chegar à plenitude na “terra nova”, quando a comunidade
estiver preparada para o Esposo.
Neste nosso trabalho, vamos apresentar apenas Orígenes e São Gregório de Nissa, os dois
santos Padres que trataram explicitamente da Espiritualidade dos Esponsais. Ressaltamos os
pontos principais de cada um. Eles podem nos ajudar a entender melhor a espiritualidade de
Santa Clara.
51
16ª parte
5.1. Orígenes - História, ferida e fecundidade
Orígenes é uma das pessoas mais geniais e influentes do Cristianismo.
Foi um ponto alto na espiritual idade e na teologia mística. Por volta do ano 200, a literatura
eclesiástica cresceu e teve uma nova orientação. Antes, condicionada pela tensão entre a Igreja
e seus perseguidores, produziu escritos apologéticos e anti-heréticos. Mas abriu o caminho para
um estudo científico da revelação. No contexto em que viveu Orígenes, a Igreja sentia que precisava de um sistema de pensamento. Daí surgiu a Escola de Alexandria, em que Orígenes se
destacou. Em Alexandria tinha nascido o helenismo, fusão das culturas oriental, egípcia e grega,
que originou uma nova civilização, e nela se estabeleceu no fim do século I a cultura judaico-cristã.
O tema dos esponsais está principalmente nos escritos exegéticos de Orígenes. Ele insistiu
mais no sentido místico da Escritura do que no literal, usando com freqüência o método alegórico. Nisso foi levado a cometer alguns erros de interpretação, mas mostrou que teve em alto
grau o dom da penetração espiritual.
A idéia dos esponsais divinos não é uma novidade cristã. O mundo pagão conheceu deuses e
deusas que se casavam. Já o judeu Filon de Alexandria falava de como Deus se unia à alma humana, que recebia uma semente das virtudes. Para alguns cristãos, a morte tinha um significado
esponsal. A expressão “matrimônio espiritual” aparece pela primeira vez na literatura cristã
entre os adversários de Santo Irineu, e falava sobre Cristo esposo da Igreja.
Hipólito, autor do primeiro comentário cristão ao Cântico dos Cânticos, usou a simbologia
esponsal entre Deus e a Igreja, dentro da tradição hebraica dos esponsais entre Javé e Israel e
da leitura paulina dos esponsais Cristo-Igreja. Quem começou a chamar as virgens cristãs de
esposas de Cristo foi Tertuliano, que também falou dos esponsais entre Deus a alma. Mas quem
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Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
tratou mesmo esse tema foi Orígenes, que escreveu no prólogo ao seu comentário sobre o Cântico dos Cânticos: “estas palavras do Esposo magnífico e perfeito dirigem-se à alma unida a ele
ou à igreja”. A alma fiel é esposa porque faz parte da Igreja que é esposa. São Jerônimo disse:
“Orígenes, que em alguns livros superou a todos, no Cântico dos Cânticos superou a si mesmo”.
Orígenes sabia unir devoção, capacidade especulativa e paciência analítica. Teve influências
platônicas. Lembrou, ao falar da simbologia esponsal, que Platão falou sobre o amor espiritual
no “Banquete”. Mas ele mesmo falou a partir de uma profunda experiência espiritual.
Escreveu na primeira Homilia sobre o Cântico: “Freqüentemente - Deus é testemunha - eu
senti o Esposo chegar a mim e ficar comigo; de repente Ele se afastou e não consegui mais encontrar o que buscava; apareceu outra vez e eu o segurei, mas ele escapou de novo, e eu continuo
a buscá-lo. Ele faz isso freqüentemente, até que eu o possua de verdade, e suba apoiada em meu
Amado (Ct 8,5)”.
Tudo que Orígenes escreve sobre a relação esponsal entre Deus e a alma tem um tom de
autobiografia espiritual. É uma experiência mística em que outros autores contaram que, para
chegar à união com Deus, sofriam tanto sua “ausência” quanto sua “presença”. É uma experiência que descobrimos também em Santa Clara, nas suas Cartas a Inês de Praga.
Na primeira homilia, Orígenes se pergunta sobre o beijo do Cântico dos Cânticos e sobre o
abraço do livro dos Provérbios: Até quando meu Esposo vai me mandar beijos através de Moisés
e dos profetas? Eu quero tocar sua boca ... Existe um abraço espiritual, e queira o Céu que um
abraço mais forte do Esposo aconteça também com a minha alma, a Esposa, para eu também
poder dizer o que está escrito neste livro: sua esquerda está sob a minha cabeça, e sua direita me
abraçará.
53
17ª parte
5.1.1 Três temas na mística origineana
5.1.1.1 - A história como cenário esponsal
Orígenes concebeu a história como um drama amoroso em que se desenvolve o casamento
entre Cristo e a Igreja, entre Cristo e a alma. Ele faz uma reconstrução histórico-salvífica do caminho que levará outra vez aos esponsais perdidos pelo pecado. Então, o Antigo Testamento foi
o noivado entre Israel e Deus, em que a noiva recebeu a visita dos “amigos do Esposo” (patriarcas e profetas), e mais esporadicamente a visita do próprio Esposo (nas teofanias vetero-testamentárias como figuras humanas ou angélicas). O Novo Testamento começa com a Encarnação
do Esposo, que assume um corpo de carne imaculado para poder encontrar a Esposa, prostrada
em um corpo de carne maculado. Mas a união só será perfeita na visão-encontro celeste, quando se realizar a parábola dos convidados para as bodas e o Rei unir definitivamente seu Filho
com a humanidade glorificada.
Mas o drama tem um lado negativo: junto ao itinerário matrimonial em que Cristo-Esposo
toma a iniciativa, há um itinerário adúltero feito pela Igreja/alma-Esposa. Se a união a Cristo é
um matrimônio, cada pecado é uma infidelidade a esse Esposo legítimo e, portanto, um adultério com Satanás.
5.1.1.2. A ferida de amor
A literatura esponsal cristã explorou bastante a expressão: “estou ferida de amor” (CT 2,5),
que foi vinculada a um texto do profeta Isaias: “Fez minha boca como uma espada afiada; na
sombra de sua mão me escondeu; fez-me como seta aguda, em sua aljava me guardou” (Is 49,2).
A ferida corresponde à flecha, e as duas são de amor. Orígenes desenvolveu amplamente esse
tema em várias de suas obras.
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Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
Há um Arqueiro, que pode ser o Pai ou o Filho. A Flecha é sempre o Filho, mas ele também
pode ser representado pela Ferida que produz na alma fiel. Mas a Esposa ferida é sempre a alma,
nunca a Igreja. Há uma variante “eclesial” da flecha, que pode ser representada por aqueles a
quem Cristo confiou serem portadores de sua Palavra: Moisés, os profetas, os apóstolos, os pregadores do Evangelho.
5.1.1.3 A fecundidade do esponsal com Cristo
O tema de conceber e de gerar espiritualmente está em São Paulo e em alguns Padres precedentes. E também não estaria longe do tema tão querido no corpus paulino e no corpus joânico
da in-habitação de Cristo ou da própria Trindade na alma do crente.
Maria é o modelo nessa ação de gerar o Verbo, com uma atitude tipicamente materna: toda
alma virgem e incorrupta, concebendo do Espírito Santo para fazer a vontade do Pai, é Mãe de
Jesus.
Esse nascimento de Cristo na alma do crente está vinculado essencialmente ao acolhimento
da Palavra e, em certo sentido assim nasce Jesus continuamente nas almas. Não se trata de ser
um “outro filho” de Maria, mas de ser o único filho que ela gerou, isto é: de se transformar em
Jesus.
Isso tudo só é viável se tivermos, como João, a mente de Cristo. É esse vínculo que Orígenes
faz com outro texto paulino: “Nós não recebemos o espírito do mundo, mas o Espírito que vem
de Deus, para conhecer as graças que Deus nos deu [ ...]. Porque “quem conheceu a mente do
Senhor para instruí-lo? Mas nós temos a mente de Cristo” (1Cor 2,12, Jo 1,23).
Como o Pai gera eterna e continuamente o Filho, o Filho é concebido de modo permanente
na alma do crente através de uma vida santa, com boas ações, até chegar à bem-aventurança de
uma estreita união com o Filho, em que poderá gozar da visão do Pai como o próprio Cristo o
vê. É o ponto alto de um caminho esponsal: chegar à mais completa transformação naquele a
quem amamos.
Mas, ensina Orígenes, nem tudo é concepção de Cristo na alma, porque também há uma
espécie de assassínio quando se comete um pecado. Jesus não pode estar na alma, porque o pecado reduz o espaço. Isso é o que contece nas almas tíbias; nas outras ele cresce.
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Frei José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap
Por último, üdgenes indica um espaço interior em que Deus põe sua morada, a palavra usada por São João para indicar o recinto sagrado onde habita o Senhor, a tenda do encontro que
acompanhou Israel, que agora é o coração do homem. Para ele, o coração é justamente esse
centro vital onde Cristo nasce, cresce e é feliz. Ele usa uma série de imagens que explicitam essa
presença de Deus quando alguém lhe oferece um espaço no santuário de seu coração: então,
Jesus passa pelo meio deles e aí repousa com toda a Trindade.
São esses os caracteres da teologia esponsal de Orígenes, que descrevem um processo, um
drama em que a liberdade da pessoa se joga como resposta amorosa a uma proposta de amor:
Deus que inicia e conduz uma história nupcial de salvação, que fere aos que ama com um dardo
de amor até levá-los à plenitude fecunda dos esponsais místicos. São uma línguagem e uma experiência que reconheceremos na literatura mística posterior e até como elementos descritivos
de uma forma de vida contemplativa claustral, como a do projeto evangélico de Clara de Assis.
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18ª parte
5.2 Gregório de Nissa - A caminhada até a União
Gregório de Nissa continua a perspectiva da mística esponsal. Sua contribuição para a espiritualidade esponsal comporta o conceito de itinerário e o conceito de união. São elementos que
encontramos principalmente em suas obras exegéticas, onde ele mais manifesta sua admiração
por Orígenes: na De vita Moysis, e nas quinze homilias ln Canticum Canticorum. Cremos que
a chave esponsal da doutrina do nisseno gira em torno da idéia de progressão, que permite ao
crente ir percorrendo um caminho de conversão, de assimilação divina, até chegar à união (10).
5.2.1. Seu “itinerarium mentis in Deum”: a progressão para a semelhança
divina
O chamado para uma estreita comunhão com Deus, para a vivência íntima e amorosa com
Ele, não é algo natural, ou que se obtém de modo improvisado e impessoal. É preciso fazer um
caminho para chegar ao cume da vida espiritual; Gregório de Nissa pensou nisso a partir do
tema da imagem como o ponto de partida de toda investigação sobre a mística. De fato, sendo
o cristianismo imitação da natureza divina, indagar sobre o momento inicial do homem leva a
conhecer o projeto de Deus, que se desenvolve em todo momento de relação do homem com
Deus, até o mais pleno, que é o místico.
A questão básica é saber como é a imagem do homem à luz de seu arquétipo primordial,
Deus Criador. Esse é o fundamento de sua doutrina, não só sobre a intuição de Deus, mas também sobre a ascensão mística do homem. Coroamento de toda a obra da criação, o homem, um
microcosmo, exibe a mesma ordem e harmonia que admiramos no macrocosmo, em toda a
criação. Gregório não faz a distinção típica dos alexandrinos entre imagem e semelhança, como
quem entende por semelhança o esforço ético do homem sobre a imagem; porque as considera
sinônimos, indicando assim a condição de pureza originária do homem. Graças a esta seme57
Frei José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap
lhança, o homem se apresenta como superior a todas as criaturas, pois nenhuma delas foi feita
à semelhança de seu Criador. Para ele, “imagem” é uma expressão adequada dos dons divinos
com que o homem foi dotado, de sua condição original de perfeição.
A condição do homem depois do pecado pode ser aperfeiçoada, pode começar de novo. O
simbolismo da água do batismo é simplesmente o início da nova vida em Cristo, que precisa
crescer até a união total, com uma decidida morte mística que leve o homem à verdadeira ressurreição. Esse percurso é bem estudado em seu De vita Moysis, um tratado místico em que
ele delineia o seu itinerarium mentis in Deum pessoal, baseando-se na apresentação do êxodo
existencial de Moisés.
O livro tem duas partes. Na primeira há uma síntese biográfica de Moisés. Na segunda parte,
a principal, faz uma interpretação alegórica de Moisés, vendo em seu itinerário um paradigma
da subida do homem até Deus.
Essa itinerância purificadora, que o crente percorre em sua ascensão, leva-o à fonte de sua
imagem, que é Deus, em colaboração com a graça divina para eliminar paulatinamente toda
imperfeição. Nessa abertura amorosa para a beleza infinita de Deus, a mudança e o devir que
mostram a finitude de todo espírito criado adquire um significado novo, pois, como diz Gregório, o que pode parecer temível são asas adequadas para o vôo, seria um dano se não pudéssemos transformar-nos em seres melhores, pois a verdadeira perfeição consiste nisto: nosso
crescimento nunca acaba sem pode ser circunscrito.
Não se trata de uma luta contra a limitação, mas de colaborar em tudo com a graça divina.
Podemos situar aqui a imagem da sarça ardente e da tenda, que passariam mais tarde a significar
espaços da vida contemplativa. A sarça ardente é compreendida por Gregório de Nissa como
a atitude que o peregrino para Deus deve ter diante da luz de sua presença. Há escuridão na
alma, mas também existe a luz que se fez alcançável e visível em um gesto de condescendência
divina. O caminho do crente implica uma espécie de estupor diante dessa luz imerecidamente
concedida; um estupor que se converterá em adoração de Deus e em purificação de tudo que
puder estorvar.
A tenda do encontro é outra imagem importante do itinerarium. São duas tendas, a celeste e
a terrena, que simbolizam as duas naturezas de Cristo. É evidente a alusão à tenda encarnada do
prólogo do Evangelho de São João: o Cristo eterno e incriado, quando se fez histórico e criado,
acampou no meio de nós. Gregório diz: “Entre todos, existe um único ser que existia antes dos
tempos e que foi criado nos últimos tempos, mesmo não tendo necessidade de ser criado no
58
Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
tempo. Como teria necessidade de um nascimento temporal quem já existia antes dos tempos
e dos séculos? Por nós, que por desconsideração tínhamos sido corrompidos no ser, ele aceitou
ser criado como nós, para levar de volta ao ser o que estava fora do ser. Este é o Deus unigênito,
que em si abraça o universo, e montou sua tenda entre nós”.
A perfeição que se busca através de todo o itinerário coincide com a que Moisés obteve: a
amizade de Deus, a contemplação participada de sua beleza: “esses conselhos sobre a perfeição
da vida virtuosa te sugerem, ó homem de Deus, este nosso breve discurso, descrevendo-te a vida
do grande Moisés como modelo de beleza, pelo que cada um de nós, imitando sua maneira de
viver, reproduza em si a marca da beleza que nos foi mostrada [ ... ]. Está na hora de olhares o
modelo, meu caro, aplicando em tua vida tudo que consideramos com a interpretação espiritual
dos fatos históricos, e te faças conhecer por Deus e chegues a ser seu amigo”.
(10) Não podemos deixar de chamar a atenção, neste ponto, para o “Itinerário da mente a
Deus”, escrito por São Boaventura. Ele traz uma perspectiva “seráfica”, na tentativa de entender
o misticismo de São Francisco. Mas recordamos que esse livro foi escrito depois da morte de
Santa Clara.
59
19ª parte
5.2.2. Até a contemplação eterna da Beleza de Deus que nos transforma
em sua imagem
Na Vida de Moisés, Gregório usa um termo adequado para expressar o encontro entre Deus
e o homem, entre o Amor infinito e o amor criado: a insaciabilidade. O caminho não tem fim,
é inesgotável como Deus.
Há, então, um progressivo encontro com a Beleza, que é Deus (11). Mas, como essa ascensão
pressupõe uma paulatina assimilação da imagem de Deus, não pode parar, porque isso significaria ter alcançado o limite de Deus. E nisso consiste a bem-aventurança.
É principalmente em suas homilias sobre o Cântico que ele trata da gradualidade dessa subida para a contemplação da Beleza. A linha é a mesma de Orígenes, falando da esposa-Igreja
e da esposa-alma. Orígenes tinha determinado três momentos na subida da alma até Deus: a
ética, a física e a teoria, que fazia corresponder aos Provérbios, ao Eclesiastes e ao Cântico dos
Cânticos. Na primeira de suas Homilias sobre o Cântico dos Cânticos, Gregório retoma essa
divisão e relaciona os três livros com as idades espirituais: a infância - incipientes - (Provérbios);
a juventude - proficientes - (Eclesiastes) - e a maturidade - perfeitos - (Cântico dos Cânticos).
A fase dos incipientes se caracteriza pela purificação; é a passagem da escuridão para a luz,
entendida como o desapego dos conceitos errôneos sobre Deus e o esforço por imitar totalmente a Cristo. Essa fase purificatória termina na apáteia (a despreocupação pelas coisas vãs) e na
parresia (a liberdade sem temor), frutos da confiança em Deus.
Com os proficientes há uma maior fidelidade na reprodução da imagem de Cristo na alma,
há uma manifestação de Deus de modo misterioso e obscuro, e se tem uma clara experiência de
sua presença. Quanto mais se avança nesse caminho de perfeição, mais são refletidos na alma
60
Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
os traços de Cristo, até chegar a reproduzi-los de tal maneira em si mesma que quase não se distingue da Beleza original. Utiliza a imagem do espelho, de tanta influência na literatúra mística.
Essa escalada ascensional é um movimento de caridade, pelo qual o sensível vai sendo substituído pouco a pouco pelo espiritual, sem voltar à sujeira que se deixou para entrar na presença
de Deus Abrir-se a Deus que entra, é, conseqüentemente, ver como se afasta o que não é Deus
na alma.
Finalmente, a última fase corresponde aos perfeitos, cuja maturidade consiste em ver dentro
deles a imagem buscada do esposo amado. Não é uma visão de Deus, mas um sentimento de
presença na realidade da graça. Essa presença poderia aplacar a sede imensa do Esposo suspirado, mas, na realidade, gera um novo êxodo.
