POSSIBILIDADES EDUCATIVAS DO OLHAR: AS CHARGES COMO

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POSSIBILIDADES EDUCATIVAS DO OLHAR: AS CHARGES COMO
FERRAMENTAS PARA AS CONSTRUÇÕES DE NARRATIVAS E
INTERPRETAÇÕES HISTÓRICAS – UM RELATO DE EXPERIÊNCIA
Marcelo da Silva Araújo∗
Este texto se baseia no relato de uma experiência intitulada “História e imagens
contemporâneas”, desenvolvida com alunos da 8ª série do Ensino Fundamental, em
uma escola pública municipal da cidade do Rio de Janeiro. O material pedagógico
utilizado foram imagens geradas e veiculadas em ambiente eletrônico: charges da
internet.
A proposta surgiu da necessidade de utilizar uma outra estratégia que criasse
uma situação de aprendizagem, possibilitando, concomitantemente, refinar as
abordagens pedagógicas e experimentar, acima de tudo, uma nova possibilidade
educativa, explorando as sensibilidades do olhar. Logo, percebi que o conteúdo lúdico e
divertido das imagens só auxiliaria na aceitação e na assimilação crítica e criativa do
material.
Nesta era da imagem, há uma grande resistência aos conteúdos tipicamente
transmitidos nas escolas, o que faz com que nós nos deparemos cotidianamente com as
situações mais difíceis, e até mesmo embaraçosas, quanto ao que ensinar. Isto ocorre,
creio, especialmente nas instituições públicas de ensino, face ao seu caráter mais
amplamente inclusivo, no sentido de sua acessibilidade. Por outro lado, a intensa
impressão de inadaptabilidade destes mesmos conteúdos pelo universo discente é um
sintoma que corrobora com o fato de uma renovação constante e urgente dos métodos e
das metodologias. Os tempos em que vivemos são excepcionalmente rápidos e manter
determinadas posturas torna-se incompatível, portanto, com as transformações que
inevitavelmente se colocam.
Por isso, alternar estes métodos e metodologias com abordagens mais abertas e
experimentais, tais como a que trago nesta ocasião, apresenta-se como uma das várias
possibilidades de escapar ao chamado ensino tradicional dentro de sala. Quero deixar
claro que não postulo, com isso, nenhuma revolução extraordinária e milagrosa das
formas de trabalho do professor, visando a abalar os alicerces da prática educativa. Pelo
∗
Mestre em História e Teoria da Arte, docente de História da Secretaria Municipal de Educação do Rio
de Janeiro e docente do Departamento de História da Arte da Escola de Belas Artes/UFRJ.
contrário, eu mesmo faço questão de manter determinadas práticas e posturas tidas
consensualmente como ‘tradicionais’. E isto não necessariamente tem um sentido
pejorativo. Acredito que certas formas não devem mesmo sofrer alterações bruscas em
sua composição e realização. Proponho, deste modo, a implementação de uma prática
alternativa que contempla documentos (visuais) configurados de um modo diferente do
clássico livro didático, portando um sentido auxiliar quanto à sua utilização.
Novo tempo, novas abordagens: breves características acerca da imagem
A vida moderna nos penetra pelos sentidos. Nestes canais de percepção do
mundo, os olhos são os mais acionados: eles sofrem o assalto contínuo da proliferação
das imagens. Sendo assim, a comunicação no mundo contemporâneo faz-se cada vez
mais freqüentemente através delas. Emanadas dos mais diversos meios de comunicação
da vida moderna (televisão, cinema, internet, entre outras), elas fazem com que parte
significativa de nossa educação passe pelo exercício do olhar.
Além disso, nossa vida encontra-se mergulhada em processos de constituição de
memória e/ou de informação pública (fotografia, outdoors, panfletos com forte apelo
visual, etc.) em que as imagens são, por excelência, o canal de interação. Saber efetuar
uma leitura e entendê-la como parte integrante da complexidade do mundo
contemporâneo significa compartilhar de suas versões de domínio público, não abrindo
mão, entretanto, de suas significações particulares, pessoais. Isto é, uma imagem não
contém um só significado, mas sim múltiplos e condicionados por subjetividades e
formas de olhar. São, portanto, resultados de um processo social básico, sendo o seu
entendimento compartilhado por determinados agrupamentos sociais, numa relação de
afinidade.
