o caminho estético de f. schiller: primórdios de um programa de

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Revista Filosofia Capital
Vol. 5, (2010) - Edição Especial
Novas Perspectivas Intelectuais
e suas Interfaces Existenciais.
ISSN 1982 6613
O CAMINHO ESTÉTICO DE F. SCHILLER:
PRIMÓRDIOS DE UM PROGRAMA DE
EDUCAÇÃO ESTÉTICA NO ENSINO REGULAR
THE WAY OF AESTHETIC F. SCHILLER:
BEGINNINGS OF A PROGRAM OF EDUCATION IN
THE AESTHETIC EDUCATION REGULAR
FERREIRA, Simone Villas1
RESUMO
O presente artigo pretende esclarecer a oposição entre os conceitos “juízo estético”, de Kant, e
“caminho estético”, de Schiller. Nas Cartas sobre a educação estética, Schiller afirma que há
dois instintos fundamentais no homem: um “instinto material” e um “instinto voltado para a
forma”. O primeiro está ligado ao ser sensível do homem e, portanto, à materialidade e à
temporalidade; o segundo está ligado à racionalidade do homem. A composição da antítese
entre os dois instintos não deve ocorrer sacrificando totalmente o primeiro em benefício do
segundo, porque assim ter-se-ia forma sem realidade, mas sim os harmonizando mediante o
que ele chama de “instinto do jogo” (recorde-se o kantiano “livre jogo” das faculdades), que
precisamente media a realidade e a forma, a contingência e a necessidade. Esse livre jogo das
faculdades é a liberdade. Schiller também chama o primeiro instinto de “vida”, o segundo de
“forma” e o livre jogo de “forma viva”, e esta é a beleza. Para tornar o homem
verdadeiramente racional, é preciso torná-lo “estético”. A educação estética é a educação
para a liberdade através da liberdade (porque a beleza é liberdade).
Palavras-chave: Filosofia; Kant; Schiller; “Juízo estético”; Educação Estética; Liberdade.
ABSTRACT
This article seeks to clarify the opposition between "aesthetic judgments" of Kant, and
"aesthetic way," Schiller. In Letters on the Aesthetic Education, Schiller says that there are
two basic instincts in man: a "material instinct" and a "gut-facing form." The first is bound to
be sensitive man and, therefore, the materiality and temporality; the second is connected to
the rationality of man. The composition of the antithesis between the two instincts should not
occur entirely sacrificing the first in favor of the second, because that would have no way
true, but harmonizing them through what he calls the "instinct of the game" (remember the
Kantian "free play" of colleges), which precisely measured the reality and shape, contingency
and necessity. This free play of faculties is freedom. Schiller also calls the first instinct of
"life," the second "form" and the free play of "living form” and this is beauty. To make man
truly rational, you need to make it "aesthetic." The aesthetic education is education for
freedom through freedom (because beauty is freedom).
Keywords: Philosophy, Kant, Schiller, "Aesthetic Judgement"; Aesthetic Education;
Freedom.
1
Mestra em Filosofia – subárea “Estética” – pela UFRJ. É professora de Filosofia na UFJF – Colégio de Aplicação João
XXIII e formadora de professores de Filosofia e Educação. E-mail: [email protected].
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INTRODUÇÃO
Para penetrarmos no espaço de poder
da arte, temos de inverter as posições: é a
arte que tem que lidar conosco, de maneira
a fazer de nós os portadores de seu poder de
transformação. Pensando nisso é que
Friedrich von Schiller propõe a ideia de
uma educação estética, no intuito de
possibilitar o desenvolvimento moral
humano.
A partir de 1792 aprofundou-se
Schiller no estudo de Kant (principalmente
sobre a Crítica da Faculdade do Juízo),
vindo a ser um dos poucos grandes literatos
a alcançar expressão também no campo da
filosofia. De Leibniz e Shaftesbury deduziu
o conceito de harmonia, que tão importante
viria a ser para a concepção artística do
classicismo alemão, e elevou acima da
oposição kantiana de “ética” e “razão” o
ideal de congraçamento desses dois
conceitos no caminho estético – o qual,
segundo Schiller, promoveria, através de
uma práxis cotidiana, a reunião de fato
entre os aspectos sensíveis, cognoscíveis e
morais do ser humano – colocando em
outro nível a discussão sobre o juízo
estético de Kant. Na obra Cartas sobre a
educação estética da humanidade, Schiller
trata, didaticamente, da busca à realização
desse ideal de cultura.
A pesquisa dessa questão tem caráter
imprescindível, dado que o tema da Estética
sempre teve lugar de destaque no interior
do pensamento filosófico, mas muitas vezes
foi relegado a um segundo plano devido ao
enfoque sobre assuntos relacionados à
Teoria do Conhecimento e à Ética.
Estética é um termo que começou a
ser usado desde Baumgarten (1750) para
designar uma disciplina que se ocupa com a
arte e com o belo. Essa designação tem sua
origem na palavra grega aesthesis
() que significa percepção. A
reflexão sobre a arte na modernidade
relaciona o belo com a percepção sensorial.
A arte e o belo podem ser tratados e
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investigados basicamente em três sentidos:
1 – a obra;
2 – o artista (o ato de produção);
3 – o apreciador.
Estética significa, portanto, de forma
geral, investigar a natureza do belo ou da
arte sob os três critérios mencionados.
O enfoque que relaciona o belo com a
percepção sensorial é específico na época
moderna.