É a doce-ferida do amante e do místico de que nos falam tantas páginas amorosas da história humana, tanto por Deus como por uma pessoa humana. Gregório usa a metáfora do vinho
e do lagar na Homilia 4: no fundo, Deus é um Esposo que se transforma ao mesmo tempo na
sede que queima e no vinho que sacia. O conhecimento de Deus no espelho da alma exige a sua
purificação até chegar à semelhança de Deus perdida no pecado. É esse objetivo que estrutura
todo o caminho das obras místicas de Gregório. Na última etapa, a dos perfeitos ou maduros, se
caracteriza pela contemplação unitiva de Deus como Esposo da alma esposa.
A idéia de que a contemplação transforma na imagem do Esposo também esta em Santa Clara (2Ctln 12) como vamos ver no cap. 9 sobre a contemplação. Poderia haver alguma influência
de São Gregório de Nissa. Acreditamos que pelo menos indireta houve, pelas suas reflexões a
partir das pregações de cistercienses.
(11) No Processo de Canonização, as Irmãs recordam que Santa Clara saía da oração com o rosto transfigurado. Como Moisés quando descia do Sinai. A LSC confirma. cf ProcC 1,9; 6,3; LSC 20
61
20ª parte
6. O Esposo na Aliança Bíblica
Através dos místicos, Clara foi levada ao Cântico dos Cânticos e aos Santos Padres. Através
dos Santos Padres passou do Cântico para a Aliança e redescobriu em uma profundidade maior
o Esposo Jesus Cristo. Com o Jesus Esposo, ela “saiu do século” e foi para a plenitude: ser “com
a Virgem Maria coroada”, como tinha dito São Francisco.
Vamos dividir este capítulo em três grandes seções:
O Cântico dos Cânticos
A Aliança e os Profetas
Jesus é o Esposo
6.1 O Cântico dos Cânticos
Pelas mãos dos Santos Padres somos levados - numa leitura do Antigo Testamento à luz do
Novo - ao coração da Bíblia, em que o Cântico dos Cânticos nos fala da mais profunda união ao
Deus infinito que nos ama. Ao introduzir o seu Comentário ao Cântico dos Cânticos, Orígenes
escreveu:
“Para mim, Salomão escreveu em forma de drama este epitalâmio, isto é, um cântico de casamento, e o cantou como se fosse o de uma noiva que vai se casar e está inflamada de amor celeste
por seu esposo, que é o Verbo de Deus” (12)
Santa Clara chega a usar essa mesma expressão “inflamada de amor celeste” certamente porque conheceu o Comentário de Orígenes sobre a “chama de amor”, pelo menos através de São
Bernardo.
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Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
É surpreendente encontrar na Bíblia um livro como o Cântico dos Cânticos, com seu forte
apelo erótico. Mas é bom lembrar o que disse o rabi Aquibá (+ 135 dC), defendendo o valor e a
pureza desse livro:
“Que ninguém em Israel diga que o Cântico dos Cânticos toma as mãos impuras, pois o
mundo inteiro não é digno do dia em que o Cântico dos Cânticos foi dado a Israel”.
Na visão dos sucessivos pactos com Noé, Abraão e Moisés, e dos esponsais com o Povo, ele é
um livro central: comunica que é Deus quem toma a iniciativa de vir como esposo ao encontro
da esposa, o Povo. Vamos destacar dois pontos.
6.1.1 O amor é caminho divino do homem
Lemos nos Provérbios: “Há três coisas que me ultrapassam, e uma quarta que não compreendo: o caminho da águia no ar, o caminho da serpente na pedra, o caminho da nave no mar, o
caminho do homem na donzela” (Pr 30,18-19). O amor entre um homem e uma mulher é um
“caminho”, como caminhos são três grandes elementos naturais: o ar, a terra e a água. Então,
podemos pensar que é o quarto elemento: o fogo.
O amor humano aqui exaltado é uma porta para penetrar no amor divino. A Bíblia apresenta os traços de Deus em linguagem humana, e também descreve o homem de acordo com um
plano divino: faz uma antropologia de Deus e uma teologia do homem. Seus textos têm leituras
diversas de acordo com os alegoristas ou com os literalistas.
Para nós, a interpretação simbólica capta o melhor do que foi indicado por uns e outros,
buscando uma harmonia propriamente “simbólica”. Porque a interpretação literal (erótica ou
romântica) é incapaz de acolher o que a tradição judeu-cristã viu no sinal nupcial, por não deixar um espaço transcendente para além do amor. E interpretação espiritual peca por não levar
a sério a realidade do texto: o universo amoroso, reduzindo-o a uma moral para evitar que o
espiritual seja “manchado” pelo carnal.
6.1.2 A chama do amor. O mistério de um fogo comum
“Grava-me como um selo em teu coração. Como selo no teu braço, porque forte como a
morte é o amor, implacável como o abismo é a paixão; e seus ardores são chamas de fogo, são labaredas divinas. Nem as águas caudalosas conseguirão apagar o fogo do amor, nem as torrentes
o podem submergir” (Ct 8,6-7).
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Frei José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap
O amor humano do Cântico dos Cânticos abre-se até vir a ser o símbolo mais eloqüente para
falar de Deus. Sem deixar de ser plenamente humano, o amor adquire um valor místico que o
torna adequado para representar o amor de Deus. O Cântico dos Cânticos não quer testemunhar apenas um amor humano, mesmo com toda a sua beleza: ele evoca continuamente algo
mais além no próprio mistério do amor. O livro não enfrenta um desenvolvimento “religioso”
do tema. Apenas sugere, a não ser quando fala da “chama de Javé”.
Seria inadequada uma interpretação literal-erótica, mas os elementos corpóreos, sexuais e
sexuados do livro são importantes. O amor que brota transparente de um coração apaixonado
já é uma realidade divina. O amor sempre é limpo; não precisa de água benta. Se houver pecados serão injustiças ou abusos contra a pessoa, como pode acontecer com qualquer outra coisa
sagrada.
Se as primeiras palavras humanas da Bíblia são o canto admirado do homem diante daquela que lhe foi dada como ajuda semelhante: “Esta sim, é osso de meus ossos e carne de minha
carne”, o Cântico dos Cânticos seria uma prolongação desse mesmo êxtase amoroso, celebrado
por ele e por ela.
Nesta concelebração extasiada no jardim do amor, são convocadas também as criaturas: aqui
brilharão o sol e a lua; o amanhecer e o anoitecer trarão a luz ou o mistério; estarão presentes
os perfumes e aromas ... e tudo que pode expressar a embriaguez e a doçura do amor. Todo o
poema amoroso leva a uma expressão característica do amor esponsal: a recíproca pertença.
Diante de Javé, a amada diz: “Meu amado é meu e eu sou dele”. O Cântico é uma grandiosa e
gloriosa bênção de Deus sobre o amor humano, sobre o matrimônio, sobre a ternura. A história
de amor narrada neste livro é uma história precisamente esponsal, cercada e enriquecida de fascínio apaixonado até uma total consumação transformadora, como sugere a expressão “chama
de Javé”.
A tradição cristã que se expressa na liturgia e na exegese através dos séculos leu o Cântico
identificando a esposa com a comunidade eclesial e com cada alma cristã. O maior número de
comentários foi no séc. XII. Mas os comentaristas cristãos, quase sempre monges, nem sempre
souberam respeitar o realismo humano do Cântico. Em vez de lê-lo como símbolo, converteram-no em alegoria intelectual, que se alimenta do cadáver da imagem. Esmiuçaram quadros e
cenas, para traduzir cada detalhe a um conceito ou idéia espiritual. Não é esse o caminho.
Para entrar na espiritualidade de Santa Clara, estamos considerando que ela - como a esposa
do Cântico dos Cânticos - festejou o amor do Esposo em tudo que escreveu para Inês de Praga,
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Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
especialmente no “Hino à Pobreza”, de sua primeira carta, e no “Feliz é você”, da sua quarta Carta. E que Francisco, o seu companheiro humano da aventura esponsal, também se arrebatou no
“Cântico de Frei Sol” e no cântico “Ouvi pobrezinhas”. Mas de uma maneira toda especial nos
Salmos que criou para o Ofício da Paixão e em quase todas as suas orações. Eles entraram na
torrente dos cânticos bíblicos.
(12) Orígenes, Comentário ao Cântico dos Cânticos, I, 1.
65
21ª parte
6.2 A Aliança e os Profetas
O Deus da Bíblia sempre quis estar ligado ao seu Povo por alianças. Na primeira vez, ao
salvar a família de Noé, fez com ele um pacto de Aliança, e colocou no céu o arco-íris, como
símbolo desse pacto (cf Gn 9). Na segunda vez, fez um pacto de Aliança com Abraão e sua descendência (cf. Gn 15-22). Na terceira vez, levando o Povo para fora do Egito, concluiu com ele
mais um pacto de Aliança com Moisés no Sinai, e lhe deu as tábuas da Lei (cf. Ex 9-24). Houve
uma história antes desta grande Aliança, e também depois, como podemos acompanhar nos
profetas.
Os profetas foram mensageiros mandados por Deus ao seu Povo cada vez que a Aliança era
esquecida. Mas, no fundo, a Aliança era sempre uma mensagem de amor. Deus tinha estabelecido a Aliança por seu amor todo especial, a Hesed, que falava de ternura, compaixão, algo que
se tentou traduzir com a palavra grega Éleos ou com a palavra latina Misericórdia.
Originariamente (como nos casos de Abraão e de Moisés) a aliança tinha um aspecto jurídico: um pacto entre Javé e seu povo. Os profetas carregaram-na de afeto. A idéia de aliança dá
lugar à formação do povo da Aliança, que permite elaborar o pensamento e as instituições que
dão uma fisionomia particular à sociedade bíblica. O sentimento da presença divina caracteriza
a sociedade hebraica. E esse sentimento corresponde à aliança: Deus está com Israel. O pecado
de Israel foi ter reduzido a aliança a um privilégio diante dos outros povos, sem penetrar no conhecimento de Deus e numa existência histórica de acordo com esse conhecimento. E também
ter aproveitado a segurança desse aliança para adotar os deuses de outros povos, como Baal,
deus da fertilidade em Canaã.
Por causa dessa infidelidade apareceu o ministério profético: para inquietar um Israel esquecido e submetido a povos e divindades estranhas; admoestar um Israel inclinado à corrupção
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Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
social contra as classes mais desfavorecidas; e lutar com Deus em favor de seu povo pecador.
Por isso há um encontro dramático entre os profetas e o povo. Eles deram outra orientação à
aliança: mais que um pacto, é um dom gratuito de Deus; e está fundada mais na promessa do
que no compromisso. É, cada vez mais, uma relação de amor.
Daí nasceu a simbologia esponsal e, consequentemente, a exigência da fidelidade, uma fidelidade que podia resistir às separações que tivessem acontecido. Por isso, também foi importante
no relacionamento entre os profetas e o Povo o conceito de história, na qual se desenvolvia um
verdadeiro drama. O Deus de Israel era esposo do povo, não de sua terra: o amor que os une tem
uma história; as atenções gratuitas de Deus e o triunfo de sua misericórdia sobre a infelidade
de seu povo são temas proféticos. E a pregação profética nunca considerou a hipótese de uma
ruptura fatal, com o divórcio ou o repúdio entre Deus-Esposo e Israel-esposa. Vamos chamar a
atenção para quatro profetas principais: Oséias, Isaías, Jeremias e Ezequiel.
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22ª parte
6.2.1 Oséias
Foi profeta entre 750-725 AC. Nasceu e cresceu num dos poucos tempos de esplendor de
Israel, mas também enfrentou uma das circunstâncias mais duras. Corrupção, abusos econômicos e ambigüidades militares foram destruindo tanto o estado de direito como o relacionamento
entre o Povo e seu Deus. Por isso, Oséias foi duro contra os governantes. Mas também enfrentou
o período mais crítico da idolatria no culto a Baal.
O estabelecimento na Terra Prometida tinha levado muitos israelitas, antes pastores, a serem
agricultores. Por isso, passaram a pensar que um Deus de pastores não servia para suas atividades agrícolas e precisavam de um deus que os ajudasse a cultivar a terra. Foram passando para a
Baal e para seus cultos. Javé continuou a ser o Deus do povo, mas quem satisfazia as necessidades primárias era Baal. Era ele quem dava o pão e a água, a lã e o linho, o vinho e o azeite. Mas
Javé era ciumento e não admitia competições.
Oséias não comunicou algo revelado: sua vida se fez revelação, Deus falou no que ele viveu.
A eterna fidelidade de Deus torna-se palavra viva no drama da infidelidade sofrida por Oséias.
O profeta foi um esposo profundamente apaixonado e depois traído, que sofreu cruelmente as
infidelidades da esposa, a tortura de um coração que experimentou na escuridão as claridades
fulgurantes do amor de Deus.
À luz dessa experiência, Oséias contemplou um Deus que manifesta ternura de um esposo
cheio de carinho e, ao mesmo tempo, toda a dor de um amante enganado. É um Deus que suplica, se lamenta, exorta, ameaça, castiga, se afasta para despertar o desejo de um volta sincera.
Preocupa-se, duvida se deve castigar e sente a dor de ter tido essa dúvida, cheio de ternura e
compaixão. E no fim se acalma, prometendo uma reconciliação definitiva. Até então, Deus não
tinha falado ao homem dessa maneira.
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Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
6.2.2 Isaías
O Primeiro lsaías (1-39) faz uma denúncia da desilusão de Deus, com um ponto alto no
“Poema da vinha”. Supõe uma relação nupcial entre o Senhor e sua vinha, símbolo de Israel,
uma relação cheia de ternura, indicada pela expressão dodî (meu amado). O profeta se apresenta como o “amigo do esposo”. A ternura apaixonada de Deus por sua “plantação preferida”
se revela nessa seqüência de iniciativas de amor: “ele a escavou, preparou e plantou boas cepas;
construiu uma torre e cavou um lagar...”. Mas sofreu uma rejeição, infiel e injusta, que o profeta
amigo-do-esposo teve que registrar com amargura.
Amor e desilusão são a base desta leitura simbólico-nupcial da história de Israel e Judá diante
um Deus esposo. Quando João retoma essa imagem, há duas mudanças importantes: a) a vinha
já não é o povo, mas o Filho enviado por Deus, em quem se enxertam os homens; b) em vez de
“justiça” fala em “amor”, que engloba e radicaliza a justiça.
O Segundo Isaías (40-55) acontece numa situação diferente. Israel está desterrado na Babilônia e a palavra profética adota um tom de misericórdia. É o grande poema da volta do desterro.
Este autor anônimo do séc. VI AC define todos os matizes do amor em um tema nupcial de
finíssima lírica. Descreve Israel antes da aliança com Deus como uma mulher estéril, sem marido, sem filhos. Mas o Senhor apareceu, e foi capaz de superar todo tipo de esterilidade, capaz de
fazer da estéril uma mãe feliz. Israel precisou ampliar a tenda de sua família.
O Terceiro Isaías (55-66) se apresenta no meio da pobreza e do desânimo dos repatriados no período pós-exílio. O canto nupcial deste Isaías está no capítulo 62. Uma breve antecipação introduz o
poema da nova Jerusalém: o Senhor reveste Israel com o manto nupcial e entra com ele na cena, solene e gloriosamente: “eu me alegro com meu Deus: porque me vestiu um traje de gala e me envolveu
em um manto de triunfo, como noivo que se coroa ou noiva que se adorna com suas jóias”.
Toda esta parábola nupcial se encerra na alegria transbordante de um Deus-jovem-esposo,
que toma por esposa aquela que ele fez com suas mãos: “Como um jovem se casa com uma
donzela, assim te desposa aquele que te construiu” (Is 62,5).
A voz do esposo rompe o silêncio antes de aparecer a estrela da manhã. Jerusalém se transforma numa esposa impaciente, intensamente dedicada aos preparativos da festa. O esposo
aparece como o sol brilhante: a cidade é tomada pela luz solar e se vê como uma resplandecente
coroa de ouro. A cidade é a própria coroa que o esposo coloca na cabeça da princesa que vai
receber o “nome novo”: “Já não te chamarão ‘a Abandonada’ nem à tua terra ‘a Devastada’. Vão
te chamar ‘Minha Preferida’ e à tua terra ‘a Desposada’’’.
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Frei José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap
6.2.3 Jeremias
Também usou a simbologia esponsal. Ele nasceu em Anatot, da tribo de Benjamim, em meados do séc. VII AC. Podemos seguir seu itinerário trágico e comovente. Jeremias percorreu-o
apaixonadamente, perdido entre as saudades dos oráculos de promessa e a presença dos oráculos de ameaça que Deus lhe impôs; entre a obediência à missão divina e a solidariedade com
seu povo sofredor. Com olhos lúcidos, iluminados por Deus, tem que ir assistindo ao fracasso
sistemático de toda sua vida e atividade.
A temática esponsal como simbologia aparece nos capítulos 2-3 de seu livro. O amor de
Deus é mostrado em um solilóquio divino dentro de um grande apelo de Javé a seu povo: amor
e fidelidade são indissociáveis, e atentar contra a fidelidade é tornar sacrílego o próprio amor. O
termo hesed na linguagem bíblica é a virtude da aliança por excelência, e expressa também a atmosfera de fidelidade amorosa que vincula os namorados, como Deus não se cansa de mostrar
através de Jeremias, porque é um profeta da ameaça e do castigo, mas também da consolação e
da esperança.
6.2.4 Ezequiel
Ezequiel vivia serenamente seu casamento, e estava apaixonado por sua esposa, que chamava
de “o encanto de meus olhos”. Ela morreu de repente e a dor ajudou o profeta a entender o que
o esposo-Deus sofria diante do abandono da esposa-Israel. Israel era como uma jovenzinha selvagem e abandonada. Deus passou e, com gestos tipicamente esponsais na simbologia bíblica,
apresentou-a como resgatada e engalanada. Ela correspondeu prostituindo-se com toda espécie
de traições e abominações.
A resposta de Deus-esposo é a surpreendente novidade de quem acolhe sempre numa incansável misericórdia, sem permitir que a história acabe em traição. Diante dessa atuação amorosa
do Deus-esposo, Israel-esposa voltará e pedirá o perdão a Deus, abrindo um novo e definitivo
horizonte de amor e de fidelidade. Essa seria, em resumo, a mensagem profética em relação ao
tema que nos ocupa.