As imagens são documentos, artefatos que compõem parte da ampla cultura
material de variados e singulares grupos. Se, como disse, boa parte de nossa educação
passa pelo exercício do olhar, pela educação visual, pode-se supor que está, em boa
medida, excluído de determinados processos do mundo moderno aquele que não sabe
efetuar uma leitura coerente desta configuração imagética em que se transformou o
cotidiano. Todas as representações imagéticas têm uma história, com sentidos e funções
investidas, e representam visões de mundo, formas de discurso e estilos de vida de quem
as produzem. Elas solicitam uma análise visual que depende mais da capacidade de
avaliar e de estimar as possibilidades contextuais do que de um ato de simples tradução,
de acordo com uma postura ‘presentista’.
O público e as imagens
Certamente, algumas instituições concentram especiais condições para lidar com
esta complexidade inerente à imagem. Dentre elas a escola é, sem dúvida, um espaço
fundamental para as manifestações nas/das quais o mundo jovem - meus interlocutores é rico.
Os canais de aprendizado dos jovens são fortemente influenciados por estes
veículos. Não somente os filmes e desenhos animados têm seu peso, mas também os
videoclips musicais e os meios virtuais (internet) transformam-se num manancial
imagético para a reprodução de suas formas e cores.1 Assim como em outros usos de
material imagético, também na atividade desenvolvida provou-se que uma aproximação
com os sentidos das imagens, por si só múltiplos e variantes de acordo com o olhar,
confere ao analista o estatuto de autor de novas interpretações. É necessário, pois, ter
sempre em mente a noção de autoralidade. Ou seja, ao lermos uma imagem, nós a resignificamos, dando vida a outras imagens. Assim, multiplicamos as possibilidades de
novas re-significações, que, por sua vez, agirão sobre outras, numa escala ad infinitum.
Ao monitorar o sentido ‘holístico’, global, do documento imagético, os
significados são encaminhados de modo ordenado e controlado. Assim, sem podar as
possibilidades de construção criativa, estes significados podem conscientemente
originar agradáveis e interessantes leituras da realidade.
Baseadas em vivências e experiências dos próprios alunos, estes entendimentos
capitalizam benefícios para o grupo, amortizando, ao mesmo tempo, interpretações
isoladas e desconexas, não condizentes com parâmetros básicos de rigor analítico, quais
sejam, a história, a cultura, a ideologia e os interesses do material estudado.
Pensando desta forma, desenvolvi uma atividade que visava unir, enfatizo, o
aspecto lúdico e de entretenimento e a capacidade de efetuar as leituras e interpretações
propriamente ditas destas mensagens, estivessem elas explícitas ou subliminares.
1
Vale lembrar que embora percam progressivamente terreno, como indício da acelerada tecnologização
moderna, para àquelas mídias não tangíveis, as histórias em quadrinhos desempenham papel de relevante
importância, com suas personagens de vilões e heróis, constituindo-se em uma outra fonte de
aprendizado.
A partir da evidência de que as imagens engendram processos de constituição de
memórias, o resultado foi o desenvolvimento da identificação, pelos alunos, do grande
poder discursivo e educativo das charges e, conseqüentemente, do aperfeiçoamento de
uma consciência crítica, em que diversos conteúdos foram positivamente exercitados e
postos em prática.
