ECONOMIA E CUSTOS SOCIAIS ECONOMIA E CUSTOS SOCIAIS SINÉSIO PIRES FERREIRA Economista, Gerente de Análise Socioeconômica da Fundação Seade A tualmente, muito se tem dito sobre as vantagens da flexibilidade que caracteriza o mercado de trabalho nos Estados Unidos, imputando-se a ela a grande capacidade de geração de empregos que a economia desse país apresentou nos últimos anos e a conseqüente estabilização de sua taxa de desemprego. O objetivo deste artigo é tentar caracterizar melhor o comportamento recente daquele mercado, mostrando que, embora distinto do observado nos países europeus, também foi marcado pela deterioração das condições de trabalho que acompanha o processo mais amplo de transformações experimentado pela economia mundial desde os anos 70. Marion Shaw enfatiza na introdução à sua antologia de textos literários sobre trabalho e gênero que o trabalho desempenha um papel central em nossas vidas, não somente por nos permitir o acesso aos meios de sobrevivência através da renda que proporciona, como também por nos conferir um status social. Ter trabalho, segundo essa perspectiva, significa estar conectado com o mundo, dispor de um lugar na sociedade; o contrário implica uma espécie de exílio, de punição. Nossa própria identidade é permeada pelo trabalho: somos reconhecidos pelos outros – e talvez por nós mesmos – muito mais pelo que fazemos do que por qualquer atributo que possamos ostentar (Shaw, 1995). A perspectiva de um mundo em que parcela expressiva das pessoas é privada de trabalho, portanto, não se limita à questão de como garantir a sobrevivência dos excluídos. A incapacidade de se gerar empregos em número suficiente para tornar o desemprego uma situação excepcional e passageira não é apenas uma hipótese pessimista quanto ao futuro da economia. É algo que já se verifica hoje, inclusive nos chamados países desenvolvidos. As taxas de desemprego na maioria dos países europeus são superiores a 8%, chegando em alguns casos a ultrapassar os 10%, como na França, ou mesmo os 20%, como na Espanha. Nos Estados Unidos, têm oscilado em torno de 6% – bem abaixo, portanto, daquelas registradas na Europa –, mas sua manutenção neste patamar tem implicado pesados custos à força de trabalho do país. Desde a década de 60, observa-se uma desproporção entre as taxas de crescimento do PIB e do emprego nos países centrais, que se acentuou a partir dos anos 70: entre 1976 e 1985, o PIB dos países da União Européia cresceu em média 2,3% ao ano, enquanto o nível de emprego manteve-se praticamente inalterado. A situação foi mais favorável nos Estados Unidos, com o PIB crescendo 2,9% ao ano e o nível de emprego, 2,2% (Botsas, 1995). Este comportamento distinto do nível de emprego dos países europeus e dos Estados Unidos pode ser constatado também pela evolução das respectivas taxas de desemprego: nos anos 80, a taxa de desemprego do conjunto dos países europeus da OCDE passou a superar a dos Estados Unidos, revertendo o padrão histórico de taxas de desemprego mais elevadas neste país (Freeman, 1988). A Tabela 1 mostra que, ao longo da década de 90, a diferença ampliou-se ainda mais, uma vez que a taxa de desemprego norte-americana em 1995 encontra-se no mesmo patamar de 1990, enquanto nos demais países, sobretudo nos europeus, situa-se em níveis muito superiores aos registrados no início da década, chegando a elevar-se em cerca de 35%, nos casos da França e da GrãBretanha. Duas questões centrais decorrem das constatações acima sumarizadas: qual a origem da incapacidade de se gerar empregos num ritmo ou com qualidade adequada às ne- 21 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(1) 1996 cessidades sociais destes países? Quais as razões de comportamentos tão distintos entre os mercados de trabalho europeus e norte-americano? O objetivo deste texto é levantar algumas hipóteses que possam auxiliar nas respostas a tais questões. que busca feroz e crescentemente lucros de curto prazo e dificulta – ou mesmo impede – a gestão das políticas monetária e cambial pelos bancos centrais. Como observou Tavares (1993), “as flutuações das taxas de câmbio e de juros, acompanhadas de fortes movimentos de capitais, modificaram as condições de