Platão,
como
grande
representante do pensamento grego,
apresentou uma teoria do belo, porém
completamente oposta à visão que vem se
articulando na modernidade. No diálogo O
Banquete, Platão descreve, referindo-se à
sábia de Mantineia, Diotima, como o belo
só pode ser contemplado em sua perfeição
numa atitude que exclui completamente
todo e qualquer vestígio sensório. O homem
vive
segundo
Platão,
inicialmente
confinado ao mundo dos fenômenos
sensoriais. Aí ele pode despertar em si o
Eros, o amor, inicialmente apenas voltado
para o belo manifesto num determinado
corpo. Ele progride na medida em ele
consegue se convencer que o belo num
corpo é o mesmo que em todos os corpos.
Quando ele aprende a enxergar o belo
também nas almas e nas instituições ele se
prepara para um grau de sublimação que
contempla o belo nas ciências. Esse é o
ponto a partir do qual ele pode se alçar ao
supremo nível na contemplação do belo.
Esse reside na pura ideia que só aquele
consegue contemplar que antes se
purificou, livrando-se do apego ao mundo
sensorial, e atingiu a dignidade e
capacidade de apreciação de algo universal
e absoluto. O auge da contemplação do belo
consiste, pois, em chegar a contemplar a
própria essência do belo que confere a
todos os objetos particulares um pálido
reflexo de beleza. Essa essência é a ideia
pura e universal do belo.
A teoria do belo de Platão não se
volta para a aparência sensória, ao
contrário, baseia-se em sua superação. O
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belo é visto aqui como algo divino e não
como algo fisicamente manifesto. Portanto,
Platão não dá importância à Arte enquanto
essa cria objetos no mundo manifesto. Até a
considera nociva por desviar o olhar do
homem da verdadeira essência das coisas.
O belo em sua essência só pode ser objeto
da filosofia, dado que essa se propõe a
contemplar o mundo em sua essência ideal.
A visão platônica, além da questão de
sua correção ou falsidade, pode ser também
considerada como uma expressão de uma
determinada postura de consciência frente
ao mundo. Ou seja, ela assinala um
determinado momento no desenvolvimento
histórico de consciência do homem. Platão
representa uma forma de consciência que
ainda não consegue ver o valor e a
importância do mundo passageiro. Vive
predominantemente numa aspiração voltada
ao eterno, atitude esta, que pretende se
resguardar das perturbações do efêmero,
por ser incapaz de lhe dar um sentido.
Friedrich Schiller, entretanto, se torna
articulador de uma postura radicalmente
oposta, onde o mundo da matéria e da
dispersão obtém um valor destacado para o
homem em evolução.
A atitude referida manifesta-se
também nitidamente na concepção da
cognição e do processo filosófico em geral
como o encontramos em Platão. O mundo
dado aos sentidos, ou seja, aquilo que o
homem de hoje tende a considerar o
exclusivamente real, possui para Platão
apenas um valor relativo. Os objetos
concretos, os fenômenos, são apenas
sombras pálidas de uma realidade muito
mais saturada e fundamental são as ideias
universais apenas contempláveis para a
razão e inacessível aos sentidos. O Filósofo
é, portanto, aquele que, como amigo da
verdade, aspira a superar a aparência
enganosa que os sentidos sugerem, a fim de
atingir a suprema realidade existente nas
ideias puras. O que nós sabemos das coisas
via órgãos da percepção é uma realidade
inconstante e incoerente. As coisas visíveis
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são sujeitas a alterações e transformações e,
assim, não persistem. A ideia de alguma
coisa não sofre, no entanto, alteração
alguma e, por isso, é essencial. Ela perdura
sem se modificar e por isto é. Um objeto do
mundo dos fenômenos também pode
aparecer diferentemente para diferentes
pessoas, conforme a perspectiva da
observação. A ordem intrínseca do eidos
(), da essência, é igual para qualquer
homem.
As ideias são, portanto, independentes
dos objetos e das pessoas, elas são e valem
por si só. O desenvolvimento filosófico
consiste num processo crescente de
desvendar tal essência. O filósofo supera a
ilusão para se inteirar da verdadeira
essência das coisas. Ele se isenta de
opiniões contraditórias e multiformes para
aderir à verdade necessária e coerente em
si. Nesse sentido o caminho do filósofo é o
para a realidade e a verdade. A realização
desse caminho não é apenas um exercício
intelectual, exige a transformação da alma
inicialmente propensa ao mundo material.
Só quem consegue superar o vício pelas
coisas passageiras se torna digno para
adentrar o mundo da verdade eterna. E
quem resgata em si a eternidade das ideias
participa também do belo.
Em Platão existe, destarte, uma
unidade entre Ciência, Religião e Ética. O
processo cognitivo leva a comunhão com o
divino e a irradiação desta comunhão é o
belo. A realização do homem é a Verdade,
o Bom e o Belo.
Temos aí uma concepção que aborda
a questão do “belo” de uma maneira oposta
à visão moderna, que tem de levar em
consideração não só o sujeito concreto, mas
também o mundo da manifestação material.
Por esta razão não é possível falar de
Estética no caso de Platão e sim apenas de
uma Teoria do Belo. A reflexão sobre a arte
torna-se Estética propriamente dita a partir
do momento em que o belo começa a ser
relacionado com a percepção. Esta
mudança na concepção do belo tem a ver,
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evidentemente, com a mudança radical na
própria configuração da consciência do
homem.
