Evangelho de Mateus

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Evangelho de Mateus
Silvio Dutra
DEZ/2015
A474
Alves, Silvio Dutra
Mateus./ Silvio Dutra Alves. – Rio de Janeiro,
2015.
700p.; 14,8x21cm
1. Teologia. 2. Evangelho. 3. Comentário Bíblico
I. Título.
CDD 230.226
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Sumário
Mateus 1........................................................
Mateus 2........................................................
Mateus 3........................................................
Mateus 4........................................................
Mateus 5........................................................
Mateus 6........................................................
Mateus 7........................................................
Mateus 8........................................................
Mateus 9........................................................
Mateus 10......................................................
Mateus 11......................................................
Mateus 12......................................................
Mateus 13......................................................
Mateus 14......................................................
Mateus 15......................................................
Mateus 16......................................................
Mateus 17......................................................
Mateus 18......................................................
Mateus 19......................................................
Mateus 20......................................................
Mateus 21......................................................
Mateus 22......................................................
Mateus 23......................................................
Mateus 24......................................................
Mateus 25......................................................
Mateus 26......................................................
Mateus 27......................................................
Mateus 28......................................................
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Mateus 1
Mateus conta a genealogia de Jesus a partir de Abraão,
porque foi a Abraão que Deus fez a promessa de abençoar
todas as nações da terra por meio dAquele que descenderia
dele no futuro, a saber Jesus Cristo (Gál 3.14,19).
O evangelista dividiu as quarenta e duas gerações de Abraão
até José, em três grupos de quatorze, como se vê no verso 17.
De Abraão até Davi, a quem foi feita também a promessa da
Nova Aliança, pelas fiéis misericórdias prometidas por Deus à
casa de Davi.
De Davi até a deportação dos judeus para Babilônia, onde
foram purificados da idolatria para serem restaurados
posteriormente em sua própria terra, para reedificarem o
templo e para poderem recepcionar a Jesus.
E da deportação para Babilônia, até o nascimento de Jesus.
Estas 42 gerações da genealogia do Senhor somam cerca de
2.000 anos de antepassados.
Nenhum outro personagem da história teve um registro tão
antigo e extenso de seus ancestrais, como Jesus Cristo, porque
aprouve a Deus marcar, para nos deixar o testemunho da
descendência do nosso Senhor e Salvador, pela certeza de que
somente nele e em nenhum outro, temos o cumprimento das
fiéis promessas feitas a Abraão e a Davi, quanto Àquele que
descenderia deles e que seria o Rei de um reino eterno, e o
único por meio de quem somos livrados da maldição da lei,
para recebermos uma salvação, herança e bênção eternas.
Como estava designado por Deus, desde antes da fundação do
mundo, que Jesus deveria proceder, segundo a carne, da tribo
de Judá, então são nomeados os filhos de Judá, Perez e Zerá,
mas não foi em Zerá, mas em Perez, conforme o conselho do
Senhor, que foi chamada a genealogia de Jesus.
Quatro mulheres são nomeadas na genealogia do Senhor.
Duas eram estranhas à comunidade de Israel: Raabe, um
cananita, e Rute, uma moabita, revelando em figura que o
Senhor não viria somente para a nação de Israel, mas também
para todos os povos gentios.
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As outras duas, apesar de serem de Israel, haviam adulterado,
a saber: Tamar, nora de Judá, e Bete-Seba esposa de Urias, que
concebeu a Salomão de Davi.
Nisto, se antecipou que Jesus viria para conduzir pecadores ao
arrependimento, para serem incluídos em sua família
celestial e divina.
Como a genealogia de Jesus foi contada na descendência de
Davi, e particularmente em todos aqueles seus descendentes,
que foram reis em Judá, até Zedequias, quando houve a
deportação para Babilônia, então foram contados tanto reis
ímpios quanto piedosos na descendência do Senhor. Isto não
significa que estes reis ímpios também fazem parte da família
de Deus, mas que Deus cumpre os seus propósitos e tem seus
escolhidos até mesmo na descendência dos maus.
Mateus destacou nos versos 1, 16, 17 e 18 o título de Cristo,
palavra grega para Ungido, correspondente à palavra
hebraica Messias.
Jesus é, portanto, o Messias, o Cristo, o Ungido, citado em
Daniel 9.25; Salmo 2.2 e Isaías 61.1, para que ficasse registrado
que ele realizaria toda a Ssa obra na terra, completamente
debaixo da unção e poder do Espírito Santo.
A partir do verso 18, Mateus começou a registrar algumas das
circunstâncias que envolveram a concepção e o nascimento
do Senhor.
Foi anunciado pelo anjo Gabriel a José, que Maria não havia
concebido de homem algum, quando se achou grávida do
Senhor Jesus, mas que tal concepção fora obra direta do
Espírito Santo no ventre de Maria, uma vez que a mesma
permanecia virgem, e assim, deveria permanecer até o
nascimento do Senhor.
Esta revelação foi feita a José para que ele não deixasse Maria,
secretamente, como havia intentado fazer, para não infamála pensando que ela tivesse cometido adultério.
Esta forma sobrenatural da formação do corpo de Jesus havia
sido profetizada por Isaías cerca de 700 anos do seu
nascimento.
A José foi declarado pelo arcanjo Gabriel que Aquele que
Maria trazia em seu ventre era o Salvador do mundo, porque
salvaria as pessoas do seu povo, dos seus pecados, a saber, não
todas as pessoas do povo de José, mas as pessoas que fazem
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parte do povo de Jesus, ou seja, aqueles que são salvos por ele,
motivo porque deveria ser colocado nele, ao nascer, o nome
de Jesus, que significa no hebraico, o Salvador.
Mateus 1.1 Livro da genealogia de Jesus Cristo, filho de Davi,
filho de Abraão.
Mateus 1.2 A Abraão nasceu Isaque; a Isaque nasceu Jacó; a
Jacó nasceram Judá e seus irmãos;
Mateus 1.3 a Judá nasceram, de Tamar, Farés e Zará; a Farés
nasceu Esrom; a Esrom nasceu Arão;
Mateus 1.4 a Arão nasceu Aminadabe; a Aminadabe nasceu
Nasom; a Nasom nasceu Salmom;
Mateus 1.5 a Salmom nasceu, de Raabe, Booz; a Booz nasceu,
de Rute, Obede; a Obede nasceu Jessé;
Mateus 1.6 e a Jessé nasceu o rei Davi. A Davi nasceu Salomão
da que fora mulher de Urias;
Mateus 1.7 a Salomão nasceu Roboão; a Roboão nasceu Abias;
a Abias nasceu Asafe;
Mateus 1.8 a Asafe nasceu Josafá; a Josafá nasceu Jorão; a Jorão
nasceu Ozias;
Mateus 1.9 a Ozias nasceu Joatão; a Joatão nasceu Acaz; a Acaz
nasceu Ezequias;
Mateus 1.10 a Ezequias nasceu Manassés; a Manassés nasceu
Amom; a Amom nasceu Josias;
Mateus 1.11 a Josias nasceram Jeconias e seus irmãos, no
tempo da deportação para Babilônia.
Mateus 1.12 Depois da deportação para Babilônia nasceu a
Jeconias, Salatiel; a Salatiel nasceu Zorobabel;
Mateus 1.13 a Zorobabel nasceu Abiúde; a Abiúde nasceu
Eliaquim; a Eliaquim nasceu Azor;
Mateus 1.14 a Azor nasceu Sadoque; a Sadoque nasceu Aquim;
a Aquim nasceu Eliúde;
Mateus 1.15 a Eliúde nasceu Eleazar; a Eleazar nasceu Matã; a
Matã nasceu Jacó;
Mateus 1.16 e a Jacó nasceu José, marido de Maria, da qual
nasceu JESUS, que se chama Cristo.
Mateus 1.17 De sorte que todas as gerações, desde Abraão até
Davi, são catorze gerações; e desde Davi até a deportação para
Babilônia, catorze gerações; e desde a deportação para
Babilônia até o Cristo, catorze gerações.
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Mateus 1.18 Ora, o nascimento de Jesus Cristo foi assim:
Estando Maria, sua mãe, desposada com José, antes de se
ajuntarem, ela se achou ter concebido do Espírito Santo.
Mateus 1.19 E como José, seu esposo, era justo, e não a queria
infamar, intentou deixá-la secretamente.
Mateus 1.20 E, projetando ele isso, eis que em sonho lhe
apareceu um anjo do Senhor, dizendo: José, filho de Davi, não
temas receber a Maria, tua mulher, pois o que nela se gerou é
do Espírito Santo;
Mateus 1.21 ela dará à luz um filho, a quem chamarás JESUS;
porque ele salvará o seu povo dos seus pecados.
Mateus 1.22 Ora, tudo isso aconteceu para que se cumprisse o
que fora dito da parte do Senhor pelo profeta:
Mateus 1.23 Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho,
o qual será chamado EMANUEL, que traduzido é: Deus
conosco.
Mateus 1.24 E José, tendo despertado do sono, fez como o anjo
do Senhor lhe ordenara, e recebeu sua mulher;
Mateus 1.25 e não a conheceu enquanto ela não deu à luz um
filho; e pôs-lhe o nome de JESUS.
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Mateus 2
O modo de Jesus manifestar a sua majestade divina, continua
sendo o mesmo, desde o seu nascimento, a saber, numa
manjedoura de Belém, porque não é com pompa e
notoriedade que Ele se manifesta aos seus súditos, mas
sempre em humilde obscuridade.
Homens sábios do Oriente vieram dar-lhe honra, quando
ainda era um recém-nascido, porque lhes foi revelado por
Deus onde encontrá-lo.
A genuína presença e majestade do Senhor Jesus continua se
manifestando a muitos humildes de coração, em muitas
manjedouras deste mundo, enquanto os grandes e
entendidos não chegam a conhecê-lo, porque aprouve ao Pai
revelá-lo aos pequeninos e contritos de coração.
Deus é poderoso para esconder a revelação de Cristo de
ímpios arrogantes que lhe resistem, como fizera em relação a
Herodes, mas pode também fazer com que reis piedosos se
dobrem aos pés do Senhor, e o adorem, em localidades
pobres, que não costumam ser frequentadas por aqueles que
são considerados grandes segundo o mundo.
Assim, a visita dos magos foi um prenúncio do modo e do
método de Deus para revelar Cristo aos homens.
Se estes magos eram dados a artes mágicas condenadas por
Deus, a visita deles a Jesus em Belém, revelou a vitória de
Cristo sobre os poderes das trevas, convertendo para a sua luz,
aqueles que se encontravam debaixo do domínio do diabo.
Além disso, enquanto muitos em Israel se endureceriam,
quanto à recepção do Messias, os gentios representados
nestes magos, estavam se curvando para adorar o Senhor,
mesmo quando era ainda um bebê.
A visita dos magos para dar honra a Cristo precipitou a
perseguição e matança realizadas pelo rei Herodes.
O diabo tentou impedir o surgimento do Libertador de Israel,
tal como havia feito nos dias do nascimento de Moisés, pelo
cruel estratagema de matar todos meninos do sexo masculino
de dois anos para baixo, que habitavam na localidade e
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arredores, onde fora anunciado o nascimento tanto de
Moisés, quanto de Jesus.
A história se repete, porque toda vez que Deus suscita um
instrumento poderoso de libertação dos que se encontram
escravizados pelo diabo, este se levanta com grande fúria,
para tentar impedir tal obra de libertação.
Todavia, os propósitos de Deus não podem ser frustrados, e a
libertação será operada em meio a todos os danos que possam
ser causados pelo Inimigo.
Está determinado que Jesus reine para todo o sempre em
glória na Nova Jerusalém, mas em sua encarnação, havia sido
designado e predito que deveria nascer na humilde Belém de
Judá.
Isto se deveu a muitas razões, mas especialmente à de que
tudo o que se refere ao reino do Messias, começa pequeno
como o grão de mostarda e termina em grandeza e em glória.
A fidelidade no pouco será exigida antes de que se veja a
colocação em grandeza e glória.
Os que desejarem uma coroa terão que carregar
voluntariamente uma cruz.
Os que aspirarem pelo consolo eterno terão que suportar
sofrimentos com paciência perseverante.
O galardão será tanto maior nem tanto pelas graças
recebidas, mas pelas perseguições e tribulações sofridas por
amor a Cristo.
A humilhação e a humildade da manjedoura, da cidade natal
de Belém, das perseguições de Herodes, da fuga para o Egito,
têm o propósito de nos ensinar e fazer recordar estas verdades
anteriormente referidas.
A riqueza de Cristo representada pelo ouro; o bom perfume de
Cristo representado pela mirra, e a oração intercessória
poderosa de Cristo como nosso Sumo Sacerdote,
representada pelo incenso, que foram oferecidos pelos
magos, serão sempre achados onde houver verdadeira
adoração na sua santa presença.
Sempre haverá uma estrela para guiar a todos aqueles que
pretendam honrar verdadeiramente ao Senhor Jesus, que
será providenciada pelo Pai, que é quem atrai a todo a quem é
dado ter a revelação da pessoa de Cristo.
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Esta estrela é o Espírito Santo trabalhando em nossas mentes
e corações, para que não erremos o caminho da verdadeira
adoração, que é feita aos pés do Senhor.
Assim como Jesus teve que ser escondido de seus
perseguidores, no Egito, por seus pais, de igual modo, deve
continuar sendo escondido daqueles que o rejeitam
voluntariamente, porque aqueles que rejeitam aqueles que
são enviados por ele, também são rejeitados, e o modo visível
desta rejeição é por nos retirarmos do meio deles.
Jesus é tão precioso que não deve ser exposto voluntária e
deliberadamente ao desprezo de homens ímpios.
Aqueles que não se julgam dignos de receberem a paz do
Senhor, devem viver sem a referida paz, em sinal de juízo
contra a impiedade deles, do mesmo modo como Herodes
ficou privado da abençoadora e graciosa presença do Senhor,
até o dia da sua morte, em grande ruína.
Os que não desejam ser promotores da paz, ou seja,
pacificadores, excluem-se automaticamente da bemaventurança, nesta vida e na do porvir, porque Jesus afirma
que somente os pacificadores são bem-aventurados.
Deste modo, até hoje, os seguidores de Jesus, quando forem
perseguidos numa cidade devem fugir para outra. Quando
não são bem recebidos num determinado lugar devem
procurar outro.
Isto não é covardia e nem vergonha, mas simplesmente, não
permitir que o grande nome do Senhor, que deve ser sempre
santificado, venha a ser exposto à ignomínia e desonra.
Pelas perseguições e tribulações que sofremos podemos
aprender o quanto somos dependentes de Deus para tudo, de
maneira que esta lição nunca seja esquecida por toda a
eternidade.
A fuga de José e Maria com Jesus para o Egito já se encontrava
nos desígnios de Deus, e por isso profetizou esta fuga muitos
séculos antes pela boca do profeta Oseias (Os 11.1).
Isto nos ensina que a obra do evangelho deve ser feita em
meio a perseguições, conforme o conselho predeterminado
por Deus antes mesmo da fundação do mundo (At 4.27,28),
para que o seu grande Nome seja glorificado pelas sucessivas
vitórias da fé, da graça e do evangelho, nas batalhas que são
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empreendidas contra os principados e potestades das trevas,
para a libertação daqueles que eles têm trazido em cativeiro.
Mateus 2.1 Tendo, pois, nascido Jesus em Belém da Judeia, no
tempo do rei Herodes, eis que vieram do oriente a Jerusalém
uns magos que perguntavam:
Mateus 2.2 Onde está aquele que é nascido rei dos judeus?
pois do oriente vimos a sua estrela e viemos adorá-lo.
Mateus 2.3 O rei Herodes, ouvindo isso, perturbou-se, e com
ele toda a Jerusalém;
Mateus 2.4 e, reunindo todos os principais sacerdotes e os
escribas do povo, perguntava-lhes onde havia de nascer o
Cristo.
Mateus 2.5 Responderam-lhe eles: Em Belém da Judeia; pois
assim está escrito pelo profeta:
Mateus 2.6 E tu, Belém, terra de Judá, de modo nenhum és a
menor entre as principais cidades de Judá; porque de ti sairá o
Guia que há de apascentar o meu povo de Israel.
Mateus 2.7 Então Herodes chamou secretamente os magos, e
deles inquiriu com precisão acerca do tempo em que a estrela
aparecera;
Mateus 2.8 e enviando-os a Belém, disse-lhes: Ide, e perguntai
diligentemente pelo menino; e, quando o achardes,
participai-mo, para que também eu vá e o adore.
Mateus 2.9 Tendo eles, pois, ouvido o rei, partiram; e eis que a
estrela que tinham visto quando no oriente ia adiante deles,
até que, chegando, se deteve sobre o lugar onde estava o
menino.
Mateus 2.10 Ao verem eles a estrela, regozijaram-se com
grande alegria.
Mateus 2.11 E entrando na casa, viram o menino com Maria
sua mãe e, prostrando-se, o adoraram; e abrindo os seus
tesouros, ofertaram-lhe dádivas: ouro incenso e mirra.
Mateus 2.12 Ora, sendo por divina revelação avisados em
sonhos para não voltarem a Herodes, regressaram à sua terra
por outro caminho.
Mateus 2.13 E, havendo eles se retirado, eis que um anjo do
Senhor apareceu a José em sonho, dizendo: Levanta-te, toma
o menino e sua mãe, foge para o Egito, e ali fica até que eu te
fale; porque Herodes há de procurar o menino para o matar.
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Mateus 2.14 Levantou-se, pois, tomou de noite o menino e sua
mãe, e partiu para o Egito.
Mateus 2.15 e lá ficou até a morte de Herodes, para que se
cumprisse o que fora dito da parte do Senhor pelo profeta: Do
Egito chamei o meu Filho.
Mateus 2.16 Então Herodes, vendo que fora iludido pelos
magos, irou-se grandemente e mandou matar todos os
meninos de dois anos para baixo que havia em Belém, e em
todos os seus arredores, segundo o tempo que com precisão
inquirira dos magos.
Mateus 2.17 Cumpriu-se então o que fora dito pelo profeta
Jeremias:
Mateus 2.18 Em Ramá se ouviu uma voz, lamentação e grande
pranto: Raquel chorando os seus filhos, e não querendo ser
consolada, porque eles já não existem.
Mateus 2.19 Mas tendo morrido Herodes, eis que um anjo do
Senhor apareceu em sonho a José no Egito,
Mateus 2.20 dizendo: Levanta-te, toma o menino e sua mãe e
vai para a terra de Israel; porque já morreram os que
procuravam a morte do menino.
Mateus 2.21 Então ele se levantou, tomou o menino e sua mãe
e foi para a terra de Israel.
Mateus 2.22 Ouvindo, porém, que Arquelau reinava na Judeia
em lugar de seu pai Herodes, temeu ir para lá; mas avisado em
sonho por divina revelação, retirou-se para as regiões da
Galileia,
Mateus 2.23 e foi habitar numa cidade chamada Nazaré; para
que se cumprisse o que fora dito pelos profetas: Ele será
chamado nazareno.
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Mateus 3
No final do capítulo precedente Mateus registrou que Jesus
foi habitar na Galileia, na cidade de Nazaré, depois de ter
retornado com seus pais, José e Maria, do Egito.
É dito então no início deste terceiro capítulo que “Naqueles
dias...”, ou seja, quando Jesus habitava em Nazaré, já tendo
decorrido cerca de 30 anos, que João, o Batista, apareceu
pregando no deserto da Judeia dizendo: “Arrependei-vos,
porque é chegado o reino dos céus.”.
João falou da necessidade de arrependimento para entrar no
reino dos céus.
Falou do juízo vindouro sobre aqueles que rejeitassem a
salvação que estava sendo oferecida gratuitamente pelo
Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo.
João falou do batismo de fogo do Espírito Santo, e do corte de
toda árvore (pessoa) que não desse bom fruto.
Em suma, João pregou o evangelho, antes mesmo do próprio
Jesus começar a pregá-lo.
Isto foi designado por Deus para servir de sinal que a doutrina
pregada por Jesus provinha da mesma fonte, a saber do céu,
do Espírito Santo, conforme foi permitido a João pregá-la
ainda na dispensação do Antigo Testamento, no apagar das
luzes daquela antiga dispensação, próximo da inauguração da
nova dispensação da graça, com a instituição de uma Nova
Aliança, no sangue de Jesus.
Jesus começou o seu ministério terreno somente depois de
ter sido batizado no Espírito Santo, quando este veio sobre ele
na forma de uma pomba, quando era batizado nas águas por
João.
Aquele era o marco inicial do seu ministério.
Por isso, os dados relativos tanto à infância de João, quanto à
de Jesus, são omitidos por Mateus, porque o evangelho foi
escrito para contar a história da nossa redenção pelo Senhor,
e esta se encontra configurada especialmente no período do
seu ministério de três anos.
João é citado na história da redenção, porque fora vinculado
ao ministério do Senhor, pelo desígnio de Deus, para
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demonstrar principalmente, o seu poder e fiel cumprimento
de todas as profecias relativas à vida e obra de seu Filho
Unigênito, em favor dos pecadores.
João não foi achado pregando nos castelos, mas no deserto da
Judeia.
Aqueles que quisessem indagar acerca das coisas relativas à
salvação teriam que descer das alturas em que se
encontravam, vindo ao deserto da humilhação, para ouvirem
a pregação de João, e se arrependerem de seus pecados.
Este seria o mesmo caráter da pregação de Cristo, porque o
evangelho chama, antes de tudo, ao arrependimento. À
contrição de coração, à pobreza de espírito, para que se possa
receber a coroa de glória e o óleo de alegria prometidos por
Deus aos que viessem a se converter de seus pecados, pela fé
no Messias.
A principal função de João havia sido profetizada por Isaías,
cerca de setecentos anos antes:
“3 Eis a voz do que clama: Preparai no deserto o caminho do
Senhor; endireitai no ermo uma estrada para o nosso Deus.
4 Todo vale será levantado, e será abatido todo monte e todo
outeiro; e o terreno acidentado será nivelado, e o que é
escabroso, aplanado.” (Is 40.3,4)
A função de preparar o caminho do Senhor no deserto, e
endireitar no ermo uma estrada para o nosso Deus, não
poderia ser realizada tentando ser agradável a todas as
pessoas, mas manifestando o genuíno amor de Deus, pela
pregação da verdade.
Este é o único modo pelo qual Deus pode operar levantando os
abatidos e oprimidos (vale levantado); trazer ao
arrependimento e humildade os que andam na
soberba (outeiro e monte abatidos); e reparar os danos
produzidos pelo pecado (terrenos acidentados e escabrosos,
nivelados e aplanados).
Não foi de topografia, de geografia que Deus falou através do
profeta Isaías, mas acerca da condição do coração humano.
Por isso, importava que Jesus fosse batizado por João, para
cumprimento de toda a justiça, porque estava determinado
nos conselhos divinos que ele deveria ser achado na forma de
servo, identificado plenamente com a humanidade que veio
salvar, exceto em relação ao pecado, porque não tinha pecado.
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Aquele batismo nas águas foi o momento determinado para
que ele fosse também e principalmente batizado no Espírito
Santo, que veio sobre ele na forma de uma pomba – indicando
a sua missão de paz - para que desse início ao seu ministério
terreno, até que completasse a obra que lhe fora designada
para ser feita em nosso favor.
Por causa dessa perfeita obediência e submissão à vontade do
Pai, João ouviu a voz do Pai relativa a Jesus, dizendo: “Este é o
meu Filho amado, em quem me comprazo.”
Mateus 3.1 Naqueles dias apareceu João, o Batista, pregando
no deserto da Judeia,
Mateus 3.2 dizendo: Arrependei-vos, porque é chegado o
reino dos céus.
Mateus 3.3 Porque este é o anunciado pelo profeta Isaías, que
diz: Voz do que clama no deserto; Preparai o caminho do
Senhor, endireitai as suas veredas.
Mateus 3.4 Ora, João usava uma veste de pelos de camelo, e
um cinto de couro em torno de seus lombos; e alimentava-se
de gafanhotos e mel silvestre.
Mateus 3.5 Então iam ter com ele os de Jerusalém, de toda a
Judeia, e de toda a circunvizinhança do Jordão,
Mateus 3.6 e eram por ele batizados no rio Jordão,
confessando os seus pecados.
Mateus 3.7 Mas, vendo ele muitos dos fariseus e dos saduceus
que vinham ao seu batismo, disse-lhes: Raça de víboras, quem
vos ensinou a fugir da ira vindoura?
Mateus 3.8 Produzi, pois, frutos dignos de arrependimento,
Mateus 3.9 e não queirais dizer dentro de vós mesmos: Temos
por pai a Abraão; porque eu vos digo que mesmo destas pedras
Deus pode suscitar filhos a Abraão.
Mateus 3.10 E já está posto o machado á raiz das árvores; toda
árvore, pois que não produz bom fruto, é cortada e lançada no
fogo.
Mateus 3.11 Eu, na verdade, vos batizo em água, na base do
arrependimento; mas aquele que vem após mim é mais
poderoso do que eu, que nem sou digno de levar-lhe as
alparcas; ele vos batizará no Espírito Santo, e em fogo.
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Mateus 3.12 A sua pá ele tem na mão, e limpará bem a sua eira;
recolherá o seu trigo ao celeiro, mas queimará a palha em
fogo inextinguível.
Mateus 3.13 Então veio Jesus da Galileia ter com João, junto do
Jordão, para ser batizado por ele.
Mateus 3.14 Mas João o impedia, dizendo: Eu é que preciso ser
batizado por ti, e tu vens a mim?
Mateus 3.15 Jesus, porém, lhe respondeu: Consente agora;
porque assim nos convém cumprir toda a justiça. Então ele
consentiu.
Mateus 3.16 Batizado que foi Jesus, saiu logo da água; e eis que
se lhe abriram os céus, e viu o Espírito Santo de Deus
descendo como uma pomba e vindo sobre ele;
Mateus 3.17 e eis que uma voz dos céus dizia: Este é o meu
Filho amado, em quem me comprazo.
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Mateus 4
João foi decapitado a mando de Herodes quando contava
apenas cerca de 30 anos de idade, porque foi morto logo no
início do ministério de Jesus, quando contava com a mesma
idade com a qual João havia sido morto.
Assim, se deu cumprimento à Palavra de João que importava
que a sua luz brilhasse apenas por um pouco, porque
convinha que ele diminuísse e que Jesus crescesse.
De igual modo, todos os ministérios que estão vinculados a
Cristo têm a mesma função que teve João, a saber, surgir,
anunciar a Cristo e desaparecer de cena, de maneira que
apenas o nome de Cristo seja perpetuado por todas as
gerações.
No entanto, é importante destacar, que em relação ao tempo
de permanência do Senhor na carne, neste mundo, na
realização do seu próprio ministério, que ele também deixou
este mundo para ir para junto do Pai, quando contava apenas
33 anos de idade.
Nisto há um grande ensinamento para todos nós, que vivemos
aqui embaixo, que não é a extensão do tempo de vida que
temos deste outro lado céu, que pode ser considerado como
prova da bênção de Deus, porque nascido de mulher não havia
maior que João, o Batista, e sem qualquer sombra de dúvida,
Cristo é sobre todos e nem o somatório de todos os seres da
terra e do céu, podem sequer ser comparados à sua grandeza
e glória.
Portanto, tudo que Jesus sofreu neste mundo em relação à
humilhação a que foi submetido, inclusive a de ser tentado
pelo diabo, foi em razão de ter carregado sobre Si o nosso
próprio opróbrio, porque não havia nenhum motivo para
carregar qualquer opróbrio, por sua própria causa, porque,
afinal, não tinha qualquer pecado.
Tudo o que Ele sofreu foi por nós e por nossa causa.
Ele suportou aflições e triunfou sobre todas as coisas,
inclusive sobre a própria morte, para servir de exemplo para
nós, e para ser o autor e consumador da nossa salvação.
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Deste modo, não foi pela vontade e desígnio do próprio diabo
que ele foi conduzido ao deserto para ser tentado, mas pelo
Espírito Santo.
Importava que fosse tentado estando em extrema fraqueza,
decorrente do jejum completo que fizera de quarenta dias e
noites, para nos mostrar quão suficiente é o poder da graça do
Espírito Santo que estava nele, porque havia sido revestido do
poder do Espírito quando foi batizado nas águas por João, o
Batista, pouco tempo antes de ser conduzido pelo Espírito ao
deserto, para ser tentado.
Ele venceu a tentação de suportar a fome, não atendendo à
insinuação do diabo que mostrasse o seu poder
transformando pedras em pães.
Necessitamos aprender esta lição, para que não venhamos a
tentar a Deus nos momentos em que estivermos passando por
necessidades. Por sabermos que Deus é poderoso para nos
sustentar com a palavra que procede da sua boca, nestas horas
difíceis.
De igual modo, não devemos tentar a Deus, por nos lançarmos
ao encontro de dificuldades e perigos por sugestão do diabo,
para demonstrarmos que temos o poder do Senhor sobre as
nossas vidas.
Quanto a isto Jesus nos deixou o exemplo de não atender a
Satanás, quando este lhe pediu para que se lançasse do
pináculo do templo abaixo, porque segundo ele, Deus teria
que cumprir o que está registrado nas Escrituras, que daria
ordens a seus anjos a respeito de Jesus, para que lhe
sustentassem em suas mãos, para nunca tropeçar em alguma
pedra.
Também, devemos rejeitar completamente o oferecimento
por parte do diabo, da glória vã das coisas deste mundo que
passa, desde que nos submetamos a ele.
Deus é digno de ser adorado, e somente ele deve ser adorado
e buscado. Nosso coração não deve estar preso a nenhuma
coisa deste mundo.
Somente o Senhor é digno de ser servido, e todo nosso serviço
aos homens, deve ser, na verdade, por amor a ele, e para trazer
honra e glória ao seu santo nome.
18
Fomos criados por Deus para isto, e é, portanto, deste modo,
que devemos viver, a saber, conforme o propósito da nossa
vocação.
Entretanto, é de pasmar que haja tão grande desinteresse por
parte da maior parte da humanidade, em ter um
conhecimento pessoal e íntimo de Jesus, que tão
maravilhosamente se manifestou ao mundo por amor de nós.
Fora dele a vida não tem nenhum verdadeiro significado,
propósito e sentido.
Por isso, mesmo antes de ter encarnado há cerca de dois mil
anos atrás, Deus não nos deixou sem o testemunho da sua
pessoa e vontade, pela revelação que fez aos antigos, e
especialmente nas Escrituras do Antigo Testamento através
dos profetas.
Todavia, como dissemos anteriormente, não são poucos os
que vivem como se nada tivesse sido profetizado acerca de
Cristo, e que vivem como se ele não tivesse se manifestado
pessoalmente ao mundo.
Caminham sem Cristo, sem Deus, sem o mínimo interesse
em investigar as coisas que foram reveladas de uma vez para
sempre, para o conhecimento da glória de Deus na face de
Cristo.
Vivem como se estivessem ainda nos dias do Antigo
Testamento, quando a revelação da glória do Senhor era feita
como por um espelho, como uma figura, das realidades que já
se cumpriram conforme havia sido profetizado acerca dele,
como por exemplo, o fato de ter-se mudado de Nazaré para a
cidade de Cafarnaum, da Galileia, dando-se cumprimento à
profecia de Isaías.
“1 Mas para a que estava aflita não haverá escuridão. Nos
primeiros tempos, ele envileceu a terra de Zebulom, e a terra
de Naftali; mas nos últimos tempos fará glorioso o caminho do
mar, além do Jordão, a Galileia dos gentios.
2 O povo que andava em trevas viu uma grande luz; e sobre os
que habitavam na terra de profunda escuridão resplandeceu
a luz.” (Is 9.1,2)
Antes mesmo que houvesse Galileia, Deus profetizou acerca
dela, porque para o povo desprezado que vivia naquela região
resplandeceria a esperança da luz da glória do evangelho, por
meio de Jesus Cristo.
19
Aquele era apenas um sinal da luz que seria derramada em
todas as nações, para aqueles que desejassem sair das trevas
do pecado, da ignorância e da obscuridade, pela união
espiritual com Cristo.
A luz está disponível ainda em nossos dias, e estará disponível
enquanto durar a dispensação da graça, mas é necessário vir
para a luz de Jesus, se desejarmos de fato sair da condição de
morte, para a condição de vida, a vida eterna e abundante que
somente o Senhor pode nos dar.
O ministério que Jesus começou nos dias em que viveu na
carne neste mundo, ele tem continuado através da Igreja, que
é o seu corpo, realizando obras ainda maiores do que as que
ele havia realizado em seu ministério terreno, a saber:
“23 E percorria Jesus toda a Galileia, ensinando nas sinagogas,
pregando o evangelho do reino, e curando todas as doenças e
enfermidades entre o povo.
24 Assim a sua fama correu por toda a Síria; e trouxeram-lhe
todos os que padeciam, acometidos de várias doenças e
tormentos, os endemoninhados, os lunáticos, e os paralíticos;
e ele os curou.
25 De sorte que o seguiam grandes multidões da Galileia, de
Decápolis, de Jerusalém, da Judeia, e dalém do Jordão.”
Aqueles que Ele tem chamado, tal como os primeiros
apóstolos e discípulos, e que tudo têm deixado para segui-lo,
são aqueles que têm dado continuidade à sua obra de salvação
e libertação na terra.
E o modo de alcançar esta bênção continua sendo o mesmo
desde o princípio, a saber, pelo atendimento da convocação ao
arrependimento, ou seja, à transformação da vida, pelo
retorno a Deus, por meio da fé em Jesus Cristo, para viver a
vida celestial, espiritual e divina, conforme Deus planejou
para o homem, desde antes da fundação do mundo.
Mateus 4.1 Então foi conduzido Jesus pelo Espírito ao deserto,
para ser tentado pelo Diabo.
Mateus 4.2 E, tendo jejuado quarenta dias e quarenta noites,
depois teve fome.
Mateus 4.3 Chegando, então, o tentador, disse-lhe: Se tu és
Filho de Deus manda que estas pedras se tornem em pães.
20
Mateus 4.4 Mas Jesus lhe respondeu: Está escrito: Nem só de
pão viverá o homem, mas de toda palavra que sai da boca de
Deus.
Mateus 4.5 Então o Diabo o levou à cidade santa, colocou-o
sobre o pináculo do templo,
Mateus 4.6 e disse-lhe: Se tu és Filho de Deus, lança-te daqui
abaixo; porque está escrito: Aos seus anjos dará ordens a teu
respeito; e: eles te susterão nas mãos, para que nunca
tropeces em alguma pedra.
Mateus 4.7 Replicou-lhe Jesus: Também está escrito: Não
tentarás o Senhor teu Deus.
Mateus 4.8 Novamente o Diabo o levou a um monte muito
alto; e mostrou-lhe todos os reinos do mundo, e a glória deles;
Mateus 4.9 e disse-lhe: Tudo isto te darei, se, prostrado, me
adorares.
Mateus 4.10 Então ordenou-lhe Jesus: Vai-te, Satanás; porque
está escrito: Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a ele servirás.
Mateus 4.11 Então o Diabo o deixou; e eis que vieram os anjos
e o serviram.
Mateus 4.12 Ora, ouvindo Jesus que João fora entregue,
retirou-se para a Galileia;
Mateus 4.13 e, deixando Nazaré, foi habitar em Cafarnaum,
cidade marítima, nos confins de Zabulom e Naftali;
Mateus 4.14 para que se cumprisse o que fora dito pelo profeta
Isaías:
Mateus 4.15 A terra de Zabulom e a terra de Naftali, o caminho
do mar, além do Jordão, a Galileia dos gentios,
Mateus 4.16 o povo que estava sentado em trevas viu uma
grande luz; sim, aos que estavam sentados na região da
sombra da morte, a estes a luz raiou.
Mateus 4.17 Desde então começou Jesus a pregar, e a dizer:
Arrependei- vos, porque é chegado o reino dos céus.
Mateus 4.18 E Jesus, andando ao longo do mar da Galileia, viu
dois irmãos - Simão, chamado Pedro, e seu irmão André, os
quais lançavam a rede ao mar, porque eram pescadores.
Mateus 4.19 Disse-lhes: Vinde após mim, e eu vos farei
pescadores de homens.
Mateus 4.20 Eles, pois, deixando imediatamente as redes, o
seguiram.
21
Mateus 4.21 E, passando mais adiante, viu outros dois irmãos
- Tiago, filho de Zebedeu, e seu irmão João, no barco com seu
pai Zebedeu, consertando as redes; e os chamou.
Mateus 4.22 Estes, deixando imediatamente o barco e seu pai,
seguiram- no.
Mateus 4.23 E percorria Jesus toda a Galileia, ensinando nas
sinagogas, pregando o evangelho do reino, e curando todas as
doenças e enfermidades entre o povo.
Mateus 4.24 Assim a sua fama correu por toda a Síria; e
trouxeram-lhe todos os que padeciam, acometidos de várias
doenças e tormentos, os endemoninhados, os lunáticos, e os
paralíticos; e ele os curou.
Mateus 4.25 De sorte que o seguiam grandes multidões da
Galileia, de Decápolis, de Jerusalém, da Judeia, e dalém do
Jordão.
22
Mateus 5
Para o comentário deste capítulo e dos dois seguintes (6 e 7)
nós usaremos basicamente traduções e adaptações feitas pelo
Pr Silvio Dutra, de textos escritos por Thomas Watson e por
David Martin Lloyd Jones.
Como o sermão é introduzido pelas bem-aventuranças,
apresentaremos primeiro o comentário de Thomas Watson
relativo às mesmas, de modo resumido em relação à
publicação de outro livro de nossa autoria, sob o mesmo título.
“1 Jesus, pois, vendo as multidões, subiu ao monte; e, tendo se
assentado, aproximaram-se os seus discípulos,
2 e ele se pôs a ensiná-los, dizendo:
3 Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o
reino dos céus.
4 Bem-aventurados os que choram, porque eles serão
consolados.
5 Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra.
6 Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça porque
eles serão fartos.
7 Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles
alcançarão misericórdia.
8 Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a
Deus.
9 Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão
chamados filhos de Deus.
10 Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da
justiça, porque deles é o reino dos céus.”. (Mt 5.1-10).
O Senhor Jesus diz em Mateus 5.3: “Bem-aventurados os
pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus.”.
Nós podemos observar o toque e aroma da divindade neste
sermão do Senhor, o qual vai além de toda a filosofia humana.
Na verdade ele vai no sentido contrário da filosofia humana,
porque aqui se diz que a pobreza produz riquezas, e não
somente isto, que aquele que é enriquecido pela pobreza aqui
referida, possui um reino.
De igual modo, nós veremos na bem-aventurança que se
segue a esta primeira, que o choro, a tristeza, produz conforto.
23
Diz-se que a água das lágrimas acenderá a chama da
verdadeira alegria.
E mais ainda, que a perseguição trará felicidade, pois se diz
que felizes são os perseguidos por causa da justiça.
Observe como diferem a doutrina de Cristo e a opinião dos
homens carnais. Eles pensam que bem-aventurados são os
ricos, mas Cristo diz que bem-aventurado é o pobre de
espírito.
O mundo pensa que bem-aventurados são aqueles que se
encontram no pináculo da glória mundana, mas Cristo diz que
bem-aventurados são os que estão no vale.
Aqueles que usariam as joias de Cristo, mas que recusam a
sua cruz, são estranhos ao verdadeiro cristianismo.
Observe a conexão entre a graça e a sua recompensa.
Aqueles que são pobres de espírito terão o reino de Deus.
Nosso Salvador encoraja os homens à santidade associando
mandamentos com promessas.
Ele amarra dever e recompensa juntamente.
Uma parte destes versículos das bem-aventuranças consiste
no dever e a outra parte consiste na recompensa.
Nós observamos também nas bem-aventuranças que elas
estão encadeadas e uma conduz a outra.
Aquele que tem pobreza de espírito é quebrantado.
Aquele que é quebrantado é submisso.
Aquele que é submisso é misericordioso e assim por diante.
Nisto consiste a diferença entre um verdadeiro filho de Deus,
e um hipócrita.
O hipócrita se gaba de possuir alguma graça pretensiosa, no
entanto ele não possui todas as graças, como
verdadeiramente as possui aquele que é nascido do Espírito.
O hipócrita não tem pobreza de espírito, nem pureza de
coração.
Mas um filho de Deus tem todas as graças no seu coração,
ainda que seja em semente, e necessite ainda crescer em
graus.
Ser pobre de espírito não é o mesmo que ser pobre de bens
terrenos, porque é possível ser pobre de bens e não ser pobre
de espírito.
E há também distinção em ser espiritualmente pobre, e ser
pobre de espírito, porque aquele que não tem a graça de Jesus,
24
é espiritualmente pobre, e não é pobre de espírito, e não
conhece até mesmo a sua pobreza espiritual, como se vê em
Apo 3.1.
Bem, então, o que devemos entender por pobre de espírito?
A palavra grega para pobre é ptocoi, e esta significa estar
reduzido à mendicância, ser destituído de riqueza, influência,
posição, honra, e estar destituído de virtudes cristãs e
riquezas eternas, ser desamparado, e impotente para realizar
um objetivo, enfim, ser necessitado em todos os sentidos.
Pobre de espírito significa então aqueles que são trazidos ao
senso da sua própria miséria, em razão dos seus pecados, e
que não veem nenhuma bondade em si mesmos, e em seu
desespero se entregam completamente à misericórdia de
Deus em Cristo.
Pobreza de espírito é um tipo de auto negação.
A pessoa se vê como o publicano da parábola de Lc 18.13, e fala
juntamente com Paulo que não há nenhuma justiça nela
própria que lhe possa recomendar a Deus, como podemos ler
em Fp 3.9.
Por que Jesus teria começado o sermão do Monte com
pobreza de espírito?
Certamente o Senhor a colocou na frente das demais bemaventuranças, citando-a antes das demais, porque a pobreza
de espírito é o fundamento no qual todas as outras graças são
colocadas.
Tal como o fruto não pode ser produzido numa árvore sem
raiz, de igual modo as demais graças não podem existir sem
pobreza de espírito.
Quando uma pessoa vê os seus próprios defeitos e se vê
imperfeita por causa dos seus pecados, então chorará na
presença de Cristo.
E esta pobreza de espírito fará com que tenha fome e sede de
justiça, porque desejará estar conformado àquilo que Deus é
em sua própria natureza, a saber: santo.
Assim, a pobreza de espírito é a causa da humildade, porque
quando um homem vê a sua necessidade de Cristo, e como
depende das suas graças, isto o leva a se humilhar.
Até que sejamos pobres de espírito, não somos habilitados a
receber a graça.
25
Aquele que está inchado com uma opinião de autoexcelência
e autossuficiência, não está ajustado para receber a Cristo.
Ele já está cheio de si mesmo.
Se a mão está cheia de pedras, ela não pode receber ouro.
O copo deve ser esvaziado primeiro, antes que possa ser
enchido com a água viva do Espírito Santo.
Assim, Deus esvazia primeiro o homem de si mesmo, antes de
enchê-lo com a sua preciosa graça.
Somente o pobre de espírito pode ser alcançado pela missão
de Cristo, porque se diz que ele veio para os que estão
quebrados quanto ao senso da sua indignidade:
Nós lemos no texto de Isaías 61.1:
“O Espírito do Senhor Deus está sobre mim, porque o Senhor
me ungiu para pregar boas-novas aos mansos; enviou-me a
restaurar os contritos de coração, a proclamar liberdade aos
cativos, e a abertura de prisão aos presos;”.
Até que sejamos pobres de espírito, Cristo não é precioso para
nós.
Antes de vermos nossas próprias necessidades, nunca
veremos o valor que Cristo tem para nós.
Os que são ricos em pobreza de espírito são aqueles que são
verdadeiramente ricos da graça de Deus, porque ele a
derrama abundantemente sobre os humildes.
Deste modo, as riquezas de um crente consistem na sua
pobreza de espírito.
Esta pobreza o habilita a um reino celestial.
Logo, quão pobres são aqueles que pensam serem ricos, e
quão ricos são aqueles que se veem pobres e necessitados da
graça de Deus!
Se bem-aventurado é o pobre de espírito, então pelo sentido
oposto podemos entender que o amaldiçoado é o orgulhoso
de espírito, como vemos em Pv 16.5, que diz:
“Todo homem arrogante é abominação ao Senhor;
certamente não ficará impune.”
Aqueles que se julgam muito bons para irem para o céu jamais
o alcançarão.
Tal como o fariseu de Lc 18.11 não serão justificados por Deus
porque o orgulho deles não lhes permite enxergarem o
quanto necessitam de arrependimento.
26
Não admira que Cristo chame tais homens de cegos porque
eles estão nus, mas se recusam a receber o vestido branco de
justiça de Jesus para cobrirem a sua nudez, porque pensam
que são ricos e que não necessitam de nada da parte do
Senhor.
Eles estão cegos e não poderão ver que estão nus caso não
apliquem o colírio de Cristo aos seus olhos espirituais para
que possam ver.
O pobre de espírito é verdadeiramente rico para com Deus
porque entre os muitos benefícios que lhe advêm de tal
pobreza podemos destacar os seguintes:
O pobre de espírito é desmamado de sua própria alma. O seu
ego deixa de ser o centro de seus objetivos e atenções, e Cristo
passa a ocupar este lugar central em sua vida.
Ele não confia em si mesmo e não busca apoio na sua própria
alma para estar firme, mas nAquele que o fortalece em tudo.
Assim, o pobre de espírito é um adorador e admirador de
Cristo.
Ele tem os pensamentos mais elevados acerca de Jesus.
Ele se vê nu e corre para Cristo para se cobrir com a sua veste
de justiça, de modo a poder obter a sua bênção.
O pobre de espírito nunca está satisfeito com a pobreza da sua
alma quanto aos dons e graças de Deus, e se empenha
diligentemente em buscá-los nele, para enriquecer o seu
espírito.
Ele lamenta sempre por não ter mais graça para poder
glorificar ainda mais o nome do seu Deus.
E esta é a diferença principal entre o hipócrita e um
verdadeiro filho de Deus.
O hipócrita se gaba daquilo que pensa possuir, e o filho de
Deus lamenta o que lhe falta e reconhece que sem a graça do
Senhor nada é e nada tem.
Assim, aquele que é pobre de espírito é também humilde de
coração.
Homens ricos costumam ser orgulhosos e arrogantes, mas o
pobre de espírito é manso e submisso.
Quanto mais graça ele tem, mais humilde ele se torna, pois
entende o quanto é devedor a Deus.
Quando executa bem qualquer dever reconhece que o fez
muito mais pela força de Cristo do que pela sua própria força;
27
porque ele reconhece que o seu trabalho na obra de Deus foi
realizado pela graça do Senhor, sendo portanto imitador do
apóstolo Paulo, conforme podemos ver em I Cor 15.10.
O pobre de espírito ora muito porque reconhece o quanto
depende da oração porque vê o quão longe está do padrão da
santidade divina, então implora mais graça e mais fé ao
Senhor, para poder estar em conformidade com ele.
O pobre de espírito é muito grato porque sabe o quanto tem
sido alvo da misericórdia de Deus.
A pobreza de espírito é o fundamento no qual Deus constrói o
edifício da glória.
Deste modo, é possível que alguém tenha as riquezas do
mundo e ainda ser pobre, porque a verdadeira riqueza de
alguém não consiste na quantidade de bens mundanos que
ele possui, mas na grandeza da sua pobreza de espírito.
Quanto mais pobre de espírito uma pessoa for, mais rica ela
será da graça de Jesus, porque terá sempre mãos vazias para
serem enchidas por Deus com as bênçãos espirituais que
destinou aos crentes em Cristo Jesus.
E assim se cumpre a verdade citada em Ef 1.3:
“Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual
nos abençoou com todas as bênçãos espirituais nas regiões
celestes em Cristo;”.
Esta pobreza é a nobreza do crente.
Deus olha para o pobre de espírito como uma pessoa honrada.
Aquele que é vil aos seus próprios olhos é precioso aos olhos
de Deus, porque se apresenta verdadeiro diante dele por se
reconhecer um vil pecador.
A pobreza de espírito aquieta a alma, pois leva a pessoa a
descansar em Cristo.
Ele se vê pobre, mas pode dizer juntamente com Paulo em Fp
4.19: “o meu Deus proverá todas as minhas necessidades”.
Os que desejam ser ricos segundo o mundo buscam construir
um reino temporal aqui, mas o pobre de espírito almeja por
um reino celestial.
E os santos reinarão com Cristo numa maneira gloriosa,
porque lhes é prometido não um reino terreno, mas o reino
dos céus.
Depois da morte os santos são coroados como vemos em Apo
2.10.
28
Eles não são apenas perdoados por Cristo, mas são também
coroados.
A coroa é um símbolo de honra e autoridade.
A coroa que os santos receberão é mais excelente do que todas
as demais. E não haverá o risco de se perder esta coroa,
conforme o temor que sentem os reis terrenos quanto à
possibilidade de perderem as suas.
Esta coroa não instigará inveja porque um santo não invejará
outro, porque todos serão coroados.
Esta coroa é imarcescível, porque não pode murchar, tal como
murchavam as coroas de louro que os atletas vitoriosos
recebiam no passado. E esta coroa dos crentes é também
eterna, e jamais perderá o seu brilho, conforme se vê em I Pe
5.4.
No terceiro céu, a saber, no paraíso, que é citado em II Cor 12.2,
neste lugar sublime e glorioso será erguido o trono dos
santos, e este trono é seguro e inabalável, conforme a
promessa que Jesus fez aos crentes vencedores em Apo 3.21:.
“Ao que vencer, eu lhe concederei que se assente comigo no
meu trono.”.
Um preço foi pago para isto. Jesus derramou o seu sangue na
cruz para que o santos conquistassem o reino através do seu
sangue.
Jesus foi pregado na cruz para nos trazer à coroa.
Ele diz que bem-aventurados são os pobres de espírito porque
eles têm um reino, a saber, o reino do céu.
E aqueles que têm um reino têm também uma coroa.
A recompensa da pobreza de espírito é portanto muito alta e
não pode ser comparada a nenhum bem terreno passageiro.
Nós entendemos então porque são tão fortes as exigências de
Deus para que os seus filhos se santifiquem em tudo,
empenhando-se em todo o esforço para mortificarem o
pecado e a carne, pois afinal, a recompensa que lhes é feita é a
de um reino eterno celestial glorioso.
Nós podemos pensar que é um grande sacrifício nos
empenharmos para mortificar definitivamente o pecado em
nossas vidas, mas Deus não acha nenhum sacrifício em nos
dar graciosamente um reino tão maravilhoso; o contrário, foi
do seu inteiro agrado concedê-lo a nós, conforme se vê em Lc
12.32.
29
Os crentes são herdeiros do reino, e qual destes herdeiros não
deseja ser coroado?
Tiago nos diz em Tg 2.5: “Ouvi, meus amados irmãos. Não
escolheu Deus os que são pobres quanto ao mundo para fazêlos ricos na fé e herdeiros do reino que prometeu aos que o
amam?”.
Enquanto neste mundo, parece que os santos fiéis e piedosos
são massacrados pelas suas próprias fraquezas, e pelas
investidas furiosas dos principados das trevas sobre eles, mas
eles são chamados pelo Senhor a exultarem em tudo isto
porque a fidelidade deles será recompensada com um reino
onde serão consolados definitivamente de todos os seus
sofrimentos.
Para que tivéssemos a firme certeza desta esperança Deus
colocou o reino dentro de nós.
O reino de Deus está dentro do crente como se vê em Lc 17.21.
Este reino significa o reino da graça no coração.
E a graça pode ser comparada a um reino porque ordena a lei
de Deus no espírito e executa tudo o que é necessário para a
nossa transformação de glória em glória à própria imagem e
semelhança do Senhor.
A graça rege sobre os nossos pecados destruindo-os e
colocando-os com sua autoridade, em cadeias. E governa
assim sobre o orgulho, sobre a paixão e a incredulidade.
Se há evidências seguras deste reino da graça trabalhando no
nosso coração, então podemos estar certos de que
entraremos no reino dos céus depois da nossa morte, e de que
seguramente seremos coroados por Cristo para reinarmos
juntamente com ele.
Lembremos que assim como há graus de tormento para
aqueles que forem para o inferno, de igual modo há graus de
glória para os herdeiros do reino de Deus, e assim quanto mais
serviço alguém fizer para o Senhor, maior será a sua glória no
reino futuro que lhe está prometido e garantido por Deus.
Deus recompensará os homens segundo as suas obras, e
assim, quanto for maior o serviço, maior será a recompensa.
Deus tem planejado isto para nos incentivar a buscarmos uma
santidade, devoção e serviço cada vez maiores.
30
Quanto maior for a glória que Deus receber através de nossas
obras, maior será a nossa própria glória quando estivermos
reinando juntamente com Cristo.
Isto será uma grande honra para nós pelo modo como o
Senhor nos distinguirá como forma do seu agrado pela nossa
fidelidade a Ele.
Basílio disse que a esperança de um reino deveria levar o
crente a ter coragem e alegria em todas as suas aflições.
Comentemos agora a segunda bem-aventurança citada por
Jesus em Mateus 5.4, a de que os que choram são bemaventurados porque serão consolados.
Há oito degraus na escada da bem-aventurança. Eles podem
ser comparados à escada de Jacó que alcançava o topo do céu.
Nós já analisamos o primeiro e agora falaremos sobre o
segundo degrau, que é o da consolação que nos vem pelo fato
de chorarmos.
Nós temos que passar pelo vale das lágrimas para podermos
chegar ao paraíso.
Choro é um assunto triste e desagradável para se tratar, mas
não é nisto em que consiste a bem-aventurança, senão no
consolo que vem depois do choro.
O choro é colocado aqui no lugar do arrependimento. E o que
o texto quer afirmar é que os quebrantados são bemaventurados, porque embora as lágrimas dos santos sejam
lágrimas amargas, contudo elas são lágrimas abençoadas.
Há uma tristeza mundana que consiste geralmente no
lamento pela perda de coisas terrenas, e há uma tristeza
diabólica que é o lamento por não se poder satisfazer aos
desejos pecaminosos e à soberba da vida.
Há dois objetos da tristeza espiritual referida por Jesus nesta
bem-aventurança: primeiro, tristeza pelo nosso próprio
pecado, e segundo, tristeza pelo pecado de outros.
Enquanto nós tivermos o fogo do pecado queimando em
nossas vidas, nós, temos que ter a água das lágrimas para
extingui-lo (Ez 7.16).
João Crisóstomo dizia que bem-aventurados não eram
necessariamente aqueles que choram pelos mortos, mas os
que choram por causa do pecado.
31
A Caim aborreceu mais o castigo que Deus proferiu sobre ele,
do que o seu próprio pecado. Ele disse que o seu castigo era
mais do que o que ele poderia suportar. Em vez de chorar e se
arrepender ele se endureceu no seu pecado.
Assim, a declaração de Caim é uma rebelião e não uma
demonstração de arrependimento.
Tal como ele há muitos que rasgam as suas vestes diante de
Deus, mas não os seus corações.
Um arrependimento sincero é espontâneo e voluntário.
Um arrependimento verdadeiro é espiritual, pois nos faz
lamentar muito mais pelo pecado do que pelo sofrimento ao
qual o nosso pecado deu causa.
Faraó estava triste pela pestilência que o Egito estava
sofrendo, mas não pela pestilência que havia em seu próprio
coração endurecido, que estava dando causa a todos aqueles
juízos que Deus despejou sobre o Egito nos dias de Moisés.
Um pecador pode assim lamentar os juízos que acompanham
os seus pecados, e não lamentar propriamente pelo pecado.
A palavra hebraica para pecado é hatat, e significa rebelião.
Esta palavra define bem o que é o pecado, porque um pecador
luta contra Deus.
Então bem-aventurados são todos os que conhecem o que
significa o pecado e que se entristecem pela sua condição de
pecadores, com o desejo de serem santificados por Deus, e
serem libertos dos seus pecados.
Nós temos que chorar pelo pecado como sendo a forma de
ingratidão mais alta.
Nós pecamos contra o sangue de Cristo e contra a graça do
Espírito Santo e não choraremos?
Nós reclamamos da descortesia que sofremos da parte de
outras pessoas e não choraremos pela nossa própria
descortesia para com Deus?
Mas não são apenas estes os motivos pelos quais devemos
chorar por causa do pecado. Nós devemos chorar também o
fato de o pecado nos impor uma privação, pois nos impede de
ter comunhão com Deus.
Por isso, as lágrimas do evangelho devem cair do olho da fé. Se
estas lágrimas espirituais de tristeza pelo pecado não fluírem
de nós, de maneira alguma poderemos receber as
32
consolações do Espírito Santo, traduzidas no derramar das
suas graças em nossos corações.
As águas de um verdadeiro arrependimento são águas que
limpam. Elas levam para longe, como numa inundação, toda a
sujeira dos nossos pecados.
Tal como o apóstolo Paulo diz em II Cor 7.10:
“Porque a tristeza segundo Deus opera arrependimento para
a salvação, o qual não traz pesar; mas a tristeza do mundo
opera a morte.”
Este tipo de tristeza pelo pecado que é segundo Deus, traz
indignação contra o pecado, luta contra o pecado, defesa da
justiça de Deus.
Diz-se que bem-aventurados são os que choram, porque
lágrimas procedem dos olhos, e a palavra hebraica para olho,
é ain, que é a mesma palavra usada para fonte, manancial.
Isto indica que nossas lágrimas por causa do pecado têm que
jorrar continuamente de nossos olhos espirituais, assim
como a água que jorra de uma fonte.
As águas do arrependimento não devem transbordar
somente pela manhã, mas durante todos os períodos do dia.
Como Paulo disse: eu morro diariamente'”” (I Cor 15:31), assim
um crente também deveria dizer: “eu lamento diariamente”.
Esta tristeza pelo pecado é o melhor antídoto contra a
apostasia, a saber, para não se voltar as costas para Deus e
abandonar a comunhão dos santos na Igreja.
Até mesmo os próprios filhos de Deus têm que chorar pelo
pecado, pedindo perdão a Deus, para perdoar pecados
passados, presentes e futuros, porque assim como o
arrependimento é renovado, o perdão também é renovado.
Caso os pecados pudessem ser perdoados antes de serem
cometidos, isto tornaria nulo o ofício de Cristo de nosso
Mediador e Sumo-Sacerdote, porque não haveria
necessidade da sua intercessão em nosso favor junto do Pai.
É importante saber que embora o pecado seja perdoado, ele
ainda tentará se rebelar, embora seja coberto, no entanto não
está curado (Rom 7.23).
Assim como a água penetra no casco de um barco furado, e
deve ser escoada continuamente para que o barco não afunde,
de igual modo navegamos nas águas do pecado, que devem
33
ser continuamente escoadas de nossas vidas através do
arrependimento.
Assim como nós choramos pelos nossos próprios pecados,
devemos também chorar pelos pecados de outros. Chore
pelos erros e blasfêmias da nação. Chore pelo quanto a
vontade de Deus é transgredida no mundo, pelo quanto a sua
Palavra é desonrada e quanto o seu santo nome é blasfemado.
Nossas lágrimas podem ajudar a extinguir a ira de Deus, que
está pronta a ser despejada sobre o mundo pecador.
Por isso a Palavra nos ordena a interceder em favor de todos
os homens, e a maior parte desta intercessão consiste no
pedido de misericórdia a Deus pelos seus pecados, como
podemos ver em I Tim 2.1,2.
Quando há sinais de que a ira de Deus está pronta para
irromper sobre a nação, sobre os nossos lares, igrejas, não há
momento mais oportuno para intensificarmos a nossa
tristeza em arrependimento pelo pecado, porque quando
Deus tira a sua espada da bainha para pelejar contra o mundo
de pecado, quando parece que ele está de pé no limiar do
templo, pronto para levar de nós o seu evangelho e nos
abandonar, nossas lágrimas possivelmente podem fazer com
que cesse a sua ira e ele volte a ser favorável a nós. E este
procedimento é ordenado na própria Bíblia, como podemos
ver nos profetas Isaías, Oseias, Joel, Sofonias, entre outros.
A Ceia do Senhor é também outro momento oportuno para
nos entristecermos pelos nossos pecados e confessá-los a
Deus.
Se ela foi instituída por Jesus para ser um memorial da sua
morte, então certamente ele deseja que façamos uma justa
avaliação dos nossos pecados, pois foi exatamente por causa
deles que Ele morreu na cruz.
E se é pela morte do Senhor que alcançamos misericórdia da
parte de Deus, não podemos esquecer que sem uma tristeza
amarga pelo pecado não podemos receber tal misericórdia,
porque a ausência de tristeza pelo pecado indica o nosso
desprezo pelo seu sacrifício, e a falta de reconhecimento da
necessidade que temos da sua misericórdia para sermos
perdoados.
Quando há ausência de sensibilidade pelo pecado, o coração
permanece endurecido como pedra. E uma pedra não é
34
sensível a qualquer coisa. Um coração de pedra é conhecido
por sua inflexibilidade. Uma pedra não se dobra e não se rende
ao toque. Por isso um coração endurecido não se inclinará
diante do cetro de Cristo.
Há muitos murmuradores, mas poucos quebrantados de
coração. A maioria está como o chão rochoso no qual há falta
de umidade, como se vê na parábola do semeador.
Nós ouvimos muitos lamentos em tempos difíceis, mas os que
lamentam não estão conscientes de terem um coração
endurecido.
Quando Deus chama os homens ao arrependimento em vez
de lamentarem por seus pecados, eles endurecem seus
corações e se alegram em suas luxúrias em vez de se
entristecerem, eles se colocam na situação de juízo
extremamente perigosa, citada em Is 22.12-14.
É exatamente para evitar este terrível endurecimento de
coração que o apóstolo Tiago nos ordena a transformar o
nosso riso em pranto, quando há pecados em nós ou em
outros para serem lamentados, em vez de vivermos nos
alegrando desconsiderando tais pecados numa clara
demonstração de desprezo aos juízos de Deus.
“Senti as vossas misérias, lamentai e chorai; torne-se o vosso
riso em pranto, e a vossa alegria em tristeza.” (Tg 4.9).
É melhor chorar pelo pecado e ser alegrado por Deus, do que
se alegrar agora no pecado, e depois chorar eternamente num
juízo eterno.
É neste sentido que entendemos as palavras proferidas por
Cristo em Lc 6.24,25.
“24 Mas ai de vós que sois ricos! porque já recebestes a vossa
consolação.
25 Ai de vós, os que agora estais fartos! porque tereis fome. Ai
de vós, os que agora rides! porque vos lamentareis e
chorareis.” (Lc 6.24,25).
É somente quando o pecado cessar que as lágrimas também
cessarão (Apo 7.17).
Por isso, enquanto estivermos neste mundo, devemos evitar a
todo custo a maldição de um engano terrível que é muito
comum de se ver, pois não são poucos os que afirmam a
misericórdia de Deus como pretexto para continuarem em
seus pecados.
35
Assim, alguém afirma que Deus é misericordioso e então se
entrega à prática deliberada do pecado.
Mas afinal para quem é a misericórdia?
Para o pecador que não se arrepende, ou para o pecador
entristecido?
Não há misericórdia para aquele que não pretende abandonar
o pecado.
Deus faz uma proclamação de misericórdia ao quebrantado, e
como pode então aquele que vive abertamente em rebelião
contra ele reivindicar o benefício do seu perdão?
Outro grande perigo para o endurecimento do coração é o fato
de se pensar que há pecados pequenos que não são
considerados por Deus.
“Não é um pequeno pecado?”.
Eles dizem.
E assim ficam endurecidos e insensíveis e incapazes de
lamentar por suas misérias.
E quem buscaria a Deus com um coração penitente em busca
de misericórdia, enquanto continuar pensando que o pecado
é apenas uma coisa leve?
Nenhum pecado pode ser pequeno porque é contra a
Majestade do céu.
Não há nenhuma traição pequena, porque todas elas são
contra a pessoa do Rei Jesus.
Não permita, portanto, que Satanás lance uma nuvem diante
de seus olhos para que você não veja a real dimensão do
pecado.
E ninguém se iluda com a infinita paciência e longanimidade
de Deus que faz com que Ele não execute imediatamente a sua
sentença sobre o pecado.
Deus não é um credor precipitado que requer o pagamento
imediato da dívida e que não dá qualquer tempo para o seu
pagamento.
A longanimidade de Deus não deve ser, portanto, um motivo
para abusarmos da sua bondade e graça, e assim nenhum
crente verdadeiro deveria permitir que o canal da tristeza que
conduz ao arrependimento seja obstruído pela corrupção do
pecado.
O juízo do Senhor é como uma pedra que cai, cujo peso de
impacto é maior quanto maior for o tempo da sua queda.
36
Pecados contra a paciência de Deus são pecados terríveis
porque nem mesmo os anjos caídos cometeram este tipo de
pecado que é contra a misericórdia e longanimidade de Deus.
Então é preciso que o Espírito Santo produza em nós
quebrantamento de coração e inspire nossas tristezas pelo
pecado para que possamos expressá-las diante de Deus.
O consolo prometido no texto da bem-aventurança é
produzido pelo Espírito.
Observe que Deus reserva a melhor safra do seu vinho para o
final. Primeiro ele prescreve tristeza pelo pecado e então
serve por último o vinho da consolação.
O diabo faz exatamente o contrário. Ele serve o melhor
primeiro e reserva a pior safra para o final.
Satanás oferece os seus pratos delicados diante dos homens.
Ele lhes apresenta o pecado de uma forma colorida, atraente,
com beleza, adocicado com prazer, com lucro, e então, no fim,
a triste conta é apresentada para ser paga.
Esta é a razão por que o pecado tem tantos seguidores, porque
mostra o melhor primeiro.
Mas Deus mostra o pior primeiro. Primeiro ele prescreve um
remédio amargo, o do arrependimento, e é isto o que nos leva
a chorar, mas então Deus nos dá uma recompensa, a de
sermos consolados conforme a promessa da bemaventurança.
Por isso as lágrimas do evangelho não são perdidas porque são
sementes de consolo divino.
Depois da corrente de lágrimas o Espírito Santo faz fluir no
nosso interior uma corrente de alegria.
Daí, se dizer que aqueles que semeiam em meio a lágrimas
ceifarão com alegria, conforme se lê no Salmo 126.5.
O coração quebrantado é esvaziado do orgulho e então Deus o
enche com a sua bênção.
O vale de lágrimas traz ao espírito um paraíso de alegria.
A alegria de um pecador impenitente produzirá tristeza,
porque é sempre este o salário que é pago pelo pecado.
Mas a tristeza do quebrantado produz alegria. “Sua tristeza
será transformada em alegria” (João 16:20).
As consolações que Deus dá aos quebrantados excedem todos
os demais consolos e a raiz na qual estes confortos crescem é
o Espírito Santo.
37
Ele é chamado ”o Consolador” em João 14.26.
E o Espírito consola aplicando as promessas a nós mesmos e
nos ajudando a tirar águas desses mananciais da salvação.
O Espírito derrama o amor de Deus no coração do crente e
sussurra secretamente a ele o perdão que recebeu para os
seus pecados, e esta visão do perdão dilata o coração com
alegria.
Estes confortos são reais e verdadeiros, porque o Espírito de
Deus não pode testemunhar aquilo que é falso.
Há muitos nesta época que fingem confortar, mas os
confortos deles são meras imposturas.
Mas os confortos dos santos são verdadeiros porque eles têm
o selo do Espírito Santo fixado neles.
Quando um homem é trazido aos mandamentos de Cristo,
para crer e obedecer, então ele fica preparado para receber a
misericórdia.
É por isso que antes de consolar o Espírito primeiro convence
do pecado.
E quando o coração é arado pelo convencimento do pecado,
Deus semeia nele a semente do conforto.
Assim, aqueles que se vangloriam de conforto, mas que nunca
foram convencidos ainda de seus pecados, nem quebrantados
por causa dos seus pecados, devem ter motivo para suspeitar
que o conforto deles não passa de uma ilusão de Satanás.
O Espírito de Deus é um Espírito santificante, antes de ser um
Espírito consolador.
Alguns falam do Espírito confortante mas nunca tiveram o
Espírito santificante.
Assim, suas alegrias são falsas, e estes falsos confortos
deixarão os homens na morte.
Eles terminarão em horror e desespero.
Então os efeitos da verdadeira consolação do Espírito Santo
são completamente diferentes dos confortos de Satanás, que
muitos alegam ser de Deus.
O diabo é capaz, não somente de se transfigurar em anjo de
luz, como se lê em II Cor 11.14, como também em se disfarçar
em consolador.
Mas os consolos de Deus nos conduzem à humilhação porque
não permitem que sejamos inchados com orgulho, apesar
38
destes consolos do Espírito Santo elevarem o nosso coração
em gratidão.
Os confortos que Deus dá aos quebrantados não são
misturados. Eles não trazem pesar conforme se afirma em II
Cor 7.10.
Mas os confortos mundanos são como água misturada com
sujeira, porque em meio aos sorrisos o coração está triste.
O pecador pode ter um rosto sorridente enquanto tem uma
consciência que o acusa.
Mas os confortos espirituais são puros. Eles não são
misturados com culpa porque lançam fora o medo e trazem o
perdão de Deus. De modo que o consolo que vem depois da
tristeza pelo pecado é a alegria do Espírito Santo, e nada mais
do que alegria.
Tão doces são estes confortos do Espírito que eles
enfraquecem muito e moderam nossa alegria em coisas
mundanas.
Aquele que tem bebido da água do Espírito, não terá depois
sede de água; e aquele homem que tem uma vez provado quão
bondoso é o Senhor e bebido do Espírito, não terá sede
imoderada por delícias terrenas.
O Espírito Santo não pode produzir no espírito alegrias
impuras tal como o sol não pode produzir trevas.
Assim, aquele que tem os confortos do Espírito Santo se
manifestando nele, nunca desejará negociar com o pecado,
porque ele mataria tais confortos.
Os confortos que Deus dá para os seus quebrantados nesta
vida são confortos gloriosos: “Alegria cheia de glória” como se
lê em I Pe 1.8.
Eles são gloriosos porque eles são um antegosto daquela
alegria que nós teremos no céu.
São tão gloriosos os confortos do Espírito que um crente
nunca está tão triste que não possa se alegrar.
Observe então que é verdadeiramente bem-aventurado o que
chora, porque o quebrantado é um privilegiado, pois será
confortado por Deus.
Os olhos do quebrantado não devem portanto estar tão cheios
de lágrimas a ponto de lhe impedir de enxergar as promessas
de perdão no sangue de Jesus Cristo.
39
A virtude e conforto de um remédio está em usá-lo. De igual
modo quando as promessas forem aplicadas com fé, elas
trarão conforto.
Mas lembremos que uma mente mundana pode nos privar do
conforto divino.
Deus esconde o seu rosto daqueles que amam o mundo e que
se conformam ao modo do mundo.
Um coração, enquanto mundano, não deve contar com as
consolações do Espírito Santo. Aquele que busca confortos
terrenos apagará com estes falsos confortos o verdadeiro
conforto do Espírito.
Devemos evitar também a tentação de fazer dos confortos
divinos o fim mesmo da vida cristã, porque até mesmo ao
Senhor faltaram tais confortos em determinados momentos
de seu ministério terreno, e é de se esperar que o mesmo
suceda conosco.
Mas embora um filho de Deus nem sempre tenha conforto
expressado em flor, ele sempre o tem em semente.
Embora ele não sinta conforto de Deus contudo ele está
debaixo do seu conforto.
Um crente pode ser elevado em graça e ser rebaixado em
conforto.
As montanhas altas estão sem flores.
As minas de ouro têm pouco ou nenhum trigo crescendo
nelas.
O coração de um crente pode ser uma mina de ricos filões de
graça, entretanto ser estéril de conforto.
Entretanto, o quebrantado é o herdeiro do conforto, porque
somente por um breve momento Deus poderá abandonar as
pessoas do seu povo como vemos em Isaías 54.7, contudo há
um tempo que vem brevemente quando os quebrantados
terão todas as lágrimas enxugadas de seus olhos, e serão
plenamente cheios de conforto.
Esta alegria está reservada para o céu. Porque se diz que são
bem aventurados os que choram porque deles é o reino dos
céus. Aleluia. Amém!
Vamos dar continuidade ao nosso comentário sobre as bemaventuranças, falando agora sobre a terceira bem40
aventurança, citada por Jesus no texto de Mateus 5.5, no qual
lemos o seguinte:
“Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra.”.
Esta mansidão tem um aspecto duplo, mansidão para com
Deus e mansidão para com o homem.
Na mansidão para com Deus duas coisas são insinuadas: a
primeira é a submissão à sua vontade; e a segunda, o dobrarse à sua Palavra.
Ser manso então em relação a Deus significa seguir o exemplo
de mansidão que Jesus nos deixou sendo submisso à vontade
do Pai, e por ter se dobrado inteiramente à sua palavra,
vivendo debaixo do exclusivo poder e direção do Espírito
Santo.
Assim, é espiritualmente submisso aquele que se conforma à
mente de Deus, e não luta contra as instruções da sua santa
Palavra, mas com as corrupções do seu coração. E quão feliz é
isto, quando a Palavra vem com majestade e é recebida com
mansidão no coração, como se diz em Tiago 1.21.
Este ato de receber a Palavra com mansidão referido por
Tiago, significa acatar com submissão tudo que nos é
ordenado nela pelo Senhor.
A mansidão consiste basicamente em três coisas: a primeira,
suportar danos; a segunda, perdoar danos, e a terceira,
recompensar o mal com o bem.
Vamos repetir para você poder memorizar em que consiste
basicamente a mansidão:
Primeiro, suportar danos.
Segundo, perdoar danos.
E terceiro, recompensar o mal com o bem.
Quanto a suportar danos, podemos dizer desta graça da
mansidão, que ela não é conseguida facilmente.
Mas lembremos que um espírito submisso, tal como pano
molhado, não pegará fogo facilmente.
A mansidão é a rédea da raiva.
As paixões são inflamáveis, mas a mansidão é a água divina
que as apaga.
A mansidão é a rédea da boca, porque amarra a língua e lhe dá
um bom comportamento.
A precipitação de espírito é oposta à mansidão.
41
Quando o coração ferve em paixão e ira, ele se encontra longe
da mansidão.
A raiva pode ser encontrada num homem sábio, mas ele não
se permitirá ser dominado por ela, no entanto a raiva
permanece no coração dos tolos, e tem ali a sua moradia.
O homem iracundo é como pólvora, sempre pronto a entrar
em chamas ao menor atrito.
A ira altera o estado de consciência tanto como o álcool o faz
no que está embriagado. Assim o uso da razão é suspenso
naquele que se deixa dominar pela ira.
Somente em alguns casos é justificado ficarmos irados. Há
uma ira santa. Aquela ira sem pecado que é contra o pecado.
Na qual mansidão e zelo podem estar juntos.
Em assuntos da defesa da verdade do evangelho, um crente
deve ser vestido com o espírito de Elias, e estar “cheio da ira
do Senhor” como se vê em Jer 6.11.
Cristo era manso conforme se diz em Mt 11:29, contudo era
zeloso, como se vê em João 2.14,15. E este seu zelo pela casa de
Deus o consumiu.
A malícia também é oposta à mansidão. A malícia é o retrato
do diabo.
Um espírito malicioso não é um espírito manso.
A disposição para se vingar também é oposta à mansidão. A
vingança é um ofício para Deus e não para os homens. Por isso
a Bíblia proíbe a vingança, como se vê em Rm 12.19.
Lutas espirituais são legítimas, quando consistem na luta
contra o diabo, e com a parte carnal do homem, e abençoado
é todo aquele que busca se vingar das suas luxúrias.
Mas outros tipos de lutas são ilegais.
Passar por um dano sem vingança não traz qualquer
descrédito à honra de um homem.
Um espírito nobre esquece um dano que tenha sofrido, ainda
que injustamente.
No entanto, a autodefesa, ou legítima defesa, como é mais
conhecida, é consistente com a mansidão cristã.
Neste sentido os magistrados são ministros de Deus para
vingarem o mal, como citado em I Pe 2.14 e Rm 12.17, e assim,
o exercício do ofício deles não é oposto à mansidão.
42
A maledicência também é oposta à mansidão. A maledicência
sempre carrega a intenção de desprezar, ofender e difamar
outros.
Quando Paulo chamou os Gálatas de insensatos, a sua
intenção não era a de ofendê-los e difamá-los, senão apenas
de reformá-los pela repreensão que lhes dirigiu.
Não é mansidão mas fraqueza separar-nos da nossa
integridade.
Deve haver mansidão cristã, como também prudência cristã.
Ambas devem caminhar lado a lado.
É legítimo sermos nossos próprios defensores em face de
acusações injustas que possamos sofrer. Somente haverá falta
quando replicarmos os danos procurando pagá-los na mesma
moeda com que os sofremos.
Tendo considerado acerca da mansidão quanto ao seu
aspecto de suportar danos, vejamos agora o relativo ao de se
perdoar danos.
Um espírito manso é um espírito perdoador.
Por natureza os homens são dados a esquecerem a bondade
que recebem de outros, mas lembram-se com facilidade dos
danos que sofreram.
Mas Deus exige que sejamos como Ele, perdoando de coração
e esquecendo os danos que sofremos, conforme se exige
em Mt 18.27.
Deus perdoa completamente todos os nossos pecados. E um
crente verdadeiramente manso também perdoa todos os
danos dos seus ofensores, em face do arrependimento deles.
Deus perdoa frequentemente porque nós pecamos
frequentemente. Como Ele perdoa setenta vezes sete nos
ordena também que façamos o mesmo.
É nosso dever estar sempre prontos para perdoar conforme se
ordena em Col 3.13; ainda que tenhamos que suportar aqueles
que parecem mais monstros do que homens, porque não
deixam de nos fazer o mal a par de todo o bem que possamos
lhes fazer.
Mas nós cessaríamos de fazer o bem porque outros não
cessaram de serem maus?
Lembremos que quanto mais danos perdoarmos mais
brilhará a nossa graça.
43
Se faltar a algum crente esta virtude do perdão então lhe
faltarão também as demais graças. Porque onde há uma graça,
há todas as demais.
Se a mansidão estiver faltando, o que haverá é apenas uma
falsa corrente de graça. A fé será uma fábula, o
arrependimento uma mentira, e a humildade, uma hipocrisia.
E considerando que você diz que não pode perdoar, pense em
seu pecado. seu próximo não é tão ruim lhe ofendendo quanto
você é por não lhe perdoar.
Seu próximo, lhe ofendendo, transgride contra um homem,
mas você, enquanto se recusa a lhe perdoar, peca contra Deus.
Também considere o perigo que você está correndo negandose a perdoar, porque Deus tem disposto o dever de perdoar de
tal maneira que as suas ofensas não serão perdoadas por Ele,
se você não perdoar as ofensas do seu próximo conforme
vemos em Mc 11.26.