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23ª parte
6.3 A nova Aliança – Jesus é o Esposo
6.3.1 Jesus é o verdadeiro Esposo
A história da salvação chega à meta na revelação de Jesus, Palavra definitiva de Deus, que
vem recapitular o que tinha sido dito no Antigo Testamento através de tantos mediadores e
mensageiros a cada geração histórica. Na Pessoa de Jesus, Deus abraça o homem (Filho de
Deus) e o homem abraça Deus (Filho do homem). Sua natureza divino-humana apresenta-nos
uma união excepcional, porque na humanidade de Jesus realiza-se com perfeição tudo que a
humanidade histórica (povo e cada indivíduo) está chamada a viver com seu Criador. Jesus
Cristo-Deus é o Esposo que vem ao encontro da humanidade e, ao mesmo tempo, Jesus Cristo-homem é essa humanidade esponsal encontrada por seu Criador, a Cabeça de um corpo que
constitui a humanidade nova desposada com a Trindade.
Nas Bodas de Cana (Jo 2,1-11), João apresentou uma cena carregada de simbolismo esponsal, que culmina numa declaração em que está a chave simbólica de todo o relato e de sua significação cristológica esponsal: “Todo mundo serve primeiro o vinho melhor, e quando os convidados já estão um tanto bêbados, vem com o pior. Tu guardaste até agora o vinho melhor”. Em
Caná, fala-se três vezes do vinho e não se diz o nome dos noivos: o vinho estava associado na
literatura profética ao anúncio dos tempos da restauração messiânica quando Deus desposará
seu povo na fidelidade e no amor. As palavras ditas ao noivo são aplicadas a Jesus: Jesus fez seu
primeiro sinal. Tudo consiste na presença do esposo que começa a se manifestar.
6.3.2 O amigo do Esposo
O comportamento de João Batista em relação a Jesus é explicado por uma figura semítica
dos casamentos: o amigo do esposo. Sua missão era acompanhar o esposo e contribuir para o
esplendor da festa.
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Frei José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap
Por isso, o amigo “tinha que diminuir para o esposo crescer”. No contexto nupcial “crescer”
alude à bênção dada por Deus ao homem em Gn 1,28: “Crescei e multiplicai-vos”, indicando a
fecundidade da aliança definitiva inaugurada pelo Messias. João é o amigo do esposo. Com a
chegada de Jesus-Esposo, começa o tempo messiânico e se celebram as Bodas entre Deus e seu
povo.
Paulo também reivindicou um lugar de amigo do esposo: “tenho ciúmes de vós, ciúmes de
Deus, porque vos prometi a um só marido para apresentar-vos a Cristo como virgem intacta”
(2Cor 11,l-3).
6.3.3 A esposa ouve o Esposo
A alegria de escutar a voz do Esposo não foi privilégio do Batista: é parte do discipulado
cristão escutar aos pés do mestre, como no modelo rabínico. Essa é uma nota interessante da
vocação cristã contemplativa, prefigurada em Maria de Betânia, mas que tem seu ponto alto em
Maria de Nazaré. Uma longa tradição viu em Nossa Senhora o elo entre os dois Testamentos. Ela
foi muitas vezes invocada como a filha de Sião, em quem se cumpriram as profecias messiânicas
do Antigo Testamento.
Nos evangelhos de Lucas e de João, Maria inaugura e antecipa a nova Salvação. Ela seria a
Virgem, a Mãe e a Esposa. O mistério nupcial da Virgem Mãe se entende especialmente em relação com Aquele que, dentro do mistério de Deus, é a nupcialidade eterna do Pai e do Filho, e na
economia da salvação é o artífice da aliança esponsal entre Deus e se povo. Na figura da Esposa
condensa-se o dom acolhjdo pela Virgem realizado na Mãe: o céu desce para a terra e firma suas
raízes; a terra saboreia o amanhã de Deus que lhe foi dado e prometido.
Dentro da aliança esponsal protagonizada na história salvífica por Deus e seu povo, Deus e
cada pessoa humana, Maria esposa do Paráclito indica com sua própria vida o mistério nupcial
que o Espírito constrói. Podemos dizer que há uma analogia entre o que o Espírito faz em Maria
e o que faz na Trindade e na história da Igreja, e por isso a esponsalidade da Virgem prolonga
na história cristã na relação pessoal que cada crente e todo o Povo de Deus têm com o Espírito
Santo: entrega incondicional (fiat), acolhendo a Palavra, meditando-a no coração, vivendo-a
cada dia e dando-a à luz pelo testemunho da existência. Pavel Evdokimov disse que Maria, pela
força do Espírito Santo, gerou Deus na terra e o homem no céu.
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24ª parte
6.3.4 A Igreja, Esposa do Verbo
A Igreja é a “esposa” por excelência, como Jesus é o “esposo”. Maria faz parte da Igreja e, como
tal, participa dessa esponsalidade eclesial. Maria representa a parte da Igreja que conseguiu viver fielmente a vocação esponsal. O Senhor quer ver sua Igreja como Esposa bela, digna dele.
Maria é aquela subjetividade capaz de corresponder plenamente, em sua maneira feminina e
conceptiva, à subjetividade masculina de Cristo, pela graça de Deus. Ela é o espaço eclesial em
que Deus se vê correspondido esponsalmente. Mas Maria não esgota todo o Povo de Deus. É à
Igreja que corresponde o título de esposa.
O ponto messiânico mais alto coincide com o cumprimento de todas as profecias e promessas em torno à figura do Esperado, que aparece como o Esposo. O tempo cristão com referência
à comunidade messiânica - considerada biblicamente como “Esposa” - é definido como o “tempo do Esposo”.
Na carta aos Efésios (Ef 5,2l-33), o amor esponsal de Cristo gira em tomo de um texto que
costuma ser chamado de “mesa doméstica” porque tem indicações para a vida de família: os
cônjuges, os filhos, os escravos. Fiquemos com o que diz a respeito dos cônjuges: “Maridos,
amai vossas mulheres como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela, para purificá-la com o
banho da água e da palavra, e consagrá-la, para apresentar uma Igreja esplêndida, sem mancha
nem ruga ou nada semelhante, mas santa e imaculada”.
Podemos ler paralelamente 2Cor 11, em que se diferencia o período do noivado e o casamento: a comunidade de Corinto era só a “noiva” de Jesus-Esposo; o casamento estava marcado
para o dia final. É sempre um processo. Neste período, Cristo se dá à Igreja, renova sua oferta e
seu amor por ela, santifica-a com os sacramentos, dirige-a pessoalmente para que chegue a ser
sem mancha nem ruga. Cristo é o Esposo, a Igreja é a Esposa, mas a esponsalidade ainda não
73
Frei José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap
é plena. A Igreja é como a jovem que foi desposada; já está consagrada ao Esposo-Cristo, por
quem já entrou no estado jurídico de casada, mas quando for introduzida na casa do Esposo
estará definitivamente com ele, participando plenamente de sua glória divina.
Na mesma linha, podemos encontrar no Apocalipse uma descrição da relação esponsal entre
Cristo e a Igreja. O Apocalipse tem uma visão dramática e integral da história como um campo
de batalha. Nesse campo se apresenta o tempo do Messias-Esposo, que entra na história humana para encontrar e redimir a Esposa-Igreja infiel, e o tempo do Esposo é, ao mesmo tempo,
o tempo dos ciúmes de Deus em seus dois aspectos de amor colérico e salvador, sem que isso
implique volta a uma imagem de Deus mais própria do Antigo Testamento.
O Apocalipse trata disso em dois tempos: primeiro, o amor jovem e volúvel, generoso e frágil; segundo, a comunhão plena e eterna do Esposo e da Esposa.
6.3.4.1. O “amor primeiro”, entre a generosidade e a fragilidade
Cristo-Esposo está sempre presente na vida da comunidade e de cada cristão: as chamadas
cartas às sete igrejas são testemunho dessa solicitude de Cristo que conhece e acompanha sua
Igreja. Vamos ver duas dessas igrejas: a de Êfeso e a de Laodicéia.
A carta à comunidade de Éfeso começa com uma descrição elogiosa das “virtudes” conquistadas’ por esta igreja. Os cristãos de Êfeso têm um compromisso real, um amor sincero por
Jesus ressuscitado que justifica as coisas boas que estão fazendo, a ponto de enfrentar provas e
dificuldades.
Mas depois disso há uma quebra, e a comunidade corre o risco de arruinar suas luzes (será
excluída do candelabro, na comunhão das igrejas), pois esqueceu o primeiro amor. Recordam-se os ciúmes de Deus como um eco de Oséias, quando Javé também recriminava a infidelidade
da esposa, aludindo ao amor da juventude, ao período do deserto.
Mas o mensageiro de Deus propõe a volta ao primeiro amor usando três imperativos: lembra-te, converte-te, faz: três atitudes basilares da história de Israel: recordar.
Na carta à comunidade de Laodicéia há outro exemplo de como o Ressuscitado adota um
tom exortativo-ameaçador para expressar seus ciúmes esponsais pela Igreja concreta. Denuncia
apaixonadamente o que não é correspondência amorosa por parte de quem dele tinha recebido
tudo. O delito de Laodicéia não está na falta de amor, mas na tibieza de sua entrega. Essa situa74
Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
ção de indiferença merece a tremenda admoestação: porque és morno, vou te vomitar de minha
boca. Mas a “cólera divina” pertence ao estilo dos ciúmes de Javé, que é sempre misericordioso.
6.3.4.2. As núpcias últimas e definitivas
Depois de toda uma história grávida de verdade e de fragilidade na relação da Igreja com
Deus, vem o momento escatológico em que se celebrarão para sempre as Bodas de Cristo-Esposo e da Igreja-Esposa (incluindo cada pessoa). O Apocalipse apresenta duas notas sobre
essa realidade final.
Em primeiro lugar, no capítulo 19, depois de descrever a queda da Babilônia, celebra-se a
relação esponsal entre o Cordeiro e a Igreja. A Igreja deve fazer e vestir um traje especial para
o casamento. O linho puro resplandecente consiste nas “boas obras dos santos”, imagem fundamentada no conceito paulino da relação entre graça e boas obras, que lhe permite entrar na
ceia nupcial.
Em segundo lugar, há uma insistência na dimensão eclesial dessas núpcias. São núpcias com
a cidade santa, a Jerusalém nova, adornada como noiva para seu noivo. Nenhum cristão é isolado. A comunidade de pessoas, a comunhão dos santos, supõe uma partilha real da vida como
morada solidária de Deus no meio deles.
75
25ª parte
6.3.5. O ser humano existe para desposar Deus
O ser humano, esponsal por natureza, é imagem e semelhança de Deus que se revelou como
comunhão de amor e esponsalidade trinitária.
Falando de aliança, vimos que nela está a chave para entender a proposta de Deus de devolver
ao homem sua vocação original: viver em comunhão humana a partir do fiel reflexo da comunhão divina. O êxodo para a nova aliança vai ser marcado por essa pertença recíproca, afetiva e
efetiva, magnificamente expressa em: “Eu serei o vosso Deus e vós sereis o meu povo” (Ex 6,7).
Fala-se da Aliança desde o começo: Deus caminhou na direção do povo, e o povo na direção
de Deus. Deus e cada um de seus filhos foram concordando. Os gestos e as palavras, os dramas
e as esperanças, as certezas e os temores dos homens foram a ocasião para Deus entrar com suas
obras e ditos, como pudemos ver em Abraão, Moisés, Oséias, Isaías, Jeremias, Ezequiel e no
Cântico dos Cânticos.
A encarnação do Filho de Deus foi o ponto alto dessa mútua pertença, quando na Pessoa de
Jesus uniram-se Deus e o homem. A nova humanidade inaugurada com Cristo não se esgota nele,
que é a cabeça de um corpo formado por todos e cada um de nós. Deus se revelou aos poucos,
constituiu a Igreja como interlocutora esponsal, mas há dois momentos: um histórico e outro
escatológico. O primeiro é para ir amadurecendo e aumentando a pertença esponsal do homem
diante de Deus. O segundo será no fim da história como vimos em São Paulo e no Apocalipse.
Todo esse percurso termina com uma síntese: “O Espírito e a noiva dizem: Vem!” (Ap 22,17).
Aí está escrito noiva (nynfe) e não esposa. A experiência complexa que os ouvintes do Apocalipse escutaram na primeira parte do livro, aprendendo devagar o amor a Cristo, leva-os a colaborar para sua vinda na história.
76
Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
Aqui se inscrevem os três gemidos de que Paulo fala na carta aos Romanos: o gemido da
criação, o gemido de cada homem e mulher, o gemido do próprio Espírito de Deus. Geme-se
porque já se saboreia o final definitivo, mas ao mesmo tempo se tem a vivência cotidiana do
inacabado, do imperfeito, do que inda não chegou. A Igreja recebeu como noiva as primícias do
Espírito, mas aguarda o momento oportuno.
Não estamos diante de uma questão abstrata sobre Deus, mas diante de sua revelação cristológica. A pergunta foi ele quem fez: “quem dizem que eu sou? .. e vós, quem dizeis que eu sou?”.
Responder a essa pergunta reconhecendo em Jesus esse rosto esponsal de Deus foi o que ocupou
tantos cristãos nas melhores páginas místicas, nas maiores obras missionárias, nos caminhos
mais insuspeitos do seguimento do Senhor e do serviço aos irmãos em quem Ele está presente.
O encontro com Jesus no claro-escuro da história pessoal e social é o grande desafio de cada
geração. Da disponibilidade da pessoa vai depender, ao menos em parte, que esse “abismo luminoso” que é Cristo continue a ser dolorosamente abismático ou se torne um lar pessoal, cuja
contemplação nós já não possamos deixar, por mais que a luz cegue e a profundidade desassossegue. O encontro com Cristo não é uma meta à que se chega, é um caminho em que alguém
se coloca.
Desse encontro com Cristo Esposo, contemplado e testemunhado por cada geração, fala-nos
a história da Igreja em todos seus lances vocacionais dos diferentes caminhos em diferentes
carismas. Na história da Igreja podemos ouvir o contínuo convite do Espírito à Noiva: Vem!
Os que corresponderam a esse chamado geraram uma vida, uma espiritualidade e uma cultura
(arte, literatura, música ... ) que se integram no horizonte esponsal da auto-revelação de Deus.
Ainda vamos continuar nossas reflexões, mas eu proponho desde já que olhemos para Clara
de Assis como uma mulher que - seguindo os passos de Maria - assumiu ser a Esposa mãe e
virgem e até mesmo a Esposa Igreja por sua intercessão pela cidade de Assis e pela consciência
de ser “auxiliar do próprio Deus, sustentáculo dos membros vacilantes do seu corpo inefável”
(3Ctln 8), integrada “à Igreja triunfante e mesmo à militante”(TestC 75). É aguda a perspectiva de Francisco que, no cântico “Ouvi pobrezinhas!” viu Clara e suas Irmãs “no céu coroadas
como a Virgem Maria”. Vestida de sol, com a coroa das doze estrelas das tribos do Povo e com
a lua debaixo dos pés.
77
26ª parte
6.3.5. Clara saiu para estar com Ele
Santa Clara não saiu de casa para ir a algum lugar determinado: ela saiu para estar com o Esposo. Na noite de um Domingo de Ramos, abandonou sua casa. Na Porciúncula, foi consagrada
pelo corte dos cabelos. Nem dormiu lá: esteve uma semana em um mosteiro de beneditinas. Mas
também não ficou lá. Esteve uns poucos meses em Santo Ângelo de Panço com um grupo de leigas, que também estavam na busca de Deus. Passou o resto da vida - quarenta anos - em São Damião. Mas nunca achou que fosse lá a sua morada permanente. Era “peregrina e forasteira”. Queria
apenas estar com o Esposo, onde Ele estivesse, enquanto Ele estivesse. Mais tarde, ela escreveria:
“As Irmãs não se apropriem de nada, nem casa, nem lugar, nem coisa alguma. E como peregrinas e forasteiras neste mundo, servindo ao Senhor na pobreza e na humildade ... (RSC 8,1-2).
Quando São Francisco foi levado para o meio dos leprosos e teve a experiência de “usar de
misericórdia” com eles, disse que, depois, se demorou pouco e “saiu do século”. Encontrar-se
com Deus, viver a misericórdia, que é a Hesed hahamin (o Amor que é próprio de Deus, na
Bíblia), levou-o a “sair do século”. Que quer dizer isso?
Para nós, hoje, a palavra século significa um período de cem anos. Na língua latina saeculum
referia-se ao tempo que os gregos chamavam de Crónos = o tempo que pode ser medido. Nossos cronômetros e cronologias marcam as horas, os dias, as semanas, os meses, os anos ... A ele
se opunha a palavra grega Aión, com uma versão latina que era Aevum, um tempo que não se
mede, sem começo nem fim. Em grego, a palavra Aión é parente de Aéi, o Sempre.
Quando São Francisco disse que “saiu do século” quis significar que a experiência de Deus o
levara a sair do tempo dos homens e passar para o tempo de Deus. Sair do tempo cronológico
e passar para o Sempre.
78
Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
É interessante que os anacoretas e monges antigos tinham cunhado a expressão “fuga do
mundo”, para expressar sua entrada na vida religiosa. São Francisco - em um novo estilo de vida
religiosa -, não fugiu do mundo dos homens para uma abadia em algum lugar afastado, nem
para uma ermida: ele ficou em Assis. Mas ficou em Assis de outro jeito: já não era mais um homem movido pelos sonhos dos seus contemporâneos e concidadãos: queria ser um “peregrino
e forasteiro”, um cidadão do céu. Não tinha nesta terra morada permanente; sua casa era a Jerusalém do alto, a definitiva. Ele era um homem que vivia a comunhão com o Deus Esposo e que
queria fazê-lo presente no mundo que não permanece, que passa.
Mas ele não podia sair do tempo dos homens sem sair do lugar dos homens. Ficou em Assis e
na Itália do século XIII, mas, na realidade, era m homem do “não-tempo” e do “não-lugar”, quer
dizer: do tempo e do lugar de Deus. E aprendeu a viver outro tipo de tempo, que a Bíblia ensina
e que era conhecido na cultura grega: o Kairós. Diferentemente do Crónos, “que vai contando o
tempo que passa, o Kairós é aquele tempo fugidio, que passa em um momento e não permanece; é um encontro oportuno e único ntre o tempo de Deus e o tempo dos homens.