A
visão
positivista
e
operacionalista nos levaram a interpretar o
fluxo histórico apenas como uma sucessão
de mudanças quantitativas, a saber, de mais
ou menos conhecimento, de mais ou menos
esclarecimento. No entanto, cumpre admitir
que ocorreram profundas modificações
qualitativas na configuração mental do ser
humano. O ímpeto da superação do mundo
materialmente manifesto converteu-se na
época moderna em um ímpeto de conquista
do mundo material. A modernidade começa
justamente com o acordar do homem para a
existência material e passageira. O
Humanismo, o Renascimento, Iluminismo,
Revolução, Industrialização etc., são apenas
os sintomas através dos quais essa mudança
da própria configuração da mente humana
se articula. A partir do século XV a
humanidade moderna começa a acordar
para a importância do sujeito e da
existência terrestre propriamente dita e
rejeita concomitantemente o coletivismo e a
hierarquia medievais que ainda não
conseguia atribuir valor ao indivíduo. O
homem medieval que segue rigorosamente
o ideal da obediência é substituído aos
poucos pelo ideal do homem que se faz a si
mesmo.
A descoberta da arte antiga, na
Alemanha
principalmente
por
Winckelmann e Lessing, levou a um
enfoque da Arte onde justamente a
manifestação
material adquire uma
importância especial. A educação estética
do homem idealizada por Schiller substitui
o movimento unilateral ascendente de
Platão
por
um
duplo
momento
transformador que visa sublimar a matéria e
concretizar e concretizar a ideia. Entra em
foco a Arte como processo transformador.
Da Razão Pura à Razão prática
A primeira parte da Crítica da Razão
Pura investiga os princípios apriorísticos da
sensibilidade,
intitulando-a
“Estética
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Transcendental” (a segunda parte é a
“Analítica Transcendental”). Por “estética”
Kant entende não uma teoria do belo, mas
uma teoria da sensibilidade; com o termo
“transcendental”, Kant denomina todo o
conhecimento que, em geral, se ocupa não
tanto com objetos, mas com o modo de
conhecê-los, na medida em que esse
conhecimento deve ser possível a priori.
Na “Estética Transcendental”, Kant
define a sensibilidade como faculdade de
intuição, através da qual os objetos são
apreendidos pelo sujeito cognoscente. São,
pois, duas formas de sensibilidade: o espaço
e o tempo. Esses, para Kant, são formas em
cujo interior se ordena a multiplicidade
fornecida pela sensação. É por meio das
relações espaciais que nos representamos os
objetos externos e é por meio das relações
temporais que nos representamos os estados
internos. Portanto, para todo conhecimento
se exige que os conceitos se tornem
sensíveis, juntando-lhes o objeto dado à
intuição, e as intuições se tornem
entendidas, submetendo-as a conceitos.
Sensibilidade e entendimento são, assim,
igualmente necessários.
Em síntese, a teoria desenvolvida por
Kant na “Estética” e na “Analítica”
transcendental
mostra
que
todo
conhecimento é constituído por sínteses e
dados ordenado pela intuição sensível
espaço-temporal, mediante as categorias
apriorísticas do entendimento; dado que
este, segundo Kant, não é uma faculdade de
intuição, pois só é possível pensar os
objetos fornecidos pela sensibilidade. Uma
vez que só a sensibilidade fornece
intuições,
as
representações
do
entendimento serão conceitos.
Assim, o ponto de partida do
conhecimento é a sensação, isto é, a
impressão produzida por um objeto na
sensibilidade. Uma intuição qualquer que
acontece em relação a seu objeto por
intermédio da sensação chama-se “intuição
empírica”, e chama-se “fenômeno” o objeto
dessa intuição empírica. Por conseguinte,
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não seria possível conhecer o “noumenon”,
as coisas em si mesmas, mas tão somente o
fenômeno, as aparências, ou seja, os objetos
tais como resultam das sínteses apriorísticas
do próprio ato de conhecer.
A segunda Crítica de Kant propõe-se
a mostrar que existe uma razão pura prática,
porque “se ela, como razão pura, é
realmente prática, então prova sua realidade
e a de seus conceitos pelo ato”.2 A tarefa da
razão prática será a de encontrar os
princípios determinantes da vontade que
deverá produzir os objetos correspondentes
à suas representações e determinar-se a
produzi-los, isto é, encontrar os meios pelos
quais agimos e as justificativas de nossas
ações (inclinações, propensões, etc.) através
da vontade, entendida como causalidade
(conceito este concebido por Kant como
“espontaneidade pura que era a liberdade
transcendental”).
Na Crítica da Razão Prática, a
liberdade é investigada como razão de ser
da vida moral. Nessa Crítica, Kant
demonstra que a lei moral – ou seja, saber
não o que o homem conhece ou pode
conhecer a respeito do mundo e da
realidade última, mas do que deve fazer, de
como agir em relação a seus semelhantes,
de como proceder para obter a felicidade ou
alcançar o bem supremo – provém da ideia
de liberdade e que, portanto, a razão “pura”
é por si mesma “prática”, no sentido de que
a ideia racional de liberdade determina por
si mesma a vida moral (demonstra sua
própria realidade).