O terceiro aspecto relacionado à mansidão é recompensar o
mal com o bem; e este é um grau mais elevado do que o
anterior.
Jesus diz em Mt 5.43,44: “Ouvistes que foi dito: Amarás o teu
próximo, e odiarás o teu inimigo.
Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que
vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que
vos maltratam e vos perseguem; para que sejais filhos do
vosso Pai que está nos céus;”.
E o apóstolo Paulo acrescenta em Rom 12.20,21:
“Portanto, se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se
tiver sede, dá-lhe de beber; porque, fazendo isto, amontoarás
brasas de fogo sobre a sua cabeça.
Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o bem.”.
E também o apóstolo Pedro nos diz em I Pe 3.9:
“Não tornando mal por mal, ou injúria por injúria; antes, pelo
contrário, bendizendo; sabendo que para isto fostes
chamados, para que por herança alcanceis a bênção.”.
A mansidão nos mostra a marca de um verdadeiro santo. Ele
é de um espírito submisso, sincero. Ele não é provocado
facilmente.
Quando o crente se dispõe a vencer o mal com a mansidão,
Deus honra a sua obediência à sua Palavra, fazendo com que
triunfe a causa do bem.
44
Deixe-me pedir a todos os vocês que se esforcem para
buscarem esta graça superior da mansidão; conforme se
ordena no texto de Sofonias 2.3:
“Buscai ao Senhor, vós todos os mansos da terra, que tendes
posto por obra o seu juízo; buscai a justiça, buscai a mansidão;
pode ser que sejais escondidos no dia da ira do Senhor.”.
Buscar insinua que nós podemos perder esta graça da
mansidão, não a alcançando. Então, nós temos que fazer uma
exibição pública depois de achá-la. E isto faremos mostrando
que somos de fato mansos tanto para aprender de Deus,
quanto para suportar danos e perdoar ofensas sofridas.
A mansidão é necessária em tudo o que fizermos,
especialmente quando estivermos instruindo outros no
caminho da verdade conforme se ordena em II Tim 2.25.
A mansidão conquista os oponentes da verdade.
A mansidão é necessária quando ouvimos a Palavra, como se
afirma em Tg 1.21.
Aquele que ouve o sermão ou o ensino da verdade com
preconceito e sem mansidão, não adquire nenhum bem, mas
feridas. Ele transformará o azeite da graça de Deus em veneno
e se ferirá com a espada do Espírito, que é a Palavra de Deus,
em vez de vencer o Inimigo com ela.
Paulo diz em Gál 6.1: “se algum homem chegar a ser
surpreendido nalguma ofensa, vós, que sois espirituais,
corrigi-o com espírito de mansidão; olhando por ti mesmo,
para que não sejas também tentado.”.
No original grego, o verbo para corrigir neste texto de Gálatas
6.1 é katartizo, que significa emendar, tal como um cirurgião
faz a união de um osso fraturado com o cuidado de não causar
outras lesões ao ferido.
Somos indesculpáveis se não buscarmos a graça da mansidão
porque temos este exemplo fixado na Bíblia, na vida dos
servos de Deus e na do próprio Cristo.
“Dizei à filha de Sião: Eis que o teu Rei aí te vem, manso, e
assentado sobre uma jumenta.”(Mt 23.5).
Jesus foi insultado, mas não insultou os seus agressores como
se lê em I Pe 2.23.
Jesus nos ordena em Mt 11.29 a aprendermos do seu próprio
exemplo de mansidão.
45
Moisés era o homem mais manso da terra, conforme se
afirma em Nm 12.3. Quando os israelitas murmuravam contra
ele em vez de se irar, ele intercedia em favor deles (Êx 15.24,
25).
A mansidão é um grande ornamento de um crente como
afirmado em I Pe 3.4. E quão agradável se torna aos olhos de
Deus o crente que usa esta joia preciosa.
Deus poderia facilmente esmagar os pecadores e enviá-los
logo ao inferno mas Ele modera a sua ira porque embora
esteja cheio de majestade, contudo está cheio de mansidão.
A mansidão forja um espírito nobre e excelente. Um homem
manso é um homem valoroso. Ele adquire uma vitória sobre
si mesmo. A paixão surge de fraqueza, mas o homem manso
pode conquistar a sua fúria.
Aquele que é tardio para se irar, ou seja, que é longânimo, é
melhor do que o poderoso, e do que aquele que conquista uma
cidade, como lemos em Pv 16.32.
Ser manso é nadar contra a natureza, é contrariá-la, e
portanto é algo difícil de ser conquistado, e por isso este
esforço merece se recompensado, e daí se dizer que os
mansos herdarão a terra.
A paixão pode fazer um inimigo de um amigo, mas a
mansidão, ao contrário, pode fazer um amigo de um inimigo.
Quando é dito que os mansos herdarão a terra, não significa
que eles não herdarão mais do que a terra. Eles herdarão o céu
também.
Nós procederemos agora ao comentário da quarta bemaventurança citada por Jesus em Mateus 5.6:
“Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça porque
eles serão fartos.”
Nós chegamos agora ao quarto passo da bem-aventurança.
A fome e a sede espiritual são abençoadas porque é prometido
que serão saciadas por Deus.
Toda fome e sede relativas à justiça do reino de Deus serão
saciadas.
A fome e a sede natural são desejos por alimento e água
necessários para crescimento ou para a manutenção da vida.
O pão e a água naturais provêm o sustento do corpo natural; e
46
o pão e a água espirituais provêm o sustento do corpo
espiritual.
E qual é o significado da justiça referida por Jesus?
Esta justiça é evangélica, a saber, que alcançamos por causa
da nossa fé no evangelho. Ela é uma justiça dupla: uma que
nos atribuída e outra que é implantada em nós.
A justiça evangélica que nos é atribuída por Deus no dia da
nossa conversão, quando cremos pela primeira vez em Cristo,
recebendo-O em nossos corações, é a relativa à nossa
justificação. Esta justiça que nos é atribuída é a justiça do
próprio Cristo.
Ela nos é atribuída pela nossa fé nele. Em virtude desta justiça,
quanto à condenação eterna, Deus olha para o crente que foi
justificado por tal justiça de Jesus, como se ele nunca tivesse
pecado. Esta é uma justiça perfeita. É por causa desta justiça
com a qual fomos justificados na conversão, que se diz em Col
2.10 que os crentes se encontram perfeitos em Cristo diante
de Deus: “E estais perfeitos nele, que é a cabeça de todo o
principado e potestade;”.
É por causa desta justiça que lhe foi atribuída na
conversão, que o crente terá fome daquela outra justiça que é
implantada.
Uma justiça implantada se refere à retidão inerente à pessoa
do crente, ou seja, às graças do Espírito; à santidade do
coração.
Esta fome por esta justiça que é implantada comprova a
existência da verdadeira vida espiritual.
Daí Cristo afirmar que estes que têm fome e sede de justiça
serão saciados, porque foram vivificados pelo Espírito Santo
na conversão, e agora podem ter esta fome e sede, porque
enquanto estavam mortos em delitos e pecados, sem a vida do
Espírito Santo habitando neles, não poderiam ter tal fome e
sede.
O crente pode, no entanto, perder o seu apetite por esta justiça
evangélica que deve alimentar o seu espírito, caso venha a
entristecer e a apagar o Espírito Santo, porque, neste caso,
apesar de ter sido vivificado por Cristo, estará como morto
perante Deus, porque as graças do Espírito estão prontas a
morrer naqueles que se afastam da comunhão com Jesus.
47
Um homem morto não pode ter fome. A fome procede da vida.
A fome espiritual se seguirá ao novo nascimento (I Pe 2.2).
Assim, sem esta fome espiritual não pode haver crescimento
espiritual, porque somente os que têm fome se disporão a se
alimentar do verdadeiro alimento espiritual.
Tudo o que Deus requer de seus filhos, para participarem do
seu banquete espiritual é que eles tragam apenas o seu
apetite, porque Ele tem estabelecido um preço que é acessível
a todos para obtenção das coisas divinas, como se lê em Is
55.1,2:
“1 Ó vós, todos os que tendes sede, vinde às águas, e os que não
tendes dinheiro, vinde, comprai, e comei; sim, vinde,
comprai, sem dinheiro e sem preço, vinho e leite. 2 Por que
gastais o dinheiro naquilo que não é pão? E o produto do vosso
trabalho naquilo que não pode satisfazer? Ouvi-me
atentamente, e comei o que é bom, e a vossa alma se deleite
com a gordura.”.
Assim não nos é ordenado que compremos a justiça com
dinheiro.
Se alguém convidar amigos à sua mesa, ele não espera que
eles deveriam trazer dinheiro para pagar pelo jantar deles,
mas que venham somente com apetite. Assim, o Senhor diz
que não é penitência, peregrinação, farisaísmo que Ele
requer. Traga somente seu estômago se você tem fome e sede
de justiça.
O pecado tem um gosto doce para os ímpios porque eles não
têm nenhuma fome espiritual de justiça. Eles estão cheios da
sua própria justiça como se vê em Rm 10.3. E um estômago
cheio recusa o favo de mel. Esta é a doença de Laodiceia. Ela
estava cheia e não tinha nenhum estômago para valorizar o
colírio e o ouro de Cristo, conforme se lê em Apo 3.17.
Não há ninguém que esteja tão vazio da graça como aquele
que julga estar cheio.
A Palavra reprova aqueles que em vez de terem fome e sede
de justiça, têm fome e sede de riquezas. Esta é a fome e a sede
dos homens cobiçosos. A avareza é idolatria como se afirma
em Col 3.5. Muitos crentes erigiram o ídolo de ouro no templo
dos seus corações. O pecado mais difícil de se desarraigar é o
da cobiça. Geralmente quando outros pecados deixarem os
homens, este permanece.
48
E a cobiça, o amor ao dinheiro, é a raiz na qual nascem todos
os males. E a cobiça não produzirá fome e sede de justiça,
senão fome e sede de toda sorte de injustiças.
Deste modo, o problema não está em ser a fome e sede fracas,
mas haver a ausência total delas. Uma fome e sede fracas são
como um pulso que bate fraco, mas mostra que há vida. E estes
desejos fracos não devem ser desencorajados porque há uma
promessa feita a eles de que a cana quebrada não será
esmagada pelo Senhor como Ele afirma em Mt 12.20.
Uma cana é algo fraco em si mesma, e quanto mais se a cana
estiver quebrada, entretanto não será esmagada e florescerá
como a vara seca de Arão. Olhando em sua fraqueza para
Cristo, seu Sumo-Sacerdote será ajudado por Ele porque é
paciente, poderoso e misericordioso.
Se você não tem aquele apetite como antigamente pelas
coisas divinas, contudo não seja desencorajado, porque com o
uso adequado dos meios da graça você pode recuperar seu
apetite.
Chamamos de meios de graça a oração, o louvor, o jejum, a
adoração, a meditação e prática da Palavra de Deus, a
comunhão dos crentes, e o compromisso com a obra do
evangelho.
As riquezas não duram para sempre, mas a justiça dura para
sempre e é por isso que os homens são exortados a
trabalharem por este alimento que não perece, e não para
ajuntar riquezas terrenas.
A menos que nós tenhamos fome desta justiça evangélica nós
não podemos obtê-la, porque Deus nunca jogará fora as suas
bênçãos naqueles que não as desejam.
Assim como os exercícios físicos estimulam o apetite natural,
de igual modo o exercício na piedade estimula o apetite
espiritual, conforme se afirma em I Tim 4.7.
Aos que têm fome e sede de justiça Deus promete dar-lhes
plenitude de fartura e daí se dizer que os tais são bemaventurados porque serão aperfeiçoados na justiça que eles
desejam como algo vital para a sua subsistência espiritual.
Deus saciará o espírito faminto porque Ele mesmo incitou
esta fome. Ele plantou desejos santos em nós, e Ele não
satisfaria esses desejos?
49
Deus satisfará o faminto porque o espírito faminto é muito
grato pela misericórdia. Deus ama dar a misericórdia dele
onde ele pode ter um maior louvor.
Nós nos encantamos em dar àqueles que são gratos.
Deus enche o espírito faminto com plenitude de graça, paz e
alegria.
Assim é de fato uma grande bem-aventurança ter fome e sede
de justiça.
Considere por que Cristo recebeu o Espírito sem medida (João
3.34). Não foi para Si mesmo. Ele estava infinitamente cheio
antes. Mas ele estava cheio com a unção santa para este fim, a
saber, para que ele pudesse derramar a sua maravilhosa
graça no espírito faminto.
Você é ignorante? Cristo estava cheio com sabedoria para
poder lhe ensinar.
Você está sujo? Cristo estava cheio com graça para poder
limpá-lo.
A alma não virá então a Cristo que tem toda a plenitude para
saciar o faminto?
Peçamos portanto a Deus que jamais nos falte o apetite
espiritual pelo qual Ele nos dará crescimento e força, para
podermos fazer a sua vontade.
Nós procederemos agora ao comentário da quinta bemaventurança citada por Jesus em Mateus 5.7:
“Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles
alcançarão misericórdia.”
Haveria necessidade de pregar sobre misericórdia mais do
que nestes tempos desapiedados em que nós vivemos?
Mas como muitos não sabem exatamente o que é
misericórdia, falaremos primeiro sobre os vários tipos de
misericórdia.
A misericórdia é uma disposição por meio da qual nós
carregamos no coração as misérias de outros e estamos
prontos em todas as ocasiões a sermos instrumentos para o
bem deles.
Muitos confundem misericórdia com amor, mas há algumas
diferenças marcantes entre ambos.
50
Em algumas coisas o amor e a misericórdia são iguais, mas em
outras eles diferem, como as águas de um rio que podem ter
duas nascentes, mas se encontram no fluxo.
O amor e misericórdia diferem nisto: o amor é mais extenso.
O amor é um amigo constante que nos visita até mesmo
quando estamos bem.
Já a misericórdia é como um médico que só nos visita quando
estamos doentes.
O amor age mais por afeto.
Mas a misericórdia age mais por um princípio de consciência.
A misericórdia empresta sua ajuda a outros, mas O amor dá
seu coração a outros.
Deste modo, eles diferem, mas o amor e a misericórdia
concordam em que ambos estão sempre prontos a prestarem
bons serviços.
A misericórdia procede de um trabalho da graça no coração.
Por natureza, nós estamos bem longe da misericórdia.
O pecador é por natureza uma oliveira brava e não uma
oliveira que dá bom azeite.
O caráter e vocação do homem natural é ser desapiedado
como se lê em Rm 1.31; e a misericórdia que ele possui é um
instinto natural e não a misericórdia santificada que é um
fruto do Espírito Santo.
Por natureza nós não produzimos azeite, mas veneno; não o
óleo da misericórdia, mas o veneno do pecado.
Além desta falta da misericórdia divina que não pode ser
achada na nossa natureza terrena, há algo que é também
implantado por Satanás, porque o príncipe das trevas trabalha
no coração dos homens como se vê em Ef 2.2.
E se ele domina os homens não é de se estranhar que eles
sejam inclinados a serem implacáveis e sem misericórdia.
Afinal, que misericórdia pode ser esperada do inferno?
De forma que, se o coração é afinado com a misericórdia, é por
causa da mudança que a graça produziu nele, conforme se vê
em Col 3.12.
Assim, antes de um homem ser misericordioso, é necessário
que seja uma nova criatura; e a misericórdia é algo para ser
aprendido com Deus, que nos ensinará isto de modo prático,
na experiência da vida.
51
Nós devemos ser misericordiosos às almas de outros,
especialmente aquelas que não foram salvas.
Realmente este é o principal tipo de misericórdia, porque o
espírito é a coisa mais preciosa que existe.
Mais do que nós sentimos pela morte física de alguém, nós
deveríamos sentir pela sua morte espiritual, porque este é o
estado permanente de toda pessoa que não conhece a Cristo,
e também devemos sentir pela sua morte eterna, que se
seguirá à sua morte física.
Assim uma alma misericordiosa reprovará os pecadores
impenitentes na expectativa de que eles se convertam de seus
pecados.
Nós estaremos sendo misericordiosos quando lutarmos com
eles pela salvação de seus espíritos e não permitirmos que
eles desçam quietamente para o inferno.
Se a casa de uma pessoa estivesse pegando fogo nós
deixaríamos de lhe dar o devido aviso para não assustá-la
quanto ao prejuízo que estava sofrendo?
E nós ficaremos calados vendo alguém dormir o sono da
morte e vendo o fogo da ira de Deus pronto para queimá-lo?
Veja então como é um trabalho abençoado o trabalho do
ministério! A pregação da Palavra nada mais é do que mostrar
misericórdia às almas.
Ministros que toleram o pecado por temor de não ofenderem
as pessoas são maus ministros.
É um erro pensar que ser agradável a todos, ainda que estejam
perdidos em pecados é uma forma de mostrar estima e
amizade por eles.
Na verdade, ainda que muitas pessoas se sintam ofendidas e
ressentidas com os pastores, quando eles pregam de maneira
veemente contra o pecado, não importa, porque aquele que
faz isto está sendo verdadeiramente misericordioso para com
elas, uma vez que é disto que depende o destino eterno feliz
delas, caso venham a se arrepender dos seus pecados.
Olhe como Jesus e João Batista pregavam em seus ministérios.
Eles diziam “arrependei-vos e crede no evangelho” fazendo
duras repreensões contra aqueles que viviam no pecado.
Quando Jesus e João diziam aos fariseus que eles eram uma
raça de víboras, que seriam cortados pela raiz pelo machado
do juízo de Deus, eles estavam demonstrando verdadeiro
52
amor e verdadeira misericórdia para com eles, porque
estavam dando a eles o aviso solene do que lhes sucederia
caso não se arrependessem dos seus pecados.
Então fiel, misericordioso, e verdadeiramente amigo é o
pastor que repreende aqueles que estão vivendo na prática
deliberada do pecado. Ainda que aqueles que estão na carne
façam um juízo errado pensando que isto é falta de
misericórdia.
Então estes pastores que não pregam contra o pecado são
maus pastores.
São ministros que não têm uma misericórdia verdadeira pelas
almas perdidas.
O cuidado deles é maior por dízimos do que por almas.
Por realizações materiais do que por almas.
Os tais são mercenários e não ministros de Cristo, e caso
tenham tido uma chamada para o ministério, acabaram se
desviando dela.
Como podem ser chamados de pastores aqueles que não
possuem intestinos de misericórdia?
Tais homens não alimentam os espíritos das pessoas com
verdades sólidas.
Quando Cristo enviou os seus apóstolos, ele lhes deu o texto
que eles deveriam pregar e ensinar.
Os ministros de Cristo devem pregar as coisas que pertencem
ao reino de Deus.
Eles são desapiedados se em vez de repartir o pão da vida,
encherem as cabeças das pessoas com especulações e noções
vazias, que fazem apenas cócegas na consciência.
Há ministros que pregam como se eles estivessem falando
uma língua desconhecida.
Alguns ministros gostam de planar nas alturas como a águia e
voam acima da capacidade das pessoas, e se esforçam
bastante para serem mais admirados do que compreendidos.
É falta de misericórdia para com as almas pregar para não ser
entendido.
Ministros deveriam ser estrelas para dar luz, não nuvens para
esconder a verdade.
É crueldade para com as almas quando nós andarmos para
tornar as coisas fáceis em coisas difíceis.
53
E muitos são culpados de subirem ao púlpito somente para
exibirem a própria glória deles e divertirem as pessoas.
Isto cheira mais a orgulho do que a misericórdia.
Nós devemos também ser misericordiosos com os nomes de
outros.
Um bom nome é uma das maiores bênçãos na terra.
Assim, é grande falta de misericórdia, uma grande crueldade,
infamar o renome dos homens, conforme se vê em Rom 3.13.
O homem orgulhoso e invejoso atacará a reputação de outros.
E pensando em apagar os nomes que ataca, julga que o seu
poderá brilhar mais do que os deles.
O invejoso difama a dignidade dos outros, mas a Bíblia nos
ensina a nos alegramos com a estima e fama de outros como
se vê em Rm 1.8 e Hb 11.2.
A calúnia é portanto uma grande demonstração de falta de
misericórdia.
A defesa do bom nome dos que são caluniados é uma grande
demonstração de misericórdia.
Lembremos que Deus requererá em juízo cada palavra ociosa
que foi proferida pelos homens, especialmente aquelas que
foram usadas para infamar outros.
Em vez de infamarmos as pessoas, nós devemos ser
misericordiosos em relação às ofensas que eles nos fazem.
Estejamos prontos para mostrar misericórdia àqueles que nos
prejudicaram.
Nós lemos em Pv 19.11 que “A discrição do homem fá-lo tardio
em irar-se; e sua glória está em esquecer ofensas.”.
Nós devemos ser misericordiosos às necessidades de outros.
Considere os pobres; veja as lágrimas deles, e os seus suspiros
e gemidos.
Deus demonstra a sua misericórdia e cuidado com os pobres
nos muitos mandamentos da Lei de Moisés que prescreveu
para o benefício deles como se pode ver por exemplo em
textos como Ex 23.11; Lev 19.9; 25.35 e Dt 14.28,29.
Na verdade Deus agrava o seu juízo nos ricos mais do que nos
pobres, porque se aos primeiros deu confortos e facilidades
neste mundo, no entanto pesou muito sobre eles a
responsabilidade de assistirem aos necessitados com suas
riquezas, e na medida que não o fazem agravando a pobreza no
mundo, sofrerão um maior juízo de condenação.
54
No entanto, o pobre não foi cumulado com este peso de
responsabilidade da parte de Deus, e nisto tem uma grande
vantagem em relação aos ricos, e assim não houve nenhuma
injustiça da parte de Deus em ter disposto a criação de tal sorte
que houvesse pobres e ricos no mundo.
Então a riqueza deve ser usada para a exibição de
generosidade para com o próximo, conforme é da vontade de
Deus.
Por isso Deus requer as boas obras depois que somos
justificados, mesmo que sejamos pobres, porque se somos
pobres de bens materiais, nada nos impede de sermos ricos da
graça de Jesus para usá-la em benefício de outros.
Assim, apesar de sermos justificados somente pela fé,
devemos lembrar que a fé justificadora nunca está só, porque
deve ser acompanhada pelas boas obras.
Embora as boas obras não sejam a causa da salvação, contudo
elas são evidências da salvação.
Embora elas não sejam o fundamento da nossa casa espiritual,
contudo elas são a sua estrutura.
Deste modo, não deve ser edificada uma fé em obras, mas
devem ser edificadas obras em fé.
As boas obras são a pedra de toque da fé como se vê em Tg 2.18.
Estes frutos das boas obras adornam a árvore da justiça. Assim
deixe a liberalidade da sua mão ser o ornamento da sua fé.
Pelo menos em dois aspectos as boas obras são em algum
senso, mais excelentes do que a fé.
Porque as boas obras são de uma natureza diferente e mais
nobre.
Embora a fé seja mais necessária para nós mesmos, contudo
as boas obras são mais benéficas a outros.
A fé é uma graça que nós recebemos, mas as boas obras são
para o bem de outros, e é uma coisa mais abençoada dar do
que receber.
A fé é uma graça mais oculta. As boas obras são mais visíveis.
A fé pode permanecer escondida no coração e pode não
aparecer, mas quando são unidas as boas obras com a fé, a fé
brilhará diante dos homens, por causa das nossas boas obras
e trará glória ao Senhor.
Lembremos sempre que fomos criados em Cristo Jesus para
as boas obras como se afirma em Ef 2.10.
55
Foi para este fim que fomos tornados filhos de Deus, em Cristo
Jesus.
E é nosso dever vivermos para atender ao propósito para o
qual fomos criados.
Através da misericórdia nos assemelhamos a Deus, que é um
Deus de misericórdia. Dele é dito em Miqueias 7.18 que se
deleita na misericórdia.
Ele requer que o mal seja vencido com o bem.
Exige que pratiquemos o bem como vemos em Hb 13.16: “Mas
não vos esqueçais de fazer o bem e de repartir com outros,
porque com tais sacrifícios Deus se agrada.”
Antes de fechar este assunto eu devo dizer que tudo o que
fizermos deve ser de modo livre e voluntário e devemos fazêlo em Cristo e para Cristo, porque estão perdidas, as melhores
obras que não são originadas da fé.
Todo fruto aceitável a Deus deve ser produzido na Videira
Verdadeira.
As obras de misericórdia devem ser feitas em humildade e
sem ostentação.
E se a nossa ação em atender à necessidade do pobre for feita
de tal forma que venha a humilhá-lo, isto será em si mesmo
um mal maior do que a própria necessidade dele.
Sejamos então criteriosos no exercício da misericórdia.
Nós procederemos ao comentário da sexta bem-aventurança
citada por Jesus em Mateus 5.8:
“Bem-aventurados os puros de coração, porque eles verão a
Deus.”
Deus é tão puro de olhos que não pode ver o mal, e não pode
contemplar a perversidade, como se afirma em Hc 1.13.
Isto significa que os olhos de Deus são perfeita e puramente
bons e não páram para se deleitarem na observação da
maldade.
Os olhos de Deus não se detêm na contemplação do mal, antes
têm repugnância a toda forma de maldade.
Isto sucede com Deus porque a pureza é uma coisa sagrada
perfeitamente refinada e que se levanta em oposição a tudo o
que é sujo.
56
Nós devemos distinguir os vários tipos de pureza. Primeiro, há
uma pureza primitiva que está originalmente e
essencialmente em Deus.
A santidade é a glória da divindade. Deus é o padrão e
protótipo de toda a santidade.
Segundo, há uma pureza criada.
Assim, a santidade está nos anjos eleitos e esteve no começo
da criação em Adão, antes dele cair no pecado.
O coração de Adão não tinha a menor mancha ou impureza.
Nós chamamos isto de ouro puro que não tem qualquer
escória misturada nele.
Tal era a santidade de Adão.
Mas tal pureza absoluta como estava em Adão antes da sua
queda no pecado, não será mais achada na terra.
Nós temos que buscar tal pureza no céu para poder encontrála, e se a encontrarmos, ela será aqui na terra, uma pureza
evangélica.
Nesta pureza evangélica a graça se encontra misturada com
algum pecado, como a escória no ouro.
Deus chama esta mistura de pureza, em sentido evangélico.
Onde houver uma presença de pureza com uma repugnância
por nós mesmos por causa da nossa impureza, então podemos
dizer que somos puros de coração.
Esta pureza evangélica é a pureza que é citada nesta bemaventurança de que os puros de coração são aqueles que verão
a Deus.
Porque é somente por meio da fé no sangue de Jesus, e pela
obra de regeneração e santificação do Espírito Santo,
mediante a Palavra de Deus, que nós somos de fato
purificados dos nossos pecados e achados dignos de estarmos
em comunhão com Deus.
Por isso, desde o princípio é ensinado por Deus ao seu povo
que não é por nenhuma pureza pessoal própria, segundo o
modo de pensar do homem e do mundo, que alguém pode
estar de fato purificado aos seus santos olhos divinos.
Toda a pureza que tivermos será operada em nós pelo Espírito
Santo, com base no sangue purificador de Cristo, conforme se
vê tipificado desde os dias mais remotos, mesmo de Adão, nos
sacrifícios de animais exigidos por Deus para que os
pecadores pudessem se aproximar dele.
57
E esta aproximação é feita pela fé. É pela fé no valor do sangue,
na expiação de Jesus, e fé na Palavra de Deus, que somos de
fato purificados.
Assim, a simples educação não é nenhuma pureza.
Um homem pode estar cheio de virtudes morais, de
prudência, e temperança e contudo, ir para o inferno.
A simples profissão de fé não é também nenhuma pureza.
Um homem pode ter um nome de que vive, ou seja, ser
considerado um crente, e ainda estar morto, como se vê em
Ap 3.1.
Ele pode ter como o joio, toda a aparência com o trigo, e no
entanto, o diabo ainda reside na casa.
Pureza de coração não exclui pureza de vida.
Mas é chamado pureza de coração, porque esta é a coisa
principal da santidade, pois não pode haver nenhuma pureza
de vida sem isto.
O grande cuidado de um crente deveria ser portanto o de
manter o seu coração puro.
Deve sobretudo ter atenção para que o amor ao pecado não
entre no seu coração, porque é o pecado quem mata a pureza
de coração.
E uma das melhores formas de se prevenir do pecado é
praticar a Palavra de Deus, guardando-a no coração.
Porque se a Palavra habitar no coração, este não perderá a sua
pureza, por ser penetrado pelo pecado.
Daí dizer o salmista, no Salmo 119.11:
“Escondi a tua palavra no meu coração, para não pecar contra
ti.”.
A pureza é uma coisa ordenada pelo próprio Deus na Bíblia,
como se vê em I Pe 1.16: “Ser-me-eis santos porque eu sou
santo.”.
Afinal, o que um Deus Santo pode fazer com servos profanos?
Nada. Porque o pecado é uma enfermidade terrível, uma
sujeira, uma imundície, uma pestilência dolorosa, é um
vômito.
O corpo de Cristo seria monstruoso se somente a cabeça fosse
pura e não os membros também.
Importa pois, na condição de membros do corpo de Cristo que
sejamos achados em pureza de coração e vida, tal como o
nosso Senhor, como se afirma em I Jo 3.2,3:
58
“2 Amados, agora somos filhos de Deus, e ainda não é
manifesto o que havemos de ser. Mas sabemos que, quando
ele se manifestar, seremos semelhantes a ele; porque assim
como é, o veremos.
3 E todo o que nele tem esta esperança, purifica-se a si mesmo,
assim como ele é puro.”.
A pureza deve ser principalmente do coração porque se o
coração não é puro, nossa pureza não será diferente em nada
de uma pureza farisaica.
A santidade do fariseu consistia principalmente em
exterioridades. A pureza deles era apenas externa. Eles nunca
deram atenção ao interior do coração.
O coração deve ser especialmente puro, porque é o coração
que santifica tudo o que nós fazemos.
Se o coração for santo, tudo será, porque o coração é o altar
que santifica a oferta.
Se nós devemos ser então puros de coração, nós não devemos
nos contentar apenas com o nosso exterior.
Educação não é suficiente, porque um porco pode ser lavado,
contudo é ainda um porco.
A educação nada faz além de ensinar boas maneiras a um
homem, mas a graça o transforma no seu interior.
A santidade de coração, a sua purificação está tipificada na Lei
porque se exigia de Arão que ele lavasse as entranhas dos
animais que eram oferecidos em sacrifício no Velho
Testamento, como se vê em Lev 9.14.
Esta pureza de coração não é sentimental mas real, operada
pelo lavar do Espírito Santo mediante aplicação da Palavra de
Deus.
Satanás pode segurar um homem através de um só pecado
específico.
Almas impuras brincam com o pecado. Eles sentem prazer
pela injustiça, e por isso Deus permite que sejam aprisionados
pelo erro, como se afirma em II Tes 2.12.
Este prazer pela injustiça mostra que a vontade está presa ao
pecado.
As Escrituras trovejam contra o pecado mas estes pecadores
não temem este trovão. Ministros que são como Boanerges,
vestidos do espírito de Elias, ainda que denunciem todas as
59
maldições de Deus contra os pecados dos homens, contudo
ainda assim eles não lhes dão a devida consideração.
O pecado os engana e os justifica, dizendo que Deus não pode
afinal exigir uma tal pureza de coração a pecadores. No
entanto é o que Ele requer de fato e o revelou de capa a capa
na Bíblia.
Esta resistência a crer no padrão de santidade e pureza que
são exigidos por Deus em sua Palavra é chamado pela Bíblia de
coração mau de incredulidade, conforme se afirma em Hb
3.12.
E este tipo de incredulidade é um tipo terrível porque chama
Deus de mentiroso quando Ele afirma que devemos ser santos
porque Ele é santo.
Aqueles que não creem nos mandamentos de Deus e que não
se dispõem a honrá-los e praticá-los, nunca O amarão
verdadeiramente, porque somente os que têm os
mandamentos de Cristo e que os guardam são
verdadeiramente aqueles que O estão amando.
Não admira portanto que haja mesmo entre os filhos de Deus
não poucos que não Lhe estejam amando de fato.
A incredulidade endurece o coração e o torna hipócrita. E a
falta de pureza do coração produzida pela incredulidade o
expõe a se tornar um apóstata. Esta é a razão porque muitos
que pareciam uma vez zelosos se encontram agora
menosprezando os santos e justos caminhos do Senhor.
Há uma antipatia entre um coração carnal e a santidade.
E todo aquele que deprecia a pureza tem um coração impuro.
Os carnais zombam daqueles que se esforçam para serem
espirituais.
Mas não é ordenado por Jesus em Mateus 5.48 que sejamos
perfeitos como Deus é perfeito?
Muitos
tentam
obter
esta
pureza
de
coração
independentemente de serem batizados e andarem no
Espírito Santo. No entanto, é absolutamente impossível
vencer o pecado sem ser santificado pelo Espírito Santo,
porque é Ele quem retira de nós não somente as impurezas
como o nosso apego às coisas do mundo.
Daí que se a pessoa não se consagrar inteiramente a Deus, ela
nunca poderá experimentar esta pureza de coração que faz
parte da santificação.
60
Deus ama um coração quebrado, mas não um coração
dividido.
Porque somente um coração sincero seguirá a Deus
completamente.
Um homem de coração sincero nunca agirá contra a sua
consciência.
Um coração puro é um coração que se conduz pela verdade e
sabe que é possível haver iluminação sem santificação, como
bem o exemplificam Saul e Judas.
Um homem pode reprimir e abandonar certos pecados,
contudo não ter um coração puro, porque o coração puro
detesta todos os pecados.
Um homem pode reprimir o pecado pelo temor da
penalidade, mas o de coração puro reprimirá o pecado por
amor a Deus.
Aqueles que protestam amar a Deus mas que têm ainda suas
mentes aprisionadas ao prazer das impurezas que Deus
condena, não têm ainda um coração puro.
Quando alguém chega a dizer com o salmista que odeia toda
vereda de falsidade, isto é realmente excelente, porque agora
o amor ao pecado foi de fato crucificado, e isto é indicativo de
que se alcançou um coração puro.
O salmista diz no Sl 119.104: “Pelos teus preceitos alcanço
entendimento, pelo que aborreço toda vereda de falsidade.”
Um coração puro evita a aparência do mal como se vê em I Tes
5.22.
Um coração puro evita aquilo que pode ser interpretado como
mal.
Um coração puro executa deveres santos de uma maneira
santa.
Um coração puro terá uma vida pura, como se ordena em II
Cor 7.1:
“Ora, amados, visto que temos tais promessas, purifiquemonos de toda a imundícia da carne e do espírito, aperfeiçoando
a santidade no temor de Deus.”.
Onde há uma consciência boa haverá uma conversação boa.
Alguns bendizem a Deus e eles têm bons corações, mas as
vidas deles são más.
Há uma geração que é pura aos seus próprios olhos e ainda
não foi lavada da sua imundícia, como se afirma em Pv 30.12.
61
Um coração puro está tão apaixonado por pureza que nada
pode desviá-lo disto.
Deixe outros reprovarem a pureza, ele continuará amando a
pureza.
Ele sabe que se os cegos ridicularizarem um diamante, nem
por isto o diamante terá menos valor pelo fato de estar sendo
desprezado pelos que são cegos.
Portanto, o puro de coração amará a santidade ainda que os
cegos espirituais a desprezem.
Lembremos que é a pureza de coração que nos torna
parecidos com Deus.
A infelicidade de Adão consistiu em que ele aspirou ser como
Deus em onisciência; mas nós devemos nos esforçar para
sermos como Deus em santidade.
Sermos à imagem de Deus consiste em termos santidade.
E para aqueles que não têm esta imagem em santidade, Jesus
dirá que não os conhece.
O Salmo 73.1 afirma que Deus é bom para com os puros de
coração.
Isto significa que Ele terá prazer em manifestar a sua bondade
aos tais, como recompensa do esforço deles para agradá-lo
buscando viverem em sincera santidade.
Tudo cooperará para o bem destes que amam
verdadeiramente a Deus; porque são de coração puro, e
buscam guardar os seus mandamentos.
Por isso o puro de coração verá a Deus.
Mas como nós atingiremos a pureza de coração?
Isto é obtido pelo exercício das graças espirituais, mas
especialmente pela prática da Palavra de Deus.
Por se meditar frequentemente na Palavra de Deus.
Jesus disse aos seus discípulos em Jo 15.3: “Vós já estais limpos
pela palavra que vos tenho falado.”.
E rogou ao Pai que os santificasse na verdade, como vemos em
João 17.17: “Santifica-os na verdade, a tua palavra é a verdade.”.
A pureza de coração é obtida também por se orar para se ter
tal pureza.
Vejamos agora de que maneira os puros de coração verão a
Deus.
O puro de coração verá o puro Deus, e há uma visão dupla que
os santos têm de Deus.
62
Primeiro, nesta vida; quer dizer, espiritualmente pelo olho da
fé. A fé vê os atributos gloriosos de Deus na sua Palavra. A fé
vê Deus através das suas ordenações. Assim Moisés viu aquele
que é invisível como se afirma em Hb 11.27.
Em segundo lugar os santos verão a Deus, na vida por vir.
Nós veremos Deus como Ele é, conforme prometido em I Jo
3.2, na plenitude da sua glória, porque teremos corpos
glorificados, não de carne e sangue, mas corpos celestiais
apropriados para terem tal visão de Deus, que é espírito.
Será portanto uma visão perfeita.
Nós veremos o rei na sua formosura como se diz em Is 33.17.
Ali entenderemos o por que é devida total pureza e santidade
a um Deus tão puro e glorioso.
Não se trata portanto, apenas de uma promessa de que os
puros de coração verão a Deus, mas nesta promessa estão
embutidas todas as consequências sagradas e espirituais que
acompanharão este privilégio de poder ver a Deus, como
recompensa de ter se empenhado na purificação do coração
contra todos os tipos de pecados.
Aqueles que honraram a Deus deste modo neste mundo,
serão honrados e recompensados por Ele na glória.
Porque se diz que bem-aventurados são estes que são puros de
coração, porque verão a Deus.
Como pode então uma pessoa estar confiante e segura de que
verá a Deus se não tem tido tal pureza de coração aqui neste
mundo?
Jesus não disse que bem-aventurados são os que forem
purificados dos seus corações no céu para poderem ver a
Deus; mas que bem-aventurados são os que são puros de
coração neste mudo, porque estes, e somente estes podem ter
a certeza de que verão a Deus no céu.
Nós vamos proceder ao comentário da sétima bemaventurança citada por Jesus em Mateus 5.9, de que bemaventurados são os pacificadores, porque eles serão
chamados filhos de Deus.
Este é o sétimo degrau da escada de ouro que conduz à bemaventurança.
O trabalho da paz é um trabalho abençoado, e por isso se diz
que são bem-aventurados os pacificadores.
63
A Bíblia une a pureza de coração à paz de espírito:
“Mas a sabedoria que vem do alto é, primeiramente, pura,
depois pacífica...” como se lê em Tg 3.17.
E em Hb 12.14 nós lemos: “Segui a paz com todos, e a
santificação...”.
E aqui Jesus une puros de coração com pacificadores, como se
não pudesse haver nenhuma pureza onde não há uma sincera
busca de paz. Os que amam a paz do Senhor e que se
empenham por serem achados em paz nele são praticantes da
verdadeira religião, porque é suspeita a religião que está cheia
de facção e discórdia.
Não se pode dizer que são bem-aventurados aqueles que estão
divididos em seus corações por disputas, invejas, iras,
discórdias. Mas bem-aventurados são todos aqueles que são
promotores da paz, primeiro em si mesmos, vencendo a fúria
pecaminosa de seus corações, e depois no trato com os seus
semelhantes.
Assim, antes que um homem possa ser um promotor da paz,
ele deve ser um amante da paz.
A paz de espírito é a beleza visível de um santo, que expressa a
pureza escondida no interior do seu coração.
O ornamento de um espírito pacifico e quieto é uma joia de
grande valor à vista de Deus, como se lê em I Pe 3.4.
Os crentes são ovelhas de Cristo, e a ovelha é uma criatura
pacífica.
Embora os crentes devam ser leões em relação à coragem
para enfrentar o pecado, contudo eles devem ser cordeiros
em relação à paz.
Deus não estava no terremoto e nem no fogo, mas no cicio
suave, quando falou com Elias na caverna.
Assim Deus não está no espírito do iracundo, mas no espírito
do pacífico.
Nós temos que ter paz em família, quer nos lares, quer na
igreja.
Isto é chamado de laço de paz em Ef 4.3. Sem este laço o que
teremos serão partes isoladas e não uma unidade.
A paz é o cinto que amarra os membros unidos numa família.
Não pode haver nenhum verdadeiro conforto sendo cultivado
em nossos lares, caso a paz não seja entretida como um
ocupante permanente em nossas casas.
64
Há uma paz paroquial, quando há uma doce harmonia, uma
afinação de afetos, quando há um só sentir e querer, como diz
o apóstolo Paulo em I Cor 1.10:
“Rogo-vos, porém, irmãos, pelo nome de nosso Senhor Jesus
Cristo, que digais todos uma mesma coisa, e que não haja
entre vós dissensões; antes sejais unidos em um mesmo
pensamento e num mesmo parecer.”.
Uma só corda arruinada na harpa desafinará a música e
impedirá a unidade harmoniosa da melodia.
Um só membro ruim quer na família, quer na igreja, pode vir
a prejudicar o todo.
Por isso é ordenado na Palavra: “Tende paz entre vós.”, como
se lê em I Tes 5.13.
Há paz na igreja quando há unidade e verdade entre os seus
membros.
Nós devemos ser pacificadores porque nós fomos chamados à
paz, conforme se afirma em I Cor 7.15.
Deus nunca chamou qualquer homem à divisão. Isso é uma
razão por que nós não deveríamos ser dados à discussão,
porque nós não temos nenhuma chamada para isto. Mas Deus
nos chamou à paz, para nos edificarmos mutuamente no
corpo de Cristo.
Por isso a natureza da graça no trabalho de mudar o coração é
no sentido de torná-lo pacífico.
Por natureza nós somos de uma disposição violenta.
Quando Deus amaldiçoou a terra por causa do homem, a
maldição foi a de que ela deveria produzir espinhos e cardos
(Gên 3.18). O coração do homem natural está debaixo desta
maldição. Produz nada mais do que os espinhos e cardos da
discussão e da contenda. Mas quando a graça entra no coração
ela o torna pacífico. Implantando no coração uma doçura e
disposição amorosa.
Assim a paz nos mostra o caráter de um verdadeiro santo. Ele
é dado à paz. Ele é o guardião da paz. Ele é um filho da paz.
A paz que um crente busca não deve ter ligações de amizade
com os que vivem no pecado. Embora nós devamos estar em
paz com as pessoas deles, contudo nós devemos estar em
guerra com os seus pecados. Nós devemos ter paz com as
pessoas deles como sendo feitos à imagem de Deus, mas ter
65
guerra com os pecados deles como sendo feitos à imagem do
diabo.
Nós devemos ter uma paz civilizada com o pior dos pecadores,
mas não um laço de amizade, porque isto significa comunicarse com as obras infrutíferas das trevas, como se afirma em Ef
5.11.
O rei Josafá, embora fosse um crente devotado, foi culpado
disto, em sua aliança com a casa de Acabe. sua falta consistiu
em não ter tido apenas uma paz civil com Acabe, mas ele
formou laços de amizade com ele, e foi isto que despertou a
ira de Deus em relação a Josafá.
Assim, nós devemos ser úteis a todos os homens, aconselhálos, aliviá-los, mas não devemos permitir ter muita
familiaridade com eles, porque nós nunca devemos comprar
a paz com a perda da santidade.
Não devemos ter paz com outros sobre bases erradas. A
verdade deve ser comprada e nunca vendida, como se afirma
em Pv 23.23.
A paz não deve ser comprada com a venda da verdade. A
verdade é a base da fé. A verdade é a maior pedra preciosa das
igrejas. A verdade é um depósito, um tesouro, que contém o
que Deus nos confiou.
Nós não devemos deixar nenhuma das verdades de Deus cair
ao chão.
Nós não devemos buscar a flor da paz quando isto implicar a
perda da pérola da verdade.
Alguns dizem que devemos estar unidos a todos, mas nós não
devemos nos unir com o erro.
Que comunhão tem a luz com a escuridão? Com se diz em II
Cor 6.14?.
Há muitos que têm paz com hereges que negam a Palavra,
mas isto é uma paz diabólica. Amaldiçoada seja aquela paz que
faz guerra contra o Príncipe da paz. Embora nós devamos ser
pacíficos, contudo nós somos ordenados a defender a fé,
como se ordena em Jd 3.
Nós não devemos estar tão apaixonados pela coroa dourada da
paz ao ponto de arrancar dela as joias da verdade. Se preciso
for deixe que a paz se vá em vez da verdade. Os mártires
prefeririam perder suas vidas a negarem a verdade.
66
E é somente por este amor à verdade e sua prática que os
servos de Cristo podem viver em verdadeira harmonia e paz,
amando-se uns aos outros. E isto é o que Cristo espera
daqueles que são seus, como se vê em Jo 13.35.
As tábuas do tabernáculo eram unidas pelos travessões de
ouro que simbolizam o amor e a paz de Deus. De igual modo as
suas cortinas eram unidas por laçadas que representavam os
laços de amor e paz.
Assim os corações dos crentes devem estar unidos pelos laços
de unidade em amor e paz.
Uma disposição pacífica é uma disposição divina.
Deus Pai é chamado “o Deus de paz” em Hb 13.20.
Deus Filho é chamado “o Príncipe da paz” em Is 9.6. E ele saiu
do mundo deixando-nos um legado de paz, como se lê em Jo
14.27.
Deus Espírito Santo é um Espírito de paz. Ele tomou a forma de
uma pomba. Ele é o Consolador.
Cristo orou em favor da paz entre as pessoas do seu povo,
como vemos em Jo 17.11, 21, 23. Ele orou para que os crentes
fossem um, de modo que tivessem a mesma mente e coração.
Cristo não somente orou pela paz, mas sangrou para isto.
Ele não morreu somente para fazer paz entre Deus e os
homens, mas também entre homens e homens.
Discussão e contenda impedem o crescimento da graça.
Quem se disporia a semear num campo repleto de
espinheiros? Os espinhos sufocam a semente da graça e
impedem a sua germinação e crescimento.
Como a fé pode crescer num coração sem paz? Porque a fé
opera pelo amor.
Por isso Cristo exorta os crentes a terem paz uns com os
outros, como se vê em Mc 9.50.
Somente quando os corações dos crentes são uma casa
espiritual adornada com a mobília da paz, então eles estão
preparados para hospedarem o Príncipe da paz.
Para mantermos esta mobília abençoada da paz em ordem é
preciso não dar ouvidos aos fofoqueiros (Lev 16.16), que de
alguma forma sempre procurarão nos exasperar e nos
derrubar com os seus relatórios. E Satanás sempre procurará
enviar suas correspondências a nós através destes seus
67
mensageiros. O fofoqueiro é um incendiário. Ele ativa o
carvão da contenção para nos indispor com os homens.
O orgulho deve ser mortificado porque é a humildade a solda
que une os crentes em paz.
A inveja deve ser também mortificada porque a paz não pode
habitar juntamente com este ocupante.
Nós não devemos somente abandonar estes pecados que são
contrários à paz, como devemos nos esforçar para obter
aquelas coisas que conduzem à paz, e dentre estas podemos
destacar:
A fé, porque ela realiza aquilo que a Palavra nos ordena.
A Palavra diz em II Cor 13.11: ”vivei em paz”, e pela fé nós somos
habilitados a crer e a obedecer tal ordenança.
Podemos destacar também a prática da comunhão cristã que
nos ajuda a vivermos em paz uns com os outros.
Não devemos também nos concentrar nas falhas dos outros,
mas nas graças deles.
Não há nenhuma perfeição aqui neste mundo. Em vez de
ressaltarmos as fraquezas deles devemos voltar nossa atenção
para as suas virtudes.
Devemos também orar para que Deus envie o Espírito da paz
aos nossos corações. Oremos para que o Senhor extinga o fogo
da contenda e acenda o fogo da compaixão em nossos
corações.
Os cristãos não devem ser apenas pacíficos, mas
pacificadores, ou seja, eles devem levar outros a estarem em
paz. Eles devem ser instrumentos da consolação do Espírito
para trazer alívio aos corações atribulados. Eles devem ser o
instrumento da reconciliação entre os pecadores e Deus, e da
reconciliação entre irmãos. Esta é uma tarefa difícil mas que
sempre contará com a bênção de Deus.
Deus abomina os semeadores de discórdias entre irmãos,
como se vê em Pv 6.19.
As divisões obstruem o progresso do evangelho. Mas a obra de
Deus avançará onde houver unidade e paz.
Aquele que semeia paz colherá paz.
O pacificador morrerá em paz porque levará uma boa
consciência com ele e deixará um bom nome atrás de si.
Os pacificadores serão chamados filhos de Deus e nisto está o
privilégio glorioso dos santos. Aqueles que fizeram a paz deles
68
com Deus e labutaram para fazer a paz entre seus irmãos terão
esta grande honra conferida a eles, a de serem chamados
filhos de Deus.
Eles serão reconhecidos como sendo da mesma disposição e
natureza de Deus, semelhantes a Ele, seus imitadores amados
que alcançaram o testemunho de Lhe terem agradado. Pelo
seu procedimento pacífico e pacificador serão reconhecidos
como sendo verdadeiramente filhos de Deus. Esta é então a
marca essencial de um filho de Deus, a saber, aqueles que têm
paz com Ele e com seus irmãos.
E devemos destacar a honra do nome dos filhos de Deus,
porque eles são preciosos para o Pai deles.
Deus os olha como pessoas honradas.
O nome deles é precioso.
As orações deles são preciosas.
As lágrimas deles são preciosas.
Os filhos de Deus têm títulos de honra. Eles são chamados de
reis em Apo 1.6. A excelência da terra no Sl 16.3. Vasos de
honra em II Tim 2.21.
O estado dos filhos de Deus é mais excelente e honrado do que
o estado de Adão quando estava vestido de inocência no Éden,
porque apesar de glorioso era mutável, e foi logo perdido, mas
os filhos de Deus por adoção estão num estado inalterável,
pela impossibilidade de caírem da posição de sua filiação.
É prometido a eles que serão seguramente como os anjos
eleitos do céu. Tal como os anjos eleitos, jamais serão
lançados fora da presença de Deus por causa da eleição dos
crentes, que foi conhecida por Deus antes mesmo da
fundação do mundo.
As correções divinas às quais eles estão submetidos não são
para a confirmação da adoção deles como filhos, senão a
prova do amor de Deus para com eles, que os está
aperfeiçoando para poderem experimentar da sua própria
santidade, este fruto maravilhoso da árvore da vida celestial.
Um dos grandes privilégios da adoção é que se nós somos
filhos, então Deus será paciente com muitas fraquezas. Um pai
é muito paciente com um filho que ele ama. Ele os poupará
ainda que não encubra o mal que eles venham a praticar. Ele
não tomará vingança contra eles, mas terá piedade.
69
Um pai se esforça para livrar os seus filhos do mal. E Deus
move o céu e os anjos para a proteção dos seus filhos, quer dos
males externos, quer do mal em seus corações.
Sendo filhos somos herdeiros de Deus e de todas as suas boas
promessas, como se vê em Hb 6.17.
E se somos filhos, teremos sempre a bênção do nosso Pai
celestial.
Os filhos de Deus não podem perecer eternamente porque a
justiça de Deus está satisfeita quanto aos pecados deles.
O sangue de Cristo é o preço que foi pago para que a justiça
ficasse completamente satisfeita.
Assim, esta bênção da salvação eterna é segura para os
crentes verdadeiros, por causa da eleição deles, mas um viver
abençoado neste mundo é sempre condicional à obediência
do crente à verdade, porque Deus mesmo dispôs esta verdade
para incentivar os seus filhos à santificação das suas vidas.
De maneira, que ninguém espere um viver abençoado neste
mundo, caso não esteja vivendo em conformidade com a
vontade de Deus.
Nós vamos proceder ao comentário relativo à oitava e
última bem-aventurança citada por Jesus em Mateus 5.10, de
que bem-aventurados são os perseguidos por causa da justiça,
porque deles é o reino dos céus.”.
Nesta última bem-aventurança Jesus nos leva a considerar o
custo da vida cristã.
Nós teremos lágrimas de arrependimento e o sangue da
perseguição, mas nós vemos aqui um grande encorajamento
para nos impedir de desfalecer no dia da adversidade, porque
nos é prometida a coroação no seu reino celestial.
A verdadeira piedade será perseguida. E é por isso que
entramos no reino de Deus através de muitas tribulações
como se afirma em At 14.22.
Lutero disse apropriadamente que Cristo morreu para tirar a
maldição de nós, mas não a cruz.
Os santos não têm nenhuma promessa nas Escrituras que
seriam livrados das provações.
Embora sejam mansos, misericordiosos, puros de coração e
pacificadores, a devoção deles não os protegerá de
sofrimentos.
70
A palavra grega para perseguir significa “vexar, molestar,
fazer fugir, procurar a morte”.
Há vários tipos de perseguição. Ela pode ser física e espiritual.
Mas a sua causa e base geralmente serão ocasionadas pela
perseguição do erro à verdade.
Deus tem propósitos santos e sábios nas perseguições que
permite que venham sobre os seus filhos.
As provações refinam a fé dos crentes e distingue os
verdadeiros santos dos hipócritas, porque somente uma fé
genuína não é destruída pelas tribulações.
Deus permite que seus filhos passem pelo forno das
provações para que os seus corações sejam purificados. Ele
remove as escórias do orgulho, impaciência, amor ao mundo
e tudo aquilo que é contrário à santidade.
Estas perseguições decorrem sobretudo do fato de que há
uma inimizade entre a semente da mulher e a semente da
serpente.
As tempestades de perseguições caem principalmente sobre
os ministros do evangelho porque eles precisam ser mais
refinados do que os demais crentes por conta do ofício
sagrado que lhes foi confiado de apascentarem o rebanho do
Senhor.
Especialmente os ministros devem destruir o reino de
Satanás e ele cuspirá todo o seu veneno neles.
Se nós pisamos na cabeça do diabo ele nos ferirá o calcanhar.
E o trabalho dos ministros é o de tirar as pessoas de Deus das
garras do diabo.
Assim, um pastor fiel sempre sofrerá provações e oposições.
Agora, esta perseguição e sofrimento é o que torna um
homem bem-aventurado. Não a perseguição pelo fato de ser
um malfeitor, mas por ser um amante da justiça divina.
É quando sofremos por causa do nosso amor à justiça, na
defesa e pregação da verdade, no bom combate da fé, que
somos bem-aventurados.
Estes guerreiros santos que defendem a causa da justiça de
Cristo conquistarão o reino dos céus.
Quando há fins bons em nosso sofrimento, pelos quais nós
possamos glorificar a Deus, nós poderemos e daremos com
isto, testemunho da verdade e mostraremos nosso amor a
Cristo.
71
Não há, neste tipo de sofrimento, no dizer do apóstolo, em I Pe
4.16, do que se envergonhar.
Um amor verdadeiro não esfria e não recua por causa das
aflições quanto ao ser amado. Ao contrário ele se mostra
verdadeiro e fiel na sua perseverança muito mais nestas horas
difíceis. O nosso relacionamento com o Senhor é da qualidade
e nível de um matrimônio. E nossa união a Ele está sendo
provada em todas as circunstâncias.
Jesus nos deixou o legado da paz, mas também o das aflições,
para que esta paz seja gloriosa, porque é dada
sobrenaturalmente por Ele a nós em meio às aflições.
Assim a sua vitória triunfa sobre todas as circunstâncias
difíceis que possamos experimentar.
A justiça de Cristo com a qual os crentes estão vestidos, e a
justiça que a graça tem implantado neles e que se manifesta
nas suas boas obras darão ocasião a que sejam perseguidos
por aqueles que são contrários à verdade e que não amam a
luz, senão as trevas.
Há portanto um combate estabelecido, não propriamente
contra a carne e o sangue, mas contra os poderes das trevas.
O medroso não está habilitado a lutar as guerras de Cristo. Um
homem possuído de temor não consulta o que é melhor, mas
o que é mais seguro.
Para poder salvar a sua pele e propriedade ele agirá contra a
sua própria consciência.
O temor fará o pecado parecer pequeno e o sofrimento
grande.
O medo enfraquece e lança fora a coragem.
O temor é a raiz da apostasia.
Então Cristo exorta os crentes a lançarem fora o medo e
estarem prontos a sofrerem por amor à justiça.
A causa do evangelho deve triunfar ainda que seja necessário
ser escrita a vitória com o derramamento do sangue dos
crentes pelos seus perseguidores.
O bom soldado de Cristo suporta o sofrimento como se afirma
em II Tim 2.3; sofrimento este que lhe sobrevém no bom
combate da fé.
Jesus nos exorta à fidelidade mesmo em face da morte porque
nos tem prometido a coroa da vida em Apo 2.10.
72
Mas é preciso que um crente aprenda primeiro a negar-se a si
mesmo, ou seja, a negar o seu ego, antes que ele possa
carregar a cruz.
O eu se levantará contra a cruz, mas um ego negado não
poderá nos impedir de carregá-la e o eu será definitivamente
crucificado por ela.
O velho homem detesta a cruz, mas a nova criatura a ama e
não se opõe a ela, e a carrega voluntariamente, assim como
Jesus carregou a sua cruz.
Pela fé nós podemos resistir até o sangue como se vê em Hb
11.34.
A fé é uma graça vitoriosa.
A fé une o espírito a Cristo e é esta Cabeça santificada que dá
força aos seus membros, de modo que tudo podemos em Jesus
que nos fortalece.
Deus prometeu estar com os santos nos seus sofrimentos.
Ele fez promessas de libertação de todas as tribulações dos
justos.
Ele está no controle de todas as perseguições que eles possam
sofrer e nada lhes sucederá em sua fidelidade a Deus, sem que
Ele o permita.
Assim, em tudo o que têm que sofrer, devem aprender a ver a
mão do Senhor em tudo, e a esperar nele, enquanto devem
prosseguir adiante fazendo a sua santa vontade.
Aquele que recusa sofrer perseguição nunca será livre de
sofrer, pois terá sofrimentos internos de consciência, e em se
tratando de incrédulos, terão que padecer um sofrimento no
fogo eterno.
Estes sofrimentos presentes não podem impedir um homem
de ser abençoado.
Muitos julgam que bem-aventurados são os ricos e os que não
sofrem, mas Jesus diz que bem-aventurado são os que sofrem
por causa da justiça, pois isto comprova que de fato estão do
seu lado, que eles se converteram das trevas para a luz, e
figuram agora entre aqueles que serão coroados no céu.
Por isso Tiago diz que é bem-aventurado aquele que suporta a
tentação em Tg 1.11,12. E Pedro diz em I Pe 3.14 que se alguém
sofre por causa da justiça, é feliz.
Não receberemos nossas coroas por causa dos nossos
sofrimentos, senão por causa de Cristo e da sua graça, mas
73
nossos sofrimentos estabelecerão os diferentes graus de
glória de nossas coroas e tronos.
Os tronos mais elevados do seu reino, Cristo tem reservado
para os seus mártires.
Há pois grande recompensa em sofrer por amor ao evangelho
e por Cristo.
Os versos 11 e 12 são uma explicação da bem-aventurança do
verso 10:
“11 Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e
perseguiram e, mentindo, disserem todo mal contra vós por
minha causa.
12 Alegrai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos
céus; porque assim perseguiram aos profetas que foram antes
de vós.” (Mt 5.11,12).
O Cristão e a Perseguição
Por D. M. Lloyd Jones (traduzido e adaptado por Silvio Dutra,
assim como todas as demais citações de Lloyd Jones)
O texto de Mateus 5.11,12 é uma espécie de explicação da bemaventurança do verso 10 de que bem-aventurados são os
perseguidos por causa da justiça.
O crente é perseguido porque é uma certa classe de pessoa e
atua de uma certa forma.
Esta bem-aventurança segue imediatamente à dos
pacificadores. O crente é perseguido porque é pacificador.
Ser justo, praticar a justiça, significa na realidade ser como o
Senhor Jesus Cristo.
Portanto, são bem-aventurados os que são perseguidos por
serem como ele. Os que são como ele sempre sofrem
perseguição.
O Senhor mesmo nos disse que deveríamos saber que o
mundo lhe havia aborrecido, antes de aborrecer a nós, seus
discípulos. E se caso fôssemos do mundo, o mundo amaria o
que era seu, porém não somos do mundo, porque ele nos
escolheu do mundo, e é por isso que o mundo nos aborrece. E
que por não serem os servos maiores do que o seu senhor, por
74
isso assim como lhe haviam perseguido, também nos
perseguiriam (João 15.18-20).
Paulo disse que todos os que quiserem viver piedosamente
em Cristo Jesus padecerão perseguição (II Tim 3.12).
Este é o ensino. Vejamos como se coloca em prática em toda a
Bíblia. Por exemplo, Abel foi perseguido por seu irmão Caim.
Moisés foi sujeito a cruel perseguição. Vejamos a forma com
que Davi foi perseguido por Saul, e a terrível perseguição que
tiveram que sofrer Elias e Jeremias. Recordam a história de
Daniel, e como foi perseguido? Cada um destes homens mais
notáveis do Antigo Testamento referenda o ensino bíblico.
Foram perseguidos, não porque foram de caráter difícil, nem
por serem demasiado zelosos, senão simplesmente por serem
justos. No Novo Testamento encontramos exatamente o
mesmo. Pensem nos apóstolos, e na perseguição que tiveram
que suportar.
Me pergunto se alguém tem sofrido mais do que o apóstolo
Paulo, apesar de sua amabilidade, gentileza e justiça. Leiam as
descrições que faz de seus sofrimentos. Não surpreende que
tenha dito que todos os que querem viver piedosamente em
Cristo Jesus padecerão perseguição. Ele a conheceu e sofreu.
Porém, não cabe dúvida que o exemplo supremo é o próprio
Senhor. Ah! Nós o temos em toda sua perfeição absoluta, total,
com toda sua amabilidade e mansidão, de quem se pôde dizer
que não esmagaria a cana quebrada, e que não apagaria o
pavio fumegante. Nunca ninguém foi tão amável e gentil.
Porém, vejam o que lhe sucedeu e o que lhe fez o mundo.
Leiam também a ampla história da Igreja Cristã e encontrarão
que essa afirmação se tem cumprido sem cessar. Leiam as
vidas dos mártires, de John Huss, dos pais protestantes. Leiam
também a história moderna e, observem a perseguição que
sofreram os líderes do avivamento evangélico do século
dezoito. Não muitos têm conhecido o que é sofrer como
Hudson Taylor, missionário à China, que viveu neste século.
Soube o que é viver submetido a violenta perseguição. É uma
comprovação do que diz esta bem-aventurança.
Quem persegue os justos? Quando alguém lê as Escrituras e a
história da Igreja, descobre que a perseguição não somente é
levada a cabo pelo mundo. Algumas perseguições mais
violentas que os justos têm sofrido são das mãos da própria
75
Igreja, das mãos de gente religiosa. Frequentemente tem sido
realizada por crentes nominais. Tomemos o exemplo do
próprio Senhor. Quem foram seus principais perseguidores?
Os fariseus e os escribas, e os doutores da lei. Aos primeiros
cristãos também, os que mais lhes perseguiram foram os
judeus. Depois, leiam a história da Igreja, e verão a
perseguição por parte da Igreja Católica a alguns daqueles
homens da Idade Média que haviam visto a verdade e que
trataram de vivê-la pacificamente. Como os perseguiram as
pessoas religiosas nominais! Assim foi também com a história
dos primeiros puritanos. Este é o ensino da Bíblia, e a história
da Igreja a tem corroborado, que a perseguição pode chegar,
não somente de fora como também de dentro.
O cristianismo formal é frequentemente o maior inimigo da
fé genuína.
Porém vou fazer outra pergunta. Por que são perseguidos
assim os justos? E sobretudo, por que são perseguidos os
justos e não os bons e os nobres? A resposta, me parece, é
muito simples. Aos bons e aos nobres se persegue muito
poucas vezes porque a todos nos parece que são como nós
mesmos em nossos melhores momentos. Pensamos: “eu
também posso ser assim caso me proponha a sê-lo”, e os
admiramos porque é uma maneira de acharmos a nós
mesmos. Porém, os justos são perseguidos porque são
diferentes. (levemos também principalmente em conta que
há poderes espirituais malignos operando contra os filhos de
Deus, e os demônios sabem reconhecer perfeitamente qual é
a diferença essencial entre uma pessoa justificada pela fé,
agora herdeira do céu, e aqueles que parecem justos aos olhos
dos homens e a seus próprios olhos, e que na verdade estão
ainda condenados ao inferno de fogo – nota do tradutor).
Por isso os fariseus e os escribas odiaram a nosso Senhor. Não
foi porque era bom, foi porque era diferente. Havia algo nele
que os condenava. Sentiam que sua justiça lhes fazia parecer
muito pouca coisa. E isto lhes desagradava. Os justos talvez,
não digam nada; não condenam os ímpios por palavras,
porém, ser o que são, de fato lhes condena, faz com que se
sintam infelizes. Por isso os ímpios odeiam os justos e
procuram encontrar faltas neles. O povo diz: “eu creio que se
seja cristão, porém isso é demasiado, é ir muito longe”. Esta
76
foi a explicação para a perseguição de Daniel. Sofreu tanto
porque era justo. Porém diziam: “Este homem nos condena
com o que faz; temos que apanhá-lo em alguma falta”.
Este é sempre o problema, e foi a explicação também no caso
de nosso Senhor. Os fariseus o odiavam por sua santidade,
justiça e verdade total e absoluta.
É óbvio, pois, que de tudo isso se pode sacar certas conclusões.
Em primeiro lugar, nos fala muito acerca de nossas ideias a
respeito da Pessoa de Jesus Cristo. Se nosso conceito dele é tal
que o vejamos como alguém a quem os não cristãos têm que
admirar e aplaudir, estamos equivocados. O efeito de Jesus
sobre seus contemporâneos foi que muito lhe apedrejaram,
lhe odiaram, e por fim decidiram matá-lo, preferindo a um
assassino em vez dele. Este é o efeito que Jesus sempre produz
no mundo. Porém há outras ideias acerca dele. Há pessoas
mundanas que nos dizem que admiram a Jesus, porém é
porque não o têm visto jamais. Se o tivessem visto, o odiariam
como o odiaram seus contemporâneos. Ele não muda; o
homem sim, muda. Tenhamos pois, cuidado de que nossas
ideias acerca de Cristo sejam tais que o homem natural não
lhe possa admirar ou aplaudir facilmente.
Isto conduz à segunda conclusão. Esta bem-aventurança põe
à prova nossas ideias acerca do que é o crente. O crente é
como seu Senhor, e por isso o Senhor disse dele: “Ai de vós
quando os homens falarem bem de vós! Porque assim fizeram
seus pais com os falsos profetas” (Lc 6.26). E contudo, não é
nossa ideia de que um crente perfeito é quem seja uma pessoa
amável, popular, que nunca ofende aos demais, com quem é
fácil de entender-se? Porém se esta bem-aventurança é
verdade, esse não é o verdadeiro crente, porque o cristão de
verdade é alguém ao qual nem todo mundo louva. Não
louvaram a nosso Senhor, e nunca louvarão a quem é como
ele.
A seguinte conclusão se refere ao homem natural, não
regenerado, e é esta. A mente natural, como diz Paulo, é
inimizade contra Deus. Ainda que fale de Deus, na realidade o
odeia. E quando o Filho de Deus veio à terra o odiaram e
crucificaram, e assim segue sendo a atitude do mundo em
relação a Ele.
77
Isto nos leva à última conclusão. O novo nascimento é uma
necessidade absoluta se alguém quer chegar a ser um crente.
Ser crente em última instância, é ser como Cristo, e ninguém
nunca pode ser como Cristo sem mudar completamente.
Devemos libertar-nos da velha natureza que odeia a Cristo e à
justiça; necessitamos de uma nova natureza que amará estas
coisas e que o amará, e com isto, chegará a ser como ele.
Finalmente, façamos a nós esta pergunta: Sabemos o que é ser
perseguido por causa da justiça? Para chegar a ser como
Cristo temos que chegar a ser luz; a luz sempre dissipa as
trevas, e por isso as trevas odeiam a luz. Não temos de ofender;
não temos de ser néscios; não temos de ser temerários; nem
sequer temos de exibir nossa fé. Não temos de fazer nada que
atraia perseguição. Porém, por ser simplesmente como Cristo
a perseguição será inevitável. Todavia, isto é o glorioso:
alegremo-nos disso, dizem Pedro e Tiago. E nosso Senhor
mesmo diz que somos bem-aventurados, felizes, se somos
assim. Porque se alguém é perseguido por causa de Cristo, por
causa da justiça, em certo sentido, tem conseguido uma prova
final do fato de que é um cristão, cidadão do reino dos céus.
Porque a vós, escreve Paulo, não somente é concedido que
creiais em Cristo, mas que padeçais por ele (Fp 1.29). E
contemplo esses primeiros cristãos aos quais as autoridades
perseguiram e lhes ouço darem graças a Deus porque por fim
lhes havia considerado dignos de sofrer por seu nome.
Queira Deus, por meio de seu Santo Espírito, dar-nos uma
grande sabedoria, discrição, conhecimento e compreensão
em tudo isto, a fim de que se tivermos que chegar a sofrer,
possamos estar seguros de que é por causa da justiça, e
possamos ter o consolo pleno desta gloriosa bemaventurança.
Alegria na Tribulação
Não há dúvida que Jesus sublinhou que o crente é diferente.
Ele mesmo disse, como recordam que: “Não penseis que vim
trazer paz à terra; não vim trazer paz à terra, mas espada” (Mt
10.34). Em outras palavras: “O efeito de meu ministério será
divisão, inclusive entre pai e filho, e mãe e filha, e os inimigos
do homem serão os da sua própria casa”. O evangelho de Jesus
78
Cristo cria uma divisão bem marcada entre o que é crente e o
que não é.
O próprio não crente o demonstra perseguindo o crente.
A forma como o persegue não importa; o fato é que seja na
forma que for, vai fazê-lo.
O não crente tem antagonismo ao crente. Por isso, como
vimos, a última bem-aventurança é uma pedra de toque muito
sutil e profunda do crente.
Há algo no caráter do crente, por ser semelhante a nosso
Senhor, que sempre atrai perseguição. Ninguém tem sido
perseguido neste mundo como foi o próprio Filho de Deus, e
o servo não é maior do que o seu senhor. Por isso tem o mesmo
destino.
O não crente tende a perseguir e a dizer toda classe de
mentiras contra o crente. Por que? Porque é basicamente
diferente, e o não crente o vê. O crente não é como os demais
somente com alguma mínima diferença, mas é
essencialmente diferente. Tem uma natureza diferente e é
um homem diferente.
(Esta diferença entre o crente e o não crente não é causada por
Deus, porque ele não faz acepção de pessoas, e é seu desejo
que todos se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade.
Não é, portanto, Deus, quem impede qualquer pessoa de vir a
Cristo para ser transformada por ele em um crente. É a
própria pessoa que se endurece e que resiste a se submeter ao
Senhor. Não reconhecendo, portanto, que o propósito da sua
criação por Deus foi para que o servisse e adorasse, em plena
comunhão com ele, baseada no amor. No entanto, como Deus
é luz e santo, não é possível ter tal comunhão com ele caso não
permitamos o trabalho da graça no nosso coração, lavandonos de nossos pecados e transformando-nos à semelhança de
Jesus, para que possamos ser reconciliados em amizade e
amor com o nosso Criador –nota do tradutor)
O segundo princípio é que a vida do crente é dominada por
Jesus Cristo, pela lealdade a Jesus, pela preocupação de tudo
fazer por Cristo.
Por que os perseguem?
Porque vivem por Cristo.
O objetivo de todo crente deveria ser viver por Cristo e já não
por si mesmo.
79
As pessoas andam em desacordo e se perseguem
mutuamente, inclusive quando não são crentes, porém, não é
por causa de Cristo.
Todavia, os crentes não devem se sentir ofendidos pelo que
lhes fazem. E devemos acrescentar algo a isto, porque estas
coisas são muito sutis.
Se conhecemos algo da psicologia de nossa alma e da vida
cristã – empregando o termo “psicologia” em seu sentido
verdadeiro e não no seu sentido moderno, pervertido –
devemos dar-nos conta de que há de se dar um passo além.
Nunca devemos deixar que a perseguição nos deprima. Não
que se sinta desprezo por quem nos persiga, mas podemos
dizer: “Por que deve ser assim? Por que me trata deste modo?”
Em consequência, um sentimento de depressão parece se
apoderar da vida espiritual e se tende a perder o rumo da vida
cristã. Isto é algo que nosso Senhor também censura. Ele diz
em forma positiva e clara: “Regozijai-vos. Alegrai-vos”.
Temos visto no estudo das bem-aventuranças que ninguém
pode fazer-se cristão com seus próprios esforços.
Alegrar-se pelas perseguições sofridas é completamente
impossível para o homem natural. Nem sequer pode dominar
o espírito de vingança.
Somente o crente pode fazê-lo, não por causa do seu próprio
poder, mas pela vida de Cristo que se manifesta nele.
O crente não se alegra pela perseguição propriamente dita. Ao
contrário, ela é algo pelo qual lamentar. A perseguição é algo
que o crente sempre deve lamentar, porque causa dores, em
razão de que homens e mulheres debaixo do domínio do
pecado e de Satanás, se conduzem de forma muito inumana e
maligna.
Por que então é ordenado pelo Senhor que o crente se alegre
na perseguição? A primeira razão, como já temos dito, é
porque a perseguição que é por causa de Cristo, prova de
quem é e para o que é. “Alegrai-vos porque grande é o vosso
galardão nos céus, porque assim perseguiram aos profetas
que foram antes de vós”.
Por isso, se veem que são perseguidos e que são ditas coisas
más de vocês, por causa de Cristo, saibam que são como os
profetas, que foram servos de Deus, e que agora estão se
regozijando na glória de Deus.
80
Este é o motivo porque temos que nos alegrar. Esta é uma das
formas em que nosso Senhor converte tudo em vitória. Em
certo sentido, faz inclusive com que o próprio diabo seja causa
de bênção. O diabo, por meio de seus agentes persegue o
crente e o faz infeliz. Porém se considerarmos isto numa
perspectiva adequada, encontramos razão para nos
alegrarmos. Então podemos dizer ao diabo: “graças a você,
está sendo demonstrado que sou filho de Deus, porque se não
fosse, nunca me perseguirias assim por causa de Cristo, e não
haveria em mim poder para me alegrar em meio a tais
perseguições.”
Logo após as bem-aventuranças Jesus disse que os crentes são
o sal da terra e a luz do mundo (v. 13 a 16). Para comentar este
tema, continuaremos transcrevendo adaptações de sermões
que traduzimos, de autoria de Lloyd Jones.
O Sal da Terra
“13 Vós sois o sal da terra; mas se o sal se tornar insípido, com
que se há de restaurar-lhe o sabor? para nada mais presta,
senão para ser lançado fora, e ser pisado pelos homens.
14 Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade
situada sobre um monte;
15 nem os que acendem uma candeia a colocam debaixo do
alqueire, mas no velador, e assim ilumina a todos que estão na
casa.
16 Assim resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que
vejam as vossas boas obras, e glorifiquem a vosso Pai, que está
nos céus.” (Mt 5.13-16)
Chegamos agora a uma nova seção do Sermão do Monte. Nos
versículos 3 a 12 de Mateus 5, nosso Senhor e Salvador tem
esboçado o caráter do cristão. Aqui no versículo 13 dá um
passo mais além e aplica sua descrição. Uma vez visto o que é
o crente, agora passamos a considerar como o crente deveria
manifestar o que é. Ou, se preferem, havendo dado conta do
que somos, agora devemos passar a considerar o que devemos
ser.
O crente não é alguém que viva isolado. Está no mundo,
embora não pertença a ele, e tem relação com o mundo.
81
Na Bíblia sempre se encontram as duas coisas juntas. É dito ao
crente que não deve ser do mundo nem em ideias, nem em
perspectiva, porém, isto nunca significa que se separe do
mundo. Esse foi o erro do monasticismo, o qual ensinava que
viver a vida cristã significava, necessariamente, separar-se da
sociedade e viver uma vida de contemplação.
Isto é negado constantemente na Escritura, sobretudo neste
versículo que temos começado a estudar, onde nosso Senhor
chega às conclusões do que havia dito anteriormente.
Notem que em I Pe 2, Pedro faz exatamente o mesmo. Diz:
“Mas vós sois a geração eleita, o sacerdócio real, a nação
santa, o povo adquirido, para que anuncieis as virtudes
daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa
luz;” (I Pe 2.9).
Em nossa passagem diz-se exatamente o mesmo. Somos
pobres de espírito, misericordiosos, mansos, temos fome e
sede de justiça, a fim de que, num sentido, possamos ser o sal
da terra. Passamos, pois, da contemplação do caráter do
crente à consideração da função e propósito do crente neste
mundo, segundo a mente e propósito de Deus.
Em outras palavras, nestes versículos que seguem
imediatamente, nos é explicado de forma muito clara a
relação do crente com o mundo em geral.
Em certo sentido podemos dizer que esta questão da função
do crente no mundo é hoje em dia um dos assuntos mais
prementes com o qual se enfrenta tanto a igreja como cada
um dos crentes dos nossos dias.
É claro que se trata de um tema muito vasto, e em muitos
aspectos aparentemente difícil, porém a Escritura trata do
mesmo com muita clareza.
No versículo que estamos estudando temos uma exposição
muito característica do ensino bíblico típico relativo ao
mesmo. Parece-me que é importante devido à situação do
mundo. Como vamos estudar os versículos 11 e 12, a muitos de
nós pode muito bem parecer que seja um problema mais
difícil.
Vemos aí que é provável que soframos perseguição, à medida
que o pecado que há no mundo, se estenda mais, e é provável
que a perseguição à igreja seja incrementada.
82
De fato, como sabem, há muitos crentes no mundo de hoje
que já estão passando por isso. Sejam quais forem, pois, as
circunstâncias nas que nos achemos, nos convém pensar
nisto com muito cuidado, a fim de que saibamos orar
adequadamente por nossos irmãos e ajudá-los com conselhos
e instruções.
À parte do fato da perseguição, contudo este problema é
premente, porque se nos apresenta no país nesta hora. Qual
deve ser a relação do crente com a sociedade e com o mundo?
Estamos no mundo, não podemos sair dele, porém o
problema vital é: que podemos fazer como crentes numa
situação como essa? Sem dúvida estamos diante de um
problema essencial, que devemos analisar.
Neste versículo temos a resposta ao mesmo. Antes de tudo,
consideremos o que diz o texto sobre o mundo, e logo o que
diz acerca do crente no mundo.