Santo Tomás More, um franciscano secular, deve ter entendido isso - quando criou a palavra
Utopia. Formada com o grego “u” (= não) e “topos” (= lugar) é uma palavra que quer dizer exatamente “não-lugar”. Quem escobre Deus vê que não tem lugar no “mundo dos homens”, tendo
sido enviado como Jesus e com Jesus para estar nesse lugar. Descobre-se em um não-lugar. Para
sermos completos, descobre-se também no tempo de Deus ou, diante das outras pessoas, em
um “não-tempo”. Não está mais no lugar no tempo em que os homens que se esqueceram de
Deus estão construindo o seu próprio mundo.
Tomás More não era um alienado. A Utopia, nome do livro que ele escreveu - e uma palavra
tão usada até hoje - não era algo impossível, como muita gente parece pensar: Era um sonho
possível: ele deu o nome de Utopia a um país longínquo, para mostrar que a Inglaterra do seu
tempo, cheia de problemas, podia ser reconstruída com princípios diferentes. E quem estuda o
livro Utopia e conhece melhor Tomás More percebe como ele se apoiou no “saí do século” de
São Francisco.
A santidade sempre comporta uma “fuga mundi” mesmo quando o individuo - por ter desposado Deus em Jesus Cristo - não sai do meio das outras pessoas, como aconteceu com Francisco de Assis. Mas também os que entraram no “não-lugar” e no “não-tempo” abriram o espaço
interior para Deus, acolheram o Deus que é Liberdade e que é Amor, começaram a enxergar o
mundo com os olhos de Deus e, como Jesus Cristo, são enviados de novo ao mundo de todos
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Frei José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap
os homens e mulheres. Não para se identificarem com ele: para o transformarem. “Estão no
mundo sem ser do mundo”.
Talvez seja mais compreensível, hoje, não falar em “fuga”, mas em mudança de perspectiva.
No “lugar”, amar é possuir ou é responder a uma necessidade; no “não-lugar” ama-se a partir
de Deus, depois de ter acolhido Deus no espaço interior. Aliás, o “não-lugar” é o jeito de criar o
“espaço de Deus dentro do coração”. É uma outra perspectiva para o amor. A pessoa é acolhida
como parte da presença de Deus e recebe o nosso amor no mesmo ato em que estamos amando
a Deus. Para um amor verdadeiro, é preciso estar no “não-lugar” e no “não-tempo” de Deus.
Quando conheceu Jesus Cristo através de São Francisco, Clara teve consciência nítida de que
não tinha mesmo lugar no mundo de seus parentes e de sua cidade. Digo consciência nítida,
porque ela já conhecia Jesus Cristo numa intimidade muito grande e, desde criança, já estava
dando demonstrações de que era uma pessoa “diferente”. Na medida em que foi passando para
Jesus Cristo, foi ficando em um “não-lugar”. Sim, porque não se tratava simplesmente de mudar
de lugar: todos os lugares conhecidos eram “lugares dos homens”, não eram o “lugar de Deus”.
Havia até presença de Deus no mundo dos homens, mas o “lugar de Deus” parecia mesmo ser
outra coisa.
A saída da casa paterna teve para Clara um alto valor simbólico: foi o momento em que deixou o lugar que não era dela e começou a viver de fato no “não-lugar” de Deus. São Paulo das
Abadessas, Santo Ângelo de Panço, São Damião ... nenhum desses lugares era importante em si
mesmo. Eles eram apenas tentativas de mostrar para Deus, para si mesma e para todas as pessoas que ela estava saindo do lugar de todo mundo. Nem o mosteiro e nem mesmo o grupo de
Irmãs foram para ela um “lugar” em que podia estar no mundo. Foram o “não-lugar” de Deus.
O que não a impediu, pelo contrário, levou-a a ser uma amiga da sua cidade.
O “não-lugar” dela não foi exatamente São Damião, mas o mundo da contemplação de Jesus
Cristo. São Damião, como as outras casas das Irmãs Pobres era um abrigo simbólico, como já
tinha sido o deserto para os eremitas, como já tinha sido o mosteiro para os monges. A única
coisa importante era que, ao atravessar a porta daquela casa, uma mulher vivia o sacramento de
estar saindo de todos os lugares para entrar no “não-lugar” de Deus. É provável que Francisco,
que também se sentira “sem-lugar” quando se desvaneceram seus sonhos de riqueza e glória
e quando conVlveu com os leprosos, também tenha tido a primeira experiência concreta de
“entrar” no não-lugar de Deus ao passar a porta de São Damião e dar de cara com aquele Crucificado.
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27ª parte
7.2. Uma situação liminar
Já ouvimos, muitas vezes, falar de “ritos de passagem”. São as celebrações que se fazem, por
exemplo: para comemorar os quinze anos de uma garota, a coroação de um rei ... Chá de cozinha e despedida de solteiro são ritos de passagem. Qualquer festa de aniversário é um rito de
passagem. São comemorações em que festejamos uma mudança de situação na vida de uma
pessoa.
Ora, por trás de todo rito de passagem, há uma situação liminar. Vale a pena refletir sobre
isso. E vai nos ajudar a pensar no que seja um “não-lugar”, ou um “não-tempo”.
“Liminar” é um adjetivo da palavra limiar. Limiar é aquela linha que separa o fora do dentro
nas portas. E nós vivemos passando por portas.
Considere uma casa, com a sua porta: nós podemos estar dentro da casa, fora da casa, ou
passando pela porta. Podemos ficar lá dentro, podemos ficar lá fora. Mas porta não é lugar de
ficar, é lugar de passar.
Vamos pensar em um exemplo: o casamento. A pessoa pode estar fora e ser solteira; pode
estar dentro e ser casada. Também pode estar na linha da porta: é noiva. Ser solteira ou casada
são situações permanentes; ser noiva é uma situação transitória, liminar.
Outro exemplo: uma jovem quis ser religiosa e foi acolhida no “noviciado”. A família pode
até dizer: “Minha filha ficou freira”, mas as religiosas vão dizer: “Não, ela só vai ser freira quando
professar no fim do noviciado”. De fato, ela não é mais uma pessoa “leiga” e ainda não é uma
pessoa consagrada, “religiosa”. De certa forma, é uma pessoa “pendurada no ar”. Está em uma
situação liminar.
81
Frei José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap
Clara, como Francisco, teve uma compreensão bem aguda dessa situação. Foi por isso que
os dois citaram a expressão de São Pedro: “peregrinos e forasteiros”. Eles não tinham nesta terra
sua habitação permanente: eram cidadãos do céu, mesmo que ainda não houvessem chegado lá.
Nos ritos mais significativos de passagem costuma-se usar roupas especiais: roupa de noiva,
roupa de rei, roupa de bispo. Servem para simbolizar o seguinte: na situação liminar, a pessoa
despe a roupa da vida anterior, do lado de fora, para vestir a roupa da vida nova, do lado de dentro. Há um momento em que é extremamente frágil, porque está sem nenhuma roupa. É uma
situação de extrema pobreza, representada pela nudez.
Quem está no não-lugar, deixou de estar no lugar dos homens e ainda não se situou totalmente no lugar de Deus. É um “peregrino e forasteiro”, caminha por este mundo “sem bolsa
nem calçado” ... suspira por chegar à sua casa definitiva, mas tem que se soltar totalmente nas
mãos de Deus.
7.3. Companhia no “Não-lugar”
Clara teve companheiras porque “Deus lhe deu Irmãs” como tinha feito com Francisco. Aliás, uma das primeiras revelações do não-lugar simbolizado em São Damião fora justamente
essa: Deus queria encher aquele “não-lugar” de mulheres que renovariam a Igreja e o mundo.
Outras mulheres também quiseram estar com Jesus Cristo mesmo perdendo o seu lugar neste
mundo.
É verdade que, com o tempo, também entraram pessoas que simplesmente queriam estar ao
abrigo de um mundo que lhes parecia difícil ou hostil, sem nunca vir a ter consciência de que o
importante era sair para o “não- lugar”.
Clara lutou com todas as forças para manter-se no não-lugar de Deus. Por isso, com ajuda
de Francisco, criou um eremitério ou espaço de recolhimento em São Damião. Quando lhe deu
uma “forma de vida” - que, aliás, foi crescendo com a experiência - quis deixar concreto como
é que se vivia no “não-lugar”. Creio que é nessa perspectiva que devemos entender tudo que ela
escreveu. Era a perspectiva da “Forma de Vida” dada por Francisco em 1212, tão igual a sua
“Antífona de Nossa Senhora”: o lugar deles era a Trindade, o tempo deles era a Trindade (13).
Creio que o cardeal Hugolino pode ser considerado um amigo apesar de também ter sido um
dos que não conseguiram entender o “não-lugar” de Deus, mesmo compreendendo muitas das
propostas de Francisco e Clara. Talvez tenha até querido ajudar sinceramente quando protegeu
82
Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
o seu “não-lugar” com uma clausura no estilo que ele entendia. Era o que cabia em sua cabeça
de homem do mundo (o mundo eclesiástico, inserido no mundo social e político dos homens,
era decididamente um lugar dos homens).
(13) Nos escritos de Clara podemos perceber como ela foi vivendo cada vez mais no não-lugar e no não tempo de Deus. Para
dar um exemplo, estou colocando algumas citações de Clara no fim deste capitulo. Faço isso para que a reflexào sobre o nosso
tema possa ser ágil.
83
28ª parte
7.4. Orar no “Não-lugar”
Viver a contemplação de Jesus é viver sem cessar no não-lugar. Mas as pessoas que olham
com olhos materiais entendem a contemplação como mais um tipo de oração (ou de reza):
como espaços de tempo ou de lugar destinados à oração. Tentam determinar e cercar esses espaços porque não vêem outro jeito de distinguir o “não-lugar” do “lugar”.
Mas a pessoa que sai para o “não-lugar” está apenas saindo para Deus. Deixa o “século” como
um lugar do mundo construído pelos homens que não têm lugar para Deus. Mas não vai para
outro planeta. Por isso, mesmo vivendo no mundo de Deus (o “não-lugar”), continua a estar no
mundo dos homens que perderam a liberdade (por não estar caminhando decididamente para
Deus), ainda que nunca o considere esse o “seu lugar”.
Enxergar com os “olhos do espírito” é ver as coisas a partir do “não-lugar” deste mundo ou,
em outras palavras, a partir do lugar de Deus. Foi nessa perspectiva de um “não-lugar” para as
outras pessoas, mas de um verdadeiro “lugar” de Deus, que Francisco enxergou diferentemente
os sarracenos, os pobres, os ladrões, o lobo de Gúbio.
Vamos ver alguns exemplos de como, mesmo sem tomar Deus em consideração, muitas vezes nós nos sentimos fora do lugar. Quando chegamos um país estrangeiro, olhamos tudo com
um olhar diferente, enxergamos de uma forma que não é a das pessoas que já nasceram e sempre viveram lá: tudo nos parece estranho, mas os outros nem desconfiam que no meio deles está
alguém que vê tudo diferente. Não sou dali, aquele não é o meu lugar. Estou em um “não-lugar”.
Outro exemplo acontece quando nos vemos em um ambiente de trabalho ou de vida que nos faz
sentir como “um peixe fora da água”. Naturalmente, esses exemplos são pálidas alusões: estar no
não lugar de Deus é incomparável.
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Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
Francisco e Clara usam a expressão “peregrinos e forasteiros” (cf 1Pd 2,11) justamente para
falar no “não-lugar”. Por isso não se deve estranhar que Clara, que nunca saiu de São Damião,
também se considere uma “peregrina e forasteira”: ela é do lugar de Deus e por isso está sempre
no “não-lugar” enquanto vive no mundo dos homens.
O aspecto fundamental da itinerância - um ponto chave da espiritualidade franciscana - não
é exatamente ficar mudando de lugar, mas viver em qualquer lugar sabendo que lugar nenhum
é o meu, porque o meu lugar é o lugar de Deus.
Talvez se possa pensar alguma coisa semelhante quanto aos tempos de oração. Não é questão de eu ter um tempo cortado do tempo dos homens para me entregar a Deus, ainda que isso
possa constituir um bom “exercício”. O contemplativo é uma pessoa que vive sempre “no tempo
de Deus”, de alguma forma vive o “aion” (o eterno, o tempo não medido) no meio do “crónos” (o
tempo humano, que pode ser calculado). Talvez seja justamente por isso que consegue perceber
alguns “kairói” especiais: momentos em que o tempo de Deus e o tempo dos homens coincidem
e em que, por isso mesmo, a gente consegue fazer passagens do mundo de Deus para o dos homens.
A Eucaristia é o grande kairós do tempo de Deus no tempo dos homens. Evidentemente, só
para quem vive o tempo de Deus e está fora do tempo dos homens, pelo menos de certa forma.
Essa “certa forma” quer dizer: Estou dentro do “tempo dos homens” porque nasci neste mundo e nele vou permanecer enquanto não chegar a minha morte. Também estou dentro do tempo
dos homens porque convivo com eles e tento trazê-los para o tempo de Deus. Mas, enquanto a
maioria vive o curto tempo que passa, eu já estou vivendo o eterno. Recordemos São João:
Não ameis o mundo nem o que há no mundo. Se alguém ama o mundo, o amor do Pai não
está nele. Pois tudo o que há no mundo - a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos
e o estilo de vida orgulhoso - não vem do Pai, mas sim do mundo. Ora, o mundo passa e também concupiscências, mas quem faz a vontade de Deus permanece para sempre (1Jo 2,15-17). E
este é o testemunho: Deus deu-nos a vida eterna, e esta vida está no seu Filho. Quem tem o Filho
de Deus tem a vida; quem não tem o Filho também não tem a vida (1Jo 5,11-12).
85
29ª parte
7.5. O Reino do “Não-Lugar”
Quando veio anunciar o seu Reino, Jesus quis estabelecer dentro do lugar e do tempo dos
homens uma situação nova em que todos pudéssemos ir aprendendo a viver o lugar e o tempo
de Deus. Ao pé da letra, uma “igreja” (do grego ekklesía = conjunto dos convocados para uma
assembléia) seria um grupo de pessoas que aceitaram o convite de Jesus e passaram a constituir
um lugar de Deus no meio dos homens. Os homens de fora podem não entender isso, mas as
pessoas que estão dentro só podem ser consideradas “chamadas” (de kaléo) se tiverem a consciência de viver em um “não-lugar” no meio do mundo. Construir o “Reino de Deus é isso”.
E Jesus advertiu que o Reino de Deus está entre nós ou dentro de nós, sem se apresentar com
fanfarras.
Nessa perspectiva, como poderemos falar em “não-lugar” de Deus, em “não-tempo” de
Deus? Parece que os que nunca conseguiram entender nada disso só podem falar em aspectos
pequenos, como “clausura”, “tempos fortes de oração” ou “horas de contemplação”. E não vão
ser as nossas explicações que vão poder deixar essas coisas claras, porque isso não depende de
compreensão, depende da graça.
Francisco e Clara se tomaram outros Cristos justamente por isso: entraram no “não-lugar”
e no “não tempo” de Jesus Cristo. Para quem está no não-lugar e no não-tempo de Jesus Cristo,
que valor têm as conquistas, as riquezas, as vantagens do mundo dos homens? São como areia,
são menos do que pó. Eles gostavam de lembrar isso.
Os contemplativos não são pessoas que fogem do mundo. Verdadeiros “contemplativos”,
quer vivam em mosteiros ‘quer estejam no meio do mundo, são pessoas do “não-lugar” e do
“não-tempo” que nos fazem viver desde já a eternidade e a liberdade de Deus.
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Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
7.6 Onde eu me encontro com a pessoa de Jesus
Na sua segunda Carta a Inês de Praga, Santa Clara a exorta a não perder de vista o seu ponto
de partida: ela tinha deixado tudo para seguir Jesus Cristo e, por isso mesmo, devia abraçar o
Cristo pobre como uma virgem pobre. O texto é muito bonito e diz:
“Lembre-se da sua decisão como uma segunda Raquel: não perca de vista seu ponto de partida, conserve o que você tem, faça o que está fazendo e não o deixe (cf Ct 3,4), mas, em rápida corrida, com passo ligeiro e pé seguro, de modo que seus passos nem recolham a poeira,
confiante e alegre, avance com cuidado pelo caminho da bem-aventurança ... Se alguém lhe
disser outra coisa, ou sugerir algo diferente, que impeça a sua perfeição ou parecer contrário ao
chamado de Deus, mesmo que mereça sua veneração, não siga o seu conselho. Abrace o Cristo
pobre como uma virgem pobre” (2Ctln 11-13,17-18)
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30ª parte
8. As Irmãs-Esposas
Quando escreveu a primeira Legenda de São Francisco, Tomás de Celano destacou entre
as qualidades das “Senhoras Pobres” de São Damião o fato de viverem todas como esposas de
Jesus:
“ ... Em terceiro lugar, o lírio da virgindade e da pureza perfuma-as todas, a ponto de esquecerem os pensamentos terrenos e desejarem apenas meditar nos celestiais. Essa fragrância
acende em seus corações tão grande amor pelo Esposo eterno, que a plenitude desse sagrado
afeto apaga toda lembrança da vida passada ... “ (1Cel 19).
O Papa Inocêncio também as via como Esposas de Jesus (14), porque escreveu no seu Privilégio da Pobreza o seguinte:
“Como é manifesto, desejando ardentemente dedicar-vos unicamente ao Senhor, abdicastes
ao desejo das coisas temporais; por isso, tendo vendido e distribuído tudo aos pobres, proponde-vos a não ter absolutamente nenhuma propriedade, aderindo totalmente aos vestígios daquele que por nós se fez pobre, caminho, verdade e vida; e desse propósito não as faz fugir nem
a privação das coisas; pois a esquerda do esposo celeste está sob a vossa cabeça para sustentar a
fraqueza de vosso corpo, que submetestes à lei do espírito em caridade perfeita. Afinal, aquele
que dá de comer às aves do céu e veste os lírios do campo não vos há de faltar tanto para a alimentação como para a roupa, até que, passando, não vos venha servir na eternidade, quando
sua destra vos abraçará mais felizmente na plenitude de sua visão” (PrivIn 2-3).