financiamento do Estado e de rentabilidade da grande empresa dentro dos países centrais, forçando a um aumento da competição internacional que, por sua vez, obrigou a uma rápida transformação industrial e tecnológica”. Pode-se associar estes movimentos – o acirramento da concorrência internacional e a transformação tecnológica – a algumas das visões mais influentes sobre os problemas que afetam o mercado de trabalho nas economias centrais. Segundo Amadeo (1995), há essencialmente duas teses em voga a respeito desta questão: a do secretário do trabalho norte-americano, Robert Reich, e aquela atribuída ao economista Paul Krugman.1 A primeira considera que o crescente ingresso de produtos manufaturados produzidos por países onde a remuneração do trabalho é muito baixa, como é o caso dos países em desenvolvimento, é um dos fatores importantes para explicar a ampliação do desemprego e/ou a queda dos salários, em especial de trabalhadores menos qualificados, na Europa e Estados Unidos. Seu corolário, afirma Amadeo, “é que está em curso um processo de equalização internacional dos preços dos fatores de produção, com os salários dos trabalhadores menos qualificados dos países ricos tendendo para o mesmo patamar dos trabalhadores (pouco qualificados) dos países mais ou menos pobres”. A segunda destaca o viés tecnológico, poupador de trabalho, principalmente de trabalho não qualificado, que vem produzindo efeitos negativos e irreversíveis sobre os níveis de emprego e a distribuição de renda. Não se pretende aqui discutir tais teses, mas apenas ressaltar que ambas, a partir de óticas teóricas e políticas diversas, apontam para uma perspectiva pessimista, com a crescente heterogeneização do mercado de trabalho, o que, de fato, já vem sendo captado nos levantamentos empíricos cujos resultados foram acima parcialmente sintetizados. Sob a ótica da organização industrial – e recorrendo mais uma vez às observações de Amadeo (1995), – as principais ações que vêm sendo realizadas pelas firmas são a desverticalização e o downsizing,2 o que implica a descentralização das atividades empresariais e a maior participação das pequenas e médias empresas e do trabalho autônomo nas atividades econômicas ou, de forma sintética, a redução da presença de mecanismos extramercado nas relações econômicas. É interessante notar que, no passado, a estratégia empresarial dominante era, inversamente, a de maior centralização das atividades no interior das empresas, com menor participação, portanto, da TABELA 1 Taxas de Desemprego Países Selecionados – 1990-1994 Em porcentagem Países Canadá França Alemanha Ocidental Itália Japão Grã-Bretanha Estados Unidos 1990 1994 1995(1) 8,1 9,2 5,2 7,0 2,1 6,9 5,5 10,4 12,7 5,8 11,4 2,9 9,6 6,0 9,7 12,5 6,5 12,2 3,0 9,3 5,5 Fonte: U.S. International Trade Comission; U.S. Department of Labor. (1) Refere-se ao primeiro trimestre de 1995. TRANSFORMAÇÕES ECONÔMICAS E MERCADO DE TRABALHO As profundas alterações nas condições de funcionamento das economias capitalistas, a partir da década de 70, são bastante conhecidas e foram objeto de vários estudos. Os arranjos institucionais estabelecidos no pós-guerra, associados à particular situação política internacional, permitiram a emergência de um período de excepcional estabilidade das principais variáveis macroeconômicas e uma combinação virtuosa de crescimento econômico e pleno emprego. Como sintetizou Mattoso (1994), “o mercado de trabalho, crescentemente homogêneo, registrou níveis de desemprego praticamente inexistentes. Os salários articularam-se estreitamente com a elevação da produtividade e dos preços e ampliaram seu poder de compra. Os salários indiretos obtiveram aumentos, sendo que parcelas significativas do custo do trabalho foram assumidas socialmente pelo Estado. As relações de trabalho adquiriram um caráter mais padronizado e a contratação coletiva exerceu uma função econômica favorável à administração da demanda agregada”. A crise do padrão monetário internacional, a partir dos anos 70, e as tentativas de superá-la – em especial as políticas de ajuste do balanço de pagamentos norte-americano e de sustentação do dólar – não somente implicaram profunda instabilidade das principais variáveis