A Crítica da faculdade do Juízo: o juízo
estético
A Crítica da razão pura concluíra
que o conhecimento humano é incapaz de
transcender o mundo sensível. A Crítica da
razão prática concluíra que a conduta
humana não teria sentido sem a suposição
de um mundo inteligível. Já a terceira
Crítica, a do juízo, assegura a transição
2
HERRERO, F. J. Religião e história em Kant. São Paulo,
Perspectiva, 1983. p 15.
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entre o entendimento, fonte de nossos
conhecimentos, e a razão, princípio de
nossas ações. Existe uma faculdade
mediadora, o juízo (entendido como
faculdade de julgar – em alemão:
Urteilskraft), cuja função é pensar o mundo
sensível em referência ao mundo
inteligível.
Em sua terceira e última grande
crítica, Crítica do Juízo, Kant analisa os
juízos teleológicos (aqueles que se referem
às coisas da natureza, considerando-as
como meios para a obtenção dos nossos fins
espirituais) e os juízos estéticos (aqueles em
que julgamos as coisas segundo a
impressão agradável ou desagradável que
exercem sobre o nosso sentimento). Esta
última crítica trata, pois, do sentir humano,
e se estabelecem juízos que se fundam
sobre o sentimento. O sentimento é
considerado por Kant um a atividade
intermediária entre conhecimento e ação,
ou seja, os juízos que se fundam sobre o
sentimento nem são cognitivos, nem
científicos, nem práticos, nem morais: têm
uma característica particular intermediária.
Kant distingue dois tipos de juízos
dependentes do sentimento: os teleológicos
e os estéticos, pelo que divide a Crítica do
Juízo em duas partes. Em primeiro lugar, a
crítica do Belo e do Sublime. Em segundo
lugar, a teleologia ou ciência da finalidade.
Ambos os juízos se fundamentam sobre o
sentimento que experimentamos sobre a
realidade. Tal atividade é o juízo ou
faculdade julgadora (Urteilskraft) que, na
ordem das faculdades do conhecimento,
está entre o intelecto, o entendimento
discursivo,
Verstand
(princípio
da
necessidade fenomênica) e a razão,
Vernunft (princípio da liberdade moral). A
função do juízo consiste em pensar o
particular como “subsumido”, como diz
Kant, ao universal; quer dizer, o particular
contido e dependente do universal. Porém,
no juízo teleológico referimos (pelo
sentimento) as coisas da Natureza a nós,
considerando-as como meios para a
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obtenção dos nossos fins espirituais; no
juízo estético julgamos as coisas conforme
a impressão agradável ou desagradável que
exercem sobre o nosso sentimento.
Na Crítica do Juízo Kant aplica seu
método crítico ao mundo da beleza, análise
que irá fundar-se na faculdade que chamará
de juízo estético ou juízo de gosto. Este, por
sua vez, será analisado do ponto de vista
das quatro formas inteligíveis ou categorias
básicas que regulam o funcionamento do
entendimento humano, análise em que o
juízo estético denota um caráter paradoxal.
Do ponto de vista da qualidade, o
juízo do gosto é desinteressado; não existe a
ideia de possuir o objeto e até nos
despreocupamos de sua existência real. Já
pelo prisma da quantidade, tal juízo é
universal e aconceitual, ou seja, o Belo é o
que agrada universalmente sem conceito.
Do ponto de vista da relação (ou
finalidade), o Belo é a forma final de um
objeto sem representação de fim; ou seja, o
Belo é autotélico, possui finalidade própria.
Deste modo, o Belo não agrada porque
satisfaça um desejo sensível e, assim, se
distingue do agradável (que implica num
evidente fim ou gozo subjetivo) e do Bom,
que implica na ideia de um fim, quer
extrínseco ao objeto (o caso do útil), quer
imanente ao objeto (o caso do perfeito). Do
ponto de vista da modalidade, o Belo é
considerado como o objeto de um prazer
necessário sem a intervenção da reflexão.3
A esfera estética distingue-se em
vários campos; o valor estético admite
diversas modificações, duas dentre as quais,
segundo o interesse da época, são
particularmente consideradas por Kant: o
Belo e o Sublime. A principal diferença
entre o Belo e o Sublime se refere à
finalidade. o Belo convém às nossas
faculdades e, devido a esta conveniência,
3
“[...] Como diz Kant, se trata de uma necessidade
condicionada e subjetiva, fundada em certo sentido
comum a todos os homens, sentido que os obriga a supor
que a satisfação que eles experimentam deva ser
vivenciada por todos os homens.” Cf. nota 1, p 129.
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agrada. O Sublime pode ser angustiante,
terrível e informe, nesta desarmonia com
nossas faculdades está a sua finalidade. O
juízo estético do Belo se estabelece por uma
relação
entre
a
imaginação
(Einbildungskraft) e o intelecto ou
entendimento discursivo (Verstand). No
caso do Sublime se relacionam a
imaginação e a razão (Vernunft). Isso
significa que o Belo resulta do livre jogo da
imaginação com o intelecto, faculdades que
reciprocamente se solicitam e se
harmonizam e por isto mantêm o espírito
em tranqüila contemplação. O Sublime, ao
contrário, resulta do livre jogo da
imaginação com a razão; daí fundar-se,
como diz Kant, não numa harmonia, mas
num contraste. E nada existe de mais
antinômico, no sistema kantiano, como a
razão e os dados da sensibilidade
(Sinnlichkeit).