“Vós sois o sal da terra”. Isto não somente descreve o crente,
descreve indiretamente o mundo no qual se acha o crente.
Equivale neste lugar à humanidade em geral, aos que não são
crentes. Qual, pois, é a atitude bíblica diante do mundo? Não
há imprecisão nenhuma quanto ao ensino bíblico a este
respeito.
Chegamos, de muitas maneiras, ao problema crucial do
século vinte, que é indubitavelmente um dos períodos mais
interessantes que o mundo tem conhecido. Não duvido em
afirmar que nunca houve um século que tenha demonstrado
tão bem como é atual a verdade do ensino bíblico. É um século
trágico, e o é sobretudo porque a vida do mesmo tem
destruído completamente a filosofia preferida que havia
idealizado.
Como sabem, nunca houve um período do qual se houvesse
esperado tanto. É realmente patético ler os prognósticos dos
pensadores (assim chamados), filósofos, poetas e líderes até
finais do século dezenove. Quão triste é ver este otimismo,
fácil e confiante que tiveram, tudo o que esperavam do século
vinte, a época dourada que iria chegar. Tudo se baseava na
teoria da evolução, não somente no sentido biológico, como
também no filosófico. A ideia principal era que toda a vida
progrediria, se desenvolveria, avançaria. Isto nos era dito num
83
sentido biológico; o homem havia procedido do animal e havia
chegado a uma certa fase de desenvolvimento.
Porém, este progresso era enfatizado mais em função da
ideologia, do modo de pensar e perspectivas do homem. Não
iria mais fazer guerras, muitas enfermidades seriam
vencidas, o sofrimento iria não somente diminuir, senão
desaparecer. Iria ser um século surpreendente. A maior parte
dos problemas seria resolvida, porque o homem havia
finalmente começado a pensar.
As massas, por meio da educação, não iriam mais se entregar
à embriaguez e ao vício. E como as nações iriam aprender a
pensar e a se reunir para conversar em vez de começar a
guerrear, todo o mundo iria se converter rapidamente num
paraíso.
Não estou caricaturando a situação, porque se cria em tudo
isto com muita confiança. Por meio de leis parlamentares e
reuniões internacionais iriam resolver todos os problemas,
agora que o homem havia começado finalmente a usar a
cabeça.
Não muitos dos que vivem no mundo de hoje, porém, creem
nisto. Alguma vez ou outra, contudo, aparece algum elemento
deste ensino, mas já não é algo sobre o que haja para se
discutir.
Recordo que faz muitos anos quando comecei a pregar, que
dizia isto mesmo em público, e frequentemente me tinham
por uma pessoa rara, por ser pessimista, por ser alguém que
seguia uma teologia que havia saído de moda. Porque o
otimismo liberal prevalecia naquela ocasião, apesar da
primeira guerra mundial, todavia já não é assim. Se tem
reconhecido a falácia desse modo de pensar e aparecem livros
que atacam toda essa ideia confiante do progresso inevitável.
A Bíblia sempre tem ensinado isto, e nosso Senhor o diz com
perfeição quando afirma: “vós sois o sal da terra”. Que implica
isto? Implica com clareza a corrupção da terra, implica uma
tendência à contaminação a se converter em algo fétido e
podre. É isto o que a Bíblia diz acerca do mundo. É um mundo
caído, pecaminoso e mal. Tende ao mal e às guerras. É como a
carne que tem tendência a se decompor. É algo que somente
se pode conservar em bom estado com a ajuda de algum
preservativo ou antisséptico.
84
Como consequência do pecado e da queda, a vida no mundo
em geral tende a se decompor. Essa, segundo a Bíblia, é a
única ideia adequada que se pode ter da humanidade. Longe
de haver na vida e no mundo uma tendência a ascender, o que
se dá é o oposto. O mundo, por si mesmo, tende a se infectar.
Há nele germes do mal, micróbios, agentes infecciosos no
próprio corpo dos homens que a não ser que sejam
controlados, causam enfermidades. Isto é algo obviamente
básico e primordial. Nossa ideia do futuro depende disso. Se
alguém tem isto diante de si, então entenderá muito bem o
que tem sucedido neste século. Num sentido, portanto,
nenhum crente deveria se sentir surpreendido o mínimo que
seja pelo que vem ocorrendo. Se essa posição bíblica é
acertada, então o surpreendente é que o mundo seja todavia
bom, porque em sua vida e natureza mesmas há tendência à
putrefação.
A Bíblia contém muitas ilustrações disso. sua manifestação
aparece já no primeiro livro. Deus havia feito o mundo
perfeito, porém devido ao pecado, este elemento pecaminoso
e contaminador começou a se fazer ver. Leiam o capítulo sexto
de Gênesis e verão o que Deus diz: “Não contenderá o meu
Espírito com o homem para sempre”. A contaminação havia
chegado a ser tão grande, que Deus teve que enviar o dilúvio.
Depois dele pôde começar de novo, porém este princípio mau
seguiu se manifestando até chegar a Sodoma e Gomorra com
seus incríveis pecados. Isto é o que a Bíblia nos apresenta sem
cessar. Esta tendência persistente à putrefação sempre se
manifesta.
É evidente, pois, que este fato deve dirigir nosso pensamento
e nossas previsões relativas à vida neste mundo, e relativas ao
futuro. O que muitos se perguntam hoje é: Que nos espera? Se
não colocamos este ensino bíblico no centro do nosso
pensamento, nossas profecias serão necessariamente falsas.
O mundo é mau, pecador e mostrar-nos otimistas em relação
ao mesmo não é somente totalmente antibíblico senão que vai
contra tudo o que a própria história nos ensina.
Passamos contudo, ao segundo aspecto desta afirmação
porque ela é mais importante. Que se diz ao crente que está no
mundo, ao tipo de mundo a que temos nos referido? Se diz que
tem que ser como sal “vós, somente vós” – porque isto exige o
85
texto – “sois o sal da terra”. Que nos diz isto? Primeiro é o que
temos recordado ao estudar as bem-aventuranças. Somos
distintos do mundo. Não faz falta insistir nisto, porque é
perfeitamente óbvio. O sal é essencialmente diferente daquilo
em que é colocado, e num sentido exercita todas suas
qualidades sendo diferente. Como diz nosso Senhor – “se o sal
perder o seu sabor, com que se salgará? Não serve mais para
nada, senão para ser lançado fora e pisado pelos homens”.
A característica mesma da condição do sal indica uma
diferença, porque um pouquinho de sal é percebido
imediatamente, mesmo numa grande massa. A não ser que
tenhamos uma ideia clara acerca disto, nem sequer podemos
começar a pensar acertadamente sobre o que seja a vida
cristã. O crente é diferente dos demais. É tão diferente como o
é o sal da carne na qual ele é colocado. Esta diferença externa
todavia tem que ser enfatizada e sublinhada.
O crente não somente tem que ser diferente, tem que se
gloriar nesta diferença. Tem de ser tão diferente dos demais
como o Senhor Jesus Cristo foi no mundo em que viveu em
seu ministério terreno. O crente é uma classe distinta, única,
notável de pessoas, tem de haver nele algo que o distinga, e
que se reconheça óbvia e claramente. Que cada um, pois, se
examine.
Porém, continuemos a considerar mais diretamente a função
do crente. Nisto o problema se apresenta um pouco mais
difícil e frequentemente discutível. Parece-me que a primeira
coisa que o Senhor sublinha é que uma das funções principais
do crente em relação à sociedade é negativa. Qual é a função
do sal? Alguns dirão que é dar saúde, que dá vida e saúde,
porém me parece que isto é uma ideia muito equivocada da
função do sal. sua missão não é dar saúde, é impedir a
putrefação.
A função principal do sal é preservar e atuar como
antisséptico. Tomemos, por exemplo um pedaço de carne. Há
certos germes em sua superfície que talvez tenham penetrado
na mesma, vindos do próprio animal ou da atmosfera, e corre
o perigo de apodrecer. A função do sal com o qual se cobre a
carne é preservá-la contra estes agentes que tende a
apodrecê-la. A função principal do sal, portanto, é negativa e
não positiva. Este postulado é fundamental. Não é a única
86
função do crente no mundo, porque, como veremos adiante,
também temos de ser a luz do mundo, porém, em primeiro
lugar isto tem de ser nosso efeito como crentes.
Pergunto-me: Quantas vezes pensamos sobre nós desta
forma, como agentes do mundo com a função de prevenir este
processo concreto de putrefação e decomposição?
Outra função subsidiária do sal é dar sabor, ou impedir que os
alimentos sejam insípidos. Esta é sem dúvida outra função do
sal (se adequada ou não, não me compete discuti-la) e é muito
interessante observá-la. Segundo esta afirmação, portanto, a
vida sem o cristianismo é insípida. Não prova isto o mundo de
hoje? Observemos a obsessão com prazeres. É evidente que a
pessoa acha a vida monótona e aborrecida, de maneira que
deve ir passando de um prazer a outro, porém o crente não
necessita destes passatempos porque tem um sabor na vida –
sua fé cristã. Se isto lhe falta, é porque o seu sal está perdendo
o sabor, por sua negligência quanto à sua santificação e
devoção ao Senhor, que é Aquele que salga a nós mesmos.
Tiremos o cristianismo da vida e do mundo, e no que a vida tão
insípida se converte, sobretudo quando alguém envelhece ou
se encontra no leito de morte? Carece completamente de
gosto, por isso os homens têm de se drogar de diferentes
maneiras, ou com narcóticos, ou com música, ou com
qualquer outra coisa deste mundo.
O crente, pois, primeiramente e sobretudo, deveria ter essa
função, porém como consegui-la? Aqui encontramos a
resposta. Vou apresentá-la primeiro no que considero como
ensino positivo do Novo Testamento. Depois poderemos
examinar certas críticas. Neste caso, creio que a distinção vital
é entre a igreja como tal e o crente individual. Alguns dizem
que os crentes deveriam atuar como sal da terra, por meio de
pronunciamentos da Igreja quanto à situação geral do mundo
relativamente a problemas políticos, econômicos e
internacionais ou outros semelhantes. Dizem que o crente
funciona como sal da terra nesta forma geral, por meio destes
comentários acerca da situação do mundo.
Agora, a meu juízo, esta é uma interpretação errônea do
ensino bíblico. Desafiaria a qualquer um que me mostre este
ensino no Novo Testamento. “Ah, dizem, encontra-se nos
profetas do Antigo Testamento”. Sim, porém a resposta é que
87
no Antigo Testamento a Igreja era a nação de Israel e não
havia distinção entre Igreja e Estado. Os profetas teriam,
portanto, que se dirigir à nação toda e falar acerca de toda a
sua vida, porém a Igreja no Novo Testamento não está
identificada com nenhuma nação nem nações. A
consequência é que nunca se encontra o apóstolo Paulo ou
nenhum outro apóstolo que faça comentários acerca do
governo do Império Romano; nunca os encontramos
enviando resoluções à Corte imperial para que se fizesse isso
ou aquilo. Não, nunca se encontra isto na Igreja, tal como
aparece no Novo Testamento.
Sugiro, portanto, que o crente tenha de funcionar como o sal
da terra num sentido muito mais individual. Ele o faz com sua
vida e conduta individual, sendo o que é em todos os âmbitos
nos quais se encontre. Por exemplo, um grupo de pessoas
talvez esteja falando de uma forma indigna. De repente um
crente entra a formar parte do grupo e imediatamente sua
presença produz efeito. Não diz uma palavra, porém os demais
começam a mudar a forma de falar. Está atuando como sal e
está controlando a tendência da putrefação e decomposição.
Somente por ser crente, devido à sua vida e conduta geral já
está controlando esse mal que estava se manifestando, como
faz em todos os âmbitos e situações. Pode fazê-lo, não somente
em sua condição privada em sua casa, no trabalho, na oficina,
ou em qualquer lugar em que se encontre, senão também
como cidadão no país em que vive. Aí se torna importante a
diferença, porque nesta matéria tendemos a ir de um erro a
outro. Alguns dizem: “Sim, tem toda a razão, não compete à
Igreja como tal intervir em assuntos políticos, econômicos ou
sociais. O crente não tenderia a se ocupar para nenhum destes
assuntos, o crente não deve votar, não tem por que intervir no
controle dos negócios e da sociedade”. Isto, segundo creio, é
igualmente falacioso, porque o crente como indivíduo, como
cidadão de um estado, tem de se preocupar com estas coisas.
Pensem em grandes homens, como o Lord Shaftesbury e
outros, os quais como cristãos e cidadãos, trabalharam tanto
em relação à melhoria das leis e das condições do trabalho nas
fábricas. Pensem em William Wilberforce e em todos os que
se empenharam na abolição da escravatura. Como cristãos,
somos cidadãos de um país e temos responsabilidade como
88
tal, e por isso devemos atuar como sal indiretamente em
muitos aspectos, porém isto é muito diferente de que a Igreja
o faça.
Alguém poderia perguntar: “Por que faz esta distinção?”.
Quero responder esta pergunta. A missão principal da igreja é
evangelizar e pregar o evangelho. Pensemos nisto. Se a Igreja
cristã de hoje passasse a maior parte do tempo acusando o
comunismo, parece-me que a consequência principal seria
que os comunistas não escutariam a pregação do evangelho.
Se a Igreja sempre acusa uma parte da sociedade, estará
fechando a porta da evangelização a esta parte. Se pegarmos a
ideia que tem o Novo Testamento destes assuntos devemos
crer que o comunista tem alma que deve ser salva igual a todo
mundo. É minha missão, como pregador do evangelho e
representante da Igreja, evangelizar aos homens de todas as
classes e condições.
Quando a Igreja começa a intervir em assuntos políticos,
econômicos e sociais, se põem obstáculos à tarefa
evangelística que Deus lhe tem designado. Já não poderia
dizer que não conheço a ninguém segundo à carne, e por isso
pecaria. Que cada indivíduo desempenhe seu papel como
cidadão e permaneça no partido político que escolher. Isto
terá que decidir como indivíduo. A Igreja como tal não tem de
se preocupar com essas coisas. Nossa missão é pregar o
evangelho e levar a mensagem de salvação a todos, e, graças a
Deus, os comunistas podem se converter e serem salvos. A
Igreja tem que se preocupar com o pecado em todas as suas
manifestações, e o pecado pode ser tão terrível num
capitalista como num comunista, num rico como num pobre,
pode se manifestar em todas as classes sociais, em todos os
tipos e grupos.
Outra forma em que funciona este princípio pode ser vista no
fato que, depois de cada avivamento e reforma na Igreja, toda
a sociedade tem recolhido os benefícios. Leiam o relato dos
grandes avivamentos e o verão. Por exemplo, no avivamento
que ocorreu sob Richard Baxter em Kiderminster, na
Inglaterra, no século XVII, não somente os crentes se
avivaram, senão muitos que não eram crentes se
converteram e entraram na Igreja. Além disso, toda a vida da
cidade sentiu os efeitos; e o mal, o pecado e o vício se
89
reduziram. Isto ocorreu porque a Igreja censurou estas coisas,
não porque a Igreja persuadiu o Governo para que
promulgasse leis, senão pela simples influência dos crentes.
Assim tem sido sempre. Sucedeu o mesmo nos séculos XVII e
XVIII e no começo do século XX no avivamento que ocorreu
em 1904-5. Os crentes, sendo o que devem ser, influenciam a
sociedade de forma quase automática.
Prova disto se encontra na Bíblia e também na história da
Igreja. No Antigo Testamento, depois de cada reforma e
avivamento houve benefícios gerais para a sociedade.
Recordemos também a Reforma Protestante e veremos
imediatamente que afetou a vida em geral. O mesmo é
verdade quanto à Reforma Puritana. Não me refiro às leis do
Parlamento que os Puritanos conseguiram promulgar, senão
à sua forma geral de vida. Historiadores competentes estão de
acordo em dizer que o que salvou este país de uma revolução
como a que sofreu a França em fins do século XVIII não foi
senão o avivamento evangélico. E isto ocorreu não porque
fizera algo diretamente, senão porque massas de indivíduos
haviam se tornado cristãos e viveram esta vida melhor com
uma perspectiva mais elevada. Toda a situação política
percebeu os efeitos, e as grandes leis que se promulgaram no
século passado se deveram sobretudo ao fato de que havia
muitos cristãos no país.
Finalmente, não é por acaso o presente estado da sociedade e
do mundo uma prova perfeita deste princípio? Creio que é
certo que nos últimos cinquenta anos a Igreja Cristã tem
prestado mais atenção direta a assuntos políticos,
econômicos e sociais que nos cem anos anteriores. Todos
temos ouvido falar do significado social do cristianismo. As
Assembleias Gerais de Igrejas e de distintas denominações
têm enviado aos governos pronunciamentos e resoluções.
Todos nos temos interessado muito pela aplicação prática,
porém qual é o resultado? Ninguém pode discuti-lo. O
resultado é que estamos vivendo numa sociedade que é muito
mais imoral que há cinquenta anos, em que cada dia vão
aumentando o vício e a violação da lei. Não está claro que
ninguém pode fazer estas coisas senão na forma bíblica?
Embora tentemos consegui-las diretamente através da
aplicação de princípios, descobrimos que não podemos
90
alcançá-lo. O problema principal é que há poucos crentes, e os
que são crentes não são suficientemente salgados. Com isto
não quero dizer “agressivos”, quero dizer crentes no sentido
genuíno. Devo admitir também que não se pode dizer de nós
que quando entramos numa casa, os ali presentes mudam
logo em seguida na forma de falar e conversar, precisamente
porque temos chegado. Aí é onde fracassamos
lamentavelmente. Um só homem verdadeiramente santo
irradia esta influência, o grupo em que se encontra sentirá
sua influência e presença. O problema é que o sal se tem
tornado insípido em tantos casos; e não influímos os demais
sendo santos na forma que deveríamos. Embora a Igreja faça
grandes pronunciamentos acerca da guerra, da política e de
outros temas importantes, o homem comum não se sente
afetado; porém se temos num tribunal a quem seja um cristão
verdadeiro cuja vida tenha sido transformada pela ação do
Espírito Santo, este alguém afetará aos que o rodeiam.
Assim, podemos atuar como sal da terra em tempos como os
nossos. Não é algo que possa fazer a Igreja em geral, é algo que
deve ser feito por cada crente individualmente. É o princípio
de infiltração celular. Um pouco de sal produz efeito na
grande massa devido à sua qualidade essencial que de uma
forma ou outra penetra tudo. Parece-me que este é o grande
chamamento que nos fazem tempos como estes.
Contemplemos a vida e a sociedade neste mundo. Não é
evidente que esteja corrompida? Contemplemos a
decomposição que se tem apoderado de todas as classes de
pessoas. Contemplemos tantos divórcios e separações, tantas
chacotas que fazem com o que é mais santo na vida, esse
aumento da embriaguez e desperdício. Estes são os
problemas, e é evidente que não se pode solucionar por meio
de leis. Os periódicos não parecem nem tocar nisso. De fato
nada o resolverá, salvo a presença de um número cada vez
maior de crentes que controlem a putrefação, a
contaminação, a decomposição, o mal e o vício. Cada um de
nós em nosso círculo, pode controlar este processo, e assim,
toda a massa se preservará.
Que Deus nos dê graça para examinarmos à luz desta ideia tão
sincera. A grande esperança da sociedade de hoje está no
número cada vez maior de cristãos. Crentes genuínos e que
91
vivam a genuína vida cristã. Que a Igreja de Deus se dedique a
isso e não a gastar energias e tempo em assuntos que não lhe
competem. Que cada cristão se assegure de que possui esta
qualidade essencial de ser sal, de que por ser o que é, constitui
um controle ou antisséptico na sociedade, impedindo-lhe que
se corrompa, e que volte, talvez, a uma época de trevas.
Antes do avivamento Metodista, a vida em Londres, como se
pode ver nos livros que se escreveram desde então, era quase
incrível como havia tanta embriaguez, vícios e imoralidades.
Não corremos o perigo de retornar a isto? Acaso nossa
geração não está em decadência de uma forma visível? Somos
vocês e eu e outros como nós, crentes, os únicos que podemos
impedi-lo. Que Deus nos dê a graça de fazê-lo.
Suscita em nós o dom, Senhor, e faça-nos tais que sejamos
realmente como o Filho de Deus e influenciemos todos os que
entrem em contato conosco.
Que Vossa Luz Brilhe
Logo após ter concluído o discurso sobre as bemaventuranças em Mt 5.1-12, Jesus afirmou imediatamente em
seguida que o crente é o sal da terra (v. 13) e a luz do mundo
(v.14), e ao desdobrar o significado de ser o crente tal luz do
mundo ele disse o seguinte em Mt 5.14b-16: “não se pode
esconder uma cidade edificada sobre um monte; nem se
acende a candeia e se coloca debaixo do alqueire, mas no
velador, e dá luz a todos que estão na casa. Assim resplandeça
a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas
obras e glorifiquem a vosso Pai, que está nos céus.”
Jesus queria que todos os crentes, de todas as épocas, vissem
com clareza que nós somos o que ele nos tem feito a fim de
que façamos algo. Este é o tema que se encontra ao longo de
toda a Bíblia.
Isto se vê muito bem na afirmação do apóstolo Pedro:
“Mas vós sois a geração eleita, o sacerdócio real, a nação
santa, o povo adquirido, para que anuncieis as virtudes
daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa
luz;” (I Pe 2.9).
Este é o tema, em certo sentido, de todas as cartas do Novo
Testamento, o qual nos demonstra uma vez mais que é tolo
92
considerar o Sermão do Monte como destinado tão somente
a alguns crentes que viverão numa época ou dispensação
futura. A Igreja não deve aceitar o ensino que a santidade é
algo para ser vivido somente no porvir mas é essencialmente
necessário que o crente cumpra o propósito de Deus de que
viva como sal e luz neste mundo, porque o ensino dos
apóstolos, como vimos em nosso estudo, na introdução geral
ao Sermão do Monte, não é somente uma elaboração do que
temos aqui.
Suas cartas nos dão muitos exemplos de como se põe em
prática isto que estamos estudando.
Em Filipenses 2.15,16, o apóstolo Paulo descreve os crentes
como luzeiros no mundo, e lhes exorta por isso a reterem a
Palavra da vida.
Ele emprega constantemente a comparação da luz com as
trevas para mostrar como o crente atua na sociedade, por ser
cristão.
Nosso Senhor parece muito desejoso de deixar isto bem
impresso em nós. Temos que ser o sal da terra. Muito bem,
porém recordemos: se o sal perde o sabor, com que será
salgada? Não serve mais para nada senão para ser lançado fora
e pisado pelos homens.
Somos a luz do mundo. Contudo, recordemos que não se pode
esconder uma cidade edificada sobre um monte. Nem se
acende uma luz para ser colocada debaixo de um cesto, mas
sim num candelabro, e assim ilumina todos os que estão na
casa. Logo temos esta exortação final que sintetiza tudo:
“Assim resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que
vejam as vossas boas obras, e glorifiquem a vosso Pai, que está
nos céus.” (Mt 5.16).
Em razão da forma como Jesus põe isto em relevo torna-se
óbvio que devemos examiná-lo. Não basta somente recordar
que temos de atuar como sal na terra ou como luz no mundo.
Devemos compreender também o fato de que isto deve se
converter no mais importante da vida, pelas razões que vamos
estudar. Talvez a melhor maneira de fazê-lo é apresentá-lo em
forma de afirmações ou proposições sucessivas.
O que deve primeiro ser examinado é a razão do nosso dever
de sermos sal e luz como cristãos, e por que devemos desejar
sê-lo.
93
Parece-me que nosso Senhor apresenta três razões básicas.
A primeira é que, por definição, temos que ser assim.
As comparações que emprega sugerem esse ensino.
O sal é para salgar, nada mais.
A luz tem como função e propósito iluminar.
Devemos começar por aí e darmo-nos conta de que estas
coisas são evidentes por si mesmas e não necessitam de
ilustração.
Porém, quando dizemos isto, não tende a agir como uma
forma de reprovação para nós?
Somos muito propensos a esquecer estas funções essenciais
do sal e da luz.
À medida que avançarmos na exposição, creio que
concordarão que necessitamos que isto nos seja recordado
constantemente.
A lâmpada, como diz nosso Senhor, é suspensa e fixada para
que ilumine a casa.
O propósito é que a luz se difunda no ambiente.
Esta, portanto, é nossa primeira afirmação. Temos que darnos conta do que é o cristão, por definição, e esta é a definição
que nosso Senhor nos deu acerca do que ele é.
Portanto, desde o começo, quando partimos para descrever o
crente a nosso modo, esta definição nunca deve incluir
menos que isso. O essencial nele é isto: “sal e luz”.
Porém passemos à segunda razão. Parece-me que é a de que
nossa posição não é somente contraditória senão ridícula se
não atuamos assim.
Temos que ser como uma cidade edificada sobre um monte. E
uma cidade edificada sobre um monte não pode ser
escondida. Noutras palavras, se somos verdadeiros crentes
isto não pode ser escondido. Ou dito ainda de outra maneira,
o contraste entre nós e os demais tem que ser totalmente
evidente e perfeitamente óbvio.
Porém, nosso Senhor não se deteve aí, e foi mais além. Pedenos, que imaginemos alguém que acende uma luz e
imediatamente a coloca debaixo de um cesto em vez de
colocá-la num candelabro.
Certos comentaristas antigos têm dedicado muito tempo para
definir o que seja alqueire, às vezes com resultados curiosos.
94
Mas a mim, me parece que o importante é saber que se oculta
a luz, e não importa muito o modo de se fazer isto.
O que nosso Senhor diz é, que isto é um procedimento ridículo
e contraditório. O propósito de acender uma luz é para que
ilumine. E todos estaremos de acordo que é totalmente
ridículo que alguém a cubra com algo que lhe impeça de
alcançar este propósito.
Sim, mas recordemos o que nosso Senhor está falando acerca
de nós, como crentes. Existe o perigo, ou pelo menos a
tentação, de que o crente se comporte dessa forma ridícula e
vã, e por isso isto é sublinhado deste modo.
Parece dizer “não se escondam deliberadamente”, “não
ocultem a luz que vocês são”, “porque devem ser como a
cidade edificada num monte, que não pode ser ocultada.
Como podem então ocultar esta luz deliberadamente?”
Passemos à última fase de sua argumentação. Fazer isto,
segundo nosso Senhor, é nos tornarmos totalmente inúteis.
Isto é chocante, e não cabe dúvida de que emprega estas duas
comparações para ressaltar este ponto concreto. O sal sem
sabor para nada serve, tanto como uma luz que foi acesa e
acabou sendo ocultada. E isto se aplica a tudo o mais.
Tomemos as flores, por exemplo, quando estão vivas são
muito formosas e perfumadas, porém quando morrem não se
tornam completamente inúteis? Por isso são jogadas fora ou
podem ser usadas como esterco. Assim ocorre com muitas
outras coisas. Elas se tornam inúteis quando sua função
principal já não se realiza.
Todavia, servem para alguma outra função secundária.
Porém o extraordinário no caso do sal é que enquanto deixa
de salgar não serve para mais nada. Torna-se até difícil saber
o que se possa fazer com ele nesta condição imprestável,
porque não serve sequer para adubo. Deixa de ter qualquer
função, e por isso é lançado fora.
O mesmo ocorre com a luz. sua característica essencial é
iluminar e não tem realmente nenhuma outra função. sua
qualidade essencial é sua única qualidade, e uma vez que a
perde, torna-se completamente inútil.
Segundo a argumentação de nosso Senhor, isto é o que há
para se dizer do crente. E isto é de uma lógica inevitável,
95
porque não há nada no universo de Deus que seja mais inútil
do que um crente puramente de aparência.
O apóstolo Paulo descreve isto quando fala de certas pessoas
que teriam aparência de piedade, porém negavam a eficácia
dela. Parecem cristãos porém não são. Desejam apresentar-se
como cristãos, porém não agem como tais. São sal sem sabor,
luz sem lume, se é possível se imaginar algo assim. Talvez seja
possível quando pensamos na ilustração da luz escondida
debaixo do cesto. Quando pensamos na experiência de
observação de alguém específico, vemos o quanto isto é uma
pura verdade.
O crente nominal sabe bastante do cristianismo, para que o
mundo lhe considere incômodo, porém não sabe o suficiente
para ser útil para o mundo.
Não está de acordo com o mundo porque sabe o suficiente
para temer certas coisas, e os que vivem como mundanos
sabem que ele deseja ser diferente e que não pode ser como
aqueles que são do mundo.
Por outro lado, não tem uma verdadeira comunhão com os
crentes. Possui um “cristianismo” suficiente para fazer com
que os demais se percam, porque ninguém se converterá com
o seu testemunho e ensino, porém não o suficiente para
torná-los felizes, para dar-lhes paz, alegria e abundância de
vida.
Parece-me que essas pessoas são as mais infelizes do mundo.
Não atuam nem como mundanas, nem como cristãs. Não são
nada, nem sal nem luz, nem uma coisa nem outra. E de fato,
vivem como párias, párias, por assim dizer, do mundo e da
Igreja. Não querem considerar-se como sendo do mundo,
enquanto que por outro lado, não participam da plena vida da
Igreja. Assim o sentem eles próprios e os demais. Sempre há
essa barreira. São párias. Ou são mais do que isso, em certo
sentido, porque o que é completamente mundano não
pretende coisa alguma, porque pelo menos tem o seu grupo.
Estas são pois, as pessoas mais trágicas e patéticas, e a
advertência solene que temos neste versículo é a advertência
de nosso Senhor contra os que vivem neste estado e condição.
As parábolas de Mateus 25 referendam isto, nelas se nos diz
da exclusão definitiva de tais pessoas, como sal que se lança
fora.
96
Para sua surpresa virão a achar-se do lado de fora da porta,
pisoteados pelos homens. A história demonstra isto. Tem
havido certas Igrejas que, havendo perdido o sabor, ou
havendo deixado de irradiar a luz verdadeira, têm sido
pisoteadas. Houve noutro tempo uma Igreja muito vigorosa
na África do Norte, que produziu muitos crentes santos,
inclusive o grande Santo Agostinho. Porém perdeu o sabor e a
verdadeira luz, e por isso foi pisoteada e deixou de existir. O
mesmo tem sucedido noutros países. Que Deus nos dê graça
para ter em conta esta solene advertência. A profissão
puramente superficial do cristianismo virá a acabar assim.
Talvez o possamos resumir assim. O crente verdadeiro não
pode ser ocultado, não pode passar despercebido. O que vive e
atua como verdadeiro crente se destacará. Será como o sal,
será como uma cidade situada sobre um monte, como
candeia posta num candeeiro.
Porém podemos acrescentar algo. O verdadeiro crente não
deseja ocultar esta luz. Vê o ridículo que é pretender ser
crente e apesar disso tentar ocultá-lo. O que entende o
significado de ser cristão, o que entende o que a graça de Deus
tem significado para ele, e compreende o que, em última
instância, Deus tem feito a fim de que influencie outros, não
pode ser ocultado. Não somente isto, não deseja ocultá-lo,
porque pensa assim: “o último fim e objetivo de tudo isso é
que aja dessa maneira”.
Estas comparações e ilustrações, têm, pois, como fim,
segundo a intenção de nosso Senhor, mostrar-nos que
qualquer desejo que achemos em nós de ocultar o fato de que
somos crentes, não somente tem que ser considerado como
ridículo e contraditório, e caso, o aceitemos e persistamos
nisso, podemos ser conduzidos a uma exclusão final.
Assim, se vemos em nós uma tendência a esconder a nossa
luz, devemos começar a nos examinar e a tratar de nos
assegurar de que é realmente “luz”, porque a luz que o Senhor
conduz ao cumprimento de sua função não pode ser ocultada,
senão revelada.
É um fato que o sal e a luz querem manifestar a sua qualidade
essencial, de modo que se há algo de incerteza quanto a isso,
devemos nos examinar para descobrir a causa desta posição
ilógica e contraditória. Ou para dizê-lo de uma forma mais
97
simples. Da próxima vez que me encontrar com essa
tendência de encobrir o fato de que sou crente, talvez com o
fim de congraçar-me com alguém ou de evitar perseguições,
tenho que pensar no que acende a luz e a oculta debaixo do
cesto. Pois enquanto vejo o ridículo que há nisto,
reconhecerei que a mão sutil que me oferecia este cesto para
esconder a minha luz era a mão do diabo. Portanto a
rechaçarei, e a luz brilhará com mais esplendor.
Esta é a primeira afirmação.
Passemos agora à segunda, a qual é muito prática.
Como podemos nos assegurar de que atuamos realmente
como sal e luz?
Num sentido ambas ilustrações o indicam, porém a segunda
é talvez mais simples que a primeira.
Os comentaristas têm se interessado muito por isto e dão o
exemplo de um homem que uma vez, estando de viagem,
encontrou um tipo de sal que havia perdido o sabor. Quão
néscios nos tornamos ao começar a estudar a Bíblia em
função de palavras e não de doutrina! E uma vez aprendida a
doutrina não praticá-la, de modo que isto seja visto em
testemunho pelas demais pessoas. Não faz nenhuma falta ir ao
Oriente para encontrar sal sem sabor, o único propósito de
nosso Senhor foi o de mostrar o ridículo de toda esta ação.
A segunda ilustração é mais concreta. A lâmpada necessita
somente de duas coisas – azeite e pavio, as quais sempre estão
juntas.
Claro que há pessoas que às vezes falam do azeite somente,
enquanto outras somente mencionam o pavio.
Porém, sem azeite e pavio nunca teremos luz. Ambas são
absolutamente essenciais, e por isso temos que prestar
atenção a ambas.
A parábola das dez virgens nos ajuda a lembrar disso. O azeite
é totalmente essencial e vital, nada podemos fazer sem ele, e
as bem-aventuranças tratam precisamente de sublinhar este
fato.
Temos que receber esta vida, esta vida divina. Não podemos
atuar como luz sem ela. Somos somente a luz do mundo
enquanto o que é a luz do mundo atua em nós e por meio de
nós, a saber nosso Senhor mesmo.
98
A primeira coisa pois, que devemos nos perguntar é: Tenho
recebido esta vida divina? Sei que Cristo mora em mim? Paulo
intercedia em favor dos efésios para que Cristo morasse em
seus corações com abundância, pela fé, a fim de que
pudessem ser enchidos de toda a plenitude de Deus. Toda a
doutrina referente à ação do Espírito Santo consiste
essencialmente nisto. Não consiste em se outorgar dons
particulares, tais como o de línguas ou alguma das outras
coisas pelas quais o povo tanto se interessa. seu propósito é
dar vida e as graças do Espírito, o qual é o caminho mais
excelente. Estou seguro de que tenho o azeite, a vida, que
somente o Espírito de Deus pode me dar?
A primeira exortação, pois, deve ser que o busquemos sem
cessar. Isto significa, desde já, oração, que é a ação para
recebê-lo.
Frequentemente costumamos pensar que estes convites
benévolos de nosso Senhor são algo que se dá uma vez para
sempre. Diz, “vinde a mim” se quereis a água da vida, “vinde a
mim” se quereis o pão da vida. Porém tendemos a pensar que
uma vez que temos ido a Jesus já temos para sempre esta
provisão. Não é assim. É uma provisão que temos que renovar,
que temos que ir buscar constantemente. Temos que viver em
contato com Ele, porque somente quando recebemos sem
cessar esta vida podemos atuar como sal e luz.
Porém, desde já, não somente significa oração constante,
significa o que nosso Senhor mesmo descreve como “fome e
sede de justiça”. Isto é interpretado no sentido de algo que
nunca se interrompe. Somos saciados, sim, porém sempre
desejamos mais. Nunca permanecemos parados, nunca
descansamos nos galardões e dizemos: “recebemos de uma
vez por todas”. Nunca. Seguimos tendo fome e sede, seguimos
dando-nos conta da necessidade perene que temos dele e
desta provisão de vida e de tudo o que nos possa dar. Por isso
seguimos lendo a Palavra de Deus para que possamos
aprender muito acerca dele e da vida que nos oferece.
A provisão de azeite é essencial. Leiam as biografias daqueles
que obviamente têm sido como cidades situadas sobre um
monte que não se podem ocultar. Verão que não
dizem: “Tenho ido a Cristo de uma vez por todas, e esta é a
experiência culminante da vida que durará para sempre”. De
99
modo nenhum, eles nos dizem que sentiram uma
necessidade absoluta de passar horas em oração, de estudo da
Bíblia e meditação. Nunca deixaram de ir buscar o azeite e de
receber a provisão do mesmo.
O segundo elemento essencial é o pavio. Devemos nos ocupar
também disso. Para manter a lâmpada ardendo o azeite não é
suficiente, porque tem que avivar constantemente o pavio. Foi
isto que disse nosso Senhor com o fato de ser o crente luz do
mundo.
Muitos de nós não temos conhecido outra coisa além da
eletricidade. Porém, alguns talvez recordem como se devia ter
cuidado com o pavio. Quando começava a fumegar, não
iluminava, de maneira que tinha que ser avivado, e isto era um
processo delicado. Que significa isto na prática? Creio que
significa que temos que recordar constantemente as bemaventuranças. Deveríamos lê-las todos os dias. Temos que
recordar diariamente o que é ser pobre de espírito,
misericordioso, manso, pacificador, de coração limpo, e
assim sucessivamente.
Não há nada que sirva melhor para manter o pavio em bom
funcionamento que recordar o que sou pela graça de Deus,
quanto à nova natureza recebida do Espírito, e o que tenho de
ser na prática como um crente. Parece-me que deveria fazer
isto todas as manhãs antes de começar o dia. Em tudo o que
faço e digo, tenho que ser como esse homem que vejo nas
bem-aventuranças.
Comecemos
com
isso
e
nos
concentremos nisso.
Porém não somente temos de recordar as bem-aventuranças,
temos de viver de acordo com elas. Que significa isto?
Significa que temos de evitar tudo o que se opõe às mesmas,
que temos que ser completamente diferentes do mundo. É
algo trágico ver crentes que não querem ser diferentes nem
sofrer perseguição, parecem viver o mais próximo que podem
do mundo. Porém isto é uma contradição de termos. Não há
meio termo entre luz e trevas, é uma coisa ou outra. E não há
acordo possível entre elas. Ou se é luz, ou se é trevas. E o crente
tem que ser assim na terra. Não somente não devemos ser
como o mundo, senão que temos que esforçar-nos em ser o
mais diferentes dele que possamos.
100
Num sentido positivo, contudo, significa que deveríamos
demonstrar esta diferença em nossa vida, e isto, desde logo,
pode ser feito de mil maneiras. Não posso dar uma lista
completa quanto ao que significa, mas, no mínimo significa
viver uma vida separada.
O mundo se está tornando cada vez mais grosseiro, rude, feio,
estrepitoso, sujo.
Creio que estamos de acordo nisso.
À medida que a influência cristã vai diminuindo no país, todo
o tom da sociedade se torna mais baixo, inclusive as pequenas
gentilezas são cada vez mais escassas. O crente não deve viver
assim. Tendemos muito a nos limitarmos a dizer: “sou
crente”, ou “não é maravilhoso ser crente?”, para logo depois,
sermos bruscos e desatenciosos. Recordemos que estas são as
coisas que proclamam aquilo que somos. Temos que ser
humildes, pacíficos em nosso falar e atuar, e sobretudo em
nossas reações diante dos demais. Creio que o crente tem
maiores oportunidades hoje que há um século, devido ao
estado atual do mundo e da sociedade. Creio que as pessoas
nos observam muito de perto por nos dizermos cristãos, e
observam as reações que teremos diante dos demais, e diante
do que dizem e fazem em relação a nós.
Nós nos iramos? O não crente o faz, o crente não deveria fazêlo. Deve ser como o homem das bem-aventuranças, e por isso
reage de forma diferente. E quando se acha diante de
acontecimentos mundiais, diante de guerras e rumores de
guerras, diante de calamidades, enfermidades, e tudo o mais,
não se angustia, nem fica perturbado ou se irrita. O mundo
reage assim, o crente não. É essencialmente diferente.
O último princípio é a importância suprema de fazer tudo isto
de forma adequada. Temos considerado o que é ser como sal,
temos examinado porque temos de ser como luz. Temos visto
como é ser assim, como nos assegurar de que o somos de fato.
Porém deve ser feito da forma adequada. Assim brilhe a vossa
luz diante dos homens” – a palavra importante aqui é “assim”
– “para que vejam vossas boas obras, e glorifiquem vosso Pai
que está nos céus”. Tem que haver uma ausência de
ostentação e exibicionismo. É difícil na prática, não é verdade?
Situar a linha divisória entre funcionar verdadeiramente
como sal e luz, e contudo não se fazer culpado de ostentação?
101
Porém é isto que se nos diz que façamos. Temos que viver de
tal modo que os demais vejam nossas boas obras, porém que
elas glorifiquem não a nós, mas a nosso Pai que está nos céus.
É difícil atuar como verdadeiro crente, e contudo não cair no
exibicionismo.
Nisto está incluída a pregação do evangelho. Ao revelá-lo em
nossa vida diária devemos recordar que o crente não atrai a
atenção sobre si. Ele não pode se esquecer da pobreza de
espírito, da mansidão e de todas as outras coisas. Noutras
palavras, temos de fazer tudo por Deus, para sua glória. O eu
tem que estar ausente, e deve ser completamente afastado
com todas as suas sutilezas, por amor a Ele e por sua glória.
Segue-se que temos que fazer todas estas coisas de tal forma
que conduzamos a outros homens a glorificarem a Deus, a
entregarem-se a Ele. “Assim brilhe vossa luz diante dos
homens, para que vendo vossas boas obras, glorifiquem vosso
Pai que está nos céus”. Sim, e vê-las de tal modo que eles por
sua vez glorifiquem a seu Pai que está nos céus. Não somente
temos de glorificar nosso Pai, temos de levar outras pessoas a
glorificarem-no também.
Isto, por sua vez conduz ao fato de que, por sermos
verdadeiramente crentes, temos de ter grande tristeza no
coração por essas pessoas. Temos de nos dar conta de que
estão em trevas, e em estado de contaminação. Noutras
palavras, quanto mais aproximarmos nossas vidas do Senhor,
tanto mais nos tornaremos semelhantes a Ele, e Ele teve uma
grande compaixão pelas pessoas. Viu as pessoas como ovelhas
que não têm pastor. Teve grande compaixão por elas, e isto
determinou seu procedimento. Não se preocupou consigo
mesmo; teve compaixão da multidão. Assim temos de viver
vocês e eu, assim temos de considerar estas coisas. Noutras
palavras, em todas nossas ações e viver cristão estas três
coisas devem ocupar sempre um ponto proeminente. Fazer
tudo por Ele e por sua glória. Conduzir os homens a Ele para
que o glorifiquem. Que tudo se baseie no amor e compaixão
por eles em sua condição perdida.
Esta é a forma em que nosso Senhor nos exorta a
demonstrarmos o que tem feito por nós. Devemos viver como
pessoas que têm recebido dele vida divina. Ele coloca diante
de nós este quadro maravilhoso de sermos como Ele neste
102
mundo. Os homens começavam a pensar em Deus ao vê-lo.
Temos lido nos evangelhos como era frequente que os
homens dessem glória a Deus depois de tê-lo visto realizar um
milagre? Diziam: “nunca vimos coisas como estas dantes” e
glorificavam ao Pai. Vocês e eu temos que viver assim. Noutras
palavras, temos de viver de tal modo que, quando os demais
nos vejam, passemos a ser uma interrogação para eles, no
sentido de que se perguntarão: “Que é isto?”. Por que esses
são tão diferentes em seu comportamento e reações? E há
algo neles que não podemos explicar.”. E chegarão à única
explicação verdadeira, que é a de que somos o povo de Deus,
filhos de Deus, herdeiros de Deus, e co-herdeiros com Cristo.
Temos chegado a ser o reflexo de Jesus, aqueles nos quais a
vida do Senhor tem sido reproduzida. E assim como Ele é a luz
do mundo, então nós temos que ser também a luz do mundo.
A Luz do Mundo
Em Mateus 5.14 temos uma das afirmações mais
surpreendentes e extraordinárias acerca do cristão que
jamais se tem feito. Se alguém tem em conta o quadro, e
recorda as pessoas às quais Jesus dirigiu estas palavras,
aprenderá verdades notáveis. É uma afirmação cheia de
significado e de implicações profundas quanto ao
entendimento da natureza da vida cristã.
É uma grande característica da verdade bíblica que pode
sintetizar, por assim dizer, o conteúdo de toda nossa posição
num versículo sério como este. “Vocês”, disse nosso Senhor,
olhando essas pessoas simples, essas pessoas completamente
sem importância do ponto de vista do mundo, “vocês são a luz
do mundo”.
É uma dessas afirmações que sempre deveriam produzir em
nós o efeito de erguer a cabeça, de fazer-nos dar conta do quão
magnífico e notável é ser um cristão.
Isto se converte inevitavelmente numa prova boa e completa
da nossa posição e experiência. Todas estas afirmações que se
fazem do crente sempre conduzem a isto, e devemos ter
sempre o cuidado que assim se dê de fato conosco.
103
O “vocês” a quem se refere esta afirmação significa
simplesmente nós mesmos. O perigo é sempre que leiamos
uma afirmação como esta e pensemos em alguém diferente,
a saber, os primeiros crentes, ou os crentes em geral. Porém
se refere a nós, individualmente, se pretendemos ser crentes
de verdade.
É lógico, pois, que uma afirmação assim requer uma análise
detalhada. Antes de intentá-lo, contudo, devemos estudá-lo
em geral e tratar de retirar disso as implicações mais óbvias.
Antes de tudo vejamos qual é seu significado negativo. Porque
a força verdadeira da afirmação é esta: “vocês, e somente
vocês, são a luz do mundo”. O “vocês” é enfático e comporta
esta ideia. Imediatamente compreendemos que implicam
certas coisas. A primeira é que o mundo está em trevas.
Isto, de fato, é um dos pontos básicos que o evangelho cristão
sempre realça.
Talvez em nenhuma outra passagem da Bíblia se veja este
contraste marcado entra a ideia cristã da vida e todas as outras
ideias, com mais clareza, que num versículo como este.
O mundo sempre fala de sua civilização. Esta é uma de suas
frases favoritas, sobretudo desde o Renascimento dos séculos
XV e XVI quando os homens voltaram a se interessar pelo
conhecimento.
Todos os pensadores consideram que esse foi o ponto decisivo
na história, uma grande linha divisória, que separa a história
das civilizações, e todos estão de acordo em que essa
civilização moderna, tal como vocês e eu a conhecemos,
começou realmente a partir de então. Houve uma espécie de
novo nascimento da razão e da cultura.
Voltaram a descobrir os clássicos gregos; e seu ensino e
conhecimentos, num sentido puramente filosófico, e todavia
mais num sentido científico, realmente começaram a dirigir
e controlar a perspectiva e vidas de muitos.
Logo, houve, como sabem, uma restauração parecida no
século XVIII, que se chamou a si mesma “Iluminismo”.
Os que se interessam pela história da Igreja Cristã e da fé
cristã devem ter em conta este movimento. Foi o começo,
num sentido, do ataque contra a autoridade da Bíblia, porque
pôs a filosofia e pensamento humanos no lugar da revelação
104
divina e da revelação da verdade ao homem, por parte de
Deus.
Isso continuou até o tempo presente, e o que quero sublinhar
é que sempre se apresenta como luz, e os que se interessam
por este movimento sempre se referem a ele como
“Iluminismo”. O conhecimento, dizem, é o que traz luz, o que
brilha, e é evidente que em muitos aspectos é assim. Seria
néscio negá-lo. O aumento do saber sobre os processos
naturais e acerca das enfermidades físicas e de muitas outras
coisas tem sido realmente fenomenal.
O novo saber também tem lançado luz sobre o funcionamento
do cosmos, e tem aumentado a compreensão de muitos
aspectos diferentes da vida.
Porém, isto, muitos costumam chamar frequentemente de
“iluminação” como consequência do saber e da cultura. E
contudo, apesar de tudo isto, segue de pé a afirmação bíblica.
“vocês, e somente vocês, são a luz do mundo”.
Esta luz conduz ao que é eterno e verdadeiro.
O conhecimento médico por exemplo na prevenção de
enfermidades, pode prolongar, quando é possível, o curso da
vida física por apenas uns poucos anos, e depois, será
inevitável ter que enfrentar a realidade da morte. Mas a luz do
evangelho nos crentes revela um caminho que conduz à
verdadeira vida e à eternidade. E quão frágeis e passageiros
são todos os benefícios alcançados pelo mero conhecimento
humano.
A Escritura segue proclamando que o mundo, tal como é, está
em trevas e enquanto alguém começa a contemplar as coisas
seriamente pode-se demonstrar facilmente que é a pura
verdade.
A tragédia de nosso século tem sido que nos temos
concentrado somente num aspecto do saber.
Nosso conhecimento tem sido conhecimento das coisas, de
coisas mecânicas, de coisas científicas, conhecimento da vida
num sentido mais ou menos biológico e mecânico.
Porém, nosso conhecimento dos verdadeiros fatores que
fazem a vida, não tem aumentado em nada.
Por isso, o mundo está em tal estado hoje em dia.
Porque, como se tem indicado constantemente, apesar de
haver descoberto todo esse novo saber, temos fracassado no
105
descobrimento do mais importante de tudo, a saber, como
aplicar nosso saber.
Esta é a essência do problema relativo à força atômica. A
tragédia é que não temos conhecimentos suficientes de nós
mesmos que nos permitam saber como podemos aplicar esta
força, agora que a temos descoberto.
E se soubéssemos, não poderíamos ultrapassar sequer os
limites da existência física, que têm sido fixados pelo Senhor
desde a criação, e que foram reduzidos drasticamente, porque
sabemos que no princípio os homens viviam até 900 anos,
sendo esta marca reduzida para o limite de 600, depois 500,
400, 200, chegando ao de 100 que tem perdurado até nossos
dias, e que poucos atingem, em condições de pleno vigor
físico.
Se não se pode, por decreto de Deus acrescentar-se um palmo
ao curso da existência, quanto mais resolver definitivamente
o problema do pecado que reside em todas as pessoas.
Aí reside a dificuldade.
Nosso saber é mecânico e científico.
Porém, quando passamos aos problemas fundamentais da
vida, do ser e existir, não é óbvio que a afirmação de nosso
Senhor permanece sendo verdade, que o mundo está num
estado de trevas horrendas? Se Ele diz que o crente é a luz do
mundo, então por conseguinte Ele diz também que o mundo
está todo em trevas.
Pensemos nisso no campo da vida e conduta pessoais. Muitos
homens de grande saber em muitos terrenos fracassam
completamente em sua vida pessoal. Vejamos-lhes no campo
das relações de uns com outros. Precisamente quando nos
encontramos nos gloriando do quanto iluminados somos, do
muito que sabemos, há essa ruptura trágica nas relações
pessoais. É um dos maiores problemas morais e sociais da
sociedade.
Vejam como temos multiplicado nossas instituições e
organizações. Temos que instruir acerca de coisas nas quais
as pessoas nunca foram instruídas dantes. Por exemplo,
temos que ter agora cursos de instrução matrimonial. Até este
século as pessoas se casavam sem estes conselheiros que
agora parecem essenciais. Todos eles dizem bem às claras que
quanto aos problemas mais importantes da vida, como evitar
106
o mal, o pecado, tudo que é baixo e indigno, com ser puros,
retos, castos e íntegros, que há muitas trevas.
Logo, à medida que se passa a outras esferas e se contempla
as relações entre grupos, encontramos a mesma situação, e
por isso temos esses grandes problemas industriais e
econômicos.
Num nível todavia mais elevado, vejamos as relações entre
nações. Este século, no qual tanto falamos do saber e da
cultura, prova que o mundo está num estado de trevas
completas em relação a estes problemas vitais e
fundamentais.
Porém devemos ir mais além. Nosso Senhor não somente
afirma que o mundo está num estado de trevas; chega a dizer
que ninguém senão o cristão pode dar conselho e instrução
relativamente a isto.
Disso nos gloriamos como cristãos. Os maiores pensadores e
filósofos se sentem desconcertados diante dos tempos atuais
e me seria muito fácil apresentar-lhes muitas citações de seus
escritos para demonstrá-lo.
Não importa que se considere no campo da pura ciência ou da
filosofia quanto a estes problemas definitivos; os escritores
não acertam ao tentarem explicar ou entender seu próprio
século. A razão está em que sua teoria básica é que o que o
homem necessita é aumentar o saber. Creem que se o homem
tiver esses conhecimentos os aplicaria à solução dos seus
problemas. Porém é evidente que o homem não o está
fazendo. Tem os conhecimentos, porém não os aplica, e isto é
o que deixa os “pensadores” perplexos. Não entendem o
problema verdadeiro do homem; não são capazes de dizer-nos
onde está a raiz do estado atual do mundo, e muito menos são
capazes de dizer-nos o que se pode fazer para resolvê-lo.
Recordo, faz uns anos, que li a crítica de um livro que tratava
destes problemas, a crítica foi escrita por um conhecido
professor de filosofia deste país. Expressou-se assim: “Este
livro enquanto análise é muito bom, porém não vai além da
análise e por isso não ajuda grande coisa. Todos sabemos
analisar, porém a pergunta vital que queremos que se
responda é: qual é a raiz última do problema? Que se pode
fazer?”. E quanto a isto nada disse, porém deu ao livro o
impressionante título de A Condição Humana. Assim é. Pode
107
alguém procurar uma ou outra vez nos maiores filósofos e
pensadores e nunca o levam a nada além da análise. São
excelentes na apresentação do problema e em apresentar os
diferentes fatores que atuam. Porém, quando se lhes
pergunta onde está a última raiz disso, e o que pensam fazer,
deixam-nos sem resposta. É evidente que não têm nada para
dizer. É óbvio que neste mundo não há luz nenhuma aparte do
que oferece o povo cristão e a fé cristã. E não exagero. Quero
dizer que somos realistas e damo-nos conta disso, e de quanto
nosso Senhor falou, faz mais de dois mil anos, não somente
disse a verdade quanto ao seu próprio tempo, senão que
também a disse relativamente a todas as épocas
subsequentes. Não esqueçamos que Platão, Sócrates,
Aristóteles e todos os demais, haviam ensinado vários séculos
antes de terem sido pronunciadas essas palavras de Jesus. Foi
depois desse florescer surpreendente da mente e do intelecto
que nosso Senhor fez esta afirmação.
Contemplou esse grupo de pessoas comuns e insignificantes
e disse “vocês e somente vocês são a luz do mundo”. E não fez
nenhuma alusão aos filósofos que haviam vivido dantes, como
Platão, Sócrates e Aristóteles porque não havia neles
nenhuma luz que conduzisse à verdade. Então quando disse
que somente os crentes são a luz do mundo, isto é uma
afirmação tremenda e estremecedora, e eu diria que por
muitas razões dou graças a Deus de estar pregando este
evangelho hoje e não há cem anos atrás. Se houvesse afirmado
isto cem anos antes as pessoas teriam zombado, porém hoje já
não zombam porque a história mesma demonstra cada vez
mais a verdade do evangelho. As trevas do mundo nunca têm
sido mais evidentes que hoje, e diante delas temos esta
afirmação surpreendente e profunda. Esta é a implicação
negativa do texto.
Consideremos agora suas implicações positivas. Diz: “vocês”.
Em outras palavras afirma que o crente comum, embora
talvez nunca tenha estudado filosofia, sabe mais da vida e a
entende melhor que alguém grande e experiente que não seja
crente. Este é um dos temas básicos do Novo Testamento.
O apóstolo Paulo, ao escrever aos coríntios disse bem
claramente quando afirmou “Visto como na sabedoria de
Deus o mundo não conheceu a Deus pela sua sabedoria,
108
aprouve a Deus salvar os crentes pela loucura da pregação.” (I
Cor 1.21). Isto que parece ridículo para o mundo é sabedoria de
Deus. Este é o paradoxo extraordinário que se nos apresenta.
A implicação do mesmo deve ser óbvia, mostra que somos
chamados a fazer algo positivo. Esta é a segunda afirmação
que faz nosso Senhor relativamente à função do crente neste
mundo. Uma vez descrito o crente em geral nas bemaventuranças, a primeira coisa que diz é: “vocês são o sal da
terra”. Agora diz, “vocês são a luz do mundo”, e somente
vocês. Porém recordemos sempre que isto se diz dos crentes
comuns, não de certos crentes somente. Aplica-se a todos os
que têm o direito de receber este nome.
Imediatamente surge a pergunta. Como pois, se cumprirá isto
em nós? Uma vez mais se nos conduz ao ensino referente à
natureza do crente. A melhor maneira de entendê-lo, me
parece, é esta. O Senhor que disse: “vocês são a luz do mundo”,
também disse, “eu sou a luz do mundo”. Estas duas
afirmações devem ser tomadas sempre juntas, já que o crente
é luz do mundo, somente por sua relação com Ele que é a luz
do mundo.
Nosso Senhor afirmou que havia vindo trazer luz. sua
promessa é que “o que me segue não andará em trevas, senão
que terá a luz da vida”. Agora, contudo, diz também: “vocês são
a luz do mundo”.
Consequentemente, Ele, e somente Ele nos dá esta luz vital
relativa à vida. Porém não se detém aí, também nos faz luz.
Recordem como o apóstolo Paulo o disse em Efésios 5, onde
afirma: “porque noutro tempo éreis trevas, porém agora sois
luz no Senhor”.
Por isso não somente temos recebido luz, temos sido feitos
luz, nos convertemos em transmissores de luz. Noutras
palavras, é este extraordinário ensino da união mística entre
o crente e seu Senhor. sua natureza entra em nós a fim de que
sejamos, num sentido, o que Ele é. É básico que tenhamos
presentes ambos aspectos deste assunto. Como crentes no
evangelho temos recebido luz, conhecimento e instrução.
Porém, além disso, tem passado a fazer parte de nós, de
maneira que somos também luz no Senhor. Tem-se
convertido na nossa vida, a fim de que assim possamos refletila. O notável, portanto, é que nos é lembrado nesta passagem
109
a nossa íntima relação com Ele. O crente tem recebido e se
tem convertido em partícipe da natureza divina. A luz que é
Cristo mesmo, a luz que é em último termo Deus, é a luz que
tem o crente.
“Deus é luz e não há nele treva nenhuma”. “Eu sou a luz do
mundo”. “Vocês são a luz do mundo”. A forma de entender
isto é mediante a compreensão do ensino de nosso Senhor
referente ao Espírito Santo em João 14.23, onde diz: “Se
alguém me ama, guardará a minha palavra, e meu Pai o
amará, e viremos para ele, e faremos nele morada.” De fato a
consequência da sua vinda será esta. Meu Pai e Eu moraremos
em vocês, estaremos em vocês e vocês estarão em nós. Deus
que é o pai das luzes, é a luz que está em nós. Ele está em nós e
nós estamos nele, e por isso se pode dizer do crente: “vocês
são a luz do mundo”.
É interessante observar que, segundo nosso Senhor, este é o
segundo grande resultado de ser a classe de crente que Ele
tem descrito nas bem-aventuranças. Deveríamos também
considerar a ordem em que se fazem estas afirmações. A
primeira que o Senhor nos diz é: “vocês são o sal da terra”, e
somente depois disto diz: “vocês são a luz do mundo”. Por que
não disse isto na ordem contrária? É um ponto prático muito
interessante e importante. O primeiro efeito do crente no
mundo é geral, em outras palavras, é mais ou menos negativo.
Temos aqui um homem que se tem feito cristão, vive em
sociedade, e no trabalho. Como é crente, imediatamente
produz um certo efeito, um efeito de controle, que estudamos
antes no comentário sobre ser sal da terra. Somente depois
disto tem esta função específica e concreta de atuar como luz.
Em outras palavras, a Bíblia, ao tratar do crente, sempre
sublinha primeiro o que ele é, antes de começar a falar do que
ele faz. Como crente, deveria sempre produzir este efeito
geral nos demais, antes de produzir este efeito específico.
Onde quer que me encontre, imediatamente esse algo
diferente que há em mim deveria produzir efeito, e isto por
sua vez deveria levar aos demais a contemplar-me e dizer: “Há
algo especial neste homem”.
Logo, ao observarem minha conduta, começam a me fazer
perguntas. Neste ponto entra em jogo o elemento de “luz”,
posso falar-lhes e ensinar-lhes. Muito frequentemente
110
tendemos a mudar a ordem. Falamos numa forma muito
iluminada, porém nem sempre vivemos como sal da terra.
Tanto que se nos agrada ou não, nossa vida deveria ser sempre
a primeira a falar, e se os lábios falarem mais do que a vida,
pouco servirá. Com frequência a tragédia tem sido que as
pessoas proclamam o evangelho de palavra, porém sua vida e
comportamento é negação do mesmo. O mundo não lhes dá
grande atenção. Não esqueçamos nunca esta ordem que o
Senhor escolheu deliberadamente: “sal da terra” antes de
“luz do mundo”.
Somos algo, antes de começarmos a atuar como algo. Ambas
coisas deveriam sempre caminhar juntas, porém a ordem e a
sequência deveria ser a que Ele estabelece nesta passagem.
Tendo isto presente, consideremos agora de modo prático
como o crente deve mostrar que é realmente a luz do mundo?
Isto se transforma numa pergunta simples: Qual é o efeito da
luz? Que faz na realidade? Não cabe dúvida de que a primeira
coisa que a luz faz é manifestar as trevas e tudo o que pertence
às trevas.
Imaginemos uma casa escura, e quando se acende uma luz.
Ou pensemos nas luzes dianteiras de um automóvel que
transita numa estrada escura. Como diz a Bíblia: “Tudo o que
se manifesta é luz”.
Num sentido estamos conscientes das trevas até que a luz não
apareça, e isto é fundamental. Falando da vinda do Senhor a
este mundo, Mateus disse: “O povo que andava nas trevas viu
grande luz”.
A vinda de Cristo e do evangelho são tão fundamentais que se
pode expressar assim; e o primeiro efeito de sua vinda ao
mundo é que tem manifestado as trevas da vida do mundo.
Isto é algo que sempre, e inevitavelmente, faz qualquer pessoa
boa ou santa.
Sempre necessitamos de algo que nos mostre a diferença, e a
melhor maneira de revelar uma coisa é por contraste.
Isto faz o evangelho, e todo cristão o faz. Como disse o apóstolo
Paulo, a luz clareia o oculto das trevas, e por isso diz: “os que
se embriagam, é de noite que se embriagam”.
O mundo todo se divide em “filhos da luz” e “filhos das trevas”.
Grande parte da vida do mundo está debaixo de uma espécie
de capa de trevas. As coisas piores sempre ocorrem sob o
111
manto das trevas, inclusive o homem natural, degenerado e
em estado de pecado, se envergonha de tais coisas à luz do dia.
Por que? Porque a luz o manifesta.
O crente é a luz do mundo dessa forma. É inevitável. Por ser
crente mostra um estilo diferente de vida, e isto de imediato
manifesta a verdadeira índole e natureza da outra forma de
viver.
No mundo, portanto, é como uma luz que se acende, e
imediatamente as pessoas começam a pensar, a maravilharse e a sentir-se envergonhadas.
Quanto mais santa uma pessoa, mais cedo e tanto mais
claramente isto ocorrerá.
Não lhe fará falta dizer uma só palavra, somente por ser o que
é faz que os demais se sintam envergonhados do que fazem, e
deste modo atua verdadeiramente como luz.
Proporciona um modelo, mostra que há outra maneira de
viver que é possível para o gênero humano.
Manifesta, portanto, o erro e o fracasso da forma de pensar e
de viver do homem. Como vimos, ao tratar do crente como sal
da terra, o mesmo se pode dizer dele como luz do mundo.
Todo verdadeiro avivamento espiritual tem produzido este
efeito. Uns tantos cristãos numa região ou grupo afetarão a
vida de todos. E isto se dará ainda que os demais estejam ou
não de acordo com seus princípios, lhes fazem sentir que
depois de tudo o sistema cristão é adequado e o outro é
indigno. O mundo tem descoberto que a honestidade é a
melhor política. Como alguém tem dito, esta é a classe de
tributo que a hipocrisia sempre rende à verdade, tem de
admitir no fundo do coração que a verdade tem razão.
A influência que o crente tem como luz no mundo é
demonstrar que estas outras cousas pertencem às trevas.
Prosperam nas trevas, e seja pelo que for não podem resistir à
luz.
Isto se afirma em forma explícita em João 3, onde o apóstolo
diz: “E a condenação é esta: Que a luz veio ao mundo, e os
homens amaram mais as trevas do que a luz, porque as suas
obras eram más.” (João 3.19). Nosso Senhor acrescenta que
tais homens não vêm para a luz, porque, se o fizerem,
receberão reprovação por suas obras, e eles não querem isto.
112
Essa foi, desde o princípio a causa principal do antagonismo
dos escribas e fariseus contra nosso Senhor e Salvador Jesus
Cristo.
Esses homens, mestres da lei, experientes, num sentido, da
vida religiosa, odiaram e perseguiram ao Senhor. Por que? A
única resposta adequada se encontra em sua pureza absoluta,
em sua santidade total. Sem dizer nem uma só palavra contra
eles no começo - porque não lhes acusou até o final – sua
pureza fez que se vissem como realmente eram, e por isso o
odiaram. Perseguiram-no e por fim o crucificaram, somente
porque era a luz do mundo. Revelou e manifestou o oculto das
trevas que havia neles.
Vocês e eu temos que ser assim neste mundo, por somente
viver a vida cristã temos de produzir este efeito.
Demos um passo mais além e digamos que a luz não somente
revela o oculto das trevas, senão que também explica a causa
das trevas. Por isso é algo tão prático e importante nestes
tempos. Já lhes tenho recordado que os melhores pensadores
do mundo acadêmico de hoje se acham desorientados quanto
à raiz do mal no mundo. Faz uns anos foram radiodifundidas
duas conferências a cargo dos chamados humanistas, Dr. John
Huxley e Professor Gilbert Murray. Ambos admitiram com
toda franqueza que não poderiam explicar a vida como é. O dr
Huxley disse que não podia encontrar um fim nem um
significado para a vida. Para ele tudo era fortuito. O professor
Gilbert Murray tampouco sabia explicar a segunda guerra
mundial e o fracasso da Liga das Nações. Como corretivo, não
teria nada que oferecer mais que a cultura que tem estado à
nossa disposição durante séculos, e que tem fracassado.
Aqui é onde os crentes têm a luz que explica a situação. A
única causa dos problemas do mundo atual, desde o nível
pessoal ao internacional, não é nada mais do que a separação
do homem em relação a Deus. Esta é a luz que somente os
crentes possuem, e que podem dar ao mundo. Deus tem feito
de tal modo o homem que este não pode viver a verdade a não
ser que tenha uma relação adequada com Deus. Assim foi
feito. Deus o fez, e o fez para si. E Deus tem estabelecido certas
normas em sua natureza e em seu ser e existência, e a não ser
que se conforme a elas irá se equivocar.
113
Esta é a causa do problema. Todas as dificuldades que o
mundo de hoje experimenta podem ser atribuídas, em última
instância, ao pecado, egoísmo, e busca de proveito próprio.
Todas as disputas, conflitos e mal entendidos, todas as dívidas
e malícia, todas estas coisas se devem a isso e a nada mais.
Assim pois, somos a luz do mundo num sentido muito real
nestes tempos, porque somente nós possuímos a explicação
adequada da causa do estado do mundo. Tudo se deve à queda,
todos os problemas começaram ali. Quero voltar a citar João
3.19: “E a condenação é esta: Que a luz veio ao mundo, e os
homens amaram mais as trevas do que a luz, porque as suas
obras eram más.”. Esta é a condenação e nada mais. Esta é a
causa do problema. Que sucede pois? Se a luz tem vindo a este
mundo na pessoa de Jesus Cristo, por que anda mal o mundo
em pleno século vinte? O versículo que acabamos de citar dá
a resposta. Apesar de todo o saber que se tem acumulado nos
últimos duzentos anos, desde começos do Iluminismo até
meados do século dezoito, o homem caído por natureza
todavia ama mais as trevas do que a luz. A consequência é que,
apesar de saber o que é justo, prefere o mal e o pratica.
Tem uma consciência que lhe adverte antes de praticar o mal.
Contudo o faz. Talvez o lamente, porém o pratica. Por que?
Porque lhe agrada. O problema do homem não está no
intelecto, está na sua natureza – as paixões e os prazeres. Este
é o fator dominante. E embora se eduque nada conseguirá
porque sua natureza seguirá sendo pecaminosa e caída.
Esta pois é a condenação, e ninguém pode advertir ao mundo
moderno exceto o cristão. O filósofo não somente não fala
sobre isto, também não lhe agrada tal ensino. Não lhe agrada
que lhe digam que apesar de seus vastos conhecimentos, não
é mais do que um montão de argila humana comum como
qualquer outro, e que é criatura de paixões, prazeres e desejos.
Porém esta é a verdade. Como no caso, dos dias de nosso
Senhor, muitos destes filósofos do mundo antigo, que saíram
da vida pela porta do suicídio, assim sucede hoje em dia.
Desconcertados, perplexos, sentindo-se frustrados, havendo
intentado todos os tratamentos sociológicos, psicológicos e
de outras classes, e contudo indo de mal a pior, os homens se
rendem desesperados.
114
O evangelho lhes molesta quando aponta que terão que
confrontar a si mesmos, e sempre lhes diz o mesmo: “os
homens amaram mais as trevas do que a luz”. Este é o
problema, e o evangelho é o único que o diz. Constitui uma luz
no firmamento, e deveria revelar-se por nosso meio em meio
aos problemas deste mundo tenebroso, miserável e infeliz dos
homens.
Porém, graças a Deus que não nos detemos aí. A luz não
somente manifesta as trevas, mas apresenta e oferece a única
saída das trevas. Aqui é onde todo crente deveria por mãos à
obra. O problema do homem é o problema da natureza caída,
pecaminosa, contaminada. Não se pode fazer nada? Temos
provado que o conhecimento, a educação, os pactos políticos,
as assembleias internacionais, não têm conseguido nada. Não
resta esperança? Sim, há uma esperança abundante e perene:
“tem que nascer de novo”. O que o homem necessita não é de
mais luz, necessita de nova natureza que ame a luz e que odeie
as trevas. O homem necessita se voltar para Deus. Não basta
dizê-lo, porque, se fosse assim, o deixaríamos num estado de
maior desesperança. Nunca encontrará o caminho até Deus,
por mais que o tente. Porém o crente está aí para dizer-lhe que
há um caminho até Deus, um caminho muito simples. É
conhecer a Jesus de Nazaré. Ele é o Filho de Deus e veio do céu
à terra para buscar e salvar o que se havia perdido. Veio para
trazer luz às trevas, para manifestar a causa das trevas, para
mostrar o novo caminho para sair delas e ir a Deus no céu.
Jesus, não somente tem carregado sobre Si a culpa desta
terrível condição de pecado que nos tem causado tantos
problemas, senão que nos oferece uma vida e natureza novas.
Não somente nos dá um ensino novo ou uma compreensão
nova do problema, não somente procura perdoar os pecados
passados, faz-nos homens novos com desejos novos,
aspirações novas, perspectiva nova e orientação nova. Porém
sobretudo nos dá essa vida nova, a vida que ama a luz e odeia
as trevas, no lugar de amar as trevas e odiar a luz.
Os crentes, vocês e eu, vivemos em meio de pessoas que
vivem em densas trevas. Nunca encontraram luz alguma
neste mundo a não ser no evangelho que nós cremos e
ensinamos. Eles nos observam. Vêm algo diferente em nós?
115
Nossas vidas são uma reprovação silenciosa das vidas de tais
pessoas? Vivemos de tal modo que as induzimos a vir a nós
para nos perguntarem: Por que parecem sempre tão felizes?
Como se mostram sempre tão equilibrados? Como podem
aceitar as coisas como o fazem? Por que não dependem como
nós de ajudas e prazeres artificiais? Que têm que não temos?
Se o fazem assim então podemos comunicar-lhes essas novas
tão maravilhosas, surpreendentes, embora tragicamente
omitidas, de que Cristo Jesus veio ao mundo salvar aos
pecadores, e para dar aos homens uma nova natureza e uma
nova vida, e para fazê-los filhos de Deus. Somente os crentes
são a luz do mundo de hoje. Vivamos e atuemos como filhos
da luz.
Depois de ter-se referido aos crentes como sal da terra e luz do
mundo, Jesus disse o seguinte em relação à lei:
“17 Não penseis que vim destruir a lei ou os profetas; não vim
destruir, mas cumprir.
18 Porque em verdade vos digo que, até que o céu e a terra
passem, de modo nenhum passará da lei um só i ou um só til,
até que tudo seja cumprido.
19 Qualquer, pois, que violar um destes mandamentos, por
menor que seja, e assim ensinar aos homens, será chamado o
menor no reino dos céus; aquele, porém, que os cumprir e
ensinar será chamado grande no reino dos céus.”
Cristo e o Antigo Testamento
“17 Não penseis que vim destruir a lei ou os profetas; não vim
destruir, mas cumprir.
18 Porque em verdade vos digo que, até que o céu e a terra
passem, de modo nenhum passará da lei um só i ou um só til,
até que tudo seja cumprido.
19 Qualquer, pois, que violar um destes mandamentos, por
menor que seja, e assim ensinar aos homens, será chamado o
menor no reino dos céus; aquele, porém, que os cumprir e
ensinar será chamado grande no reino dos céus.
20 Pois eu vos digo que, se a vossa justiça não exceder a dos
escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos
céus.” (Mt 5.17-20)
116
Nos versos anteriores a estes (13 a 16) Jesus havia dito que o
crente é o sal da terra e a luz do mundo e que as suas obras
devem resplandecer para que Deus seja glorificado por meio
delas.
O Senhor disse que somos cidadãos do reino dos céus, e
devido a isso, temos que manifestar as características de tal
cidadania. E devemos fazê-lo para o fim de Deus ser
glorificado.
Suscita-se então a pergunta, como temos que fazê-lo.
Este é o tema que se nos apresenta. A resposta pode ser
formulada assim: temos que viver uma vida justa. Esta é a
palavra que sintetiza a vida cristã: “justiça”, ou retidão. E o
tema do resto do Sermão do Monte é, em muitos aspectos,
este, de que o tipo de vida reta que o crente deve viver. Até Mt
7.14 é este o tema dominante.
O que é esta justiça ou retidão que temos que manifestar?
Qual é a índole da mesma? Os versículos 17 a 20 deste quinto
capítulo são uma espécie de introdução geral ao tema.
Nosso Senhor apresenta este problema global da justiça e da
vida justa que tem que caracterizar o crente. Antes de entrar
em detalhes, propõe certos princípios gerais.
Assim, logo nos versículos 17 e 18 afirma que tudo o que vai
ensinar está de acordo com o ensino da Escritura do Velho
Testamento.
A segunda proposição que apresenta nos versos 19 e 20 é que
o seu ensino está em desacordo absoluto com o ensino dos
fariseus e escribas.
Jesus não se contentou em apresentar somente a sua
doutrina, como também criticou outras doutrinas. Ele
criticou o ensino dos fariseus e escribas, e o desmascarou e
atacou com frequência.
Hoje há uma tendência em se ensinar somente aquilo que se
julga positivo, e muito desagrada a muitos evangélicos terem
que criticar outras posições.
No entanto, é indispensável que façamos o mesmo que fizera
o nosso Senhor.
(Certamente não se trata de se abrir uma guerra chamada
santa, ou se deixar dominar por amargura de espírito contra
aqueles que andam errados doutrinariamente, mas é nosso
dever desmascarar o erro onde quer que ele se encontre, quer
117
no nosso próprio meio ou não, com vistas a manter a verdade
divina entre as pessoas, para que possam achar a vida
abundante que Jesus veio nos trazer – nota do tradutor).
Os judeus consideravam os escribas e os fariseus como sendo
os expoentes das Sagradas Escrituras.
(No entanto Jesus sublinhou que eles erravam tanto na
exposição das Escrituras quanto na sua prática, mas Ele não
somente faria a exposição correta do ensino da verdade das
Escrituras, como também cumpriria perfeitamente todas as
suas santas exigências. Assim, não veio destruir a revelação
do Antigo Testamento, mas confirmá-la, inclusive naqueles
aspectos relativos à transposição profetizada no Velho
Testamento, da Antiga para a Nova Aliança. Era nele, Jesus,
que tal teria cumprimento. Jesus comprovou a validade das
Escrituras do Velho Testamento na Antiga Aliança, vivendo
sob os costumes dos judeus determinados pela Lei para o
referido período do Antigo Testamento, como também,
inaugurou uma Nova Aliança, revogando a obrigatoriedade
de cumprimento das disposições cerimoniais da Lei,
especialmente para que o evangelho alcançasse também as
nações gentias – nota do tradutor).
Com seu ensino Jesus destacou que a lei de Deus é absoluta e
que não pode ser mudada, nem modificada no mínimo. É
absoluta e eterna. suas exigências são permanentes, e nunca
podem ser revogadas, nem reduzidas “até que passem o céu e
a terra”. Esta última expressão significa o fim dos tempos. O
céu e a terra são sinal de continuidade. Enquanto
permanecerem, diz nosso Senhor, nada desaparecerá, nem
um jota ou til da lei. Não há nada menor que isto no alfabeto
hebraico.
Isto indica que a lei que Deus promulgou, e que pode ser
encontrada no Antigo Testamento e em tudo o que os profetas
disseram, se cumprirá até o mínimo detalhe, e permanecerá
até que se tenha cumprido até a perfeição.
Logo, a vinda do Senhor teve o propósito de conduzir até a
perfeição tudo o que está contido na lei e nos profetas.
(De fato, muito do que está profetizado no Velho Testamento
teve cumprimento quando Jesus se manifestou em carne, e
muito ainda do que está profetizado ainda aguarda pelo
respectivo cumprimento, e as palavras de Jesus asseguram
118
que tudo será cumprido a seu tempo, sem falhar – nota do
tradutor).
Cristo Cumpre a Lei e os Profetas
Nunca devemos separar o Antigo Testamento do Novo. Me
parece cada vez mais que é muito lamentável que se publique
somente o Novo Testamento, porque tendemos a cair no erro
grave de pensar que, porque somos cristãos, não
necessitamos do Antigo Testamento. Foi o Espírito Santo
quem guiou a Igreja Cristã, que era em grande parte gentia, a
incorporar as Escrituras do Antigo Testamento com as
Escrituras do Novo e a considerá-las como uma só coisa. Estão
indissoluvelmente vinculadas entre sí, e há muitos sentidos
em que se pode dizer que não se pode entender o Novo
Testamento sem a verdade e a luz que nos dá o Antigo
Testamento. Por exemplo, é quase impossível sacar qualquer
proveito na epístola aos Hebreus, a não ser que conheçamos
as Escrituras do Antigo Testamento.