macroeconômicas, sobretudo das taxas de câmbio e de juros, como também levaram à reestruturação industrial a que se vem assistindo nas principais economias do mundo. Simultaneamente, formou-se, à revelia dos Estados nacionais e fora de seu controle, um verdadeiro cassino financeiro, 22 ECONOMIA E CUSTOS SOCIAIS mediação do mercado nas transações econômicas. Mas, “num ambiente mais competitivo e mais volátil”, sustenta Amadeo, “os custos de coordenação de diferentes atividades tornam-se maiores, favorecendo a descentralização” (Amadeo, 1995). As conseqüências deste movimento são muitas, podendo ser relacionadas às dificuldades de coordenação interempresarial e à menor capacidade de realização de certos investimentos, em particular aqueles de custo fixo muito elevado ou cuja escala mínima é muito superior à possibilidade de uso individual (Amadeo, 1995). A rigor, o atual ambiente econômico pode estar afetando negativamente a realização de qualquer investimento que implique aumento da capacidade instalada. Embora sejam necessários maiores estudos empíricos para sustentar esta hipótese – numa situação de alta instabilidade das principais variáveis macroeconômicas, de redução da capacidade de consumo das famílias, quer pelo aumento do desemprego, quer pela redução dos níveis reais dos salários e das restrições aos gastos públicos –, pode-se afirmar que dificilmente ocorrerá uma grande onda de novos investimentos, salvo em alguns segmentos muito específicos. Os atuais movimentos de aquisições e fusões empresariais e a pressão pelas privatizações de empreendimentos públicos talvez sejam a outra face desta moeda, diante de uma enorme massa de capitais buscando opções de valorização. As mudanças na organização industrial relacionam-se ainda com a crise fiscal e do welfare state nos países desenvolvidos. Para Tavares (1993:64-65), além de acarretar alterações nas estruturas demográfica e ocupacional – que resultaram na informalização das relações de trabalho e na conseqüente redução da base de arrecadação das contribuições sociais, tornando-as insuficientes para a cobertura da seguridade social –, essas mudanças na organização industrial afetam de várias formas a capacidade arrecadadora das economias nacionais. Sintetizando suas observações, destaque-se: a desconcentração e a internacionalização da produção, que implicaram a redução da base tributária sobre os lucros dos grandes grupos econômicos; o apoio do Estado à reestruturação das grandes empresas, inclusive bancárias, através de várias formas de transferências patrimoniais que, em última instância, significam a socialização das perdas e a privatização dos lucros a favor de tais empresas; e, finalmente, o grande número de pequenas empresas surgidas a partir da reestruturação industrial que, embora modernas, muitas têm pelo menos um ponto em comum com o velho setor informal, característico dos países latino-americanos, ou seja o não pagamento de impostos. É importante ressaltar que, em praticamente todo o mundo desenvolvido, tem havido iniciativas no sentido de restringir salários e gastos sociais, exatamente no momento em que o desemprego atinge níveis tão elevados. Em alguns casos, como ocorre na Inglaterra, propõem-se reformas na organização dos sistemas de seguridade social baseadas nos mesmos princípios que presidiram a reestruturação do setor privado, como se “as mudanças econômicas tivessem a mesma natureza das mudanças climáticas, algo que não depende da vontade humana e cujos efeitos talvez possam ser mitigados, mas nunca evitados” (Woollacott, 1996:13). Há ainda outros elementos que afetam negativamente a situação das finanças públicas, desde o aumento das despesas correntes com os serviços financeiros da dívida pública – relacionado com as tentativas dos Estados nacionais de regular os desequilíbrios do balanço de pagamentos – até a chamada financeirização da riqueza (Braga, 1993) – que, além de produzir efeitos perversos na distribuição de rendimentos, dificulta enormemente a capacidade pública de tributação sobre os titulares deste patrimônio e das rendas que produz (Tavares, 1993:66). De maneira geral, pode-se afirmar que as forças centrífugas que caracterizam a economia