Charge: importância, leituras e a criação de outras realidades
Em artigo recente, Aragão indica, ao tratar de charges no século XIX, aqueles
que podem ser mapeados como os primeiros passos desta manifestação na história do
Brasil. Perseguindo os trabalhos de Angelo Agostini, ele nos informa que o mesmo é
sem dúvida um dos pais da charge no Brasil, tendo desenvolvido uma técnica de
narrativa gráfica bastante inovadora ao mesclar elementos da charge portrait (cuja
caricatura deforma o modelo) e do surrealismo, disponibilizando recursos narrativos
dignos dos quadrinistas mais contemporâneos. O mérito deste histórico chargista foi o
de transformar as duas páginas centrais do periódico que editava, a Revista Illustrada,
num grande painel cheio de desenhos concatenados e sublinhados por textos imersos em
fina ironia, através dos quais retratava o dia-a-dia da Corte e de seus personagens mais
peculiares.2
Assim como em nossos dias, este trabalho logrou um alcance popular, por
intermédio de seu poder de modificar, pela arte seqüencial, as estruturas sociais. A
narrativa cômica e a verve poderosa dos desenhos de Agostini foram armas que
ajudaram a mudar o panorama político do país.3
A importância da charge na cultura brasileira é indiscutível. Aqui,
diferentemente de outras realidades sociais, ela ganha a primeira página dos jornais e,
sempre que necessário, o faz espicaçando com “vara curta” os representantes do poder,
transformando a função política numa fatia indissociável da (sua) produção artística.
Há um território ocupado pela charge na cultura nacional e global que permite
transparecer todo o seu poder nos mais diversos níveis. Estes níveis são fundamentais
2
ARAGÃO, Octavio. “Angelo Agostini: a arte de levar a sério um trabalho bem-humorado”. In: Arte &
Ensaios, nº 10, RJ: PPGAV/EBA/UFRJ, 2003, p. 37s.
3
Vale, deste modo, a título de comentário, a passagem do texto “A crítica de arte de Angelo Agostini”, de
Rosangela Silva, na p. 410: “Monteiro Lobato comparou a obra de Agostini à importância de
documentação histórica que tiveram os trabalhos de Debret e Rugendas. Para Lobato ‘(...) em nada se
estampa melhor a alma de uma nação do que na obra de seus caricaturistas. Parece que o modo de pensar
coletivo tem seu resumo nessa forma de riso’.”. In: PEREIRA, Sonia Gomes e CONDURU, Roberto
(orgs.). Anais do XXIII Colóquio de História da Arte, RJ: CBHA/UERJ/UFRJ, 2004.
para a formação da consciência crítica na atualidade, abrangendo o campo da arte, da
política, da ideologia, do social e, é claro, da criatividade e liberdade temáticas. Essas
produções são, portanto, reconstituições de cenas da vida cotidiana, da vida social, ou
então criações de alegorias puramente imaginárias, mas cuja fonte é um acervo cultural
compartilhado, pois elas são partes interessadas no cenário e na expressão de
representações sociais.
Infelizmente, ainda não é profícua a literatura crítica que trata destas charges
oriundas dos meios virtuais. Esse é realmente um fato limitador de uma reflexão mais
aprofundada acerca destas novas dinâmicas educativas, uma vez que tais documentos
acessíveis a um ampliado contingente de pessoas socializam, amplificam e
democratizam as possibilidades críticas e de construção de discursos plurais,
dependendo, entretanto, da igualmente ampla acessibilidade a estes meios ainda não
generalizados (mas, como querem as administrações educacionais, caminhando a largos
passos para a universalização) e do estoque de informações agregadas de que é
detentora o estrato social que tem contato com as mesmas.
A dinâmica seguiu um roteiro que incluía atividades grupais de criação de
legendas e de textos analíticos sobre os documentos trabalhados. Este roteiro foi
elaborado da seguinte forma:
1.
Em grupo: com imagens iguais.
− Constituição de grupos de 5 alunos;
− Distribuição de uma mesma imagem para reflexão e discussão grupais. Duração da
etapa: 5 minutos;
− Atribuição de uma legenda por cada grupo à imagem em análise. Em seguida, criação
de um pequeno texto sobre ela. Duração da etapa: 10 minutos;
− Após isso, um aluno de cada grupo foi à frente da sala de aula para ler sua legenda e
explicar o seu texto. Duração da etapa: 2 minutos;
− Finalizando, houve a realização de um debate ampliado sobre as semelhanças e as
diferenças das conclusões de cada grupo.
Uma
outra
possibilidade
de
trabalho
que,
embora
vislumbrada
e
sistematicamente organizada, não foi posta em prática, tratava do trabalho com etapas
individualizadas, como descrito abaixo:
2.
Individual: com imagens diferentes.