Gregório IX, ao conceder o seu Privilégio da Pobreza insistiu na mesma alusão ao Cântico
dos Cânticos:
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Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
“Naturalmente, aquele que alimenta os passarinhos do céu e veste os lírios do campo
não vos faltará para o alimento e a a roupa, até que Ele mesmo, passando, vos sirva na
eternidade, quando sua destra vos abraçará mais felizmente na plenitude da Visão” (PrivH 1).
Depois da morte de Santa Clara, também o ministro geral São Boaventura, escrevendo às
Clarissas, viu-as como Esposas de Jesus:
“Vigiai de tal maneira, com afetos incessantes, fervorosas no espírito da devoção, que, quando se ouvir o clamor e chegar o Esposo, possais ir fielmente ao seu encontro com as lâmpadas
cheias do óleo do amor e da alegria, prontas para entrar com ele nas bodas da felicidade eterna,
com exclusão das virgens loucas. Lá Cristo vai acomodar suas esposas com os anjos e os eleitos,
e passará para servir-lhes o pão da vida, a carne do Cordeiro imolado, o peixe assado na cruz,
cozido no fogo do amor em que vos amou fervorosamente” (BoCc 5).
Aliás, é notável o Doutor da Igreja dizer que Jesus vai servir às suas sposas “o peixe assado na
cruz”, numa evidente alusão à lenda do Rei Pescador, que faz parte do ciclo do Santo Graal. Mas
foi São Francisco quem explicou, de maneira bem original e no que para ele era o cerne da vida
franciscana, o que é sermos esposos:
“Somos esposos, quando pelo Espírito Santo une-se a alma fiel a nosso Senhor Jesus Cristo”
(1CtFi 8).
E é a essa luz que devemos entender a Forma de Vida que ele deu a Clara e suas Irmãs logo
que elas entraram na Ordem:
“Desde que por inspiração divina vos fizestes filhas e servas do Altíssimo Sumo Rei Pai celeste e desposastes o Espírito Santo, optando por uma vida de acordo com a perfeição do santo
Evangelho, eu quero e prometo, por mim mesmo e por meus frades, ter por vós o mesmo cuidado diligente e uma solicitude especial, como por eles” (RSC 6,4-6).
O fato de as damianitas viverem como esposas de Cristo é mais significativo do que pode
parecer a uma primeira vista. O amor de Clara pelo Cristo Esposo levou-a a criar um «grupo de
virgens” (collegium virginum, dizem as Fontes) original em comparação com outros mosteiros.
Elas eram irmãs de uma maneira nova. Por isso, e por serem franciscanas e pobres, elas sempre
relutaram em aceitar as Regras religiosas de Hugolino e de Inocêncio IV, ainda que - depois da
morte de Clara - a maior parte dos mosteiros tivesse por fim aceitado a de Alexandre IV até o
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Frei José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap
século xx. Depois de muitos esforços e de algumas pequenas vitórias, chegaram a abraçar, em
nosso tempo, a Regra de Santa Clara.
Vamos desenvolver três pontos sobre as Irmãs-Esposas: a) Como é sua vida entre irmãs; b)
Qual a sua contribuição para a Igreja; e c) sentido especial de sua clausura.
(14) Chamo a atenção para um fato importante, que não poderei tratar melhor aqui por
falta de espaço para comparar os textos: De maneira geral, os papas e alguns outros escritores
parecem entender que as Irmãs eram “noivas” de Jesus, que só passariam a ser “esposas” na vida
eterna. Ao contrário, Clara parece falar sempre de esposas já neste mundo. Observo que a palavra latina “sponsa”, que deu a nossa palavra “esposa” = a mulher casada, em latim significava
apenas a “comprometida”, ou a noiva. A mulher casada era chamada “uxor” pelos romanos. Era
a “ungidora”, que no cerimônia do casamento ungia a soleira da porta da casa onde seria sacerdotisa. Dessa palavra só sobrou em português a palavra ‘’uxoricídío’’, o crime de quem mata
a esposa. Em grego, noiva é clarnmente “nynfe”, enquanto esposa podia ser “gyné” (mulher) a
companheira do “anér” (varão), ou “ákoítis”, a companheirn do “akóites”. Essas duas últimas
palavras lembram os que dormiam juntos na “kóite”, a cama.
90
31ª parte
8.1 A vida das clarissas como Irmãs
Creio que podemos aplicar a todas as Senhoras Pobres - as “Damianitas”, ou as mulheres
franciscanas do tempo da Santa - tudo que ela escreveu para Inês de Praga. Parece claro que ela
tenha procurado formar essa irmã longínqua no mesmo espírito que transmitia habitualmente
às que moravam com ela. Então vamos ver nas Cartas a Inês alguns pontos que podemos identificar na formação das Irmãs-Esposas de São Damião e de outros mosteiros:
1) As clarissas são irmãs porque são Esposas;
2) Elas refletem umas para as outras o Cristo Espelho;
3) A Forma de Vida de Santa Clara é para esposas que são irmãs.
8.1.1 As clarissas são Irmãs porque são Esposas
“Portanto, irmã caríssima, ou melhor, senhora muito digna de veneração, porque sois esposa, mãe e irmã do meu Senhor Jesus Cristo, destacada pelo esplendor do estandarte da
inviolável virgindade e da santíssima pobreza, ficai firme no santo serviço do pobre Crucificado, ao qual vos dedicastes com amor ardente” (lCtln 12-13) ... e merecestes ser chamada, com
quase toda dignidade, de irmã, esposa e mãe do Filho do Pai altíssimo e da gloriosa Virgem”
(1Ctln 24).
Esses três relacionamentos são os mesmos apontados por São Francisco na Carta a todos os
Fiéis quando fala da relação do fiel cristão com a Santíssima Trindade:
“E são esposos, irmãos e mães de nosso Senhor Jesus Cristo. Somos esposos, quando pelo
Espírito Santo une-se a alma fiel a Jesus Cristo. Somos certamente irmãos, quando fazemos a
vontade de seu Pai, que está no céu; mães, quando o levamos no coração e em nosso corpo pelo
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Frei José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap
amor e a consciência pura e sincera; e o damos à luz pela santa operação, que deve iluminar os
outros com o exemplo” (1CtFi 7-10).
Mesmo que Santa Clara tenha aprendido isso com Francisco, soube fazer suas essas palavras
e as aplicou de diversas formas no trato com as Irmãs, na sua sensibilidade materna para com
elas, dando um sentido maior ao ofício de abadessa, a partir dessa identidade esponsal que se
sente no testemunho de seus Escritos.
Quando diz que Inês é mãe e irmã do Senhor Jesus, é evidente que está recordando a passagem do evangelho em que Jesus disse que eram “meu irmão, minha irmã e minha mãe ... os que
põem em prática a palavra de Deus” (Mt 12,50). Mas quando consideramos as três atribuições
juntas não podemos deixar de pensar na “Forma de Vida” que Francisco tinha dado a Clara e a
suas irmãs, onde realça o relacionamento delas com cada Pessoa da Trindade.
Vejamos os principais textos nas Cartas de Santa Clara:
“Vossa recompensa será enorme nos céus, e merecestes ser chamada, com quase toda a dignidade, de irmã, esposa e mãe do Filho do Pai Altíssimo e da gloriosa Virgem” (1Ctln 23-24).
“Clara, humílima e indigna servidora de Cristo e serva das senhoras pobres, à reverendíssima senhora em Cristo, sua irmã Inês, a mais amável de todos os mortais, irmã do ilustre rei da
Boêmia e, agora, irmã e esposa do sumo Rei dos céus” (3Ctln 1-2).
“À outra metade da minha alma, singular sacrário do meu cordial amor, à ilustre rainha,
esposa do Cordeiro, Rei eterno, dona Inês, minha caríssima mãe e filha, especial entre todas as
outras, eu, Clara, serva indigna de Cristo e inútil servidora das suas servas que vivem no mosteiro de São Damião em Assis, desejo saúde e que possa cantar o cântico novo diante do trono
de Deus e do Cordeiro, juntamente com as outras santas virgens, e seguir o Cordeiro onde quer
que ele vá” (4Ctln 1-3).
A Legenda de Santa Clara e o Processo de Canonização apresentam inúmeros exemplos de
como Clara cuidava de suas Irmãs. E a Bula de Canonização diz que ela fazia isso justamente
por ser esposa do Senhor:
“Alegre-se, então, a Mãe Igreja, que gerou e educou essa filha que, como progenitora fecunda
de virtudes, produziu com seus ‘exemplos muitas discípulas da religião, formando-as para o
serviço perfeito de Cristo com perfeição. Alegre-se também a alegre multidão dos fiéis, porque
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Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
o Rei e Senhor dos céus levou com glória para o seu alto e preclaro palácio a sua irmã e companheira, que Ele havia escolhido como esposa. Porque também as fileiras dos santos estão festejando juntas, pois, em suas habitações celestes, celebram-se as núpcias da noiva real” (cr. Fontes
Clarianas pâg. 276).
Clara é mãe como filha da Igreja; sua maternidade é imagem da Mãe IgreJa, que é fecunda,
nutre e protege, guia e ensina. É irmã para todos os crentes, companheira na vocação comum,
companheira de viagem e apoio.
Assim se indica a idéia da comunidade, da “solidariedade” e da suplência. É esposa do Senhor e, por isso, motivo de alegria, sinal irradiante de esperança para a humanidade.
Pela “Forma de Vida” de São Francisco, todas as Irmãs decidiram ser esposas do Espírito
Santo. E todas são filhas do Pai Eterno. Portanto, irmãs. Se não fosse pelas Irmãs, “que Deus lhe
deu”, Clara poderia ter sido uma eremita, mesmo em São Damião. Se não fosse pelas Irmãs, não
seria necessária uma Forma de Vida original em tantos pontos.
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32ª parte
8.1.2. Elas refletem umas para as outras o Cristo Esposo e Espelho
A vida em São Damião supunha um testemunho mútuo das Irmãs que viviam ali dentro, um
testemunho que inflamasse umas às outras e a todos que pudessem conhecê-las:
“Pois o próprio Senhor colocou-nos não só como modelo, exemplo e espelho para os outros,
mas também para nossas irmãs, que ele vai chamar para a nossa vocação, para que também elas
sejam espelho e exemplo para os que vivem no mundo. Portanto, se o Senhor nos chamou as
coisas tão elevadas que em nós possam espelhar-se as que deverão ser exemplo e espelho para
os outros” (TestC 19-21).
Elas deviam ser um “espetáculo da santidade”. De fato, ser espelho é uma expressão freqüente
na literatura mística da Idade Média, como podemos encontrar em São Bernardo, Guilherme
de Saint- Thierry e nas místicas da “Brautmystik”. Nas Cartas e no Testamento de Santa Clara,
as ocorrências são muitas. E, sempre, o espelho é Jesus:
“Ponha a mente no espelho da eternidade, coloque a alma no esplendor da glória” (3CtIn 12).
“Pois é o esplendor da glória eterna, o brilho da luz perpétua e o espelho sem mancha. “Olhe
dentro desse espelho todos os dias, ó rainha, esposa de Jesus Cristo, e espelhe nele, sem cessar,
o seu rosto” (4CtIn 14-15).
“Pois nesse espelho resplandecem a bem-aventurada pobreza, a santa humildade e a
inefável caridade, como, nele inteiro, você vai poder contemplar ... Preste a atenção no
princípio do espelho: a pobreza daquele que, envolto em panos, foi colocado no presépio”.
(4CtIn 18-19).
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Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
“No meio do espelho, considere a humildade, ou, pelo menos, a bem-aventurada pobreza, as
fadigas sem conta e as penas que suportou pela redenção do gênero humano” (4CtIn 22).
“E, no fim desse mesmo espelho, contemple a caridade inefável com que quis padecer no
lenho da cruz e nela morrer a morte mais vergonhosa; assim, posto na árvore da cruz, o próprio
espelho advertia quem passava para o que deviam considerar” (4CtIn 23-24).
Podemos perguntar-nos: por que usavam tantas vezes a simbologia do espelho? Parece que
era sempre para indicar algo profundo, que expressava alguma coisa além da realidade palpável. Era um sinal eficaz como um sacramento: tornava alguém presente melhor do que em uma
fotografia: Cristo, Francisco, as Irmãs: todos eram sacramentos vivos em que Clara se espelhava
ou para quem era espelho. E, corno o espelho reflete, mostra não só a figura de outra pessoa,
mas também a minha, abre-nos para uma infinita multiplicação da presença de Deus. E podemos encontrar em todos os espelhos o rosto do Esposo, de Cristo. E nele nos reconhece. Dando-nos conta de tudo que é semelhante, e de tudo que está precisando ser transformado.
8.1.3. A “Forma de Vida” é para Esposas que são Irmãs
Hugolino e Inocêncio IV deram a Clara e suas Irmãs urna “Forma de Vida” que era uma regra jurídica para “monjas”. As damianitas - e, certamente, a sua fundadora - nunca as aceitaram
de boa vontade. A “Forma de Vida” de Santa Clara é muito diferente dessas regras e da posterior
que foi imposta por Alexandre IV: ela faz uma proposta de vida a irmãs muito amadas que se
descobriam e se encontravam no amor do único Esposo. Por sua experiência esponsal, Clara
enxergava e criava na sua fraternidade de São Damião as “doçuras” e “delícias” que - segundo o
seu testemunho - eram gozados pelas que amavam a Deus de verdade (Cf 3CtIn 14).
Podemos perceber isso quando confrontamos alguns dos numerosos pontos em que, com
muita sabedoria, Clara se afasta do que lhe tinham dado Hugolino e Inocêncio:
- dá mais responsabilidade às Irmãs - trata-as como adultas:
“Pelo menos uma vez por semana, a abadessa tenha que convocar suas Irmãs para um capítulo ... E tratem aí, de acordo com todas as Irmãs, o que for necessário para a utilidade e o bem
do mosteiro, porque muitas vezes o Senhor revela à menor o que é melhor” (RSC 4,15-18). “Se
alguém, por inspiração divina, vier ter conosco querendo abraçar esta vida, a abadessa deverá
pedir o consentimento de todas as Irmãs” (RSC 2, 1). “Se algo for enviado a alguém por parentes
ou por outros, faça a abadessa que isso lhe seja dado. Se tiver necessidade, ela mesma poderá
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Frei José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap
usá-lo; se não, que o dê com caridade a uma Irmã que precise. Mas se lhe for mandado algum
dinheiro, a abadessa, com o conselho das discretas, faça provê-la do que tiver necessidade” (RSC
8,9-11).
- Abre mais a c1ausura, admitindo possibilidades de saídas se houver:
“ ... um motivo útil, razoável, manifesto e aprovado” (RSC 2,13).
- Não impõe um hábito estrito, como faziam as Regras de Hugolino e Inocência IV. Limita-se
a dizer:
“E, por amor do santíssimo e queridíssimo Menino deitado no presépio envolto em panos
pobrezinhos (cf. Lc 2,7.12), e de sua santíssima Mãe, admoesto, peço e exorto minhas Irmãs a se
vestirem sempre de roupas vis” (RSC 2,25).
- Deixa mais livre o silêncio, que devia ser total e perpétuo nas outras Regras, e chega a considerar casos em que as Irmãs possam falar com pessoas de fora:
“As Irmãs, com exceção das que servem fora do mosteiro, observem o silêncio desde a hora
de Completas até a Terça. Calem-se também continuamente na igreja e no dormitório; no refeitório, só enquanto comem; com exceção da enfermaria, em que as Irmãs sempre podem falar
discretamente para distrair as doentes e cuidar delas. Mas podem insinuar o que for necessário
sempre e em toda parte, brevemente e em voz baixa... E isso só se faça muito raramente na grade, e de maneira nenhuma na porta. Por dentro dessa grade ponha-se um pano, que não será
removido a não ser quando se prega a palavra de Deus ou quando alguma Irmã falar a alguém”
(RSC 5, 1-4, 9-10).
Os testemunhos das Irmãs no Processo de Canonização comprovam essas liberdades. Da
mesma forma, ela também não se importa com muitos detalhes disciplinares das Regras que
tinham sido dadas pelos papas, como tudo que se referia aos clérigos que podiam entrar na
clausura.
Essa atitude de mãe e irmã foi tão inefável quanto a sua vivência esponsal: não há palavras
para expressar o afeto profundo, puro e verdadeiro, no que se refere ao Esposo Cristo ou no
que se refere às pessoas que se amam nele, como Clara descreve a Inês em um texto de “inefabilidade” (cale-se a língua da carne) depois de ter descrito em traços apaixonados e totalmente
pessoais o que supõe o amor esponsal por Cristo:
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Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
“Que mais? No amor por você, cale-se a língua de carne, fale a língua do espírito. Filha bendita, como a língua do corpo não pode expressar melhor o afeto que tenho por você, peço que
aceite com bondade e devoção isto que eu escrevi pela metade, olhando ao menos o carinho
materno que me faz arder de caridade todos os dias por você e suas filhas” (4CtIn 35-37).
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33ª parte
8.2. A contribuição das Irmãs-Esposas para a Ordem e para a Igreja
Clara contribuiu pessoalmente - e ainda contribui através de suas Irmãs - para a vida do
mundo, da Igreja e de todo o movimento franciscano porque sua contemplação esponsal leva-as
a se espelhar em Cristo Espelho de Deus até serem transformadas nele.
A partir daí se aproximam do homem concreto e da Igreja viva dando-lhes oportunidade
de reconhecer a ternura e a bondade de Deus, um Deus Esposo, amante, doce e luminoso, para
todas as amarguras e escuridões que pode haver nos membros desse grande corpo que representa a humanidade e a Igreja. A partir da Igreja, e em filial e real comunhão com ela, Clara foi
espelho e exemplo, ícone vivo do que Deus quer de todos seus filhos.
O Cardeal Hugolino, que foi decididamente um homem de Igreja e chegou a ser papa, sentiu
a força desse reflexo de Deus mesmo em uma Clara que ainda não tinha passado dos trinta anos
de idade e, já quase octogenário escreveu-lhe:
“À caríssima irmã em Cristo e mãe de sua salvação, dona Clara, serva de Cristo, Hugolino,
ostiense, indigno e pecador, recomenda-se em tudo que é e pode ser [ ... ] Entrego-lhe minha
alma e lhe recomendo meu espírito, para que, como Jesus entregou o espírito a seu Pai na cruz,
você também responda por mim no dia do juízo, se não tiver sido solícita e atenta por minha
salvação. Estou certo de que conseguirá do sumo Juiz tudo que pedir com insistência de tanta
devoção e abundância de lágrimas”.