contemporânea vêm ampliando e aprofundando as diferenças sociais e limitando as perspectivas de progresso a segmentos cada vez mais restritos da população, num momento em que as possibilidades objetivas – e mesmo subjetivas – da ação pública de contrabalançar estas forças são extremamente frágeis. DOIS MODELOS? Não há dúvidas de que vem ocorrendo uma precarização das condições de funcionamento do mercado de trabalho nos países centrais. Na Europa, isto é facilmente constatado pela elevação das taxas de desemprego. Nos Estados Unidos, embora estas taxas se mantenham estáveis, essa precarização evidencia-se na qualidade dos empregos gerados e no comportamento desfavorável da distribuição dos rendimentos. A despeito disto, vários analistas consideram o “modelo” norte-americano mais adequado ao novo ambiente econômico internacional, ao contrário do que se dizia há alguns anos. O secretário do Trabalho do governo Clinton, Robert Reich, em discurso pronunciado em 1994, apontou ironicamente para este fato: “(...) há alguns anos, a visão convencional era a de que a Europa e o Japão agiam sempre corretamente e tudo o que os Estados Unidos faziam era errado. O que quer que se pudesse aprender, deveríamos aprender com eles e eles nada tinham a aprender conosco. Hoje, a nova visão convencional é diametralmente oposta: tudo o que fazemos está certo e tudo o que fazem Europa e Japão está errado. Nenhuma destas posições está correta”.3 23 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(1) 1996 A atual visão convencional destaca uma série de características institucionais do mercado de trabalho dos países europeus – a despeito de toda flexibilização que já promoveram – como causas da ampliação extrema do desemprego naquelas economias, quais sejam: maior importância da ação sindical, que implica menor flexibilidade dos mercados de trabalho; maior presença do Estado na regulação dos mercados de trabalho; custos do trabalho não-salariais mais elevados, como, por exemplo, as contribuições para a seguridade social que, nos Estados Unidos, correspondem a cerca de 20% dos salários, enquanto na Europa chegam a 30%, ou as férias remuneradas que, nos Estados Unidos, são, anualmente, no mínimo, de cerca de duas semanas, contra aproximadamente seis semanas na Europa (Botsas, 1995:3); custo mais elevado do seguro-desemprego, decorrente do maior prazo de pagamento do benefício, que contribuiria para a maior duração do desemprego nestes países em comparação com os Estados Unidos.4 Em síntese, a visão convencional indica que a maior proteção social de que gozam os trabalhadores europeus em relação aos norte-americanos tem um custo, que é a menor eficiência econômica e a menor capacidade de investir. Reside aí a explicação para o fato de terem sido criados apenas oito milhões de empregos nesses países, desde 1970, contra mais de 40 milhões nos Estados Unidos. 5 As objeções a este tipo de percepção da realidade socioeconômica dos países desenvolvidos são muitas e de distintas naturezas. Deixando de lado discussões sobre as bases teóricas em que se assenta esta visão, sumarizamse a seguir algumas observações que a questionam. Em primeiro lugar, é freqüentemente mencionado que o “modelo” norte-americano, se não elevou em demasia a taxa de desemprego, implicou outras formas de deterioração das condições de trabalho. Mishel e Bernstein (1993) realizaram um estudo que se constitui num panorama da situação do mercado de trabalho norte-americano no início da década de 90, cujas principais conclusões são as seguintes: - a recuperação econômica experimentada na década de 80 foi atípica, na medida em que a situação da maioria dos norte-americanos era pior em 1989 que no final dos anos 70; - o crescimento da renda das famílias entre 1979 e 1989 foi mais lento que em qualquer outro período de recuperação econômica desde a II Guerra e não afetou a todas na mesma proporção: aquelas no topo da distribuição (1% mais ricas) tiveram sua renda acrescida em mais de 60%, enquanto as 60% mais pobres sofreram perdas. Ademais, este movimento foi acompanhado da ampliação das horas trabalhadas e da entrada de um número maior de mulheres, em especial casadas, no mercado de trabalho. Com