Deus nunca mostrou com maior clareza a natureza inviolável
e absoluta de sua própria Lei, quando colocou seu próprio
Filho debaixo da mesma. Observem quão cuidadoso foi nosso
Senhor em observar a lei; Ele a obedeceu até em seus
mínimos detalhes. Não somente isto, ensinou a outros a
amarem a lei e a explicou confirmando-a constantemente e
afirmando a necessidade absoluta de obedecê-la.
Jesus cumpriu perfeitamente as exigências da Lei, até mesmo
quando morreu em nosso lugar, fazendo-se pecado por nós.
Ao morrer na cruz, cumpriu de forma passiva a exigência da
Lei, determinando a condenação e a morte daquele que a
violasse. Assim, ao morrer carregando sobre si os nossos
pecados, Jesus estava cumprindo completamente a Lei, em
suas santas exigências.
O castigo não poderia ser anulado. Deus não poderia
considerar pecadores culpados como sendo inocentes. Então
a Lei teve que ser cumprida para que pudéssemos ser
perdoados, por sermos considerados por Deus como tendo
morrido juntamente com Cristo.
Ao morrer na cruz, oferecendo-se como oferta pelos nossos
pecados, Jesus deu cumprimento a todos os símbolos
119
existentes na Lei de Moisés, quanto às ofertas e abluções
pelos pecados.
(Nos versos 19 e 20 do quinto capítulo Jesus afirmou:
“19 Qualquer, pois, que violar um destes mandamentos, por
menor que seja, e assim ensinar aos homens, será chamado o
menor no reino dos céus; aquele, porém, que os cumprir e
ensinar será chamado grande no reino dos céus.
20 Pois eu vos digo que, se a vossa justiça não exceder a dos
escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos
céus.” (Mt 5.19,20).
Jesus sublinha a importância dos crentes não violarem os
mandamentos da Lei, e de darem a devida honra e
cumprimento à Lei (v. 19). No entanto, destacou que se espera
dos crentes uma justiça superior à dos escribas e fariseus, que
era meramente baseada no esforço de cumprir a lei. E
destacou que é por esta justiça que se entra no reino dos céus
(v. 20), a saber, a justiça que é pela fé nele, e pela qual somos
justificados para sermos reconciliados eternamente com
Deus. Justificação esta, que nos sendo imputada, atribuída,
nos capacitará a receber em nossa própria natureza a justiça
evangélica que nos é implantada progressivamente pelo
trabalho do Espírito Santo, com base na graça, na fé e no
arrependimento, que consiste no trabalho da regeneração e
da santificação do Espírito – nota do tradutor).
Qual é a relação do crente com a lei? Pode-se responder assim.
O crente já não está sob a lei no sentido de que a lei é um pacto
de obras. Este é todo o argumento de Gálatas 3. O crente não
está sob a lei nesse sentido; sua salvação não depende
que cumpra a lei, porque tem sido libertado da maldição da
lei; e já não está sob ela como uma relação contratual entre ele
e Deus. Todavia, isto não o dispensa da lei como norma de
vida. O problema se suscita porque nos confundimos quanto à
relação entre a lei e a graça. Tendemos a ter uma ideia
equivocada da lei e a pensar nela como se fosse algo que se
opõe à graça. Porém, não é assim. A lei somente se opõe à
graça, quando, em outro tempo havia um pacto de lei, e agora
estamos debaixo de um pacto de graça. Tampouco, há de se
pensar que a lei é idêntica à graça. Nunca foi assim. A lei nunca
foi dada para salvar o homem, porque não pode salvá-lo, senão
unicamente a graça.
120
Muitos têm uma ideia equivocada em relação à graça, porque
pensam que a graça é algo separado da lei. A isto se chama
antinomianismo, a atitude dos que abusam da doutrina da
graça para levar uma vida de pecado e indolência. Dizem: “não
estou sob a lei, senão sob a graça, e portanto, não importa o
que faça”. Foi por isso que Paulo escreveu o sexto capítulo de
Romanos, para demonstrar como tal ideia é errônea e falsa
quanto à graça.
Um dos propósitos da graça, é o de capacitar-nos a cumprir a
lei. Nosso problema é que temos às vezes uma ideia
equivocada quanto à santidade. Não temos que considerar a
santificação como uma experiência que temos que receber.
Não. Santidade significa ser justo, e ser justo significa cumprir
a lei.
Nunca devemos separar estas duas coisas. A graça não é
sentimento. A santidade não é uma experiência. Devemos ter
esta mente e disposição novas que nos conduzem a amar a lei
e a desejar guardá-la, e Cristo, com seu poder nos capacita
para cumpri-la.
Justiça Maior do que a dos Escribas e Fariseus
“Pois eu vos digo que, se a vossa justiça não exceder a dos
escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos
céus.” (Mt 5.20).
Os escribas e fariseus pareciam ao povo judeu serem pessoas
muito santas. Porém, nosso Senhor demonstrou com clareza
que careciam tanto de justiça quanto de santidade. Eles não
amavam a Deus e ao próximo como convinha. Não tinham
misericórdia pelos pecadores e não estavam em nada
interessados em alcançá-los para uma vida de justiça e de
santidade. Eles não interpretavam nem entendiam
corretamente a lei.
Os escribas e fariseus eram em muitos sentidos as pessoas
mais notáveis da nação judaica. Os escribas eram homens que
se dedicavam exclusivamente a explicar e a ensinar a lei, eram
as grandes autoridades na lei de Deus. Dedicavam toda a sua
121
vida ao estudo e à ilustração da mesma. Mais que qualquer
outro grupo de pessoas, podiam, portanto, pretender estar
preocupados com a lei. Copiavam-na com cuidado, e
passavam a vida ocupados com a lei, e todos tinham grande
consideração por eles por esta mesma razão.
Os fariseus eram homens notáveis e famosos por sua
“santidade”. A própria palavra “fariseu” significa “separado”.
Eram pessoas que se consideravam aparte, porque haviam
composto um código cerimonial relacionado com a lei que
era mais rigoroso que a própria lei de Moisés. Haviam
estabelecido regras e normas de vida e conduta que em seu
rigor excediam tudo quanto se continha nas Escrituras do
Antigo Testamento. (Quanto deste comportamento farisaico
há no meio da própria Igreja, apesar de Jesus ter advertido
quando a este fermento de hipocrisia farisaica, que
acrescenta costumes rigorosos à vontade revelada de Deus,
para colocar fardos pesados sobre os ombros das pessoas,
para passar a imagem de uma pretensa santidade? – nota do
tradutor).
Por isso Jesus apresentou o exemplo do publicano e do fariseu
que subiram ao templo para orarem. O fariseu disse que
jejuava duas vezes por semana. Porém no Antigo Testamento
não há nenhuma passagem que requeira isto. De fato pede que
se jejue uma vez por ano. Porém pouco a pouco esses homens
haviam elaborado o seu próprio sistema e haviam conseguido
impô-lo ao povo, ao qual exortavam e mandavam que
jejuassem duas vezes por semana em vez de uma vez por ano.
Desse modo haviam chegado a formar seu próprio código
rigoroso de moral e conduta, e em consequência disso, todos
teriam aos fariseus como modelos de virtude.
O homem comum dizia de si mesmo: “Ah, não tenho qualquer
esperança de chegar a ser tão religioso como os escribas e os
fariseus. São excelentes; vivem como santos. Esta é a sua
profissão; este é o seu único objetivo no sentido religioso,
moral e espiritual”. Porém, aí interveio nosso Senhor,
anunciando a esta gente que a não ser que sua justiça fosse
maior do que a dos escribas e fariseus não poderiam jamais
entrar no reino dos céus.
Jesus estabelece aqui, como postulado, que a justiça do
crente, do menor deles, deve exceder a dos escribas e fariseus.
122
Devemos portanto, analisar a profissão da fé cristã, à luz desta
análise de Jesus Cristo.
A religião dos escribas e fariseus era completamente externa
e formal em vez de ser uma religião do coração.
O reino de Deus se ocupa do coração; não são minhas ações
externas, senão o que há dentro de mim, o que importa.
Jesus acusou os fariseus e escribas por se preocuparem mais
com o cerimonial do que com o moral. Eles eram muito
cuidadosos externamente; eram sumamente meticulosos em
lavar as mãos quanto aos aspectos cerimoniais da lei. Porém
não se preocupavam tanto dos aspectos morais da lei. E isto
não continua sendo um perigo terrível? Há um tipo de religião
– e, por desgraça, me parece que vai se fazendo cada vez mais
comum – que vacila em ensinar, que devemos apenas ir à
igreja aos domingos pela manhã, e não importa muito o que
façamos no restante do dia.
Muitos pensam que estão corretos diante de Deus por apenas
participarem da santa ceia, e pensam que estão livres depois
para fazerem o que quiserem.
Então há esta tendência para se pensar, tal como os fariseus,
que desde que se tenha comparecido ao culto, isto nos basta.
O objetivo final dos fariseus não era o de glorificar a Deus
senão a si mesmos. Quando cumpriam seus deveres
religiosos pensavam em si mesmos e no seu próprio bemestar.
Este é um perigo sempre presente na Igreja de fazermos
somente aquilo que consideramos ser nossa obrigação
religiosa.
(Quantos têm sido impulsionados pelo Espírito Santo, para
serem instrumentos de Deus para abençoarem as vidas de
muitos? Quando falta isto, nossa religião é vã, porque quando
estamos realmente em comunhão com Deus, Ele desperta em
nós um grande interesse em nos esforçarmos para abençoar
as pessoas, e Ele nos capacita efetivamente a isto, criando as
condições para que sejamos instrumentos úteis para
promover a aproximação de outros ao seu trono de graça, para
serem abençoados e guiados na verdade, tanto quanto nós.
Então a nossa religiosidade será sempre medida pelo grau da
nossa misericórdia e amor ao próximo – nota do tradutor).
123
É de Vital Importância Conhecer o Espírito da Lei
Além da Letra da Lei
Ao usar a fórmula “ouvistes o que foi dito aos antigos, eu
porém vos digo” no Sermão do Monte, nosso Senhor Jesus
Cristo não estava fazendo alterações na Lei de Moisés, porque
havia afirmado antes que não veio revogar a Lei, mas cumprila. Afinal, como Deus que é, Ele próprio havia dado a Lei a
Moisés, e portanto, estava não modificando mas revelando o
espírito da Lei, por uns poucos exemplos que havia tomado
para apresentar em seu ensino relativo à forma de um crente
se relacionar com a Lei. Ele tinha em vista combater
especialmente o ensino errôneo dos escribas e fariseus
quanto ao modo de se aplicar a Lei, pois eles não atentavam
para o espírito da Lei, senão para a letra, e ainda assim, não
faziam uma exposição adequada da letra da Lei sem alterar o
modo como se encontra registrada nas Escrituras. Eles se
valiam da ignorância do povo de um modo geral da língua
hebraica, na qual a Lei encontrava-se escrita, porque desde
que haviam sido deportados para Babilônia os judeus
começaram a falar o aramaico no lugar do hebraico, e
praticamente somente os escribas e fariseus detinham o
conhecimento do hebraico, de maneira que tinham facilidade
para ocultar o verdadeiro significado da Lei para o povo.
Entretanto faltava a eles próprios, a sabedoria para
entenderem o verdadeiro significado e forma de aplicação
dos preceitos de Deus constantes da sua Palavra. Então Jesus
tratou de expor a verdadeira maneira de se tratar com a Lei,
que como veremos adiante, era bastante diferente do modo
como a mesma era apresentada ao povo pelos escribas e
fariseus.
A situação dos judeus nos dias de Jesus era muito semelhante
à das nações nos dias da Reforma Protestante, quando as
Escrituras eram lidas apenas em Latim pela Igreja Romana. E
para terem acesso às Escrituras as pessoas tinham que
recorrer aos padres supondo que eles poderiam dar-lhes as
explicações que buscavam de maneira conveniente e
verdadeira. O que a Reforma Protestante fez foi colocar a
Bíblia nas mãos do povo, permitindo que fosse lida na própria
124
língua deles, e comprovarem o falso ensino e as explicações
errôneas do evangelho que lhes haviam sido dadas.
Assim, como os judeus dependiam nos dias de Jesus dos
escribas e fariseus para ter acesso às Escrituras, o que lhes foi
ensinado como sendo a lei, não o era em absoluto. Consistia
sobretudo em interpretações e tradições que eles haviam
acrescentado à lei ao longo dos séculos. De tal maneira
haviam acrescentado suas próprias interpretações que era
quase impossível naquele tempo dizer o que era de fato a Lei e
qual era a sua interpretação.
Então quando Jesus disse “ouvistes o que foi dito aos antigos,
eu porém vos digo” Ele certamente estava pretendendo
afirmar senão que tudo o que eles vinham ouvindo desde há
muito da parte dos escribas e fariseus deveria ser entendido à
luz da interpretação correta que Ele apresentaria agora
quanto à forma de se honrar e aplicar a Lei de Deus à vida,
pelos exemplos que seriam destacados por Ele (homicídio,
adultério, amor ao próximo etc – Mt 5.27-43) para ilustrar o
quanto erroneamente eles haviam sido ensinados quanto ao
modo de se considerar a Lei.
Ele não estava portanto dizendo: “a lei de Moisés dizia, eu
porém vos digo”. Lembremos que Ele havia confirmado e não
revogado a Lei. Senão que estava afirmando: “vocês têm sido
ensinados assim quanto à Lei, eu porém vos digo...”,
afirmando a sua própria autoridade como quem tinha a
interpretação autêntica da Lei, por ter sido Ele próprio o seu
autor.
Como Jesus queria ensinar-nos o espírito da lei, os princípios
da Lei, se tomarmos estas ilustrações do Sermão do Monte,
particularmente as de Mateus 5.27-43, e as convertermos em
lei, estaremos negando o que Ele quis fazer. Jesus fez isto
porque conhece bem a natureza humana e sabe que é dada a
se apegar mais a dogmas do que a princípios. Esta é a causa do
sucesso de várias seitas em obterem adeptos. O homem
natural gosta de uma lista concreta de ordenanças. Porém isto
não é possível no caso do evangelho, não é possível de modo
algum no reino de Deus. Se na dispensação da Antiga Aliança
havia espaço para uma postura legalista, ainda que não fosse
este o objetivo de Deus com a doação da Lei, entretanto não há
125
nenhum espaço para tal legalismo na dispensação da Nova
Aliança.
Mas mesmo na Nova Aliança, como é também ao homem que
se destina o mandamento, este sempre achará mais fácil ser
legalista do que viver em função de princípios, que apontem
para uma santidade de toda a vida, quer do corpo, quer da
alma, quer do espírito. Em vez de se buscar o espírito da lei,
será comum ver a busca da letra da lei. No entanto a lei não é
tanto um código ético, mas um esboço de um estilo de vida,
que aponta o modo pelo qual devemos viver neste mundo.
Se tomarmos as seis afirmações que Jesus fez em Mt 5.27-43
em função da fórmula “ouvistes o que foi dito, eu porém vos
digo”, veremos que o princípio que Ele utiliza é o mesmo em
cada caso. Num trata da moralidade sexual, no seguinte do
homicídio, e noutro do divórcio. Porém o princípio é sempre
o mesmo. Nosso Senhor, como Mestre sabia que é importante
ilustrar um princípio, e por isso deu seis exemplos de uma
verdade. Vejamos agora este princípio comum que se
encontra nos seis exemplos, de modo que quando passemos a
estudar cada um dos exemplos, possamos ter bem presente
que o desejo básico do Senhor era mostrar o significado e
intenção verdadeiros da lei. E corrigir as conclusões errôneas
que os escribas e fariseus haviam tirado dela e todas as noções
falsas que haviam baseado nela.
Estes são portanto os princípios a que nos referimos:
primeiro, o que sobretudo conta é o espírito da lei, e não
somente a letra. A lei teria que ser algo vivo, aplicável à vida e
não mecânico. O problema dos fariseus e dos escribas era que
não somente se concentravam na letra, como também
excluíam o espírito. O homem sempre se fixa mais na forma
do que no conteúdo, mais na letra do que no espírito. Por isso
Paulo disse que a letra mata, mas o espírito vivifica (II Cor 3.6),
e o pensamento principal de Paulo neste capítulo de Coríntios
é que Israel tinha se concentrado tanto na letra da lei, que
havia perdido o espírito da lei. O propósito específico da letra
é dar corpo ao espírito, e o espírito é o que realmente importa,
não a simples letra. Tomemos por exemplo, a questão do
homicídio. Os escribas e fariseus criam que haviam cumprido
a lei com perfeição se não matassem de fato a ninguém.
Porém, com isso não entendiam nada do espírito da lei, e que
126
este não diz respeito que não tenho somente que não matar
literalmente a ninguém, mas que minha atitude em relação
aos outros tem que ser justa e amorosa. Pode-se dizer o
mesmo das demais ilustrações que Jesus fez, de maneira que
Ele e os apóstolos resumem toda a Lei no amor ao próximo,
afirmando que aquele que ama tem cumprido a Lei.
É evidente pois, que se confiamos somente na letra
entenderemos mal a lei.
Tomemos agora o segundo princípio, que não é senão uma
outra maneira de expressar o primeiro. A conformidade à lei
não tem que ser considerada somente em função de atos. Os
pensamentos, motivos e desejos são igualmente importantes.
A lei de Deus se ocupa tanto do que conduz aos atos como dos
atos propriamente ditos. Isto não quer dizer que os atos não
importam, quer dizer que não importam somente os atos,
porque Deus leva em consideração o que os motiva. Assim não
é somente o ato consumado do homicídio ou do adultério que
contam para Deus mas os desejos da mente e do coração do
homem que o conduz a praticar tais atos ou a pensar em
praticá-los,.
Como os maus pensamentos e as más ações procedem do
coração o que importa é o coração do homem. Por isso não se
deve pensar na lei de Deus, em agradar a Deus somente em
função do que fazemos ou deixemos de fazer, porque é a
atitude interna que Deus sempre leva em conta. O estado de
nossa alma e coração.
Um outro princípio é que se deve pensar na lei não somente
de forma negativa, mas também de forma positiva. O
propósito último da lei não é somente impedir que façamos
certas coisas que são más, seu verdadeiro objetivo é nos guiar
de forma positiva, não somente para que façamos o que é bom,
como também para amá-lo.
Há quem pense na santidade e na santificação de maneira
puramente mecânica. Pensam que desde que não se
embriaguem, que deixem de ir ao teatro, etc, tudo vai bem.
sua atitude é puramente negativa. Não parece importar que
alguém seja invejoso, ciumento, rancoroso. O fato de que
esteja cheio de orgulho parece não importar contanto que não
se faça certas coisas.
127
O quarto princípio é que o propósito da lei tal como Cristo o
propõe, não é manter-nos num estado de obediência a
normas opressoras, senão fomentar o livre desenvolvimento
de nossa vida espiritual. Isto é de importância vital. Não
devemos pensar na vida santa, no caminho da santificação,
como algo áspero e penoso que nos coloca num estado de
escravidão. De maneira alguma, porque há a possibilidade
gloriosa que nos é oferecida no evangelho de Cristo para que
nos desenvolvamos como filhos de Deus, crescendo à medida
da estatura da plenitude de Cristo. O apóstolo João nos diz em
sua primeira carta que os mandamentos do Senhor não são
penosos, de maneira que se você e eu consideramos o ensino
ético do Novo Testamento como algo que nos paralisa, se
pensamos nele como algo que nos restringe totalmente,
significa que não temos entendido o propósito do evangelho
de nos conduzir à liberdade gloriosa dos filhos de Deus, e estes
preceitos específicos não são mais do que exemplos concretos
de como podemos chegar a isso e a desfrutá-lo.
Isto, por seu turno, nos conduz ao quinto princípio que é a lei
de Deus, e todas estas instruções éticas da Bíblia, nunca
devem ser consideradas como um fim em si mesmas. Nunca
devemos pensar nelas como algo que temos que colocar na
parede e dizer, como faziam os escribas e fariseus: “Bem, não
sou réu de nada disso, e portanto tudo vai bem. Sou justo e
tudo vai bem entre Deus e eu.”. Isto porque consideravam a lei
como algo em si mesma. A codificaram deste modo, e
contanto que cumprissem este código diziam que tudo estava
bem. Segundo nosso Senhor, esta é uma ideia falsa sobre a lei.
Porque não é à lei que temos que dirigir nossas perguntas,
mas a uma pessoa, ao próprio Deus. Como está minha relação
com Deus? Tenho lhe agradado? Noutras palavras, a pergunta
que tenho que fazer não é somente se tenho cometido
homicídio ou adultério, se sou culpado desta ou daquela coisa,
e caso contrário dar graças a Deus porque tudo vai bem. Não.
Uma abordagem correta seria perguntar se tenho colocado
Deus como o primeiro em minha vida, se tenho vivido para
sua honra e glória, se o tenho conhecido melhor a cada dia, se
tenho zelo por sua honra e glória, e se há algo em mim que não
se assemelha a Cristo, em pensamentos, imaginações,
desejos e impulsos. Esta é a forma correta de se perguntar em
128
relação aos princípios revelados na Lei. Ela nos foi dada para
os conduzir a isto. Assim o legalista se examina à luz de um
código mecânico de normas e regras, mas o que vive em
santidade verdadeira pelo poder do Espírito se examina à luz
de uma Pessoa viva. E assim como não temos que considerar
a lei como um fim em si mesma, de igual modo não temos que
considerar assim o Sermão do Monte.
São instrumentos que têm como finalidade nos conduzir a
uma relação autêntica e viva com Deus. Devemos ter sempre
cuidado portanto para não fazer do Sermão do Monte o que os
escribas e fariseus fizeram com a Lei de Moisés.
Não podemos viver a vida cristã aparte de uma relação direta,
viva e genuína com Deus.
Não Matarás
“21 Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás; e, quem
matar será réu de juízo.
22 Eu, porém, vos digo que todo aquele que se encolerizar
contra seu irmão, será réu de juízo; e quem disser a seu irmão:
Raca, será réu diante do sinédrio; e quem lhe disser: Tolo, será
réu do fogo do inferno.
23 Portanto, se estiveres apresentando a tua oferta no altar, e
aí te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti,
24 deixa ali diante do altar a tua oferta, e vai conciliar-te
primeiro com teu irmão, e depois vem apresentar a tua oferta.
25 Concilia-te depressa com o teu adversário, enquanto estás
no caminho com ele; para que não aconteça que o adversário
te entregue ao guarda, e sejas lançado na prisão.
26 Em verdade te digo que de maneira nenhuma sairás dali
enquanto não pagares o último ceitil.” (Mt 5.21-26)
Para detalhar em que consistia a justiça que deveria exceder
em muito a dos escribas e fariseus, conforme havia citado no
verso precedente a estes (v. 20), Jesus começou a ilustrá-la
com o ensino destes versos 21 a 26.
Este é o primeiro dos seis exemplos que Jesus apresentou para
sua interpretação da lei de Deus em contraposição à dos
escribas e fariseus.
Os escribas e fariseus eram culpados de terem restringido o
sentido e aplicação da lei.
129
Ao terem agregado ao mandamento não matarás das tábuas
da lei de Moisés, o de que o assassino se faria réu de juízo, os
escribas e fariseus reduziram e confinaram as sanções divinas
que acompanhavam o mandamento “não matarás” a um
simples castigo da parte das mãos dos magistrados civis.
A consequência é que ensinavam simplesmente: “Não deves
matar porque se o fizeres correrás o perigo de que o
magistrado civil te condene”. Esta era a interpretação total e
completa deles, do grande mandamento que diz: “Não
matarás”. Em outras palavras, haviam esvaziado o
mandamento de seu grande conteúdo e o haviam reduzido a
uma simples questão de homicídio.
Além disso, não mencionavam nada relativamente ao juízo de
Deus. Parece que importava-lhes somente o juízo da corte
local. Haviam convertido o mandamento em algo puramente
legal, e somente da letra da lei que dizia: “se cometeres
homicídio, se seguirão certas consequências”.
Assim, para os escribas e fariseus, desde que não se
cometessem homicídios, tudo estava bem diante de Deus,
porque davam o mandamento não matarás por cumprido.
Mas Jesus disse: Não. Não. Nisto se vê precisamente como o
conceito geral de justiça e de lei, do ensino dos escribas e
fariseus se converteu numa farsa completa. Tem restringido
de tal modo a lei, a têm limitado tanto que de fato já não é a lei
de Deus. Não transmite a exigência que Deus tinha em mente
quando a promulgou.
Vejamos como nosso Senhor colocou a descoberto essa
falácia dos escribas e fariseus e como nos mostra que se a
consideramos assim, entendemos mal o significado da santa
lei de Deus. Apresenta sua ideia e exposição em três princípios
que passamos a analisar.
O primeiro princípio é que o que importa não é a letra senão o
espírito. A lei diz: “Não matarás”, porém isto não significa tão
somente “Não cometerás homicídio”. Interpretá-la assim é
definir a lei com uma forma que nos permita pensar que
podemos cumpri-la. (Por exemplo, se não matamos alguém,
podemos pensar que temos cumprido a lei, apesar de odiar a
muitos e de ofendê-los e prejudicá-los, quando sabemos que
isto não é verdadeiro – nota do tradutor).
130
Assim, podemos muito bem ser culpados de violar esta
mesma lei numa forma sumamente grave. Nosso Senhor
passa a explicá-lo. Este mandamento diz, inclui não somente o
ato físico de matar, senão também a ira contra um irmão. A
verdadeira forma de entender o “Não matarás” é esta:
”Qualquer que se enfureça contra seu irmão, será culpado de
juízo”.
Agora começamos a ver algo do verdadeiro conteúdo
espiritual da lei.
Nessa antiga lei dada por meio de Moisés estava todo esse
conteúdo espiritual.
Não imaginemos, portanto, que já não temos nada a ver como
cristãos, com a lei de Moisés.
Segundo nosso Senhor Jesus Cristo, abrigar inimizade no
coração, é ser culpado de algo que, diante de Deus, é
homicídio.
Odiar, enfurecer-se, abrigar esse sentimento desagradável e
odioso de ressentimento contra uma pessoa é homicídio.
Porém isto não é tudo. Não somente não devemos nos irar;
nunca devemos sequer mostrar desprezo. Porque qualquer
que chamar seu irmão de raka será culpado ante o concílio.
Desprezar a um irmão chamando-o de raka, é, segundo nosso
Senhor, algo que, diante de Deus, é terrível.
Desprezo, sentimentos de burla e mofa, nascem do espírito
que em última instância, conduz ao homicídio.
Por várias razões, talvez não deixemos que se expresse em
verdadeiro homicídio. Porém, por desgraça, frequentemente
nos temos matado uns aos outros no pensamento e no
coração, não é certo? Temos fomentado pensamentos contra
pessoas, e esses pensamentos são tão maus como o homicídio.
Podemos destruir a reputação de alguém, podemos quebrar a
confiança de alguém em si mesmo por meio de críticas.
Isto indica nosso Senhor nesta passagem, e o propósito que o
guia é mostrar que tudo isto está incluído no mandamento,
“Não matarás”. Matar não significa somente destruir a vida
fisicamente, significa também tratar de destruir o espírito e a
alma, destruir a pessoa na forma que seja.
Nosso Senhor logo passa ao terceiro ponto: ”qualquer que lhe
diga: Tolo, será exposto ao inferno de fogo”. Isto significa
131
expressão ofensiva, difamação. Significa o ódio e inimizade de
coração que se manifestam por meio de palavras.
Estamos sem dúvida, diante de uma afirmação muito
importante. “Quer dizer”, pergunta alguém, “que a ira é
sempre má? Que sempre é proibida?” “Acaso não há
exemplos”, pergunta outro, “no próprio Novo Testamento em
que nosso Senhor falou desses fariseus em termos fortes;
quando por exemplo se referiu a eles como sendo cegos e
hipócritas, ou quando se voltou ao povo para dizer-lhes: “Oh
insensatos e tardos de coração para crer”, e “insensatos e
cegos”? Como pode proibir então que empreguemos os
mesmos termos? Como reconciliar este ensino com Mateus
23 onde maldiz aos fariseus? Estas perguntas não são difíceis
de responder.
Quando nosso Senhor lançou as maldições, o fez com caráter
judicial. O fez como quem tem recebido autoridade de Deus.
Nosso Senhor pronuncia sentença final sobre os fariseus e
escribas. Como Messias, tem autoridade para fazê-lo. Lhes
havia oferecido o evangelho, lhes havia brindado com todas as
oportunidades. Porém eles as haviam rechaçado. Não
somente isto, devemos recordar que nosso Senhor sempre
diz tais coisas contra a religião falsa e a hipocrisia. O que na
realidade censura é a justiça própria que repudia a graça de
Deus e inclusive se justificaria a si mesma diante de Deus e o
rechaçaria. É judicial, e se vocês e eu podemos dizer que
empregamos tais expressões nesse sentido, então não caímos
nesse pecado.
O mesmo ocorre com os Salmos imprecatórios, que turbam a
tanta gente. O salmista, sob inspiração do Espírito Santo,
pronuncia sentença não somente contra seus próprios
inimigos, senão contra os inimigos de Deus e contra aqueles
que ultrajam a Igreja e o Reino de Deus, tal como aparecem
nele e na nação. Em outras palavras, nossa ira deve se dirigir
somente contra o pecado; nunca devemos nos irar com o
pecador, senão somente sentir pesar e compaixão.
Diante do pecado, da hipocrisia, da injustiça e de todo tipo de
mal, deveríamos sentir ira. Assim, se cumpre a exortação de
Paulo aos efésios: “Irai-vos e não pequeis”.
As duas coisas não são incompatíveis. A ira de nosso Senhor
sempre foi uma indignação justa, ira santa, expressão da ira
132
de Deus mesmo. Recordemos que “a ira de Deus se revela
desde o céu contra toda impiedade e injustiça dos homens que
detêm com injustiça a verdade” (Rom 1.18). Nosso Deus,
contra o pecado, é fogo consumidor. Não cabe dúvida disso.
Deus odeia o mal. A ira de Deus se desencadeia contra ele e se
derrama sobre ele. Isto é parte essencial do ensino bíblico.
Quanto mais nos santificamos, maior ira sentimos contra o
pecado. Porém, nunca devemos, repito, irar-nos contra o
pecador. Nunca devemos irar-nos com uma pessoa como tal;
devemos distinguir entre a pessoa e o que ela faz. Nunca
devemos ser culpados de sentir desprezo e nem de ofender.
Passemos agora à segunda afirmação: “Nossa atitude não
deve ser negativa, senão positiva.”. Nosso Senhor o disse
assim. Depois de haver sublinhado o aspecto negativo passa a
formulá-lo de forma positiva, assim: ” 23 Portanto, se estiveres
apresentando a tua oferta no altar, e aí te lembrares de que teu
irmão tem alguma coisa contra ti, 24 deixa ali diante do altar a
tua oferta, e vai conciliar-te primeiro com teu irmão, e depois
vem apresentar a tua oferta.”
Estamos diante de algo muito importante e significativo. Não
somente não há que se abrigar pensamentos maus e
homicidas no coração contra alguém; o mandamento de não
matar significa realmente que deveríamos tomar medidas
para reconciliar-nos com nosso irmão. O perigo é que não
detenhamos o negativo, e creiamos que, como não temos
cometido homicídio, então tudo vai bem. Porém, há um
segundo passo que temos esquecido, a saber: devemos chegar
ao ponto que não haja nenhum mal entendido sequer, em
espírito, entre nosso irmão e nós.
Tentamos expiar os fracassos morais tratando de compensar
o mal com o bem. Trata-se do perigo de oferecer certos
sacrifícios rituais para cobrir os fracassos morais. Os fariseus
eram experientes nisso. Iam ao templo com regularidade,
eram sempre meticulosos nestas matérias de detalhes e
minúcias da lei. Porém julgavam e condenavam
constantemente aos demais com desprezo. Evitavam que a
consciência lhes acusasse dizendo: “Depois de tudo dou culto
a Deus; levo minha oferta ao altar”.
Compensamos uma coisa com outra, pensando que este bem
compensa aquele mal. Não, não, diz nosso Senhor. Deus não é
133
assim. Isto é tão importante, que, inclusive se me encontrar
diante do altar com uma oferta para Deus, e de repente
recordar algo que tenho dito ou feito, algo que faz que outra
pessoa tropece ou erre; se descobrisse que em meu coração
há pensamentos ofensivos e indignos contra ele ou que criem
obstáculos, então nosso Senhor nos diz que deveríamos, em
certo sentido, inclusive deixar Deus esperando em lugar de
seguir adiante com a oferta. Devemos nos reconciliar
primeiro com o irmão e somente depois votar para fazer a
oferta. Diante de Deus de nada vale o ato de culto se aceitamos
um pecado conhecido.
Finalmente, Jesus ensinou acerca deste princípio:” 25
Concilia-te depressa com o teu adversário, enquanto estás no
caminho com ele; para que não aconteça que o adversário te
entregue ao guarda, e sejas lançado na prisão. 26 Em verdade
te digo que de maneira nenhuma sairás dali enquanto não
pagares o último ceitil.”
Jesus diz que não devemos demorar para acertar a situação.
Não somente devemos pensar em função de nosso irmão que
temos agravado, ou pelo qual sentimos inimizade, devemos
sempre pensar em nós mesmos diante de Deus. Deus é o Juiz.
Deus é o Justificador. Sempre nos exige estas coisas, e tem
poder sobre todos os tribunais do céu e da terra. É o Juiz, e suas
leis são absolutas. Tem direito a exigir até o último centavo.
Que vamos fazer, pois? Você e eu estamos em viagem neste
mundo, e aí está a lei com suas exigências. É a lei de Deus. Diz:
“Que ocorre com tua relação com o irmão, que ocorre com
isso que há em teu coração? Não tens lhe dado a devida
atenção? Aja rápido, diz Cristo. Talvez não estejas aqui
amanhã e irás para a eternidade como estás. Ponha-te logo em
acordo com o teu adversário enquanto estás caminhando
neste mundo.
A Pecaminosidade Extraordinária do Pecado
“27 Ouvistes que foi dito: Não adulterarás.
28 Eu, porém, vos digo que todo aquele que olhar para uma
mulher para a cobiçar, já em seu coração cometeu adultério
com ela.
134
29 Se o teu olho direito te faz tropeçar, arranca-o e lança-o de
ti; pois te é melhor que se perca um dos teus membros do que
seja todo o teu corpo lançado no inferno.
30 E, se a tua mão direita te faz tropeçar, corta-a e lança-a de
ti; pois te é melhor que se perca um dos teus membros do que
vá todo o teu corpo para o inferno.” (Mt 5.27-30)
Os escribas e fariseus haviam reduzido o mandamento que
proíbe o adultério ao simples ato físico de adulterar; e
pensavam que desde que não cometessem o ato
propriamente dito, o mandamento estaria perfeitamente
cumprido.
Eles haviam esquecido todo o espírito da lei. Como temos
visto, isto é algo muito vital para uma verdadeira
compreensão do evangelho do Novo Testamento: “a letra
mata, porém o espírito vivifica.”
Os dez mandamentos não podem ser tomados
separadamente. Por exemplo, o décimo diz que não se deve
desejar a mulher do próximo, e isto, obviamente, deveria ser
tomado com relação a este mandamento de não cometer
adultério. O apóstolo Paulo, nesta afirmação vigorosa de
Romanos 7, confessa que ele próprio havia caído nesse erro.
Diz que foi quando se deu conta de que a lei dizia: “Não
cobiçarás”, que começou a entender o significado da
concupiscência. Antes disso havia pensado na lei em função
de atos somente. Porém, a lei de Deus não se limita às ações,
diz: “Não cobiçarás”. A lei sempre havia insistido na
importância do coração, e essa parte, com suas ideias
ritualísticas do culto a Deus e seu conceito puramente
mecânico da obediência, ele havia esquecido completamente.
Nosso Senhor, portanto, quer sublinhar essa importante
verdade para deixá-la bem gravada em seus seguidores. Os
que pensam que podem adorar a Deus e conseguir a salvação
com suas próprias ações são réus de tal erro. Por isso nunca
entendem o caminho cristão da salvação. Nunca têm chegado
a ver que em última instância é uma questão do coração;
senão que pensam que, enquanto não façam certas coisas e
façam certas boas obras, estão justificados diante de Deus.
Assim, às pessoas que diziam, “contanto que alguém não
cometa adultério já têm cumprido esta lei”, Jesus Cristo diz:
135
“todo aquele que olhar para uma mulher para a cobiçar, já em
seu coração cometeu adultério com ela.”
Tornamos a encontrar pois, o ensino de nosso Senhor relativo
à natureza do pecado. Todo o propósito da lei, como Paulo nos
recorda, era mostrar a malícia extraordinária do pecado.
Porém, ao interpretá-lo mal desta forma, os fariseus o haviam
debilitado. Talvez em nenhuma outra parte tenhamos uma
acusação tão terrível do pecado tal como realmente é, do que
nas palavras de nosso Senhor neste caso.
Claro que sei que a doutrina do pecado não goza de boa
reputação hoje em dia. O povo não gosta da ideia, e trata de
explicá-la de forma sociológica, em função de processo e
temperamento. O homem procede por evolução de seres
inferiores, dizem, e pouco a pouco vão sacudindo estas
relíquias de seu passado e natureza inferiores. Deste modo
negam por completo a doutrina do pecado.
Porém está claro que se pensamos assim, as Escrituras
tornam-se sem significado, porque no Novo Testamento e
também no Antigo, essas ideias são básicas. Por isso devemos
analisá-las, porque nos tempos atuais nada há tão premente e
necessário como entender bem a doutrina bíblica relativa ao
pecado.
Todos estamos debaixo da influência do idealismo, que tem
predominado nos últimos cem anos, essa ideia de que o
homem vai se aperfeiçoando, e de que a educação e a cultura
vão melhorar a humanidade. Assim, a maior parte dos nossos
problemas procedem daí.
Não há evangelismo verdadeiro sem a doutrina do pecado, e
sem entender o que é o pecado.
Portanto, o evangelismo deve começar pela santidade de
Deus, a condição pecadora do homem, as exigências da lei, o
castigo a que a lei condena e as consequências eternas do mal
e de praticar o mal. Somente o homem que chega a ver a sua
maldade e culpa desta forma, recorre a Jesus Cristo para achar
libertação e redenção. A fé no Senhor que não se baseia nisto,
não é fé genuína. Pode-se ter inclusive fé sociológica no
Senhor Jesus Cristo; porém a fé genuína O vê como quem nos
liberta da maldição da lei. O verdadeiro evangelismo começa
assim, e obviamente é um chamamento ao arrependimento,
136
arrependimento diante de Deus e fé em nosso Senhor Jesus
Cristo.
Jesus ensina claramente nesta passagem do Sermão do
Monte, que o pecado não é somente uma questão de ações e
de obras; é algo dentro do coração que conduz à ação. Em
outras palavras, o que aqui se ensina é o que aparece ao largo
da Bíblia acerca deste tema, a saber, que não quer se ocupar
tanto dos pecados como do pecado. Os pecados não são senão
sintomas de uma enfermidade chamada pecado e não são os
sintomas que importam senão a enfermidade, porque o que
mata é a enfermidade e não os sintomas.
Finalmente o pecado é destruidor: “29 Se o teu olho direito te
faz tropeçar, arranca-o e lança-o de ti; pois te é melhor que se
perca um dos teus membros do que seja todo o teu corpo
lançado no inferno. 30 E, se a tua mão direita te faz tropeçar,
corta-a e lança-a de ti; pois te é melhor que se perca um dos
teus membros do que vá todo o teu corpo para o inferno.”
O pecado destrói o homem; introduziu a morte na vida do
homem e no mundo.
Sempre conduz à morte, e finalmente ao inferno, ao
sofrimento e castigo.
Assim, se neste momento não nos sentimos manchados, que
Deus tenha misericórdia de nós. Se nos sentimos satisfeitos
com nossa vida porque não temos cometido a ação do
adultério, ou do homicídio, afirmo que não nos conhecemos,
que não conhecemos a negrura e sujidade de nosso coração.
Devemos escutar o ensino do bendito Filho de Deus e
examinarmos nossos pensamentos, desejos, imaginação. E a
não ser que sintamos que somos vis e sujos, e que
necessitamos que Jesus nos purifique e limpe, a não ser que
nos sintamos impotentes com uma total pobreza de espírito, e
a não ser que sintamos fome e sede de justiça, lhes digo que
oxalá Deus tenha misericórdia de nós.
Dou graças a Deus, por ter o evangelho que me diz que Outro
que é imaculado, puro e completamente santo tem tomado
sobre Si meu pecado e minha culpa. Tenho sido lavado em seu
precioso sangue, e me tem dado sua própria natureza. Quando
me dei conta de que necessitava de um coração novo, achei
que, graças a Deus, Ele havia vindo para dá-lo a mim.
137
Mortificação do Pecado
“27Ouvistes que foi dito: Não adulterarás.
28 Eu, porém, vos digo que todo aquele que olhar para uma
mulher para a cobiçar, já em seu coração cometeu adultério
com ela.
29 Se o teu olho direito te faz tropeçar, arranca-o e lança-o de
ti; pois te é melhor que se perca um dos teus membros do que
seja todo o teu corpo lançado no inferno.
30 E, se a tua mão direita te faz tropeçar, corta-a e lança-a de
ti; pois te é melhor que se perca um dos teus membros do que
vá todo o teu corpo para o inferno.” (Mt 5.27-30).
Nosso Senhor quis ensinar ao mesmo tempo a natureza
verdadeira e horrível do pecado, o perigo terrível que o pecado
significa para nós, e a importância de fazer frente ao mesmo e
de repudiá-lo. Por isso o expressa deliberadamente desta
maneira. Fala de membros valiosíssimos, o olho e a mão, e
especifica o olho direito e a mão direita. Por que? Nós cremos
que o olho e a mão, e especialmente o olho direito e a mão
direitos são mais importantes que os esquerdos. Nosso
Senhor quis dizer portanto que se aquilo mais precioso que
temos, for a causa de pecarmos, devemos nos livrar disso. Tal
é a importância do pecado para nos privar da verdadeira vida
que Jesus expressou esta importância de tal maneira.
Como enfrentaremos pois este problema do pecado?
Gostaria de frisar que não se trata simplesmente de não
cometer certos atos. Inclui isto mas é muito mais do que isso.
A contaminação do pecado deve ser enfrentada no coração
porque Jesus diz que aquele que olhar para uma mulher para
cobiçá-la, cometeu adultério com ela em seu coração.
Não cabe a menor dúvida que um conceito inadequado do
pecado é a causa principal da falta de santidade e de
santificação, e isto é resultante em grande parte de um ensino
errôneo sobre a natureza da santificação.
Devemos captar a ideia de pecado, como algo distinto dos
pecados. Temos que saber que o Filho de Deus teve que vir dos
céus para passar por tudo o que passou, inclusive morrer na
cruz. Em nenhuma outra parte se manifesta a natureza do
pecado com cores mais terríveis do que na morte do Filho de
Deus.
138
A segunda coisa que devemos ter em conta é a importância da
alma e o seu destino eterno. “Melhor é que se perca um dos
teus membros do que todo o teu corpo ser lançado no
inferno”. Adverte-nos nosso Senhor, e o repete duas vezes
para colocá-lo em relevo. A alma é tão importante que se o
olho direito é causa de queda no pecado, é melhor arrancá-lo,
livrar-se dele, não num sentido físico. Há muitas coisas na
vida e no mundo que, em si mesmas, são muito boas e
proveitosas. Porém nosso Senhor nos diz aqui que se inclusive
estas coisas nos fazem tropeçar devemos repudiá-las, ainda
que sejam tão importantes como um dos membros valiosos do
nosso próprio corpo.
Se minhas faculdades, tendências, sentimentos, emoções,
habilidades, me conduzem ao pecado, então devo repudiá-las.
Devo levar estas coisas à morte da cruz, inclusive o afeto
natural pelos meus familiares (Lc 14.26), caso eles venham a
se tornar causa de tropeço para a minha santificação.
Tal é a importância do destino eterno da alma que tudo o mais
deve estar-lhe subordinado. Tudo o mais é secundário quando
ela está em jogo.
Não devemos permitir que nada se interponha entre nós e o
destino eterno da nossa alma.
Temos que nos dar conta de que tudo o que temos de fazer
neste mundo é preparar-nos para a eternidade.
O terceiro ponto é que devemos odiar o pecado e fazer tudo o
que possamos para destruí-lo seja ao custo do que for.
Devemos nos esforçar em odiar o pecado. Os puritanos
sabiam analisar o pecado e denunciá-lo, e muitos se riam
deles e os chamavam de especialistas em pecados. Que se ria
o mundo que quiser, porém está a maneira de se santificar.
Estudemos os puritanos, leiamos o que a Bíblia diz do pecado,
e quanto mais o fizermos nós mais o odiaremos e faremos
todo o possível para livrar-nos dele.
O quarto ponto é que devemos ter um coração puro e limpo,
um coração livre de cobiças e desejos. A ideia não é que
estejamos livres de certas ações, senão que nosso coração seja
purificado. “Bem aventurados os de coração puro porque eles
verão a Deus.”. Nunca devemos pensar na santidade somente
como não fazer algo errado, mas principalmente em
cultivarmos um coração puro. Quando temos um conceito
139
puramente negativo relativo à santidade, podemos ficar auto
satisfeitos. Mas se examinarmos o nosso coração, e
chegarmos a conhecer o que os puritanos sempre chamavam
de “a corrupção de nosso coração” nos ajudaria na
santificação. Porém não agrada a muitos examinarem seus
corações. Geralmente nos orgulhamos do nome de
evangélicos e nos sentimos muito felizes porque somos
ortodoxos e porque não somos como os liberais ou
modernistas e outros grupos da igreja que estão obviamente
equivocados. Ficamos satisfeitos com a posição em que
estamos e pensamos erradamente que devemos apenas
manter esta posição. Porém isto significa que não
conhecemos nosso coração, e nosso Senhor exige um coração
limpo. Pode-se cometer pecado no coração, Ele diz, sem que
ninguém o veja. Porém Deus o vê, e diante de Deus é horrível,
repugnante, feio, sujo. Pecado do coração!
O último ponto é a importância da mortificação do pecado. O
puritano John Owen escreveu um grande tratado sobre este
assunto.
O conceito genuíno da mortificação do pecado se encontra
em muitas passagens do Novo Testamento como Rom 8.13;
13.14 e I Cor 9.27, por exemplo.
Nestas passagens nós vemos que a natureza terrena, o velho
homem, a carne, o homem exterior devem ser crucificados
para que sejam mortos.
Nunca devemos fazer provisão para os desejos da carne (Rom
13.14) diz-nos o apóstolo.
Isto demonstra que há um sentido prático nesta mortificação
na qual está incluído portanto o ato de repudiarmos tudo
aquilo que possamos tocar, ou ver, ou fazer e que nos leve a
contaminar o nosso coração. Todo tipo de imagem virtual ou
real que sejam sugestivas para o pecado devem ser
repudiadas. Tudo o que se ler, tudo que se ouvir, tudo o que se
ver. Devemos evitar a todo custo. Ainda que isto nos traga o
sentimento de estar cortando algum órgão nobre do nosso
corpo.
A carne gosta destas coisas, portanto tenhamos cuidado e
privemo-nos delas, contrariando a nossa vontade.
Estas coisas são fontes de tentação, e quando lhes dedicamos
o nosso tempo nós estamos fazendo provisão para os desejos
140
da carne. Nós estamos colocando combustível na chama do
pecado que opera no nosso corpo.
Mas argumentam conosco que muitas destas coisas são de
autores brilhantes, que elas são educativas, que elas servem
para nos manter atualizados com o mundo; mas nosso Senhor
diz que devemos arrancar o olho e a mão. Ainda que me
tenham na conta de ignorante por evitar estas coisas é melhor
ser ignorante para o bem da minha alma, do que prejudicá-la
por manter contato com estas coisas.
Isto também significa evitar as conversações néscias e as
estórias que são insinuantes e sujas. Digamos que não
queremos ouvi-lo, que não nos interessa.
Devemos ter cuidado com quem nos reunimos. Em outras
palavras, devemos ter cuidado de evitar tudo aquilo que tende
a manchar ou impedir a nossa santificação. Devemos também
nos abster de toda aparência de mal, isto é, de qualquer forma
de pecado. Não importa que forma assuma. Tudo o que sei que
me prejudica, e tudo o que me perturba, transtorna e excita,
seja o que for, devo evitá-lo. Devo colocar como o apóstolo, o
meu corpo em servidão ao Espírito de Deus. Devo fazer morrer
a natureza terrena.
Alguém poderá dizer que isto é um escrúpulo mórbido que
me deixará atormentado e triste. Bem, há pessoas que se
tornam mórbidas. Mas se há morbidez é porque a pessoa está
relacionando a santidade consigo mesma, porque os
escrúpulos mórbidos se concentram nas pessoas. Mas a
verdadeira santidade se preocupa sempre em agradar a Deus.
Em glorificá-lo e honrá-lo. Se isto estiver presente nunca há o
risco de se tornar mórbido, e a santificação traz o fruto da paz
e da alegria do Espírito Santo que é contrário a toda forma de
morbidez.
Devemos por fim vigiar e orar para fazer frente a todas as
insinuações do mal.
Para o verdadeiro crente não há maior estímulo e incentivo na
luta para fazer morrer as obras da carne do que isto. O objetivo
de nosso Senhor ao vir a este mundo e suportar toda sorte de
sofrimentos até a morte na cruz foi para livrar-nos do
presente século mau, para redimir-nos de toda iniquidade, e
para escolher um povo exclusivo seu, zeloso de boas obras. O
propósito de tudo é que fôssemos santos e sem mancha diante
141
dele. Se seu amor e sofrimentos significam algo para nós, nos
conduziriam inevitavelmente a estar de acordo com esse
amor que exige em troca toda minha vida, toda minha alma,
tudo o que tenho.
Finalmente, estas reflexões devem nos conduzir a ver a
necessidade absoluta que temos do Espírito Santo. Vocês e eu
temos que fazer estas coisas. Porém, necessitamos de poder e
da ajuda que somente o Espírito Santo pode nos dar. É pelo
Espírito que fazemos morrer as obras da carne. Se nos
entregarmos a este trabalho de mortificação do pecado, o
Espírito nos dará do seu poder.
Portanto não devemos fazer o que sabemos que é mau.
Vivamos no poder do Espírito.
Desenvolvamos nossa salvação com temor e tremor.
Conhecendo a natureza terrível do pecado nós não
tentaremos mortificá-los com nossas próprias forças mas
com o poder do Espírito, sabendo que é Deus quem realiza em
nós o querer e o efetuar.
Sobre o Divórcio
“31 Também foi dito: Quem repudiar sua mulher, dê-lhe carta
de divórcio.
32 Eu, porém, vos digo que todo aquele que repudia sua
mulher, a não ser por causa de infidelidade, a faz adúltera; e
quem casar com a repudiada, comete adultério.” (Mt 5.31,32).
Nós analisaremos esta passagem do Sermão do Monte em
conjunto com o texto de Mt 19.3-12:
“3 Então chegaram ao pé dele os fariseus, tentando-o, e
dizendo-lhe: É lícito ao homem repudiar sua mulher por
qualquer motivo?
4 Ele, porém, respondendo, disse-lhes: Não tendes lido que
aquele que os fez no princípio macho e fêmea os fez,
5 E disse: Portanto, deixará o homem pai e mãe, e se unirá a
sua mulher, e serão dois numa só carne?
6 Assim não são mais dois, mas uma só carne. Portanto, o que
Deus ajuntou não o separe o homem.
7 Disseram-lhe eles: Então, por que mandou Moisés dar-lhe
carta de divórcio, e repudiá-la?
142
8 Disse-lhes ele: Moisés, por causa da dureza dos vossos
corações, vos permitiu repudiar vossas mulheres; mas ao
princípio não foi assim.
9 Eu vos digo, porém, que qualquer que repudiar sua mulher,
não sendo por causa de fornicação, e casar com outra, comete
adultério; e o que casar com a repudiada também comete
adultério.
10 Disseram-lhe seus discípulos: Se assim é a condição do
homem relativamente à mulher, não convém casar.
11 Ele, porém, lhes disse: Nem todos podem receber esta
palavra, mas só aqueles a quem foi concedido.
12 Porque há eunucos que assim nasceram do ventre da mãe;
e há eunucos que foram castrados pelos homens; e há
eunucos que se castraram a si mesmos, por causa do reino dos
céus. Quem pode receber isto, receba-o.” (Mt 19.3-12).
Nós temos aqui a lei de Cristo para o caso de divórcio, oriunda
de uma discussão com os fariseus. Tão pacientemente Ele
suportou as contradições dos pecadores, que as
transformou em instruções para os seus próprios discípulos.
Nós vemos nestes versículos:
O caso proposto pelos fariseus (v.3). Eles lhes perguntaram se
era lícito um homem se divorciar da sua mulher, sem que
estivessem desejando realmente serem ensinados por Ele.
Algum tempo atrás na Galileia Ele havia também se
pronunciado contra o divórcio no Sermão do Monte (Mt
5.31,32). Eles pensavam que ele se prenderia aos afetos das
pessoas em vez de aos seus preceitos. Ou pensavam que ele
diria que os divórcios não eram legais, e assim teriam ocasião
para dizer que ele estava negando a Lei de Moisés, que os
permitia.
Apesar de a Lei de Moisés prever que os divórcios somente
poderiam ser admitidos por causas justas, eles estavam
tentando ao Senhor com a insinuação de divórcios por
quaisquer motivos.
Qualquer motivo, especialmente o desgosto no matrimônio
em relação ao cônjuge foi descartado por Jesus, porque o
matrimônio é uma instituição universal para crentes e
descrentes, para temperamentos brandos ou fortes, enfim,
para quaisquer condições pessoais, então, nada há que
justifique a dissolução do laço senão a única razão
143
apresentada por Jesus de fornicação. Evidentemente, não era
a ocasião para Ele declarar, como o apóstolo Paulo viria a fazer
depois, que há a parte inocente, e livre para contrair novas
núpcias, quando a outra parte decide desfazer o laço por
qualquer outro motivo.
As Escrituras do Velho Testamento estão repletas de
princípios que revelam o quanto Deus detesta o divórcio, o
repúdio, o adultério, mas como os fariseus não faziam um uso
correto das Escrituras, eles desconsideravam completamente
o que nelas estava contido a tal respeito, e seguiam a tradição
que eles próprios inventaram para justificarem o divórcio,
com base no único preceito de que Deus havia permitido
através de Moisés que fosse dada carta de divórcio caso
alguém pretendesse desfazer o laço matrimonial. No entanto,
eles desconsideravam também o contexto em que tal
permissão havia sido concedida, e conforme se encontra
registrado no Pentateuco (Dt 24.1).
Citamos apenas a título de exemplo que Deus realmente não
aprova o divórcio, a afirmação que consta em Malaquias 2.16:
“Porque o Senhor, o Deus de Israel diz que odeia o repúdio...”.
Os fariseus sempre consideravam tudo pelo ângulo
simplesmente jurídico-legal, e as Escrituras, e Cristo, o autor
delas, sempre enfatizam o ângulo espiritual, e os princípios
espirituais que se encontram por detrás do preceito legal. A
letra da Lei é apenas um corpo do espírito que há na Lei. Mas
os fariseus não conseguiam ver o espírito, senão apenas a
letra, e assim erravam duplamente tanto por desconhecerem
o poder de Deus quanto o verdadeiro significado das
Escrituras.
Então Jesus os levou a considerar o propósito de Deus na
criação do homem e da mulher, e quanto à instituição do
matrimônio. Ele remontou até ao primeiro casal no Éden, que
se encontrava em perfeição antes da queda no pecado,
formando uma perfeita unidade diante de Deus e com Ele.
Como poderia então Deus aprovar a separação daquilo que Ele
havia unido para durar perpetuamente?
Não seria por um simples ato legal, isto é, baseado no
comprimento da Lei, sem levar em conta as condições
previstas na própria Lei, e ainda que estas fossem
consideradas, que aos olhos de Deus seria aprovada qualquer
144
separação baseada em motivos injustificados. Na verdade, aos
olhos do Senhor não há nada que justifique a separação, e até
mesmo o ato de adultério seria uma concessão para liberar a
parte inocente da continuidade do laço, no caso de apesar de
perdoar a parte culpada, não se sentisse encorajada a
continuar confiando na mesma. Assim, estaria liberada até
mesmo para contrair novas núpcias sem achar-se com culpa
diante de Deus.
Por isso Jesus citou aos fariseus a lei fundamental do
matrimônio conforme consta nas Escrituras:
“Portanto, deixará o homem pai e mãe, e se unirá a sua
mulher, e serão dois numa só carne. Assim não são mais dois,
mas uma só carne.” (v. 5, 6).
E concluiu: “Portanto, o que Deus ajuntou não o separe o
homem.” (v. 6b).
Ele afirmou assim o princípio de que o matrimônio aos olhos
de Deus é uma instituição que Ele criou para durar e não para
ser considerada pusilanimemente, por quem quer que seja.
O princípio que norteia a união matrimonial não é se me sinto
ou não feliz na mesma. Se sou de temperamento compatível
ou não com o meu cônjuge, mas que uma vez consumada a
conjunção carnal, passo a ser um com aquele com o qual me
ajuntei sexualmente.
Por isso Paulo considera um ato de adultério o de quem se
relaciona com uma meretriz, porque fazendo-se um só corpo
com ela através do ato sexual, peca contra Cristo, com quem
está unido pela fé. Fazendo-se uma só carne com a meretriz,
ele é visto aos olhos de Deus tão prostituído quanto a
prostituída à qual se uniu.
“15 Não sabeis vós que os vossos corpos são membros de
Cristo? Tomarei, pois, os membros de Cristo, e fá-los-ei
membros de uma meretriz? Não, por certo.
16 Ou não sabeis que o que se ajunta com a meretriz, faz-se um
corpo com ela? Porque serão, disse, dois numa só carne.” (I
Cor 6.15,16).
Isto tudo porque a relação matrimonial, para Deus, é mais
íntima e próxima do que a existente entre pais e filhos, e se a
relação filial não pode ser violada tão facilmente, quanto mais
a matrimonial.
145
Um filho pode abandonar seus pais, ou os pais abandonarem
seus filhos senão pelo motivo do casamento destes? Veja
então o peso que Deus colocou na instituição do matrimônio
que Ele próprio criou. Quantos ignoram isto, e pecam
grosseiramente a este respeito? Entretanto, a par da sua
ignorância, são achados em culpa perante Deus, porque a
própria natureza ensina que a família possui um caráter
sagrado para o Criador.
Os filhos trazem a herança genética comum de seus pais, e
isto é um grande argumento para que vejam que são
realmente marido e esposa, uma só carne diante de Deus. É
pela união de ambos que outros seres humanos chegam ao
mundo, e não com as características genéticas de outras
pessoas, senão somente daqueles que os geraram. Deus
poderia gerar as pessoas por outro caminho escolhido por Ele,
mas determinou fazê-lo pelo matrimônio para atender a
vários propósitos específicos, como o do aprendizado do amor
não interesseiro, da submissão, dentre tantos outros
revelados na Palavra (vide especialmente Efésios 5.22-33).
Então a unidade dos filhos com seus pais, está diretamente
dependente da unidade entre os próprios pais. E unidade
sobretudo espiritual, em amor, baseada na verdade,
conforme Deus havia intentado desde o princípio. Um
casamento assim constituído depois que o pecado entrou no
mundo, seria portanto o que melhor responderia ao propósito
original de Deus.
No entanto, nada justifica a separação, mesmo nos múltiplos
casos em que casais têm se unido, onde há por exemplo parte
crente, e parte não crente, parte santificada (crente fiel) e não
santificada (crente infiel) etc. Porque, pelo poder de Deus, é
possível até mesmo que as partes que impedem o
cumprimento do seu propósito original, sejam trazidas à
referida condição, pelo arrependimento ou conversão.
Não há impossíveis para o Senhor, e Ele sempre honrará de
uma forma ou de outra aqueles que O honram. Caso haja
relutância da parte ofensora da sua vontade em consertar-se,
Ele cuidará da parte que se manter fiel a Ele. Tudo coopera
para o bem dos que amam a Deus. Isto nunca deve ser
esquecido, mesmo no caso de uma união conjugal
aparentemente desafortunada. Aquele que tem o Senhor por
146
seu ajudador não tem nada e ninguém a temer neste mundo.
E pode aprender, tal como o apóstolo Paulo a viver contente
em toda e qualquer circunstância, inclusive nesta de um jugo
desigual imposto por um dos consortes que insista caminhar
contrariamente à vontade de Deus. Isto é possível porque o
amor de Deus que é derramado nos nossos corações pelo
Espírito Santo, nos leva a suportar todas as coisas mediante o
poder do Senhor que nos fortalece nas circunstâncias difíceis.
E este amor sobrenatural, conforme definido em I Cor 13, tudo
suporta, tudo sofre, tudo espera, porque é paciente, benigno,
longânimo e em nada é egoísta. E tudo fará para agradar e
honrar a Deus, cumprindo tudo o que Ele nos tem ordenado
em sua Palavra, e dentre estes mandamentos, o de
permanecer casado fazendo todas as coisas por amor, não
como para homens, mas para Ele mesmo, e pelo desejo de serlhe obediente em tudo.
A edificação de um lar verdadeiro depende na verdade mais
da operação de Deus do que dos próprios cônjuges, conforme
se afirma nas Escrituras (Sl 127.1). Realmente há poderes
terríveis que operam contra a unidade do casal,
especialmente os espíritos malignos, que somente o poder do
Senhor pode repreender. Especialmente casais cristãos
ficarão sujeitos a estes ataques em razão do ódio que o diabo
tem contra Deus, e tudo fará para tentar frustrar o plano que
Ele determinou para o casamento desde antes da fundação do
mundo. Se não houver então um caminhar em fidelidade de
ambos os cônjuges com Deus, dificilmente haverá uma
comunhão plena entre eles, porque sem levar em conta o
próprio pecado deles que ainda opera na carne, há estes
espíritos que somente podem ser vencidos quando estamos
revestidos com toda a armadura de Deus.
Entretanto, para que não houvesse uma desesperança numa
das partes que pretenda edificar a sua casa, enquanto a outra
permanece infiel à vontade de Deus, Ele estabeleceu o
princípio da parte crente santificar a não crente (I Cor 7.14),
isto é, eles estarão indiretamente debaixo da proteção de Deus
prevista para o matrimônio por causa da fidelidade da parte
crente a Ele. Então vale a pena esforçarmo-nos para buscar a
face do Senhor e a sua vontade, para termos paz em casa, pela
147
retribuição da honra que Lhe devotarmos, pela repreensão
que Ele fará aos espíritos que se levantam contra nós.
Esta união matrimonial somente deve ser desfeita pela
vontade de Deus, pela morte de um dos cônjuges, mas nunca
pela própria vontade do homem, nem mesmo dos
magistrados, porque afinal, não foi o homem que planejou a
instituição do matrimônio, senão Deus. Por isso Jesus disse
que o que Deus ajuntou não o separe o homem.
O profeta Malaquias declarou ao povo de Israel qual havia sido
um dos principais motivos de Deus não estar mais se
agradando deles, apesar de estarem banhando os seus altares
com lágrimas, não porém de arrependimento, mas pela dura
condição de vida em que eles se encontravam:
“14 E dizeis: Por quê? Porque o Senhor foi testemunha entre ti
e a mulher da tua mocidade, com a qual tu foste desleal, sendo
ela a tua companheira, e a mulher da tua aliança.
15 E não fez ele somente um, ainda que lhe sobrava o espírito?
E por que somente um? Ele buscava uma descendência para
Deus. Portanto guardai-vos em vosso espírito, e ninguém seja
infiel para com a mulher da sua mocidade.” (Mal 2.14,15).
Os israelitas estavam endurecidos em seus pecados, e esta foi
a mesma razão de Jesus ter dito aos fariseus porque Moisés
havia permitido que dessem carta de divórcio às suas esposas
debaixo do Antigo Pacto.
Como eles não viam o matrimônio como uma instituição
divina, e não cumpriam os propósitos fixados por Deus para
ela, o Senhor havia permitido o divórcio, mas não consentido
com isto, porque nunca foi da vontade dele que fosse separado
o que Ele uniu.
Então se um homem trataria severa e duramente a sua
esposa, sem qualquer consideração para com ela, ficando
muito longe do amor que deveria devotar a ela, como o que
Cristo tem pela Igreja, e se na dureza de seu coração, nada
melhor poderia ser esperado desta pessoa, melhor seria então
que se separasse, mas não sem deixar de atender às
necessidades legais da repudiada, daí a razão da carta oficial
de divórcio que deveria ser passada pelas autoridades, para
garantir o direito daquela que tivesse sido deixada sem causa
pelo seu marido.
148
Deus não somente vê, mas prevê a dureza dos corações dos
homens, e por isso vestiu os mandamentos do Velho
Testamento ajustando-os ao caráter das pessoas, que ele sabia
previamente, viveriam entregues à dureza de seus corações,
sem arrependimento, por causa do pecado que há no mundo.
Mas um crente que conhece a vontade de Deus a respeito do
matrimônio, não deve seguir esta norma concessiva que Ele
havia dado desde Moisés, mas seguir o mandamento de amar
a esposa assim como Cristo amou a Igreja, e a esposa amar e
respeitar o marido sendo submissa a ele. E mesmo no caso de
alguém ser crente e estando em jugo desigual, há a
possibilidade de se contar com o favor e proteção de Deus,
conforme comentamos antes, por um viver fiel a Ele.
Se a lei de Moisés considerou a dureza dos corações dos
homens, a graça de Cristo no evangelho a cura, e pode
transformar corações de pedra em corações de carne.
Se pela lei vem o pleno conhecimento do pecado, pelo
evangelho, este é dominado e vencido.
É interessante observar que se por um lado a Lei procurava
mitigar a dureza de coração permitindo o divórcio, por outro
lado condenava o crime de adultério com a punição de morte
(Dt 22.22). Mas o evangelho de Jesus Cristo mitiga o rigor da
pena do adultério, e prescreve o divórcio como uma possível
penalidade se a parte ofendida assim o desejar.
É importante também observar que a palavra usada por Jesus
em nosso texto, no original grego, não é adultério, mas
fornicação (de porneia), designando provavelmente uma
impureza cometida antes do matrimônio, e que viesse a ser
descoberta posteriormente.
A lei de Cristo tende a restaurar o homem na sua integridade
primitiva, tal como estava no Éden, antes da entrada do
pecado no mundo. E a lei do amor e perpetuidade conjugal
não é nenhum novo mandamento, porque foi instituída por
Deus desde o princípio. Então esta lei, conforme reafirmada
por Cristo é para o nosso próprio bem e de toda a sociedade,
inclusive para o próprio mundo secular, haja vista que na
maior parte dos casos não serão apenas os cônjuges as partes
afetadas por um divórcio, mas também os filhos oriundos do
seu casamento.
149
Os próprios discípulos de Jesus não haviam entendido ainda o
princípio sábio e bom que há na lei do amor e da perpetuidade
do matrimônio, e se precipitaram concluindo que se um
homem não podia, aos olhos de Deus se separar da sua esposa
quando bem lhe agradasse, sabendo eles, que se o fizessem, a
consequência seria a de terem que prestar contas com Deus
no futuro tribunal de Cristo, então, segundo eles seria melhor
não casar nunca e permanecerem solteiros.
Entretanto, desde o princípio, quando nenhum divórcio foi
permitido, Deus disse que não é bom que o homem esteja só,
e os abençoou, o homem e sua esposa, em sua união conjugal.
E apesar de o casamento trazer consigo muitas cruzes, não é
apenas nele que acharemos cruzes neste mundo, mas em
todas as áreas de atividade e de relacionamentos. Estas cruzes,
num mundo de pecado, nos ajudarão no nosso
aperfeiçoamento em santidade, especialmente, em ensinarnos a orar a Deus sem cessar e a depender dele, conforme
sempre foi da sua vontade. Assim aquilo que parece ser
contra nós, é a nosso favor, na modelagem do nosso caráter à
semelhança ao de Cristo. E o modo de carregar estas cruzes é
com paciência e gratidão a Deus em nossos corações.
É nosso dever carregar nossa cruz depois de termos nos auto
negado perante o Senhor. Não importa o que sintamos ou qual
seja a nossa vontade, senão a vontade de Deus para nossa vida.
O matrimônio é um laço, um jugo que voluntariamente
tomamos, e que segundo a vontade de Deus, devemos
continuar carregando com amor, paciência, mansidão e
voluntariamente, isto é, de livre e boa vontade.
Entretanto, o Senhor afirmou que há realmente casos em que
as pessoas permanecerão solteiras, não pela mera vontade
delas, mas por ter sido esta a vocação escolhida por Deus para
elas, para atender a propósitos específicos, tal como foi o caso
do profeta Jeremias e do apóstolo Paulo.
Nestes casos excepcionais dirigidos pela vontade de Deus é de
se supor que é melhor o aumento da graça do que o aumento
da família, e o relacionamento com o Pai e seu Filho Jesus
Cristo será preferido antes de qualquer outro tipo de
companheirismo.
Mas Jesus desaprovou totalmente como sendo danoso,
proibir matrimônios, porque nem todos estão vocacionados
150
para permanecerem solteiros, e devem portanto suportar o
jugo do estado de casado, sem estar debaixo da tentação de
evitar ou fugir do jugo que é imposto pela vocação recebida de
Deus neste mundo.
Assim, aqueles que sofreram a calamidade de terem sido feito
eunucos pelos homens, ou por um defeito de nascença, sendo
impossibilitados fisicamente de contraírem núpcias,
não deveriam de fato se casarem, mas recorrerem à
providência de Deus para superarem a condição que lhes foi
imposta, independentemente da vontade deles. Apesar desta
calamidade, há a oportunidade de servirem melhor e
desimpedidamente a Deus no estado de solteiros.
De maneira que é uma virtude e graça divina aqueles que se
fizeram eunucos por amor ao reino de Deus, atendendo à
vocação recebida do próprio Deus para servi-lo em tal estado
de solteiro. Estes que foram capacitados a terem uma
indiferença santa a todos os prazeres do estado de casado,
serão honrados pelo Senhor no voto de celibato que fizeram,
em obediência à vontade de Deus, que correspondeu à própria
vontade deles.
Por isso Jesus disse que este estado de solteiro é uma condição
que pode ser suportada somente por aqueles a quem é dada
tal capacitação pelo próprio Deus.
Finalmente, gostaríamos de registrar um fato real para
ilustrar a possibilidade de alguém ser feliz apesar de não ter
um casamento nos moldes que Deus planejou para esta
instituição desde o princípio. Trata-se de uma esposa que
chamaremos de “J” cujo marido chamaremos de “M”. Eles se
encontram casados há mais de trinta e cinco anos, tendo dois
filhos com cerca de trinta anos de idade. “J” se converteu a
Jesus depois de alguns anos de casada, tendo seu esposo “M”
permanecido incrédulo até o presente. Ele se opôs duramente
a ela quanto ao fato de ter que deixá-lo em casa, ainda que uma
só vez aos domingos, para ir à igreja. Ela ficou por um bom
tempo em oração para que Deus trabalhasse no coração de
“M” porque não queria agir de forma insubmissa. Ela tanto
orou que ele consentiu que assistisse somente os cultos das
noites de domingo. Isto foi uma grande alegria e vitória para
ela. Sabemos que continua orando para que ele aceite a sua
participação nas demais programações de sua igreja. Mas o
151
que é digno de registro é o fato de que ao exigir que ela
permaneça em casa no domingo pela manhã, ele não fica em
casa porque sempre se reúne com um grupo de
companheiros para ficarem bebendo num bar da esquina
onde residem. Você perguntará qual é o perfil de crente de “J”:
uma mulher infeliz? Desgostosa da vida e com o seu Deus? Ao
contrário, ela se esforça para ser uma boa esposa, apesar de
tudo, conforme ordenado pela Bíblia, e é uma mulher feliz,
cheia de fé e a alegria no Senhor Jesus. Ela conta o modo
sobrenatural como Deus exerce governo sobre o seu marido,
de maneira que ele tem sido, apesar de suas fraquezas, cada
vez mais atencioso para com ela, e suas idas para o bar estão
ficando menos frequentes. Ela sabe que é por amor a ela, que
Deus não permite que os espíritos malignos tenham livre
acesso ao seu lar, e assim ela sempre tem desfrutado em casa
a paz de Jesus em sua vida. Sempre apegada à Palavra de Deus
é uma fonte de inspiração e socorro para muitas vidas, sempre
compartilhando com seus irmãos em Cristo porções da
Palavra de Deus com fé e alegria no Espírito. Estas joias são
exemplos que Deus nos dá para seguirmos e para que nos
consolemos nas aflições que teremos que experimentar
enquanto neste mundo.
O Crente e os Juramentos
“33 Outrossim, ouvistes que foi dito aos antigos: Não jurarás
falso, mas cumprirás para com o Senhor os teus juramentos.
34 Eu, porém, vos digo que de maneira nenhuma jureis; nem
pelo céu, porque é o trono de Deus;
35 nem pela terra, porque é o escabelo de seus pés; nem por
Jerusalém, porque é a cidade do grande Rei;
36 nem jures pela tua cabeça, porque não podes tornar um só
cabelo branco ou preto.
37 Seja, porém, o vosso falar: Sim, sim; não, não; pois o que
passa daí, vem do Maligno.” (Mt 5.33-37)
Um dos principais propósitos da lei de Moisés relativa ao
cumprimento dos juramentos era o de restringir a prática da
mentira.
Havia a tendência do povo de fazer juramentos pelas coisas
mais triviais e não cumpri-los.
152
Com o menor pretexto juravam em nome de Deus. O objetivo
da lei foi, pois, acabar com esses juramentos volúveis e feitos
às pressas, de demonstrar que fazer um juramento era algo
muito grave, algo que havia que se reservar somente para as
causas e condições e levavam algo de grave e excepcional
importância especial para o indivíduo ou para a nação.
O povo de Israel deveria recordar que tudo o que faziam era
importante porque eram o povo de Jeová que é santo. Eram o
povo de Deus, e se lhes recordava que inclusive seu falar e
conversação, e sobretudos nos juramentos, tudo deveria ser
feito de tal forma que refletissem que Deus lhes estava
contemplando.
É necessário analisar com cuidado a proibição de Jesus
relativa a juramentos neste texto, porque Ele mesmo disse
que não veio revogar a lei e os profetas, mas cumprir. E se
Deus fosse contrário a todo tipo de juramento, Ele não teria
apresentado mandamentos relativos à prática de juramento
na lei de Moisés. É dito nas Escrituras que o próprio Deus
jurou por si mesmo quando fez a promessa da Nova Aliança a
Abraão.
A conclusão a que chegamos, baseados na Bíblia, é que, ainda
que haja que se restringir o jurar, há certas ocasiões solenes e
vitais quando é lícito jurar.
Está bastante claro que ao proibir juramentos vãos, nosso
Senhor queria proibir o uso do nome sagrado de Deus para
blasfemar ou maldizer. O nome de Deus e de Cristo nunca
devem ser usados deste modo. Por isso Jesus condena tal
prática de maneira absoluta e total.
Além de proibir o jurar pelo nome de Deus, também proibiu
juramento por alguma criatura, porque tudo pertence a Deus.
Toda palavra proferida deve ser digna de crédito, inclusive na
conversação comum. É nisto que consiste o sim, sim, não, não
proferido por Jesus.
Deus é verdadeiro, e portanto, tudo o que procede de nossa
boca deve ser verdadeiro.
Para nós o jurar falso é terrível. Nunca pensaríamos em cair
nele. Porém, dizer mentiras é tão mal como jurar falso,
porque, como crentes, sempre deveríamos falar na presença
de Deus. Somos seu povo, e uma mentira que digamos alguém
pode se interpor entre sua alma e sua salvação em Jesus.
153
Tudo o que fazemos tem suma importância. Não devemos
exagerar nem permitir que os demais exagerem ao falarem
conosco, porque o exagero se converte em mentira. Produz
uma impressão falsa nos ouvintes. Tudo isto está incluído
neste texto. Uma vez mais, examinemo-nos. Deus tenha
misericórdia de nós, porquanto somos como os escribas e
fariseus, tratando de distinguir entre mentiras grandes e
pequenas, mentiras e coisas que não são propriamente
mentiras. Somente há uma maneira de resolver isto. Não lhes
estou exortando a que sejam mórbidos, nem a que caiam em
escrúpulos enfermiços, porém, devemos dar-nos conta de
que estamos sempre na presença de Deus. Dizemos que
andamos neste mundo em intimidade com Ele e com seu
Filho, e que o Espírito Santo habita em nós. Muito bem: “Não
entristeçais o Espírito Santo de Deus”, diz Paulo. Ele tudo vê e
ouve – todo exagero, toda mentira insinuada. E por que se
entristece? Porque é Espírito da verdade, e perto dele não
pode haver mentira.
Olho por Olho e Dente por Dente
“38 Ouvistes que foi dito: Olho por olho, e dente por dente.
39 Eu, porém, vos digo que não resistais ao homem mau; mas
a qualquer que te bater na face direita, oferece-lhe também a
outra;
40 e ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te a túnica, largalhe também a capa;
41 e, se qualquer te obrigar a caminhar uma milha, vai com ele
duas.
42 Dá a quem te pedir, e não voltes as costas ao que quiser que
lhe emprestes.” (Mt 5.38-42)
A frase “olho por olho e dente por dente” encontra-se em Ex
21.24, e como todas as sanções da Lei mosaica tinha por alvo
controlar os excessos, e neste caso o que se pretendia
controlar era a ira, a violência e o desejo de vingança. E não é
sem razão que há tal dispositivo na Lei, porque por natureza
somos dados a nos vingarmos daqueles que nos prejudicam.
Então Deus colocou este dispositivo na Lei para que os que
viessem a usar de violência soubessem que não ficariam
154
impunes e que receberiam a justa retribuição do próprio ato
que praticaram contra outrem, em si mesmos.
A expressão olho por olho, dente por dente era uma forma de
se dizer que a punição não deveria ficar aquém e nem ir além
da transgressão praticada. Assim, a Lei ajustou o castigo à
transgressão de modo que não ficasse aquém da mesma, e
nem mesmo que a excedesse. E a Lei foi dada com o fim
preventivo principalmente de se evitar os excessos na
aplicação das penas pelas autoridades encarregadas de fazer
justiça. Era portanto, uma norma que não foi dada para ser
executada pelo povo de Israel, mas pelos seus juízes.
Mas os escribas e fariseus dos dias de Jesus haviam deturpado
esta aplicação preventiva da Lei, dando-lhe um sentido
negativo para atender aos próprios interesses deles em
insistir na aplicação da Lei de forma legalista, pensando
somente nos seus direitos. Em vez de desencorajarem a
prática de atos de vingança pela aplicação judiciosa do
princípio legal, eles acabavam por estimulá-la com o próprio
sentimento de vingança que habitava em seus corações e que
podemos ver bem exemplificado na maneira como
conduziram Jesus para ser julgado e condenado à morte de
cruz pelos romanos, quando o próprio Pilatos havia
reconhecido que não havia nenhuma culpa em Jesus, que lhe
tornasse digno de morte.