Mesmo depois de já ter assumido o papado e o nome de Gregório IX, sentindo a gravidade
de seus problemas, voltou a encontrar em Clara e nas Irmãs consolo e apoio, vistos na missão
intercessora da contemplação esponsal clariana:
“À dileta filha abadessa e à comunidade das monjas reclusas de São Damião de Assis ... [ ...
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Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
] como, no meio das numerosas amarguras e infinitas angústias que sem cessar nos afligem,
vós sois nossa consolação [ ... ] fareis com que Deus seja glorificado em vós e nos enchereis
de gozo, pois vos abraçamos com íntimo amor como filhas prediletas, ou melhor, se podemos
dizê-lo, como senhoras, pois são esposas de nosso Senhor. Mas porque, como confiamos, vos
fizestes um só espírito com Cristo, pedimos que em vossas orações, lembrando-se sempre
de nós, eleveis as piedosas mãos ao céu, suplicando insistentemente que Aquele que sabe
que nós, colocados no meio de tantos perigos, não podemos agüentar por nossa fragilidade,
nos dê força por sua virtude, conceda-nos dar conta tão dignamente do ministério que nos
confiou que redunde em glória para Ele, alegria para os anjos e salvação para os que foram
confiados ao nosso governo”.
Pouco tempo depois, aos 18 de agosto de 1228, fez com que o Cardeal Reinaldo de Segni,
seu sobrinho, enviasse uma carta circular para comunicar a nomeação de um novo visitador e
assistente das damianitas, Frei Filipe Longo. Chamamos a atenção para este texto:
“Ele (Deus) fez seu vigário na terra aquele que era vosso pai e senhor, cujo amor por vós não
sofre o desgaste da diminuição, pois consegue crescer todos os dias. De fato foi oportuno e conveniente que o Vigário de Cristo Esposo, pastor e bispo do rebanho universal do Senhor, também se ligasse por amor perpétuo às adolescentes em cujo amor castíssimo apóia-se o Esposo”.
Por muitos, São Francisco é considerado um grande reformador e rejuvenescedor do mundo
e da Igreja. Mas podemos dizer que todo o seu exemplar Movimento Franciscano começou justamente com essas senhoras de São Damião, como escreveu Clara em seu Testamento:
“Pois, quando o santo, logo depois de sua conversão, sem ter ainda irmãos ou companheiros,
estava construindo a igreja de São Damião, em que foi visitado plenamente pela graça divina, e
foi impelido a abandonar totalmente o mundo, numa grande alegria e iluminação do Espírito
Santo, profetizou a nosso respeito aquilo que o Senhor veio a cumprir mais tarde. Pois, nessa
ocasião, subindo ao mUro da igreja, ele disse em voz alta e em francês para uns pobres que
moravam ali perto: Venham me ajudar na obra do mosteiro de São Damião, porque nele ainda
haverão de morar umas senhoras cuja vida famosa e santo comportamento vão glorificar nosso
Pai celestial em toda a sua santa Igreja” (TestC 9-14).
Clara ensina Inês e todas as Irmãs a serem esposas. A esposa é espelho de Jesus. A esposa
contempla Jesus. São esposas-irmãs que precisam se comunicar porque vivem o mesmo Esposo.
Cabe às Clarissas de hoje, a todas as numerosas Irmãs Franciscanas da TOR - e a todo o Movimento Franciscano - manter atualizado esse serviço à Igreja e ao mundo. De maneira especial,
cabe a elas ajudar os homens do movimento franciscano a entenderam essa dimensão de um
amor pessoal pelo Cristo pessoa.
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34ª parte
8.3. A clausura das Irmãs de Santa Clara
As clarissas são as franciscanas de clausura. As clarissas atuais até fazem voto de clausura.
Observo que a palavra clausura é da raiz do verbo “claudo” = fechar, aparentada com a palavra
chave (em latim clauis). Em latim, é um particípio futuro, significando um lugar que vai ser fechado. Outra palavra aparentada é claustro, que lembra mais um ambiente fechado. As Regras
de São Bento, de Hugolino e de Inocêncio IV, bem como a de Santa Clara, não usam a palavra
clausura. Nas FONTES CLARIANAS só a encontramos na procuração dada por Clara e as Irmãs para vender um terreno, que é chamado de clausura, palavra que indicava que ainda não
tinham feito nenhuma cerca. Clara só usa a palavra claustro para lembrar que Nossa Senhora
recebeu Jesus no “claustro do seu santo seio” (3CtIn 19).
Em nossos dias, estamos encontrando sérias críticas à clausura das clarissas, mesmo por
parte de franciscanos e franciscanas. Há quem diga que esse tipo de vida não tem mais sentido
e também quem o atribua ao machismo da Igreja, que sempre teria demonstrado desconfiança
em relação às mulheres religiosas. Muita gente diz que Santa Clara ficou na clausura por imposição, uma vez que no tempo dela não se entendia outro tipo de vida religiosa para as mulheres.
É certo que se podem citar alguns fatos históricos para corroborar algumas dessas afirmações, mas há muito preconceito. Não é possível fazer generalizações.
Não vamos tratar extensamente desse assunto aqui, porque estamos estudando apenas a espiritualidade de Santa Clara. Vou apresentar sucintamente a visão de dois autores atuais dos
mais abalizados. E concluir com a minha visão sobre a clausura das clarissas dentro da sua espiritualidade própria.
Uma primeira visão muito bem fundamentada é a da estudiosa CLARA AUGUSTA LAI100
Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
NATI, da ordem das clarissas. Para ela, a clausura é uma expressão do mistério pascoal, é uma
kénosis para uma comunhão: uma morte para uma vida. É fundamental um artigo que ela publicou na revista das clarissas Forma Sororum em 1983 (15).
Ela começa afirmando que a clausura das clarissas não é um meio para aprofundar a contemplação, pois existem muitos outros meios eficazes para isso. Para ela, a clausura é um modo
típico de Santa Clara para aprofundar a kénosis (o esvaziamento, cf Fl 3,5ss) do Senhor Jesus
Cristo. Ela vê um valor na clausura que limita a pessoa no espaço, empobrece suas possibilidades de ação e movimentação para mergulhar no “vazio” da criatura com o Cristo crucificado,
com o Cristo que fica sozinho na montanha mas aberto para a contemplação do Pai. Cita São
Francisco na sua Regra para os Eremitérios, onde diz: “No claustro onde moram não permitam
que entre nenhuma pessoa (REr 7).
Outra visão muito importante é a do estudioso franciscano Jesús SANZ MONTES, autor de
diversas obras fundamentais sobre Santa Clara e as clarissas (16).
Para ele, Santa Clara encontrou na clausura de São Damião o “lugar carismático” para sua
opção do seguimento esponsal de Cristo.
Ele lembra que nem toda vida contemplativa exige a clausura, nem toda clausura expressa e
desenvolve a vida contemplativa, mas pode haver uma forma de existência cristã em que, por
vocação carismática, por divina inspiração, unam-se as duas realidades. Lembra também que o
próprio São Francisco deu um primeiro passo para a c1ausura de Clara fundamentado na sua
opção pelo Esposo:
“ ... e como se a serva humilde tivesse desposado Cristo diante do leito nupcial dessa Virgem,
São Francisco mudou-a imediatamente para a igreja de São Paulo, para que ficasse lá até que o
Altíssimo dispusesse outra coisa” (LSC 8).
Santa Clara escolheria um caminho que implicava ser monástico, claustral e franciscano,
correspondentes à sua vocação para a fratemidade, a contemplação e a pobreza. A genialidade de Clara está justamente em sua capacidade de ter unido as duas figuras de Marta e Maria,
vivendo sua vocação c1austral aberta ao mundo e ao serviço dos pobres. Sobre a escolha de
vida claustral como modalidade de serviço à Igreja, Clara estava em sintonia com Francisco e
Hugolino.
No hortus conclusus, na cella vinaria, do São Damião de Clara de Assis, desenvolveu-se
101
Frei José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap
essa história de seguimento esponsal de Jesus Cristo, como um espaço que representava o locus charismaticus de sua vocação eclesial, em uma progressiva identificação kenótico-pascoal
com Cristo Esposo. Definitivamente, Ele é o grande “Tu” por quem Clara iniciou todos os seus
êxodos, por quem fez todas as suas opções e por quem pacientemente aguardou todas as suas
esperas, para que fosse brotando uma forma vitae que harmonizava todos esses fatores já indicados, e que faziam de seu caminho uma novitas capaz de catalisar aquele dilatado movimento
feminino que se reconheceu no carisma de Francisco de Assis.
Para concluir, proponho que essas abalizadas opiniões desse dois utores sejam lidas à luz do
que falamos sobre a vida de Clara e suas Irmãs no não-lugar e no não-tempo. Creio que de fato,
a opção das clarissas pela clausura tem uma luz própria, diferente da “clausura” das “contemplativas”. Elas estão no seu lugar de esposas de Cristo que se descobrem como irmãs.
15 La Clausura: non “mezzo di contemplazione”, ma modo típico delle Clarisse di esprimere il mistero pasquale Una kénosi
per una comunione: uma morte per una viúl, en Forma Sororum 20 (1983) pp 201-203.
16 Proponho que se leia especialmente o livro “Illun totaliter diligas - La simbología esponsal como clave hermenéutica del
carisma de Santa Clara de Asis, Roma 2000.
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35ª parte
9. Contemplando o Esposo
Uma das maiores contribuições de Santa Clara para a espiritualidade franciscana é certamente a de ser mestra de contemplação.
Nossa palavra “contemplação” vem do latim cum + templare e recorda que, no tempo
dos romanos, os sacerdotes se colocavam dentro do templo, numa situação de envolvimento com (cum) o seu ambiente, para descobrir a vontade dos deuses nos seus auspícios ou
augúrios, relacionados com o vôo dos pássaros (auis, mais tarde lido avis) que conseguiam
observar pela abertura no teto do templo. Isso pressupunha e favorecia um olhar concentrado e uma busca do sentido divino. Até hoje usamos contemplar para significar um olhar
concentrado, por exemplo, na observação de uma flor. E dizemos, também, por exemplo,
que um regulamento “contempla” determinada situação, isto é, concentra-se nela, ou a considera. Considerar vem de observar o conjunto (cum) dos astros (sídera) para descobrir
uma direção.
O sentido mais estrito de contemplação refere-se a um olhar atento que descobre Deus na
presença de suas ações e de suas obras.
Ao pé da letra, contemplar não é orar (de os, oris = boca), nem rezar (de recitare: ler alto ou
repetir um texto escrito), mas é um relacionamento excelente com Deus, a quem nós ficamos
observando, descobrindo, saboreando. Podemos fazer exercícios de contemplação, mas viver a
contemplação é ter essa inclinação para “ver Deus” nos seres e nos acontecimentos.
São Francisco, cujo desejo ardente e apaixonado era ver Deus, a quem descobria em
Jesus Cristo, parece ter sido um dos maiores contemplativos da história da humanidade.
Aliás, é bom lembrar que todo ser humano tem por natureza o desejo de ver se Deus existe
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Frei José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap
mesmo, de observar onde Ele se encontra ou como Ele vem a nós, ou como podemos nos
encontrar com Ele. Mas São Francisco não nos deixou nenhum texto ensinando-nos contemplar. Clara fez isso.
Foi através da contemplação que Santa Clara se encontrou com o Cristo Esposo e se transformou nele. Foi um “processo de cristificação”, que precisamos entender melhor. Para isso, é bom
considerarmos cada vez que a santa usou a palavra contemplar.
Ela fala seis vezes em contemplação, usando sete vezes esse termo. Estão todas nas Cartas
dirigidas a Inês de Praga. Vamos ver melhor:
“Com o desejo de imitá-lo, mui nobre rainha, olhe, considere, contemple o seu esposo, o
mais belo entre os filhos dos homens (Sl 44,3) feito por sua salvação o mais vil de todos, desprezado, ferido e tão flagelado em todo o corpo, morrendo no meio das angústias próprias da cruz.
Se você sofrer com ele, com ele vai reinar; se chorar com ele, com ele vai se alegrar; se morrer
com ele (cf. 2Tm 2, 11.12; Rm 8,17) na cruz da tribulação vai ter com ele mansão celeste nos
esplendores dos santos (Sl 109,3). E seu nome, glorioso entre os homens, será inscrito no livro
da vida (Sl 109,3). Assim, em vez dos bens terrenos e transitórios, você vai ter parte na glória do
reino celeste eternamente, para sempre, vai ter bens eternos em vez dos perecíveis, e viverá pelos
séculos dos séculos” (2CHn 20-23).
Ela já condiciona a contemplação a um desejo de imitar Jesus, de segui-lo. Mas já o trata
como um esposo querido e manda considerar o amor que ele demonstrou quando sofreu por
nós. E mostra que essa contemplação vai trazer uma mudança muito grande à nossa vida, com
conseqüências para os tempos sem fim.
Nesse trecho, ela fala do que acontece com quem chega à união com Jesus. Para ela, aí está a
importância da contemplação do Cristo kenótico e de uma transformação trabalhada nele.
Como já vimos falando da clausura, esse seguimento de Cristo kenótico = esvaziado a ponto
de ser encontrado como um servo - é um elemento importante para explicar por que Clara e
suas Irmãs quiseram ficar em São Damião presas, pobremente vestidas, sem nenhum poder e
sem nenhuma importância.
O trecho seguinte pode ser considerado o mais importante de Santa Clara sobre a contemplação. Aliás, não sei se outra pessoa pessoa escreveu algo mais claro e positivo sobre o que é
contemplar:
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Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
“Ponha a mente no espelho da eternidade, coloque a alma no esplendor da glória. Ponha o
coração na figura da substância divina e transforme-se inteira, pela contemplação, na imagem
da divindade. Desse modo também você vai experimentar o que sentem os amigos quando saboreiam a doçura escondida, que o próprio Deus reservou desde o início para os que o amam.
Deixe de lado tudo que neste mundo falaz e perturbador prende seus cegos amantes e ame totalmente o que se entregou inteiro por seu amor, aquele cuja beleza o sol e a lua admiram, cujos
prêmios são de preciosidade e grandeza sem fim. Falo do Filho do Altíssimo, que a Virgem deu
à luz pennanecendo virgem depois do parto (3CtIn l2-l7)”.
Neste texto, aparece uma das maiores originalidades da contemplação de Santa Clara: a contemplação transforma, transforma na imagem da Divindade, em um outro Cristo. Quem transforma é Deus, mas contemplar é expor-se à transformação ao olhar de maneira concentrada
para Deus (a eternidade, a glória, a substância divina) através de Jesus que põe Deus ao nosso
alcance sendo um espelho, um esplendor, uma figura da Divindade. É por causa da transformação - afinal das contas, no único Cristo, porque não há mais do que um - que a contempladora
saboreia a doçura escondida. O núcleo do olhar contemplativo de Clara está em se colocar
inteira diante de Cristo Esposo até ser transformada nele. É importante observar que a contemplação une ao Esposo, leva ao prazer de partilhar a visão e o amor com o Esposo.
Na quarta carta, Clara tem um texto magnífico - aliás, impossível de ser traduzido na sua
riqueza mais profunda. O que traduzimos por “banquete” também poderia ser traduzido por
“convivência, partilha de vida”, e o amor apaixonado de Clara nos faz entrever pelo menos um
pouco de todo prazer que ela já tinha provado saboreando a união com o Esposo:
“Feliz, decerto, é você, que pode participar desse banquete sagrado para unir-se com todas
as fibras do coração àquele cuja beleza todos os batalhões bem-aventurados dos céus admiram
sem cessar, cuja afeição apaixona, cuja contemplação restaura, cuja bondade nos sacia, cuja suavidade preenche, cuja lembrança ilumina suavemente, cujo perfume dará vida aos mortos, cuja
visão gloriosa tornará felizes todos os cidadãos da celeste Jerusalém, pois é o esplendor da glória
eterna, o brilho da luz perpétua e o espelho sem mancha (4CtIn 9-14)”.
Neste trecho, aparece outro ponto original da contemplação de Santa Clara: é uma contemplação que transborda de gratidão, a gratidão por chegar a ser unida a Deus, que nos encanta,
nos apaixona, restaura, sacia, dá vida, justamente em Jesus, que é seu espelho.
No texto seguinte, Clara desenvolve o que tinha dito no anterior: Jesus é o espelho. Mas ela
se espelha nele, ela pode perceber o que falta para para ser como ele, é arrastada pelas virtudes
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pessoais de Jesus. E usando uma linguagem própria do Cântico dos Cânticos, mostra como se
revestir Cristo, do Homem novo.
“Olhe dentro desse espelho todos os dias, ó rainha, esposa de Jesus Cristo, e espelhe nele, sem
cessar, o seu rosto, para enfeitar-se toda, interio e exteriormente, vestida e cingida de variedade,
ornada também com as flores e roupas das virtudes todas, ó filha e esposa caríssima do sumo
Rei. Pois nesse espelho resplandecem a bem-aventurada pobreza, a santa humildade e a inefável
caridade, como, nele inteiro, você vai poder contemplar com a graça de Deus.
Preste atenção no princípio do espelho: a pobreza daquele que, envolto em panos, foi posto
no presépio! Admirável humildade, estupenda pobreza! O Rei dos anjos repousa numa manjedoura. No meio do espelho, considere a humildade, ou pelo menos a bem-aventurada pobreza,
as fadigas sem conta e as penas que suportou pela redenção do gênero humano. E, no fim desse
mesmo espelho, contemple a caridade inefável com que quis padecer no lenho da cruz e nela
morrer a morte mais vergonhosa (4CtIn 15-23)”.
Ao considerar os momentos mais importantes da vida de Jesus na carne - do presépio até a
cruz -, Clara insiste em outro ponto original: sua contemplação é um processo constante, em
que a pessoa trabalha com alegria para ser semelhante a Cristo, ou para amar a semelhança que
Ele realiza em nós.