a queda da atividade econômica, o rendimento médio real das famílias diminuiu 4,4%, entre 1989 e 1991; - o principal determinante do desempenho da renda familiar foi o comportamento dos salários que, na média, reduziram-se em 4,9%, entre 1979 e 1989. Esta queda foi mais intensa entre os jovens com segundo grau completo e a população masculina; - o crescimento do emprego entre 1979 e 1989 foi de 1,7% ao ano. Embora lento, foi acompanhado da diminuição da taxa de desemprego (de 5,8% para 5,3%). A explicação para esse fenômeno reside antes na pequena expansão da população em idade ativa (0,9% a.a.) e na queda da taxa de participação (-0,25% a.a.) que na expansão do emprego;6 - os novos postos de trabalho criados no período em questão foram, em sua maioria, de baixa qualidade. O emprego em tempo parcial – normalmente associado a salários baixos, menores requisitos de qualificação, pequenas chances de promoção, menor tempo de permanência, poucos benefícios e status inferior – correspondia, em 1989, a 18,9% do total de empregos no país, enquanto em 1973 este percentual era de 16,6%. Esta expansão deu-se, principalmente, pelo aumento do número daqueles que involuntariamente exercem atividades com esta característica, ou seja, trabalham em tempo parcial, embora desejassem e tivessem disponibilidade para exercer jornada completa (cujo percentual passou de 3,1% para 5,4%, no período).7 Outra forma de inserção produtiva que se ampliou no período foi o “múltiplo emprego” (multiple jobholding), reflexo da deterioração salarial já mencionada. A proporção de trabalhadores nesta situação passou de 4,9%, em 1979, para 6,2%, em 1991, o que equivale a dizer que mais 2.500.000 pessoas passaram a fazer parte deste contingente, no período considerado. Embora não existam estatísticas seguras sobre o assunto, há indicações importantes sobre o crescimento do emprego de trabalhadores temporários. As três formas mais usuais de se contratar este tipo de trabalhadores são: a manutenção pelas próprias empresas de um pool de trabalhadores temporários que são acionados eventualmente (internal temporary worker pool); o recurso a empresas especializadas em colocação de mãode-obra temporária; e a contratação direta de trabalhadores autônomos. A partir de pesquisas distintas, nota-se que as três formas de contratação vêm se ampliando desde 1986, ano em que tais informações passaram a estar disponíveis. Por último, o crescimento do número de trabalhadores autônomos (self-employed), cuja participação no emprego total passou de 7,1%, em 1979, para 7,8%, em 1991. Na maior parte dos casos, os trabalhadores autônomos auferem rendimentos muito menores que os assalariados, sobretudo quando do sexo feminino.8 24 ECONOMIA E CUSTOS SOCIAIS Em resumo, pode-se inferir dessas informações que a redução dos salários reais implicaram uma compressão do rendimento das famílias que, por seu turno, induziu tanto uma inserção mais acentuada das mulheres – em especial, as casadas – no mercado de trabalho, quanto o exercício do trabalho em mais de um emprego.9 Por outro lado, os empregos gerados foram, em boa medida, de tempo parcial ou temporários, reduzindo os benefícios do trabalho, dificultando a ação sindical e, por conseqüência, diminuindo ainda mais os salários. Estas informações dão suporte a argumentos como de Freeman, segundo o qual “há um custo substancial associado à criação de empregos nos Estados Unidos”. Primeiro, porque “os Estados Unidos pagam pela criação de empregos com menor crescimento dos salários reais e da produtividade”; e, segundo, “se algumas pessoas entraram no mercado de trabalho em resposta aos menores rendimentos do chefe de domicílio, seu emprego reflete muito mais uma deterioração do que uma melhoria do bem-estar econômico” (Freeman, 1988:298-299). O desempenho do mercado de trabalho nos Estados Unidos pode também ser questionado, relacionando-o ao déficit das contas públicas (Freeman, 1988:299), que aumentou muito nos últimos governos republicanos, o que se teria constituído numa importante fonte de crescimento do emprego na década passada (Faux, 1994:2), além de levar o país a se tornar o maior devedor do mundo e, mais importante, com implicações negativas