− Distribuir diferentes imagens a cada grupo de 5 alunos tomados isoladamente,
totalizando, no máximo, 9 imagens distintas;
− Fixar o tempo de 10 minutos para a confecção de legendas e de textos explicativos;
− Na seqüência, juntar os alunos com as imagens iguais para a comparação de suas
legendas e rediscussão, agora, de uma legenda comum. Duração da etapa: 15 minutos;
− A legenda que resultar desta reunião seria discutida perante as outras que, mesmo
diferentes, guardam proximidades em relação a todas, seja pela sua temática mais
ampla (por exemplo, violência, política, etc), seja pelas características plásticas da
imagem;
− Encerrando, seria esboçada uma visão ampla sobre as legendas, procurando conectálas num todo coerente, visando criar um discurso crítico sobre as imagens.
O preceito que norteou a atividade foi o de que nunca olhamos apenas para uma
coisa, mas sim sempre para as relações entre as coisas e nós mesmos. Deste modo, a
apresentação e discussão dos resultados da atividade pedagógica visam enriquecer e
servir igualmente como possibilidade educativa, que utiliza um outro e inusitado
suporte, do ponto de vista do ambiente escolar, que não se exaure em sua exploração
sob o formato demonstrado mas sim, pelo contrário, permite a implementação de outros,
adaptados às diversas realidades e especificidades locais.
Autor: Novaes
Nesta imagem, foi pedido para os alunos que completassem as etapas
subseqüentes para interpretá-la, criando um texto escrito. Isto é, a partir de uma mídia
visual criariam uma interpretação gráfica, escrita, transformando-se em autores de, por
assim dizer, uma outra imagem. Mas, secundarizando estas questões mais
metodológicas, importantes pontos foram levantados nesta interpretação. Seguem-se
algumas “falas” dos grupos formados:
“ ‘-Vamos fazer como fizeram com o Saddam, derrubaremos a estátua e
acabaremos com o governo!’. Esse é o argumento de pessoas também
insatisfeitas com o governo da Rosinha Garotinho, esposa de Garotinho,
Secretário de Segurança Pública.”4
Sob o título de “Bang-Bang no Governo”, o grupo formado por 5 alunos
conseguiu efetuar uma fundamental associação do local com o global, demonstrando
estarem atentos aos movimentos da política internacional, a ponto de relacionarem fatos
geograficamente longínquos que, de acordo com um pensamento mais apressado, não
teriam qualquer impacto na situação brasileira.
Por outro lado, a ligação simbólica entre Rio de Janeiro e Iraque quanto à
tomada do poder pelos “bandidos” toca na tão discutida situação de bandidos da história
em que se converteram os Estados Unidos da América, personificados pela figura de seu
presidente. Os bandidos urbanos da imagem, fortemente armados simbolizam, de uma
forma um tanto canhestra, o desejo concretizado do povo, que almeja paz nas ruas. Paz
que o referido governo não consegue garantir, sucumbindo pois à pressão do crime, ao
mesmo tempo vilão e herói da charge e do discurso dos alunos.
É curioso que a fala “-Vamos fazer como fizeram com o Saddam, derrubaremos
a estátua e acabaremos com o governo” parece ser emitida por populares descontentes,
o que é confirmado pelo trecho “Esse é o argumento de pessoas também insatisfeitas
com o governo da Rosinha Garotinho” preferindo usar o termo pessoas em vez de
bandidos (ou similares), como apresenta claramente a charge. Também a precisão, ou
preciosismo, em identificar a governadora como “esposa de Garotinho, Secretário de
Segurança Pública” é sintomática. Articula no mesmo discurso as ‘filiações’ que o
governo atual possui, fazendo parecer, com a devida licença, um feudo. A acidez e a
4
Por motivos éticos, os nomes dos alunos, bem como suas turmas, não serão identificados neste trabalho,
relembrando-se apenas que são estudantes da 8ª série do Ensino Fundamental. Do mesmo modo, para
fazer justiça aos textos integrais relativos às duas figuras analisadas, não corrigi os erros e não
conformidades dos mesmos quanto a regra culta da gramática.
visão acurada dos alunos deixa evidente a sua percepção da atual conjuntura. Apontar
fatos geográfica e politicamente distintos, integrando-os a um mesmo contexto de
calamidade, concretizado pelos movimentos de violência, indica um fino senso de
coerência, que é especificamente denotada pela escrita e pelas relações construídas.
