Cheque-caução em hospital agora é crime Carlos Eduardo Rios do Amaral Defensor Público no Estado do Espírito Santo Era de nossa jurisprudência pátria o seguinte entendimento, que pode ser muito bem sintetizado na conhecida Ementa do Acórdão abaixo: “CHEQUE. CAUÇÃO. CAUSA DEBENDI. POSSIBILIDADE. Cheque entregue para garantir futuras despesas hospitalares deixa de ser ordem de pagamento à vista para se transformar em título de crédito substancialmente igual a nota promissória. É possível assim, a investigação da causa debendi de tal cheque se o título não circulou. Não é razoável em cheque dado como caução para tratamento hospitalar ignorar sua causa, pois acarretaria desequilíbrio entre as partes. O paciente em casos de necessidade, quedar-se-ia à mercê do hospital e compelido a emitir cheque, no valor arbitrado pelo credor. (REsp 796.739/MT, Rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, TERCEIRA TURMA, julgado em 27/03/2007, DJ 07/05/2007, p. 318)” Repetindo trecho do Acórdão Estadual recorrido, quando do julgamento deste Recurso Especial, assentou o Min. Relator em seu judicioso Voto: “O TJMT admitiu a discussão da causa debendi do cheque com os seguintes fundamentos: ‘É de conhecimento público que os hospitais particulares em geral usam desse expediente, ou seja, obrigam o acompanhante ou o próprio paciente a emitir cheque caução para fins de internação, fato vivenciado pela apelante, pois necessitando internar seu esposo para continuar o tratamento dos ferimentos sofridos em decorrência de um acidente automobilístico, teve que deixar um cheque em branco para o hospital a fim de garantir o pagamento das despesas hospitalares e honorários médicos. É importante registrar que em situações como esta a orientação deste e de outros Tribunais de Justiça é no sentido de se admitir a discussão da causa debendi do cheque dado em garantia de pagamento de tratamento ou internamento hospitalar visando apurar o valor real do serviço efetivamente prestado e ao mesmo tempo coibir abusos por parte do credor’ (fl. 114) É oportuno registrar que o cheque foi entregue ao hospital, não como ordem de pagamento à vista, mas como uma promessa de pagamento de despesas ainda não realizadas. Se assim ocorreu, o título deixou de ser um cheque e - substancialmente - tornou-se nota promissória. Se assim ocorreu, a lide há de ser resolvida à luz do direito cambial. A autonomia domina o Direito Cambiário. Esse princípio, contudo, comporta exceção. Em algumas situações, é possível a discussão da origem do título. Quando o título não circula, envolvendo apenas sacador e beneficiário, é possível a oposição de exceções pessoais. Confira-se precedente desta Terceira Turma: ‘CHEQUE. CAUSA DEBENDI. Possibilidade de seu exame, não havendo o cheque circulado. Juros. Alegação de cobrança acima do limite legal. Admissível que disso se faça demonstração com os meios de prova em geral, não sendo indispensável a de natureza documental.’ (REsp 103.293⁄EDUARDO). No caso em exame, a recorrida não nega a emissão do cheque para garantir o tratamento de seu marido. Entretanto, nega haver efetuado despesa em valor equivalente ao do cheque. Não seria razoável em cheque dado como caução para tratamento hospitalar ignorar-lhe a causa. Do contrário, gera-se desequilíbrio entre as partes. O devedor, em situação de necessidade quedar-se-ia à mercê do hospital, compelido a emitir cheque no valor exigido pelo prestador do serviço. Esta Turma já teve oportunidade de decidir a questão, em acórdão lavrado pelo eminente Ministro Menezes Direito: ‘CHEQUE. EMBARGOS DE DEVEDOR. GARANTIA. INVESTIGAÇÃO DA CAUSA. 1. Reconhecendo embora a divergência doutrinária e jurisprudencial, não é razoável juridicamente admitir-se o cheque como caução, como garantia, e negar-se a relação entre a garantia e a sua causa. Essa posição permitiria toda sorte de abusos, ocasionando o enriquecimento sem causa, como no presente caso, no qual se ofereceu em garantia um cheque de valor muito maior do que o efetivamente comprometido. 2. Se a praxe no mercado aceita o cheque em garantia, vedar, em tese, a investigação da causa debendi propiciaria um desequilíbrio na relação jurídica entre partes, uma das quais, em casos de extrema necessidade, ficaria a depender do arbítrio da outra. Se o cheque ganhou essa dimensão, fora do critério legal, que tanto não regulou, é imperativo extrair a conseqüência própria, especifica. Por essa razão, é que deve ser admitida a investigação da causa debendi. 3. Recurso especial conhecido, mas, não provido.’ (REsp 111.154)”. Pois bem. O fato é que era lícita a exigência de cheque dado como caução para garantia de tratamento hospitalar. Malgrado o enfraquecimento de sua plena exequibilidade, abrindo-se a oportunidade da discussão de sua causa debendi pelo sacador da cártula. Percebendo a desvantagem exagerada posta em desfavor do consumidor, a Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS, no uso de suas atribuições institucionais, no Ano de 2003, editou a seguinte Resolução: “RESOLUÇÃO NORMATIVA - RN Nº 44, DE 24 DE JULHO DE 2003 Art. 1º Fica vedada, em qualquer situação, a exigência, por parte dos prestadores de serviços contratados, credenciados, cooperados ou referenciados das Operadoras de Planos de Assistência à Saúde e Seguradoras Especializadas em Saúde, de caução, depósito de qualquer natureza, nota promissória ou quaisquer outros títulos de crédito, no ato ou anteriormente à prestação do serviço”. Entretanto, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) é agência reguladora do setor de planos de assistência e seguros de saúde, deixando a Resolução nº 44/2003 de regular, assim, a atividade de Hospitais privados e particulares e seus contratos de prestação de serviços diretamente com