sobre sua capacidade de garantir aos cidadãos, no futuro, um padrão de vida semelhante ao atual. Há várias outras fontes de dúvidas quanto a uma eventual vantagem do “modelo” de funcionamento do mercado de trabalho norte-americano em relação ao europeu: a evolução dos níveis de produtividade das respectivas economias; o comportamento econômico divergente;10 a rigidez macroeconômica do Banco Central alemão, cuja política monetária restritiva vem dificultando uma retomada consistente da atividade econômica européia (Faux, 1994:3-5); entre outras. A despeito da importância que se possa atribuir a tais questões, as que foram anteriormente destacadas são suficientes para se concluir que, tanto no “modelo” norte-americano quanto no europeu, os custos do ajuste recaíram sobre o emprego da força de trabalho – em termos de número e/ou de qualidade – e sobre o Estado. O discurso dominante aponta como saída para esta situação mais flexibilização, o que garantiria maior competitividade às economias que a adotassem. Há várias questões que põem em dúvida esta afirmação: em primeiro lugar, as disparidades salariais entre as várias economias do mundo são tão grandes que esperar que possam ser eliminadas pelo jogo do mercado é uma perigosa ilusão.11 Por outro lado, diante da importância que têm hoje as receitas financeiras para as grandes empresas e as várias opções de atuação num mercado financeiro com tal grau de liberalização, o peso dos custos salariais para sua maior ou menor competitividade é praticamente nulo (Tavares, 1994:67 e ss.). Muito mais relevante é a forma de inserção no mercado internacional, tanto no que diz respeito aos canais de comercialização quanto aos de financiamento (idem). Por último, a noção de competitividade, sobretudo quando referida a um país, é tão ambígua que carece de qualquer sentido (Krugman, 1994:28 e ss; Faux, 1994:8). O fato é que no final do século XX, após tantos avanços políticos, institucionais e técnicos, as economias mais desenvolvidas do planeta apresentam duas estratégias de organização socioeconômica que, como se procurou demonstrar, são, a rigor, uma só: a exclusão de parcelas crescentes da população dos frutos do desenvolvimento econômico. Mais grave, trata-se de uma estratégia que, embora indesejável, aparece no debate político como a única viável economicamente, por mais frágeis que sejam os argumentos que a sustentam. Seria de se esperar que qualquer solução que rompesse com este círculo vicioso passasse por algum tipo de cooperação internacional. O problema é que nenhum país hoje tem condições de coordenar os interesses internacionais no sentido de promover a adoção de políticas cooperativas como contrapartida à atual situação, em que é cada vez mais visível a deterioração das condições sociais. Nem mesmo no âmbito da União Européia – onde é maior o esforço na busca de ações coordenadas e cooperativas –, tal problema foi superado. Ao contrário, os distintos interesses nacionais, sobretudo da Grã-Bretanha e da Alemanha, vêm se acentuando de forma progressiva. A outra saída, cujas conseqüências são imprevisíveis, aponta para o retorno do nacionalismo e dos conflitos comerciais. Para Krugman (1994:41-42), esta é uma conseqüência quase natural do que ele chama de obsessão pela competitividade: “O que ocorreria se, a despeito de todos os esforços, um país não parecesse estar sendo bem sucedido ou sofresse uma crise de confiança? Nestas situações o diagnóstico da competitividade inevitavelmente sugere que fechar as fronteiras é melhor do que arriscar-se a que estrangeiros tomem para si empregos bem remunerados ou setores muito valorizados”. Nesta linha, insere-se a sugestão do Prêmio Nobel de Economia de 1988, Maurice Allais, de que a União Européia deve promover um fechamento comercial, por meio do controle quantitativo das importações de outros países ou, se a UE não o desejar, que a França o faça isoladamente.12 A importância de temas como “protecionismo” e “isolacionismo” na atual campanha eleitoral norte-americana, revi- 25 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(1) 1996 rial norte-americano. Já para se igualarem os salários pagos na França ou na Inglaterra com os da China, os primeiros teriam de ser reduzidos 30 vezes (Tavares, 1994:69). vendo uma tradição partidária do século XIX, demonstram que esta última opção não é improvável. 