Sendo o Belo o que agrada sem
nenhum interesse, podemos afirmar que o
Belo nos dispõe a amar algo na Natureza de
um a maneira desinteressada; e sendo o
Sublime o que agrada imediatamente por
sua oposição ao interesse dos sentidos,
podemos afirmar que o sublime nos dispõe
a nos afeiçoar pelos seres da Natureza,
mesmo contra nosso próprio interesse.
Assim, Kant pretende descobrir um íntimo
parentesco entre a função do juízo estético e
a do juízo moral: quando confere afinidade
entre a beleza e a moral, alude
expressamente à contemplação das belezas
naturais. A afeição pela Arte argumenta,
não evidencia um espírito afeiçoado à
moral, contudo um interesse pela
contemplação da beleza natural é evidência
de uma alma boa. Para Kant, o Belo é o
símbolo do Bem moral. Pela satisfação
imediata (sem conceito) que produz, por
seu desinteresse, pela harmonia que institui
às faculdades, por sua universalidade, a
beleza tem uma analogia íntima com a
moral.
Kant distingue duas espécies de
beleza: a beleza livre e a beleza aderente. A
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beleza livre não pressupõe nenhum conceito
do que deva ser o objeto e resulta de
perfeição ou uso (ex: as flores, a música
pura, arabescos, etc.); a beleza aderente (ou
dependente) pressupõe o conceito do que
devem ser o objeto e a perfeição deste, de
acordo com o referido conceito, isto é,
pressupõe o conceito da finalidade a que
tais objetos são destinados (ex: a beleza de
um homem, de uma igreja, de uma partitura
de um concerto de Mozart, etc.). Com isso,
só na avaliação da beleza livre o juízo é
esteticamente puro. Na avaliação da beleza
aderente, o juízo do gosto, ao contrário, não
é esteticamente puro por ser dependente do
juízo da razão sobre a perfeição, isto é,
sobre a finalidade interior do objeto. O
gênio cria, por isto, uma beleza aderente,
beleza que encerra um sentido espiritual
concreto; a sua obra, muitas vezes, é de
uma identidade tão pujante, ou de uma
fecundidade tão vasta que tende a romper as
normas do gosto estético puro; normas que,
entretanto, se recompõem, de maneira que o
processo de criação artística se desenvolve,
no pensamento kantiano, numa dialética
incessante.
Poderíamos falar de limitações da
estética kantiana, como seu subjetivismo e
seu apriorismo, contudo o pensador de
Koenigsberg analisou como ninguém a
vertente psicológica da beleza, enfatizando
a atividade harmoniosa das funções
mentais, que se exercitam em liberdade no
mundo da representação: acordo da
imaginação com a inteligência, acordo do
objeto com a imaginação e o entendimento.
Schiller: a concepção da “alma bela” e da
educação estética
A marca espiritual de Schiller é
constituída pelo amor à liberdade em todas
as suas formas essenciais: política, social e
a liberdade moral. A Revolução Francesa4 e
4
Antes mesmo que explodisse a Revolução Francesa, na
década transcorrida entre 1770 e 1780, a intempérie
cultural registrava na Alemanha as primeiras modificações
de vulto que, em médio prazo, na passagem do século,
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os seus resultados convenceram Schiller de
que o homem ainda não estava preparado
para a liberdade e que a verdadeira
liberdade é aquela que está sediada na
consciência. Mas como se chega à
liberdade? Schiller não tem dúvidas de que
a mais alta escola de liberdade seja a
beleza,
em
virtude
da
função
harmonizadora que ela desempenha: “só se
chega à liberdade através da beleza” – eis o
credo schilleriano.
No escrito Sobre a graça e a
dignidade, Schiller cria a célebre figura da
“alma bela” (die schöne Seele), destinada a
grande repercussão na época romântica. A
“alma bela” é aquela que, superando a
antítese kantiana entre inclinação sensível e
dever moral, consegue cumprir o dever com
natureza espontânea, impulsionada pela
beleza. A “alma bela”, portanto, é a alma
dotada daquela graça que harmoniza
“instinto” e “lei moral”.
Nas Cartas sobre a educação
estética, Schiller afirma que há dois
instintos fundamentais no homem: um
“instinto material” e um “instinto voltado
para a forma”. O primeiro está ligado ao ser
sensível do homem e, portanto, à
materialidade e à temporalidade; o segundo
está ligado à racionalidade do homem. A
composição da antítese entre os dois
instintos não deve ocorrer sacrificando
totalmente o primeiro em benefício do
segundo, porque assim ter-se-ia forma sem
realidade, mas sim os harmonizando
mediante o que ele chama de “instinto do
jogo” (recorde-se o kantiano “livre jogo”
das faculdades), que precisamente media a
realidade e a forma, a contingência e a
necessidade. Esse livre jogo das faculdades
levariam à superação total do Iluminismo. O movimento
que produziu tais modificações nesta década ficou
conhecido sob o nome de Sturm und Drang (“Tempestade
e Assalto”, ou, melhor ainda, “Tempestade e Ímpeto”). A
denominação deriva do título de drama escrito em 1776
por um dos expoentes do movimento, Friedrich M.
Klinger (1752-1831), e parece ter sido usada pela primeira
vez para designar todo o movimento, por A . Schlegel, no
início do século XIX.
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é a liberdade. Schiller também chama o
primeiro instinto de “vida”, o segundo de
“forma” e o livre jogo de “forma viva”, e
esta é a beleza. Para tornar o homem
verdadeiramente racional, é preciso torná-lo
“estético”. A educação estética é a
educação para a liberdade através da
liberdade (porque a beleza é liberdade).