Na parte final desse mesmo texto, usando apaixonadamente diversas alusões do Cântico dos
Cânticos, Clara chega a pedir “o beijo mais feliz de tua boca”, aquele que, como ensinou São Bernardo, é o próprio Espírito Santo passando entre o beijo dela e o beijo de Jesus como o Espírito
Santo é o beijo de amor entre o Pai e o Filho:
“Além disso, contemplando suas indizíveis delícias, riquezas e honras perpétuas, proclame,
suspirando com tamanho desejo do coração e tanto amor: Arrasta-me atrás de ti! Corramos no
odor dos teus bálsamos (Ct 1,3), 6 esposo celeste! Vou correr sem desfalecer, até me introduzires
na tua adega (Ct 2,4), até que tua esquerda esteja sob a minha cabeça, sua direita me abrace toda
feliz (Ct2,6), e me dês o beijo mais feliz de tua boca (Ct 1,1) (4CtIn 28-32)”.
É claro que o importante nem é fazer exercícios de contemplação: é estar unido ao Esposo, é
ter descoberto e realizado todas as sedes do nosso ser humano. É já ser a esposa que clama com
o Espírito, que ela já incorporou totalmente: “Vem, Senhor Jesus, vem!”
Na despedida dessa última carta, ela sublinha o aspecto fundamental da amizade e do amor
106
Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
entre as Irmãs, entre nós todos: nós nos encontramos em profundidade quando nos perdemos
na mesma contemplação, na mesma busca de Jesus.
“Posta nessa contemplação, lembre-se de sua mãe pobrezinha, sabendo que eu gravei sua
feliz recordação de maneira indelével no meu coração porque você, para mim, é a mais querida
de todas” (4CtIn 33-34).
Quem se une ao Esposo na contemplação está construindo sua união com todas as demais
pessoas. E a contemplação do Esposo se expressa na capacidade de enxergá-lo nas outras pessoas. E cada pessoa é tanto mais querida quanto mais for possível encontrá-la unida ao Esposo.
Por isso, Francisco e Inês de Praga são os maiores amores de Clara.
Características - A contemplação de Santa Clara - na perspectiva esponsal - é de caráter
afetivo. Mas, é preciso sublinhar alguns pontos bem específicos: a) é dominada pela gratidão.
b) segue um processo de fidelidade. c) transforma na imagem viva de Deus. d) abre-se para a
fratemidade e para a Igreja.
107
36ª parte
9.1 Contemplação dominada pela gratidão
Seu Testamento começa:
“Entre outros benefícios que temos recebido e ainda recebemos diariamente da generosidade
do Pai de toda misericórdia e pelos quais mais temos que agradecer ao glorioso Pai de Cristo,
está a nossa vocação que, quanto maior e mais perfeita, mais a Ele é devida” (TestC 2-3).
E o Benefício que dá sentido a todos os outros é o próprio Jesus Cristo. A gratidão é a admiração sem limites por descobrir-se amada por Deus, por um Deus Esposo, que se dirige a ela
de um modo pessoal. Ela quer “pagar” o amor com amor. É a dimensão agradecida da graça.
Clara amplia o que Francisco dizia: “Nada de vós retenhais para vós mesmos para que os receba
inteiros aquele que inteiro se entrega a vós” (CtOr 29). Ela também escreveu: “ame totalmente
aquele que se entregou inteiro por seu amor” (3CtIn 15).
9.2 O processo é de fidelidade crescente
Na segunda Carta, ela escreveu:
“Lembre-se da sua decisão como uma segunda Raquel: não perca de vista seu ponto de partida, conserve o que você tem, faça o que está fazendo e não o deixe, mas, em rápida corrida, com
passo ligeiro e pé seguro, de modo que seus passos nem recolham a poeira, confiante e alegre,
avance com cuidado pelo caminho da bem-aventurança. Não confie em ninguém, não consinta
com nada que queira afastá-la desse propósito, que seja tropeço no caminho, para não cumprir
seus votos ao Altíssimo na perfeição em que o Espírito do Senhor a chamou” (2CtIn 11-14).
Ela comunica uma experiência vivida na luta pela fidelidade, pois sofreu não poucas vezes
108
Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
obstáculos que poderiam ter ameaçado sua adesão ao que prometera a Cristo Esposo. A segunda Carta foi redigida durante o generalato de Frei Elias, no meio dos problemas por que estava
passando a Primeira Ordem. Foi dentro disso que Clara observou o processo de fidelidade com
todas as suas conseqüências e riscos, convidando Inês a uma adesão esponsal diante de qualquer insinuação a sugestão inoportuna:
“Se alguém lhe disser outra coisa, ou sugerir algo diferente, que impeça sua perfeição ou
parecer contrário ao chamado de Deus, mesmo que mereça sua veneração, não siga o seu conselho. Abrace o Cristo pobre como uma virgem pobre” (2CtIn 17-18).
Não era uma fidelidade à norma, mas ao seguimento Jesus pobre e desprezível:
“Veja como por você Ele se fez desprezível e o siga, sendo desprezível por ele neste mundo”
(2CtIn 19). Pois concluiu, explicitando melhor a contemplação: “Com o desejo de imitá-la, mui
nobre rainha, olhe, considere, contemple o seu esposo, o mais belo entre os filhos dos homens
feito por sua salvação o mais vil de todos, desprezado, ferido e tão flagelado em todo o corpo,
morrendo no meio das angústias próprias da cruz” (2CtIn 20).
Essa fidelidade a inflamava:
“Tomara que você se inflame cada vez mais no ardor dessa caridade, Ó rainha do Rei celeste! Além disso, contemplando suas indizíveis delícias, riquezas e honras perpétuas, proclame,
suspirando com tamanho desejo do coração e tanto amor: Arrasta-me atrás de ti! Corramos no
odor dos teus bálsamos, ó esposo celeste!” (4CtIn 27-30).
9.3. Contemplação transformante
Quando ensinou o que era contemplação, Clara propôs uma verdadeira transformação da
pessoa amante na pessoa amada:
“Ponha a mente no espelho da eternidade, coloque a alma no esplendor da glória, ponha o
coração na figura da substância divina, e transforme-se inteira, pela contemplação, na imagem
da divindade” (3CtIn 12).
É o olhar atento, deliciado, constante, aberto e disponível para aquele que é o espelho, o
esplendor, a figura e a imagem da Divindade que nos absorve. Muitos místicos disseram algo
semelhante: contemplar o ícone até ser em ícone transformado, como sabemos que foi e é vivido
109
Frei José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap
pelos monges do Monte Atos, na Grécia, dedicados à confecção de ícones. Eles se embebem nos
ícones e se iluminam no Sol de Deus, acabando eles mesmos ícones vivos iluminados por essa
Luz.
Como Francisco, que pediu luz interior ao Crucificado de São Damião, Clara também se
tornou luminosa. Seu o olhar de Clara não era exterior ou passivo; era criador porque ela bebia
a luz de Deus. Por isso, foi uma viva expressão do processo interior que transforma o contemplativo em imagem daquele a quem contempla com amor.
Clara fez de sua vida a busca desse “Santo Graal”: a “doçura escondida”, reservada por Cristo
para os que o amam. Na quarta carta, no lugar de doçura ela fala em delícia. A contemplação
clariana, delicadamente esponsal, “é um olhar da alma e do coração para o objeto amado, até
ficar embebidos por seu próprio amor e “aderindo a Ele com todas as fibras da alma “em que a
esposa é passiva sob a ação do Esposo (4Ctln). Tanto o olhar amoroso inicial como a experiência receptiva em que culmina, são para santa Clara simplesmente “contemplação”.
9.4. A contemplação abre para a fraternidade e a Igreja
O Cardeal Ratzinger, hoje Bento XVI, chamou Santa Clara de “anima ecclesiastica, esposa de
Cristo” (FormSor 4-5 1990, 239). A contemplação clariana, que leva à transformaçãoo esponsal
não é uma piedade espiritual que foge do mundo e de seus desafios. Ela evoca a Beleza e o Amor
de Jesus para todos, tem uma missão eclesial.
Na mesma carta em que deu a Inês de Praga o ensinamento fundamental do que era contemplação, Clara escreveu este texto notável:
“Eu a considero, num bom uso das palavras do Apóstolo, auxiliar do próprio Deus, sustentáculo dos membros vacilantes de seu Corpo inefável” (3Ctln 8).
Sua fonte, o Apóstolo, é São Paulo, que também disse que era um “espelho da glória do Senhor”, e que de fato se espelhou em Cristo até ser nele também transformado. E também disse
que completava e supria o que faltava no Corpo de Cristo, e que considerava os irmãos das diversas comunidades fundadas por ele como “colaboradores” em Cristo (cfRm 16,3, 16,9; 16,21;
1Cor 3,9; 2Cor 8,23; Fp 2,25; 4,3; 1Ts 3,2).
Sua contemplação não a afastava da Igreja: levava-a a entrar em comunhão missionária com
todos os “gemidos da humanidade e da Igreja, nos membros que “vacilam e caem”. Numa pas110
Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
sagem de seu Testamento, falando com as Irmãs, Clara diz outra coisa muito significativa para
sua visão de Igreja:
“Pois o próprio Senhor colocou-nos não só como modelo, exemplo e espelho para os outros,
mas também para nossas irmãs, que Ele vai chamar para a nossa vocação. Para que também elas
sejam espelho e exemplo para os que vivem no mundo” (Teste 19-20).
Clara é mãe de suas irmãs como filha da Igreja; sua maternidade é imagem da Mãe Igreja,
que é fecunda, nutre e protege, guia e ensina. É irmã para todos os crentes, companheira na
vocação comum, companheira de viagem e apoio. Assim se indica a idéia da comunidade, da
“solidariedade” e da suplência. É esposa do Senhor e por isso motivo de alegria, sinal irradiante
de esperança para a humanidade.
9.5. Uma contemplação iluminada
Na contemplação, Clara tem um ponto bem interessante de comunhão com Francisco: Eles
contemplam com os olhos. Ambos falam intensamente de experiências visuais do seu desejo de
ver Deus. É nessa linha que vai a sua contemplação do Cristo Esposo, porque quem o vê está
vendo o Pai que habita numa altitude inacessível.
Para dar o justo valor a esse particular é bom lembrar que os orientais falam em contemplação com o uso de todos os sentidos.
Já recordamos que as Irmãs viam em Clara uma experiência parecida com a de Moisés, que
“via Deus face a face”. Repetimos os textos mais importantes:
“Era assídua na oração e contemplação. Quando saía da oração, seu rosto parecia maís claro
e mais bonito que o sol e suas palavras exalavam uma doçura inenarrável, tanto que sua vida
parecia toda ceJestial” (Irmã Amata de Corozano em ProcC Iv,4).
“ ... quando ela saía da oração as Irmãs se alegravam como se ela estivesse vindo do céu”
(Irmã Pacífica de Guelfúcio, em ProcC 1,9).
Isso nos faz lembrar que São Francisco chamou de belos os Irmãos Sol, Lua e estrelas no seu
Cântico de Frei Sol, justamente porque eles são luminosos. E nos faz recordar esta importante
citação:
111
Frei José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap
“Entre todas as criaturas carentes de razão, amava com afeição maior o sol e o fogo. Pois dizia: “De manhã, quando nasce o sol, todas as pessoas deveriam louvar a Deus que o criou para a
nossa utilidade, porque é por ele que nossos olhos são iluminados de dia. À tarde, quando anoitece, todas pessoas deveriam louvar a Deus pelo irmão fogo, pelo qual nossos olhos se iluminam
de noite. Pois todos somos como cegos e, por estes nossos dois irmãos, o Senhor ilumina nossos
olhos. E assim, devemos louvar o Criador, particularmente por essas e pelas outras criaturas que
usamos todos os dias” (EP 119,1-3).
É evidente que os “olhos iluminados” dos dois eram os “olhos do espírito” (cf Adm I), com os
quais eles contemplavam Deus. Por isso, tinha uma visão diferente de si mesmos, do próximo,
das criaturas, do mundo da história.
Como lembra o Evangelho de Lucas:
“A lâmpada do corpo é o olho. Quando o olho é sadio, o corpo inteiro também fica iluminado. Mas, se ele está doente, o corpo também fica na escuridão. Portanto, veja bem se a luz que
está em você não é escuridão” (L 1134-35).
Chamo a atenção para o fato de que Clara, como Francisco, deve ter tido excelentes oportunidades de contemplar famoso ícone do Cristo de São Damião. Não podemos afirmar que eles
tenham tido um conhecimento teórico da teologia que está por trás dos ícones: a teologia da luz.
Mas devem ter sido influenciados por ela através do ícone.
A teologia da luz, também chamada de teologia da beleza representa a santidade de Deus
como a Luz. É a luz de Deus que deixa os santos iluminados de santidade. É na contemplação
da luminosidade dos santos que iconógrafos contemplam a luz que vão passar para os ícones: os
seus quadros. E os fiéis tomam um banho de luz de Deus diante dos ícones.
Clara e Francisco contemplativos estão passando para nós a Luz da santidade de Deus.
112
37ª parte
10. “Mãe de Jesus”
Na FORMA DE VIDA que deu às Irmãs em 1212, Francisco chamou-as de “esposas do
Espírito Santo”. Como já tivemos oportunidade de ver, essa forma de vida tem um forte
paralelo com a ANTÍFONA DE NOSSA SENHORA do Oficio da Paixão e com a CARTA
AOS FIÉIS.
Nesses outros dois documentos, o santo mantém o “esposa do Espírito Santo” que, na Carta
aos Fiéis, ele explica: “Somos esposos quando, pela ação do Espírito Santo, une-se a alma fiel a
Nosso Senhor Jesus Cristo” (lCtFi 8). Mas também diz que somos mães:
“Somos mães de nosso Senhor Jesus Cristo quando o levamos em nosso coração e em nosso
corpo (cf 1Cor 6,20), pelo amor divino e pela consciência pura e sincera; e o damos à luz pela
santa operação, que deve iluminar os outros com o exemplo. Oh! Como é santo e dileto ter tal
irmão e filho, agradável, humilde, pacífico, doce, amável e mais desejável do que todas as coisas:
Nosso Senhor Jesus Cristo!”.
Dessa forma, entramos em um dos grandes pontos da espiritualidade franciscana: o grande
acontecimento, que é a encarnação de Jesus, continua a acontecer todos os dias, na Eucaristia e
pelo nosso exemplo.
Queremos fundamentar este capítulo final de nosso trabalho numa comparação de
Clara com a “Esposa do Espírito Santo” do Apocalipse: aquela que é Maria e que é o
Povo, pois “desceu do céu corno uma noiva vestida de sol, coroada de doze estrelas e
com a luz embaixo dos pés”. Mas ela também era a Mãe, porque estava grávida E com o
Espírito Santo chegará ao fim da história como o Povo Esposa clamando: “Vem, Senhor
Jesus! Vem!”
113
Frei José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap
10.1 Clara como a Mãe de Jesus
Não é tão importante que ela venha “a ser no céu coroada como a Virgem Maria”, como diz o
Cântico de Francisco “Ouvi, pobrezinhas!” O fato mais importante é que ela se reveste de Cristo,
o homem novo, e que vai mostrando como continuar a dar à luz a imagem de Cristo que está em
nós e em todas as pessoas, especialmente nos irmãos e irmãs mais próximos.
Dessa maneira, Clara pode ser vista na tradição das “ammás”, as mães espirituais do deserto.
De fato, foi isso que ela recordou em sua bênção:
“E as abençôo em minha vida e depois de minha morte, como posso, com todas as bênçãos
com que o Pai das misericórdias (ef 2Cor 1,3) abençoou e abençoará seus filhos e filhas no céu
(ef Ef 1.3) e na terra, e com os quais um pai e uma mãe espiritual abençoaram e abençoarão seus
filhos e filhas espirituais. Amém” (BSC 11-13).
A Legenda de Santa Clara confirma essa visão em dois lugares:
“Sigam os homens esses varões, novos discípulos do Verbo encarnado; as mulheres imitem
Clara. vestígio da Mãe de Deus e nova guia das mulheres” (LSC, Prólogo).
Hoje, a Igreja rebrota feliz com essas flores geradas por Clara (...) (LSC 11). As filhas gratas
por sua bondade correspondiam com toda a dedicação. Acolhiam o carinho afetuoso da mãe, (
... ) e admiravam na esposa de Deus a prerrogativa de uma santidade completa (LSC 38).
É bastante interessante que Tomás de Celano, o primeiro biógrafo de São Francisco e autor
da Legenda de Santa Clara, que em diversas oportunidades parece ser um misógino, tenha tido
uma visão muito positiva do papel feminino da mãe, como observou Valéria Fernandes da Silva
(17).
São Paulo dissera: “Eu ... vos gerei em Cristo Jesus (lCor 4,25). Toda vida cristã, aberta para
Deus, manifesta-O e é portadora de vida. Quem faz isso está na maior união com Cristo e gera
outros Cristos. O que São Francisco diz na Carta aos Fiéis é uma outra maneira de falar dos Esponsais e de Esposo-Esposa: falar de como estamos ajudando os outros a serem outros Cristos
e nos tomando nós mesmos outros Cristos. Todo ser humano vindo a este mundo - se souber
olhar pela perspectiva do Evangelho - saberá que precisa fazer nesta vida um Processo de Cristificação. É assim que se une a Deus.
Ser mãe de Jesus Cristo é algo parecido com “optar por uma vida de acordo com o Evange114
Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
lho”. São Francisco usou essa expressão na Forma de Vida para Santa Clara, que é idêntica à sua
Antífona de Nossa Senhora onde, no mesmo lugar, ele coloca “Mãe de Jesus”. Em outras palavras, “viver o Evangelho” não é apenas pautar-se por orientações dadas por Jesus e contidas nos
quatro livros dos Evangelistas; viver o Evangelho é ser um outro Cristo, é desenvolver o Cristo
de si mesmo e ajudar a nascerem e crescerem os Cristos que estão em todas as outras pessoas. É
por isso que Francisco e Clara, pessoas sem formalismos e sem rigorismos, têm uma veneração
tão profunda pelas suas Regras. Não as viam como estatutos: eram uma forma de ser mães de
Jesus e de saber ser filhos.
Ser mãe não é apenas gerar, gestar e dar à luz. Tudo isso é estupendo, entretanto, mais importante ainda é saber fazer com que os filhos se sintam totalmente bem acolhidos. Também é
saber acompanhar desde os primeiros passos para que cada um realize em sua vida o que Deus
sonhou para ele. Nosso próprio apostolado perde o sentido quando, mesmo anunciando com
bastante propriedade a Palavra de Deus, esquecemos de ter a melhor compreensão materna
para que o Cristo de cada um possa ser bem acolhido, possa crescer e amadurecer.