Noutro trecho, encontramos a seguinte passagem:
“A Rosinha tombando para a falência e o ‘pau está comendo’ entre os
políticos e é tiroteio para tudo quanto é lado entre os deputados ladrões.
E eu [nós] vejo que a Rosinha não vai ficar em seu cargo por muito
tempo. E ela pode morrer feio.”
Intitulado “Tiro no Corcovado”, este comentário de um grupo de 4 alunos
guarda aberta semelhança com o anterior. Ele utiliza-se de uma expressão popular (‘pau
está comendo’) para se fazer inteligível, relacionando a queda da estátua com um
processo de decadência da administração quanto à gestão de recursos financeiros. É
interessante que os alunos não se atêm apenas ao visível, indo além do que “diz
explicitamente” a imagem. Localizam políticos, fazendo uma associação implícita entre
esta declarada “falência” e sua motivação: a apropriação indevida dos recursos públicos
por aqueles que deveriam legislar para a sua regulação.
Nesse caso, a acidez do comentário é tamanha que até chega a prever a
derrocada política da chefe do Executivo estadual. E não param por aí: relacionam o
estado de insegurança generalizada com a perda da vida da governadora. Isto sem
dúvida reflete este estado, afetando mesmo àqueles, como é o caso destes jovens, que
não seriam alvos preferenciais dos assaltantes urbanos. Portanto, fica patente a
descrença na classe política, vista como causadora dos males sociais, mesmo não sendo
referida pela imagem.
Numa próxima imagem, há o seguinte texto:
“A violência no Rio vem aumentando a cada dia. Os traficantes vem
tomando conta da cidade, a governadora está perdendo cada vez mais o
controle sobre os traficantes. A governadora está mais preocupada com
as Olimpíadas e o Pan, mas para ser sede das Olimpíadas ela tem que
garantir em 1º lugar a segurança da população e a dos turistas.”
Já este diz o que a imagem mostra mais explicitamente: a violência de grupos
armados. Entretanto, faz uma relação diferente, em que a governadora, como
representante do poder constituído, perde o controle sobre os traficantes. O texto não
menciona que ela perde o controle sobre a violência de um modo mais amplo, mas sim
sobre os traficantes. Isto é, qualifica-os como o pior dos problemas quanto à segurança
pública. As outras formas de violência, diversas em sua variedade, nem são lembradas
como representativas de seus específicos contextos de ocorrência.
Somente num segundo momento, a análise vai mais além do meramente visível,
fazendo a relação entre as preocupações tidas como “oficiais” pelo grupo (Jogos
Olímpicos e Pan-Americanos) e os desdobramentos negativos que inviabilizam a
realização dos mesmos. Arrolam aí uma perspectiva mais ampla de segurança, incluindo
não somente a si mesmos mas também aos turistas que porventura estejam aqui. Com
isso, demonstram saber não somente que os referidos jogos têm este impacto, de atração
de turistas, mas também parecem reconhecer a vocação da cidade do Rio de Janeiro, em
especial, para esta forma de benefícios econômicos – e nesse sentido associam este
contexto com o cenário de ocorrência do “atentado”.5
Esta charge intitulada “Será o fim do Governo Rosinha?” nos transmite a idéia
de que determinados eventos esportivos são alvo primordial do poder constituído, na
qualidade de instrumentos que se situam para além do campo meramente esportivo; são
essencialmente políticos. Entretanto, o grupo, constituído por 5 alunos, visualiza a
população como a primeira que deve ser atendida e portanto respeitada num direito
fundamental seu.
O próximo é o último dessa seleção. Tendo por título “Rosinha é derrubada
pelas favelinhas”, o grupo relaciona bandidos e favela, aditivando o preconceito há
muito sedimentado no imaginário quanto a estes dois segmentos, em nada
necessariamente coincidentes, mas que renovadamente são aproximados:
“A governadora Rosinha Matheus do Estado do Rio de Janeiro é
publicamente derrubada pelos marginais que tomaram o lugar de
‘governadora’. Agora são claramente governadores, donos do Rio de
Janeiro (...) ‘Parece até história de terror’.”