pacientes. O Novo Código Civil, desde sua vigência em 2003, também procurou remediar a vulnerabilidade dos usuários de serviços médicos quanto à exigência de saques de títulos cambiários para garantia de tratamento de saúde. Apontando como um dos defeitos do negócio jurídico, o Código Civil, em seu Art. 156, estabeleceu: “Seção IV Do Estado de Perigo Art. 156. Configura-se o estado de perigo quando alguém, premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa. Parágrafo único. Tratando-se de pessoa não pertencente à família do declarante, o juiz decidirá segundo as circunstâncias”. Curioso salientar aqui que dificilmente o leitor encontrará algum Manual ou Obra jurídica que não citará como exemplo de Estado de Perigo a pessoa que se vê compelida a depositar ou prestar garantia por meio de fiança ou emissão de cambial com o propósito de internação ou atendimento emergencial de um parente em perigo de morte. Por todos, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (in Novo Curso de Direito Civil: Parte Geral. 5ª. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2004.) sobre a caracterização do Estado de Perigo lecionam: “Não há como não se reconhecer a ocorrência deste vício no ato de garantia (prestação de fiança ou emissão de cambial) prestado pelo indivíduo que pretendia internar, em caráter de urgência, um parente seu ou amigo próximo em determinada unidade de terapia intensiva, e se vê diante da condição imposta pela diretoria do hospital, no sentido de que o atendimento emergencial só é possível após a constituição imediata de garantia cambial ou fidejussória”. Malgrado os incansáveis esforços da jurisprudência e da doutrina pátrias, como visto acima, o emitente de título de crédito ou prestador de garantia fidejussória ou real deveria fazer verdadeiro malabarismo entre as diversas disposições legais, substanciais e processuais, para junto ao Poder Judiciário tentar alcançar a inexigibilidade e iliquidez dessas condicionantes para atendimento médico-hospitalar emergencial. Sucumbindo muitas vezes o consumidor. Até que em 28 de Maio de 2012, a Senhora Presidente Dilma Rousseff, sancionou a Lei Ordinária Federal nº 12.653, que acrescentou ao Código Penal o Art. 135-A, tipificando como crime condicionar atendimento médico-hospitalar emergencial a qualquer garantia. Eis o novo tipo penal: “Art. 135-A. Exigir cheque-caução, nota promissória ou qualquer garantia, bem como o preenchimento prévio de formulários administrativos, como condição para o atendimento médicohospitalar emergencial: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. Parágrafo único. A pena é aumentada até o dobro se da negativa de atendimento resulta lesão corporal de natureza grave, e até o triplo se resulta a morte”. A Lei nº 12.653/2012 ainda dispôs: “Art. 2º O estabelecimento de saúde que realize atendimento médico-hospitalar emergencial fica obrigado a afixar, em local visível, cartaz ou equivalente, com a seguinte informação: ‘Constitui crime a exigência de cheque-caução, de nota promissória ou de qualquer garantia, bem como do preenchimento prévio de formulários administrativos, como condição para o atendimento médicohospitalar emergencial, nos termos do art. 135-A do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal’”. Destarte, através da novel Lei nº 12.653/2012 chega ao fim toda e qualquer discussão jurisprudencial, doutrinária e acadêmica a respeito da exigência de garantia para atendimento médico-hospitalar. De agora em diante, o credor dessa garantia será tipo por criminoso e o devedor, por sua vez, será considerado vítima desse delito, estando o primeiro submetido a todos os rigores da lei penal. Durante a tramitação do PLC nº 34/2012, que deu origem à Lei nº 12.653/2012, seu Relator na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado Federal, o Senador Humberto Costa, fez as seguintes considerações em seu Voto: “Relativamente ao mérito, mencione-se que o PLC n° 34, de 2012, visa coibir casos extremos que, com certa frequência, têm ocorrido em diversos hospitais do País, quais sejam, recusas de atendimento emergenciais na impossibilidade de o paciente não dispor, no momento, de recursos ou outras formas que atendam as suas exigências de caução e de garantias. Não menos usual tem sido a ocorrência de graves danos à saúde desses pacientes, inclusive óbitos, em decorrência da falta do pronto atendimento. As repercussões dessas situações ilustram a gravidade da situação enfrentada diariamente por beneficiários de planos de saúde em hospitais de todo o País. Como se depreende, torna-se necessário combater a impunidade que vem permitindo a continuidade dessa prática nociva de exigir garantia antes do atendimento médico-hospitalar emergencial. Para tanto, é mister inserir no Código Penal dispositivo que a tipifique como crime; assim, nos termos do projeto em exame, o condicionamento de atendimento médico-hospitalar emergencial à exigência de caução, nota promissória ou qualquer garantia, como também ao preenchimento prévio de formulários administrativos, passa a configurar crime sujeito a detenção e multa. O PLC n° 34, de 2012, trata, portanto, de priorizar a vida em vez da tendência observada de subordinar tudo ao lucro e ao ganho. Por fim, é de realçar que a lei nasce do fato social. Portanto, a proposição se nos afigura oportuna e socialmente justificável, porquanto visa a solucionar definitivamente um problema grave, que pode, infelizmente, afetar qualquer pessoa”. Legem habemus. A Lei nº 12.653/2012, tangenciando a ordem econômica nacional, assegura existência digna, conforme os ditames da Justiça Social, observando o princípio máximo de defesa do consumidor, ao criminalizar nefasta conduta empresarial tão afrontosa e violadora da dignidade da pessoa humana.