Para bem entendermos o ensino de Jesus devemos ter sempre
presente que Ele não proferiu o Sermão do Monte como um
código legal, ou como um conjunto de regras para abranger
toda a nossa conduta em todos os aspectos da vida. Ele não é
uma nova lei para substituir a lei mosaica, mas foi proferido
para enfatizar o espírito da lei, especialmente contra o ensino
errôneo dos escribas e fariseus. Para revelar que a lei é muito
mais do que simples letra, e que tendo um espírito somente
pode ser entendida e vivida por aqueles que são capacitados
pela graça de Deus para tal.
O Senhor disse que não devemos resistir ao homem mau. É o
que está escrito mas se o aplicarmos de forma estrita e
rigorosa chegaremos a interpretações ridículas e até mesmo
impossíveis. Leão Tolstoy, usando este texto influenciou a
muitos ensinando que tais palavras deveriam ser aplicadas de
maneira literal, e assim não deveria haver exército, polícia e
155
juízes porque seria anticristão. E afirmava isto com base nas
palavras de Jesus de que o mau não deve ser resistido. E se a
polícia resiste ao mau, então deve ser abolida.
Mas devemos levar em conta alguns princípios básicos para
uma correta interpretação das palavras de Jesus. O primeiro
deles é que este ensino não é para nações ou para o mundo.
Ele se aplica exclusivamente aos cristãos, particularmente no
cumprimento da missão deles de pregarem o evangelho a
toda criatura.
É ao crente que Jesus dirige este ensino e não ao homem
natural, vítima do pecado e de Satanás, e que de modo algum
pode viver uma tal vida como esta. É preciso ter nascido de
novo para viver de tal modo.
Consequentemente, pegar este ensino e transformá-lo numa
política de países e nações é uma heresia. Deus tem instituído
as autoridades, que trazem a espada para castigo dos
malfeitores, e o crente deve crer na lei e na ordem, e nunca
deve ser negligente nos seus deveres de cidadão de um
Estado, porque Deus lhe tem imposto este dever.
As autoridades devem controlar a ilegalidade, restringir o
crime e o vício e para isto devem usar o princípio de justiça
com equidade, conforme ensinado no ”olho por olho, dente
por dente”. É algo para ser usado portanto, pelas autoridades
com a promulgação e aplicação de leis justas, e não por
indivíduos, conforme ensinavam os escribas e fariseus, e
muito menos no caso de crentes que estão debaixo de algo
muito mais elevado que é o respeito e acatamento das leis por
amor a Deus e pela capacitação da sua graça, e não pelo
simples temor da punição, conforme é o caso da maioria
daqueles que são do mundo.
Vemos então que o ensino de Jesus de que não se deve resistir
ao homem mau nada tem a ver com as nações ou com o
chamado pacifismo cristão, nem com o socialismo cristão ou
outras coisas semelhantes a estas.
O fato de ser ordenado ao crente que não resista ao homem
mau não significa que deve sujeitar-se a ele praticando o mal
tal como ele, mas que não deve tentar vencê-lo com a energia
de seus próprios poderes e capacidade, senão entregar-se a
Deus, pela fé, que é justo Juiz. E isto o levará a dar um passo
mais adiante, que é o de orar pelos seus perseguidores e pelos
156
que lhes maldizem na expectativa que se arrependam de seus
pecados e se convertam a Deus. Sem tal disposição será
praticamente impossível pregar o evangelho, porque é fato
notório que os pecadores resistem a vir a Cristo e não raro,
costumam infamar aqueles que são os instrumentos usados
por Ele para trazê-los a Si.
Assim, este ensino de Jesus se aplica somente ao crente em
suas relações pessoais, e não enquanto cidadão de seu país.
A relação do crente com o Estado é descrita em várias outras
passagens da Bíblia, mas não nesta passagem do Sermão do
Monte (Rom, I Pe 2 etc).
O verso 42, que faz parte do conjunto deste ensino, inclui a
questão de dar e emprestar a quem nos pede, sem lhe virar as
costas. Ora, alguém diria, o que isto tem a ver com olho por
olho, com não resistir ao mau, com oferecer a outra face, com
dar a capa a quem nos leva a túnica pleiteando por ela em
juízo, com caminhar duas milhas com quem nos obriga a
caminhar uma? Parece que não deveria estar inserido aqui.
Mas é justamente esta inclusão do verso 42 que nos ajuda a
entender melhor o ensino de Jesus nesta passagem. Isto nos
leva a entender que o Senhor queria enfocar o problema do eu
e da nossa atitude para conosco mesmo. Ele está dizendo que
se pretendemos ser cristãos, devemos morrer para o eu. Não
está sendo enfocado se devemos ou não servir o Exército, ou
qualquer outra coisa, mas o modo como penso de mim
mesmo e de minha atitude para comigo mesmo.
É um ensino muito espiritual que ilustra de maneira prática a
atitude adequada que devo ter para comigo mesmo em
relação ao espírito de auto defesa que se coloca
imediatamente em movimento quando me fazem algo mau
(ser atacado pelo homem mau) ou que me seja incômodo (dar
e emprestar).
Devo também examinar o desejo de vingança e o espírito de
represália que é tão inerente ao eu natural.
Deste modo, esta atitude do eu diz respeito às injustiças que
sofremos quanto às exigências da comunidade e do Estado, e
por fim da atitude quanto às posses pessoais. Nosso Senhor
põe por descoberto esta coisa horrível que controla o homem
natural – o eu, essa herança terrível que provém do homem
157
caído e que faz que o homem se glorifique a si mesmo e se
tenha por deus.
O erro dos escribas e fariseus portanto, foi que interpretaram
“olho por olho, dente por dente”, numa perspectiva
puramente legal, ou como algo físico e material. Assim
seguem atuando os homens. Reduzem este ensino
surpreendente à questão da pena de morte ou se têm que
participar ou não das guerras. Não, diz Cristo, “é uma
questão espiritual, é questão de toda a tua atitude, sobretudo
da tua atitude para contigo mesmo e se queres ser meu
discípulo, deves morrer para ti mesmo.”. Nós vemos isto em
Mt 16.24: “Então disse Jesus aos seus discípulos: Se alguém
quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz, e
siga-me;”.
A Capa e a Segunda Milha
“40 e ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te a túnica, largalhe também a capa;
41 e, se qualquer te obrigar a caminhar mil passos, vai com ele
dois mil.” (Mt 5.40,41)
O conjunto dos mandamentos dos versos 38 a 42 significa isto:
não devemos nos preocupar com as ofensas e agravos
pessoais que recebamos, sejam de ordem física ou de
qualquer outra. Ser golpeado na face é humilhante ofensivo.
Porém, se pode ofender de muitas maneiras. Pode-se ofender
com a língua ou com o olhar. Nosso Senhor deseja criar em
nós um espírito que não se ofenda facilmente por essas coisas,
e que não busquemos represálias imediatas. Deseja que
cheguemos a um estado no qual nos sintamos indiferentes
quanto ao ego e ao apreço próprio.
O ensino de nosso Senhor nesta passagem não quer dizer que
não devemos nos preocupar com a defesa da lei e da ordem.
Oferecer a outra face não quer dizer que não importa nada o
que possa ocorrer no âmbito nacional, que haja ordem ou
caos. De nenhum modo. Este foi o erro de Tolstoy, que dizia
que não deveria haver polícia, nem soldados ou magistrados,
por causa de uma compreensão incorreta destes
mandamentos de Jesus.
158
O que nosso Senhor diz é que não tenho que me preocupar
comigo mesmo, por minha honra pessoal e assim
sucessivamente.
Porém isto é muito diferente de não se preocupar com as leis
e com a ordem, ou com a defesa dos fracos e indefesos.
A ilustração relativa a este assunto que nosso Senhor utiliza
quanto à túnica e a capa significa que não devemos nos fixar
na tendência de fazer valer os nossos direitos legais.
Para tanto deu o exemplo do homem que levanta um pleito
diante de um tribunal judaico do passado para ficar com
minha túnica. Segundo a lei judaica não se podia levantar
pleito contra ninguém para tirar-lhe a capa, ainda que fosse
legal fazê-lo em relação à túnica.
Porém nosso Senhor diz: “ao que quiser pleitear contigo, e
tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa”.
Esta é também uma questão difícil, e a única forma de resolver
o problema é fixar-se bem no princípio, que é esta tendência
de exigir sempre os direitos legais. Vemos isto
frequentemente nos tempos atuais. Há quem não se canse de
dizer que o verdadeiro problema do mundo de hoje é que todo
mundo fala de seus direitos e não de seus deveres.
Nosso Senhor se ocupa desta tendência nesta passagem.
Os homens sempre pensam em seus direitos e dizem: “todo
mundo deve respeitá-los”. Este é o espírito do mundo e do
homem natural que deve conseguir o que é seu e insiste nisso.
Este, nosso Senhor quer demonstrar, não é o espírito cristão.
Diz que não devemos insistir em nossos direitos legais,
inclusive se às vezes podemos sofrer injustiças como
resultado disso.
Agora, é importante colocar ao lado deste princípio, outros
mandamentos de Jesus, como por exemplo o de Mt 18.15-17, no
qual diz:
“15 Ora, se teu irmão pecar, vai, e repreende-o entre ti e ele só;
se te ouvir, terás ganho teu irmão;
16 mas se não te ouvir, leva ainda contigo um ou dois, para que
pela boca de duas ou três testemunhas toda palavra seja
confirmada.
17 Se recusar ouvi-los, dize-o à igreja; e, se também recusar
ouvir a igreja, considera-o como gentio e publicano.” (Mt
18.15-17)
159
Em outras palavras, não parece que nos está dizendo que
devemos apresentar a outra face ou que demos a capa além da
túnica.
Lemos também em João 18.22,23 a quem lhe havia dado uma
bofetada: “22 E, havendo ele dito isso, um dos guardas que ali
estavam deu uma bofetada em Jesus, dizendo: É assim que
respondes ao sumo sacerdote? 23 Respondeu-lhe Jesus: Se
falei mal, dá testemunho do mal; mas, se bem, por que me
feres?”
Protestou como veem, contra quem lhe havia ferido
injustamente.
Como podemos explicar estas aparentes contradições? Nosso
Senhor, no Sermão do Monte parece dizer-nos que sempre
temos que apresentar a outra face, e que se alguém nos põe
em pleito para tirar-nos a túnica que devemos dar-lhe
também a capa. Porém, Ele próprio, quando foi golpeado na
face, não apresentou a outra, senão que protestou. E o
apóstolo Paulo insistiu em Filipos, depois de ter sido surrado
com varas, sem um julgamento formal, que seus agressores
se retratassem pública e formalmente. Se aceitamos o
princípio original, não é difícil harmonizar os dois tipos de
afirmações. Pode ser compreendido assim. Esses casos não
são exemplos de nosso Senhor ou de Paulo insistindo em seus
direitos pessoais. O que nosso Senhor fez foi censurar a
violação da lei e fez o protesto para defender a lei. Disse
àqueles homens de fato o seguinte, em outras palavras: “Não
sabeis, que golpeando-me assim violais a lei?”. Não disse: “Por
que me ofendeis?”
O apóstolo Paulo fez exatamente o mesmo. Não protestou
porque lhe haviam encarcerado. O que lhe preocupou foi que
os magistrados vissem que ao prendê-lo haviam feito algo
ilegal e haviam violado a lei que teriam o dever de aplicar. De
maneira que lhes recordou a dignidade e a honra devidas à lei.
Quanto a andar a segunda milha, era um costume muito
comum no mundo antigo, por meio do qual o governo teria o
direito de mandar a um homem quanto a uma questão de
transporte. Teria que transportar uma carga, de modo que as
autoridades tinham o direito de mandar-lhe a qualquer parte,
e de levar a dita carga desde o lugar designado até a seguinte
etapa.
160
Este direito era exercido por um país que tivesse conquistado
a outro, e naquele tempo os romanos haviam conquistado a
Palestina. O exército romano controlava a vida dos judeus, e
com frequência faziam isso.
Talvez alguém se achava ocupado em algo pessoal, quando de
repente se apresentava um pelotão de soldados e lhe diziam
que deveria levar uma carga até um certo ponto. Se fosse uma
milha de distância, a isto se refere nosso Senhor dizendo que
deveria se dispor a caminhar mais uma milha além da exigida.
Estamos de novo diante de algo muito importante e prático. O
princípio é que, não somente temos que fazer o que nos é
pedido, senão ir mais além no espírito do ensino de nosso
Senhor nesta passagem. Nela se destaca o desgosto pessoal
que o homem natural tem diante das exigências que lhe faz o
governo. Se refere ao ódio que sentimos pelas leis que não nos
agradam, às que nos temos oposto.
Tomemos por exemplo a questão do pagamento de impostos.
Talvez não gostemos disso e o odiemos, porém, o princípio
que se aplica é exatamente o mesmo que o do caso das duas
milhas.
Nosso Senhor diz que não somente não devemos ficar
aborrecidos com estas coisas, mas que devemos fazê-las
voluntariamente, e estar inclusive dispostos a ir mais além do
que nos é exigido.
Nosso Senhor condena todo ressentimento que possamos
sentir contra o governo legítimo de nosso pais. O governo que
está no poder tem o direito de fazer estas coisas, e nosso dever
é cumprir a lei. E devemos fazê-lo ainda que estejamos
completamente em desacordo com o que se faz, e ainda que o
consideremos injusto. Se tem autoridade legal e sanção
legítima, nosso dever é fazê-lo.
Negar-se a Si Mesmo e Seguir a Cristo
“38 Ouvistes que foi dito: Olho por olho, e dente por dente.
39 Eu, porém, vos digo que não resistais ao homem mau; mas
a qualquer que te bater na face direita, oferece-lhe também a
outra;
161
40 e ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te a túnica, largalhe também a capa;
41 e, se qualquer te obrigar a caminhar uma milha, vai com ele
duas.
42 Dá a quem te pedir, e não voltes as costas ao que quiser que
lhe emprestes.” (Mt 5.38-42).
Ninguém pode praticar o que nosso Senhor ilustra aqui nesta
passagem a não ser que tenha subjugado o eu, com seu direito
relativo a si mesmo, o direito de decidir o que tem de fazer, e
sobretudo deve subjugar o que costumamos chamar de
“direitos do eu”. Em outras palavras, não devemos nos
preocupar com nada que se refira a nós mesmos. Todo o
problema da vida consiste em última instância nessa
preocupação com o eu; e assim o que Jesus ensina nesta
passagem é que devemos nos livrar do eu completamente.
Devemos livrar-nos desta tendência constante de velar pelos
interesses do eu, de estar tão atento a agravos e ofensas,
sempre na defensiva. Tudo deve desaparecer, e isto significa
que devemos deixar de ser tão sensíveis quanto ao eu. Esta
sensibilidade mórbida, esta situação em que o eu sempre se
encontra, em tão delicado equilíbrio, que a mínima
perturbação pode alterar esse equilíbrio, deve ser descartada.
O apóstolo Paulo diz o seguinte de si mesmo em I Cor 4.3:
“Todavia, a mim mui pouco se me dá de ser julgado por vós,
ou por qualquer tribunal humano; nem eu tampouco a mim
mesmo me julgo.”. Ele havia colocado nas mãos de Deus o
problema de julgar, e desta maneira, havia chegado a um
estado em que nada poderia feri-lo. Este é o ideal que deve ser
buscado – esta indiferença ao eu e aos seus interesses.
Uma afirmação que o grande George Muller fez em certa
ocasião acerca de si mesmo parece ilustrar isto muito
claramente. Ele assim escreveu: “Houve um dia em que
morri, morri completamente, morreu George Muller e as
suas opiniões, preferências, gostos e vontade; morri para o
mundo, para a sua aprovação ou crítica; morri para a
aprovação ou censura, inclusive de meus irmãos e amigos, e
desde então tenho procurado somente apresentar-me como
aprovado para Deus.”.
162
Esta é uma afirmação que deve ser ponderada a fundo. Não
posso imaginar uma síntese mais perfeita e adequada do
ensino de Jesus nessa passagem, do que esta.
Muller pôde morrer para o mundo e para a sua aprovação e
censura, morrer inclusive para a aprovação ou censura de
seus amigos e companheiros mais íntimos. Veja a sequência
que Muller apresenta: Primeiro o mundo, depois os amigos e
companheiros. Porém, o mais difícil é morrer para si mesmo,
para a própria aprovação ou censura de si mesmo. Há muitos
grandes artistas que mostram desdém pela opinião do
mundo. Se o mundo não aprovar as suas obras, pior para o
mundo, diz o grande artista. Mas podem ser sensíveis à
opinião das pessoas que lhes são mais achegadas. Porém o
cristão deve alcançar a fase em que supere inclusive isto e darse conta que não deve deixar que seja dominado por isso. E
então deve passar à fase final, isto é, ao que pensa de si mesmo
– à aprovação ou censura de si mesmo, à forma em que não
julga mais a si mesmo, tal como o apóstolo Paulo.
Enquanto estivermos preocupados com isto, não estaremos a
salvo das outras duas formas. De maneira que a chave de tudo,
como nos recorda George Muller, é que devemos morrer para
nós mesmos. George Muller havia morrido para si mesmo,
para sua opinião, para suas preferências, para seus gostos,
para a sua vontade. sua única preocupação , sua única ideia
era mostrar-se aprovado para Deus.
E é exatamente isto que Jesus ensinou aqui, isto é, que o crente
deve chegar a uma situação e estado em que possa dizer isto.
É certo que o mundo despreza a quem é assim e admira a
pessoa agressiva, a pessoa que luta por seus direitos, e que
está sempre disposta para defender-se e defender a sua honra.
Assim, somente o cristão pode colocar em prática este ensino
do Senhor. Com isto, Ele nos diz que devemos ser
completamente diferentes, que temos que mudar por
completo, e que temos que chegar a ser um novo ser. E
somente quem nasceu de novo do Espírito pode aprender a
viver de tal forma.
Agora, como se pode viver este tipo de vida na prática?
Primeiro devemos enfocar o problema do eu de uma maneira
honesta. Devemos deixar de apresentar desculpas, e examinálo de uma forma honesta, direta e concreta.
163
Como nos comportamos quando estamos sofrendo uma
injustiça? Quando somos incomodados e ofendidos? Quando
o mecanismo natural de autodefesa entra em operação devo
me perguntar o seguinte: Qual é a minha verdadeira
preocupação
em
relação
a
isto?
Preocupo-me
verdadeiramente com algum princípio geral de justiça?
Devemos escutar a voz que fala dentro de nós e diz: “Sabes
perfeitamente bem que é o teu eu, esse orgulho horrível, essa
preocupação por ti mesmo, por tua reputação, por tua
grandeza” – sim, é isso, devemos admiti-lo e confessá-lo. Será
sumamente doloroso, e contudo, se queremos elevar-nos até
o ensino de nosso Senhor, temos que passar por este processo
da negação do eu.
Nós vemos por este ensino do Sermão do Monte, que quando
Jesus ensinou que devemos nos auto negar para segui-lo,
tomando a nossa cruz, Ele estava se referindo muito mais do
que a uma simples mudança de algo de natureza nocional,
intelectual, ou filosófica.
Devemos considerar de modo prático até que ponto o eu
controla a nossa vida. Examinem suas vidas, seu trabalho
diário, as coisas que fazem, os contatos que têm que
estabelecer com as pessoas. Pensem por um momento até que
ponto o eu entra em tudo isto. É uma descoberta
surpreendente e terrível ver até que extremo o interesse
próprio e a preocupação por si mesmo estão implicados,
inclusive na pregação do evangelho. É uma descoberta
horrível. Mas queremos mudar, e por que? Por causa da glória
de Deus, ou pela própria glória? Tudo o que dizemos e
fazemos, a impressão que produzimos nas pessoas, o quê nos
preocupa na realidade? Se analisarem toda sua vida, não
somente suas ações e conduta, senão sua roupa, seu aspecto,
tudo, se surpreenderão por descobrir até que ponto esta
atitude insana relativa ao eu entra em todas as coisas.
Alguma vez temos nos dado conta de até que ponto a
infelicidade, os problemas, os fracassos de nossas vidas se
devem a uma só coisa, a saber, ao eu. Recordemos os períodos
tristes, de tensão, de irritabilidade, o mau caráter, as coisas
feitas e ditas das quais nos envergonhamos, as coisas que nos
turbaram, e que nos desequilibraram. Examinemos uma por
uma, e nos surpreenderemos em descobrir que quase todas
164
elas têm relação com este problema do eu, da sensibilidade,
do buscar sempre o eu. Essa vida da alma deve ser negada. Ela
deve morrer, não a alma propriamente dita, mas o estarmos
sob o controle dela. Por isso Jesus falou da necessidade de
perdermos a nossa vida (alma – psiquê) para acharmos a
verdadeira vida do céu, que procede de Deus.
Foi o eu o responsável pela queda no Éden. O eu sempre
significa desafiar a Deus, e por isso é sempre algo que nos
separa dele.
Todos os momentos de infelicidade na vida se devem em
última instância a esta separação de Deus. Uma pessoa que
está em verdadeira comunhão com Deus é feliz. Não importa
que esteja na prisão, que tenha os pés amarrados ao tronco,
que esteja queimando numa fogueira; é feliz em sua
comunhão com Deus. Não tem sido esta a experiência dos
santos ao longo dos séculos?
E a causa da separação de Deus é o eu. Quantas vezes nos
sentimos infelizes, isto é, de uma forma ou de outra buscamos
a nós mesmos e pensamos em nós mesmos, em vez de buscar
a comunhão com Deus. O homem, segundo a Bíblia, foi criado
para viver completamente para a glória de Deus. Foi criado
para amar ao Senhor com todo o seu coração, com toda a sua
alma, e com toda a sua mente e com todas as suas forças. Todo
o ser do homem (espírito, alma e corpo) foi criado para
glorificar a Deus.
Por conseguinte, todo o desejo de glorificar a si mesmo ou de
proteger os próprios interesses é necessariamente
pecaminoso, porque almejo a mim mesmo em vez de almejar
a Deus e de buscar a sua honra e glória. E é exatamente isto o
que Deus tem condenado no homem. É isto que o coloca
debaixo da maldição e da ira de Deus.
Assim, a santidade significa a libertação desta vida centrada
no eu. Daí ser importante estudar sobre a separação de alma e
espírito operada pela Palavra, quando tratamos do assunto da
santificação. Deste modo, a santificação não é para ser
concebida primordialmente em função de atos, senão em
função de uma atitude em relação a si mesmo. Não significa
basicamente que não se faça certas coisas e que se faça outras.
Há pessoas que nunca fazem certas coisas que são
consideradas pecaminosas, porém estão cheias de orgulho.
165
Por isto devemos considerar a santidade em função do eu e de
nossa relação para com nós mesmos, e devemos dar-nos
conta de que a essência da santidade é que possamos dizer
com George Muller que temos morrido, morrido
completamente, para este eu que tem causado tanta ruína na
nossa vida.
Finalmente, passemos ao nível mais elevado e examinemos o
problema do eu à luz de Cristo. Por que o Senhor veio a este
mundo? Veio em última instância para livrar os homens do
eu. Nós vemos nele perfeitamente esta vida desinteressada.
Pensemos da sua vinda da glória do céu ao estábulo de Belém.
Por que veio? Há uma só resposta para a pergunta. Não pensou
em si mesmo. Este é o cerne da afirmação que Paulo faz em
Filipenses 2, de que Jesus sendo igual a Deus, não pensou
nisto; não se aferrou a isso, ao direito que tinha de manifestar
sempre a sua infinita glória. Humilhou-se, e negou a si
mesmo. Nunca haveria uma encarnação se o Filho de Deus
não colocasse o eu, por assim dizer, de lado.
Depois, vemos essa sua vida desinteressada na terra.
Frequentemente repetiu que as palavras que proferia não as
falava de Si mesmo, e as ações que realizava não eram suas,
mas do Pai, que lhas havia dado. Assim entendo o ensino de
Paulo acerca da humilhação voluntária da cruz. Significa que,
ao se tornar semelhante ao homem, se fez voluntariamente
dependente de Deus; não pensou nada em si mesmo. Disse
que veio fazer a vontade de Deus, e dependeu completamente
de Deus para tudo, nas palavras que pronunciou e em tudo o
que fez. Não viveu o mínimo para si mesmo. E Paulo diz que
devemos ter o mesmo sentimento que houve em Cristo Jesus.
Ele era inocente e sem culpa, e contudo, quando lhe
maldiziam, não respondia com maldição; quando padecia, não
ameaçava, senão se entregava ao Pai que julga retamente (I Pe
2.23). A cruz de Cristo é o exemplo supremo, e a argumentação
do Novo Testamento é esta, que se dizemos que cremos em
Cristo e cremos que Ele morreu por nossos pecados, significa
que nosso maior desejo deveria ser morrer para o eu. Este é o
propósito último da sua morte, não somente que pudéssemos
receber perdão, ou que pudéssemos ser salvos do inferno. Foi
mais para que pudesse constituir um novo povo, uma nova
166
humanidade, uma nova criação, e que constituísse um novo
reino com Ele.
Ele é o primogênito entre muitos irmãos, é o modelo. Deus
nos fez como Paulo diz aos efésios, “sua feitura, criados em
Cristo Jesus” (Ef 2.10). Temos de ser feitos conforme à imagem
do seu Filho. Assim afirma a Bíblia. De maneira que podemos
dizer que a razão da sua morte na cruz foi que nós pudéssemos
ser salvos e livrados da vida do eu. “Um morreu por todos, logo
todos morreram;” diz o apóstolo Paulo. E por que? Ele mesmo
dá a resposta logo em seguida: “e ele morreu por todos, para
que os que vivem não vivam mais para si, mas para aquele que
por eles morreu e ressuscitou.” (II Cor 5.14,15). Esta é a vida
para qual Deus nos tem chamado. Não a vida de autodefesa ou
de sensibilidade, senão uma vida tal que, inclusive se nos
ofendem, não agiremos em represália; se recebermos uma
bofetada na face direita estaremos dispostos a apresentar a
outra; se alguém nos tomar a túnica estaremos dispostos a
dar-lhe também a capa; se nos obrigarem a levar uma carga
por uma milha, iremos duas; se alguém vier nos pedir algo,
não diremos que temos direito de estar apegados ao que nos
pertence, mas que se houver real necessidade, estaremos
prontos a ajudar e a dar. Tenho acabado com o eu, tenho
morrido para mim mesmo, e minha única preocupação é a
glória e honra de Deus.
Esta é a vida para a qual nos chama o Senhor Jesus Cristo. Ele
morreu para que possamos vivê-la.
Graças a Deus que o evangelho nos diz também que Jesus
ressuscitou e que tem enviado à Igreja, e a cada um dos que
creem nele, o Espírito Santo com todo seu poder renovador e
fortalecedor. Se tentarmos viver este tipo de vida por nós
mesmos, estaremos condenados ao fracasso. Mas com a
bendita promessa do Espírito Santo de vir morar e atuar em
nós, temos esperança. Deus tem feito possível esta vida e se
George Muller pôde morrer para o eu, por que não
deveríamos cada um de nós, que somos cristãos, morrer do
mesmo modo para o eu que é tão pecador, que conduz a tanta
calamidade, desdita e dor, e que em última instância é uma
grande negação da obra bendita do Filho de Deus, na cruz, no
monte Calvário.
167
Amar aos Inimigos
“43 Ouvistes que foi dito: Amarás ao teu próximo, e odiarás ao
teu inimigo.
44 Eu, porém, vos digo: Amai aos vossos inimigos, e orai pelos
que vos perseguem;
45 para que vos torneis filhos do vosso Pai que está nos céus;
porque ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons, e faz chover
sobre justos e injustos.
46 Pois, se amardes aos que vos amam, que recompensa
tereis? não fazem os publicanos também o mesmo?
47 E, se saudardes somente os vossos irmãos, que fazeis
demais? não fazem os gentios também o mesmo?
48 Sede vós, pois, perfeitos, como é perfeito o vosso Pai
celestial.” (Mt 6.43-48)
Nestes versículos 43-48 temos a última das seis ilustrações
que nosso Senhor utilizou para explicar seu ensino relativo à
lei de Deus para o homem, em contraposição com a
interpretação pervertida dos escribas e fariseus.
(Não era portanto, nenhum acerto na lei que Jesus estava
fazendo nestas passagens, mas dando a correta interpretação
da lei, contra o ensino errôneo que vinha sendo ministrado
aos judeus. De igual modo, há tal necessidade ainda em nossos
dias na Igreja, porque há muitos que não interpretam a
Palavra de Deus corretamente, apesar de alegarem serem os
autênticos guardiões da Palavra, tal como os escribas e
fariseus se tinham em tal conta. É importante pois, à luz do
que temos aprendido que não devemos ser crédulos, isto é,
não darmos crédito simplesmente ao que nos é ensinado
relativamente à Bíblia, pela mera alegação de que devemos
nos submeter à autoridade daqueles que nos ensinam. Se o
ensino for correto amém. Mas, caso contrário, devemos nos
submeter à verdade revelada, e não à suposta verdade, que é
resultante de uma interpretação incorreta das Escrituras –
nota do tradutor).
Por exemplo, nosso Senhor utilizou para explicar seu ensino
relativo à lei de Deus para o homem, em contraposição com a
interpretação pervertida dos escribas e fariseus, a afirmação
que estes faziam que se deveria amar o próximo e que se
deveria odiar os inimigos. Imediatamente alguém pergunta:
168
onde encontraram isto no Antigo Testamento? Há nele
alguma afirmação que diga isto? A resposta é, desde pronto:
Não. Porém, era isto que ensinavam os escribas e fariseus e o
interpretavam assim. Diziam que o próximo era somente um
israelita; ensinavam pois os judeus a amarem os judeus,
porém lhes diziam também que os demais teriam que
considerá-los não somente como estranhos senão como
inimigos.
De fato chegaram inclusive a indicar que era quase um
direito, um dever, odiar aos estrangeiros. Sabemos pela
história do ódio e ressentimento que dividia o mundo antigo.
Os judeus consideravam a todos os demais com cães e muitos
gentios depreciavam os judeus. Havia esse horrível muro de
separação que dividia o mundo e que produzia com isso uma
intensa animosidade. Havia, portanto, muitos entre os zelosos
escribas e fariseus que pensavam que honravam a Deus
depreciando a todos os que não eram judeus. Pensavam que
deveriam odiar a seus inimigos. Porém essas duas afirmações
não podem ser achadas juntas em nenhuma passagem do
Antigo Testamento.
(Disto os crentes devem aprender que não estão honrando a
Deus quando desprezam aqueles que não são crentes. Deus
não faz acepção de pessoas e lhes ordena que amem a seu
próximo como a si mesmos. Não importa o quanto sejam
perseguidos ou desprezados. Devem amar seus inimigos,
conforme Jesus nos ensinou. Este amor aos inimigos não
significa contudo em estar em acordo com eles e concordar
com tudo o que fazem. Ao contrário, nós vemos o próprio
Senhor advertindo seriamente os escribas e fariseus. Não se
deve negociar a paz com a venda da verdade. Dizer a verdade.
Repreender o errado. São formas de se expressar amor pelo
próximo, porque com isto estamos zelando pelo destino
eterno de sua alma. A pregação densa e forte do evangelho,
chamando as pessoas ao arrependimento, tal como havia feito
por exemplo, João, o Batista, em relação aos escribas e fariseus
era uma grande prova de amor, e não o contrário, porque todo
aquele que lhe desse ouvido e se arrependesse, seria livrado
da condenação eterna. O crente pode ser amaldiçoado por
seus inimigos, mas é seu dever esforçar-se para que eles
169
cheguem a alcançar a bênção da salvação em Jesus Cristo, que
deve ser oferecida a todos sem exceção – nota do tradutor).
Nosso padrão de tratamento das pessoas deve ser o mesmo
com o qual são tratadas por Deus. Ele é completamente
longânimo e não busca fazer mal a ninguém por causa das
ofensas que recebe dos pecadores.
Ele é perfeito em misericórdia e somos chamados a seguir o
seu exemplo.
Assim, a forma de tratar as demais pessoas nunca deve
depender do que são, ou do que nos tenham feito.
(É importante observar de modo prático, que Deus abençoa os
ímpios dando-lhes chuvas, o calor do sol, colheitas, saúde e
tantos outros bens que não podemos enumerar, provando
assim a sua completa bondade. Por outro lado, não deixa o
homem, por causa da condenação eterna que lhe aguarda por
causa do pecado, sem as aflições que lhe acompanham neste
mundo, tanto internas, quanto externas, que provam que
realmente, apesar de toda a bondade de Deus, e de ter criado
tudo muito bom, como afirmou no princípio da criação, no
entanto, esta se corrompeu por causa do pecado, e necessita
da redenção e restauração que são operadas somente por
Jesus. Então, este inferno que pode ser sentido na alma, por
causa do pecado, que se traduz em desarmonia em
relacionamentos, em depressões e tantas outras
enfermidades da alma, são indicações misericordiosas da
parte de Deus para nos alertar que há um inferno eterno
aguardando por todo aquele que não se arrepender de seus
pecados e se voltar para Ele. Então, quando se vive na paz e no
amor que há em Cristo Jesus, comprova-se também, por outro
lado, que há também um céu de bênção e glória eternas, que
são acessados por meio da comunhão com Jesus, e que
aguarda por todos aqueles que amam verdadeiramente ao
Senhor – nota do tradutor).
Deus contempla o mundo e vê nele tanto pecado e miséria,
porém o vê como algo que provem da atividade de Satanás.
Porém há um sentido em que vê ao homem injusto de um
modo diferente. Preocupa-se por ele, por seu bem-estar, e por
isso faz que o sol venha para ele, e que a chuva desça sobre ele.
Nós devemos aprender a fazer isto. Devemos aprender a olhar
os outros e dizer: “Se fazem isto contra mim, por que o
170
fazem?” Porque são vítimas de Satanás; porque lhes governa o
deus deste mundo e são suas vítimas indefesas. Não devo
chatear-me. Vejo-lhes como pecadores abocanhados pelo
inferno. Devo fazer todo o possível para salvá-los porque é
assim que Deus opera, que deseja que todos se salvem e
cheguem ao conhecimento da verdade, e que não tem prazer
na morte espiritual e eterna de ninguém.
Foi por amar o homem perdido no pecado que Deus enviou
seu Filho unigênito ao mundo para salvá-lo.
Este amor aos inimigos nada tem a ver com sentimentalismo.
Há uma grande dose de sentimentalismo em relação a isto.
Há quem diz que tem que fazê-lo para que todos se tornem
nossos amigos. Esta é por vezes a base do pacifismo. Pensam
que as pessoas mudarão desde que as tratemos com
amabilidade. Há quem pense assim, porém devemos ser
realistas e não sentimentalistas, porque sabemos que isto não
é correto e que não é eficaz. Não, nossa ação não tem como
objetivo fazer com que se tornem nossos amigos.
Outros pensam que o amor aos inimigos significa não lhes
impor qualquer forma de disciplina. Esta é a ideia sociológica
moderna em relação ao problema. Pensam erroneamente
que sem castigos e sem disciplina as pessoas se tornam
melhores. Pensam que apenas devemos ser amáveis.
Como pois, podemos manifestar o amor de Deus nos contatos
com outras pessoas? Deste modo: “Bendizei aos que vos
maldizem. Orai pelos que vos perseguem.”
Isto pode ser dito com outras palavras da seguinte forma:
“Respondam com palavras amáveis aos que lhes dirigem
palavras ofensivas”. Quando ouvimos palavras duras temos a
tendência de responder do mesmo modo. Porém nossa norma
deve ser de palavras amáveis em vez de ásperas.
Em segundo lugar: “façam o bem aos que vos odeiam”, quer
dizer atos de benevolência em vez de atos malévolos. Quando
alguém se tem mostrado realmente malévolo e cruel para
conosco, não devemos responder com a mesma moeda.
Devemos orar pelas pessoas que nos perseguem. Devemos
cair de joelhos e falar conosco mesmo antes de fazê-lo com
Deus. Em lugar de nos mostrarmos amargurados e duros, em
lugar de reagir em função do ego e com o desejo de cobrarmos
171
o fato, devemos recordar que tudo o que fizermos deve estar
debaixo de Deus e diante de Deus.
Devemos entender a diferença entre amar e agradar. Cristo
disse: “Amai os vossos inimigos” e não que “Agradem seus
inimigos”, Agradar é algo muito mais natural que amar. Não
somos chamados a agradar a todo mundo. Não é possível.
Porém nos é ordenado amar. É ridículo mandar que alguém
agrade outra pessoa. Depende da constituição física, de
temperamento e de mil e uma coisas mais. Isto não importa.
O que importa é que oremos pela pessoa que não nos agrada.
Isto não é agrado, senão amor.
O amor é mais que sentimento. O amor no Novo Testamento
é muito prático, porque este é o amor de Deus, que guardemos
os seus mandamentos. O amor é ativo.
Que Fazeis Demais?
“E, se saudardes somente os vossos irmãos, que fazeis
demais? não fazem os gentios também o mesmo?” (Mt 5.47)
Nesta expressão temos, uma vez mais, uma das definições
perfeitas quanto ao que constitui o crente. Apresenta-se o
aspecto dual: desalento e alento; a queda e o levantamento.
Aqui está: “Que fazeis demais?” Nosso Senhor começou
dizendo: “Porque lhes digo que se vossa justiça não for maior
que a dos escribas e fariseus, não entrareis no reino dos
céus”. Os escribas e fariseus tinham normas elevadas, porém
a justiça à qual nosso Senhor se refere é mais que essa justiça;
há algo especial nela.
Nosso Senhor nos diz nesta passagem que o caráter único do
crente é duplo. Antes de tudo é um caráter único que lhes
separa de tudo o que não é cristão. “Porque se amais aos que
lhes amam, que recompensa tereis? Não fazem o mesmo os
publicanos?”. Eles podem fazê-lo, porém vocês são diferentes.
O crente é diferente dos demais. Faz o que fazem os demais, é
certo, porém faz algo mais. É isto que nosso Senhor vem
colocando em todo o tempo, em relevo. Qualquer um pode
levar uma carga por uma milha, mas o crente é quem vai a
segunda. Sempre faz mais do que os demais. Isto é, sem
dúvida, tremendamente importante.
172
O crente, segundo a definição de nosso Senhor, não é
somente alguém que dá mais do que os demais; faz o que os
outros não podem fazer. (Como por exemplo amar os inimigos
e fazer o bem aos que lhe perseguem. O homem natural não
pode fazer isto, senão apenas amar os que lhe amam –nota do
tradutor).
“Sede pois, vós perfeitos, como vosso Pai que está nos céus é
perfeito”. Isto é estupendo, porém é a definição essencial do
crente. O crente tem de ser como Deus, tem de manifestar em
sua vida diária neste mundo cruel, algo das características do
próprio Deus. Tem que viver como viveu o Senhor Jesus
Cristo, seguir suas normas e imitar seu exemplo. Não
somente será distinto dos demais. Tem que ser como Cristo.
O que temos que nos perguntar, se queremos saber com
certeza se somos ou não verdadeiros cristãos, é isto: “Há isso
em mim que não se pode explicar em termos naturais? Há
algo especial e único em mim e em minha vida que nunca será
encontrado em um não cristão?
Que é o cristão? Não é alguém que lê o Sermão do Monte e diz:
“Vou viver assim, vou seguir a Cristo e imitar seu exemplo.
Essa é a vida que vou viver com minha grande força e
vontade”. Nada disso. Lhes direi o que é o cristão. É alguém
que se tem convertido em filho de Deus e que possui uma
relação única com Deus. Isto o faz especial. “Que fazeis
demais?” Deveria ser especial, vocês deveriam ser especiais,
porque são pessoas especiais.
Deus se tem convertido no Pai dos crentes. Não é o Pai do não
cristão; para eles é Deus e nada mais, o grande Legislador e
Juiz. Porém, para o crente, Deus é Pai.
Como pode um homem que nunca tem tido o amor de Deus
derramado em seu coração amar os seus inimigos e fazer
todas estas coisas? É impossível. Não pode fazê-lo; e além disso
não o faz. Nunca tem havido um homem fora de Cristo que o
tenha podido fazer.
Concluo, pois, com esta penetrante pergunta. É a pergunta
mais profunda que um homem pode fazer para responder
nesta vida. Há algo especial em mim? Não pergunto se
vivemos uma vida moral, reta, boa. Não pergunto se oramos,
se vamos à igreja com regularidade. Não pergunto nada disso.
Há pessoas que fazem todas estas coisas e contudo não são
173
crentes. Se isto é tudo, que fazemos mais que os demais, que
há em mim que seja especial? Há em nós algo desta qualidade
especial? Há algo de nosso Pai em nós? Esta é a pedra de toque.
Se Deus é nosso pai, de uma forma ou de outra, o parentesco
familiar estará aí, os laços de nosso parentesco
inevitavelmente se manifestarão. Que há de especial em nós?
Deus nos conceda que ao examinarmos a nós mesmos,
possamos descobrir algo desse caráter único e dessa
separação que não somente nos divide dos demais, senão que
proclama que somos filhos de nosso Pai que está nos céus.
174
Mateus 6
“1 Guardai-vos de fazer as vossas boas obras diante dos
homens, para serdes vistos por eles; de outra sorte não tereis
recompensa junto de vosso Pai, que está nos céus.
2 Quando, pois, deres esmola, não faças tocar trombeta diante
de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para
serem glorificados pelos homens. Em verdade vos digo que já
receberam a sua recompensa.
3 Mas, quando tu deres esmola, não saiba a tua mão esquerda
o que faz a direita;
4 para que a tua esmola fique em secreto; e teu Pai, que vê em
secreto, te recompensará.” (Mt 6.1-4)
Chegamos agora a uma seção completamente nova do
Sermão do Monte, que engloba todo este sexto capítulo.
Estamos diante do que poderíamos chamar de descrição do
cristão que vive sua vida neste mundo na presença de Deus,
em submissão ativa a Deus, e em dependência total dele.
Não existe maior falácia do que imaginar que no momento em
que alguém se converte e que se torna cristão, que todos seus
problemas são resolvidos e que todas as suas dificuldades
desaparecem.
A vida cristã está cheia de dificuldades, cheia de dores e de
insídias.
Por isso necessitamos da Bíblia. Das instruções detalhadas
que nos são dadas por Cristo e pelos apóstolos, porque a vida
do crente neste mundo é uma vida cheia de problemas.
Há perigos latentes na própria prática da vida cristã, e
também em nossas relações com outras pessoas neste
mundo.
Ao examinarem sua própria experiência, e também, ao lerem
as biografias dos servos de Deus, descobrirão que muitos têm
passado por dificuldades, e muitos têm sido encontrados por
um tempo cheios de amargura, e têm perdido sua experiência
de alegria e felicidade da vida cristã, porque têm se esquecido
destes aspectos.
Como veremos, há pessoas que estão equivocadas em sua vida
religiosa, e há outras que parecem andar bem neste sentido,
porém, devido a tentações muito sutis no aspecto mais
175
prático, tendem a andar mal. Por isso, temos que examinar
ambos aspectos.
Convém portanto, advertir desde o começo, que este sexto
capítulo é muito penetrante, de fato, poderíamos inclusive
dizer que é muito doloroso.
Às vezes, me parece que é um dos capítulos mais incômodos
de toda a Bíblia. Move e examina e nos põe um espelho frente
aos olhos, e não nos permite escapar. Não há outro capítulo
que sirva melhor que este para estimular a própria
humilhação e humildade.
Porém devemos dar graças a Deus por isso, porque o cristão
deveria estar sempre desejoso em conhecer a si mesmo.
Somente o homem que tem visto verdadeiramente a si
mesmo, tal como é, tem a probabilidade de recorrer a Cristo,
e buscar a plenitude do Espírito de Deus, que é o único que
pode consumir os vestígios do ego e tudo o que tende a fazer
com que se perca o viver cristão.
Como no capítulo anterior, neste também se ensina, em
certo sentido, o contraste com o ensino dos escribas e
fariseus. Agora, não se enfatiza tanto o ensino, senão a vida
prática, incluindo aí, a piedade e toda nossa conduta religiosa.
O primeiro versículo (“Guardai-vos de fazer as vossas boas
obras diante dos homens, para serdes vistos por eles; de outra
sorte não tereis recompensa junto de vosso Pai, que está nos
céus.”) é a introdução da mensagem dos versículos 2 a 18.
Depois, o Senhor dá três exemplos ou ilustrações do princípio
geral do primeiro versículo, relativos à esmola, à oração e ao
jejum.
A vida cristã é sempre um assunto de equilíbrio, porque é uma
vida que dá a impressão de ser contraditória, porque ao
mesmo tempo que Jesus ordena que façamos nossas obras
diante dos homens para que o Pai seja glorificado, Ele também
ordena que nos guardemos de fazer as nossas obras diante dos
homens para sermos vistos por eles.
Contudo, é apenas uma aparente contradição, porque o que se
proíbe não é o fazer as obras diante dos homens, mas o motivo
errado, a saber, para a nossa própria glória, em vez de fazê-lo
exclusivamente para a glória de Deus.
Portanto os extremos de conduta em relação às obras que
fazemos para Deus devem ser evitados, a saber: recolhermo176
nos como eremitas ou em mosteiros para não sermos vistos
pelos homens, e por outro lado, exibirmo-nos por motivo de
ostentação e autoglorificação. É necessário buscar o
equilíbrio.
(Tem-se confundido portanto, nesta questão de equilíbrio,
quanto às acusações que são dirigidas contra os pentecostais,
chamando-os de exagerados e desequilibrados em sua
adoração no culto público. Ora, se os motivos são corretos, a
saber, para a exclusiva glória de Deus, então, tal como não se
podia acusar os primeiros 120 cristãos que foram revestidos
do poder do Espírito falando em línguas e glorificando a Deus
a plenos pulmões, a ponto de terem sido infamados por
muitos que diziam que estavam embriagados, de igual modo
não se pode acusar de desequilibrados aqueles que adoram a
Deus na liberdade do Espírito. A este respeito, vale lembrar
que Jesus não repreendeu, a pedido dos fariseus, os seus
discípulos que gritavam “Hosana” quando entrou
triunfalmente montado num jumento em Jerusalém,
dizendo, que caso eles se calassem, as pedras clamariam –
nota do tradutor).
Se compreendermos que o que importa é o grande princípio,
o espírito que guia a nossa ação, então não cairemos no erro,
e não nos desviaremos nem para a direita, nem para a
esquerda.
Além disso, não deixaremos de receber a recompensa divina
que é prometida àqueles que não fazem suas obras com o
propósito da autoglorificação.
O desejo da recompensa é legítimo e o Novo Testamento
inclusive o incentiva. O Novo Testamento nos ensina que
haverá um juízo de recompensa. Haverá quem receberá
muitos açoites, e quem receba poucos. Todas as ações dos
homens serão julgadas, porque é necessário que todos
compareçamos diante do tribunal de Cristo, para que cada um
receba segundo o que tenha feito enquanto no corpo, seja o
bem ou seja o mal. Deveríamos portanto, nos interessarmos
por esta assunto da recompensa.
Não há nada mau nisso, contanto que o que se deseje seja a
recompensa da santidade, a recompensa de estar com Deus.
Quanto à recompensa devemos saber que não recebem
recompensa de Deus, os que a buscam dos homens. Este
177
pensamento é aterrador, porém é uma afirmação absoluta,
porque Jesus diz: “Guardai-vos de fazer as vossas boas obras
diante dos homens, para serdes vistos por eles; de outra sorte
não tereis recompensa junto de vosso Pai, que está nos céus.”
Se temos recebido a recompensa dos homens, em qualquer
aspecto, não se receberá nada de Deus.
Se ao pregar o evangelho o que me preocupa é o que os outros
pensem de minha pregação, neste caso, esta será a única coisa
que vou receber, e nada de Deus. É algo absoluto.
Vejamos agora, o que nosso Senhor diz acerca deste assunto
concreto com respeito ao dar esmolas.
Jesus diz que não se deve tocar trombeta diante de nós quando
damos esmola, e que não saiba a nossa mão esquerda o que faz
a direita.
É evidente que isto é uma metáfora que foi usada pelo Senhor,
porque não se tocava trombeta quando os judeus davam
esmolas, especialmente os escribas e fariseus.
Não é que sempre haja um pregoeiro óbvio que vá adiante de
nós anunciando as nossas esmolas. Porém, quando
examinamos realmente nosso coração, vemos que há formas
sutis de fazer a mesma coisa.
(O modo justo de ajudar o próximo é fazê-lo secretamente, e é
a isso que o Senhor quer se referir ao dizer que não saiba a
nossa mão esquerda o que faz a direita. Este é um modo de
dizer que se possível deveria ser um segredo até para nós
mesmos, algo para não ficarmos nos lembrando para o nosso
próprio louvor e glória.
Fazê-lo assim também não expõe o ajudado a nenhum tipo de
humilhação, quer da nossa própria parte, quer da parte de
outros. De modo que seria uma boa norma, manter o
anonimato quando prestamos auxílio, especialmente
financeiro, a alguém – nota do tradutor)
Nosso Senhor nos ordena a fazer todas essas coisas movidos
por Deus, e guiados pelo Espírito Santo, e logo esqueceremos
de qualquer mérito próprio em fazê-las.
Quando tudo fazemos por amor a Deus, esquecidos de nós
mesmos, receberemos recompensa de Deus. Nada do que
tivermos feito para o bem do nosso próximo, cairá no
esquecimento.
178
Deus tudo tem registrado em seus livros contábeis. Nada
esquecerá de lançar na nossa conta para recompensar-nos.
Ainda que não nos recompense abertamente neste mundo,
certamente nos recompensará abertamente no grande dia
quando os segredos de todos os homens serão manifestos, ao
se abrir o grande Livro, quando se anunciará diante de todos
a sentença final. Todos os detalhes do que tivermos feito para
glória de Deus serão anunciados e proclamados e se atribuirá
o mérito, a honra e a glória.
Quando Orares
“E, quando orardes, não sejais como os hipócritas; pois
gostam de orar em pé nas sinagogas, e às esquinas das ruas,
para serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo que já
receberam a sua recompensa.” (Mt 6.5)
O Senhor nos advertiu para que não sejamos como os
hipócritas, que oram de pé nas sinagogas e nas esquinas das
ruas para serem vistos pelos homens. Tem dito que as vãs
repetições de nada valem em si mesmas e por si mesmas, e
que a simples quantidade de orações não produz benefícios
especiais. Também tem dito que se deve orar em secreto, e
que nunca se deve preocupar acerca dos homens e nem
acerca do que os homens possam pensar.
A oração é sem dúvida, a atividade mais elevada da alma
humana. O homem nunca é maior do que quando se encontra
de joelhos diante de Deus.
E não é incomum que aqueles que têm muito para falar na
oração na presença de outros, pouco tenham a dizer a Deus,
quando em privado. No entanto, não deveria ser assim.
A característica mais destacada de todas as pessoas santas que
o mundo tem conhecido tem sido que não somente tenham
dedicado muito tempo à oração em privado, senão que têm
achado uma grande satisfação nisso. Quanto mais santa é a
pessoa, mais tempo dedica à conversação com Deus. Assim,
pois, é um assunto de importância vital e absoluta.
João, o Batista, havia ensinado seus discípulos a orar. Os
discípulos de nosso Senhor sentiram a mesma necessidade
quando Lhe pediram que lhes ensinasse a orar.
179
Não há dúvida de que esta é nossa maior necessidade.
Perdemos as bênçãos mais importantes da vida cristã porque
não sabemos orar bem. Necessitamos de instrução em todos
os sentidos sobre esta questão. Necessitamos que nos seja
ensinado a orar, e pelo que orar. Precisamos dedicar algum
tempo para estudar o Pai Nosso, porque envolve todas estas
duas coisas de forma surpreendente e maravilhosa.
(A oração modelar do Pai Nosso contém tudo, de forma
resumida, que é necessário à oração. Nós veremos cada uma
destas instruções do Senhor quanto à forma que devemos
orar, mais adiante, valendo-nos do comentário de Thomas
Watson relativo ao assunto – nota do tradutor).
Como Orar
“5 E, quando orardes, não sejais como os hipócritas; pois
gostam de orar em pé nas sinagogas, e às esquinas das ruas,
para serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo que já
receberam a sua recompensa.
6 Mas tu, quando orares, entra no teu quarto e, fechando a
porta, ora a teu Pai que está em secreto; e teu Pai, que vê em
secreto, te recompensará.
7 E, orando, não useis de vãs repetições, como os gentios;
porque pensam que pelo seu muito falar serão ouvidos.
8 Não vos assemelheis, pois, a eles; porque vosso Pai sabe o
que vos é necessário, antes de vós lho pedirdes.” (Mt 6.5-8)
Há uma forma equivocada e outra genuína, de orar. Nosso
Senhor se ocupa de ambas.
O erro essencial da forma equivocada é que se concentra em
si mesma. É o ato de centrar a atenção naquele que está
orando em vez de centrá-la nAquele a quem se oferece a
oração. Esse é o problema, e nosso Senhor o mostra nesta
passagem numa forma muito gráfica e pertinente, pois diz:
“Quando orardes, não sejais como os hipócritas, pois gostam
de orar em pé nas sinagogas, e às esquinas das ruas, para
serem vistos pelos homens.” Colocam-se de pé, nas
sinagogas, numa posição proeminente. Recordemos da
parábola de nosso Senhor acerca do fariseu e do publicano
que foram ao templo orar. Aqui indica exatamente o mesmo.
Nos diz que o fariseu se colocou o mais adiante que pôde, no
180
lugar mais proeminente, para orar. O publicano, por outro
lado, estava tão envergonhado e cheio de contrição que se
inclinou o mais que pôde sem levantar a cabeça ao céu, senão
tão somente exclamando: “Oh Deus, tenha misericórdia de
mim, pecador!”. Também aqui nos diz nosso Senhor que os
fariseus se colocam de pé nas sinagogas e nas esquinas das
ruas, nos lugares mais visíveis, e oram para que os homens
lhes vejam. “Certamente lhes digo que já receberam sua
recompensa.”
Segundo nosso Senhor, a razão para que orem nas esquinas
das ruas é mais o menos a seguinte. O homem que se dirige ao
templo para orar está desejoso de produzir a impressão de que
é uma alma tão devota que nem sequer pode esperar chegar
ao templo. De modo que se detém a orar na esquina da rua. Por
esta mesma razão, quando entra no templo, passa adiante ao
lugar mais visível possível.
A segunda forma equivocada de orar se encontra nas
seguintes palavras: “E, orando, não useis de vãs repetições,
como os gentios; porque pensam que pelo seu muito falar
serão ouvidos.” Se tomamos estes dois quadros juntamente,
veremos que há dois erros básicos na raiz desta forma de orar
a Deus. O primeiro é que meu interesse, se sou como o fariseu,
está em mim mesmo, que sou o que ora. O segundo é que creio
que a eficácia de minha oração depende do muito que ore, ou
da forma particular em que ore.
Examinemos estes dois pontos separadamente.
O primeiro problema, pois, é o perigo de se interessar por si
mesmo. Isto se manifesta de diferentes formas. O
primeiro problema básico é que essa pessoa está desejosa de
que os demais vejam que ela está orando.
Esta é a causa de tudo. Está desejoso de desfrutar de uma
reputação de homem de oração; está desejoso disto e o
ambiciona, o que, por si só, já é mau.
Ninguém deveria estar interessado em si mesmo, como nosso
Senhor explica.
O seguinte passo neste processo é que o desejo de que os
outros nos vejam em oração, se converte em desejo positivo e
real. O anterior, por sua vez, conduz ao seguinte: a fazer coisas
que garantam que os outros nos vejam. Isto é algo muito sutil.
Nem sempre é evidente, como o que vimos no caso de dar
181
esmola. Há um tipo de pessoa que se exibe constantemente se
coloca numa posição proeminente, de forma que sempre
atrai a atenção sobre si mesma.
O que nosso Senhor diz acerca disto é: “Em verdade vos digo
que já receberam a sua recompensa.” Que desejavam?
Desejavam o louvor dos homens, e o conseguiram. E também
hoje em dia se fala deles como grandes homens de oração, se
fala deles como de pessoas que faziam orações belas,
maravilhosas. Sim, obtêm tudo isso. Porém, pobres almas, é
tudo o que conseguirão. Ao morrer se falará deles como gente
maravilhosa neste assunto da oração; não obstante, creiame, pobre alma humilde que não pode completar uma frase,
porém que tem clamado a Deus em angústia, o tem alcançado
de algum modo, e obterá recompensa, o que o outro nunca
conseguirá. Porque desejavam o louvor dos homens, e foi
apenas isso o que alcançaram.
Passemos agora à forma correta de orar.
“6 Mas tu, quando orares, entra no teu quarto e, fechando a
porta, ora a teu Pai que está em secreto; e teu Pai, que vê em
secreto, te recompensará.
7 E, orando, não useis de vãs repetições, como os gentios;
porque pensam que pelo seu muito falar serão ouvidos.
8 Não vos assemelheis, pois, a eles; porque vosso Pai sabe o
que vos é necessário, antes de vós lho pedirdes.”
O que quer dizer? A única coisa importante ao orar em
qualquer lugar é que devemos nos dar conta que estamos nos
aproximando de Deus. Isto é a única coisa que importa.
Porém, necessitamos de um pouco mais de instrução, e nosso
Senhor nos dá tais instruções. Primeiro nos ordena que
oremos em secreto, em nosso aposento, com a porta fechada.
Isto não significa que as reuniões de oração estão sendo
proibidas pelo Senhor, porque Ele também as recomenda.
O princípio é que há certas coisas que devemos excluir, seja
orando em público ou secretamente. Temos que excluir e
esquecer os outros. Inclusive devemos esquecer de nós
mesmos. Isto é o que significa entrar no aposento. É possível
estar neste aposento quando se caminha numa rua muito
movimentada. É um ato de retiro espiritual e não físico.
Entramos neste aposento quando estamos em comunhão
com Deus, e ninguém sabe o que estamos fazendo. O mesmo
182
princípio se aplica à oração pública, até mesmo quando
oramos do púlpito, porque não estamos nos dirigindo à
congregação, senão a Deus. Estou falando com Deus, estou
dirigindo a oração a Deus, de modo que tenho que excluir e
esquecer-me dos demais. (E se intercedermos em favor de
alguém, isto será movido pelo Espírito, pelo fato de estar
concentrado no Senhor – nota do tradutor).
De nada serve entrar no aposento e fechar a porta se todo o
tempo estou cheio de mim mesmo e pensando em mim
mesmo, e me orgulhando de minha oração. Não, tenho que
excluir tanto a mim mesmo quanto aos demais. Meu coração
deve estar aberto única e totalmente a Deus.
A Oração do Pai Nosso
Tradução e adaptação de Silvio Dutra do texto em domínio
público, de autoria de Thomas Watson (1620-1686).
Prefácio à Oração do Senhor
“Pai nosso que estás nos céus,”
Nesta Escritura duas coisas são observáveis: a introdução para
a oração, e a própria oração
A introdução para a Oração do Senhor é: ”Portanto vós orareis
assim”. Nosso Senhor Jesus Cristo, nestas palavras, deu aos
seus discípulos e a nós uma diretriz para a oração. Os dez
mandamentos são a regra da nossa vida, o credo é o resumo
da nossa fé, e a Oração do Senhor é o padrão de nossa oração.
Como Deus prescreveu a Moisés um padrão do tabernáculo
(Êxodo 25.9), assim Jesus prescreveu aqui um padrão de
oração para nós: ”Portanto vós orareis assim”. O significado é,
faça disto a regra e o modelo pelo qual você deverá moldar as
suas orações. Calvino dizia que nós devíamos examinar nossas
orações por esta regra. Não que nós estejamos amarrados às
palavras da Oração do Senhor. Porque Jesus não disse: “com
estas palavras”, mas “desta maneira”. E “desta maneira”
significa deixar que todos as nossas petições concordem com
as coisas contidas na Oração do Senhor. Tertuliano chamava
esta oração padrão de “breviário e compêndio do
evangelho”. A exatidão desta oração aparece na dignidade do
183
Autor. A exatidão da oração aparece na excelência do assunto.
É como prata provada num forno, purificada sete vezes Salmo 12: 6. Nunca houve uma oração tão admiravelmente
composto como esta. O assunto da oração é admirável, por
causa da sua compreensão. É curto e expressivo, E por sua
clareza. É clara e inteligível a todas as capacidades. Clareza é a
graça da fala. E finalmente por sua perfeição, porque contém
as principais coisas que nós temos que pedir, ou que Deus
tenha que dar.
Assim, devemos ter uma grande estima à Oração do Senhor; e
deixar que ela seja o modelo e padrão de todas as nossas
orações. Há um benefício duplo que surge em moldar nossas
petições adequadamente a esta oração. Por este meio o erro
em oração é prevenido. Não é fácil de escrever injustiça
depois deste modelo; nós não podemos errar facilmente
quando nós tivermos nosso padrão diante de nós. Por este
meio são obtidas misericórdias pedidas; porque o apóstolo
nos assegura que Deus nos ouvirá quando nós orarmos em
conformidade com a vontade dele - 1 João 5.14. E seguramente
nós oramos de acordo com a vontade dele quando nós
orarmos de acordo com o padrão que ele nos deu.
A oração propriamente dita consiste em três partes. 1. Um
Prefácio. 2. Petições. 3. A Conclusão. O Prefácio à oração inclui:
“Pai nosso que estás nos céus”.
I. A primeira parte do Prefácio é “Pai nosso”. A palavra Pai é
aplicada às vezes, pessoalmente: “Meu Pai é maior que
eu” (João 14.28); mas Pai no texto é aplicado essencialmente à
Divindade total. Este título, Pai, nos ensina que nós temos que
nos endereçar em oração somente a Deus.
Em que ordem temos que dirigir nossas orações a Deus? Aqui
somente o Pai é nomeado. Mas nós podemos também dirigir
nossas orações ao Filho e ao Espírito Santo?
Embora somente o Pai seja nomeado na Oração do Senhor,
contudo as outras duas Pessoas não são excluídas. O Pai é
mencionado porque ele é o primeiro em ordem; mas são
incluídos o Filho e o Espírito Santo porque eles são o mesmo
em essência. Como todas as três Pessoas subsistem na
Divindade, assim, embora em nossas orações, nomeemos
uma Pessoa, nós temos que orar a todas.
184
No prefácio, em vez de Pai Nosso, Jesus poderia ter usado Deus
Altíssimo, Deus Todo Poderoso, Deus Nosso Rei, Deus Nosso
Juiz, mas ele usou Pai Nosso por ser uma expressão de amor,
de laço familiar, de indicação da filiação efetiva que os crentes
têm com a Divindade, por causa da eleição deles; e também
para servir de encorajamento para que seus filhos orem a ele.
Nenhuma pessoa pode dizer “Pai nosso que estás nos céus”
além dos que são regenerados e santificados pelo Espírito
Santo, porque é destes que se diz que receberam o poder de
serem feitos filhos de Deus (João 1.12).
Deus é o melhor Pai, porque ele é perfeito. seu Pai que está no
céu é perfeito. Ele é perfeitamente bom (Mt 5.48). Pais
terrenos estão sujeitos a fraquezas. Elias, embora um profeta,
era um homem sujeito a paixões como nós (Tiago 5: 17); mas
Deus é perfeitamente bom. Toda a perfeição que nós podemos
chegar a ter nesta vida é sinceridade. Nós podemos nos
assemelhar um pouco a Deus, mas não igualá-lo; pois ele é
infinitamente perfeito.
E é infinitamente perfeito em sabedoria, e isto implica que Ele
sempre sabe o que é melhor para nós. E pode fazer com que
todas as coisas trabalhem para o bem dos seus filhos (Rom
8.28).
Ele é também um Pai perfeitamente amoroso (I Jo 4.16).
Ele é um Pai infinitamente rico que fará com que todos os seus
filhos entrem na posse de uma riquíssima herança eterna, na
condição de co-herdeiros com Cristo, e isto significa que
todas as coisas designadas para serem herdadas por Cristo
também serão herdadas por eles. Cristo tem um trono? Então
eles também terão. Cristo tem uma coroa? Então eles também
terão. E assim por diante.
Deus é um Pai perfeitamente educador e pode reformar os
seus filhos quando eles tomarem cursos ruins. Deus pode
mudar os corações dos seus filhos.pelo seu próprio poder.
Assim, a honra daqueles que têm a Deus por Pai é maior que a
que é conferida aos príncipes da terra, pois são preciosos para
Deus. Eles são guiados e protegidos por Deus, sendo
guardados como um tesouro precioso (Mal 3.17). Os nomes
dos filhos de Deus estão escritos no Livro da Vida (Fp 4.3) e
jamais serão retirados dali (Apo 3.5).
185
Deus faz de seus filhos por adoção mais achegados do que os
anjos, porque os anjos são amigos de Cristo, mas os crentes
são os membros do seu corpo. E que consolo é isto para os
santos, porque os filhos de Deus são menosprezados neste
mundo, e injuriados e caluniados, mas Deus porá honra nos
seus filhos no último dia e os coroará com felicidades
imortais, para inveja dos adversários deles.
Mas estes membros de Cristo são filhos por adoção por causa
da grande misericórdia de Deus. Por meio dela obtiveram
acesso a todas estas graças e à maior delas que é a salvação de
suas almas da condenação eterna. Por isso é um ato de grande
ingratidão, um grande abuso do amor de Deus, apanhar as
joias das suas misericórdias, e fazer uso delas para pecar. Deus
faz infinitamente mais por seus filhos do que pelos outros,
pois plantou a sua graça neles, e deu somente a eles poderem
participarem da sua intimidade e favor, então pecar
deliberadamente contra a sua bondade paterna é um ato de
traição e rebeldia. Somente os crentes podem pecar contra o
sangue precioso de Cristo, porque foi somente a eles que o seu
sangue purificou. E portanto, isto é uma grande ingratidão
para com o grande favor que recebemos de nosso Pai divino.
Assim, é um sinal de filiação a Deus quando podemos
lamentar pela odiosidade dos nossos pecados, porque
certamente o Espírito Santo nos convencerá disto.
Somente os verdadeiros filhos de Deus podem ter um temor
santo dele, especialmente de entristecerem o Espírito Santo
com os seus pecados. Eles também terão um santo temor pela
sua Palavra e a honrarão esforçando-se para pô-la em prática
em suas próprias vidas.
Estes filhos de Deus confiam inteiramente que foi por causa
da eleição pela graça e misericórdia de Deus que foram feitos
seus filhos, e não por qualquer coisa boa que existisse neles
próprios. Eles sabem que é por pura graça e misericórdia que
irão para o céu. Mas os hipócritas pensam que fingindo
grande reverência aos santos do passado irão para o céu,
confiando em sua própria justiça e bondade, pois eles
canonizam os santos mortos, para fingirem temor a Deus, mas
perseguem os santos que estão vivos. Destes, podemos dizer
juntamente com o apóstolo em Hb 12.8: que são bastardos e
não filhos.
186
Se nós amarmos nosso Pai divino, nós seremos defensores
para ele, pois nos levantaremos na defesa da sua verdade.
Somente os filhos de Deus não podem ouvir o seu nome sendo
desonrado e permanecerem calados. Cristo tem confirmado
o nosso nome no céu e nós nos envergonharemos de
confirmar o nome dele na terra?
Um filho de Deus o amará acima de todas as demais coisas:
sejam propriedades, honrarias, fama etc. Um filho de Deus
procurará acima de tudo honrar o seu Pai divino (Mal 1.6). E a
melhor maneira de demonstrar esta honra ao Senhor é tendo
um temor reverente dele. E isto consiste basicamente em não
ousarmos fazer qualquer coisa que ele tenha proibido na sua
Palavra.
Aquele que é filho de Deus se assemelha a Ele. Ele traz a
imagem do seu Pai celestial e busca renovar-se e crescer
diariamente nesta imagem dia a dia (Col 3.10). Ele busca se
assemelhar mais e mais em santidade que é a glória da
divindade. A santidade de Deus é a pureza intrínseca da sua
essência. Aqueles que têm a Deus por seu Pai participam da
natureza divina, entretanto não da sua essência divina,
contudo trazem a semelhança divina, e assim como o selo
deixa a sua impressão na cera, os crentes têm a santidade de
Deus estampada e impressa neles.
Nós sabemos que Deus é nosso Pai porque nós temos o
Espírito Santo habitando em nós. E o Espírito intercede por
nós e testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus.
Os filhos de Deus são aqueles que foram renovados pelo
Espírito Santo, e esta renovação é efetuada sobretudo na
regeneração, que é chamada de um nascimento do Espírito
(João 3.5). Esta regeneração é uma transformação ou mudança
de natureza, a que Paulo chama de renovação da mente (Rom
12.2). Aquele que nasce de Deus tem um coração novo, não em
substância, mas em qualidades. As cordas do violão podem ser
as mesmas, mas a melodia é alterada. Esta regeneração é
também chamada de circuncisão do coração (Col 2.11). E como
na circuncisão do prepúcio havia uma dor na carne, assim na
circuncisão espiritual há uma dor no coração, há uma tristeza
que surge de um senso de culpa pessoal por causa do nosso
pecado, e da ira de Deus contra o pecado. A regeneração afeta
a pessoa toda (espírito, alma e corpo – I Tes 5.23). E é a
187
regeneração a fonte de toda a verdadeira alegria, porque faz
com que Deus seja agora nosso Pai. E então podemos dizer:
“Pai nosso que estás nos céus”. Dizemos Pai nosso porque pela
regeneração fomos adotados numa grande família de muitos
irmãos, que tal como nós, também foram regenerados pelo
Espírito.
Nós sabemos que Deus é nosso Pai porque somos guiados pelo
Espírito (Rom 8.14), e este é mais um sinal dos que são filhos
de Deus: eles são dirigidos pelo Espírito. Não basta que um
recém-nascido viva e chegue ao mundo, ele deve ser
devidamente cuidado pelos seus pais. E não ocorre algo
diferente disso em relação aos novos convertidos.
Ninguém que não permita ser conduzido pelo Espírito Santo
tem o direito de chamar a Deus de Pai. Aqueles que são
conduzidos pelo espírito de Satanás podem sim dizer: Pai
nosso que estás no inferno.
Aqueles que promovem divisões e escândalos no corpo de
Cristo, por ensinarem de modo contrário à sã doutrina, não
têm o direito de dizer Pai nosso que estás nos céus, porque não
agem como devem agir os que são verdadeiramente filhos de
Deus: Assim, todo crente autêntico fará bem em se afastar
deles.
“Rogo-vos, irmãos, que noteis os que promovem dissensões e
escândalos contra a doutrina que aprendestes; desviai-vos
deles.” (Rom 16.17).
Estes, como diz Paulo, não conhecem o caminho da paz (Rom
3.17).
O diabo produziu a primeira grande divisão no céu. Assim,
aqueles que criam divisões têm por Pai ao diabo. Se o que está
sendo pregado e ensinado é a sã doutrina, se há paz entre os
crentes na comunhão do Espírito, e alguém dizendo-se ser
também filho de Deus levanta-se contra isto, na verdade seu
verdadeiro pai é o diabo que é o pai de contendas e divisões
contra a verdade.
O reino de Satanás cresce fazendo divisões. Crisóstomo citou
que quando ocorreram muitas conversões na igreja de
Corinto, Satanás se apressou em represar a corrente de
conversões, lançando a semente da discórdia e da divisão
entre eles. E o diabo sabe muito bem que Cristo não pode ter o
188
corpo dele dividido, pois sendo corpo, deve ser achado em
unidade.
Se Deus é um Pai, então podemos deduzir que tudo o que ele
dá aos seus filhos é por amor. Se lhes dá prosperidade é por
amor.
E este amor não exclui o fato dele nos disciplinar e corrigir
(Apo 3.19). Gregório de Nanziazeno dizia que as aflições são
setas afiadas, mas que elas são atiradas pela mão de um Pai
amoroso. A correção é a escola do caráter. Deus humilha com
amor para poder nos purificar. E a correção é tão necessária
quanto o pão diário. E por meio das aflições Deus pode
acelerar o nosso crescimento em graça. Quando a luz for
retirada nós podemos ainda ver um arco-íris no céu. A fé como
a estrela, brilha mais forte na noite escura das aflições.
E tal como José falou rudemente aos seus irmãos, contudo
havia nele um coração cheio de amor por eles, de igual modo
ainda que o olhar de Deus não seja amistoso por causa das
nossas transgressões, ainda há nele um coração de Pai cheio
de amor.
Por isso, por maior que seja a prosperidade dos ímpios neste
mundo, quão triste é o caso deles porque não têm a Deus como
Pai. Eles não podem dizer Pai nosso que está no céu. Eles
podem dizer nosso Juiz, mas não nosso Pai. Deus não é o Pai
deles. Ele afirma que nunca os conheceu (Mt 7.23), e é por isso
que o ímpio quando morre em seus pecados não pode esperar
nenhuma misericórdia de Deus como um Pai. .
Então todos aqueles que ainda são estranhos para Deus devem
se esforçar para entrarem nesta família divina, até que
possam dizer Pai nosso que estás no céu, em seus corações.
Assim como o mar cobre grandes rochas, o mar da compaixão
de Deus pode cobrir grandes pecados, e assim ninguém deve
ser desencorajado de ir à presença de Deus rogando-lhe por
misericórdia e perdão dos seus pecados.
E nós devemos ser humildes para que o Espírito Santo nos
transforme e ensine a sermos verdadeiros filhos de Deus. Nós
podemos ler muitas verdades na Bíblia, mas nós não as
podemos conhecer salvo se Deus, pelo seu Espírito as aplicar
às nossas almas. Deus não somente ensina nossos ouvidos,
mas nossos corações, e ele não informa somente nossa
mente, mas nossas vontades e inclinações. Nós nunca
189
aprendemos até que Deus nos ensine. Se Ele é nosso Pai, Ele
nos ensinará como ordenar nossos negócios com discrição (Sl
112.5) e como nos conduzir sabiamente. Ele nos ensinará o que
responder quando nós estivermos diante de governadores e
Ele porá palavras em nossas bocas (Mt 10.18-20).
Deus repreenderá os grandes do mundo para não
prejudicarem os seus filhos, porque eles são sagrados para
Ele, e não permitirá que lhes façam injustiças sem o seu
consentimento e que não seja para o próprio aproveitamento
e correção deles. Ele dirá em relação a eles: “Não toqueis nos
meus ungidos” (Sl 104.14,15). E por ungidos devemos
entender os filhos de Deus que têm a unção do Espírito Santo.
Deus se encanta na companhia de seus filhos e Ele ama ver o
semblante deles e ouvir a sua voz (Cantares 2.14). Se dois ou
três de seus filhos se reunirem, Ele estará entre eles.
E assim como um pai se compadece das fraquezas de seus
filhos, Deus também se compadece das nossas e por isso usará
o seu bálsamo para nos curar (Is 57.18).
Sendo nosso Pai Deus misturará sua misericórdia a todas as
nossas aflições. Na arca da aliança foi colocada não somente a
vara da correção como também o pote de maná.
Uma aflição vem prevenir a entrada em pecados, então há
misericórdia numa aflição. Assim como um pintor usa luzes e
sombras para compor o seu quadro, do mesmo modo Deus
combina luzes e trevas, cruzes e bênçãos para a nossa
felicidade.
Se Deus é o nosso Pai o mal não prevalecerá contra nós.
Satanás é o inimigo principal dos santos, e luta contra os
crentes num sentido militar com as suas tentações, visando à
queda deles. Contudo, de nenhum modo ele pode prevalecer
contra os filhos de Deus.
Se Deus é nosso Pai nenhum mal real nos sucederá.
“nenhum mal te sucederá, nem praga alguma chegará à tua
tenda.” (Sl 91.10).
Não é dito nenhuma dificuldade, mas nenhum mal.
Qual é o dano que o forno pode fazer ao ouro? Ele não o
purificará?
Qual é pois o dano que pode fazer a aflição ao crente? Ela o
purificará.
190
Nenhum mal tocará um santo. Quando a serpente disser a eles
que envenenou a água, nada lhes sucederá porque Cristo
tirou o veneno de todas as aflições, para que elas não possam
prejudicar os filhos de Deus.
Se Deus é o nosso Pai Ele se levantará entre nós e o perigo. Um
pai evitará que seu filho seja sugado pelos perigos, e será um
escudo de proteção para ele.
“9 E de noite disse o Senhor em visão a Paulo: Não temas, mas
fala e não te cales;
10 porque eu estou contigo e ninguém te acometerá para te
fazer mal, pois tenho muito povo nesta cidade.” (At 18.9,10).
“5 Pois no dia da adversidade me esconderá no seu pavilhão;
no recôndito do seu tabernáculo me esconderá; sobre uma
rocha me elevará.” (Sl 27.5).
Nenhum príncipe é tão bem vigiado quanto qualquer crente,
porque Deus dá ordem a seus anjos a respeito deles.
Se um só anjo matou 185.000 assírios numa só noite (II Reis
19.35), o que não poderia fazer um exército de anjos? Os anjos
são guardas alertas, vigilantes, velozes e poderosos e estão
encarregados de defender os filhos de Deus. Eles são descritos
com asas para indicar a velocidade com que eles se
movimentam para nos socorrer.
Mas Deus permitirá que muitas aflições alcancem seus filhos
para o bem deles. Foi bom para Jacó que houvesse escassez na
terra, porque foi o meio de ser conduzido novamente a José.
Assim, por vezes, os filhos de Deus veem o vazio do mundo
para que eles possam se familiarizar mais com a plenitude de
Cristo. Mas se Deus vir que será bom para eles terem mais das
coisas boas da terra, eles as terão, porque Ele não deixará que
lhes falte qualquer coisa boa que seja de fato útil para eles.
Se Deus é nosso Pai, todas as promessas da Bíblia pertencem a
nós. Os seus filhos são chamados de herdeiros da promessa
(Hb 5.17). O ímpio, enquanto em sua impiedade, não tem
direito a requerer qualquer promessa da Bíblia, senão suas
maldições.
Deus faz que seus filhos sejam vencedores. Eles vencem as
suas próprias luxúrias e o mundo. E se um filho de Deus perde
uma batalha, no entanto a sua vitória completa da guerra está
assegurada.
191
“porque todo o que é nascido de Deus vence o mundo; e esta é
a vitória que vence o mundo: a nossa fé.” (I João 5.4).
“Mas em todas estas coisas somos mais que vencedores, por
aquele que nos amou.” (Rom 8.37).
Se Deus é nosso Pai nós podemos ter conforto na morte,
porque é pela morte que vamos ao encontro do nosso Pai. No
caso dos crentes a morte é o amigo que os levará à casa do Pai.