12. Citado por Tavares (1994:91). NOTAS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. Para um melhor conhecimento das posições destes estudiosos, ver Reich (1992) e Krugman e Lawrence (1994). AMADEO, E. “Contra a inevitabilidade dos paradigmas: uma agenda de política industrial”. In: REIS VELLOSO, J.P. (coord.). O real e o futuro da economia. Rio de Janeiro, José Olympio, 1995. 2. Segundo Faux (1994), 85% das 500 empresas citadas pela Fortune adotaram esta prática nos últimos cinco anos e 100% pretendem fazê-lo nos próximos cinco anos. BOTSAS, E. Unemployment in the industrial countries. 1995, mimeo. BRAGA, J.C.S. “A Financeirização da riqueza”. Economia e sociedade. Campinas, IE-Unicamp, n.2, ago.1993. CLARK, K.B. e SUMMERS, L.H. “Labor market dynamics: a reconsideration”. Brookings Papers on Economic Activity. 1:1979. FAUX, J. “Is the american model the answer?”. The American Prospect. Cambridge, n.19, inverno, 1994. FREEMAN, R.B. “Evaluating the european view that the United States has no unemployment problem”. AEA Papers and Proceedings. v.78, n.2, maio 1988. 3. Citado por Faux (1994:1). 4. Para uma visão distinta do desemprego nos Estados Unidos, inclusive quanto à duração, ver Clark e Summers (1979). 5. Estas cifras são citadas por Faux (1994:1). 6. A respeito destes fluxos de entrada e saída da PEA, ver Clark e Summers (1979). 7. Estes autores utilizam também uma taxa de desemprego alternativa (underemployment rate), que inclui os desempregados (segundo a definição do Bureau of Labor Statistics), os que trabalham involuntariamente em tempo parcial (involuntary part-timers) e os “desalentados” (discouraged workers). Este indicador correspondia a 9,7% da PEA, em 1979, e a 12,0%, em 1991 (Mishel e Bernstein, 1993:215 e ss.). KRUGMAM, P. “Competitiveness: a dangerous obsession”. Foreing Affairs. Nova Iorque, v.73, n.2, mar./abr. 1994. KRUGMAN, P. e LAWRENCE, R.L. “Trade, jobs and wages”. Scientific American. Nova Iorque, abr. 1994. 8. Em média, os autônomos do sexo masculino auferem rendimentos equivalentes a 67% do recebido pelos empregados, proporção que se reduz para 31% no caso das mulheres (Mishel e Bernstein, 1993:248). MATTOSO, J. A desordem do trabalho. São Paulo, Scritta, 1995. MISHEL, L. e BERNSTEIN, J. The State of Working America. Armonk: Economic Policy Institute Series, 1993. REICH, R. The work of nations. Nova Iorque, Vintage Books, 1992. 9. A este respeito, Faux (1994:10) reproduz parte de um artigo publicado no New York Times a respeito da geração de empregos de baixa remuneração, onde o jornalista, entrevistando um casal em que marido e mulher tinham dois empregos que lhes proporcionavam um rendimento anual de 18 mil dólares, afirmalhes que a economia americana está gerando 2 milhões de empregos por ano, ao que o marido responde: “É claro, só nós já conseguimos quatro. E daí?” SALM, C., “Crescimento e emprego”. In: REIS VELLOSO, J.P. (coord.). O real e o futuro da economia. Rio de Janeiro, José Olympio, 1995. SHAW, M. (ed.). Man does, woman is. Londres, Faber and Faber, 1995. TAVARES, M. da C. “Ajuste e reestruturação nos países centrais: a modernização conservadora”. In: TAVARES, M. da C. e FIORI, J.L. (Des)ajuste global e modernização conservadora. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1993. 10. Este argumento traz consigo uma questão que, embora relevante, está praticamente ausente das discussões contemporâneas: para a expansão do emprego continua sendo importante o crescimento da atividade econômica. Ver a respeito Salm (1995), um dos poucos analistas que incansavelmente destaca esta questão, cuja dimensão se amplifica quando se discutem as perspectivas da economia brasileira. __________ . Lições contemporâneas de uma economista popular. Rio de Janeiro, s. ed., 1994. 11. Faux (1994:8) estima que, admitindo que o nível de salários mexicano cresça a 4% a.a., seriam necessários cerca de 50 anos para atingir o atual nível sala- WOOLLACOTT, M. “A bitter pill that offers scant relief”. The Guardian Weekly. Londres, v.154, n.7, fev.1996. 26