O argumento da derrubada comparece mais uma vez neste texto. A tão
decantada noção de marginal é acionada para explicar a imagem. Juntamente com ele
está a idéia implícita de crime organizado, posto que tomam o lugar do governo
instituído.
5
Tais aferições não podem, realmente, ser observadas no comentário tecido pelos alunos. Contudo,
puderam ser verificadas na etapa final da atividade: a apresentação para a classe.
Ser governador e ser dono do Estado do Rio de Janeiro são condições que andam
em par na interpretação do grupo. Isso faz vir à tona um dos mais novos lugares-comuns
que galopam nos cenários do telejornalismo e da mídia impressa: o poder paralelo.
Ser ‘dono do Rio’ transforma-se em cenário de caos para os autores. Preconizam
isto com o termo “Parece até história de terror”. O liame compartilhado por todos é a
situação quase insustentável que se instalou na cidade por conta da violência e,
simultaneamente, no Estado, mais amplamente quanto à corrupção política.
O conteúdo lúdico da charge, percebido e explorado pelos alunos com outros
títulos para os textos, tais como “O dia em que a ‘Rosa murchou’ ”, não deixa, portanto,
de acionar sua veia crítica e, invariavelmente, ácida.
Desse modo, sem dúvida são analistas da História, construtores de textos que de
um modo ou de outro constroem sua noção de direitos e deveres (quanto à segurança
pública, por exemplo) e, por assim dizer, de cidadania e de exercício discursivo acerca
de sua própria realidade.
Autor: Bemba (?)
Esta charge contextualiza simultaneamente a ocorrência do movimento de
identificação compulsória promovida pelos aeroportos brasileiros aos cidadãos norteamericanos, em represália ao idêntico tratamento dado aos cidadãos brasileiros, turistas
e outros, que pisavam em solo daquele país, face à intensa onda de terrorismo
internacional pós-11 de setembro de 2001 e o fato de o presidente Lula ser alvo de
recentes críticas envolvendo suas constantes viagens internacionais.6 Desse modo, a
charge possibilitou verificar o grau de atualização dos alunos com tais informações e,
por outro lado, colher suas opiniões acerca das mesmas.
Antes de um primeiro comentário, são significativos os títulos que fazem alusão
ao aspecto turístico da mensagem gráfica da representação visual. Entre eles está
especialmente um, “O principal turista do Brasil”, que expressa, em seu texto, uma
aproximação histórica entre o atual e o último ex-presidente do Brasil. Este,
constantemente acusado de ausentar-se excessivamente do país, parece ter encontrado,
de acordo com o comentário, um rival à altura, revelando uma associação de cunho
histórico que nega o fato tão repetidamente cantado de que ‘o povo tem memória curta’.
Sob o título “Olha o Lula vindo...”, o texto é incisivo quanto à postura dos
governantes máximos, tecendo uma forte e estruturada crítica ao mesmo:
“Nos tempos de hoje, os presidentes o Brasil não param mais no seu
próprio país. Eles fingem estar fazendo negócio nos outros países mas
estão apenas viajando de um lado para o outro.”
Na acepção do aluno, que fez a atividade individualmente, tais viagens e sua
constância denunciam o lado frívolo de governar e de ser responsável pela gestão do
dinheiro público, aqui mais uma vez lembrado. Mas ele ressalta que isto é uma prática
dos “tempos de hoje”, parecendo não relacionar a postura como “enraizada” na cultura
política de tais governantes da nação.
A idéia de fingimento e de uso da máquina em benefício próprio agora não mais
se centra nas classes legislativas, mas no Executivo federal, na condução essencial do
país. Segundo o comentário, parece ser mais interessante viajar “de um lado para o
outro” que enfrentar os problemas históricos para os quais foi eleito para resolver...