E quão contentes ficam os filhos quando eles vão para casa. A
morte foi um conforto para Cristo porque Ele desejava ir ter
com o Pai.
“Saí do Pai, e vim ao mundo; outra vez deixo o mundo, e vou
para o Pai.” (João 16.28).
E se Deus é nosso Pai, ele não nos deserdará. Os filhos de reis
às vezes foram deserdados pela crueldade de usurpadores;
como o filho de Alexandre o Grande que foi deserdado pela
violência e ambição dos generais do seu pai; mas que poder na
terra poderá impedir os herdeiros da promessa de entrarem
na posse da herança deles? Os homens não podem, e Deus não
cortará o vínculo. Os filhos de Deus nunca podem ser
degradados ou deserdados, e o seu Pai divino não os rejeitará
como filhos. É evidente que os filhos de Deus não podem ser
deserdados finalmente, em virtude do decreto eterno do céu.
O decreto de Deus é o pilar e base dos quais a perseverança
dos santos depende. Aquele decreto amarra o nó da adoção de
modo tão forte que nem pecado, morte, nem inferno, podem
quebrá-lo.
“e farei com eles um pacto eterno de não me desviar de fazerlhes o bem; e porei o meu temor no seu coração, para que
nunca se apartem de mim.” (Jer 32.40).
Os filhos de Deus não podem ser lançados fora porque é dito
deles serem membros do seu corpo, do qual Ele é a cabeça. E
os nervos e ligamentos que mantêm unidos estes membros
do corpo uns com os outros e com a cabeça não podem ser
removidos sem que se desfaça o corpo. Como seria possível
admitir a simples ideia de que se pudesse tolerar a
permanência de um membro morto neste corpo no qual pulsa
continuamente e para sempre a vida eterna?
Todos os filhos de Deus que andam em fidelidade com Ele
haverão de experimentar o cuidado pleno do seu Pai para com
eles:
192
“Confia no Senhor e faze o bem; assim habitarás na terra, e te
alimentarás em segurança.” (Sl 37.3).
“Os leõezinhos necessitam e sofrem fome, mas àqueles que
buscam ao Senhor, bem algum lhes faltará.” (Sl 34.10).
“Seja a vossa vida isenta de ganância, contentando-vos com o
que tendes; porque ele mesmo disse: Não te deixarei, nem te
desampararei.” (Hb 13.5).
Se Deus é nosso Pai nós seremos seus imitadores (Ef 5.1). Nós
o imitaremos o seu modo de falar, gestos e comportamento. E
devemos imitá-lo no perdão e na misericórdia.
E se Deus é nosso Pai nós seremos obedientes à sua vontade
até a morte. Os dez mandamentos serão como dez cordas de
um instrumento celestial que estaremos sempre afinando e
tocando a canção da obediência a Deus em completa
harmonia.
Todo crente verdadeiro tem em si o espírito dos mártires. Ele
prefere sofrer por causa da verdade do que ver a verdade
sofrer.
“Então Paulo respondeu: Que fazeis chorando e magoandome o coração? Porque eu estou pronto não só a ser ligado, mas
ainda a morrer em Jerusalém pelo nome do Senhor Jesus.” (At
21.13).
“E eles o venceram pelo sangue do Cordeiro e pela palavra do
seu testemunho; e não amaram as suas vidas até a morte.”
(Apo 12.11).
O pronome possessivo “nosso” em “Pai nosso” insinua que
deve haver fé nas nossas orações. Fé de que estamos nos
dirigindo a alguém que possui tal relação de paternidade
conosco e que certamente nos ouvirá se estivermos orando
segundo a sua vontade.
A fé é a respiração da oração, e sem a qual ela estará morta,
sem este ar para inspirar, e é por isso que Tiago a chama de
oração da fé (Tg 5.15). A fé é um dos componentes da oração,
assim como o óleo do tabernáculo era composto de vários
elementos (Ex 30.23,24). E assim a fé é o principal ingrediente
da oração que faz com que ela suba a Deus como doce incenso.
Se a oração é a chave da porta do céu, a fé é a mão que a gira.
Lembremos que a oração pode sofrer frequentemente
naufrágios por colidir na rocha da incredulidade. Oremos pois
193
com fé que seremos ouvidos por aquele que não é Pai de
estranhos, mas nosso próprio Pai.
E orar com fé significa orar por aquilo que Deus nos prometeu.
Onde não há nenhuma promessa, nós não podemos orar com
fé.
É orar em nome de Cristo, porque orar no nome de Cristo é
orar com confiança nos seus méritos. Em sua obra Ele
mereceu receber do Pai muitos benefícios para nós. E é com
base nestes méritos e não nos nossos que nós devemos nos
dirigir ao nosso Pai. Não é reconhecendo méritos em nós, mas
reconhecendo que somos indignos pecadores e que tudo em
que pudermos ser ouvidos pelo Pai terá sido pelos méritos de
Cristo, que seremos de fato ouvidos.
Assim uma oração com fé é uma oração humilde. Devemos
lembrar do que sucede com as orações de pessoas
presunçosas pelo exemplo que Jesus nos deu na parábola do
publicano e do fariseu (Lc 18.11,12). A oração do publicano foi
ouvida e não a do fariseu porque no publicano havia um senso
da sua própria indignidade.
Um dos nomes de Deus é “tu que ouves a oração” (Sl 65.2). E
Deus está pronto não somente a ouvir como também a
responder a oração. Devemos lembrar que a oração do Pai
nosso é o modelo apresentado por Jesus aos apóstolos, no qual
devem estar baseadas as nossas orações.
“No dia em que eu clamei, atendeste-me; alentaste-me,
fortalecendo a minha alma.” (Sl 138.3).
A força interior de Davi foi uma resposta de oração e isto
deveria nos encorajar a buscarmos ser fortalecidos na graça
pelas orações que dirigirmos ao Senhor.
Quando nós oramos a Deus pedindo-lhe que nos dê corações
santos, não há nada que mais Lhe agrade do que isto, porque
a sua grande vontade para conosco é que sejamos santos (I Tes
4.3). E do mesmo modo quando oramos pedindo que nos faça
viver no seu amor, porque Deus é amor.
“Eu dizia no meu espanto: Estou cortado de diante dos teus
olhos; não obstante, tu ouviste as minhas súplicas quando eu
a ti clamei.” (Sl 31.22).
Assim, a fraqueza não tornará nula as orações dos santos.
Havia muita incredulidade naquela oração. A fé de Davi
194
tremeu e desfaleceu, contudo Deus ouviu a sua oração,
porque Davi era um filho amado de Deus.
O Espírito nos assiste em nossas fraquezas assim como havia
assistido a Davi. Então devemos implorar-lhe que nos capacite
a dizer do fundo do nosso coração:” Pai nosso”, e o Espírito nos
fará orar com suspiros e gemidos e fortalecerá a nossa fé. O
Espírito nos levará à presença do Pai, e pelo mesmo Espírito
diremos “Abba Pai” (Gl 4.6). E quando o Espírito é derramado
em nossos corações as portas dos céus são destrancadas para
nós.
A Primeira Petição na Oração do Senhor
“Santificado seja o teu nome” - Mateus 6.9
Esta é a primeira das seis petições que estão contidas na
oração do Senhor.
Com esta petição nós oramos para que o nome do Senhor
possa brilhar gloriosamente, e que possa ser honrado e
santificado por nós, no curso inteiro de nossas vidas.
Era a canção dos anjos: “Glória a Deus nas alturas”. quer dizer,
que o nome dele seja glorificado e consagrado o mais alto
possível. Esta petição é fixada em primeiro lugar para mostrar
que em nossas orações é a honra do nome de Deus que deve
vir antes de todas as demais coisas. Quer na bonança, quer na
dificuldade, tudo o que Lhe pedirmos deve antes de tudo ter o
propósito de que o seu santo nome seja glorificado. (Quão
distante está isto de se pedir coisas a Deus para a própria glória
ou interesse pessoal. Daí ser justa a repreensão do Espírito
Santo através do apóstolo Tiago aos crentes que agem de tal
maneira: “Pedis, e não recebeis, porque pedis mal, para o
gastardes em vossos deleites.” - Tg 4.3).
A Igreja Primitiva estava bem instruída quanto a isto:
“E, tendo eles orado, tremeu o lugar em que estavam
reunidos; e todos foram cheios do Espírito Santo, e
anunciavam com intrepidez a palavra de Deus.” (At 4.31).
Jesus confirmou que o primeiro e grande mandamento da lei
é amar a Deus acima de todas as coisas.
195
“37 Respondeu-lhe Jesus: Amarás ao Senhor teu Deus de todo
o teu coração, de toda a tua alma, e de todo o teu
entendimento.
38 Este é o grande e primeiro mandamento.” (Mt 22.37,38).
Não há pois nenhuma dúvida de que a glória do nome de Deus
é infinitamente mais valiosa do que as nossas próprias vidas.
Assim podemos dizer em primeiro lugar em todas as nossas
orações: “Santificado seja o Teu nome”.
Isto porque não há nada mais importante na religião do que a
própria glória de Deus. Daí se dizer que seja na vida, ou seja na
nossa morte, o que importa é que Deus seja glorificado.
Santificamos o nome de Deus pela nossa consagração a Ele, e
consagrar significa separar algo de um uso comum e reservála para um fim sagrado.
Santificamos o nome de Deus quando lhe damos elevada
honra e reverência. Nós não podemos acrescentar nada à
glória essencial de Deus, mas nós devemos honrar e santificar
o seu nome elevando-o acima de tudo o que há no mundo, de
modo que isto apareça aos olhos de outros.
A palavra hebraica para honra significa ter em preciosa
estima. E é isto que nós devemos ter em relação ao nome de
Deus.
Nós santificamos o nome de Deus quando nós Lhe
obedecemos. Como um filho honra a seu pai, senão através da
obediência?
Davi cantou louvores a Deus e foi conhecido como o mavioso
salmista de Israel (II Sm 23.1).
Louvar o nome do Senhor consagra e divulga o seu nome,
exibindo os méritos da sua excelência, aos olhos de outros.
Na oração nós agimos como homens, no louvor nós agimos
como anjos. O louvor é a música do céu.
“5 Exultem os santos na glória; alegrem-se nas suas camas.
6 Estejam na sua garganta os altos louvores de Deus, e espada
de dois fios nas suas mãos,” (Sl 149.5,6).
Somente os santos podem louvar a Deus do modo devido, e
assim como nem todos têm habilidades para tocar
instrumentos musicais, não é qualquer pessoa que pode
cantar louvores harmoniosos a Deus, senão somente os
santos.
196
É em Cristo que os crentes recebem a veste de louvor para que
possam com ela santificar o nome de Deus (Isaías 61.3). Jesus
nos veste com louvor e quão linda é esta peça de vestuário do
louvor quando é usada por um santo.
O louvor é aceitável a Deus somente naqueles que são retos,
como se vê no Salmo 33.1:
“Regozijai-vos no Senhor, vós justos, pois aos retos convém o
louvor.”.
É especialmente um elevado grau de santificação do nome de
Deus quando nós podemos bendizê-lo numa condição aflitiva,
tal como Jó: “E disse: Nu saí do ventre de minha mãe e nu
tornarei para lá; o Senhor deu, e o Senhor o tomou: bendito
seja o nome do Senhor.” (Jó 1.21).
Muitos bendizem a Deus quando Ele dá, mas bendizê-lo
quando ele tira, é um elevado grau de honrá-lo e santificar o
seu nome. Santifiquemos e elevemos o nome do Senhor desta
maneira. Ele não nos tem dado motivos suficientes para ser
louvado? Ele nos deu graça, misericórdia geradas no seu
coração, e Ele pretende coroar a graça com a glória. Isto
deveria nos fazer santificar o seu nome sendo trombetas para
o seu louvor.
Nós também santificamos o nome de Deus quando nós
simpatizamos com Ele, e nos entristecemos quando o nome
dele é desonrado. Quando nós sofremos no nosso próprio
coração a desonra que Lhe foi dirigida. Quanto Moisés se
afetou com a desonra de Deus! Ele quebrou as tábuas de pedra
dos mandamentos (Ex 32.19). Nós nos entristecemos por ver o
Dia do Senhor sendo profanado e sua adoração sendo
adulterada, e o vinho da verdade misturado com o erro. Nós
nos entristecemos quando a Igreja do Senhor é trazida a uma
condição baixa porque o nome dele sofre. Neemias derramou
seu coração por causa das misérias de Sião; ao ponto da
aparência do seu rosto ter-se modificado sem que ele pudesse
esconder a sua tristeza (Ne 2.2). Tal tristeza santa acontece
quando o nome do Senhor é desonrado.
Quando o rei da Assíria infamou o nome do Senhor, Ezequias
se dirigiu ao templo e apresentou a carta blasfema diante de
Deus (I Rs 37.17). Sem nenhuma dúvida ele deve ter molhado a
carta com suas lágrimas e tudo indica que não estava
197
temeroso em perder a sua própria vida e reino, a ver o Senhor
perder a honra da sua glória entre os homens na terra.
Nós santificamos o nome de Deus quando nós damos a mesma
honra que nós damos ao Deus Pai, ao Deus Filho. “Para que
todos honrem o Filho, como honram o Pai. Quem não honra o
Filho, não honra o Pai que o enviou.” (João 5.23).
Os Socinianos (A seita Testemunhas de Jeová sustenta a
doutrina deles – nota do tradutor) negam a divindade de
Cristo, afirmando que ele é um mero homem: que está abaixo
dos anjos. A natureza humana, considerada em si mesma, está
abaixo da angelical (Sl 8.4,5), e assim eles refletem desonra ao
Deus da glória.
Nós temos que dar honra igual tanto ao Pai quanto ao Filho.
Nós temos que crer na divindade de Cristo; porque ele é o
resplendor da glória do Pai, e a expressa imagem da sua
pessoa (Hb 1.3). A Divindade está em Cristo, e ele é Deus
porque nele habita corporalmente toda a plenitude da
divindade (Col 2.9), de maneira que Ele pode receber os títulos
divinos de onipotência (Hb 1.3); onipresença (Mt 28.20); o
poder de conceder perdão de pecados com a anulação da
culpa (Mt 9.6); igualdade com o Pai tanto em poder quanto em
dignidade (João 5.21,23).
Quando nós cremos na Divindade de Cristo, e construímos
nossa esperança de salvação na base do seu mérito; quando
nós vemos que a justiça da lei, nem a de anjos pode nos
justificar, mas somente o sangue de Cristo; isto é honrar e
santificar o nome de Deus. Deus nunca terá o nome dele
santificado a menos que o seu Filho seja honrado.
Nós santificamos o nome de Deus defendendo as suas
verdades. Muito da glória de Deus se baseia nas suas verdades.
As verdades dele são os seus oráculos. Ele nos confiou as suas
verdades como um tesouro; nós não temos uma joia mais rica
para confiar a Ele do que nossos espíritos, e nem Ele tem uma
joia maior para nós do que as suas verdades. As verdades dele
compartilham da sua glória. Quando nós formos defensores
zelosos das suas verdades, nós estaremos honrando e
santificando o nome dele. Atanásio foi chamado de bastião da
verdade; porque ele se levantava na defesa das verdades de
Deus contra os asiáticos, e assim era uma coluna no templo de
Deus.
198
Nós não podemos ter paz sem verdade, porque a paz sem
verdade não Interessa aos filhos de Sião porque eles têm que
defender as grandes doutrinas do evangelho; como a doutrina
da Trindade, a justificação pela fé, e a perseverança dos
santos. Nós somos incentivados a combater seriamente, e a
nos esforçarmos como em agonia pela doutrina da fé (Judas 3).
Isto porque afirmar a verdade traz grandes rendas ao céu e
santifica o nome de Deus. Alguns podem afirmar cerimônias
e ritos, mas não a verdade.
Nós santificamos o nome de Deus quando nós somos
instrumentos da conversão de outros, tanto quanto
possamos; usando de todos os expedientes santos, serviço,
oração, exemplo, esforçando-nos pela salvação de outros,
combatendo segundo as regras estabelecidas por Deus. Como
fez Mônica, a mãe de Agostinho, que labutou para a conversão
dele! Ela teve mais dores de parto para trabalhar o novo
nascimento dele do que o seu nascimento natural.
Nós santificamos o nome de Deus quando nós difundimos o
doce aroma da piedade e propagamos a religião a outros;
quando não somente honramos a Deus, mas nos tornamos
instrumentos para conduzir outros a honrá-lo.
Certamente quando o coração estiver temperado com graça,
haverá um esforço para temperar outros. A glória de Deus é
tão querida a um santo quanto a sua própria salvação; e esta
glória pode ser promovida por ele através de esforços para a
conversão de almas. Todo convertido é um novo membro
acrescentado a Cristo. Assim, nós devemos santificar o nome
de Deus lutando para levar a devoção a outros; especialmente
aqueles que estão relacionados a nós, ou que estão debaixo do
nosso teto, para a exclusiva honra de Deus.
Que nossas casas sejam chamadas de Betel, isto é, casa de
Deus e que sejamos como a família de Josué, que disse: “eu e a
minha casa serviremos ao Senhor.” (Js 24.15). E é uma maior
santificação do nome de Deus fazer com que nossa casa seja
uma igreja, tal como a casa de Ninfa da igreja de Laodiceia (Col
4.15). Não são grandes templos repletos de pessoas nem
sempre atentas à verdadeira adoração e devoção a Deus que
santificam e honram o seu nome. Mas onde houver
verdadeira piedade e devoção, tal como na casa de Ninfa onde
199
funcionava uma Igreja, que foi achada digna de ser saudada
pelo apóstolo Paulo.
Perfumem suas casas com oração, e meditem na Palavra de
modo que seja um gotejar santo.
Nós santificamos o nome de Deus quando nós preferirmos a
honra do seu nome antes das coisas que nos sejam mais
queridas. Quando nós preferimos a honra do nome de Deus
antes da nossa própria honra. Os santos antigos estavam
dispostos a honrar o nome de Deus, suportando repreensão,
tal como Davi o expressa no Salmo 69.7:
“7 Porque por amor de ti tenho suportado afrontas; a confusão
cobriu o meu rosto.
8 Tenho-me tornado um estranho para com meus irmãos, e
um desconhecido para com os filhos de minha mãe.” (Sl
69.7,8)
E nós vemos que o seu amor e devoção a Deus fez com que
fosse considerado como um estranho por seus irmãos. Mas
Davi sustentou o testemunho da verdade por causa da honra
do nome de Deus.
“Quem ama o pai ou a mãe mais do que a mim não é digno de
mim; e quem ama o filho ou a filha mais do que a mim não é
digno de mim.” (Mt 10.37)
Nestas palavras do evangelho de Mateus Jesus afirma clara e
expressamente que a honra do nome de Deus deve vir antes
da que se atribui a pais e a filhos.
Santificar o nome de Deus implica afastar-se da amizade até
mesmo com irmãos na fé que andam contra a verdade e
resistem ao reto ensino da Palavra, e que deste modo
desonram o nome de Deus com o seu procedimento. A norma
bíblica é clara quanto a isto, porque está baseada no princípio
que a honra do nome do Senhor deve vir antes de todas as
demais coisas e relacionamentos que estimamos, isto é, se o
preço que deve ser pago para continuarmos honrando e
santificando o nome de Deus deve ser o da separação de
pessoas que nos sejam queridas, como nossos irmãos na fé e
amigos, não há outra forma de se santificar o nome de Deus a
não ser pagando o preço necessário.
“Mandamos-vos, porém, irmãos, em nome de nosso Senhor
Jesus Cristo, que vos aparteis de todo o irmão que anda
200
desordenadamente, e não segundo a doutrina que de nós
recebestes.” (II Tes 3.6)
Foi para que o nome de Deus não seja desonrado que Jesus
ordenou que todo crente que não se submeter à disciplina da
Igreja seja considerado como gentio e publicano, isto é, como
um estranho por seus demais irmãos na fé.
O profeta Elias foi chamado de perturbador de Israel; o
profeta Isaías de portador de fardos; e o profeta Sofonias de
profeta amargo; mas eles carregavam estas acusações como
coroas sobre as suas cabeças. Não admira que Jesus chama de
bem-aventurados aqueles que são perseguidos por causa da
justiça, isto é, por causa do grande amor que eles têm pela
honra de Deus na sustentação do testemunho da verdade,
diante dos seus opositores, que consideram a Palavra de Deus,
um fardo, um peso para eles, porque querem viver segundo a
carne e não segundo o Espírito.
Na verdade não há como se argumentar com aqueles que
deliberam andar na carne porque pessoas carnais não podem
entender as coisas espirituais que se discernem
espiritualmente por aqueles que andam segundo o Espírito e
não segundo a carne. Mais do que um debate vão, seria lançar
pérolas a porcos tentar convencê-los das coisas santas que a
carne deles rejeita tão veementemente. Por isso se deve orar
por eles e ficar na expectativa que sejam livrados dos laços do
diabo, no qual foram prendidos (II Tim 2.26). Entretanto, se
estes se permitem estar ainda debaixo da instrução da Igreja,
que sejam ensinados com mansidão, para que não tenham
ocasião para revidar ou blasfemar, enquanto ficamos na
expectativa de que Deus lhes conceda arrependimento, de
maneira que possam então conhecer a verdade do evangelho
como ela é de fato, de maneira que sejam livrados dos enganos
do diabo e da imaginação deles, em falsas convicções relativas
à verdade.
Assim, a honra do nome de Deus deve ser mais querida a nós
do que a nossa própria honra, tal como Moisés que estimou o
vitupério de Cristo maior que as riquezas e tesouros do Egito
(Hb 11.26).
Os apóstolos ficaram alegres pelo fato de terem sido
considerados dignos de sofrer por causa do nome de Cristo.
201
Nós santificamos o nome de Deus quando nós estamos
contentes em ver o nosso nome eclipsado, para que o nome
dele possa brilhar ainda mais; e quando nós preferimos a
honra do nome de Deus ao próprio lucro mundano e
abandonamos tudo para seguir a Cristo, quando isto nos é
ordenado por Ele (Mt 19.27). Quando estes dois, Deus e a
propriedade, entrarem em competição, nós preferiríamos
deixar a propriedade do que perder o amor e o favor de Deus.
Nós santificamos o nome de Deus quando nós preferimos a
honra do seu nome à nossa própria vida. “Por amor de ti
somos entregues à morte todo o dia; Somos reputados como
ovelhas para o matadouro.” (Rom 8.36). Dá muita glória ao
nome do Senhor quando o mundo percebe que os seus servos
estão dispostos a perder todas as coisas, até mesmo a própria
vida, se for necessário, para continuarem santificando o seu
nome por sustentarem a sua verdade.
Nós santificamos o nome de Deus através de uma
conversação santa. “Mas vós sois a geração eleita, o
sacerdócio real, a nação santa, o povo adquirido, para que
anuncieis as virtudes daquele que vos chamou das trevas para
a sua maravilhosa luz;” (I Pe 2.9).
Vidas profanas desonram o nome de Deus: “Porque, como
está escrito, o nome de Deus é blasfemado entre os gentios
por causa de vós.” (Rom 2..24).
Assim é por nossa conversação santa baseada na Bíblia que
nós honramos o nome de Deus. Uma vida santa fala mais alto
do que todos os hinos e louvores do mundo. Embora o
trabalho principal da religião repousa no coração, contudo
nossa luz deve brilhar para que outros a vejam e Deus seja
glorificado. Quando nossas vidas brilharem, o nome do
Senhor brilhará em nós.
(Na aplicação deste assunto, devemos considerar de modo
prático que santificar o nome de Deus requer vidas
santificadas. E sabemos que não há santificação que não seja
operada pelo Espírito Santo mediante aplicação da Palavra de
Deus à vida. Por exemplo, quando Jesus falou o que são os
crentes e o que eles devem ser e fazer para Deus e para o
próximo, Ele introduziu o seu ensino com as palavras das
bem-aventuranças, e ali Ele afirma dentre outras coisas que
os crentes devem ser pobres de espírito e puros de coração, e
202
estas são duas condições importantíssimas para uma
verdadeira santificação, sem a qual o nome de Deus não
poderá ser santificado por eles. Mas o que se vê na prática em
nossos dias em relação a isto? Os crentes buscam ser puros de
coração e entendem que a salvação deles depende
inteiramente de Deus? Mas ao concluir o sermão do monte
Jesus disse expressamente que não é possível ter uma vida
espiritual sólida sem a prática do ensino que Ele deu à Igreja,
especialmente neste Sermão do Monte. E seria santificar e
honrar o nome de Deus não dar a devida atenção e honra a
tais palavras? Não se dispor de fato a praticá-las? Mas muitos
se iludem pensando que é possível viver de modo agradável a
Deus e honrá-lo sendo negligentes para com a sua própria
Palavra. Jesus trouxe a graça e a verdade (João 1.17). E como se
pode honrar e santificar o nome de Deus sem honrar a
verdade que Jesus ordenou à sua Igreja? Que se busque então
uma verdadeira purificação do coração por um andar no
Espírito Santo, mediante a prática da Palavra de Deus. E que se
faça isto com humildade de espírito, reconhecendo que toda
a graça e poder para praticarmos a Palavra depende de
buscarmos isto em Cristo, aproximando-nos com um com
coração sincero ao trono da graça. A Palavra nos alerta para o
fato de que nos últimos dias os homens seriam egoístas,
amantes de si mesmos, amantes dos prazeres, e é exatamente
isto o que se tem visto por toda parte, inclusive influenciando
a Igreja; pois os crentes buscam aquilo que é do próprio
interesse carnal deles, e não se submetem ao trabalho da cruz,
renunciando ao ego, para conhecerem e fazerem a vontade de
Deus revelada em sua Palavra. Fazer isto parece a muitos,
fanatismo, radicalismo, legalismo, porque há uma falsa
doutrina que impera em nossos dias que coloca o homem
como centro no lugar de Deus, como que se tudo tivesse sido
criado para o próprio homem e não para o Filho de Deus a
quem pertence de fato todas as coisas, inclusive nossas vidas,
das quais daremos contas em juízo no Tribunal de Cristo (Rom
14.10; II Cor 5.10). E quanto a um viver canal na prática do
pecado deveríamos lembrar sempre das palavras do apóstolo
Paulo que foi dirigida aos crentes: “Ninguém vos engane com
palavras vãs; porque por estas coisas vem a ira de Deus sobre
os filhos da desobediência.” (Ef 5.6). Como pode um crente se
203
sentir confortável vivendo segundo a carne e não segundo o
Espírito, quando sabe que esta será a causa da condenação
eterna dos ímpios? Deus não destruiu o mundo antigo no
dilúvio porque o homem era carnal e não permitia se
converter e ser guiado pelo Espírito Santo? Ninguém se iluda
portanto pensando que Deus dá aos seus filhos a opção de
serem carnais, porque lhes é imposto o dever de serem
espirituais na busca da maturidade que consiste na
semelhança com Cristo. Lembremos que antes que Jesus se
manifestasse ao mundo os homens andavam em trevas
espirituais, em sua ignorância sobre o verdadeiro
conhecimento de Deus e de toda a sua vontade. Então o Pai
enviou o Filho para dar testemunho da verdade de maneira
que pudéssemos sair das trevas para a luz. E qual é a
importância que damos a esta verdade que foi revelada por
Jesus e que está registrada nas Escrituras? Não beira à
insanidade não lhe dar o devido valor, atenção e prática? –
nota do tradutor).
Um crente espiritual se esforçará para ser santo e fazer
avançar o nome de Deus e se perguntará em tudo o que fizer
se o nome de Deus está sendo honrado e exaltado.
“20 Segundo a minha intensa expectação e esperança, de que
em nada serei confundido; antes, com toda a confiança, Cristo
será, tanto agora como sempre, engrandecido no meu corpo,
seja pela vida, seja pela morte.
21 Porque para mim o viver é Cristo, e o morrer é ganho.” (Fp
1.20,21).
Crentes usam o nome de Deus irreverentemente, e como
pode ser santificado o seu grande nome deste modo?
“Se não tiveres cuidado de guardar todas as palavras desta lei,
que estão escritas neste livro, para temeres este nome
glorioso e temível, O SENHOR TEU DEUS,” (Dt 28.58). O nome
do Senhor é sagrado, e como podem os crentes viverem sem
o devido temor do seu santo nome?
A repreensão que Moisés dirigiu aos israelitas bem se aplica
aos crentes em geral de hoje que não santificam o nome de
Deus, porque quando deveriam brilhar com a santidade do
Senhor em suas vidas por obedecerem a sua palavra, eles são
como manchas e não como filhos amados obedientes, por
causa da prática deliberada do pecado em que eles vivem.
204
“4 Ele é a Rocha, cuja obra é perfeita, porque todos os seus
caminhos justos são; Deus é a verdade, e não há nele injustiça;
justo e reto é.
5 Corromperam-se contra ele; não são seus filhos, mas a sua
mancha; geração perversa e distorcida é.
6 Recompensais assim ao Senhor, povo louco e ignorante?
Não é ele teu pai que te adquiriu, te fez e te estabeleceu?” (Dt
32.4-6).
E a estes filhos que vivem deliberadamente no pecado depois
de terem sido admoestados e conduzidos pelo Senhor
pacientemente, em toda a longanimidade, para que de algum
modo pudessem chegar ao arrependimento, mas que no
entanto permanecem no endurecimento de seus corações
recusando-se obedecer à verdade, o Senhor sujeitará à sua
correção e disciplina.
“19 O que vendo o Senhor, os desprezou, por ter sido
provocado à ira contra seus filhos e suas filhas;
20 E disse: Esconderei o meu rosto deles, verei qual será o seu
fim; porque são geração perversa, filhos em quem não há
lealdade.” (Dt 32.19,20).
O Senhor vindicará a honra do seu nome no mau
procedimento dos seus filhos, sujeitando-os à disciplina da
aliança que fez com eles por meio do sangue de Cristo.
Os pecados dos filhos de Deus ferem mais O seu coração
paterno do que os pecados de outros, porque não são filhos.
Por isso os crentes são exortados a não desprezarem a
correção do Senhor, e a não desmaiarem quando por Ele
forem repreendidos (Hb 12.5), porque isto visa ao próprio bem
deles, na sua recuperação espiritual, de maneira que sendo
sadios na fé, possam santificar o nome de Deus, conforme
lhes está designado.
Aqueles que honrarem a Deus serão também por Ele
honrados conforme tem prometido, do mesmo modo que Ele
despreza àqueles que O desprezam (I Sm 2.30).
O que nós deveríamos fazer para honrar e santificar o nome
de Deus?
Nós devemos adquirir: (1) Um conhecimento correto de Deus.
Ter uma visão da sua excelência; santidade, bondade e amor.
Nós devemos honrá-lo como nosso Pai. (2) Também devemos
adquirir um amor sincero a Deus; um amor valioso que se
205
encante nele próprio (João 21.15). Ninguém pode honrar o
Mestre sem amá-lo. E este amor se comprovará numa
verdadeira obediência aos seus mandamentos. E quando isto
ocorre os seus mandamentos não são penosos para nós, mas
um prazer, e entendemos que o jugo de Jesus é suave e o seu
fardo leve. É estando de fato santificado pela Palavra e pelo
Espírito que se pode viver de tal modo. Sem isto, tal amor e
prazer no Senhor são impossíveis, porque Deus é espírito e
importa ser adorado em espírito e em verdade.
A razão de o nome de Deus não ser mais santificado pelos seus
filhos é porque o nome dele não é muito amado tanto quanto
deveria.
A Segunda Petição na Oração do Senhor
“Venha o teu reino.” - Mateus 6.10
Uma alma verdadeiramente dedicada a Deus se unirá a esta
petição: “venha o teu reino.”.
Nestas palavras está incluído que Deus, nosso Pai, é um Rei, e
é o Rei de toda a terra (Sl 47.7).
Ele é um Rei no seu trono.
“Deus reina sobre os gentios; Deus se assenta sobre o trono da
sua santidade.” (Sl 47.8).
“Assim diz o alto e sublime” (Isa 57.15). Ele tem as suas
bandeiras de realeza e a sua espada afiada reluzente (Dt 32.41).
Ele tem uma coroa e um cetro de retidão (Hb 1.8).
Como Rei que é Ele tem o poder de fazer leis, e conceder
perdões que são as flores e joias da sua coroa.
Ele é o grande Rei acima de todos os deuses (Sl 95.3).
Ele é grande não somente pelos seus grandes feitos mas pelo
que é em sua própria pessoa:
“Esconder-se-ia alguém em esconderijos, de modo que eu
não o veja? diz o Senhor. Porventura não encho eu os céus e a
terra? diz o Senhor.” (Jer 23.24).
Ele é tão grande que nem o céu dos céus o pode conter (I Rs
8.27). A sua grandeza é vista pelos efeitos do seu poder. Ele fez
o céu e a terra (Sl 124.8), e quem pode desfazer as suas obras?
“Ele ceifará o espírito dos príncipes; é tremendo para com os
reis da terra.” (Sl 76.12).
206
Tudo Ele fez conforme lhe agradou (Sl 115.3).
Ele é um Rei glorioso.
“Quem é este Rei da Glória? O Senhor dos Exércitos, ele é o
Rei da Glória.” (Sl 24.10).
A glória externa dos seus feitos é o reflexo da sua glória
interna. “O Senhor reina; está vestido de majestade. O Senhor
se revestiu e cingiu de poder; o mundo também está firmado,
e não poderá vacilar.” (Sl 93.1).
Deus está vestido com a sua própria majestade; a própria
essência gloriosa dele são suas vestes reais, e Ele se cingiu
com força e prevalece pelo seu próprio poder. Os reis têm os
seus guardas para defender a pessoa deles, porque eles não
podem se defender, mas Deus não necessita de nenhum
guarda ou da ajuda de outros.
Assim, “quem pois no céu se pode igualar ao Senhor? Quem
entre os filhos dos poderosos pode ser semelhante ao Senhor?
(Sl 89.6).
Ele é o Rei dos reis (Apo 19.16). Ele tem o trono mais elevado e
a coroa mais rica, e todos os domínios Lhe pertencem.
Embora Ele tenha muitos herdeiros, contudo jamais terá
qualquer sucessor. Ele tem o seu trono estabelecido onde
nenhum outro trono pode ser colocado acima do seu. Ele rege
sobre a vontade e sobre os afetos, e os anjos o servem, e todos
os reis terrenos recebem as suas coroas através da concessão
de poder deste grande Rei, porque nenhum poder há no
mundo que não tenha sido dado do alto.
“15 Por mim reinam os reis e os príncipes decretam justiça.
16 Por mim governam príncipes e nobres; sim, todos os juízes
da terra.” (Pv 8.15,16).
Se Deus é tão grande Rei, e está assentado como Rei para
sempre, não é nenhuma depreciação para nós o servirmos, ao
contrário, servir a Deus é reinar, e é uma grande honra servir
um rei.
Teodósio dizia que era uma maior honra ser servo de Deus,
que ser um imperador. É mais honroso servir a Deus do que
ter os reis nos servindo. Felizes são aqueles que servem a Deus
porque Ele fez deles também reis e sacerdotes para sempre
(Apo 1.6).
É considerado sabedoria política estar do lado mais forte. Se
nós pertencemos ao Rei do céu, nós vamos estar do lado mais
207
forte. O Rei da glória pode destruir com facilidade todos os
seus adversários. Ele pode abater o orgulho deles, e deter a
malícia deles. Aquela pedra cortada sem mãos (Dn 2.34) e que
despedaçou o ídolo era um emblema, diz Agostinho, do poder
monárquico de Cristo, conquistando e triunfando sobre os
seus inimigos.
O Salmo segundo bem demonstra como o reino do Messias
prevalece e está destinado a prevalecer completamente sobre
os reis da terra:
”1 Por que se ajuntam os gentios, e os povos imaginam coisas
vãs?
2 Os reis da terra se levantam e os governos consultam
juntamente contra o Senhor e contra o seu ungido, dizendo:
3 Rompamos as suas ataduras, e sacudamos de nós as suas
cordas.
4 Aquele que habita nos céus se rirá; o Senhor zombará deles.
5 Então lhes falará na sua ira, e no seu furor os turbará.
6 Eu, porém, ungi o meu Rei sobre o meu santo monte de Sião.
7 Proclamarei o decreto: o Senhor me disse: Tu és meu Filho,
eu hoje te gerei.
8 Pede-me, e eu te darei os gentios por herança, e os fins da
terra por tua possessão.
9 Tu os esmigalharás com uma vara de ferro; tu os
despedaçarás como a um vaso de oleiro.
10 Agora, pois, ó reis, sede prudentes; deixai-vos instruir,
juízes da terra.
11 Servi ao Senhor com temor, e alegrai-vos com tremor.
12 Beijai o Filho, para que se não ire, e pereçais no caminho,
quando em breve se acender a sua ira; bem-aventurados todos
aqueles que nele confiam.” (Sl 2.1-12).
Se servimos a um Deus tão glorioso que é um Rei cheio de
poder e majestade, nós devemos então confiar totalmente
nele.
“Em ti confiarão os que conhecem o teu nome; porque tu,
Senhor, nunca desamparaste os que te buscam.” (Sl 9.10).
Confie sua alma em suas mãos. Você não pode colocar esta
joia preciosa em mãos mais seguras.
Se o homem se levanta em guerra contra Deus e o seu povo, o
Senhor se levanta também como homem de guerra contra os
seus adversários:
208
“O Senhor é homem de guerra; o Senhor é o seu nome.” (Ex
15.3).
Se Deus é um tão grande Rei nós devemos temê-lo.
Especialmente o temor de transgredir as suas leis e
mandamentos.
Aqueles que não temem a Deus por amor, virão a temê-lo pela
dor, porque Ele manifestará sobre eles os seus juízos e
castigos.
“Porventura não me temereis a mim? diz o Senhor; não
temereis diante de mim, que pus a areia por limite ao mar, por
ordenança eterna, que ele não traspassará? Ainda que se
levantem as suas ondas, não prevalecerão; ainda que
bramem, não a traspassarão.” (Jer 5.22).
“Mas eu vos mostrarei a quem deveis temer; temei aquele
que, depois de matar, tem poder para lançar no inferno; sim,
vos digo, a esse temei.” (Lc 12.5).
Temamos a Deus cujo trono está acima de todos os reis e
poderosos, e que é o Todo Poderoso. Temamos o Rei cujo
poder é infinito e cujo Reino jamais passará. Temamos este
Rei cujos olhos são como chama de fogo (Apo 1.14).
O verdadeiro poder sobre vida e morte está nas mãos deste
grande Rei.
Todos aqueles que se levantam contra este Rei serão lançados
como uvas no lagar da sua ira para serem esmagados.
Você tem andado no pecado desafiando o Rei do céu? Então
faça depressa a sua paz com ele, submetendo-se à sua vontade.
Beije o Filho para que Ele não fique irado (Sl 2.12). Beije Cristo
com um beijo de amor e obediência. Obedeça o Rei do céu
quando Ele fala com você através dos seus ministros e
embaixadores (II Cor 5.20). Lutero dizia que obedecer a Deus
é melhor que realizar milagres. Mas obedeça de boa vontade
(Is 1.19), porque não há obediência verdadeira que não seja por
amor e voluntária. Obedecer com alegria é mais doce que o
mel dos favos. E que seja além de voluntária uma obediência
rápida, isto é, devemos nos apressar para obedecer a Deus.
Mas este mesmo Rei que estabelece leis e condições para ser
amado e obedecido, e que impõe santidade a todos os seus
filhos como o principal dever deles, é o mesmo Rei que se
levantará em favor deles e julgará sempre as suas causas e os
209
protegerá. “Portanto, assim diz o Senhor: Eis que pleitearei a
tua causa, e tomarei vingança por ti; (Jer 51.36a).
“Verdadeiramente bom é Deus para com Israel, para com os
limpos de coração.” (Sl 73.1).
Coração purificado é a condição essencial para ser abençoado
pelo Rei com a sua bondade. Para estes, Ele é como uma
parede de fogo ao redor deles (Zc 2.5) de maneira que nenhum
mal lhes possa alcançar; ao contrário Ele os fará triunfar sobre
o mal. O rosto do Senhor está voltado para a direção destes que
praticam o que é justo, mas o seu rosto é contra aqueles que
praticam males.
É certo que pela sua bondade, e por causa do sangue
derramado pelo seu Filho, Ele livrou da ira vindoura todos
aqueles que pela fé foram feitos seus filhos (I Tes 1.10), mas o
modo de ser abençoado por Ele neste mundo está associado à
obediência que Lhe é devida, porque é de fato Senhor e Rei, e
também julga o seu povo (I Pe 4.17; I Cor 11.31,32).
Deus sempre julga pelo padrão de exigência de conformação
absoluta à sua santidade, de maneira que Ele é um fogo
consumidor para o pecado, onde quer que ele seja
encontrado.
“1 O Senhor reina; regozije-se a terra; alegrem-se as muitas
ilhas.
2 Nuvens e escuridão estão ao redor dele; justiça e juízo são a
base do seu trono.
3 Um fogo vai adiante dele, e abrasa os seus inimigos em
redor.” (Sl 97.1-3).
Por isso Ele é para o seu povo como o fogo do ourives, para
purificá-los das escórias do pecado (Malaquias 3.2).
Assim, Ele se levantará sempre para julgar a causa dos justos,
mas contenderá contra todos aqueles que vivem na
impiedade, ainda que alguns destes façam parte do seu
próprio povo. Ele sempre se oporá aos soberbos, mas
concederá sua graça aos que são humildes e contritos de
coração, por causa dos seus pecados.
Deus pode fazer com que os amigos do ímpio se levantem
contra ele, mas pode também fazer com que os inimigos
daqueles que O amam e guardam o seus mandamentos
celebrem a paz com eles (Pv 16.7).
210
Senaqueribe que se levantou em grande afronta contra Deus
foi morto pelos seus dois filhos (II Rs 19.37). Ele deixa tais
pessoas sem a sua proteção, de maneira que Ele permite que
sejam destruídas por Satanás que é insaciável em seu desejo
de roubar, matar e destruir, e que pode ser contido somente
pela mão de Deus. Nisto os ímpios são mantidos em vida e não
sabem que devem isto a Deus que não deixa sequer cair um só
pássaro do céu sem a sua permissão, quanto mais as
operações assassinas de Satanás.
Entretanto não há motivo para os ímpios se gabarem nisto,
porque aqueles que não se ajuntam a Cristo, espalham-se
como o pó, e não têm a garantia da permanente proteção de
Deus, contra uma destruição definitiva e final por Satanás, tal
como a que têm os crentes, porque ainda que seja permitido
ao diabo tirar-lhes a vida do corpo, no entanto reinarão com
Cristo em glória.
Qual é o significado do reino ao qual Cristo se refere quando
diz, “Venha o teu reino.”?
Em primeiro lugar ele não está se referindo a um reino
político ou terrestre.
Os apóstolos desejavam no princípio um reinado realmente
temporal de Cristo (At 1.6). Mas Jesus disse que o reino dele
não era deste mundo (João 18.36). De maneira que quando
Jesus ensinou os seus discípulos a orarem “venha o teu reino”
ele não quis se referir com isto a qualquer reino terrestre no
qual ele reinaria aqui em pompa externa e esplendor. Não
significa também o reino providencial de Deus no qual Ele
rege sobre tudo (Sl 103.19), porque este reino é um reino já
vindo. Deus exercita o reino da sua providência no mundo. Ele
rebaixa a alguns e eleva a outros (Sl 75.7). Ele abate o orgulhoso
e exalta o humilde. O reino da sua providência rege sobre
todos e os reis nada mais fazem do que a sua providência lhes
permite e ordena (At 4.27,28). Assim, este reino da
providência de Deus é um reino já vindo.
Então qual é o significado da oração “venha o teu reino”? Este
reino tem um significado duplo. Primeiro significa o reino da
graça que Deus exercita nas consciências das pessoas do seu
povo. Quando nós oramos venha o teu reino nós estamos
pedindo que o reino da graça seja estabelecido no nosso
coração e que seja aumentado. Em segundo lugar, quando nós
211
oramos venha o teu reino, nós estamos pedindo que Deus
apresse a vinda do seu reino de glória. Estes dois reinos de
graça e de glória não diferem especificamente, mas
gradualmente, isto é, eles não diferem em natureza, mas
somente em graus. O reino da graça nada mais é do que o
começo do reino da glória. O reino da graça é o da glória em
semente, e o reino da glória é o da graça em flor. O reino da
graça é a glória na alvorada, e o reino da glória é a graça na
plenitude do dia.
O reino da glória é a graça triunfante. Há uma conexão
inseparável entre estes dois reinos.
Muitos aspiram pelo reino da glória, mas nunca se ocupam da
graça; mas estes dois reinos estão unidos inseparavelmente
por Deus e não podem ser tomados à parte. O reino da graça é
que dá acesso ao reino da glória, e assim a primeira coisa
insinuada nesta petição “venha o teu reino” é que nós
estamos no reino das trevas. Nós oramos para que possamos
ser tirados do reino das trevas. O estado da natureza é um
reino de trevas onde se diz que o pecado reina (Rom 6.12). É
chamado de poder das trevas (Col 1.13).
O homem natural está de muitos modos no reino das trevas.
Primeiro ele está debaixo das trevas da ignorância do
verdadeiro conhecimento de Deus. Em segundo lugar está
nas trevas da corrupção que são manifestadas nas ações
pecaminosas dele (Rom 13.12). O homem natural está também
debaixo das trevas da miséria espiritual e exposto
consequentemente à ira divina, sem que os homens estejam
sensatos disto.
Há um encanto e engano no reino das trevas de maneira que
os homens amam as trevas no lugar da luz. Mas o homem acha
conforto nas coisas terrestres? O homem natural pode ter
prata e ouro, e toda sorte de bens, ele pode ter amigos para se
encantar com eles, mas ele se acha no reino das trevas.
Assim devemos orar para que Deus nos tire deste reino de
escuridão. O reino da graça de Deus não pode entrar em
nossos corações até que sejamos tirados do reino das trevas
(Col 1.13).
A segunda coisa insinuada na petição venha o teu reino é que
nós oramos contra o reino do diabo, de maneira que o seu
reino possa ser removido do mundo. O reino dele está em
212
oposição ao reino de Cristo, e então quando nós oramos venha
o teu reino nós estamos pedindo contra o reino de Satanás.
Satanás tem um reino que ele conquistou por usurpação do
gênero humano no paraíso. Ele tem um trono (Apo 2.13). E ele
fixa este seu trono no coração dos homens. Ele não quer as
bolsas dos homens, mas os seus corações. Ele deseja ser
adorado (Ef 2.2; Apo 13.4). O império de Satanás é muito
grande. A maioria dos reinos mundiais pagam tributo a ele. E
o seu reino é um reino de impiedade e de escravidão.
O reino de Satanás é um reino de impiedade. Nada mais do que
pecado entra no seu reino. Assassinato e heresia, luxúria e
deslealdade, opressão e divisão, e o comércio constante que
se faz nos seus domínios. Ele é chamado de espírito imundo
(Lc 11.24). Que mais é propagado no seu reino do que o
mistério da iniquidade?
O reino de Satanás é um reino de escravidão porque nele
faz todos seus escravos. O pecador é seguro cativo debaixo da
tirania severa do diabo. Satanás é um usurpador e um tirano;
ele é um tirano pior do que qualquer outro. Outros tiranos
regem apenas sobre o corpo, mas o reino de Satanás rege
sobre a alma. Ele monta nos homens como nós fazemos em
relação aos cavalos.
Satanás não dá descanso aos seus escravos, e ele os alimenta
com luxúrias venenosas para o dano de suas almas (I Tim 6.9).
Quando ele entrou em Judas ele não somente o enviou aos
sacerdotes para trair a Cristo como também não deu descanso
à consciência dele até que o conduzisse ao suicídio.
Então quando oramos “venha o teu reino” nós estamos
pedindo que o reino de Satanás seja destruído, removido do
mundo, para que haja somente o reino de Jesus.
Quando nós oramos “venha o teu reino” nós pedimos que o
reino da graça entre em nossos corações. Este é o reino que é
justiça (Rom 14.17); o reino de Deus que está dentro de nós (Lc
17.21).
Por que a graça é chamada de reino? (Rom 5.21)
Porque, quando a graça vem a alguém, há um governo real
montado na alma. A graça governa a vontade e os afetos, e traz
o homem em sujeição a Cristo; subjugando luxúrias e
mantendo a alma em modo santo, justo e piedoso.
213
Por que é preciso orar para que este reino da graça possa
entrar em nossos corações?
(1) Porque, até que o reino da graça venha, nós não temos
nenhum direito à aliança da graça.
(2) A menos que o reino da graça seja estabelecido em nossos
corações, nossos oferecimentos mais puros serão
considerados imundos por Deus. Eles podem ser bons em
seus efeitos terrenos, mas não poderão agradar de maneira
alguma a Deus, porque não foram feitos por corações
regenerados e santificados pelo sangue de Jesus, e que
portanto, não tinham a marca da sua graça.
(3) Nós temos necessidade de orar para que o reino da graça
possa vir e entrar em nossos corações, porque sem isto nós
somos repugnantes aos olhos de Deus, por não termos sido
justificados e limpos dos nossos pecados; uma vez que
somente a graça de Jesus pode efetuar tal trabalho. O pecado
transforma o homem num filho do diabo e somente a graça
pode quebrar tal filiação e fazer com que o homem seja
adotado como filho de Deus.
(4) Até que o reino da graça venha um homem está exposto à
ira de Deus.
(5) Até que o reino da graça venha um homem não pode
morrer com conforto. É somente nos braços de Cristo que se
pode olhar a face da morte com alegria.
Há muitas ilusões sobre a graça:
(1) os homens pensam que eles têm o reino da graça nos seus
corações porque eles têm os meios de graça. Eles vivem onde
a trombeta prateada do evangelho soa e pensam que já
possuem a graça por somente ouvirem o evangelho.
Ai! esta é uma falácia; nós podemos ter os meios de graça, e
ainda o reino da graça pode não ter sido estabelecido nos
nossos corações. Nós podemos ter o reino de Deus perto nós,
mas não em nós; o som da palavra em nossas ouvidos, mas não
o Salvador em nossos corações. Roupas quentes não podem
aquecer um homem morto.
(2) os homens pensam que eles têm o reino da graça nos seus
corações, porque eles têm alguns trabalhos comuns do
Espírito Santo, a saber:
[1] eles têm grande iluminação de mente, conhecimento
profundo, e quase falam como anjos caídos do céu; mas o
214
apóstolo apresenta um caso em que, depois que os homens
foram iluminados, eles apostataram (Hb 6.4-6).
Mas que iluminação curta é esta?
A iluminação de hipócritas que não deixa após si uma marca
de santidade. A mente está iluminada, mas o coração não é
renovado. Um crente que é somente cabeça, mas que não tem
um coração segundo o coração de Deus.
[2] os homens têm convicções e peso de consciência relativos
ao pecado, eles viram o mal da maneira deles, e esperam
que o reino da graça venha junto; entretanto convicções são
um passo para a graça, elas não são nenhuma graça. Não
tiveram convicções Faraó e Judas?
O que faz com que estas convicções sejam abortadas? Em que
eles falham?
Estas convicções superficiais são como a semente que caiu
entre pedras e porque suas raízes não se aprofundaram a vida
da planta murchou e foi de duração muito curta (Mt
13.5). Estas convicções são como flores que caem sem se
transformarem em frutos. Estas convicções são como o cervo
que foge das flechas do arqueiro para não ser atingido por
elas. São apenas uma tentativa de fuga das más consequências
do pecado, mas não um sincero arrependimento de tristeza
por causa do pecado que conduz o homem a desejar e
efetivamente viver para Deus.
[3] os homens começaram alguma reforma de vida, e então
eles pensam que o reino da graça certamente veio a eles; mas
pode haver ilusão nisto. Um homem pode fazer os seus
juramentos de que deixará o pecado por medo do inferno, ou
porque lhe está trazendo vergonha ou penúria, mas o seu
coração ainda ama o pecado (Os 4.8). Estes são como a esposa
de Ló quando saiu de Sodoma. Estes são como a serpente que
muda de pele mas mantém intacto o seu veneno. Eles desejam
melhora de vida confessando a Cristo mas sem deixar de amar
o seu modo de vida pecaminoso.
Assim esta reforma é apenas no comportamento exterior
porque o pecado continua reinando no coração, e o seu reino
não foi expulso de fato pelo reino da graça.
Nós podemos saber que a graça entrou em nosso coração
somente por meio da fé. A fé é a joia mais sagrada do coração
humano. A fé nos corta da oliveira brava da natureza e nos
215
enxerta na oliveira santa que é Cristo. A palavra hebraica para
fé é emunah, e significa firmar, radicar, ser fiel, verdadeiro,
estável. Fé no hebraico tem o sentido de raiz que sustenta a
árvore. E a raiz além de sustentar, tem a função de nutrir.
Então ao designar a fé como o meio pelo qual a graça é
sustentada e nutrida, Deus nos deu um firme fundamento, de
maneira que se diz que o justo viverá pela fé (Hc 2.4).
E a verdadeira fé é forjada pelo ministério da palavra, porque
vem por se ouvir a pregação da Palavra de Deus (Rom 10.17).
A verdadeira fé é no princípio pequena como um grão de
mostarda, e está cheia de dúvidas e temores. É tão pequena
que um crente não pode discernir se ele tem fé ou não.
O trabalho de fortalecimento da fé é longo e árduo, e demanda
muitos clamores do coração, muitas orações e lágrimas,
porque está empenhada num combate espiritual. A alma
sofre muitas humilhações dolorosas antes de que a criança da
fé nasça.
Mas uma fé verdadeira, ainda que pequena é suficiente para
purificar. A fé justificadora faz isto num senso espiritual e
remove as montanhas do pecado, e as lança no mar do sangue
de Cristo.
Nós podemos conhecer que o reino da graça entrou no nosso
coração tendo a graça do amor. E se nós amarmos a Deus
corretamente, nós amaremos os seus mandamentos e a sua
presença nas suas ordenanças.
Nós podemos conhecer que o reino da graça entrou no nosso
coração por ter antipatia e oposição a todo tipo de pecado
conhecido.
Mas um filho de Deus pode ter o reino da graça no seu coração
e ainda não conhecer isto. É possível que a semente da Palavra
esteja semeada no coração mas ainda não ter germinado. A
semente não está perdida porque está escondida.
Mas antes que o reino da graça entre no coração, deve haver
alguma preparação para isto. O solo deve ser arado e
preparado. É possível que o arado da lei não tenha se
aprofundado o bastante para produzir a humildade de espírito
necessária.
Deus não prescreve uma proporção exata de tristeza e
humilhação. A Bíblia menciona a verdade da tristeza no
arrependimento, mas não a medida. Alguns são mais
216
pecadores do que outros, e têm que ter um grau maior de
humilhação.
Há uma grande diferença entre a fraqueza da graça e a falta da
graça. Um homem pode ter vida, embora esteja doente e fraco.
A graça fraca não será menosprezada, mas apreciada. Cristo
não a apagará e nem a quebrará. Uma graça fraca nos unirá a
Cristo tanto quanto uma graça forte. Uma mão fraca de fé
pode receber as esmolas dos méritos de Cristo tanto quanto a
mão forte.
A graça é como as águas que procedem do santuário de Deus
e que vão subindo cada vez mais de volume à medida que elas
avançam.
Um crente pode ter um pouco de dureza no seu coração, mas
não terá um coração duro de pedra. Um campo de trigo pode
ter joio nele mas nós o chamados de campo de trigo.
O reino da graça quando está estabelecido no coração traz
juntamente a paz com ele, e por isso se diz que o reino de Deus
é justiça e paz (Rom 14.17). Há uma paz secreta que procede da
santidade. E a paz é a melhor bênção de um reino. A paz é
melhor que vitórias incontáveis. Assim, o reino da graça é um
reino de paz. E se a graça é uma raiz, a paz é a flor que cresce a
partir dela.
O reino da graça enriquece a alma. Um reino tem as suas
riquezas. É dito que um crente é rico em fé (Tg 2.5).
O reino da graça dá firmeza ao coração (Sl 57.7). Antes que o
reino da graça se estabeleça no coração ele é intranquilo, mas
quando a graça vem o coração acha descanso e tranquilidade.
Mas assim como o agricultor não pode esperar a colheita se
não semear, de igual modo não se pode ter a graça sem
trabalhar. Não devemos pensar que a graça nos virá como o
maná veio a Israel no deserto, sem que precisassem arar ou
semear. Não, nós devemos ousar, operar, suportar dores pela
graça. Nossa salvação custou sangue a Cristo, e a nós custará
suor.
A oração do Senhor ensina que devemos pedir “venha o teu
reino”, e isto significa também que devemos pedir a Deus que
nos dê o reino da graça. Nós devemos dizer que nós queremos
este reino da graça, que nós queremos um coração humilde e
que creia. Se Ele nos chama a sermos enriquecidos com a sua
217
graça, então sejamos importunos em nossas orações pedindolhe mais graça.
Mas não esqueçamos que esta graça sempre nos virá na
maioria das vezes por nos colocarmos debaixo da Palavra
pregada, porque foi este o meio normal que Deus estabeleceu
para nos dar e aumentar a nossa fé. O poder de Deus vai junto
com a pregação da sua Palavra, e se falta este poder, é porque
a palavra que está sendo pregada não é propriamente a sua
Palavra.
Por que nós devemos orar “venha o teu reino” quando o reino
da graça já se encontra estabelecido na alma?
Nós devemos orar assim para que a graça seja aumentada e
que o seu reino possa florescer ainda mais em nossas almas.
Quando um crente tiver maiores graus de graça, haverá mais
óleo na sua lâmpada, o seu conhecimento será claro, o seu
amor mais inflamado. A graça é capaz de graus e pode subir
mais alto como o sol no horizonte. Não se dá conosco o que diz
respeito a Cristo que recebeu o Espírito sem medida (João
3.34). Ele não pode ser mais santo do que Ele era, mas nós
podemos ter mais santidade, e acrescentar mais cúbitos à
nossa estatura espiritual.
Quando o reino da graça aumenta o crente terá mais força do
que dantes. Aquele que tem as suas mãos limpas será cada vez
mais forte. E terá forças para resistir à tentação, para perdoar
seus inimigos, para sofrer aflições. Não é fácil sofrer, e por
isso o crente tem que se negar antes que possa carregar a cruz.
O reino da graça aumenta quando o crente entra em batalha
contra as corrupções espirituais, quando ele se priva de
praticar todo tipo de mal, e combate em seu interior as
corrupções escondidas mais íntimas como orgulho, inveja,
hipocrisia, pensamentos vãos, e todo tipo de confiança carnal.
“Ora, amados, visto que temos tais promessas, purifiquemonos de toda a imundícia da carne e do espírito, aperfeiçoando
a santidade no temor de Deus.” (II Cor 7.1).
Assim quando nós nos purificamos de toda a imundícia da
carne e do espírito, a santidade é aperfeiçoada e o reino da
graça aumenta e espalha seus territórios na alma.
O reino da graça aumenta quando um crente aprende a viver
por fé (Gál 2.20).
218
O reino da graça floresce quando o crente estiver cheio de zelo
santo. O zelo é a chama dos afetos e transforma um santo num
Serafim, palavra que no hebraico significa fogo. E a chama dos
afetos produz fervor, e por isso este crente ferverá tanto no
testemunho do amor de Deus quanto no zelo pelo seu santo
nome quando estiver sendo desonrado. Ele lutará contra as
dificuldades e nadará por Cristo num mar de sangue.
O reino da graça aumenta quando um crente é diligente tanto
em relação à sua chamada particular, quanto à geral. Porque
quando estamos familiarizados e convictos da nossa chamada
nós somos mais úteis a outros.
O reino da graça aumenta quando um crente se estabelece na
convicção e amor à verdade. Quando a alma está edificada na
rocha que é Cristo nenhuma tentação poderá vencê-la.
Atanásio era invencível e inflexível em relação à sua
estabilidade na verdade. Ele estava arraigado (com raízes) e
edificado em Cristo (Col 2.7). E o enraizamento da árvore
garante o seu crescimento.
Por que há necessidade que o reino da graça aumente?
Porque sem isto não é possível edificar o corpo de Cristo (Ef
4.8-12). Por isso Deus não somente estabeleceu ministérios e
deu dons espirituais à Igreja, como também visa através do
exercício deles à edificação do corpo de Cristo em amor até
que todos cheguem à plena maturidade espiritual.
Nós precisamos do aumento do reino da graça porque nós
temos muito trabalho para fazer e a seara é grande e poucos
os obreiros. A vida de um crente é trabalhosa: há muitas
tentações para resistir, muitas promessas para crer, muitos
preceitos para obedecer, de maneira que isto requererá muita
graça. À medida que o trabalho aumente há necessidade
também de um aumento da graça.
“Mas pela graça de Deus sou o que sou; e a sua graça para
comigo não foi vã, antes trabalhei muito mais do que todos
eles; todavia não eu, mas a graça de Deus que está comigo.” (I
Cor 15.10).
Se o reino da graça não aumentar no coração ele se
deteriorará e poderemos ouvir do Senhor que temos deixado
o nosso primeiro amor (Apo 2.4). E as coisas que permanecem
estão prontas para morrer (Apo 3.2). Embora a graça não possa
expirar, no entanto pode murchar, e um crente murcho perde
219
muito da sua beleza e fragrância. Então que grande
necessidade nós temos de orar “venha o teu reino.”, para que
este reino da graça possa ser aumentado.
“antes crescei na graça e no conhecimento de nosso Senhor e
Salvador Jesus Cristo.” (II Pe 3.18 a).
Por falta de aumento da sua graça, um crente perde a sua
força e fica como um homem doente que não pode caminhar
e trabalhar, as suas orações estão doentes e fracas, e é como
se não houvesse nenhuma vida nele. E a pulsação do amor no
seu coração quase não bate.
Os crentes são chamados de árvores de justiça (Isa 61.3) e a
seiva desta árvore espiritual é a graça, sem a qual ela não pode
crescer e ser saudável.
Eles são também chamados de luz do mundo, e uma luz fraca
pouco pode iluminar, e assim há necessidade de que
aumente, e o que a faz aumentar é a graça.
E como esta graça é de Jesus (At 15.11; I Cor 16.23; II Cor 13.13;
Apo 22.21; II Tim 2.1; Ef 6.10; II Pe 3.18) todo aumento de graça
deve portanto ser buscado nele e na sua Palavra. Toda a pureza
que nós precisamos está nele e procede da fé nele. Assim
também todo a fé, todo o amor, toda a força, toda a alegria e
tudo o que diz respeito à vida espiritual que somos chamados
a viver e a dar testemunho.
Quanto mais o Espírito Santo iluminar o coração mais o crente
poderá conhecer as suas imperfeições e poderá confessá-las
para que seja purificado e aperfeiçoado pela graça.
Agora, além de orar pelo reino da graça, nós oramos para que
o reino da glória possa se apressar. E o que é este reino da
glória? Quais são aos suas propriedades? No que ele excede
todos os demais reinos? Quando este reino virá? Em que se
apoia a certeza da sua vinda? E por que nós devemos orar para
a sua vinda?
Primeiro este reino significa a condição gloriosa que os santos
desfrutarão para sempre com Deus e com os anjos.
Este reino de glória significará a liberdade de todas as
necessidades da natureza. Nós estamos nesta vida sujeitos a
muitas necessidades, nós precisamos de comida, de roupas,
de repouso, e de muitas outras coisas, mas no reino do céu
não haverá nenhuma necessidade destas coisas. Nós não
precisaremos destas muletas, e é bem melhor não necessitar
220
de muletas do que tê-las. Que necessidade haverá de comida
para corpos espirituais? (I Cor 15.44). Que necessidade
teremos de sono onde não há noite?
No reino do céu nós seremos livrados das imperfeições da
natureza. O nosso próprio conhecimento natural é imperfeito
por causa da Queda. Há muitos nós duros na natureza que nós
não podemos desatar facilmente. E nossa ignorância sempre
será maior do que o nosso conhecimento.
Nosso conhecimento de Deus é imperfeito. Nós o
conhecemos, mas em parte, apesar de termos recebido dele
tantas revelações (I Cor 13.9). Nós temos senão concepções
obscuras sobre a Trindade, bem como não podemos
compreender todo o poder, onisciência e glória de Deus. Mas
quando a luz da glória começar a brilhar no horizonte divino,
todas as sombras da ignorância serão dissipadas, e a nossa
lâmpada brilhará intensamente com um conhecimento
completo de Deus.
No céu não haverá nenhuma necessidade de se labutar pela
glória, porque nós teremos a glória pela qual lutamos neste
mundo.
Nós descansaremos das nossas obras (Apo 14.13). Assim como
Deus descansou no sétimo dia depois de ter concluído a obra
da criação, nós também descansaremos do nosso trabalho
para a nossa santificação depois que ele tiver sido concluído.
No reino do céu nós seremos livrados completamente da
corrupção original que é a raiz e causa de todo tipo de pecado
presente. No reino do céu a fonte do pecado original será
secada totalmente. E que tempo abençoado será este em que
nunca mais entristeceremos o Espírito Santo com os nossos
pecados.
No reino do céu nós estaremos completamente fora do
alcance da tentação de Satanás, que ficará para sempre preso
em cadeias.
No reino do céu nós estaremos para sempre livres de
cuidados; de temores; e de todo tipo de dúvidas.
No reino do céu haverá unidade perfeita em amor entre todos
os crentes. Lá não haverá jamais qualquer divisão.
Nós não teremos falta de qualquer coisa no reino do céu, e
teremos uma íntima comunhão com o próprio Deus que é um
221
oceano inesgotável de toda a felicidade. Nós veremos Deus
face a face (I Cor 13.12).
Além da visão gloriosa do Senhor Jesus em seu corpo
glorificado, nós veremos os anjos e os santos que partiram
para a glória antes de nós, e que comunhão maravilhosa não
será esta com os santos glorificados! A alegria procede da
união e os santos estarão perfeitamente unidos pelos laços do
amor de Cristo. Nós não podemos viver a plenitude desta
unidade aqui na terra porque há muitas imperfeições,
tentações e ataques do reino das trevas contra a unidade dos
santos, mas no reino da glória do céu nada disto arranhará a
perfeita unidade dos crentes, e assim eles terão completa
alegria. Tão importante e vital é esta união para a nossa alegria
que nós somos exortados insistentemente na Palavra a lutar
para preservar esta unidade no vínculo da paz. Por isso
Satanás procura por todos os meios e modos dividir os
crentes, pois sabe que com isto consegue roubar a alegria
deles no Senhor e uns com os outros. Mas no céu não pode
haver mais nenhuma tristeza porque o coração dos santos
glorificados estará cheio de santa alegria permanentemente.
Um reino insinua honra, e por isso os santos serão honrados
no reino do céu recebendo coroas. E uma coroa é um sinal de
poder real. E não seria honroso receber uma coroa depois de
todas as nossas lutas contra o pecado e contra Satanás?
No reino do céu nós teremos um descanso abençoado, e toda
agitação de espírito terá cessado. As ansiedades e
perturbações de mente também cessarão.
A glória do reino do céu é sólida e significativa. A palavra
hebraica para glória significa peso, para mostrar quão pesada
e sólida é a glória do reino celestial. A glória do reino
mundano é etérea e passageira.
Há uma certeza e uma infalibilidade do reino de glória porque
Cristo disse que foi do agrado do Pai dar aos santos um reino
(Lc 22.29); e este reino foi adquirido por preço, porque Cristo
o comprou para nós com o seu sangue (Hb 10.19). A cruz de
Cristo é a chave do paraíso celestial; e o sangue de Cristo é a
chave que abre os portões do céu. Se os santos pudessem
perder o reino do céu, então Cristo também teria a sua
compra e propriedade perdidas. Ele jamais desprezaria o duro
trabalho da sua alma para poder comprar tal propriedade (Is
222
53.11). Todo o seu sofrimento na cruz teria sido vão. Então
como isto é impossível de ocorrer, nós podemos ter a certeza
da infalibilidade da vinda deste reino de glória.
Cristo orou para que os santos pudessem estar com Ele no seu
reino (João 17.24). E se os santos não pudessem entrar neste
reino divino a oração de Cristo seria frustrada. Mas isto não
pode suceder porque Ele é o favorito do Pai, e sempre é
atendido por Ele (João 11.42).
A certeza da vinda do reino de glória repousa também no fato
de que Cristo ascendeu ao céu como precursor da nossa
própria entrada. Ele subiu para que nós pudéssemos também
subir para estar para sempre com Ele (João 14.2).
Os eleitos podem ter como certa a entrada deles no reino dos
céus porque eles estão inseparavelmente unidos a Cristo
como membros do seu corpo. Os arminianos afirmam a
possibilidade de uma pessoa justificada pela fé cair da graça e
assim a sua união com Cristo seria dissolvida e o reino
perdido; mas eu pergunto a eles se Cristo pode perder um
membro do seu corpo? Como ficaria este corpo sem alguns
membros que foram planejados pelo Pai para estarem nele, de
maneira que o corpo seja perfeito e não um aleijão? Por isso é
afirmado na Palavra que todos os eleitos serão salvos e
nenhum deles será perdido (João 6.37, 39; II Pe 3.9).
Nós temos que orar “venha o teu reino” porque Deus não fará
com que ele venha sem oração. Este reino é muito precioso e
nós devemos reconhecer o seu valor orando para que ele
venha. Deus se agrada de que demos o devido valor ao que é
verdadeiramente eterno, inabalável e glorioso. Nós devemos
demonstrar que é sincera a nossa oração pela vinda do reino
pelo nosso desejo de sermos livrados completamente do
pecado e vivermos em perfeita e eterna santidade diante de
Deus; e pelo nosso desejo de vê-lo face a face.
Nós devemos orar pela vinda do reino de glória porque será na
sua manifestação que o reino do diabo será definitiva e
completamente desfeito.
Moisés desejou ardentemente ver ainda que fosse somente
um lampejo da glória de Deus, e como não desejaríamos ver a
plenitude desta glória? Então devemos orar “venha o teu
reino.”.
223
Ninguém deveria deixar de examinar o seu coração para saber
se irá para o reino de glória depois da sua morte. O céu é
chamado de um reino preparado (Mt 25.34). E como nós
podemos saber que este reino está preparado para nós?
Nós podemos saber isto se nós estamos preparados para o
reino.
Como isso pode ser conhecido?
Sendo pessoas santas. Um coração terrestre não está em nada
ajustado para o céu, tal quanto um grão de terra está ajustado
para ser uma estrela.
Seria um milagre achar uma pérola numa mina de ouro; e
seria um grande milagre achar Cristo, a pérola de grande
preço, num coração terrestre. Nós iríamos para o reino do
céu?
Nós somos santos? Nossos pensamentos se ocupam com os
interesses deste reino celestial?
Nós somos santos em nossos afetos? Nós fixamos nossos
afetos no reino do céu? (Col 3.2). Se nós formos santos, nós
menosprezamos todas as coisas aqui debaixo em comparação
com o reino de Deus; nós veremos o mundo senão como uma
bela prisão; e nós não estaremos satisfeitos em achar nossos
corações acorrentados ao mundo, ainda que as correntes
sejam feitas de ouro, porque os nossos corações estarão no
céu, tal como o Senhor nos ensinou e ordenou.
Nós somos santos na nossa conversação? Nosso idioma é o da
Canaã celestial? Há muitos que afirmam que irão para o reino
do céu mas nada se vê na fala deles acerca das coisas deste
reino, senão somente das que são do mundo.
Nós estamos em viagem para o céu e nunca falaremos das
coisas do lugar para o qual estamos viajando? Nisto, muitos
revelam que não pertencem ao céu porque do que o coração
está cheio a boca fala. E o coração de muitos não está
definitivamente nas coisas celestiais senão apenas nas que
são deste mundo.
Nós trabalhamos em favor do reino do céu, empenhando-nos
para ganhar almas para Cristo?
Nós somos santos que procuram imitar o seu Pai celestial?
Nós buscamos a semelhança com Cristo?
Se nós formos santos nós podemos ter a certeza de que nós
iremos para o reino do céu quando nós morrermos porque
224
está assegurado que é pela evidência da santificação que nós
podemos estar seguros de pertencer a Deus e de que veremos
a sua face (Hb 12.14).
Verdadeiramente há muita razão para que nós sejamos santos
em nossos pensamentos, afetos e conversação, se nós
considerarmos que o fim principal pelo qual Deus nos deu
nossas almas, é para que pudéssemos ser participantes do
reino do céu, e no céu tudo é puro e santo.
Se há um tal reino de glória esperando por nós, é então nosso
dever aperfeiçoar a santidade com temor e tremor. E este
temor não é um temor de desconfiança ou dúvida que
desencoraja a alma, mas o santo temor de diligência que nos
faz aplicados nas coisas espirituais, celestiais e divinas. Temor
que faz com que os cristãos sonolentos sejam despertados e
vigiem em todo o tempo. Com este temor nós perseveraremos
e podemos ter em todo o tempo a certeza da garantia de
possuirmos o reino pelo qual oramos “venha o teu reino.”.
Entretanto nunca devemos esquecer que o que garante a
entrada neste reino celestial é a justiça que excede em muito
a dos escribas e fariseus, isto é, a justiça do evangelho que é
pela fé em Cristo. Sem isto, por mais gloriosa que possa ser a
profissão religiosa de alguém como era a dos escribas e
fariseus, no entanto este alguém estará muito longe do reino.
Os escribas e fariseus sentavam-se na cadeira de Moisés, pois
se apresentavam ao povo como os representantes legítimos
da religião que Deus revelou a Moisés, e os judeus pensavam
que se apenas duas pessoas fossem para o céu, uma seria o
escriba e a outra o fariseu, mas Jesus revelou o quanto a justiça
deles estava distante da única justiça que pode garantir a
entrada no reino, porque não se baseava na justiça que é pela
fé, mas na justiça das obras baseada na lei. Sem a cobertura do
sangue de Jesus e sem nascer de novo do Espírito Santo
ninguém pode ver o reino dos céus.
Assim um homem pode ser um cumpridor de ritos e
ordenações e ainda não encontrar o reino. Um homem pode
lamentar pelo pecado e ainda não achar o reino divino. Um
homem pode ter bons desejos e ainda estar fora do reino.
Muitos pecadores desejam misericórdia, mas não graça; eles
podem desejar a Cristo como Salvador, mas não como Santo e
225
Senhor; eles desejam a Cristo apenas como uma ponte para
conduzi-los ao céu.
Um homem pode abandonar os pecados de embriaguez,
impureza e outros vícios e ainda estar fora do reino. Ele pode
abandonar muitas formas de pecado, mas ainda não ter
nenhuma luta contra o pecado em seu coração.
É possível que muitos deixem de praticar certos pecados por
temerem o inferno, ou porque lhes traz vergonha e penúria,
contudo ainda amam o pecado. E como se entregam a uma
reforma parcial que não é operada pelo Espírito Santo, e não
tendo a sua culpa cancelada pelo sangue de Cristo, eles
perdem o reino de glória.
Todas as lágrimas no inferno não serão suficientes para
lamentar a perda do reino do céu. Aqueles que perdem o reino
divino, perdem a doce presença de Deus, e é somente na sua
presença que pode haver plenitude de alegria (Sl 1611).
Se Deus é a fonte de toda a felicidade, então, estar separado
dele, é a fonte de toda a miséria.
Os ímpios não lamentam a perda do reino da glória enquanto
estão neste mundo porque não conhecem o seu verdadeiro
valor. Mas isto será revelado a eles quando estiverem no
inferno e então lamentarão, porque saberão que desprezaram
uma pedra preciosa de infinito valor. Quando alguém perde
um diamante sem saber que se tratava de uma pedra preciosa,
não lamentará a perda, mas quando vier a conhecer o valor do
que perdeu, certamente lamentará.
Os eleitos, que têm garantida a sua entrada no reino, não
devem ser negligentes e indolentes nas ações e orações
necessárias para apressar a vinda do reino de glória, porque
se Deus não poupará aqueles que desprezaram o reino
sujeitando-os a uma condenação eterna, a quantas dores não
poderão ficar sujeitos os filhos de Deus que viverem de
maneira contrária à sua vontade, porque em vez de viverem
pela fé na busca de uma vida frutífera, deixam-se vencer pela
dureza de seus corações incrédulos e indolentes que
desprezam a Canaã celestial e preferem voltar ao Egito de
escravidão, incorrendo no mesmo erro dos israelitas dos dias
de Moisés. Por isso a Palavra exorta os crentes a não
incorrerem no mesmo exemplo de desobediência, de modo a
terem a plena certeza da entrada deles no descanso de Deus.
226
“Procuremos, pois, entrar naquele repouso, para que
ninguém caia no mesmo exemplo de desobediência.” (Hb
4.11).
“12 Vede, irmãos, que nunca haja em qualquer de vós um
coração mau e infiel, para se apartar do Deus vivo.
13 Antes, exortai-vos uns aos outros todos os dias, durante o
tempo que se chama Hoje, para que nenhum de vós se
endureça pelo engano do pecado;
14 Porque nos tornamos participantes de Cristo, se retivermos
firmemente o princípio da nossa confiança até ao fim.
15 Enquanto se diz: Hoje, se ouvirdes a sua voz, Não endureçais
os vossos corações, como na provocação.
16 Porque, havendo-a alguns ouvido, o provocaram; mas não
todos os que saíram do Egito por meio de Moisés.
17 Mas com quem se indignou por quarenta anos? Não foi
porventura com os que pecaram, cujos corpos caíram no
deserto?
18 E a quem jurou que não entrariam no seu repouso, senão
aos que foram desobedientes?
19 E vemos que não puderam entrar por causa da sua
incredulidade.” (Hb 3.12-19).
Pela fé em Cristo temos garantida a nossa entrada no reino de
glória, mas importa viver de modo digno desta entrada que
nos foi concedida, a saber, não na incredulidade, mas
crescendo na fé, pela qual temos entrado no reino.
A incredulidade manteve Israel fora de Canaã. E a
incredulidade mantém muitos do lado de fora do céu. A
incredulidade é um inimigo da salvação, é o pior dos pecados,
porque sussurra que temos vivido na terra sem o céu e que
poderemos viver sem o céu depois de termos deixado este
mundo. A incredulidade destrói a esperança, e impede que
aguardemos pelo reino prometido. A incredulidade produz
pensamentos contrários a Deus, e O apresenta como um Juiz
severo, que desencoraja a alma de muitos por fazer exigências
pesadas. Ninguém que ame viver na carne achará de fato a
bondade, o amor e a doçura que se encontram em Deus, e o
grande prazer em servi-lo. Os próprios crentes carnais não
podem suportar o alimento sólido de Deus, senão se
alimentarem de leite. E isto não é para se admirar porque a
carne luta contra o Espírito. A carne não tem prazer na Lei de
227
Deus e não se sujeita a ela. Por isso se ordena a mortificação
da carne para que se possa amar e servir a Deus. No final dos
tempos, por causa da multiplicação da iniquidade que esfriará
o amor a Deus de muitos, os crentes carnais rejeitarão até
mesmo o leite genuíno pelo qual deveriam obter crescimento
até poderem se nutrir de alimento sólido (I Pe 2.2). A vontade
de Deus será um fardo para eles, especialmente a ideia de que
devem santificar as suas vidas purificando os seus corações
pela fé no sangue de Jesus e pela aplicação da Palavra pelo
Espírito Santo às suas vidas. E como rejeitarão o que é
necessário para que a fé possa crescer e ser nutrida, alguns
apostatarão da fé, e não somente negarão o Senhor como a sua
Palavra. Este será um golpe duro para o coração bondoso e
amoroso do nosso Pai. Por isso os crentes são alertados sobre
o dever de se exortarem mutuamente à santidade, e isto deve
ser intensificado quanto mais o tempo de consumação de
todas as coisas se aproxima.