No seu terceiro ensaio importante,
Sobre a poesia ingênua e sentimental,
Schiller ilustra uma tese interessante. A
poesia antiga era ingênua porque o homem
antigo agia como unidade harmônica e
natural e “sentia naturalmente”: em suma, o
antigo poeta era ele próprio, natureza e,
portanto, expressão imediata da natureza. Já
o poeta “sentimental”, que é o poeta
moderno, não é natureza, mas sente a
natureza, ou melhor, reflete sobre o sentir, e
nisso se alicerça a comoção poética.
Mas, sendo assim, é evidente que,
como foi muito bem destacado por G.
Reale5, “somente época sentimental
reconhece poetas ingênuos” e só através do
poeta “sentimental” é que o poeta
“ingênuo” pode indicar “aquilo que nos
devemos tornar novamente”. O poeta
sentimental, desse modo, sente-se separado
do ideal dos antigos e, ao mesmo tempo
(com a sua Sehnsucht), impelido para ele.
Os fermentos românticos são mais do que
evidentes nessa concepção. O próprio
Goethe, como todos os poetas modernos,
contra as intenções de Schiller e as
aparências exteriores, com base nessa
análise não podia deixar de ser catalogado
como poeta “sentimental”. O cânon da
beleza clássica não podia mais se realizar
imediatamente na dimensão da natureza,
mas apenas ser “buscado” como ideal
romântico.
A educação estética segundo Schiller
Friedrich
von
Schiller
teve
consciência, sem dúvida antes de quem
quer que seja, do perigo de abstração na
5
REALE, G. & ANTISERI, D. História da filosofia volume III. São Paulo, Paulus, 1991. p 35-39.
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estética kantiana. Menos otimista do que
Kant, constata ele em 1795, que o curso dos
acontecimentos não permitem mais
satisfazer-se com a arte idealista. A época
está entregue
ao utilitarismo,
ao
crescimento do mercado – inclusive do
mercado da arte – e o progresso científico e
técnico avança a passos largos. A ciência
alarga seus limites, diz Schiller, e estreita os
limites da arte.
Porém, constatar o papel mínimo da
arte já significa subentender que ela
poderia, sob certas condições, desempenhar
funções mais essenciais. As vinte e sete
Cartas sobre a educação estética do
homem (Briele über die äesthetische
Erzichung des Menschen), publicadas por
Schiller entre setembro de 1794 e junho de
1795 têm exatamente a finalidade de definir
tais funções. É neste ponto que ele modifica
consideravelmente a teoria de Kant.
Evidentemente, as Cartas, Schiller o
confessa, têm inspiração kantiana. É preciso
lembrar que Kant, mesmo afirmando a
independência da estética em relação à
moral, mantinha, contudo um elo simbólico
entre o belo e a moralidade. Schiller adere
plenamente a esta concepção, mas procura
dar-lhe um sentido concreto. O Artista,
escritor, autor dramático e poeta, defende a
ideia de que sua arte e a arte em geral não
são inúteis. Elas podem servir aos desígnios
da humanidade, isto é, uma vida
harmoniosa e livre, de acordo, ao mesmo
tempo, com a natureza e com a virtude.
Este ideal satisfaz tanto ao interesse do
indivíduo
quando
à
humanidade.
Reconhecer este interesse, de alguma forma
superior, em nada afeta a ideia de satisfação
ou de gozo desinteressados. Trata-se
simplesmente de desintelectualizar a
estética de Kant e de deslocar as exigências
kantianas do indivíduo para a coletividade.
Schiller dissipa o equívoco mantido
por Kant no coração de sua doutrina: o
belo, na opinião deste último, depende
exclusivamente da maneira pela qual o
sujeito se representa à forma do objeto e o
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sentimento experimentado é ligado à
harmonia
de
nossas
faculdades,
entendimento e imaginação. De um lado,
Kant reconhece que nossas faculdades são
solicitadas pelo objeto considerado belo
(uma rosa, um cavalo, um determinado
som...), mas de outro lado o sujeito deve,
por assim dizer, “esquecer” esta solicitação
para somente se interessar pela forma do
julgamento puro.
Porém, seria mais simples reconhecer
que o belo produz em mim um efeito que
em nada macula a pureza de meu juízo; um
efeito moral, perfeitamente respeitável se
este
objeto
representar
qualidades
intrínsecas nas quais reconheço um produto
da natureza e da liberdade: a regularidade
de um objeto, de uma obra, e a harmonia
entre as partes que as compõem dão a
impressão de que eles obedecem apenas as
suas próprias leis e isto lhes confere uma
espécie de “naturalidade”. Eles traduzem
uma perfeita adequação da forma à matéria
como se a forma fosse produzida
livremente por essa mesma matéria, sem
coação nem artifício, tal como nos dizeres
do próprio Schiller:
Este jogo da livre seqüência das
ideias, de natureza ainda inteiramente
material e submisso a meras leis
naturais,
é
abandonado
pela
imaginação através de um salto em
direção do jogo estético, através da
tentativa de uma forma livre. Deve-se
falar em salto, pois se trata de uma
força inteiramente nova; o espírito
legislador intervém pela primeira vez
nos atos do cego instinto; submete o
procedimento
arbitrário
da
imaginação à sua unidade eterna e
imutável; coloca sua autonomia no
que é perecível e sua infinitude no que
é sensível. 6
próximos do kantiano “belas-artes”, da
mesma forma devemos reconhecer a ideia
kantiana segundo a qual o gênio é aquele
graças ao qual a natureza prescreve suas
regras à arte. Mas Schiller, ao contrário,
não se contenta em precisar que o objeto
belo deve possuir certas qualidades. Resta
determinar a natureza do efeito que tal
objeto suscita em nós e por que razão o
objeto belo, singular, harmonioso, encontra
eco na própria natureza do homem. Kant
falava de faculdades, de entendimento, de
imaginação e de razão. Quanto a Schiller,
exprime-se ele em termos de instintos
próprios da natureza humana:
[...] O domínio deste instinto é a
finitude do homem; como toda a
forma aparece somente através da
matéria, como todo o absoluto
necessita a mediação dos limites,
torna-se evidente que toda a aparição
da humanidade está presa ao impulso
sensível.7
Mas, por que, então, a beleza, a
harmonia da forma e da matéria agrada?