Além disso, aparece no texto outra importante alusão a uma fonte de informação
presente nas vidas cotidianas e, como afirmado no início desse texto, impregnadora da
educação contemporânea: a televisão. O título recorre a uma solução atualmente
consagrada que repete os dizeres de um quadro temático do programa humorístico
noturno exibido aos sábados pela Rede Globo denominado “Zorra Total”. Neste, dois
limpadores de janela conversam sobre as situações do dia-a-dia e das dificuldades da
6
Além disso, como veremos, a imagem irá deflagrar comentários quanto aos gastos presidenciais com
aeronaves de alto valor.
vida, enquanto lavam a janela de um prédio. Ao fim da conversa, sempre temperada
pela paródia e pela crítica à sociedade mais ampla e especialmente às classes
economicamente dirigentes dizem, ao passar de um avião: “Olha o Lula indo, olha o
Lula vindo...”.
Num texto seguinte, o título “A desconfiança é para todos” põe em foco a
questão, enfaticamente lembrada, da descrença na classe política.
“A situação do Brasil está precária temos que desconfiar de todos os
políticos, senadores, vereadores etc, são os verdadeiros chefões do crime.
E é nesse vai e volta de um país para o outro é que acontece o tráfico de
drogas que passam a chegar rapidamente nas favelas de todo o Brasil.”
A profícua associação entre corrupção política e tráfico de entorpecentes é
desvelada como um dos detonadores da criminalidade generalizada, que começa pelos
centros políticos de poder constituído. A precariedade da situação brasileira advém da
imoralidade da classe política, que não é cumpridora dos desígnios do povo e assim age
em benefício próprio.
A descrença é de fato intensa, já que se deve “desconfiar de todos os políticos,
senadores, vereadores etc”, pois eles “são os verdadeiros chefões do crime”. O livre
acesso a outros territórios, internacionais - e pensar aqui também na imunidade
parlamentar -, denuncia uma séria questão. A entrada de entorpecentes no território
brasileiro, notadamente os que abastecem os morros e favelas cariocas, tem o seu
passaporte garantido por estes políticos. Num certo sentido, o texto indica uma forma
pessoal de seus produtores de reduzir e/ou acabar com este tipo de criminalidade no Rio
de Janeiro: desconfiar e até mesmo vigiar os políticos.
Os dois próximos textos relacionam-se quanto à visão de desperdício do dinheiro
público por parte do presidente. Ambos mantêm sua discussão principal na má gerência
e na pouca atenção dada aos assuntos nacionais e ao povo, imputando, entretanto,
parcela de culpa à própria população (incluindo eles, os estudantes, que ainda não
votam) pela escolha errada de seu governante.
“O Presidente Lula não faz quase nada. Gasta o dinheiro todo viajando em vez de
aplicar no país construindo hospitais, moradias, escolas etc porque ele
construindo essas obras é mais empregos e logicamente menos desempregados
no Brasil. Eu acho que ele tem que cuidar do Brasil, não de outros países.”
“... Nós somos burros em votar em um turista desse e também todo o dinheiro do
avião e de todas as viagens já dava para dar sexta básica para comunidade
carente.”
No primeiro, o título adianta o texto “Não faço nada, só viajo”. Para eles, as
viagens são perda de tempo e principalmente de dinheiro, que no caso é mal aplicado.
Parecem desconhecer ou ignorar conscientemente que tais viagens são uma atribuição
precípua de um chefe de governo central.
O ponto alto do texto, acredito, dá-se quando os autores elencam sugestões para
o bom uso dos recursos públicos. Em sua opinião, “aplicar [o dinheiro] no país
construindo hospitais, moradias, escolas etc porque ele construindo essas obras é mais
empregos e logicamente menos desempregados no Brasil” é a fórmula para a resolução
dos males sociais, tais como a saúde, a moradia e o desemprego. Esse trecho apresenta,
indubitavelmente, a percepção dos alunos de quais seriam as possíveis saídas para a
crise brasileira.
Crise há muito existente, fruto da má aplicação dos recursos. Mas não somente,
pois é fruto também dos históricos erros na escolha de seus representantes nos
principais espaços de decisão política, como mostra o texto da seqüência. Com o título
“O turista estagiário”, ele faz uma associação entre o voto equivocado da população e a
reversão do dinheiro gasto nas viagens para um uso de suprimento alimentar regular
para a população.