Jesus diz que o reino do céu é tomado por esforço, e que
muitos tentarão entrar no reino mas não conseguirão, porque
há critérios que foram estabelecidos por Deus para tal
entrada, e se o homem não se sujeitar aos critérios de Deus e
obedecê-los todo o seu esforço terá sido em vão.
Assim ninguém deve se gloriar na sua salvação a não ser que
esteja de fato se santificando diariamente e cumprindo as
condições estabelecidas por Deus para perseverar na prática
da verdade (II Pe 1.5-10).
E a quase totalidade do esforço que se exige do crente para
entrar no reino consiste na fé em Cristo como seu redentor.
Cristo pagou o preço para nos resgatar da escravidão do
pecado, das trevas, e da maldição da lei. E é pela sua graça,
mediante nossa fé nele, que o trabalho de regeneração e
santificação do Espírito Santo é levado a efeito. Importa pois
permanecermos em Cristo em todo o tempo, e isto se faz,
como dissemos antes, pelo exercício constante da fé nos seus
méritos e obra. Enquanto caminharmos olhando para o autor
e consumador da fé, tudo irá bem, e nada há que temer. Esta é
a condição mesma da perseverança dos santos que lhes dará
a certeza de entrada no reino, e daí se dizer que aquele que
perseverar até o fim será salvo, porque todo crente autêntico,
todo verdadeiro filho de Deus perseverará na fé e se esforçará
228
para crescer na graça e no conhecimento de Jesus. Deus
ensina e ordena isto na Bíblia, para que ninguém erre o alvo
ou viva em dúvidas quanto à certeza da sua entrada no reino
de glória.
Cristo é a brilhante estrela da manhã, e somente Ele pode
iluminar o caminho que conduz ao céu.
Os filhos de Deus não devem ser como os incrédulos que são
preconceituosos quanto à retidão de Cristo. Eles olham para
Ele como sendo austero e as suas leis como sendo muito
severas, tal como se referiu a Ele o homem da parábola que
enterrou o seu único talento, e que não se animou em
trabalhar para Cristo para fazer com que ele rendesse. Nós
devemos nos desvencilhar destes laços dos ímpios e lança-los
para bem longe de nós (Sl 2.3). Para as pessoas más as leis de
Cristo são um jugo, porque elas não gostam de viver debaixo
de restrição, e de fato odeiam a Cristo, porque lhes impõe
muitas restrições. Tais pessoas prezam a ideia de que são
livres e que têm liberdade para pensar e agir como acham que
melhor lhes convenha, e não pautam seu procedimento pela
Palavra do Senhor. Mas muitos destes fingem amar a Jesus
como um Salvador, enquanto O odeiem quanto à sua
santidade.
Os homens são preconceituosos em relação às verdades de
Cristo, especialmente à relativa à autonegação. Mas para
entrar no reino o homem tem que negar a sua própria justiça
(Fp 3.9).
Os homens são preconceituosos aos seguidores de Cristo. Os
que seguem fielmente a Cristo passam uma repreensão nos
modos dos que são do mundo, pelo seu testemunho de vida, e
por isso são rejeitados e odiados.
Mas há outro grupo dentre os seguidores de Cristo, que por
viverem debaixo de uma máscara de devoção, vivem na
prática deliberada do pecado e assim geram outra forma de
preconceito. Mas a religião de Cristo e o seu evangelho
ensinam tal tipo de procedimento destes que não santificam
o nome de Deus? O Mestre deve ser considerado mau porque
alguns dos seus discípulos são ruins?
Rejeitar o valor da santidade e da justiça de Deus por cuja
rejeição Ele sujeitará os incrédulos a julgamento e a uma
condenação eterna, e afirmar apenas a bondade e
229
misericórdia de Deus como garantia de entrada no reino de
glória é uma grande ilusão, e tem propiciado ao diabo poder
enganar a muitos, que em vez de se deixarem persuadir pela
Palavra que impõe o dever da santidade para se livrar da
condenação futura, deixam-se enganar pela ideia antibíblica
de uma salvação universal de todos os homens, por causa da
misericórdia de Deus, apesar dele ter revelado
expressamente na sua Palavra que o juízo será sem qualquer
misericórdia. Quando não se crê na verdade da Palavra
revelada pelo próprio Deus para se crer em ilusões criadas
pelos próprios homens ou por inspiração de demônios, correse o risco de não se ter o devido temor de Deus e horror ao
pecado, e não se buscar converter dos maus caminhos para
viver em santidade de vida para Deus. Jesus morreu e
ressuscitou e nos deu o dom do Espírito Santo para este
propósito de purificar um povo zeloso de boas obras para
Deus.
Os homens devem ser ajudados pelos servos de Deus a
deixarem as suas ilusões e se voltarem para a verdade da
Palavra, de maneira que sendo persuadidos pela verdade
venham a se arrepender dos seus pecados e serem
transformados em novas criaturas pela fé em Cristo, tendo
sido justificados dos seus pecados, pela fé no seu sangue.
Outra grande ilusão é a confiança nas riquezas e nas posições
de glória e fama mundanas que são incertas e passageiras e
nada podem realizar quanto à salvação da alma. As riquezas
mundanas são usadas como armadilhas pelo diabo para trazer
espíritos cobiçosos em escravidão. As riquezas são armadilhas
douradas que mantêm os homens encarcerados na prisão do
pecado. A rocha íngreme que conduz ao céu não pode ser
escalada com o peso das riquezas amarrados em nossas
pernas. O amor ao mundo (I João 2.15) prende nossas cabeças
ligadas somente ao que é terreno e nos impede de pensar nas
riquezas que são do céu. Josué pôde parar o curso do sol, mas
não a cobiça de Acã. Dificilmente a fortaleza da cobiça pelas
riquezas terrenas se deixará vencer pela persuasão da graça
que se deve entesourar para a vida do céu. Quão dificilmente
um rico entra no reino dos céus.
Há pecados que são tão queridos a uma pessoa que se livrar
deles seria o mesmo que arrancar um olho ou um braço. E
230
como seria muito dolorosa para eles tal separação do pecado
eles preferem não entrar no reino e continuar acalentando
aquele pecado específico que lhes é muito caro. Um rei para
poder fugir do seu inimigo teve que se livrar da sua pesada
coroa de ouro. De igual modo se o pecado que é tão caro e
pesado para qualquer pessoa, se não for abandonado, acabará
sendo o peso que a afundará no inferno e impedirá a sua
subida para o reino do céu.
Se alguém não deseja perder o reino do céu deve dar atenção
ao tipo de companhia que lhe agrada. Se é a má companhia
como podemos continuar amando a Deus fazendo-nos
íntimos daqueles que O odeiam? Paulo diz que não devemos
evitar o contato com os incrédulos porque para isto seria
necessário sair do mundo, mas nem por isso devemos
escolher voluntariamente a má companhia (I Cor 5.10,11). O
que fazem as pombas de Cristo entre as aves de rapina? O que
fazem as virgens entre as meretrizes? Se a armadura brilhante
for encostada na armadura enferrujada, a armadura brilhante
não fará brilhar a enferrujada, mas esta deteriorará a
armadura brilhante. O mal corromperá o bem mais rápido
que o bem converterá o mal. Há um estranho poder atraente
na companhia má para corromper e envenenar as melhores
disposições. Lance uma bola de fogo na neve, e o fogo será
extinto. Assim, também entre os ímpios o fervor será perdido.
Depois disto, aquele que antes tinha o seu olhar e coração no
céu, começará a ser desencorajado e gradualmente cairá da
graça. E deste modo, tudo que dantes ele prezava na sua
comunhão com Deus ele passará a desprezar aos poucos, até
chegar ao ponto de se desgostar e odiar o seu procedimento
sóbrio que tinha anteriormente. Ele passará a ser um Ismael
que zombará dos Isaques de Deus, porque a liberdade deles
lhes custa a obediência ao Senhor.
Se alguém não deseja perder o reino do céu não deve permitir
ser dirigido pela carne. A carne é um inimigo que está dentro
do castelo e que se encontra bem armado para destruí-lo. A
carne é um mau conselheiro e procura insistentemente nos
afastar do caminho de Deus e da sua presença. A carne se
ufana da sua relação íntima carnal para protestar direitos
diante de Deus, mas Jesus diz que aquele que amar mais a seus
familiares do que a Ele, não é digno dele, em outras palavras,
231
se alguém rejeita a santidade de Deus por insinuação de
algum parente próximo, não pense que com isto estará sendo
desculpado pelo Senhor, porque importa agradar a Deus e
desagradar a tal parente que procura nos afastar da sua
presença, pelo caminho de tentar impedir a nossa
consagração e santificação. Uma esposa no seio pode ser um
tentador. A esposa de Jó era assim (Jó 2.9). Ela o confrontou
indagando de que havia adiantado ele ter servido a Deus em
integridade? Onde estavam os salários que segundo ela eram
devidos a Jó por Deus? Assim ela sugeriu por inspiração do
diabo que Jó renunciasse ao seu Deus, que se livrasse dele de
uma vez para sempre. Aqui estava uma tentação que foi
entregue a ele pela sua própria esposa. A mulher foi feita da
costela, mas o diabo transformou esta costela numa seta para
atirá-la no coração de Jó, mas a fé do patriarca extinguiu o fogo
do dardo ígneo do diabo. Precavenha-se portanto de relações
familiares. Não é por serem familiares que estarão
necessariamente do lado da justiça e da verdade, enfim de
Deus e da sua Palavra. A família do próprio Cristo tentou
infamá-lo dizendo que estava louco, e tentaram prendê-lo. O
diabo sempre procurará atuar especialmente através das
pessoas que nos são mais queridas para tentar nos dissuadir
da nossa perseverança no caminho da verdade. Ele apelará
aos nossos afetos como fez com Eva em relação a Adão no
Éden. Jerônimo disse que se o seu pai tentasse persuadi-lo a
negar a Cristo, ou se sua mãe o tentasse por acalentá-lo no seu
seio, ou mesmo sua esposa através do encanto dos seus
abraços, ele abandonaria tudo e voaria para Cristo.
Precavenha-se da apostasia e saiba que há muitos perigos,
tentações e armadilhas no caminho que conduz ao reino do
céu. Quem pensa estar de pé veja que não caia para não perder
o seu galardão. Aquele que perde o prêmio da sua vocação por
naufragar na fé não pode vir ao porto da glória.
Tertuliano disse que parece que o apóstata coloca Deus e
Satanás numa balança, e tendo pesado ambos os seus
serviços, prefere o serviço do diabo, e proclama ser ele o
melhor mestre, e deste modo expõe Cristo à vergonha (Hb
6.6).
Então aqueles que desejam ter a firme certeza de que estarão
no reino da glória devem abandonar toda sugestão do ego em
232
justiça própria, e se exercitarem de fato em autonegação
conforme lhes é ordenado por Jesus. Nós temos que nos
precaver contra a justiça própria (Fp 3.9). A justificação da
graça que é somente pela fé, e que garante a entrada no reino
da glória, nada tem a ver com civilidade ou moralidade, mas
com santidade operada pelo Espírito Santo mediante
aplicação da Palavra de Deus.
A civilidade e a moralidade são uma estrada boa para
caminharmos entre os homens, mas é uma escada imprópria
para subir ao céu.
Nós devemos negar nossas boas obras quanto ao que diz
respeito à justificação. Nós devemos negar toda justiça
nascida do ego e confiar inteiramente em Cristo.
E devemos adquirir uma amor pelo céu. O amor põe o homem
em ação para obtenção do objeto amado. E se exige um grande
amor pelo céu para lutarmos para a obtenção do seu reino. Se
for revelado a nós pelo Espírito o valor infinito da pérola da
salvação, nós tudo faremos para obter esta pérola. O céu é um
lugar de descanso e alegria, é um paraíso, e nós não o
amaremos? Ame o céu e você não o perderá. O amor vence
toda oposição e nos faz caminhar na tempestade. Embora lute
nunca cairá cansado.
Nós não podemos esquecer que somos comerciantes da
pérola de grande preço e que isto demanda de nós total
empenho no serviço de Deus porque é para Ele que estamos
neste negócio espiritual. Nossas melhores horas são aquelas
que gastamos no serviço de Deus. É fazendo assim que se
conquista o reino do céu por esforço.
Nós devemos fazer o voto sagrado de que caminharemos mais
próximo do Senhor e que procuraremos estar
compromissados com os interesses do céu mais
vigorosamente. O voto liga o votante ao dever, e ele olha para
o voto como uma obrigação que ele tem para com Deus. Neste
sentido muito ajuda para que o corpo de Cristo seja saudável
que sejam feitos votos de consagração por todos os crentes,
em conjunto. Estas amarras da consciência lhes ajudará no
cumprimento do seu dever para com o Senhor, e não
permitirá que os objetivos voltados para a sua santificação
sejam dispersados.
233
Mas devemos fazer também votos individuais, assim como Jó
que fez uma aliança com os seus próprios olhos para não
contemplar o mal (Jó 31.1). A entrada de muitas cobiças vem
pelo olhar, tal como Eva cobiçou o fruto proibido no Éden.
Primeiro ela olhou, e então cobiçou. O olho ao ver um objeto
impuro coloca o coração em chamas, e o diabo rasteja
frequentemente na janela dos olhos. Portanto, vigie seus
olhos.
Vigie também seus ouvidos. Muito veneno é carregado pelo
ouvido. Deixe seu ouvido estar aberto para Deus, mas fechado
para o pecado. Não aplique seu coração em considerar tudo o
que você ouve. Satanás usa a estratégia de nos desencorajar,
intimidar, entristecer, irar etc, pelas notícias que nos
transmite por aqueles que usa como seus instrumentos. Saiba
que tudo está debaixo do controle de Deus, e se o seu
propósito é perseverar em santidade Ele não permitirá que
você seja paralisado pelas mentiras e injúrias do diabo.
Vigiem seus corações. Nós vigiamos pessoas suspeitas. O
coração é enganoso (Jer 17.9). Vigie seu coração quando você
estiver com coisas santas, para que não sejam roubadas pela
vaidade.
Satanás traiu Cristo através de um apóstolo. Não sejamos
portanto pessoas crédulas que dão crédito a todo que se
proclama ministro de Deus. Avaliemos antes os seus frutos,
porque pelo fruto se conhece a árvore.
Vigie seu coração na prosperidade porque quanto mais alto o
homem sobe, mais o seu coração se eleva também em
orgulho. Na prosperidade você não está apenas em risco de se
esquecer de Deus, mas de levantar o seu calcanhar contra Ele
(Dt 32.15).
É difícil carregar uma xícara cheia sem derramar, e também
carregar uma prosperidade completa sem pecar.
Quando Cristo estava jejuando e orando o diabo o tentou. E
assim, mesmo quando estamos usando nossa armadura
espiritual Satanás nos ataca procurando nos ferir. Oh, se você
adquiriu o céu, esteja então vigilante em sua torre de vigia, e
mantenha um sentinela íntimo em suas almas.
Nunca se esqueça destas três graças que indubitavelmente
conduzirão você ao reino divino:
234
1 – O conhecimento divino. O conhecimento é a pira de fogo
que vai adiante de nós e nos ilumina no reino divino.
2 – Fé que nos é dada para o fim da nossa salvação.
3 – Amor a Deus. O céu está preparado para aqueles que amam
a Deus.
Cultivemos a sinceridade porque o crente sincero pode cair
por falta em alguns graus da graça, mas ele nunca cairá do
reino. Deus passará por cima de muitas quedas quando o
coração está correto. Sinceridade significa simplicidade de
coração, em quem o espírito não tem nenhuma malícia.
Nós somos sinceros quando servimos a Deus com o nosso
coração, e quando não somente o adoramos, mas O amamos.
O crente sincero, apesar de ter nele um princípio duplo, de
carne e espírito, não tem um coração dobre, porque o coração
dele é para Deus e Ele o serve e adora em espírito.
Há sinceridade quando tudo o que fazemos é para a glória de
Deus.
Não é nenhuma formalidade, mas fervor que nos trará o céu.
Aqueles que são mornos estão a ponto de serem vomitados da
boca de Cristo. O formalista é como Efraim, um bolo que não
foi virado, e assim está quente de um lado e frio do outro. No
exterior, quando adora a Deus, parece estar quente, mas na
parte espiritual que é no interior do coração, ele está frio. Elias
foi elevado ao céu numa carruagem de fogo de zelo. É através
de violência que o reino do céu é conquistado.
Se nós desejamos estar no reino divino, nós devemos prestar
atenção aos movimentos do Espírito Santo em nossos
corações. Movimentos para oração, para arrependimento,
para santificação, para louvor, para serviço. Quando ouvirmos
o som de uma marcha sobre a copa das amoreiras nós
devemos nos apressar para seguir a Deus que tem saído
adiante de nós. Assim, quando nós ouvirmos dentro de nós
uma voz nos inspirando secretamente para que nos mexamos
ao exercício dos nossos deveres, nós devemos nos mover e
obedecer o Espírito. Enquanto o Espírito trabalhar em nós, nós
deveríamos trabalhar com o Espírito.
Muitos não se movem com estes movimentos do Espírito e
assim o entristecem, e o Espírito retira a sua ajuda. O Espírito
é comparado ao fogo, e assim, se nós negligenciamos e
resistimos aos seus movimentos nós apagamos o seu fogo
235
santo. É o Espírito que traz o céu aos nossos corações, e como
poderemos ter isto apagando o seu fogo?
Nós conquistamos o reino do céu por uma obediência alegre
e constante. A obediência é a estrada pela qual nós viajamos
rumo ao céu. Muitos dizem que amam a Deus, mas se
recusam a obedecê-lo. Aquele que ama o rei despreza as suas
ordens?
A obediência deve ser constante e nos conduzir ao objetivo de
Deus. Se um homem deve viajar cem quilômetros para chegar
a uma cidade e desistir de prosseguir depois de ter percorrido
99 quilômetros, poderá se dizer dele que cumpriu mesmo em
parte o seu objetivo? Assim nós devemos ser obedientes a
Deus em tudo e com constância, até que atinjamos o objetivo.
Somente santidade será admitida no céu. Somente o puro de
coração verá a Deus (Mt 5.8). A santidade é o idioma do céu, é
a única moeda que circulará lá. Esta consideração nos deveria
levar a nos limparmos de toda imundície da carne e do
espírito, aperfeiçoando a santidade no temor de Deus (II Cor
7.1).
Nós devemos nos empenhar na santificação conhecendo a
malicia implacável de Satanás. Ele inveja o fato de que nós
teremos um reino enquanto ele estará excluído dele. Ele
moverá então todos os poderes do inferno para nos impedir
de estar no reino, e tudo fará para prevalecer contra alguns.
Que grande maravilha é esta que alguém persevere e chegue
ao reino do céu! Que grande maravilha é que haja tal coisa
como a perseverança. Esta perseverança dos santos é
construída em três pilares imutáveis. 1 – No amor eterno de
Deus (Jer 31.3); 2 - Na aliança da graça (Jer 32.40); 3 - Na união
dos crentes com Cristo, em que Ele é a cabeça e eles os
membros do seu corpo. Assim como é impossível separar o
fermento da farinha depois que eles são incorporados, de
igual modo não se pode mais separar um crente do amor de
Deus que está em Cristo Jesus depois deles terem sido unidos
um ao outro.
O crente persevera pela ajuda do Espírito Santo. É o Espírito
que mantém a essência e semente da graça e faz com que as
faíscas da graça produzam uma chama santa. Ele é o óleo que
queima em nossas lâmpadas.
236
Cristo causa a perseverança e faz com que um santo continue
caminhando em direção ao reino divino por meio da sua
poderosa intercessão. Ele é tanto um Advogado quanto
Protetor do seu povo para que os santos cheguem em
segurança no reino do céu.
É ordenado aos crentes que busquem o reino de Deus em
primeiro lugar. O reino deve ser buscado acima de qualquer
outra coisa. Deus nos colocou no mundo para nos preparar
para o reino do céu. Um barco não é construído para ficar
atracado para sempre no cais. E um crente não é salvo para
permanecer arraigado neste mundo, senão para ser guindado
do mundo seguindo em sua viagem rumo ao céu. Quando os
judeus rumavam de suas tribos para o templo em Jerusalém
eles tinham muitos atrativos no meio da caminhada, mas
nada lhes desviava do alvo de chegarem à cidade querida. De
igual modo um crente não deve permitir ser desviado pelos
muitos atrativos do mundo em sua peregrinação rumo à
Jerusalém celestial.
O que dará o homem pelo resgate da sua alma? O que dará em
troca do reino do céu? Quão sublime e maravilhoso é aquele
lugar onde a beleza da santidade de Deus brilha adiante dele
na sua imensa glória, que excede toda a compreensão? Quão
insensato é viver atribuindo maior valor às coisas deste
mundo do que ao reino do céu. Por um reino glorioso como o
do céu todo empenho e sofrimento terá valido à pena.
Nenhuma tribulação sofrida por amor a ele terá sido tão
grande que possa ser comparada com a glória do reino por ser
revelada. Então devemos orar “venha o teu reino”.
Nós devemos nos preparar para o reino e ter a certeza de ter
alcançado o reino divino porque o tempo de nossa vida neste
mundo é curto e incerto. Não podemos saber se estaremos
aqui na próxima semana. Quando o corpo morre a alma voa
para a eternidade, e somente os que foram justificados,
regenerados e santificados podem ter a certeza de que irão
habitar no céu. Nenhuma decisão para se receber a Cristo
como Salvador e Senhor não deve portanto jamais ser adiada,
e uma vez tendo sido convencidos pelo Espírito dos nossos
pecados e da necessidade de arrependimento e fé em Cristo
para sermos perdoados, devemos fazê-lo no dia que se chama
Hoje. Não devemos ser negligentes de modo a deixarmos que
237
o reino do céu fuja de nós. A vida que temos no corpo é
enganosa antes de termos a Cristo como Salvador, porque não
é efetivamente vida, mas morte em delitos e pecados, morte
espiritual que depois da nossa saída do mundo se
transformará em morte eterna, e isto significa separação
eterna de Deus no sofrimento eterno do inferno. Que nos
empenhemos então para encontrar a vida abundante que está
em Cristo pela morte da morte na sua morte. Se os crentes
estavam mortos e morreram para a morte na sua
identificação com a morte de Cristo, eles alcançaram vida
eterna, e são parte agora de uma nova criação na qual a luz de
Cristo brilhou em seus corações pela iluminação do Espírito
Santo que lhes deu o verdadeiro conhecimento de Deus pela
expulsão das trevas da ignorância em que se encontravam.
Mas estando agora no reino da luz do Senhor as trevas e vazio
que havia no abismo dos seus corações foram dispersados
porque o coração foi iluminado quando Deus ordenou que
houvesse luz nesta nova criação espiritual; quando o Espírito
Santo brilhou iluminando aqueles que estavam nas trevas do
pecado, para serem livrados das trevas espirituais para
poderem conhecer a Deus. Em Rom 6.6-11 se diz que estamos
crucificados juntamente com Cristo e devemos nos
considerar mortos para o pecado, mas vivos para Deus na
nossa identificação com Jesus. Mortos em Cristo fomos
transportados por Deus para um novo plano de vida no qual
devemos viver. Para Deus estamos mortos, morremos para o
pecado, para o mundo, para os desejos apaixonados da alma, e
vivemos no plano espiritual da vida operada pelo Espírito
Santo. Assim morremos em Cristo para vivermos em
novidade de vida. Em Cristo morremos para o pecado, para o
mundo, para vivermos em santidade, na luz, no amor de Deus.
Estamos mortos com Cristo aos olhos de Deus e assim
devemos nos considerar para podermos participar da sua
vida.
Se este novo plano de vida ao qual fomos chamados a viver e
no qual viveremos para sempre, é espiritual, como podemos
nos desviar do alvo dando somente atenção àquilo que é
terreno e passageiro? Como desprezaríamos o tesouro
celestial por colocarmos nosso coração nos tesouros
terrenos?
238
Cristo providenciou tudo o que é necessário para ganharmos
o reino do céu. E se exige de nós tão somente fé na obra que
Ele realizou em nosso favor. Como poderão então ser
desculpados por Deus aqueles que vierem a perder o reino
uma vez que não lhes está sendo oferecido com base na
capacidade deles senão pela fé de pedirem a Deus que o seu
reino venha a eles? A fé em Cristo e nada além dela dará a
garantia de entrada no reino. A fé genuína anda de mãos dadas
com o arrependimento, porque a fé verdadeira é aquela que
reconhece o valor da morte de Jesus por nós e a nossa
identificação com a sua morte para sermos livrados da ira de
Deus em relação aos nossos pecados; porque a descarregou
no seu próprio Filho, para que fôssemos livrados dela, pela
nossa identificação com Ele pela fé.
A esperança da colheita faz com que o agricultor semeie. A
esperança da vitória faz o soldado guerrear. E a esperança da
glória do reino do céu faz o crente se empenhar por ela. E
quanto mais um crente trabalhar pelo reino maior grau de
glória ele terá; porque Deus recompensará a cada um segundo
as suas obras. Se nós fôssemos arrebatados ao terceiro céu por
alguns momentos e depois retornássemos à terra, nós
trabalharíamos muito mais para Cristo, nós oraríamos com
maior devoção e zelo, para ter uma maior recompensa no céu.
E enquanto estivermos trabalhando em prol do reino do céu,
Deus nos ajudará através do seu Espírito.
Quanto mais dores nós sofrermos por causa do reino de Deus
e da sua justiça, mais doce será o céu para nós quando formos
para lá.
A guirlanda da glória deve ser ganha através de luta e trabalho
antes que nós a possamos usar em triunfo. Por isso as
promessas do Senhor relativas ao galardão são introduzidas
no Apocalipse por: “Ao que vencer eu darei...”. E só pode
vencer quem lutar e trabalhar para isto. Por isso é importante
remir o tempo e se entregar totalmente à prática das boas
obras que Deus preparou de antemão para que andássemos
nelas. Se na parte anterior da nossa vida fomos como
salgueiros estéreis em bondade, sejamos na parte posterior
como um pomar de romãs com frutos agradáveis.
O céu não é uma colmeia para zangões inativos e
improdutivos. A ociosidade nos expõe às tentações do diabo.
239
Água parada apodrece. Se os atletas correm nos estádios por
uma coroa de louros, nós não correríamos a carreira
espiritual que nos está proposta por um reino? O trabalho é
adornado com honra.
É uma grande misericórdia que há uma possibilidade de
felicidade, e que em nossa diligência nós podemos ter um
reino.
Se você tiver esperança deste reino santo, ore
frequentemente para a sua vinda dizendo “venha o teu
reino.”.
Mas devemos estar contentes como Paulo em ficar algum
tempo fora do céu para que possamos conduzir outros para lá
(Fp 1.24).
Enquanto nós esperamos pelo reino, nossa graça está
aumentando. Todo dever executado pela graça acrescenta
uma joia à nossa coroa. Em todos os seus sofrimentos o
verdadeiro santo é herdeiro da cruz. Mas os sofrimentos dos
crente não podem fazer com que ele desfaleça porque os seus
sofrimentos lhe trarão um reino.
Se sofrermos com Cristo, também com Ele reinaremos (II Tim
2.12). A luta é curta mas o triunfo será eterno. Este sofrimento
passageiro produz um peso eterno de glória (II Cor 4.17).
Os sofrimentos deste tempo presente não podem ser
comparados à glória a ser revelada em nós (Rom 8.18).
A própria morte nos trará uma coroa de glória. O dia da morte
de um crente é melhor que o dia do seu nascimento. A morte
de um crente é a sua entrada numa eternidade de glória.
Quando o crente ouvir o som das rodas da carruagem da
morte vindo buscá-lo, ele não temerá, mas se alegrará de
saber que será levado para casa, para um reino eterno.
A Terceira Petição na Oração do Senhor
“Faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu.” - Mateus
6: 10
O que significa vontade de Deus?
Primeiro a vontade de Deus que está em segredo e que não
pode ser conhecida, e que se encontra presa à sua própria
essência, e que nenhum homem ou anjo pode conhecer. Em
240
segundo lugar significa a vontade de Deus que Ele revelou.
Esta vontade está registrada na Bíblia.
Por que nós oramos seja feita a tua vontade?
Nós oramos por duas razões: primeiro para uma obediência
ativa em que nós fazemos aquilo que Deus nos ordena; e
segundo para uma obediência passiva, pela qual nós nos
submetemos voluntária e pacientemente às circunstâncias e
condições a que Deus nos inflige ou sujeita.
Mas antes de obedecer a Deus nós temos que conhecer a sua
vontade. O conhecimento é o olho que dirige o pé da
obediência.
Entretanto, o conhecimento que não se traduz em obediência
não é de qualquer valor (I Cor 13.2). Ter somente o
conhecimento da vontade de Deus e nada mais, é ineficaz
porque não torna melhor o coração. O conhecimento isolado
é como o sol de inverno que não tem calor suficiente para
aquecer os afetos ou purificar a consciência. Judas teve uma
grande iluminação e conheceu a vontade de Deus, mas era um
traidor.
O conhecer sem o praticar fará o inferno mais quente. Aquele
que conheceu a vontade de Deus e não a praticou será
castigado com muitos açoites (Lc 12.47). Assim o grande
conhecimento de um tal homem como este será como uma
tocha para iluminar o inferno. E em que tal pessoa superará o
diabo que se transforma em anjo de luz? Assim é impróprio
chamar de crentes aqueles que conhecem a vontade de Deus
mas que não a praticam. Porque como podem os tais orarem
dizendo seja feita a Tua vontade? Pois não se diz que seja
apenas conhecida, conforme está implícito no mandamento,
mas que seja feita.
O grande desígnio de Deus quando revelou a nós a sua Palavra,
foi para nos tornar praticantes da sua vontade.
A Palavra de Deus não é somente uma regra de conhecimento
mas de dever (Dt 26.16). A finalidade de todas as promessas de
Deus é nos conduzir a fazer a sua vontade. As promessas são o
imã da obediência (Dt 11.27; 28.1,3). .
O querubim e a espada flamejante têm o propósito de nos
intimidar em relação ao pecado, e nos tornar praticantes da
vontade de Deus.
241
Os desobedientes estão debaixo de maldição (Dt 11.28; Sl
68.21). Aqueles que foram destruídos pela sua desobediência
foram colocados como exemplos na Bíblia para que não
sigamos as suas pegadas, de maneira a não ficarmos sujeitos
aos mesmos juízos..
É fazendo a vontade de Deus que nós comprovamos a nossa
sinceridade em servi-lo.
Jesus disse que eram as obras que Ele fazia que davam
testemunho dele (João 10.25).
Não é com belas palavras que damos testemunho da nossa
sinceridade, mas com nossas obras. Nós conhecemos a saúde
e vida de uma pessoa pela pulsação do sangue em seu braço.
Assim a integridade de um crente não será medida pela sua
profissão, mas pela sua ação em fazer a vontade de Deus. Este
é o melhor certificado e atestado de que estamos de fato indo
para o céu.
É da vontade de Deus que se propague o evangelho. Fazemos
a vontade de Deus quando mostramos nosso amor a Cristo, e
demonstramos o nosso amor por Ele guardando os seus
mandamentos (João 14.21). Assim é algo vão alguém dizer que
ama a pessoa de Cristo ao mesmo tempo que despreza os seus
mandamentos.
Nós dizemos seja feita a tua vontade mas ainda não
obedecemos os seus mandamentos? Nós estamos então
procedendo de modo contrário ao que pedimos em nossa
oração, porque dizemos: “Seja feita a Ta vontade”.
Se não obedecermos a Deus nós estaremos resistindo a Ele e
acaso somos mais fortes do que Ele? (I Cor 10.22).
É insensato não fazer a vontade de Deus porque fazendo isto
nós estaremos fazendo a vontade do diabo. E não é loucura
satisfazer um inimigo e fazer a vontade de quem procura a
nossa ruína?
Aqueles que têm por pai ao diabo não podem fazer senão à
vontade do pai deles (João 8.44). Quando um homem mente
ele não está fazendo a vontade do diabo? “Ananias, por que
Satanás encheu o teu coração para mentir ao Espírito Santo?”
(At 5.3).
Opor-se à vontade de Deus é colocar-se debaixo da condição
descrita por Paulo em II Tes 1.7-9 quando Jesus voltar para
242
tomar vingança dos que não conhecem a Deus e que não
obedecem o evangelho:
“7 E a vós, que sois atribulados, descanso conosco, quando se
manifestar o Senhor Jesus desde o céu com os anjos do seu
poder,
8 Como labareda de fogo, tomando vingança dos que não
conhecem a Deus e dos que não obedecem ao evangelho de
nosso Senhor Jesus Cristo;
9 Os quais, por castigo, padecerão eterna perdição, ante a face
do Senhor e a glória do seu poder,” (II Tes 1.7,8).
Obedecer a Deus é um dever.
“Mas isto lhes ordenei, dizendo: Dai ouvidos à minha voz, e eu
serei o vosso Deus, e vós sereis o meu povo; e andai em todo o
caminho que eu vos mandar, para que vos vá bem.” (Jer 7.23).
Fazer a vontade de Deus é para nossa honra. Não é uma honra
que um Rei fale conosco e que nos confie a sua vontade para
ser feita? Os mandamentos de Deus não nos sobrecarregam
mas nos adornam.
Fazer a vontade na terra nos torna semelhantes a Cristo no
seu ministério terreno, porque o que estamos fazendo é dar
prosseguimento à sua obra. E a oração que Jesus dirigiu ao Pai
quando retornaria ao céu não foi para que fôssemos como
Ele? E Jesus não veio ao mundo para fazer a sua própria
vontade mas a dAquele que O enviou (João 6.38) e fazer isto era
o seu alimento (João 4.34). .
Aquele que faz a vontade de Deus torna-se tal como um
parente consanguíneo de Cristo (Mt 12.50).
Fazer a vontade de Deus na terra traz paz na vida e na morte.
Nós fazemos a vontade de Deus de maneira aceitável a Ele
quando nós o servimos com um princípio renovado de graça.
Uma árvore que não seja frutífera pode ser tão saudável
quanto uma frutífera, mas não pode dar frutos, porque o
princípio que opera na raiz não lhe dá tal capacidade. Assim
uma pessoa não regenerada não pode produzir os mesmos
frutos de um filho de Deus, porque não está enxertada na raiz
da graça.
O princípio interno da obediência é fé, e por isso se diz
obediência da fé (Rom 16.26). A fé olha para Cristo em todo
dever e toca a orla das suas vestes, e é por meio de Cristo que
243
tanto as pessoas dos crentes e suas ofertas são aceitáveis a
Deus (Ef 1.6).
Nós fazemos a vontade de Deus na terra assim como os anjos
fazem a sua vontade no céu, quando nós fazemos isto
regularmente, e andamos de acordo com as instituições
divinas e não conforme as tradições dos homens.
Os anjos nada fazem além de atenderem aos comandos de
Deus, e eles não foram criados para cerimônias. E o estatuto
que vale para os anjos no céu é o mesmo estatuto que existe
para nós na terra, a saber a sua Palavra revelada. E nós temos
que observar este estatuto divino exatamente. Se o relógio não
for fiel em seu trabalho de marcar as horas, para nada serve.
De igual modo nós temos que trabalhar de acordo com o
padrão que Deus estabeleceu para nós (Ex 25.40).
Quão severamente Deus castigou Nadabe e Abiú por terem
oferecido fogo estranho no altar (Lev 10.2), isto é, que não
atendia às suas ordenanças divinas.
Tudo que não estiver em conformidade com o padrão divino
é fogo estranho.
Muitos pensam que podem adorar a Deus a seu próprio modo
como que se Deus não fosse poderoso, capaz e sábio o bastante
para fixar o modo pelo qual convém ser adorado.
A vontade de Deus deve ser obedecida na terra do mesmo
modo absoluto que é obedecida pelos anjos no céu, e daí a
nossa oração deve ser “seja feita a tua vontade assim na terra
como no céu”, isto é, que ela seja feita na terra do mesmo
modo que é feita no céu. E não podemos conceber Deus sendo
obedecido parcialmente pelos anjos tanto no que eles devem
ser moralmente em essência em seus seres, quanto no que diz
respeito à obediência às ordens que Deus lhes dá,
particularmente as que se referem à ministração que devem
fazer em favor dos crentes (Hb 1.14).
Deus disse de Davi ser alguém que era segundo o seu coração,
e declarou o motivo disto: porque ele faria toda a sua vontade
(At 13.22).
Todo mandamento de Deus tem a mesma autoridade e se nós
fizermos a vontade de Deus corretamente nós o faremos
uniformemente, obedecendo todas as partes da sua vontade.
Assim é hipocrisia fazer apenas parte da vontade de Deus.
Alguns oram, mas não dizimam e ofertam; alguns ouvem a
244
Palavra mas não perdoam e amam seus inimigos; outros
participam da ceia do Senhor mas não fazem restituição;
alguns ensinam o evangelho mas falam contra o sustento
financeiro dos seus pastores. Como podem ser chamados de
santos obedientes?
Contudo quem é suficiente para fazer toda a vontade de Deus?
Embora nós não possamos fazer toda a sua vontade
legalmente falando, isto é, por obediência perfeita a toda a lei
e em todo o tempo, nós podemos fazê-lo em sentido
evangélico que consiste no seguinte:
Quando nós lamentamos em não poder fazer a vontade de
Deus de maneira melhor e mais efetiva; quando lamentamos
quando falhamos (Rom 7.24); quando o desejo da nossa alma é
fazer toda a vontade de Deus (Sl 119.5). Aquilo que falta a um
filho de Deus em força ele compensa fazendo as pazes com
toda a sua diligência. Nós também fazemos a vontade de Deus
em sentido evangélico, que é o único modo de fazê-la
enquanto neste mundo, quando nós nos esforçamos para
fazer o melhor segundo a nossa medida de fé e capacidade,
porque embora o melhor dos nossos esforços seja como os
rabiscos de um desenho de uma criancinha para o seu pai,
Deus não terá em conta a plena satisfação mas a aceitação, e
certamente aceitará o nosso esforço como cumprimento da
sua vontade.
Nós fazemos a vontade de Deus na terra assim como ela é feita
pelos anjos no céu quando nós fazemos isto sinceramente. E
fazer a vontade de Deus com sinceridade consiste
basicamente em duas coisas: primeiro fazer a sua vontade
externamente com um respeito verdadeiro pelos seus
mandamentos. E esta sinceridade será testada por Deus em
exigências que demandarão de nós que demos um
testemunho externo da nossa fé a outros, assim como Abraão
que se dispôs a sacrificar o próprio filho, por ter-lhe sido
ordenado pelo Senhor. E tal como ele, mesmo na execução de
deveres ordenados por Deus, que não nos tragam qualquer
alegria ou conforto para a sua execução, no entanto só haverá
sinceridade em nossa obediência à sua vontade se
executarmos de fato tudo o que nos for ordenado.
Assim como Neemias que foi incansável em conduzir os
judeus ao cumprimento das exigências da lei do Senhor,
245
debaixo das circunstâncias mais adversas que se possa
imaginar. Aquele dever foi certamente doloroso para ele, mas
ele fez tudo por amor sincero à vontade do Senhor. O
ministério do evangelho não exige de nós somente adoração
e oração, mas também ações, pois nos é ordenado não
amarmos apenas de língua mas de fato e de verdade, de
maneira que devemos realizar todas as ações necessárias para
demonstrar o nosso amor a Deus e ao próximo. Por exemplo,
o sustento dos que são verdadeiramente necessitados e dos
ministros do evangelho é um dever para ser realizado pela
igreja, e como podem os crentes afirmarem que têm
obedecido a Deus se são negligentes quanto a isto?
Se os filhos afirmam que são obedientes mas não atendem e
não executam o que lhes é ordenado por seus pais, que
obediência é essa que eles alegam ter?
As mulheres que não honram, que não respeitam, que não
ouvem os seus próprios maridos, como podem afirmar que
estão cumprindo o dever que Deus lhes impôs de serem
submissas a eles?
Um dever não deve ser cumprido porque nos seja agradável,
mas porque se requer que a vontade de Deus seja feita na
terra, assim como é feita no céu. É porque Deus tem ordenado
que nós devemos obedecer e não porque achemos sensato,
razoável, agradável ou seja o que for.
Em segundo lugar, fazer a vontade de Deus com sinceridade,
é tudo fazer para a exclusiva glória dele (I Pe 4.11). Os fariseus
faziam tudo para a própria glória deles. Jeú executou as ordens
de Deus em relação aos adoradores de Baal, mas como ele o
fez não para a glória de Deus, Deus olhou aquilo que ele fez
como um assassinato e prometeu que vingaria o sangue de
Jezreel na casa de Jeú (Os 1.4).
Como Amazias nós podemos fazer aquilo que é correto à vista
de Deus, mas não com inteireza de coração (II Crôn 25.2). Nisto
também erram aqueles que dizimam e ofertam na casa de
Deus, apenas como que por obrigação, e não de forma
voluntária e com alegria.
Nós fazemos a vontade de Deus na terra como os anjos a fazem
no céu, quando nós a fazemos de boa vontade, sem
murmurações. Os anjos amam fazer a vontade de Deus e o céu
para eles é fazer esta vontade. Há um senso que existe em
246
todos os seres morais que é o desejo de se sentir útil, e não há
maior maneira de se satisfazer tal desejo de se sentir útil do
que fazer a vontade de Deus, porque não há uma maior e
melhor maneira de viver com utilidade.
Jesus nos deixou o exemplo do sentido da vida revelando-nos
que não veio para ser servido mas para servir. Daí se dizer que
aquele que não vive para servir, não serve para viver, porque
o sentido da vida está no serviço a Deus e ao próximo. No
entanto, este serviço é verdadeiramente útil e eficaz quando é
segundo a vontade de Deus.
Esta utilidade em servir demandará na maioria das vezes fazer
a vontade de Deus contrariando a nossa própria vontade. O
cansaço, a indisposição e o medo deverão ser vencidos muitas
vezes para que se possa fazer a vontade do Senhor. Ele não nos
requisitará para o seu serviço se estivermos desocupados ou
pensando em conforto e repouso. O nosso lugar de descanso
não é neste mundo, e enquanto estivermos aqui temos muito
a fazer para o Senhor com canseiras e com o suor do rosto,
porque isto nos está imposto.
Agora, o fato de ter que contrariar a nossa própria vontade
para fazer a de Deus, e ter que fazer isto muitas vezes em
desconfortos e canseiras, não significa que podemos fazer a
vontade de Deus se nos faltar amor, fervor e alegria na
execução de tudo o que fizermos para Ele (Rom 12.11,12).
Nossa obediência deve ser como o fogo do altar que nunca
podia apagar (Lev 6.13).
Nós devemos continuar fazendo a vontade de Deus com
constância por causa da grande perda que nos acontecerá se
nós não a fizermos. Se a Igreja de Filadélfia deixasse a sua
obediência ela perderia a sua coroa e honra (Apo 3.2). A
apostasia cria infâmia. Se nós não retivermos a nossa
obediência nós perderemos tudo o que nós ganhamos até
então. Todas as orações terão sido perdidas, todo o louvor e
adoração que foram feitas no Dia do Senhor (domingo), e
todas as nossas boas obras. Toda a retidão que tivermos tido
até a nossa apostasia não será mencionada (Ez 18.24). E no caso
de não eleitos a condição deles será como a que é citada em II
Pe 2.21 de que seria melhor que não tivessem conhecido o
caminho da justiça.
A constância fixa a coroa da obediência na cabeça.
247
“Eis que venho sem demora; guarda o que tens, para que
ninguém tome a tua coroa.” (Apo 3.11).
“Olhai por vós mesmos, para que não percamos o que temos
ganho, antes recebamos o inteiro galardão.” (II João 8).
Sabendo que não temos nenhum poder inato em nós mesmos
para fazer a vontade de Deus, nós devemos orar seja feita a Tua
vontade. Porque oraríamos para que seja feita a vontade de
Deus se nós pudéssemos fazê-la pelo nosso próprio poder?
Se nós temos que fazer a vontade de Deus na terra assim como
ela é feita no céu pelos anjos, nós devemos então ter nos anjos
o modelo da nossa obediência à vontade de Deus, e não no
nosso próximo. Se o nosso próximo for para o inferno nós
também devemos segui-lo? Se eles vivem dentro de uma
obediência deliberadamente imperfeita, nós seguiremos o
exemplo deles? Por isso o nosso padrão não está fixado no
homem mas nos anjos, quanto ao modo que eles se dispõem a
atender os comandos de Deus. Mas sabemos que uma
obediência perfeita como a dos anjos nós poderemos ter
somente no céu. Mas o Senhor fixou o objetivo da perfeição
em todas as coisas para ser buscado por nós, de maneira que
sejamos perfeitos tal como o nosso Pai celestial é perfeito.
Aqueles que se ajoelham na igreja e oram dizendo “seja feita
a tua vontade” mas que não vivem para obedecer a Palavra de
Deus são hipócritas e rebeldes, e a rebelião é como o pecado
de feitiçaria.
Há aqueles que não fazem a vontade de Deus de uma maneira
aceitável e correta. Eles não fazem a vontade de Deus
completamente. Eles o obedecerão em algumas coisas, mas
não em outras, como se um empregado devesse fazer algum
trabalho para o seu senhor e não se dispusesse a fazê-lo
completamente. Jeú destruiu a idolatria de Baal mas manteve
a adoração dos bezerros de ouro de Jeroboão (II Rs 10.28,29).
Alguns proclamam grande amor a Deus com a boca, como se
tivessem sido tocados com uma brasa do altar do Senhor, mas
vivem de maneira vã e desordenada (II Tes 3.11). Viver pela fé
e segundo a Palavra tem que caminhar junto. E é algo ruim
não fazer toda a vontade de Deus. Estes que não se dispõem a
obedecer a Deus em tudo, praticando toda a sua Palavra, serão
achados vivendo na carne, ainda que desejem ser crentes
espirituais. Como as orações, conversação e ações deles
248
poderão estar em conformidade com a vontade de Deus
quando não se dispõem a obedecê-lo em tudo que lhes tem
ordenado? Eles trazem os seus sacrifícios ao altar mas não os
seus corações. E assim estão longe de fazer a vontade de Deus
como a fazem os anjos.
Se nós queremos realmente ser abençoados por Deus nós
devemos fazer a sua vontade. Ele fez várias promessas na sua
Palavra de abençoar aqueles que fazem a sua vontade. Esta é a
única maneira de termos uma boa colheita. Assim se
desejamos ter nossas almas abençoadas nós devemos fazer a
vontade de Deus.
Assim, fazer a vontade de Deus é o modo correto de fazer a
nossa própria vontade.
Para fazer a vontade de Deus corretamente nós devemos
adquirir um conhecimento são, e este conhecimento é
somente segundo aquele que está revelado na sua Palavra.
Cristo afirmou que erramos quando não conhecemos as
Escrituras e o poder de Deus (Mt 22.29). Nós temos assim que
conhecer a vontade de Deus antes que possamos fazê-la
corretamente.
Para fazer a vontade de Deus é necessário que neguemos o
nosso ego. A menos que neguemos nossa própria vontade, nós
nunca faremos a vontade de Deus. Porque a vontade dele não
se baseia nos nossos sentimentos, emoções, pensamentos
daquilo que julgamos bom e correto, mas naquilo que está
revelado por Ele na sua Palavra.
Deus nos ordena que nos consideremos mortos, crucificados,
para o pecado e para aquilo que o mundo ama. Ele nos chama
a perdoar nossos inimigos. E a nossa natureza terrena vai na
direção contrária a isto. No entanto, se não nos contrariarmos,
nós nunca faremos a sua vontade completamente porque não
receberemos da sua parte graça e poder para fazê-lo, que Ele
concede somente àqueles que se dispõem a obedecê-lo.
Não será considerado justiça (Dt 24.13) para nós o fato de
sermos louvados pelos homens, sermos considerados
agradáveis a eles, nas mesmas bases em que o foram os
escribas e fariseus, mas por conduzirmos pessoas à salvação
que está em Cristo Jesus. Importa pois viver e pregar a verdade
do evangelho, resgatando pessoas das trevas para a luz. Estes
249
serão aqueles que nos receberão na condição de amigos, por
toda a eternidade, nos tabernáculos celestiais.
Não há verdadeira e permanente amizade onde não forem
estabelecidos os laços de amor de Cristo fundamentados na
verdade, pelo interesse comum de fazer avançar o seu reino
na terra, por uma estrita obediência a toda a vontade de Deus.
Por isso devemos adquirir corações humildes. O orgulho é a
fonte da desobediência. O filho humilde diz: “Senhor, o que tu
queres que eu faça?”. Não podemos esquecer que não fomos
criados e salvos para vivermos para nós mesmos mas para
Aquele que morreu e se entregou por nós. E este viver para Ele
implica obedecer em tudo a sua vontade.
Rogue a Deus para que lhe dê graça e força para fazer a sua
vontade. “Ensina-me a fazer a tua vontade” (Sl 143.10). É como
se Davi tivesse dito: “Senhor, eu preciso ser ensinado a não
fazer a minha própria vontade”. E a resposta de Deus para este
tipo de oração é: “E porei dentro de vós o meu Espírito, e farei
que andeis nos meus estatutos, e guardeis os meus juízos, e os
observeis.” (Ez 36.27). Se o Espírito Santo nos capacitar não
será difícil, mas bastante agradável fazer a vontade de Deus.
Mas, para isto, importa andar no Espírito de maneira
constante e perseverante, e não apenas em determinadas
ocasiões.
Nós devemos orar para que possamos ter graça para nos
submeter ao Senhor pacientemente nas aflições através das
quais Ele prova a nossa fé. Quando o crente fiel está debaixo
de alguma providência aflitiva ele deve permanecer
tranquilamente aos pés do Senhor e dizer: “seja feita a Tua
vontade”.
Nós não devemos ser estóicos, isto é, insensíveis e
desinteressados com os procedimentos de Deus, como os
filhos de Deucalion, de quem dizem os poetas, foram
procriados de uma pedra. Cristo era sensível e o demonstrou
quando seu suor se transformou em grandes gotas de sangue
(Lc 22.44), mas Ele se manteve submisso à vontade de Deus
(Mt 26.39). Assim nós somos convocados a nos humilhar
debaixo da potente mão de Deus (I Pe 5.6).
Um crente pode lamentar debaixo de uma aflição e ainda
permanecer pacientemente submetido à vontade de Deus (Sl
142.1,2). Deus permite lágrimas porque é um pecado não ter
250
afeto natural (Rom 1.31). A graça faz o coração se enternecer, e
a aflição é despejada em lágrimas. Nós podemos nos queixar a
Deus, mas não reclamar de Deus.
Deste modo é incompatível com a submissão paciente à
vontade de Deus, estar descontente com a providência. O
descontentamento carrega em si uma mistura de aflição e ira,
e ambos criam uma tempestade de paixão na alma. Quando
Deus toca a menina dos nossos olhos e nos golpeia naquilo
que nós amamos, e nós ficamos sensíveis e mal-humorados,
Ele não vê isto com bons olhos (Gên 4.6).
A murmuração não pode coexistir com submissão à vontade
de Deus. A murmuração é um tipo de motim na alma contra
Deus. “E o povo falou contra Deus...” (Nm 21.5).
Quando os homens não creem que Deus pode produzir mel a
partir do veneno que os aflige, eles murmuram. Eles
murmuram contra Deus porque desconfiam das suas
promessas. E Deus tem muita dificuldade para suportar o
pecado da murmuração (Nm 14.27), porque nos leva para
longe da submissão à sua vontade que tanto Lhe agrada.
Descompostura de mente e de espírito não permitem uma
submissão quieta à vontade de Deus, porque quando um
crente se encontra perplexo e transtornado ele não pode ter
uma melodia em seu coração para o Senhor. Estar debaixo de
descompostura de mente é estar como quando um exército é
derrotado, e a pessoa corre de um procedimento para outro
até que tudo fica em desordem. O crente quando está com sua
mente conturbada, os seus pensamentos ficam diluídos e
distraídos para cima e para baixo, de maneira que ele não pode
estar em submissão paciente à vontade de Deus.
Quando a pessoa se justifica em vez de se humilhar debaixo da
mão de Deus, ela não pode estar submissa à vontade de Deus.
Um pecador orgulhoso se levanta em sua própria defesa
baseando-se em seus argumentos carnais tentando fazer
prevalecer a sua própria vontade, contra a vontade revelada
de Deus. Ele está pronto para acusar Deus de severo e injusto,
quanto ao preço da renúncia que lhe exige para ser pago para
poder fazer a sua vontade (renúncia ao ego, com suas paixões
e inclinações, por amizades e relacionamentos reprovados
pela Palavra, comportamentos, atitudes, modos de vestir,
beber, comer etc).
251
Nós podemos cultivar uma vontade submissa à vontade de
Deus na aflição vendo a sua mão em tudo que nos sucede;
justificando Deus e não a nós mesmos porque tudo o que Ele
faz é para o bem daqueles que O amam; e aceitando as suas
correções paternais e emendando os nossos caminhos.
Esta submissão paciente à vontade de Deus na aflição exige
muita sabedoria, humildade e devoção. A habilidade de um
piloto é melhor discernida na forma como ele vence uma
tempestade. Submissão à vontade de Deus será muito
requerido de nós enquanto vivermos neste mundo. No céu
não haverá mais nenhuma necessidade de paciência nas
aflições porque elas simplesmente acabarão.
Mas enquanto neste mundo teremos muitas aflições porque
importa entrar no reino do céu por meio de muitas
tribulações (At 14.22). Deus derreterá o seu povo num forno,
porque Ele será pra eles como o fogo do ourives,
para purificar o seu ouro da escória do pecado que deve ser
queimada (Mal 3.2,3).
Alguns serão afligidos com pobreza (II Rs 4.2). A pobreza é
uma grande provação. Isto nos expõe a desprezo. Quando
Deus atirar a seta da pobreza em alguém, outros estarão
prontos a repeli-lo.
Às vezes Deus aflige com repreensão permitindo que seus
filhos sejam injustamente acusados, como os crentes da
Igreja Primitiva que foram acusados de incesto. Deus permite
que os seus filhos amados sejam exercitados em santidade
com isto. Sujeira pode ser lançada numa pérola, e aqueles
nomes escritos no livro da vida podem ser manchados com
infâmias e injúrias. A sinceridade protege do inferno, mas não
da difamação.
Noutras ocasiões Deus nos aflige com a perda de entes
queridos. E isto é como retirar um membro do nosso corpo.
Às vezes Deus aflige com fraqueza e enfermidades do corpo. A
doença rouba o conforto da vida.
Deus submete o seu povo a várias provações, de maneira que
possa gerar a necessária paciência em se submeter à sua
vontade.
Às vezes Ele deixa a aflição continuar por um longo tempo (Sl
74.9). Como doenças crônicas que levam tempo para serem
curadas, assim é este tipo de aflição. Em todos estes casos nós
252
precisamos de paciência e submissão de espírito à vontade de
Deus.
Em todas estas provações nós revelaremos o quanto é
verdadeira a nossa oração “Seja feita a Tua vontade”, e o
Senhor nos dá a oportunidade de conhecermos isto através
destas provações, de maneira que Lhe peçamos mais fé
e aprendamos a nos submeter de fato e fazer a sua vontade
em toda e qualquer circunstância.
É melhor permanecer debaixo das aflições do que se voltar
para busca de soluções que impliquem a prática do pecado ou
ter que fazer concessões ao diabo para ser livrado delas.
Devemos lembrar que as aflições fazem com que
permaneçamos em humildade, e um coração humilde é de
grande valor para o uso de Deus.
O Senhor prometeu nos ajudar a suportar a aflição (Sl
34.24,39). Ele não permitirá que sejamos provados além das
nossas forças e Ele mesmo providenciará o escape para nós no
momento oportuno (I Cor 10.13). Ele deseja que aprendamos a
confiar inteiramente na sua fidelidade em nos proteger e
guardar de todo o mal.
Devemos saber em todo o tempo que a vara de correção de
Deus para com seus filhos é uma vara de amor (Hb 12.6,7). Há
bondade e misericórdia em toda aflição pela qual Ele nos faz
passar. Por mais que doa em nós esta cirurgia profunda em
nosso espírito, é para o nosso próprio bem, de modo a
participarmos da sua santidade.
Deus tem prometido estar conosco em todas as nossas
dificuldades (Sl 91.5). Ele não as impedirá de acontecerem
porque ficaríamos sem correção e sem transformação de
nosso caráter. Mas nós temos a garantia da sua presença para
nos apoiar, santificar e adocicar toda aflição. É melhor estar
na prisão com a presença de Deus, do que estar no palácio sem
a mesma.
A aflição traz à tona da recordação aqueles pecados que nós
tínhamos enterrado na sepultura do esquecimento, de
maneira que possamos confessá-los e sermos curados.
A aflição também nos desperta e nos incita a clamar e a orar
e assim nós somos encorajados a sermos mais fiéis neste
dever da oração perseverante e incessante.
253
Talvez num tempo de saúde e prosperidade nós oramos de
uma maneira fria e formal, nós não pusemos nenhuma brasa
no incenso, então Deus envia alguma cruz para nos incitar a
clamar com todo o fervor da nossa alma aflita.
A aflição nos torna mais sérios e menos dispersivos em
relação às coisas de Deus. Nos tempos da prosperidade nós
éramos descuidados e estávamos encantados com as atrações
do mundo, mas na aflição nós vimos quanto importa remir o
tempo e o quanto são passageiras e ilusórias todas as coisas
que o mundo tem a nos oferecer. A aflição nos desmamará do
mundo.
Antes da aflição nós queríamos usar a fé e o evangelho para
prosperar no mundo, segundo o mundo, mas depois de
muitas aflições, nós entramos de fato no plano da novidade de
vida do reino do céu, e fazemos um uso correto da fé e do
evangelho para tão somente fazer a vontade de Deus e não a
nossa própria vontade. Aprendemos por fim o sentido da
oração “seja feita a Tua vontade”.
Mas a bondade de Deus é vista na aflição. Quando for
crepúsculo poderia ser mais escuro. O Senhor te podou? Mas
Ele poderia ter-te cortado. Ele poderia fazer nossas cadeias
mais pesadas. As águas da aflição estavam até os tornozelos?
Ele poderia fazer com que estas águas subissem mais alto ou
te submergir nas águas. Deus usa a vara da correção quando
poderia usar o escorpião.
Você tem experimentado a ira dos homens? Muitos têm
experimentado a ira de Deus. Nós somos hábeis em dizer que
nunca ninguém sofreu tanto como nós. Mas não é bondade de
Deus não nos tratar tão severamente como a outros?
As aflições nos fazem conscientes da nossa própria fraqueza e
mais dependentes da graça de Deus, de modo que juntamente
com Paulo podemos aprender que o poder de Deus é
aperfeiçoado na nossa fraqueza. Ele derrama mais do seu
Espírito naqueles que são mais contritos de coração. O fim da
aflição não é portanto humilhação mas exaltação. Não é
fraqueza, mas poder. Não podemos experimentar o poder da
vida ressurreta de Jesus a não ser por permanecermos mortos
na cruz. A operação da cruz não é uma operação intelectual de
conhecimento filosófico de que devemos nos autonegar, mas
uma operação vital que se manifesta em nós quando somos
254
mortificados pelas aflições. Morremos com Cristo e somos
ressuscitados em novidade de vida. Carregamos a cruz
diariamente e o Espírito Santo manifesta em nosso viver o
poder da vida abundante de Jesus.
O espinho na carne de Paulo também lhe preveniu do orgulho
espiritual por ter sido arrebatado até o terceiro céu. De igual
modo somos prevenidos de algum pecado quando passamos
por aflições. Em algumas ocasiões a aflição é enviada para
castigar o pecado e em outras para preveni-lo. Se Deus não
providenciasse uma cerca viva de espinhos, os seus filhos não
parariam a prática de determinados pecados. Deus permite
que entremos em sofrimentos para prevenir a entrada em
armadilhas, então podemos dizer com gratidão que “seja feita
a Tua vontade.”.
Nós somos corrigidos por Deus no mundo para que não
sejamos condenados eternamente com o mundo (I Cor 11.32).
Um homem pode ser retido por espinheiros bravos na costa
de um rio para não ser arrastado por sua correnteza. E assim
Deus deixa que sejamos retidos pelos espinheiros bravos da
aflição para que não sejamos arrastados e afogados pelo rio da
perdição.
O mundo considera feliz quem consegue escapar da aflição
mas feliz é o crente a quem Deus corrige. As aflições
contribuem para a nossa felicidade porque elas são o meio de
nos trazer para mais perto de Deus.
A prosperidade não nos puxa para perto de Deus como as
cordas das aflições.
Enquanto o filho pródigo tinha riquezas e as dispersava ele
estava esquecido de seu pai, mas quando entrou em aflição
lembrou-se dele.
Não é melhor passar pela aflição para ser conduzido à glória
do que viver em prazeres para ser conduzido à miséria? Não
que as aflições sejam propriamente uma glória, mas elas nos
preparam para isto. Então vale muito a pena orar: “seja feita a
Tua vontade.”.
O reino de Cristo é o reino da cruz. Aqueles que Deus salvará
do inferno não serão salvos da cruz. A consideração desta
verdade deveria aquietar nossas mentes na aflição e nos fazer
dizer: “seja feita a Tua vontade.”.
255
Por que nós deveríamos procurar ficar isentos de dificuldades
mais que outros? Por que nós deveríamos pensar somente
num mar de rosas, quando os profetas e apóstolos marcharam
através de espinheiros ao céu?
Considere que é comum quando Deus pretende conceder
maior misericórdia a qualquer pessoa do seu povo, que ele os
traga antes debaixo de aflição. Quando ele pretende nos
elevar, Ele nos traz mais baixo. A Bíblia está repleta de
exemplos que comprovam esta verdade.
Quando Deus trouxe Israel para Canaã Ele o conduziu
primeiro por um deserto. Quando Ele pretendeu fazer de José
o segundo homem no reino do Egito, Ele o lançou antes na
prisão. Normalmente Ele primeiro faz as trevas se tornarem
mais densas antes que faça surgir a estrela da manhã.
Esta submissão à vontade de Deus na aflição é composta
principalmente pelas graças da fé, do amor, da humildade e
da esperança. A fé crê que tudo contribui para o bem dos que
amam a Deus; o amor nos leva a ter os melhores pensamentos
sobre Deus e nos mantém unidos a Ele nos vales de aflição; a
humildade não diz que nossas aflições são grandes, mas que
nossos pecados são grandes. Nos faz suportar a indignação de
Deus porque somos pecadores (Mq 7.9); e por fim a esperança
nos dá a certeza de que a aflição por maior que seja, é leve e
passageira, e o Senhor nos livrará no tempo oportuno.
Aquele que traz o seu espírito sob o domínio da vontade de
Deus na aflição brilha mais do que muitos crentes notáveis em
seus feitos. Eles são como as águias que não gritam e não
fazem muito barulho como os corvos quando necessitam de
alimento. Elas permanecem em silêncio quando estão
famintas e assim o crente que está em necessidade, em
aflição, e assim mesmo permanece submisso à vontade de
Deus, tem uma grandeza e nobreza de espírito, que vence
a natureza, porque não chora e lamenta como os demais, mas
permanece calado e com sua mente em repouso aos pés de
Deus. Há muita força da graça numa tal alma.
Quando a graça está coroando não é grande coisa dizer “seja
feita a Tua vontade”, mas quando a graça está lutando e
encontra cruzes e tentações, então dizer “seja feita a Tua
vontade” realmente é uma coisa gloriosa e prepara para a
guirlanda de honra.
256
Considere que as pessoas são normalmente melhores na
adversidade que na prosperidade; então se encurve à vontade
de Deus. Uma condição de prosperidade nem sempre é uma
condição segura. Toda prosperidade traz consigo o seu fardo,
mas os que procuram por ela nunca olham para o fardo, senão
para o seu brilho.
A prosperidade tem o fardo do cuidado. Por isso o Senhor
chama as riquezas de “ansiedades” (Lc 8.14). Assim como a
rosa tem os seus espinhos, de igual modo as riquezas. Nós
pensamos que é feliz aquele que tem muitos bens, mas nós
não vemos as dificuldades e cuidados que eles têm. Um
homem pobre pode ter uma vida mais alegre do que a
daqueles que têm muitos bens. O coração do rico está repleto
de cuidados para aumentar e manter o que ele adquiriu.
Há também na prosperidade o fardo da conta que deverá ser
prestada a Deus. Uma conta maior terá que ser prestada a
Deus pelos ricos pelo uso que fizeram das suas riquezas,
especialmente em generosidade para com o próximo.
Há também mais perigos numa condição próspera, porque
aquele que se encontra no pináculo da honra está mais em
perigo de cair e está sujeito a muitas tentações. Há
necessidade de muita sabedoria e graça para saber se
conduzir numa condição próspera. Sempre há o risco de se
virar as costas para Deus e perguntar “Quem é o Senhor?” (Pv
30.9).
Prosperidade cria orgulho. Quando a maré sobe o navio
também sobe. De igual modo o coração do homem se eleva em
orgulho quando ele é elevado em honra.
Assim os ricos encontram-se em grande perigo em relação à
salvação das suas almas:
“E Jesus, vendo-o assim triste, disse: Quão dificilmente
entrarão no reino de Deus os que têm riquezas!” (Lc 18.24).
Considerando tudo isto deveríamos dizer na adversidade:
“seja feita a Tua vontade”.
Deus provê o melhor para nós. Se nós tivermos menos bens,
nós estamos em menor perigo. Se nós cobiçamos as honras de
outros, nós queremos as tentações a que eles estão expostos.
A finalidade de Deus na aflição é acalmar o espírito, subjugar
a vontade à sua vontade, e quando isto estiver concluído a
aflição atingiu o fim para o qual foi destinada, a saber, nos
257
santificar, e não será removida enquanto não cumprir a sua
obra. É somente quando a ferida é curada que o curativo é
retirado.
É somente quando o espírito do crente é submisso e manso
que ele estará à disposição de Deus. Um espírito que seja
segundo a vontade de Deus não é irritável, mas humilde; não
descontente, mas satisfeito (Fp 4.12).
Ficar descontente com uma condição baixa presente é devido
a uma fé fraca ou nenhuma fé, que precisa de muletas para
apoiá-la. O crente que não se submete à vontade de Deus
quando está deficiente de confortos externos, não confia de
fato em Deus e deveria de se envergonhar de ser chamado de
crente.
Murmurar quando Deus contraria a nossa vontade revela
falta de santificação. Alguns pensam que não são descrentes
como os demais porque não bebem, não fumam, não juram,
mas podem ser descrentes murmurando. Não há somente
bêbedos descrentes, como também murmuradores
descrentes. E não viver piedosamente é viver em rebelião.
Estas são as águas de Meribá (Nm 20.13). Esta é a companhia
de Datã, Coré e Abirão. Se é uma vergonha um servo se rebelar
contra o seu mestre, o que se dirá de uma criatura se rebelar
contra o seu Criador? Quando isto sucede o coração se eleva e
pensamentos maus entram em cena. Nós quase não
pensamos em Deus, porque julgamos que Ele tenha sido
rigoroso para conosco e que nos fez injustiça, ou julgamos que
merecíamos coisa melhor das suas mãos. E a insubmissão se
levanta juntamente com ingratidão.
Muitos se esquecem de todas as misericórdias que receberam
de Deus quando entram em aflição. Nós ficamos contentes em
receber bênçãos de conforto e alívio das mãos de Deus, mas
quando somos chamados a sermos provados com tribulações
nós nos tornamos insensíveis e prontos a arder em
murmurações contra Ele.
Quanto mais a criança luta contra a vontade do seu pai mais
ela apanha, e quanto mais nós lutamos com Deus e não nos
submetemos à sua vontade, Ele mais nos castigará e corrigirá.
Em vez de cooperarmos para que sejamos livrados das cordas
da aflição, mais o Senhor as apertará. Submetamo-nos então a
Deus dizendo “seja feita a Tua vontade”. Por que devemos
258
tornar nossa cruz mais pesada por causa da nossa
impaciência? Por causa de rebelião contra Deus uma viagem
que duraria no máximo onze dias foi feita em quarenta anos
pelos israelitas nos dias de Moisés.
Considere que sendo insubmissa à vontade de Deus uma
pessoa fica sujeita a muitas tentações. No coração que se irrita
contra a vontade de Deus com descontentamento, Satanás faz
uma boa pesca nestas águas agitadas. Ele faz normalmente
com que as pessoas fiquem descontentes de forma indireta. A
esposa de Jó se irritou (muito longe estava de uma submissão
santa) e ela incitou seu marido para que ele amaldiçoasse a
Deus (Jó 2.9).
Jesus disse: “É na vossa perseverança que ganhareis vossa
alma” (Lc 21.19). A palavra perseverança no original grego é
traduzida também por paciência, porque hupomoné significa
no grego suportar um fardo de maneira constante sem
desfalecer ou se irritar. A alma é mantida preservada, sem
dano, quando estamos debaixo desta paciência cristã. É
preciso se armar no pensamento que a vida cristã exige tal
comportamento de nós. Porque somos participantes não
somente da glória de Cristo mas também dos seus
sofrimentos (I Pe 3.17; 4.1; Col 1.24).
Paulo podia estar preso que cantava hinos de louvor a Deus e
orava (At 16.25). Quão distante disto está uma alma que está
descontente e que não aprendeu a se alegrar no Senhor e a se
submeter a Ele na aflição.
O ímpio blasfema o nome de Deus na aflição (Apo 16.9).
Quando uma pedra de fogo vinda do céu se dirige em sua
direção o seu coração de pedra se incendeia em fúria diante
da face de Deus.
Quanto mais podre está a madeira com mais facilidade ela se
incendeia quando é sujeitada a um atrito constante que a
aquece.
Assim o crente deve agir de modo diferente do ímpio na hora
da aflição.
Deus é paciente conosco suportando diariamente o nosso
olhar impuro, invejoso, e a maledicência de nossas línguas, e
ele passa por alto de muitas coisas e é paciente conosco e a sua
longanimidade é infinita como infinitos são todos os seus
atributos. Se o Senhor fosse nos castigar toda vez que nós
259
ofendemos a sua santidade, ele puxaria a sua espada
diariamente contra nós. Ele tem suportado a nossa mão, e nós
não podemos ser pacientes com nada que venha das mãos
dele a nós? Ele é paciente conosco e nós seremos impacientes
com Ele? Jesus é manso e nós murmuramos? Ele tem
suportado os nossos pecados e nós não suportaremos as
correções dele? Oh, deixe-nos dizer “seja feita a Tua vontade”.
Consideremos que submetendo nossa vontade a Deus na
aflição nós desapontamos Satanás na sua esperança de
entristecer o coração de Deus levando-nos a agir de acordo
com os modos dele que é o pai de toda mentira e rebeldia. A
finalidade do diabo em todas as nossas aflições é de nos levar
a pecar. Quando ele atacou Jó o seu alvo era desconcertar a
mente dele, de maneira que se voltasse contra a vontade de
Deus em ira. Mas Jó permaneceu aos pés do Senhor e bendisse
o seu nome na aflição, e desapontou Satanás na sua
esperança, e destruiu totalmente os seus argumentos e as
estratégias que usou para levá-lo a virar as costas para Deus e
a blasfemar na face dele. Se Jó tivesse murmurado ele teria
agradado a Satanás, mas Jó se submeteu quietamente à
vontade de Deus. Assim a melhor maneira de se vencer
Satanás em suas intenções infernais contra nós para nos
indispor contra Deus é viver de fato o que dizemos: “seja feita
a Tua vontade”.
Para o crente o veneno da aflição não é danoso mas curativo.
Para o ímpio a vara da aflição se transforma numa serpente e
em sendo picado por ela é arruinado pelo seu veneno. Mas
para o que se submete à vontade de Deus, Ele transforma a
aflição numa bênção; e o que seria veneno, vindo na dose
certa administrada pelo Senhor se transforma num remédio
curativo da alma e do espírito, sendo portanto um meio
preparatório para a glória. E deste modo os santos não são
apenas pacientes na aflição, mas gratos a Deus por elas por
lhes ensinar perseverança, paciência, experiência, esperança
(Rom 5.3,4). Em vez de terem as aflições por motivo de tristeza,
nestes crentes que se submetem à vontade de Deus, elas são
tomadas por motivo de grande alegria (Sl 119.71; Tg 1.2,3).
Nossas misericórdias que recebemos de Deus se renovam a
cada manhã (Lam 3.23), e isto deve nos estimular a ter a
mesma atitude de Jó (Jó 2.10) que reconhecia que tinha
260
recebido de bom agrado as bênçãos que lhe vieram da parte
de Deus, e de igual modo deveria também receber as aflições.
Nossas misericórdias excedem em número as nossas aflições;
para cada aflição nós recebemos mil misericórdias. Então nos
submetamos a Deus dizendo “seja feita a Tua vontade”.
Consideremos que a conformidade de nossa vontade a Deus
na aflição traz muita honra ao evangelho. Engana-se quem
pensa que está vivendo segundo o verdadeiro evangelho caso
não consiga por ele lançar fora todos os humores doentios, e
certamente este não é o evangelho porque não pode dominar
nosso descontentamento e martiriza nossa vontade. Nossa
submissão alegre à vontade de Deus coloca uma coroa de
honra na cabeça do evangelho, e mostra o seu poder para nos
tornar pacientes debaixo das aflições, estando submissos à
vontade de Deus (Apo 14.12).
Não podemos jamais esquecer que todas as pessoas, tanto
crentes quanto descrentes estão debaixo da autoridade
absoluta e soberana de Deus e Ele tem o direito de fazer com
eles tudo o que for da sua vontade (Mt 20.15). E Deus não deve
satisfação a qualquer uma de suas criaturas quanto ao que Ele
faz. Assim não nos cabe qualquer direito de disputar com Ele
senão nos submetermos à sua vontade.
Deus criou tudo de maneira que nada fique fora do seu
governo. E nenhum ser moral poderá funcionar
corretamente se não for governado por Ele. Podemos então
estar convictos e sossegados quanto à grande verdade de que
somente Ele sabe o que é realmente melhor para nós, e saberá
portanto controlar as nossas tribulações de maneira que elas
cumpram o seu grande alvo na nossa transformação, em nos
tornar sensíveis para reconhecer a sua voz e obedecê-la, no
meio de tantas outras vozes que tentam conquistar o nosso
coração, quer a nossa própria, quer a de outras pessoas, quer
de espíritos malignos.
Nós confiamos no piloto do avião, no médico, no dentista e em
todos os demais profissionais de cujos serviços dependemos
entregando-nos ao cuidado deles, e como não
descansaríamos na sabedoria de Deus confiando-nos
inteiramente ao seu cuidado?
É impossível que Deus seja injusto em quaisquer uma das suas
ações para conosco, ou nas coisas que permite que nos
261
sucedam. Se fôssemos julgar as suas ações pelos padrões dos
homens nós diríamos que Ele foi injusto e ingrato para com o
apóstolo Paulo permitindo as muitas prisões que ele sofreu,
mas com isto Ele não somente impediu que Paulo fosse morto
pelos judeus que buscavam a todo custo tirar a vida do
apóstolo, como fez com que os crentes se aplicassem mais na
pregação do evangelho por verem o modo santo como Paulo
se comportava nas suas prisões, e possibilitou que ele tivesse
tempo para escrever algumas das suas epístolas, dentre
tantos outros bons resultados que decorreram das suas
prisões que estavam debaixo do controle total de Deus. Nós
não podemos portanto julgar o que é sucesso ou fracasso de
acordo com os padrões do mundo, porque há uma vontade
soberana que nos governará do seu modo e não do nosso
quando nos submetermos quietamente a ela.
Justiça e equidade são a base do trono de Deus (Sl 97.2) e Ele
jamais falhará portanto em quaisquer dos seus juízos quanto
ao que seja melhor para nós e para o avanço do reino de Cristo
na terra, pelo qual devemos nos empenhar e até dar a própria
vida se preciso for.
“Então Paulo respondeu: Que fazeis chorando e magoandome o coração? Porque eu estou pronto não só a ser preso, mas
ainda a morrer em Jerusalém pelo nome do Senhor Jesus.” (At
21.13).
“22 Agora, eis que eu, constrangido no meu espírito, vou a
Jerusalém, não sabendo o que ali acontecerá,
23 senão o que o Espírito Santo me testifica, de cidade em
cidade, dizendo que me esperam prisões e tribulações,
24 mas em nada tenho a minha vida como preciosa para mim,
contanto que complete a minha carreira e o ministério que
recebi do Senhor Jesus, para dar testemunho do evangelho da
graça de Deus.” (At 20.22-24).
Nós não poderemos ser como Paulo se não permitirmos como
ele permitiu, que a graça o capacitasse para todas as coisas. A
graça renova a vontade e a vontade deve ser renovada antes
que possa ser subjugada; a graça ensina a abnegação, e nós
nunca poderemos submeter nossa vontade até que nos auto
neguemos.
Nós devemos então trabalhar para entender o significado da
aliança da graça com a qual fomos achegados ao Senhor. Não
262
podemos servi-lo de acordo com os nossos próprios termos,
mas de acordo com os termos que Ele fixou na aliança, de
maneira que possamos dizer correta e efetivamente “seja
feita a Tua vontade”.
Se o fizermos poderemos chegar a ser como o apóstolo Paulo
que tinha prazer nas aflições:
“Pelo que sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas
necessidades, nas perseguições, nas angústias por amor de
Cristo. Porque quando estou fraco, então é que sou forte.” (II
Cor 12.10).
Para tanto é necessário ter humildade de espírito, porque um
homem orgulhoso nunca se inclinará diante de Deus, ele
nunca se dobrará, mas quando o coração é humilde a vontade
fica flexível.
Um espírito humilde tem um senso profundo do pecado e
assim quando Deus o aflige ele diz “seja feita a Tua vontade”.