Porque engendra a harmonia dos dois
aspectos da natureza humana: a razão e a
sensibilidade. Porque ela é um apelo à
conciliação entre o instinto formal
(Formtrieb) e o instinto sensível (sinnlicher
Trieb)8. Para um herdeiro das Luzes como
Schiller, não há projeto educativo sem a
crença num progresso do indivíduo e da
humanidade. Se tal progresso é possível é
porque a natureza humana não se reduz ao
antagonismo entre a pulsão sensível e a
pulsão formal, entre as sensações e a razão.
A seus olhos, a concepção sensualista e a
teoria intelectualista (Kant) cometem o erro
de privilegiar um dos aspectos da natureza
7
Tais conceitos nos tornam muitos
6
SCHILLER, F. Cartas sobre a educação estética da
humanidade. São Paulo, EPU, 1992, vigésima sétima
carta. p 145.
Ibidem., décima segunda carta, p 77.
Na realidade, a tradução comumente aceita da palavra
alemã Trieb como instinto é inadequada. Seria melhor
falar de pulsão, de impulso dinâmico em lugar de instinto
(Instinkt), tendência inata, imperativa. Schiller, aliás,
define tais pulsões como energias. O instinto não é
perfectível, em compensação as pulsões podem ser
orientadas sob a influência da educação.
8
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humana em detrimento do outro. De fato, o
homem só se realiza pela mente é só
desabrocha na harmonia destas pulsões, ou
seja, quando as limita a ambas graças à
intervenção de uma terceira pulsão, à qual
Schiller dá o nome de pulsão de jogo
(Spieltrieb). Entregue à pulsão sensível, o
homem é prisioneiro de sua natureza, de
suas necessidades físicas; colocado sob o
jugo excessivo da pulsão formal, é ele
coagido por sua razão, vítima de seu poder
legislador, abstrato e desencarnado.
Somente o jogo das faculdades – entre
razão e sensibilidade – permite-lhe escapar
a estes dois tipos de servidão. Destarte
temos: que outra atividade além da arte –
ação recíproca da forma e da matéria –
representa melhor esta liberdade que reina
no estado estético?
Assim, a educação pela beleza
permite ultrapassar o Estado sensível,
aceder ao Estado estético graças ao domínio
“racional” das pulsões, e chegar ao Estado
político, garantia da autonomia assim
adquirida. Nesta passagem de um Estado a
outro, a experiência do belo é fundamental:
o belo enobrece moralmente e este
progresso da moralidade significa um
progresso da razão. Ao termo do processo,
isto é, da educação estética do homem,
projeta-se o Estado ideal no qual o Estado
da razão, o Estado moral e o Estado estético
se confundem.
É digno de nota que Schiller queira
assim, sem traí-la, ultrapassar a estética
kantiana, transpondo-a na ordem dos
fenômenos, no plano da realidade empírica,
social, econômica e política. A autonomia
estética desempenha, portanto, um papel
essencial. Graças a ela, torna-se possível
conceber um Estado em que a liberdade,
reconhecida a princípio no domínio da arte,
pudesse estender-se a todos os outros
domínios: o das relações sociais e das
relações morais, como nos propõe no
seguinte trecho: “Pela beleza o homem
sensível é conduzido à forma e ao
pensamento; pela beleza o homem
espiritual é reconduzido à matéria e
recupera o mundo sensível”.
Disto segue, aparentemente, que,
entre matéria e forma, entre passividade e
ação, deva existir um estado intermediário,
ao qual a beleza nos daria acesso. [...],
contudo, esquecem (os filósofos) que a
liberdade em que muito justamente colocam
a essência da beleza não é ausência de leis,
mas sua harmonia, não é arbítrio, mas
máxima
necessidade
interior;
estes
esquecem que a determinação, que muito
justamente exigem da beleza, não consiste
na exclusão de certas realidades, mas na
inclusão absoluta de todas, não é limitação,
mas infinitude.”9
Schiller sabe muito bem que é
impossível atingir novamente a Grécia
antiga, assim como é evidente que não se
pode aceder à perfeição absoluta. Mas se
admiramos a arte grega na época do apogeu
de Atenas, é porque imaginamos que os
gregos tenham podido aproximar-se dessa
perfeição. A iniciação às artes, à música, à
pintura, à poesia favorece o desabrochar do
indivíduo. O papel do Estado moderno é o
de desenvolver as condições que permitam
a todos beneficiar-se do mesmo privilégio.