17. Celano abre possibilidades interessantes para o estudo dos discursos sobre o feminino na ldade Média, ao identificar seu
biografado com um papel que é especificamente feminino. Pois se até então era comum nos autores eclesiásticos uma supervalorização da virgindade e uma depreciação das virtudes femininas, Celano simplesmente irá anular qualquer caráter pejorativo na maternidade em seus textos. Ele irá apresentar um Francisco revestido de uma virtude feminina, a maternidade,
que em nenhum momento será dissociada desse aspecto fundamental e estabelecida como desprovida de diretivas de gênero.
A maternidade em Celano não é desprovida de gênero, assexuada como a alma para Santo Agostinho. Ao contrário, ela é
elogiada naquilo que tem de feminino, que, nesse caso, não seria correspondente à incompletude ou ao mal. Nisso nosso autor
irá se aproximar, de certa forma, de Juliana de Norwich, mística e reclusa inglesa, que no século XIV irá associar Jesus Cristo
à figura materna, atribuindo-lhe qualidades até então tidas como femininas.
Ao valorizar a maternidade, estado que estava associado ao pecado e a uma vida no saeculum, valorizando a Maria-Mãe
em detrimento da Maria Virgem, um maior número de mulheres puderam se reconhecer nos exemplos dados por Celano.
Cumprindo de certa forma seu papel pedagógico, de hagiógrafo, suscitando a piedade, a penitência, a devoção e uma vida
norteada pelos princípios da vita vere apostolica.
Clara representa não só a mãe das Damas Pobres, como também é filha espiritual de Francisco. Da mesma forma, ela seria
identificada com a Mãe de Deus, por ser mãe simbólica e por ser virgem, mas também seria a esposa do Cristo. Ela é mãe,
filha, esposa, virgem; a materialização de Maria de acordo com os moldes franciscanos.
Valéria F. da Silva, A mãe como modelo de espiritualidade: discutindo o papel da maternidade nos escritos de Tomás de Celano, in Hagiografia e História, organizado por Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva. Rio de Janeiro 2008.
115
Final
10.2 Divinizar o humano e humanizar o Divino
Em Maria está “toda a plenitude da graça” (SdVM). Ela é a fonte constante da graça porque
sua intimidade única com a Trindade faz dela uma fecundidade espiritual permanente.
Eva, com Adão, “quis ser como Deus”. Nós somos Adão e Eva que nos perdemos nessa aventura porque rejeitamos Deus. Maria tornou efetiva uma dimensão divina que já tínhamos uma
vez que fomos criados “à imagem e semelhança de Deus”, mas que, na prática, estava sem efeito
pelo afastamento da soberania de Deus.
Maria não se tomou deusa. Foram as suas atitudes de ser uma filha reconhecida do Pai,
uma esposa consciente do Espírito Santo e a mãe concreta de Jesus que lhe deram a dimensão do divino que nos elevou a uma vida sobrenatural. Dessa maneira, ela manifestou
a ternura de Deus em uma forma humana, permitindo que nela enxergássemos a ação do
Espírito Santo.
Para Deus, Maria é o humano. Para nós, Maria é uma visão do divino. Mas nela há um grande intercâmbio entre o divino e o humano. Nossa Senhora demonstra como Deus é terno e
amoroso. Não muda Deus: muda nossa experiência de Deus.
Em geral, costumamos apresentar uma religião longínqua e muito intelectualizada. É preciso ter uma fundamentação solidamente doutrinal, mas uma comunicação bem fácil, alegre e
concreta. Sem fazer antropomorfias de Deus, temos que ver e demonstrar como nosso Deus,
tão teórico e distante para muitos, pode ser humanizado. Precisamos lembrar que as próprias
palavras Javé, Jesus, Emanuel e Paráclito induzem a ver a presença de Deus no humano.
Nossa Senhora deu a Jesus Cristo traços, gestos, atitudes, entonação ... deu-lhe uma
116
Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
natureza humana verdadeira. É preciso lembrar que Nossa Senhora não acolheu apenas a
semente do corpo de Jesus. O Concílio Vaticano II ensinou, na Lumen Gentium, que Maria
Santíssima recebeu o Verbo de Deus no coração e no corpo (LG 53). E abriu para nós - por
obra de Deus, é claro - a possibilidade de continuar humanizando o divino e divinizando
o humano.
.
A Lumen Gentium também ensina que Nossa Senhora não foi mãe e também virgem, mas
foi uma Mãe virginal porque sua maternidade divina foi certamente de ordem física mas, antes
de tudo, foi “uma concepção no coração pela fé” (LG 63). A virgindade no corpo foi apenas um
sinal, um sacramento da sua virgindade no coração. Que é isso? O fato de ser só de Deus, sem
deixar de ser humana. Aliás, sendo até mais plenamente humana.
Quando São Francisco a saúda como “Virgem feita Igreja” mostra-nos que também nós temos essa virgindade na fé, que prestamos ao Esposo. Imitando a Mãe de seu Senhor, pela virtude do Espírito Santo, a Igreja conserva virginalmente uma fé íntegra, uma sólida esperança e
uma sincera caridade (LG 64). “Como por ela era piedosamente movido para todas as criaturas,
especialmente, porém para as almas remidas pelo precioso sangue de Cristo, quando as via
manchadas por alguma sujeira de pecado, deplorava com tanta ternura de comiseração, que
todos os dias dava-as à luz como uma mãe em Cristo” (LM 8,3).
Nós temos o papel de ajudar as pessoas a serem mais humanas: é assim que Deus vai continuando a se encarnar.
10.3 Levar Jesus no coração e no corpo
Santa CLara tem algumas preciosas passagens de suas cartas em que também ensina como
ser mãe de Jesus:
“Falo do Filho do Altíssimo, que a Virgem deu à luz permanecendo virgem depois do parto.
Prenda-se à sua dulcíssima Mãe, que gerou tal Filho que os céus não podiam conter, mas que
ela recolheu no pequeno claustro do seu santo seio e carregou no seu regaço de menina” (3CtIn
17-19).
“Assim como a gloriosa Virgem das virgens o trouxe materialmente, assim também você,
seguindo seus passos, especialmente os da humildade e pobreza, sem dúvida alguma poderá
trazê-lo espiritualmente em um corpo casto e virginal. Você vai conter quem pode conter você e
todas as coisas, vai possuir algo que, mesmo comparado com as outras posses passageiras deste
mundo, será mais fortemente seu” (3CtIn 24-26).
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Frei José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap
Levar no coração e no corpo é celebrar o fato de que somos imagem e semelhança, somos
palavras originais e filhos adotivos, somos outros cristos.
10.4 Dar à luz pela santa operação
Com muita beleza e mestria, Clara usa diversas vezes a imagem bíblica do espelho que, para
ela, é Jesus. Ser espelho é uma expressão freqüente na literatura mística da Idade Média, como
podemos encontrar em São Bento, Guilherme de Saint-Thierry e nas místicas da “Brautmystik”.
Nós a encontramos nas Cartas e no Testamento de Santa Clara. As citações são as seguintes:
“Ponha a mente no espelho da eternidade, coloque a alma no esplendor da glória” (3CtIn
12).”
“Pois é o esplendor da glória eterna, o brilho da luz perpétua e o espelho sem mancha. Olhe
dentro desse espelho todos os dias, ó rainha, esposa de Jesus Cristo, e espelhe nele, sem cessar,
o seu rosto” (4CtIn 14-15).
“Pois nesse espelho resplandecem a bem-aventurada pobreza, a santa humildade e a inefável
caridade, como, nele inteiro, você vai poder contemplar. Preste a atenção no princípio do espelho: a pobreza daquele que, envolto em panos, foi colocado no presépio” (4CtIn 18-19).
“No meio do espelho, considere a humildade, ou, pelo menos, a bem-aventurada pobreza, as
fadigas sem conta e as penas que suportou pela redenção do gênero humano” (4CtIn 22).
“E, no fim desse mesmo espelho, contemple a caridade inefável com que quis padecer no lenho da cruz e nela morrer a morte mais vergonhosa. Assim, posto na árvore da cruz, o próprio
espelho advertia quem passava para o que deviam considerar” (4CtIn 23-24).
“Pois o próprio Senhor colocou-nos não só como modelo, exemplo e espelho para os outros,
mas também para nossas irmãs, que Ele vai chamar para a nossa vocação. Para que também
elas sejam espelho e exemplo para os que vivem no mundo. Portanto, se o Senhor nos chamou
a coisas tão elevadas que em nós possam espelhar-se as que deverão ser exemplo e espelho para
os outros” (TestC 19-21).
Há uma coincidência em toda esta utilização da simbologia do espelho. Sempre se usa para
indicar algo profundo que tem que recorrer a tal simbologia para expressar alguma coisa além
da realidade em si. Isso se chama sacramentalidade. Cristo, Francisco, as Irmãs ... são um sa118
Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
cramento em que Clara se espelha ou para quem ela é espelho. Precisamente, em um excelente
artigo sobre esta questão, Dino Dozzi traçou esta linha de compreensão do “espelho de Clara”
como sacramento de uma presença. Diz Dozzi que, nos Escritos de Clara, o espelho se refere a
realidades diversas, mas sempre se trata de pessoas: Cristo, Francisco, Clara, Inês, as primeiras
Irmãs, as Irmãs futuras. Os diversos “espelhos” de que Clara fala estão relacionados até ser um
sacramento, sinal e instrumento do outro, e assim até chegar ao Espelho por antonomásia que
é Cristo.
Também se pode sublinhar a reciprocidade da presença que está por’ baixo. Este espelho torna Cristo presente para Clara, mas também Clara’ para Cristo e para si mesma; torna presente
Francisco para Clara, mas também Clara para Francisco; torna presente Clara para Inês, mas
também Inês para Clara; torna presente Clara para as primeiras irmãs. O espelho como sacramento de uma presença cria contemporaneidade, horizontes profundos, faz de todos, para além
de qualquer barreira cronológica, uma só família. Deste modo, quem se ensimesma no Espelho
de Cristo Esposo, quem se reflete no espelho fraterno do amigo do Esposo (Francisco) convida
Inês e as Irmãs a ser por sua vez “espelhos vivos”, isto é, sacramentos de outra Presença para elas
mesmas, para as Irmãs que virão no futuro, para todos que puderem aproximar-se do mosteiro.
Mas essa sacramentalidade exemplar (speculum et exemplum), não se refere unicamente a
uma convivência sadia, bela e amável no recolhido claustro damianita. Há uma exemplaridade
que se explica pela missão eclesial que Clara e as Irmãs receberam, e que, portanto, tem uma
projeção apostólica a partir desse mesmo locus charismaticus. Aqui torna a aparecer o paralelismo entre Santa Clara e São Paulo. O apóstolo, que falou em ser “espelho da glória do Senhor”, ele
que se espelhou em Cristo até ser nele também transformado, disse igualmente que completava
e supria o que faltava no Corpo de Cristo, e que considerava os irmãos das diversas comunidades fundadas por ele como “colaboradores” em Cristo. Esse é o teor das palavras de Clara a
Inês a respeito da intercessão em favor da Igreja: “Eu a considero, num bom uso das palavras do
Apóstolo, auxiliar do próprio Deus, sustentáculo dos membros vacilantes de seu Corpo inefável” (3CtIn 8).
10.5 Com Maria na missão da Igreja
A contemplação esponsal de Clara e das Irmãs não era uma piedosa fuga de todos os dramas
em que os membros do Corpo inefável de Deus podem cair. É um binômio entre contemplação
esponsal e missão eclesial, que não só não se opõem, mas se exigem reciprocamente. “A contemplação está unida à missão, pois na medida em que se realizou o que é Deus, e se experimentou
até que ponto o fato de conhecer e amar a Deus é constitutivo de um humanismo total e de
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Frei José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap
uma existência completa, nessa medida se sofre e fica surpreso de que Deus não seja conhecido
e não seja amado”. Por isso podemos afirmar que a delicada, profunda e extensa contemplação
esponsal de Clara, permitiu-lhe entrar em comunhão missionária com todos os “gemidos” da
humanidade e da Igreja, nos membros que vacilam e caem (cadentium membrorum).
Esse ardor missionário de partilhar as dores do Corpo de Cristo, levou-a a curar doenças
de Irmãs ou de outros que iam a São Damião com sofrimentos físicos, psíquicos, e mesmo
morais. E houve outro testemunho eclesial muito concreto: quando os “membros que vacilam”
não eram os enfermos de males físicos, psíquicos ou morais, mas os próprios pastores que demonstravam fraqueza diante de sua missão. Era ao testemunho da hierarquia da Igreja que esta
mulher, esposa de Cristo, atendia, para sustentá-los em sua missão dentro e à frente da Igreja,
esposa de Cristo também.
Hugolino nos dá testemunho disso, tanto quando era cardeal, como quando foi eleito Papa.
São dois textos cheios de agradecimento e afeto para com a esposa Clara, em quem se reconhece
como irmã e mãe:
“À caríssima irmã em Cristo e mãe de sua salvação, dona Clara, serva de Cristo, Hugolino,
ostiense, indigno e pecador, recomenda-se em tudo que é e pode ser [ ... ] Entrego-lhe minha
alma e lhe recomendo meu espírito, para que, como Jesus entregou o espírito a seu Pai na cruz,
você também responda por mim no dia do juízo, se não tiver sido solícita e atenta por minha
salvação. Estou certo de que conseguira do sumo Juiz tudo que pedir com insistência de ‘tanta
devoção e abundância de lágrimas”.
“À dileta filha abadessa e à comunidade das monjas reclusas de São Damião de Assis [ ... ]
como, no meio das numerosas amarguras e infinitas angústias que sem cessar nos afligem, vós
sois nossa consolação [ ... ] fareis com que Deus seja glorificado ‘em vós e nos enchereis de gozo,
pois vos abraçamos com íntimo amor como filhas prediletas, ou melhor, se podemos dizê-lo,
como senhoras, pois são esposas de nosso Senhor. Mas porque, como confiamos vos fizestes um
só espírito com Cristo, pedimos que em vossas orações, lembrando-se sempre de nós, eleveis
as piedosas mãos ao céu, suplicando insistentemente que Aquele que sabe que nós, colocados
no meio de tantos perigos, não podemos agüentar por nossa fragilidade, nos dê força por sua
virtude, conceda-nos dar conta tão dignamente do ministério que nos confiou que redunde em
glória para Ele, alegria para os anjos e salvação para os que foram confiados ao nosso governo”.
A relação de afeto do Pastor Supremo da Igreja ficou marcada também em uma chave esponsal na carta circular que o cardeal Reinaldo enviou nesse mesmo ano de 1228 (datada em 18
de agosto), para comunicar a nomeação do novo visitador e assistente das damianitas (precioso
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Abrace o Cristo Pobre – A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
documento em que temos um primeiro elenco dos mosteiros das origens clarianas): Frei Filipe
Longo. Mas no curso da carta, se diz explicitamente o que as Irmãs significavam para o Papa:
“Ele fez seu vigário na terra aquele que era vosso pai e senhor, cujo amor por vós não sofre o
desgaste da diminuição, pois consegue crescer todos os dias. De fato foi oportuno e conveniente
que o Vigário de Cristo Esposo, pastor e bispo do rebanho universal do Senhor, também se ligasse por amor perpétuo às adolescente em cujo amor castíssimo apóia-se o Esposo”.
Podemos ver nesse relacionamento entre o Papado e Clara o que teólogo H.U. Von Baltasar
aplicava ao relacionamento a Igreja e Maria:
“Em Maria a Igreja tomou corpo antes de se organizar em Pedro. A Igreja é primeiro feminina, e esta prioridade é uma constante que subsiste quando recebe seu complemento masculino
no ministério eclesiástico [ ... ] E só para que não se esqueça dessa feminilidade primordial, só
para que seja sempre receptáculo e não possessiva e dispositiva, incrustou nela o ministério
masculino, que representa o Senhor administrador da Igreja, sempre dentro dos limites de sua
receptividade feminina”.
Neste sentido há uma complementaridade entre Instituição e Carisma, entre Pedra e Maria,
entre Gregório IX e Clara. Devemos dizer que Santa Clara representou para seu mundo e para
sua Igreja esse espelho em que se podia reconhecer a ternura e a bondade de Deus, precisamente
porque ela se espelhava no Espelho de Deus, até ser transformada nele.
Essa foi à missão clariana a partir de uma contemplação esponsal: aproximar ao homem
concreto, ao mundo concreto, à Igreja concreta o rosto de um Deus Esposo, amante, doce e luminoso, para todas as amarguras e escuridões que pode haver nos membros desse grande corpo
que representa a humanidade e a Igreja. A partir da Igreja, e em filial e real comunhão com ela,
Clara foi speculum et exemplum, ícone vivo do que Deus quer de todos seus filhos. Ela mostrou assim uma pequena porção de terra (porciúncula) em que verdadeiramente se vivia como
cristão. São Damião tornou-se desse modo um lar aberto para todos: pobres, enfermos, frades,
prelados. Cada qual em sua medida ou necessidade, encontrou em São Damião a bênção e a luz
que Deus repartia pelas mãos daquela que foi esposa para Cristo, e mãe e irmã para todos os
que nele amou.
“Filha bendita, como a língua do corpo não pode expressar melhor o afeto que tenho por
você, peço que aceite com bondade e devoção isto que eu escrevi pela metade, olhando ao menos o carinho materno que me faz arder de caridade todos os dias por você e suas filhas” (4CtIn
36-37).
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Ao finalizar toda esta nossa consideração, é bom recordar um pensamento que encontramos
ao estudar Orígenes:
Como o Pai gera eterna e continuamente o Filho, o Filho é concebido de modo permanente
na alma do crente através de uma vida santa, com boas ações, até chegar à bem-aventurança de
uma estreita união com o Filho, em que poderá gozar da visão do Pai como o próprio Cristo o
vê. É o ponto alto de um caminho esponsal: chegar à mais completa transformação naquele a
quem amamos.
A alma chega à perfeição quando pode cantar com a Esposa.
Frei José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap
Abrace o Cristo Pobre - A Espiritualidade de Santa Clara de Assis
Curso de Verão
Centro Franciscano de Espiritualidade
Piracicaba - 2009
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