Todos os rótulos de ‘turista’ dados ao presidente são pejorativos, explicitando
uma comunhão nos sentidos conferidos por todos os autores. Numa época de polpudos
programas sociais de todas as esferas (municipal, estadual e federal), que conclamam
constantemente a população a efetuar doações em prol dos concidadãos menos
favorecidos, as próprias viagens, segundo o grupo, daqueles que fazem o apelo,
deveriam ser transformadas em cestas básicas, pois os mesmos “burros” (que doam) são
a classe que seria favorecida, pois é a referida comunidade carente.
Por último, a sintetização do potencial da cidade do Rio de Janeiro para o
turismo. Seu título é “Lula, o turista” e diz:
“O presidente Lula está se saindo como um simples turista (como todos os
outros, mais os outros tem uma coisa, eles ajudam o país a crescer
economicamente, o presidente nem isso). Por isso, o país não sai de onde
está. O Lula vai, o Lula vem, diz que é para o progresso do país, mas até
agora progresso nenhum obtivemos. Foi o que eu disse Lula o turista, está se
saindo como um simples turista.”
Nele, a figura política máxima do país, cuja atribuição fundamental é
proporcionar condições para a promoção do progresso e do bem estar da nação, consta
como o implementador do oposto. É um “simples turista”, com a diferença de não gerar
renda e, conseqüentemente, progresso. Ao contrário, dilapida o patrimônio público,
causando a estagnação do país (“por isso, o país não sai de onde está”).
“O Lula vai, o Lula vem” é outra forma de alusão ao já referido programa
humorístico. Assim como naquele programa também aqui o presidente é visto como
turista gastador, que, ao contrário dos visitantes tradicionais, gasta em outras paragens o
dinheiro que não é seu. Enfim, é um turista de 2ª importância pois os turistas
costumeiros trazem dinheiro, já o presidente, somente gasta; o progresso está atrelado a
esta forma de lidar com o dinheiro público.
Conclusão
Espero ter conseguido mostrar o quanto pode ser proveitoso o trabalho com
imagens que ocupam, ao mesmo tempo, um lugar de ludicidade e um espaço de
aprendizagem visual. A discursividade que resulta das análises, como já mencionei,
promove novas autoralidades, plenas de informações subliminares de intenso e frutífero
conteúdo.
De minha parte posso dizer que a experiência, que será repetida com outras
imagens, foi surpreendentemente positiva. Os alunos podem, através de práticas desse
tipo, tecer comentários verbais e textuais que talvez não fizessem de algumas outras
formas.
Penso que uma das funções possíveis das charges, em seu conteúdo de
entretenimento, é exatamente este: facilitar a expressão de diversos modos e maneiras,
articulando o que Antunes postula como a interseção das diversas inteligências, onde
não somente uma, em nosso caso a visuoespacial, mas várias inteligências são acionadas
e efetivamente comparecem na realização da atividade.7 Neste sentido, as outras
inteligências vêm a reboque, em doses proporcionais, e todas se juntam na apreensão
metodológica e analiticamente produtiva do assunto em análise.
Concluo reforçando a necessidade de ampliar os enfoques “diferentes” na prática
pedagógica, em especial no ensino de nossa disciplina. O trabalho com imagens é
7
ANTUNES, Celso. A sala de aula de geografia e história, 2ª ed., Campinas: Papirus, 2003.
certamente apenas uma das muitas veredas que podemos trilhar. A charge, aqui
discutida, é somente um recurso de grande porém pouco explorado potencial. Assim
como outras tantas “fontes” subexploradas, estão por serem catalogadas, elaboradas e
aplicadas em situações de aprendizagem.
Referências bibliográficas
ANTUNES, Celso. A sala de aula de geografia e história, 2ª ed., Campinas: Papirus,
2003.
ARAGÃO, Octavio. “Angelo Agostini: a arte de levar a sério um trabalho bemhumorado”. In: Arte & Ensaios, nº 10, RJ: PPGAV/EBA/UFRJ, 2003.
PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS: história e geografia, 2ª ed., RJ:
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