Mas Schiller, no final do século
XVIII, não se entrega a ilusões: o
desenvolvimento da sociedade, sob o efeito
conjugado da ciência e da técnica, não é
favorável à emergência do Estado estético.
Sua crítica do Estado moderno parece-nos
hoje estranhamente familiar:
O homem que em sua atividade
profissional está ligado somente a um
pequeno fragmento isolado do Todo,
adquire apenas uma formação
fragmentária; tendo eternamente nos
ouvidos só o ruído monótono da roda
que faz girar, nunca desenvolve a
harmonia do seu ser, e em lugar de
imprimir em sua natureza a marca da
humanidade, ele é somente um reflexo
9
SCHILLER, F. Cartas sobre a educação estética da
humanidade. São Paulo, EPU, 1992, décima oitava carta,
p 100-102.
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de sua profissão, de sua ciência.10
[...] O edifício das aparências e do
arbítrio cairá, cairá com necessidade,
já terá caído tão logo tiveres a certeza
de que se inclina; é preciso, contudo,
que se incline no interior do homem e
não apenas em sua exterioridade. No
silêncio pudico de tua alma educa a
verdade triunfante, exterioriza-a na
beleza, para que não apenas o
pensamento, a saúde, os sentidos
apreendam também a sua aparição. E
para que não te aconteça receber da
realidade o modelo que lhe deverias
dar, não ouses a sua companhia
perigosa antes de assegurar em teu
coração um cortejo de ideais. Vive
com teu século, mas não sejas sua
criatura; serve teus contemporâneos,
mas serve-os no que precisam e não
no que louvam”.12
Não é mais apenas o utilitarismo da
época que ele denuncia aqui, mas o
mecanicismo frio de uma organização
social que submete os indivíduos a um
princípio de rendimento econômico, com as
suas conseqüências: atividade fragmentada,
lutas dos grupos de interesses, vida
mutilada, ressentimento dos excluídos da
cultura em relação à elite. Ora, somente a
beleza, da qual podemos gozar ao mesmo
tempo “enquanto indivíduo e enquanto
espécie” tem o poder de abolir os
privilégios da ditadura, ou seja:
No Estado estético, todo mundo,
mesmo um servente, que é apenas um
instrumento, é um cidadão livre cujos
direitos são iguais aos de maior
nobreza.11
As Cartas sobre a educação estética
do
homem
nos
parecem
ilustrar
perfeitamente duas ideias: a sacralização e a
secularização da arte não são termos
contraditórios e a constituição de uma
autonomia estética não é uma condição
necessária para perceber que a arte nunca é
autônoma, pois está sempre em relação com
a realidade empírica. Sendo assim, vale
indagar: terá a arte um papel a desempenhar
na evolução do homem e da humanidade?
Deverá a estética assumir uma função
política? Kant respondia negativamente a
estas duas perguntas, de acordo com os
próprios princípios de sua filosofia. Schiller
responde resolutamente de forma positiva.
Considera ele, de maneira muito moderna,
que a criação artística autônoma é também
um fator de transformação da sociedade, tal
como nos diz:
10
Friedrich von Schiller. Lettres sur l’education esthétique
de l’homme. Paris, Aubier, edition Montaigne, 1943,
traduzidas e prefaciadas por Robert Leroux, sexta carta,
108-109.
11
Friedrich von Schiller. Lettres sur l’education esthétique
de l’homme. Paris, Aubier, edition Montaigne, 1943,
traduzidas e prefaciadas por Robert Leroux, sexta carta, p
109.
Schiller hoje
Paradoxalmente, as teses de Schiller
não
ocupam na reflexão estética
contemporânea o lugar que lhes pertence.
Todavia, sua concepção das pulsões
energéticas, sensíveis, formais e lúdicas não
deixa de apresentar alguma semelhança
com a oposição nietzscheana entre o
apolíneo e o dionisíaco. Da mesma forma, a
sublimação estética das pulsões libidinais
inconscientes, à qual Sigmund Freud atribui
o poder de estruturar “formalmente” a obra
de arte para permitir seu reconhecimento
social, lembra, em vários pontos, a teoria
schilleriana da beleza.
Entre os contemporâneos, o filósofo
Herbert Marcuse é um dos raros a ter
atraído a atenção para o caráter explosivo
das Cartas. Em sua obra Eros e civilização
(1955), considera que a teoria de Schiller
antecipa as formas modernas de contestação
dirigidas contra o princípio de rendimento e
a tirania da razão que reinam nas
sociedades pós-industriais.
Atualizar uma teoria historicamente
12
SCHILLER, F. Cartas sobre a educação estética da
humanidade. São Paulo, EPU, 1992, nona carta, p 66.
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datada e transpô-la para a sociedade
moderna é certamente uma operação
arriscada. Seria fácil objetar a Marcuse que
Schiller não antecipa nada, que ele pertence
perfeitamente ao seu tempo e de maneira
nenhuma, ao nosso. Porém, é verdade que a
crise da estética e a questão das relações
entre a arte e a política assim como são
vistas por Schiller não podem ainda hoje
nos deixar indiferentes. Quando um filósofo
estende o seu puro pensamento a uma
experiência da arte, temos o caráter
especulativo, mas quando de um exercício
efetivo da arte emerge uma consciência
reflexiva e sistematicamente orientada pela
própria atividade (como objetivou Schiller)
temos o caráter concreto.
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