Devemos considerar que pelo fato de Deus ter perdoado os
nossos pecados em Cristo, que suportou o castigo e a ira de
Deus no nosso lugar para não sermos condenados
eternamente, então devemos suportar qualquer coisa e não
murmurar reclamando do nosso fardo de aflição, mas
bendizer a Deus por ter removido o fardo do pecado. A alma
que tem noção do quanto foi perdoada dirá “seja feita a Tua
vontade”.
É preciso aprender a não olhar tanto o lado escuro da nuvem,
quando o lado claro. Não devemos colocar nossas mentes e
corações em nossas aflições, mas olhar com fé para o Senhor
e aguardar e clamar pelo seu livramento. A hora da aflição é
hora do exercício da fé olhando para o alto, para Aquele que
intercede por nós no céu, e não para a própria adversidade
que poderá nos levar a ter uma atitude de querer recusar as
consolações do Senhor. Se estivermos num abismo não
devemos fixar nossos olhos no seu fundo úmido e lodoso, mas
na claridade do céu e devemos desejar estar em espírito com
o Senhor nos lugares elevados. O Senhor nos abate não para
que fiquemos contemplando o nosso estado de abatimento,
mas para aprendermos a confiar nele olhando para o Autor e
Consumador da nossa fé. A oração ganha força nos vales
profundos. O clamor se torna intenso e verdadeiro. Daí
263
sermos incentivados por Deus a clamarmos a Ele no dia da
angústia em busca de socorro:
“invoca-me no dia da angústia; eu te livrarei, e tu me
glorificarás.” (Sl 50.15).
A Quarta Petição na Oração do Senhor
“O pão nosso de cada dia dá-nos hoje” – Mt 6.11
Na oração do Senhor, primeiro nós oramos para que o nome
de Deus seja santificado, depois para que venha o seu reino, e
somente depois disso nós oramos pelo pão diário. Isto indica
que a glória de Deus deve vir antes da própria honra e
necessidade do homem.
Cristo preferiu a glória do Pai antes da sua própria como
homem (João 8.49,50).
A glória de Deus é muito estimada por Ele; é a menina dos seus
olhos; tudo o que Lhe é precioso repousa nela. Deus jamais se
separará da sua glória e não a transferirá a outrem (Is 42.8). A
sua glória vale mais que o céu, tem mais valor que a salvação
de todos os homens. Anjos caíram do seu estado original no
céu; homens se perdem; reinos são dissolvidos, mas Deus
jamais permitirá que qualquer parte da sua glória seja
perdida.
Se Deus atribui tão imensa estima à sua glória, é então nosso
dever tudo fazer para a sua glória, e tê-la em elevada
estima. Nós devemos preferir a glória de Deus antes mesmo
das nossas próprias necessidades.
A nossa honra é uma joia preciosa mas a glória de Deus deve
ser mais estimada que a nossa própria honra. Nós devemos
estar dispostos a ver a nossa honra pisada para que a glória de
Deus possa ser mais elevada. Os apóstolos se alegraram por
terem sido considerados dignos de sofrerem vergonha por
causa do nome de Jesus (At 5.41). Nos é ordenado estimar mais
a glória de Deus que os nossos próprios familiares (Lc 14.26).
Nós temos que estimar a glória de Deus muito além da estima
que damos aos nossos bens terrenos (Hb 10.34), e até mesmo
acima da nossa própria vida (Apo 12.2).
Agora nós temos diante de nós a petição que o Senhor nos
ensinou: “O pão nosso de cada dia dá-nos hoje”. Esta petição
264
consiste em resumo num reconhecimento de que a
competência para atender nossas necessidades externas é
concedida por Deus.
”...não me dês nem a pobreza nem a riqueza; mantém-me do
pão da minha porção de costume;” (Pv 30.8).
Tudo vem de Deus; Ele faz o trigo crescer, e as ervas
florescerem.
A petição “o pão nosso de cada dia dá-nos hoje” comprova a
nossa indigência e que todos nós vivemos das esmolas e dons
gratuitos de Deus. Tudo que há neste mundo vem da mão
generosa de Deus. Nós não podemos ter além do que Ele
dispõe no seu celeiro.
Com este reconhecimento que tudo vem das mãos do Senhor,
então nós temos que Lhe pedir toda a nossa provisão diária.
Tudo o que nós tivermos se não vier através da oração não
poderá ser recebido através do amor do Senhor e poderá vir a
nós em ira assim como as codornizes foram dadas a Israel
como resposta à murmuração deles.
Se pedimos e o recebemos como um dom, então não o
merecemos. E se o dom é de Deus procedem muito mal
aqueles que procuram suprir suas necessidades indo ao diabo
fazendo um pacto com ele. É melhor padecer fome do que ter
o diabo como nosso provedor.
Se tudo é um dom de Deus então não é uma dívida que Ele tem
para conosco. E se tudo que recebemos de Deus é um dom,
nós nada podemos dar a Ele que Ele próprio não tenha dado a
nós (I Crôn 29.14).
Se nós damos esmolas a outros é porque Deus deu primeiro
suas esmolas a nós em tudo que providenciou no mundo para
o nosso sustento e tendo permitido e nos dado sabedoria,
saúde e todas as condições necessárias para obtê-lo e
desfrutá-lo.
Não há nada em nós que nos recomende a merecer a bondade
de Deus, contudo tal é a doçura da sua natureza, que Ele nos
dá uma rica provisão e nos alimenta com o melhor trigo. Ele
nunca se cansa de nos prover com boas coisas. Deus se
encanta em dar. Ele tem prazer na misericórdia (Mq 7.18).
Deus dá boas coisas até mesmo aos seus inimigos. Ele faz com
que o orvalho da sua generosidade caia até sobre os piores da
humanidade. Deus dá o pão às bocas que se abrem contra Ele.
265
Se tudo é um dom de Deus veja quão odiosa é a ingratidão dos
homens que pecam contra o doador deles. Deus os alimenta e
eles lutam contra Ele. Deus lhe dá o pão e eles lhe devolvem
afrontas. Quão ingrato é isto!
“7 Como, vendo isto, te perdoaria? Teus filhos me deixam a
mim e juram pelos que não são deuses; quando os fartei, então
adulteraram, e em casa de meretrizes se ajuntaram em
bandos.
8 Como cavalos bem fartos, levantam-se pela manhã,
rinchando cada um à mulher do seu próximo.
9 Deixaria eu de castigar por estas coisas, diz o Senhor, ou não
se vingaria a minha alma de uma nação como esta?” (Jer 5.79).
Oh, quão horrendo é pecar contra um Deus generoso. Ferir a
mão que nos alimenta e alivia. Deus dá inteligência aos
homens e eles a usam para servir ao diabo com ela. Ele lhes dá
força e eles a desperdiçam com meretrizes. Ele lhes dá
alimento e eles levantam o seu calcanhar contra Ele (Dt 32.15).
Mas quão perigoso é abusar da longanimidade, bondade e
misericórdia de Deus. Os favores e as misericórdias reais de
Deus serão um testemunho contra os tais. Esta misericórdia e
favor acabarão se transformando em ira, assim como o óleo
não pega fogo facilmente mas que sendo muito aquecido
continuamente acaba se incendiando.
Se é o Senhor quem tudo nos dá, então sejamos gratos a Ele.
“O que dá mantimento a toda a carne; porque a sua
benignidade dura para sempre.” (Sl 136.25).
“Antes te lembrarás do Senhor teu Deus, que ele é o que te dá
força para adquirires riqueza; para confirmar a sua aliança,
que jurou a teus pais, como se vê neste dia.” (Dt 8.18).
Nós devemos louvar ao Senhor pela provisão que nos faz não
somente com nossos lábios, mas com os nossos bens.
“9 Honra ao Senhor com os teus bens, e com a primeira parte
de todos os teus ganhos;
10 E se encherão os teus celeiros, e transbordarão de vinho os
teus lagares.” (Pv 3.9,10).
Deus nos dá o pão e nós devemos gastar a força que nós
recebemos da sua provisão no seu serviço. Isto é ser grato de
modo prático, e para sermos gratos devemos ser humildes. O
orgulho quebra a corrente da gratidão. Um homem orgulhoso
266
nunca será grato porque pensa que é pela sua própria
inteligência, força e méritos que ganha o seu pão. Ele não
consegue enxergar que tudo é um dom de Deus, e sequer
somos merecedores destes dons porque somos pecadores.
Entretanto Ele os concede por causa da sua grande
misericórdia.
Assim, em face de tudo o que vimos, aprendemos que é
correto orar por coisas temporais, porque somos ensinados a
orar todos os dias para que recebamos o nosso pão das mãos
de Deus. Entretanto há uma grande diferença entre orar por
coisas temporais e coisas espirituais. Quando oramos por
aquilo que é espiritual nós devemos ser absolutos, isto é, não
devemos contar com nenhuma negação da parte de Deus,
porque a Palavra nos garante a certeza de que receberemos a
graça e o perdão de pecados que são necessários a nós. Mas
quando oramos por coisas temporais, nossas orações devem
ser limitadas, porque temos que orar condicionalmente,
porque Deus somente nos dará o que for bom para nós. Há
coisas que seriam armadilhas para afastar o nosso coração do
Senhor, então devemos orar por estas coisas em submissão à
vontade de Deus. O povo de Israel recebeu grandes castigos de
Deus no deserto nos dias de Moisés porque pensavam que Ele
estava obrigado a lhes dar as coisas temporais de modo
absoluto (Nm 11.18), segundo o próprio desejo deles. Deus lhes
deu o maná mas o paladar deles desejava muito mais; eles
teriam que ter codornizes. Deus atendeu o desejo deles, mas
tiveram que provar o gosto amargo das suas codornizes.
“29 Então comeram e se fartaram bem, pois ele lhes trouxe o
que cobiçavam.
30 Não refrearam a sua cobiça. Ainda lhes estava a comida na
boca,
31 quando a ira de Deus se levantou contra eles, e matou os
mais fortes deles, e prostrou os escolhidos de Israel.” (Sl
78.29-31).
Nós temos portanto que orar pelas coisas temporais com
submissão a Deus.
É uma boa norma, quando nós oramos pelas coisas que
pertencem a esta vida, que nós desejemos coisas temporais
para fins espirituais. Nós temos que buscar estas coisas como
um auxílio em nossa viagem para o céu.
267
Se nós oramos por saúde, nós podemos melhorar a nossa
saúde para usar nossa vida para a glória de Deus, colocandonos a seu serviço. Se orarmos por prosperidade material que
seja para um fim santo, de modo que fiquemos longe das
tentações às quais a miséria nos expõe, e para que possamos
ter uma melhor capacidade de semear as sementes de ouro
da generosidade aliviando aqueles que estão em necessidade.
Ana orou por um filho mas para poder dedicá-lo ao serviço de
Deus (I Sm 1.11).
Muitos oram por coisas terrenas somente para satisfazerem
os apetites dos seus sentidos (Tg 4.3). Nós devemos apontar
para o céu quando oramos pelas coisas da terra.
Alguns oram por mais poder para que possam prevalecer
contra os seus inimigos. Outros oram para aumentar suas
posses para poderem encher de inveja os seus vizinhos. É uma
vergonha e um descaramento orar a Deus para nos dar coisas
temporais para que possamos servir melhor os interesses do
diabo.
Se nós devemos orar por coisas temporais, quanto mais por
coisas espirituais. Se nós devemos orar pelo pão terreno,
quanto mais pelo pão vivo! Se por azeite, muito mais pelo
azeite de alegria! Se para matar a nossa fome, muito mais para
a salvação das nossas almas e para matar a fome e sede de
justiça. Se Deus atendesse somente nossas orações por coisas
materiais e nada mais, em que seríamos melhores? O que
adianta ter comida e ter falta de graça?
Devemos então orar para que Deus não somente nos
alimente, mas que também nos santifique; que nos dê antes
um coração cheio de graça do que uma casa cheia de ouro.
A comida que dava alegria a Jesus era muito mais fazer a
vontade do seu Pai, do que o pão terreno que sustentava o seu
corpo (João 4.32-34).
É por isso que Jesus disse ao diabo quando foi tentado por ele
no deserto: “Nem só de pão viverá o homem, mas de toda
palavra que sai da boca de Deus.” (Mt 4.4).
É óbvio que enquanto estiver neste mundo, o homem terá
necessidade do pão material e por isso Jesus confirmou que
até mesmo Ele, enquanto homem, participante da
humanidade, por ter assumido a natureza humana,
necessitava também do pão material.
268
A oração modelar que o Senhor ensinou diz “o pão nosso dános” e não “dá-me o meu pão”, e tudo o mais nesta oração está
direcionado para o interesse público e não individual, porque
o crente é chamado a agir pelo interesse do corpo de Jesus em
primeiro lugar que é a igreja, e depois pelos seus demais
semelhantes, e não para alimentar desejos individuais
egoístas. O homem não foi criado para viver estreitamente
dentro dos interesses relativos à sua própria esfera, mas para
ter um espírito público que o leve a se interessar pelas
necessidades dos seus semelhantes.
Há pessoas que olham somente para si mesmas e não prestam
atenção às necessidades de outros. Assim nunca intercedem
por outros em suas orações. Se eles tiverem o seu pão diário
não se importarão que outros estejam passando fome. Se eles
estiverem vestidos, não se preocuparão com aqueles que
estiverem nus. Cristo nos ensinou a orar por outros: “dá-nos”.
Oremos por outros e também por nós mesmos.
Aranhas trabalham apenas para elas, mas as abelhas para o
bem de outros.
Alguém é tanto mais excelente quanto mais opera para o bem
de outros. Quando mais um crente for enobrecido com a
graça, mas ele se dirigirá ao céu com suas orações em favor de
outros.
Davi é um grande exemplo de espírito público em oração e
ação porque o bem que Ele buscava em Deus era muito mais
para o povo do Senhor do que para si próprio.
Davi estava interessado tanto na prosperidade espiritual
quanto material de Israel, e de igual modo todo crente deve
estar interessado não somente no aumento da sua fé e dos
seus irmãos em Cristo, como também pela comida deles, para
que o Deus lhes dê o seu pão diário.
Jesus nos ensinou:
“Não vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã, porque o dia de
amanhã cuidará de si mesmo. Basta a cada dia o seu mal.” (Mt
6.34).
E o apóstolo Tiago afirmou a incerteza do amanhã:
“Digo-vos que não sabeis o que acontecerá amanhã. Porque,
que é a vossa vida? É um vapor que aparece por um pouco, e
depois se desvanece.” (Tg 4.14).
269
Isto ensina que o nosso futuro está nas mãos de Deus. Se
viveremos ou se morreremos está nas mãos do Senhor
porque para nós o futuro é incerto, uma vez que somente Ele
conhece e dirige o nosso futuro.
Esta realidade deve nortear as nossas expectativas e com elas
as nossas orações, uma vez que não podemos viver senão um
dia de cada vez, e assim nossas petições para o suprimento de
nossas necessidades materiais e espirituais deve ser feito em
cada dia para cada dia, porque o Senhor atenderá sempre
nossas necessidades presentes; sem fazer qualquer garantia
para uma provisão futura para nós neste mundo, porque não
sabemos o que nos reservará o amanhã.
Se o padrão de Deus é a concessão de alimento em cada dia
presente, então aquele que tem muitos bens e boa provisão
para o futuro deveria dar muitas graças a Deus, porque o
padrão de contentamento dele para nós é que estejamos
contentes se tivermos o alimento de hoje garantido, sem
saber se o teremos no dia seguinte, tal como Israel dependia
no deserto de confiar em Deus que o maná seria dado a eles
em cada dia.
Há muitos que têm recebido de Deus bens que podem suprirlhes por toda a sua vida, e isto mostra que Deus provedor em
abundância que nós servimos. Ele diz que devemos estar
contentes com a porção para um só dia, mas abre a sua mão e
nos provê para muitos dias. E se provar alguns de seus filhos
até mesmo com falta de pão, não permitirá que isto seja por
muito tempo (II Cor 11.27; Fp 4.12), porque tem garantido ao
que é temente ao seu nome e que anda de modo justo para
com Ele de nunca deixar tal pessoa e a sua descendência
mendigar o pão (Sl 37.25).
Nós oramos para que Deus nos supra com o nosso pão diário,
mas geralmente Ele nos dá generosamente muito mais do que
aquilo que pedimos (Ef 3.20).
Na oração modelar que nos ensinou o Senhor apenas nos
ensinou que devemos pedir o nosso pão a Deus, e com isto
reconhecer que tudo o que temos provém dele, mas não
ensinou aqui o modo de obtê-lo. O maná foi dado a Israel sem
que eles trabalhassem por ele no deserto porque estavam
vivendo numa circunstância excepcional, tal como Elias
quando foi alimentado miraculosamente por Deus através
270
dos corvos e da viúva de Sarepta. Mas em circunstâncias
normais que é o modo geral da vida, devemos trabalhar
diligentemente para obter o nosso pão, e isto foi ensinado pelo
Senhor e pelos apóstolos em outras passagens da Bíblia.
“11 Porquanto ouvimos que alguns entre vós andam
desordenadamente, não trabalhando, antes fazendo coisas
vãs.
12 A esses tais, porém, mandamos, e exortamos por nosso
Senhor Jesus Cristo, que, trabalhando com sossego, comam o
seu próprio pão.” (II Tes 3.11,12).
A oração do Senhor diz “pão nosso” porque deve ser obtido
por nós, com o nosso trabalho, e não por furtá-lo de outros,
porque certamente este pão não nos pertence, e não se pode
dizer dele que seja nosso. De igual modo o pão que ganhamos
de outros enquanto nos mantemos inativos, ociosos, porque
não somos dignos deste pão, e muito menos o pão que é obtido
mediante violência sob a forma de fraude, extorsão ou
qualquer outra maneira violenta. Nada disso será o nosso pão
pelo qual devemos orar e trabalhar.
Aquele que vive à custa de outros sem nada fazer por eles,
que se recusa a trabalhar, não pode orar “o pão nosso”, por
motivos óbvios.
A palavra para “pão” do nosso texto é artos no original grego
e é usada em várias outras passagens sempre com o
significado do pão material.
Muitos indagam por que Jesus não ensinou a orar pedindo
pelo alimento espiritual em vez do pão material nesta oração
modelar, apesar de ter ensinado isto em outras passagens dos
Evangelhos? No entanto é importante reconhecer que ao fazêlo Ele demonstrou que as necessidades materiais são
atendidas a partir do céu pela provisão de Deus. Ele mostrou
que nada está fora do alcance da provisão divina, e portanto é
nosso dever fixar nossa atenção no Senhor inclusive para a
nossa provisão material. É muito comum que os homens
estejam naturalmente mais ocupados com as questões de
suas necessidades terrenas do que com as suas necessidades
espirituais, e Jesus nos ensinou que estas necessidades
terrenas não podem ser consideradas à parte do
reconhecimento que devemos pedi-las a Deus e sermos
gratos a Ele por provê-las a nós. A falta deste reconhecimento
271
será devidamente considerada no juízo, especialmente pela
falta de um emprego generoso e segundo a vontade de Deus
em relação a estes bens terrenos, especialmente para o
atendimento da necessidade de outros:
“41 Então dirá também aos que estiverem à sua esquerda:
Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado
para o diabo e seus anjos;
42 Porque tive fome, e não me destes de comer; tive sede, e
não me destes de beber;
43 Sendo estrangeiro, não me recolhestes; estando nu, não
me vestistes; e enfermo, e na prisão, não me visitastes.” (Mt
25.41-43).
De maneira que a nossa espiritualidade é comprovada
particularmente pelo uso correto dos bens materiais para
atender as necessidades do nosso próximo.
A maneira de demonstrarmos nossa gratidão ao Senhor é em
primeiro lugar sendo generosos em nossos dízimos e ofertas
para o sustento da sua casa, e no compartilhar as
necessidades dos nossos semelhantes. Esta é uma forma
externa e visível de se medir a nossa fé.
“Comunicai com os santos nas suas necessidades, segui a
hospitalidade;” (Rom 12.13).
“Porque a administração deste serviço, não só supre as
necessidades dos santos, mas também é abundante em
muitas graças, que se dão a Deus.” (II Cor 9.12).
“Mas, se alguém não tem cuidado dos seus, e principalmente
dos da sua família, negou a fé, e é pior do que o infiel.” (I Tim
5.8).
“Então, enquanto temos tempo, façamos bem a todos, mas
principalmente aos domésticos da fé.” (Gál 6.10).
Se nós temos bens suficientes para atender as necessidades
de outros e fechamos o nosso coração, pecamos.
Mas se não temos o suficiente para compartilhar com outros,
Deus não nos cobrará isto em juízo, porque Ele não exige que
demos aquilo que nós não temos. Ninguém deve portanto se
endividar a pretexto de estar vivendo por fé, ainda que esta
dívida seja para beneficiar a outros. O padrão bíblico é de que
a ninguém devamos nada, senão somente o amor, de modo
que o nome do Senhor não seja infamado.
272
“11 Agora, porém, completai também o já começado, para que,
assim como houve a prontidão de vontade, haja também o
cumprimento, segundo o que tendes.
12 Porque, se há prontidão de vontade, será aceita segundo o
que qualquer tem, e não segundo o que não tem.” (II Cor
8.11,12).
Devemos também considerar a questão do contentamento
com a provisão que tivermos recebido de Deus, seja ela
pequena ou grande:
“Tendo, porém, sustento, e com que nos cobrirmos,
estejamos com isso contentes.” (I Tim 6.8).
O padrão de contentamento bíblico é confirmado portanto
pela simples provisão do pão diário. Segundo a vontade de
Deus não há base para que qualquer crente ensine que deve
haver contentamento somente quando houver grande
provisão da parte de Deus para nós. Pois a sua Palavra, que é a
verdade, nos ensina claramente que devemos estar satisfeitos
caso seja apenas atendida a simples provisão do nosso
alimento diário. Entretanto, como já vimos antes, Deus é
abundantemente generoso em nos dar muito mais do que Lhe
pedimos, mas se isto vem a faltar não temos motivo para estar
insatisfeitos porque o Senhor tem nos ensinado a orar pela
provisão do alimento necessário para cada dia, de maneira
que não teremos razão para estar insatisfeitos se isto não vier
a nos faltar. E quando isto ocorrer, por qualquer motivo, a
insatisfação com a presente condição não significa direito
para murmuração ou reclamar de Deus, mas continuar
orando para que seja suprida a nossa provisão diária.
Outro aspecto a considerar é a administração dos bens que
temos recebido de Deus, porque não devemos gastar além das
nossas posses. Se vivermos fora das nossas possibilidades
jamais teremos razão em protestar diante de Deus que Ele tem
sido infiel em prover as nossas necessidades. Mas quantos
crentes não têm vivido deste modo para a própria vergonha
deles e para dar ocasião que o cuidado de Deus pelos seus
filhos seja injustamente blasfemado! Deus não se obrigou a
atender as necessidades que o mundo moderno criou e nem
os apelos que são feitos pela mídia para que se consuma
desenfreadamente bens e serviços. Deus garantiu a nossa
273
provisão estritamente necessária para a manutenção da vida
e não os nosso luxos.
Consideremos também que há muita inquietação nas
riquezas especialmente para a obtenção delas. Muitos
colocam nisto inteiramente todo o seu interesse, tempo e
trabalho e pouco se ocupam com as coisas que são do
interesse do Senhor. E estes também prestarão contas em
juízo por mais trabalhadores que tenham sido, porque o
fizeram para si mesmos para atender aos seus desejos
egoístas. A Bíblia também ensina claramente quando ao
perigo que há neste modo de vida para acumular riquezas
neste mundo, e a oração que nos lembra que devemos orar
simplesmente pela nossa provisão diária muito nos ajudaria a
fugir deste laço no qual muitos têm caído:
“9 Mas os que querem ser ricos caem em tentação, e em laço,
e em muitas concupiscências loucas e nocivas, que
submergem os homens na perdição e ruína.
10 Porque o amor ao dinheiro é a raiz de toda a espécie de
males; e nessa cobiça alguns se desviaram da fé, e se
traspassaram a si mesmos com muitas dores.” (I Tim 6.9,10).
“19 Não ajunteis tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem
tudo consomem, e onde os ladrões minam e roubam;
20 Mas ajuntai tesouros no céu, onde nem a traça nem a
ferrugem consomem, e onde os ladrões não minam nem
roubam.” (Mt 6.19,20).
“E disse-lhes: Acautelai-vos e guardai-vos da avareza; porque
a vida de qualquer não consiste na abundância do que
possui~” (Lc 12.15).
Sem esta total disponibilidade para ser usado por Deus nunca
haveria missionários em campos em que as condições de vida
são em extremo difíceis.
“33 Vendei o que tendes, e dai esmolas. Fazei para vós bolsas
que não se envelheçam; tesouro nos céus que nunca acabe,
aonde não chega ladrão e a traça não rói.
34 Porque, onde estiver o vosso tesouro, ali estará também o
vosso coração.” (Lc 12.33,34).
A cobiça é um desejo irregular para se obter riquezas. É a
insatisfação instalada no coração que engana o homem
levando-o a buscar plena satisfação pela ilusória ideia de que
274
será bem sucedido se for rico de bens materiais, fama ou
poder.
Deus requer uma sábia administração dos bens que Ele nos
dá, especialmente daqueles que são destinados à manutenção
da sua casa. Não amar as riquezas não significa que se deve ter
repúdio ao dinheiro. Há muitos que alegam que não querem
saber de dinheiro porque vivem apenas por fé. Mas isto não é
fé porque a Bíblia ensina ser fiel e cuidadoso na administração
dos bens que são colocados por Deus debaixo do nosso
cuidado. Nós somos seus mordomos, especialmente os
ministros do evangelho. Então devem ser sábios, zelosos,
interessados e fiéis em administrar dinheiro e bens para que
o nome do Senhor possa ser glorificado.
“42 E disse o Senhor: Qual é, pois, o mordomo fiel e prudente,
a quem o senhor pôs sobre os seus servos, para lhes dar a
tempo a ração?
43 Bem-aventurado aquele servo a quem o seu senhor,
quando vier, achar fazendo assim.
44 Em verdade vos digo que sobre todos os seus bens o porá.”
(Lc 12.42-44).
Não se deve tratar de maneira romântica coisas que são reais,
especialmente as relativas à administração do dinheiro
necessário à nossa subsistência e de outros, especialmente
das pessoas da nossa própria família.
Nas mãos de Deus a nossa provisão, ainda que pequena,
renderá, e estarmos contentes com a nossa provisão nos
livrará de muitas tentações nas quais costumam cair as
pessoas descontentes.
Satanás usará o descontentamento para insuflar tristeza e
murmuração, e em não poucos casos, desconfiança da
fidelidade de Deus em cuidar das nossas necessidades.
Para ficar livre de cair nestas tentações devemos bendizer a
Deus pela nossa provisão, seja ela qual for, enquanto somos
zelosos e fiéis em administrar de modo sábio aquilo que tem
chegado às nossas mãos.
Nós somos chamados a aprender com as formigas que fazem
provisão de alimento no verão para o inverno. Isto nos ensina
que devemos aprender a poupar não por motivo de avareza
mas de prudência. Deus não aprova o esbanjador e em muitas
passagens da sua Palavra nos ensina a sermos criteriosos em
275
tudo, especialmente no que diz respeito ao uso correto para a
obtenção e para a aplicação do dinheiro.
Voltamos a dizer junto com o Senhor que é importante orar
pelo pão diário e não por riquezas, porque há um grande
perigo, tentações e laços nas riquezas, que nos
incompatibilizam com os interesses de Deus e do seu reino.
“Mas os que querem ser ricos caem em tentação, e em laço, e
em muitas concupiscências loucas e nocivas, que
submergem os homens na perdição e ruína.” (I Tim 6.9).
Uma grande prosperidade pode endurecer facilmente o
coração, tal como ocorreu com o homem rico da parábola dos
celeiros que Jesus nos ensinou (Lc 12.16-21). E o Senhor nos
alertou quanto ao perigo que a confiança na riqueza pode
trazer quanto a nos impedir de entrar no reino dos céus (Mt
19.24).
Através do uso adequado dos bens materiais Deus nos ensina
muitas lições como por exemplo a sermos moderados,
sóbrios, sábios, equilibrados, satisfeitos, generosos,
diligentes, misericordiosos e tantas outras virtudes que
dificilmente aprenderíamos sem sermos provados na
maneira como devemos buscar, administrar e aplicar os bens
terrenos. Não devermos portanto fazer destes bens um fim em
si mesmo, porque como temos visto não os levaremos
conosco quando sairmos deste mundo, e são apenas meios
pelos quais devemos comprovar o nosso amor e serviço a
Deus e ao nosso próximo.
Por isso se diz que é coisa mais bem-aventurada dar do que
receber (At 20.35), porque a finalidade dos bens não é para
serem acumulados para atenderem nossos desejos egoístas,
mas serem usados para a glória de Deus.
Para provar a nossa fé e para glorificar o seu nome, Deus
provará a fidelidade da maior parte do seu povo em segui-lo
não lhes provendo com muitos bens materiais, de maneira
que demonstrem contentamento e gratidão a Ele ainda que na
pequena provisão de bens que Ele lhes prover. Isto traz grande
glória ao seu nome porque ainda que sejam provados como
permitiu que acontecesse com Jó, Satanás será envergonhado
e o nome de Deus louvado, quando permanecermos
afirmando a sua bondade para conosco em toda e qualquer
circunstância adversa à qual não tenhamos dado ocasião por
276
nossa própria culpa em não administrarmos os nossos bens
de maneira fiel.
Assim, se tivermos somente o pão diário para a nossa
subsistência, estejamos contentes.
Lembremos que grandes posses são como uma veste longa e
pesada que é difícil de ser usada. Estejamos contentes com os
trajes leves com que a maioria dos crentes estão vestidos.
“25 Por isso vos digo: Não andeis cuidadosos quanto à vossa
vida, pelo que haveis de comer ou pelo que haveis de beber;
nem quanto ao vosso corpo, pelo que haveis de vestir. Não é a
vida mais do que o mantimento, e o corpo mais do que o
vestuário?
26 Olhai para as aves do céu, que nem semeiam, nem segam,
nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta.
Não tendes vós muito mais valor do que elas?
27 E qual de vós poderá, com todos os seus cuidados,
acrescentar um côvado à sua estatura?
28 E, quanto ao vestuário, por que andais solícitos? Olhai para
os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham nem
fiam;
29 E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua
glória, se vestiu como qualquer deles.
30 Pois, se Deus assim veste a erva do campo, que hoje existe,
e amanhã é lançada no forno, não vos vestirá muito mais a vós,
homens de pouca fé?
31 Não andeis, pois, inquietos, dizendo: Que comeremos, ou
que beberemos, ou com que nos vestiremos?
32 (Porque todas estas coisas os gentios procuram). De certo
vosso Pai celestial bem sabe que necessitais de todas estas
coisas;
33 Mas, buscai primeiro o reino de Deus, e a sua justiça, e
todas estas coisas vos serão acrescentadas.
34 Não vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã, porque o dia
de amanhã cuidará de si mesmo. Basta a cada dia o seu mal.”
(Mt 6.25-34).
A Quinta Petição na Oração do Senhor
“e perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós também
temos perdoado aos nossos devedores;” – Mt 6.12
277
Nesta oração modelar que o Senhor nos ensinou há uma
petição para o corpo (“o pão nosso de cada dia, dá-nos hoje” –
da quarta petição) e duas para a alma (“perdoa-nos as nossas
dívidas – desta quinta petição; e “não nos deixe cair em
tentação, mas livra-nos do mal” da sexta petição).
Observamos consequentemente que devemos dar maior
atenção ao estado e condição de nossas almas, do que ao dos
nossos corpos.
Não foi sem motivo que o Senhor estipulou que o valor do siclo
usado para todos os serviços a serem pagos ao santuário seria
pelo de maior valor que era exatamente o dobro do valor do
siclo comum. Isto tipificava que as coisas espirituais têm um
maior peso e valor para nós do que as coisas terrenas.
O corpo é apenas o estojo que guarda a joia que é o espírito.
O corpo é mortal mas o espírito é imortal e pode existir sem o
corpo, mas o corpo não pode existir sem o espírito.
Então é grande sabedoria garantir a salvação da alma para a
preservação do corpo, especialmente para a sua ressurreição
futura num corpo glorioso que brilhará com a luz de Cristo.
Por isso Jesus somou imediatamente à petição pelo pão diário,
a do perdão dos pecados que conduz à salvação da alma. Isto
mostra claramente que ainda que tenhamos o nosso pão
diário isto em nada será significativo se nós não tivermos os
nossos pecados perdoados por Deus.
E aqueles que são assim perdoados por Deus têm o dever de
também perdoarem os seus semelhantes pelas suas ofensas,
porque tiveram as suas próprias ofensas perdoadas
gratuitamente por Deus.
O pão diário satisfaz o apetite e alimenta o corpo, mas o perdão
de pecados alimenta a alma e satisfaz à consciência.
A palavra “dívidas” do nosso texto (Mt 6.12), pode ser traduzida
por pecados porque a dívida que temos para com Deus é
resultante dos nossos pecados. Mas é importante destacar
que a palavra usada no original grego é ofeileima, que
significa aquilo que é justa ou legalmente devido, isto é, uma
dívida. Esta palavra é a usada no texto de Rom 4.4, e é
resultante do verbo ofeiléu, dever – de dívida, que
encontramos em passagens como Mt 18.28,30,34; 23.16,18; Lc
16.7, dentre várias outras.
278
No texto de Lc 11.4, paralelo ao nosso de Mt 6.12, nós temos no
original grego a palavra amartia, no lugar de dívidas. A
tradução é portanto perdoa os nossos pecados, mas na
sequência do mesmos texto de Lucas está escrito: “assim
como temos perdoado os nossos devedores”.
Isto demonstra clara e diretamente que a dívida que é citada
pelo Senhor é a dívida de pecados, porque o pecado é uma
dívida, e todo pecador é um devedor que deverá prestar contas
legalmente da sua dívida ao grande Juiz.
Na parábola que Jesus citou em Mateus 18.24 o pecado é
comparado a uma dívida de 10.000 talentos, que
correspondem a algo em torno de 54 bilhões de Reais (para
quem gosta de cálculos precisos, 10.000 talentos
correspondem a cerca de doze toneladas de ouro).
Por que o pecado é chamado uma dívida?
Porque se assemelha a isto. (1) uma dívida surge do não
pagamento daquilo que é devido. Nós devemos santidade e
obediência perfeitas a Deus, porque foi para isto que Ele nos
criou, e não lhe dando o que Lhe é devido, nós estamos
consequentemente em dívida. (2) na falta de pagamento os
bens do devedor são espoliados ou ele vai para prisão porque
é considerado culpado pelos juízes, e no caso do pecado dá-se
o mesmo porque o pecador é considerado culpado por Deus
por não Lhe dar o que é devido. E a falta de pagamento da
dívida que se tem para com Deus implicará morte eterna caso
a dívida não seja perdoada, porque é impossível que seja paga
pelo próprio devedor, porque é pecador, e jamais poderá por
si mesmo dar a Deus a obediência e santidade perfeitas que
Lhe são devidas (Isto foi dado por Cristo em nosso lugar, e por
isso importava que Ele não somente morresse por nós, mas
que vivesse em perfeita obediência debaixo da Lei de Deus Rom 5.19). Qualquer pessoa depende desesperada
e
unicamente de perdão, porque a cada dia que vive só faz
aumentar a sua dívida para com Deus. Não há outra
esperança, não há outra saída senão ter a sua dívida perdoada
para que não seja condenada eternamente à prisão.
Como o pecado consiste basicamente em não se dar a Deus o
que Lhe é devido, nós concluímos então que o pecado é a pior
das dívidas, e incomparavelmente pior do que qualquer outra,
porque sujeita a um dano eterno.
279
Assim, quando alguém pede na oração modelar “perdoa as
nossas dívidas” ela está pedindo na verdade algo vital, de
importância capital e extraordinária que não pode ser medida.
Não é uma pequena conta que será cancelada caso o perdão
seja concedido. Esta dívida é enorme. Não pode ser medida
senão pelo próprio Deus. E não pode ser liquidada, como
vimos, senão unicamente pelo perdão da dívida.
Se nós tivéssemos como pagar esta dívida não precisaríamos
orar por perdão da dívida. Esta dívida é espiritual e não pode
ser paga com dinheiro. É uma dívida de vida que pode ser paga
somente com a morte. Por isso Jesus teve que morrer por nós
para que a nossa dívida pudesse ser cancelada. Caso Ele não
morresse no nosso lugar Deus não poderia perdoar a divida
que temos para com Ele porque isto seria injusto, e não seria
portanto permitido pelo seu atributo de Justiça. Por este
atributo Deus exige compensação de todo dano. Nada pode ser
relevado sem uma justa retribuição pela ofensa, e isto foi
claramente revelado por Ele na dispensação da Lei. Nada
pode ser perdoado sem que a sua Justiça seja satisfeita. A
justiça é a base do seu trono porque sem ela nada poderia ter
equilíbrio, equidade, segurança. Nenhuma relação quer na
terra, quer no céu, poderia ter uma base estável, porque atos
morais poderiam ser praticados sem estarem submetidos a
qualquer forma de juízo. Mas Deus, pelo seu atributo de
Justiça, tudo julga e nada escapa do seu perfeito juízo, e isto faz
que dê a paga exata a cada um conforme as suas obras.
Deste modo, como o pecado é uma ofensa e dívida contra uma
Majestade infinita perfeitamente Santa e Justa, é por
conseguinte uma dívida infinita.
Se até pensamentos vãos são pecados que serão considerados
no juízo, como poderíamos enumerar o tamanho da nossa
dívida para com Deus (Sl 40.12)? Assim nunca poderemos
saber o quanto devemos a Deus.
Não cai bem a devedores terem um espírito orgulhoso, senão
humilde. Convém a todos se humilharem diante do grande
Credor implorando-lhe por perdão, tal como o Senhor Jesus
nos ensinou a fazer na oração do Pai Nosso.
A dívida deve ser confessada com humildade tal como é
ensinado em Mt 6.12. Se nós confessarmos a dívida, Deus a
perdoará (I João 1.9). Mas enquanto buscamos o perdão
280
através da certeza de que será alcançado por meio da nossa
simples confissão, no entanto não cometamos o grande
pecado de pensar que este perdão é algo barato e fácil, porque
custou o grande preço da morte de Jesus. È um perdão
gratuito mas Deus nos impõe o ônus da fé, do
arrependimento, da conversão, para alcançá-lo. Isto é, o que
for perdoado deverá viver em novidade de vida. Não deve
voltar à prática deliberada do pecado, mas deve demonstrar
sua gratidão e reconhecimento de que fora de fato perdoado,
vivendo em santidade de vida, em estrita obediência à vontade
de Deus, porque isto é o que Lhe devemos na condição de
seres morais criados à sua imagem e semelhança. Se não
fizermos isto somos hipócritas em nossa oração pedindo-lhe
perdão dos nossos pecados, porque ao mesmo tempo que o
fazemos estamos dispostos a viver do mesmo modo pelo qual
a nossa dívida foi contraída. Recebemos o dom da vida de Deus
e não Lhe pagamos o tributo devido de obediência à sua
vontade. Negamo-nos a pagar o que Lhe é devido. Então que
busca de perdão foi esta que não levou em consideração estas
verdades?
E um dos principais tributos que se exige de nós para sermos
perdoados por Deus, e continuarmos agradando a Ele em vez
de ofendê-lo, depois de termos sido perdoados é o tributo da
fé, porque sem fé é impossível agradar-lhe. Fé Nele e na sua
Palavra.
É pela fé em Jesus que se alcança a justificação (Rm 5.1), e é
pela mesma fé em Jesus que se tem acesso à graça de Deus na
qual os crentes estão firmes (Rom 5.2). Enfim, importa
permanecer firme na fé em Jesus porque foi Ele quem pagou
a dívida dos nossos pecados.
Nossa fé em Jesus é provada a todo momento. Devemos então
colocar a coroa na cabeça do Evangelho da graça, pela nossa
fé inabalável de que tudo em nossa caminhada cristã
encontra-se no Senhor Jesus e não em nós mesmos.
A nossa aceitação por Deus não será achada em nossas boas
obras e méritos, mas sempre será baseada na nossa fé em
Cristo, porque é Ele quem garante o nosso acesso ao Pai,
estando perdoados dos nossos pecados.
281
Que tipo de fé nós devemos exercitar na hora da tribulação?
Fé em nossa própria capacidade e poder? Não! Fé em Jesus
para estarmos firmes. Este é o coração do evangelho.
Satanás sempre nos acusará e nos tentará para buscarmos a
vitória sobre ele em nós mesmos, em nossa justiça própria.
Ele até mesmo sugerirá que nos santifiquemos e nos acusará
quando pecarmos. Ele terá uma boa base para nos acusar
quando estivermos gemendo em nossas limitações e pecados
porque atendemos às suas insinuações de tentar achar a
pérola de grande valor em nós mesmos. A justiça que agrada
a Deus em nossa própria natureza. Não é aí que as
encontraremos, senão somente em Cristo, que é, Ele próprio,
a Nossa Justiça.
“Naqueles dias Judá será salvo e Jerusalém habitará em
segurança; e este é o nome que lhe chamarão: O SENHOR É
NOSSA JUSTIÇA.” (Jer 33.16).
Assim, a nossa vitória sobre o pecado, sobre a morte, sobre
Satanás, deve ser buscada somente em Cristo. É para o Autor
e Consumador da nossa fé que devemos olhar enquanto
caminhamos em nossa jornada neste mundo.
Deste modo, lutemos não somente para confessar, mas para
termos nossas dívidas espirituais pagas por Cristo, nossa
Justiça e Fiador. Digamos: “Senhor perdoa as nossas dívidas”,
e Cristo pagará tudo.
Cristo é o nosso único Fiador. Tenha fé no sangue de Jesus e a
dívida será liquidada. Nós não temos com que pagar a dívida
mas Deus proveu para nós um Fiador fidedigno que a pagará
por nós.
Mas este Fiador tem uma condição para perdoar as nossas
dívidas: ele exige que perdoemos também os nossos
devedores. O nosso perdão das dívidas de outros não é
portanto a causa de sermos perdoados por Deus, mas a
condição sem a qual Ele não nos perdoará.
Muitos demoram a alcançar a salvação por este motivo. Eles
se recusam a perdoar outros e somente recebem a salvação de
Deus quando se dispõem a perdoar os seus devedores.
Eles pensam de Deus como de si mesmos, como se houvesse
nele alguma dureza de coração ou amargura. No entanto Deus
é inteiramente benigno, compassivo, bondoso, amoroso,
perdoador, e não podemos entender de maneira adequada, de
282
forma alguma, o que Ele seja, e por isso somos chamados a
exercer fé, a crer naquilo que Ele afirma de Si mesmo na sua
Palavra, e alcançaremos misericórdia se formos também
misericordiosos pedindo-lhe graça para que possamos
perdoar e amar os nossos inimigos. E temos um bom motivo
para isto, porque disto depende o nosso próprio perdão.
“Quem é Deus semelhante a ti, que perdoas a iniquidade, e
que te esqueces da transgressão do resto da tua herança? O
Senhor não retém a sua ira para sempre, porque ele se deleita
na benignidade.” (Mq 7.18).
O homem pode perdoar um pecado contra ele, mas ele não
pode perdoar uma transgressão contra Deus, e como todo
pecado é uma transgressão contra Deus podemos afirmar que
nenhum homem pode perdoar completamente o pecado e
remover a culpa do pecador. Isto é, se alguém peca contra o
seu próximo e é perdoado por ele, no entanto aquele que foi
perdoado continuará sem perdão e culpado diante de Deus
caso não busque ser perdoado por Ele.
Um crente pode e deve perdoar o seu irmão (Col 3.13), mas não
tem o poder de isentar a sua culpa perante Deus. Somente em
Cristo a culpa do pecado pode ser removida. Daí serem tantas
as ilustrações no Antigo Testamento dos sacrifícios de
animais que tipificavam a remoção da culpa que pode ser feita
somente através do sangue do sacrifício de Cristo, do qual
aqueles eram apenas figura.
Assim a autoridade para perdoar pecados que Cristo
concedeu aos ministros do evangelho (João 20.23) é apenas
declarativa, mas não efetiva. Se aquele que foi perdoado pelo
pastor, não se arrependeu efetivamente dos seus pecados, ele
não será perdoado por Deus, ainda que possa enganar os seus
ministros com um arrependimento superficial ou falso.
Mas quando o arrependimento é sincero e há humilhação
pelo pecado, o ministro pode e deve declarar o perdão do
pecado daquele que se arrependeu, para que a sua
consciência seja acalmada, e para que seja também recebido
na comunhão dos santos, por conversão ou por nova
reconciliação. E o ministro não perdoa o pecado pela sua
própria autoridade, mas como um arauto, no nome de Cristo,
em quem e por quem os pecados são efetivamente perdoados.
283
Tal como na Aliança da Lei, quando Deus limpava o leproso,
era dever do sacerdote declará-lo oficialmente limpo. De igual
modo Deus perdoa o pecado e o ministro declara o penitente
perdoado.
Nenhum mortal recebeu de Deus autoridade e poder para
poder perdoar pecados em seu próprio nome, ou por sua
própria eficácia, porque a dívida de pecados que temos é para
com Deus e não para com os homens. Nenhum homem é
credor de outro em relação a pecados praticados contra eles.
“Eu, eu mesmo, sou o que apago as tuas transgressões por
amor de mim, e dos teus pecados não me lembro.” (Is 43.25).
Quem mais além de Deus tem o poder de apagar as
transgressões dos pecadores?
O perdão é tirado dos intestinos da misericórdia de Deus e não
há nada que possamos fazer para merecer isto, nem nossas
orações, lágrimas ou boas obras podem comprar o perdão.
Assim se os homens pensam que eles podem comprar o
perdão de pecados com os seus deveres e esmolas, tanto eles
quanto as suas obras e dinheiro perecerão juntamente.
É principalmente pelo perdão de pecados que Deus comprova
tanto aos homens de boa vontade, quanto aos anjos que Ele é
completamente benigno, misericordioso, bondoso e cheio de
graça. Ele não é um Deus cruel, duro, perverso, como o diabo
costuma enganar os homens, usando por argumento as
aflições que há no mundo, só que não lhes dizendo que ele
próprio foi quem introduziu dores num mundo que era
perfeito ao ter enganado o primeiro casal no jardim do Éden.
As aflições que existem no mundo não foram causadas por
Deus mas pelo próprio pecado do homem. Em vez de aflições,
Deus poderia e deveria, por causa do seu atributo de Justiça,
ter destruído a humanidade, porque o salário do pecado é a
morte, mas Ele, sendo misericordioso e bom, planejou
perdoar os pecadores que se arrependessem dos seus
pecados e confiassem em Cristo como Salvador deles.
É pelo sangue de Cristo que nós temos redenção (Ef 1.7). A
culpa do pecado era infinita, e nada mais do que aquele
sangue de Alguém que não era somente homem, mas
também o Deus infinito poderia obter perdão para uma culpa
infinita.
284
Foi a graça de Deus que descobriu uma maneira de redenção
através de um Mediador.
A culpa por todos os nossos pecados foi colocada sobre Cristo
e Deus executou a sentença sobre a dívida destes pecados
fazendo-O morrer por nós na cruz.
É por isso que Ele diz em Hb 8.12, quanto à aliança que faria
através da Mediação de Cristo:
“Porque serei misericordioso para com suas iniquidades, e de
seus pecados não me lembrarei mais.” (Hb 8.12).
O preço pago pela nossa redenção, a saber, o sangue de Jesus,
desviou completamente de nós a ira da Justiça de Deus em
relação aos nossos pecados:
“Eu sararei a sua apostasia, eu voluntariamente os amarei;
porque a minha ira se apartou deles.” (Os 14.4).
Deste modo, embora um filho de Deus, depois de ter sido
perdoado em Cristo, possa incorrer no seu desgosto paternal,
contudo a ira judicial dele é afastada pelo sangue de Jesus.
Assim os santos poderão ser corrigidos pelos seus pecados
presentes, mas não destruídos.
“30 Se os seus filhos deixarem a minha lei, e não andarem nas
minhas ordenanças,
31 se profanarem os meus preceitos, e não guardarem os
meus mandamentos,
32 então visitarei com vara a sua transgressão, e com açoites a
sua iniquidade.
33 Mas não lhe retirarei totalmente a minha benignidade,
nem faltarei com a minha fidelidade.
34 Não violarei o meu pacto, nem alterarei o que saiu dos
meus lábios.” (Sl 89.30-34).
Esta porção deste Salmo é parte da promessa que foi feita aos
que são da casa de Davi, e nós fazemos parte desta casa pela
nossa união com Cristo.
E estes pecados presentes são tratados também pelo sangue
de Cristo, mediante arrependimento. E o arrependimento é
composto de três partes principais: contrição, confissão e
conversão.
Contrição é o quebrantamento de coração, é a tristeza pelo
pecado, uma vez convencidos deste pelo Espírito Santo. Os
contritos são os que choram que serão consolados, conforme
previsto na bem-aventurança (Mt 5.4). Como esta contrição
285
vem antes do perdão e prepara o coração para recebê-lo, daí
Jesus ter afirmado que os tais são bem-aventurados.
A confissão do pecado deve ser humilde, sincera, sem
reservas, voluntária, tal como a do publicano da parábola que
Jesus citou para mostrar o quanto estavam errados os fariseus
julgando-se justificados diante de Deus pela justiça própria
deles.
Como disse Agostinho: “A confissão fecha a boca do inferno e
abre o portão do paraíso.”.
O terceiro ingrediente do arrependimento é a conversão, isto
é, deixar o pecado e fazer a vontade de Deus.
Pode haver tristeza pelo pecado, pode haver confissão e no
entanto não se deixar a prática do pecado, isto é, não haver
conversão; então não houve um verdadeiro arrependimento
porque ficou faltando este terceiro componente da
conversão.
A conversão é na verdade a mudança de todo o
direcionamento da vida para Deus, isto é, uma mudança
completa que leva em conta não somente o abandono de um
pecado específico mas do pecado em todas as suas formas,
porque tentar esconder um só malfeitor na casa diante do
nosso Rei, nos torna culpados de rebeldia contra Ele. E quem
esconde um rebelde é um traidor da Coroa e merece a morte.
Por isso se diz que o arrependimento é para com Deus (At
20.21) porque não é apenas um ato de se deixar o pecado, mas
de se voltar para Deus com integridade de coração.
E este arrependimento é o modo que conduz ao perdão de
Deus, como se vê em Is 55.7:
“Deixe o ímpio o seu caminho, e o homem maligno os seus
pensamentos; volte-se ao Senhor, que se compadecerá dele; e
para o nosso Deus, porque é generoso em perdoar.” (Is 55.7).
Na oração do Pai Nosso Jesus nos ensinou a pedir o perdão a
Deus, mas em outras passagens da Palavra nós somos
ensinados quanto ao modo de fazê-lo. Nós vemos que não é
apenas com um pedido verbal que se alcança o perdão, mas
com as atitudes que são necessárias e ensinadas pelo Senhor
na Bíblia. Daí na própria sequência da petição do perdão na
oração do Pai Nosso, Jesus ensinou também a necessidade de
se pedir a Deus que não nos deixe cair em tentação e que nos
livre do mal, porque é fazendo frente efetiva contra toda
286
forma de tentação e de mal que se alcança o perdão gratuito
de Deus.
Isto é ensinado pela própria natureza, porque como poderia
um rei perdoar um rebelde que continua em hostilidade
aberta contra ele? Como Deus perdoaria os nossos pecados
vendo em nós uma franca disposição para continuar na
prática deles? Como Ele se deixaria enganar? Ele tudo sabe e
vê. Ele é onipotente, onisciente e onipresente.
O arrependimento aponta portanto para Deus assim como a
agulha da bússola aponta para o Norte.
O filho pródigo não somente deixou as meretrizes como
também voltou para o seu pai.
Assim o arrependimento vem antes do perdão, e aquele que
nunca se arrependeu não pode ter uma base segura para
esperar que os seus pecados sejam perdoados.
Não que o arrependimento mereça e seja a base para o perdão
do pecado. Porque sabemos fartamente que esta base e mérito
são exclusivos de Jesus, do sangue que Ele derramou para nos
lavar das nossas iniquidades. Mas o arrependimento é uma
condição, tanto quanto o perdão dos nossos devedores é uma
outra condição para o perdão dos nossos pecados, conforme
já comentamos anteriormente.
O ensino de nosso texto de Mt 6.12 sobre o dever de buscarmos
o perdão de Deus ao mesmo tempo que devemos perdoar os
nossos devedores está vinculado não somente a Mt 6.13 que
contém a conclusão da oração do Pai Nosso em que devemos
pedir a Deus para não nos deixar cair em tentação e livrar-nos
do mal, como também aos versículos 14 e 15 que lhe seguem
imediatamente. Em Mt 6.14,15 Jesus ensina diretamente que o
perdão de nossos pecados por Deus é dependente da condição
do nosso perdão efetivo dos nossos devedores.
Não adianta portanto uma pessoa ficar apenas chorando pelos
seus pecados e por causa da vergonha e dores que está
sentindo por causa destes pecados. Ela não poderá
experimentar o perdão e o favor de Deus caso não os confesse,
e que também abandone a prática de toda forma de pecado e
erro, e se disponha a fazer a vontade de Deus, praticando
aquilo que é justo, conforme nos tem revelado na sua Palavra.
Há muitos que estão chorando, inclusive crentes, mas que
não podem ser ajudados por Deus porque não estão
287
confessando as suas culpas (admitindo que estão errados) e
mudando a direção de suas vidas, das trevas para a luz; do erro
para Deus.
Mas se ocorrer um efetivo retorno para Deus Ele perdoará os
pecados conforme tem prometido:
“16 Lavai-vos, purificai-vos; tirai de diante dos meus olhos a
maldade dos vossos atos; cessai de fazer o mal;
17 aprendei a fazer o bem; buscai a justiça, acabai com a
opressão, fazei justiça ao órfão, defendei a causa da viúva.
18 Vinde, pois, e arrazoemos, diz o Senhor: ainda que os vossos
pecados são como a escarlata, eles se tornarão brancos como
a neve; ainda que são vermelhos como o carmesim, tornar-seão como a lã.” (Is 1.16-18).
“Desfaço as tuas transgressões como a névoa e os teus
pecados, como a nuvem; torna-te para mim, porque eu te
remi.” (Is 44.22).
Assim ao afirmarmos a gloriosa graça que há no sangue de
Jesus para o perdão dos pecados, não podemos esquecer que
a Palavra ensina direta e claramente que há condições para
que este perdão seja efetivo.
Deste modo, não é somente a fé no sangue que trará o perdão,
mas a conjunção da fé com o arrependimento, porque Deus os
tem unido inseparavelmente, de modo que não há verdadeira
fé onde não há arrependimento, e nem verdadeiro
arrependimento onde não haja fé. Não esqueçamos portanto
que há condições, e uma destas condições é o perdão dos
nossos devedores, e uma outra importante condição é o
arrependimento, e nós vimos que um arrependimento
verdadeiro é composto de três componentes: contrição,
confissão e conversão.
Não podemos tornar o perdão mais gratuito do que Deus tem
estabelecido. Não podemos ficar aquém do que Ele tem
exigido. Não podemos baratear a graça, porque Deus é um
Deus bondoso, mas criterioso.
Ninguém diga portanto que basta confiar em Jesus e nada
mais para que alguém seja perdoado e aceito por Deus. O
modo de se demonstrar a nossa confiança em Jesus inclui um
necessário arrependimento, por isso Ele pregava a fé mas não
sem o arrependimento.
288
“e dizendo: O tempo está cumprido, e é chegado o reino de
Deus. Arrependei-vos, e crede no evangelho.” (Mc 1.15).
Se houver arrependimento e fé Deus fará de pecadores
quebrados vasos de ouro de misericórdia para serem usados
de modo honroso por Ele. Então nunca nos contentemos com
um arrependimento superficial, mas com um que seja
verdadeiro, porque há grande galardão para os que se
arrependem continuamente dos seus pecados para
consagrarem suas vidas a Deus.
“19 Todavia o firme fundamento de Deus permanece, tendo
este selo: O Senhor conhece os seus, e: Aparte-se da injustiça
todo aquele que profere o nome do Senhor.
20 Ora, numa grande casa, não somente há vasos de ouro e de
prata, mas também de madeira e de barro; e uns, na verdade,
para uso honroso, outros, porém, para uso desonroso.
21 Se, pois, alguém se purificar destas coisas, será vaso para
honra, santificado e útil ao Senhor, preparado para toda boa
obra.” (II Tim 2.19-21).
Devemos também saber a diferença que há entre o perdão
total dos nossos pecados passados (Jer 33.8; Col 2.13) que
praticamos antes do nosso encontro pessoal com Cristo, e o
perdão dos nossos pecados presentes, que apesar de serem
cobertos pelo mesmo sangue que cobriu os nossos pecados
passados, demandam o exercício contínuo de fé e
arrependimento para serem perdoados. Nós não seremos
condenados por causa destes pecados ao fogo eterno, mas
Deus nos corrigirá se não nos examinarmos de modo a
confessá-los e deixá-los. Muitos se privam da graça de Jesus
por ignorância quanto à aplicação da graça, porque pensam
que por estarem na graça podem viver de modo desordenado
e pecaminoso, considerando que todos os seus pecados já
estão perdoados. Se assim fora, porque seria exigido que o
crente examine-se a si mesmo? (I Cor 11.28-32).
Se os pecados presentes já estão perdoados por que então se
ordena que oremos pelo perdão de pecados? (I João 2.1; Mt
6.12). Que necessidade teríamos de um Advogado junto ao Pai
se os pecados presentes e futuros já estão perdoados?
Tenhamos fé que o sangue de Cristo é o suficiente para o
perdão dos nossos pecados, como causa e base na qual eles
são perdoados. Mas não esqueçamos que há condições
289
estabelecidas pelo próprio Deus para que sejamos
beneficiados por este sangue, isto é, que ele seja de fato eficaz
e operante no perdão real dos nossos pecados, e já vimos e
repetimos que a principal condição é o arrependimento, e já
mostrarmos fartamente que não há arrependimento sem
conversão, isto é, abandono do pecado, e busca real da
presença de Deus fazendo a sua vontade.
Traduzindo isto em termos práticos poderíamos citar alguns
exemplos como os que destacamos a seguir:
1 – Quê adianta alguém dizer que se arrependeu do pecado e
não perdoa os seus devedores?
2 – Há arrependimento verdadeiro quando se pede a Deus
para perdoar os nossos pecados e continuamos fazendo aquilo
que nos é proibido pela sua Palavra, ou então não fazendo o
que nos é ordenado nela?
3 – Que arrependimento houve quando não vivemos por fé e
sim por vista? Quando amamos o mundo e rejeitamos a
santidade de Deus?
4 – Como podemos esperar o perdão dos nossos pecados por
Deus se não compartilhamos as necessidades dos santos, se
não intercedemos por eles, se não temos qualquer
compromisso com a obra do Senhor e não nos importamos
em dar o fruto de justiça esperado por Ele, por um andar no
Espírito?
Assim a fé que salva e perdoa é sobretudo fé em tudo aquilo
que a boca do Senhor tem proferido na sua Palavra. Que fé é
esta que proclama confiança em Cristo mas não se dispõe a
praticar a Palavra de Deus e honrá-la? Não é a mesma fé dos
demônios? Como pode alguém esperar ser salvo e perdoado
com uma fé como esta?
Esta não é a fé no Cristo da Bíblia, porque Ele mesmo definiu a
fé nele como cumprimento dos seus mandamentos
colocando-nos debaixo do seu senhorio.
“Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos
céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos
céus.” (Mt 7.21).
Crer em Cristo é concordar com as condições que Ele tem
estabelecido na sua Palavra.
Aquele que não crê em Cristo deste modo não pode ser
beneficiado pelo seu sangue. Não pode ter parte com Ele.
290
“Se vós permanecerdes em mim, e as minhas palavras
permanecerem em vós, pedi o que quiserdes, e vos será
feito.” (João 15.7).
Não há nenhum perdão que não seja precedido por este tipo
de fé genuína em Cristo. Daí a grande importância de se
conhecer e praticar a Palavra.
“E sede cumpridores da palavra e não somente ouvintes,
enganando-vos a vós mesmos.” (Tg 1.22).
Mas é importante também saber diferenciar entre
justificação e santificação, porque quando falamos de perdão
de pecados passados estamos falando de justificação, e
quando falamos de perdão de pecados presentes e futuros
estamos falando de santificação, e há grande diferença entre
ambas.
A justificação não depende de arrependimento de pecados
presentes que venhamos a praticar porque é imputada
quando nos unimos a Cristo, isto é, quando Ele passou a ser o
Salvador das nossas vidas; quando nos tornamos crentes. A
justificação é imputada pela fé em Cristo e nada mais. E é
simultaneamente acompanhada pela regeneração do Espírito
Santo que nos torna novas criaturas, operando uma grande
purificação de pecados. Neste dia do nosso novo nascimento,
todos os nossos pecados passados foram perdoados. Mas daí
em diante, nós teremos que viver também pela base de uma
justiça que nos é implantada na santificação. E esta é gradual,
progressiva. De modo que um crente pode ser mais
santificado do que outro, mas não ser mais justificado do que
outro. Um crente pode ter mais graça do que outro na
santificação, mas não ser mais crente do que outro, porque a
justificação está completa, é um ato perfeito, porque nela os
crentes receberam a justiça de Cristo. Mas a santificação é
sempre imperfeita, e há manchas em todos os filhos de Deus.
As nossas graças estão misturadas com as escórias de pecados
e a execução dos nossos deveres é imperfeita.
Se Deus nos perdoasse e não nos santificasse, Ele não poderia
receber qualquer glória de nós. Que glória Deus poderia
receber de um coração orgulhoso, ignorante, profano?
Se Deus não santificasse o crente, haveria pecado e mancha
no céu, mas lá não pode entrar qualquer mancha ou pecado
(Apo 21.27).
291
Assim, aqueles a quem Deus perdoa, Ele transforma. Deste
modo ninguém diga que os seus pecados foram e estão sendo
perdoados sem que haja um trabalho de santidade no interior
do seu coração.
Onde Deus remove o pecado, Ele imputa justiça.
E isto é feito individualmente e não coletivamente. Há
necessidade que cada pessoa assuma a responsabilidade
pelos seus pecados diante de Deus, porque o texto diz “perdoa
as nossas dívidas” e isto revela que não somos castigados
pelos pecados de outras pessoas, mas pelo nosso próprio
pecado.
“Eu, o Senhor, esquadrinho a mente, eu provo o coração; e
isso para dar a cada um segundo os seus caminhos e segundo
o fruto das suas ações.” (Jer 17.10).
“Assim, pois, cada um de nós dará conta de si mesmo a
Deus.” (Rom 14.12).
Nós não oramos para que seja perdoado o nosso pecado, mas
os nossos pecados, no plural, porque não é por uma única
dívida que nós oramos, mas por uma multidão de pecados.
Nossos pecados são como as gotas do mar, como os átomos do
sol, eles excedem qualquer contagem aritmética.
Se nós avaliássemos corretamente a dívida que temos para
com Deus, isto nos levaria a nos humilharmos diante dele pelo
motivo de estar tão cheios de manchas negras em nossas
almas, e isto deveria nos colocar em prontidão rapidamente
para a busca do perdão dos nossos pecados, para que tais
manchas sejam apagadas pelo sangue de Jesus que nos torna
mais alvos do que a neve.
Assim como há uma rica misericórdia para alimentar os
nossos corpos com o pão diário, há também uma rica
misericórdia para nos perdoar. Uma é a misericórdia que nos
alimenta e outra a que nos perdoa. Assim, não é nenhum sinal
de que fomos perdoados o fato de Deus nos prover com coisas
materiais.
Quando Cristo disse ao paralítico que os seus pecados haviam
sido perdoados, isto foi uma maior e melhor misericórdia, do
que a que havia curado a sua paralisia (Mc 2.5).
Por isso a oração do Pai Nosso coloca em realce o perdão dos
pecados e não a cura de enfermidades do corpo, porque é o
perdão dos pecados que devemos pedir a Deus antes de tudo o
292
mais; e é importante frisar que muitas enfermidades físicas
são curadas como mera consequência do perdão dos pecados.
Ninguém poderá obter o céu sem o perdão de pecados, então
de pouco adiantará a cura do corpo se não houver perdão de
pecados que é a forma de se entrar no reino dos céus.
Não admira que Jesus tenha repreendido aqueles que haviam
sido curados por Ele e visto os muitos milagres que Ele havia
feito e que não tinham se arrependido:
“Ai de ti, Corazim! ai de ti, Betsaida! Porque, se em Tiro e em
Sidom se tivessem operado os milagres que em vós se
operaram, há muito, sentadas em cilício e cinza, elas se teriam
arrependido.” (Lc 10.13).
Se o perdão de pecados é tão absolutamente necessário, qual
é então a razão de tão poucos no mundo se empenharem por
isto? Para serem curados de males físicos eles procuram o
médico e se for necessário empreender uma longa viagem
para serem curados ou gastarem muito dinheiro, eles o farão
prontamente. Mas quando o assunto se refere à cura dos
males de suas almas eles parecem desinteressados e não
buscam por cura. De onde procede isto?
As pessoas não levam a sério que têm uma grande dívida para
com Deus que será executada no dia do juízo. Como estão
mortos espiritualmente, não poderão discernir esta verdade a
não ser que creiam em Cristo e sejam instruídos pelo Espírito
Santo.
Nós vemos então que os homens dependem inteiramente de
que Deus lhes revele a sua real condição perante Ele. O quanto
são pecadores e o quanto necessitam do seu perdão para que
sejam curados.
A trombeta do evangelho soa por toda parte ordenando aos
homens que se arrependam de seus pecados e creiam em
Cristo. Mas todo aquele que desprezar o aviso não terá os seus
olhos espirituais abertos por Deus para que possa conhecer a
condição em que se encontra, de maneira que possa
reconhecer humildemente que é pecador e necessita pedirlhe: “Perdoa as minhas dívidas porque tenho crido que o único
modo de liquidá-las é o sangue de Cristo”.
O homem, por si mesmo, não pode conhecer que de fato lhe
espera uma condenação terrível num inferno de fogo caso
não se arrependa e creia, por isso é importante que não
293
somente se pregue o único e genuíno evangelho, como
também se dê não somente ouvidos a esta verdade pregada,
mas que se obedeça o que é ordenado, a saber, que nos
arrependamos e creiamos somente em Cristo para sermos
perdoados.
Assim a fé que salva vem por se ouvir e obedecer a pregação
do evangelho. E o evangelho garante que se crermos em
Cristo em nosso coração confessando-o como nosso Senhor,
e que Deus o ressuscitou dentre os mortos, seremos salvos.
Os homens não dão crédito à pregação do evangelho e não
buscam perdão para os seus pecados conforme Jesus nos
ordenou na oração do Pai Nosso porque eles estão buscando
outras coisas. Eles estão apegados às coisas do mundo. Eles a
buscam
imoderadamente.
O
coração
deles
está
completamente cativado por elas. E assim, não conseguem
atinar que têm um espírito imortal e terão que prestar contas
a um Deus imortal.
Satanás usa as riquezas do mundo como armadilhas para
manter almas cativas ao pecado. Os desejos pelas coisas
terrenas gritam tão alto nos corações dos pecadores que eles
não conseguem ouvir a trombeta de alarme que é tocada
pelos ministros do evangelho.
Se o homem não obtiver o perdão de Deus para os seus
pecados, pelo único caminho para isto, que é a fé em Jesus
Cristo, ele não poderá escapar de modo algum da condenação
eterna, porque Deus não pode inocentar de modo algum o
culpado, senão apenas perdoá-lo (Ex 34.7) caso se arrependa e
creia.
Muitos não buscam seriamente o perdão dos seus pecados
porque têm esperança de que não serão punidos. Eles
afirmam que Deus é pai, que Deus é bom, misericordioso, e de
modo algum mandará alguém para o inferno. Eles afirmam
isto contra tudo o que o próprio Deus afirma claramente na
sua Palavra quanto à condenação futura.
Outros negam até mesmo a existência de Deus, e há outros
que afirmam até mesmo que não existe pecado. A condenação
de todos eles é justa e certa.
Mas há também aqueles que acham que Deus não pode
perdoar os seus pecados porque são muitos e graves, e não
admitem que um Deus santo possa habitar pelo seu Espírito
294
nos pecadores. Estes desonram a Deus Pai e particularmente
a Cristo, porque com isto negam a bondade de Deus e que o
sangue de Jesus seja de fato suficiente para cobrir o pecado.
Desonram também a Deus aqueles que creem que é possível
o perdão de pecados, só que buscam isto através da prática de
suas obras de justiça própria. Isto não somente desconsidera
o tamanho da dívida impagável que têm para com Deus, como
despreza o sacrifício que Jesus fez para salvá-los morrendo na
cruz. Estes estão declarando indiretamente que o sangue de
Jesus não pode lhes perdoar.
Quem não tiver os seus pecados perdoados não achará a vida
e permanecerá morto espiritualmente.
A própria vida está em ser perdoado por Deus (Rom 5.18). Por
isso que os crentes, ainda que vivos para Deus em Cristo Jesus
vivem como se estivessem mortos espiritualmente quando
vivem deliberadamente na prática do pecado. Porque
somente a submissão ao Espírito Santo dá para a vida e paz, e
a submissão à carne para a morte espiritual (Rom 8.6). A carne
produz as obras da carne, e estas obras são o pecado
propriamente dito, cujo salário sempre é a morte.
Sendo Cristo o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo,
nós devemos considerar que quando ele nos ensinou o dever
de pedirmos o perdão dos nossos pecados a Deus, Ele não
estava insinuando a busca de um simples alívio de
consciência por alguma falta cometida, considerada
isoladamente, mas o cumprimento da própria obra que Ele
veio realizar em favor dos pecadores e diz respeito à salvação
e santificação deles. Foi com esta perspectiva em vista que Ele
pronunciou não somente estas palavras de Mt 6.12 mas todo o
seu ensino no Sermão do Monte, bem como tudo o mais que
fez e ensinou em seu ministério terreno, com a promessa de
tudo o que seria ainda ensinado pelo Espírito Santo aos
apóstolos. É o resgate do homem da condição a que ficou
sujeito por causa do pecado original que Cristo se ocupou e
continua se ocupando à destra do Pai nos céus como nosso
Advogado e Sumo Sacerdote. Não podemos considerar tudo
que se refira a este assunto numa perspectiva menor do que a
que Ele próprio considerou e tem considerado.
E este perdão dos pecados foi um trabalho penoso para a alma
de Cristo em seu ministério terreno, especialmente quando
295
foi elevado na cruz, bem como continua sendo um trabalho
penoso para toda a trindade divina, porque se não houve
qualquer tipo de oposição para a criação do mundo, no
entanto há grande oposição de Satanás, dos principados e do
próprio pecador, na nova criação que está sendo feita pelo
novo nascimento operado pelo Espírito Santo, pela fé em
Jesus.
E este é um trabalho que pode ser feito somente pelo poder de
Deus. Ninguém está habilitado para salvar uma única alma
que seja. Perdoar e remover a culpa do pecado é um trabalho
exclusivo para o Cordeiro de Deus.
Jesus disse que todo pecado e ofensa pode ser perdoado aos
homens, exceto o pecado de blasfemar contra o Espírito
Santo. Então Deus não tem revelado a nenhum homem em
particular que ele é um réprobo e que não há esperança de
salvação para ele. O pensamento de que nós não somos eleitos
e que não há portanto nenhuma possibilidade de perdão para
nós, vem de Satanás, que é o acusador, e nos acusa diante de
Deus que somos grandes pecadores; e acusa Deus a nós
dizendo que Ele é um grande tirano, que vigia para destruir as
suas criaturas. A estas sugestões diabólicas devemos dizer:
“para trás de mim Satanás!”.
Deus tem afirmado em sua Palavra que é rico em misericórdia
e que não tem prazer na morte dos ímpios, antes que se
arrependam e vivam (Ef 2.4; Ez 18.32; 33.11). Assim usa de
grande longanimidade e espera muito tempo para que os
pecadores se arrependam e busquem nele o perdão para os
seus pecados.
Então sejamos encorajados pelas promessas de Deus a
buscar perdão para os nossos pecados, sabendo que somos
perdoados não porque o mereçamos, mas porque Deus é
generoso (Ex 34.6). Ele perdoa por misericórdia. Atos de
perdão são atos de graça, de maneira que o nosso perdão aos
nossos ofensores deve ser também um ato de misericórdia,
que está condicionado também ao arrependimento dos
nossos ofensores. Nós devemos ter uma atitude perdoadora,
mas especialmente os ministros do evangelho devem cuidar
para não perdoarem indiscriminadamente, admitindo na
comunhão do corpo de Cristo crentes que não se
arrependeram dos pecados que praticaram contra os seus
296
irmãos em Cristo. Estes devem ser considerados como
gentios e publicanos, e de modo algum devem receber o
perdão se não houver o necessário arrependimento (Mt 18.17).
Mas em havendo o arrependimento, somos obrigados a
perdoar setenta vezes sete, conforme o Senhor nos ensinou
(Mt 18.21,22).
A atitude perdoadora deve no entanto permanecer em aberto
para um possível futuro arrependimento mesmo destes que
são considerados gentios e publicanos, isto é, como se fossem
estranhos para o corpo de Cristo. Eles perderam a nossa
confiança mas poderão se reabilitar através do
arrependimento, tal como nós somos reabilitados na nossa
comunhão com o Senhor, através do arrependimento dos
nossos pecados.
“14 Mas, se alguém não obedecer à nossa palavra por esta
carta, notai-o e não tenhais relações com ele, para que se
envergonhe;
15 todavia não o considereis como inimigo, mas admoestai-o
como irmão.” (II Tes 3.14,15).
Esta atitude perdoadora para com um irmão faltoso só será
possível se estivermos vivendo e andando no Espírito, tendo o
amor de Deus derramado nos nosso corações pela presença
do Espírito Santo, porque será isto que nos habilitará a possuir
a atitude perdoadora a que nos temos referido, mesmo
quando cortarmos o nosso relacionamento com algum irmão
por causa do seu endurecimento no pecado, de maneira que
venha a andar contrariamente à doutrina de Cristo.
A reconciliação de um irmão caído é uma das joias da graça do
evangelho, e é uma glória que enaltece o caráter bondoso,
longânimo, amoroso e misericordioso de Deus e daqueles que
são seus imitadores como filhos amados. Então devemos orar
pela reabilitação daqueles que apostataram da fé e que são
crentes verdadeiros, porque nos é ordenado amparar os que
são fracos na fé.
“1 Irmãos, se um homem chegar a ser surpreendido em algum
delito, vós que sois espirituais corrigi o tal com espírito de
mansidão; e olha por ti mesmo, para que também tu não sejas
tentado.
2 Levai as cargas uns dos outros, e assim cumprireis a lei de
Cristo.” (Gal 6.1,2).
297
Vejamos então atentamente se o motivo da queda de alguém
que faça parte da membresia de nossa congregação é por
motivo de fraqueza, e oremos para que tal pessoa seja
reabilitada e nos esforcemos para reconduzir tal pessoa à
verdade, com toda longanimidade e pelo uso da sã doutrina.
Não nos cansemos de nos estimular uns aos outros ao
exercício do perdão e a buscar o perdão e também
perdoarmos a outros porque quando alguém tem os seus
pecados perdoados por Deus o seu coração fica cheio,
consequentemente, de amor por Deus, porque o Espírito
Santo que estava entristecido e apagado por causa do pecado,
tornará a encher o espírito de alegria e amor. Aquele que é
muito perdoado, muito ama, disse Cristo. O perdão desperta
grande gratidão a Deus, e um coração grato é um coração
cheio de graça. Que joia preciosa é então o perdão dos nossos
pecados. Peçamos então: “Perdoa as nossas dívidas, assim
como temos perdoado os nossos devedores.”.
O amor da mulher que foi perdoada por Jesus (Lc 7.47) não foi
a causa do seu perdão, mas um sinal dele. Uma alma perdoada
é um monumento da misericórdia de Deus, e a pessoa
perdoada pensa que nunca poderá ser grata a Deus e amá-la o
bastante, tal a grandeza do perdão, em face de passar por alto,
como vimos antes, uma culpa infinita, resultante de uma
dívida infinita, que é a do pecado.
Um coração perdoado está inflamado de zelo e fervor por
Deus, de maneira que onde há um coração duro e frio como o
mármore é porque não experimentou ainda o perdão dos seus
pecados.
Onde o pecado é perdoado a natureza é purificada (Os 14.4).
Todo pecador é culpado e doente por natureza, e quando Deus
remove a sua culpa, ele cura a sua doença (Sl 103.3).
Quando Deus perdoa Ele muda o coração. No lugar do coração
de pedra ele coloca um coração de carne (Ez 36.26). Ele muda
os nossos trajes sujos por trajes festivos (Zac 3.4).
Então que ninguém pense que tem sido perdoado dos seus
pecados, se lhe faltam estas evidências da operação da graça
divina que acompanham o perdão.
Aqueles que têm os seus pecados perdoados são consolados
pelo Espírito Santo de Deus (Is 40.1,2).
298
Os que são perdoados seguirão o Cordeiro aonde quer que Ele
vá (Apo 14.4), estando dispostos a morrerem por Ele (At 21.13).
Os que têm sido perdoados sentem um doce calma e paz
interior depois de terem passado por muitas tempestades.
Quando o pecado é perdoado o coração fica sem malícia (Sl
32.1,2). Não ter malícia no coração significa simplicidade de
coração. Não há ruins suspeitas, nem um coração dobre, nem
conspiração. Não apenas as ações serão corretas mas também
o coração estará correto quando ele está sem malícia. O
coração servirá a Deus pelo princípio correto que é o amor, e
para um fim correto, que é para a exclusiva glória de Deus.
Um coração sem malícia não se permite ter no seu interior o
menor pecado e evita pecados ocultos. Ele sabe que Deus tudo
vê e julga; e assim se guarda de toda a forma de iniquidade (Sl
18.23).
Um coração sem malícia tem completo interesse na verdade
de Deus e a defenderá ainda que seja com o sacrifício da
própria vida. E lamentará quando o estado da igreja estiver
numa condição baixa na qual Deus não esteja sendo honrado
e glorificado (Ne 2.3). Assim, quando a igreja do Senhor estiver
sofrendo, uma alma sincera sentirá tristeza como se a sua
própria pessoa estivesse sendo atingida. Um coração sem
malícia se alegra somente com a verdade e quando vê que a
causa do evangelho está fundamentada e triunfando.
“Toda a amargura, e ira, e cólera, e gritaria, e blasfêmia e toda
a malícia sejam tiradas dentre vós,” (Ef 4.31).
“1 Deixando, pois, toda a malícia, e todo o engano, e
fingimentos, e invejas, e todas as murmurações,
2 Desejai afetuosamente, como meninos novamente
nascidos, o leite racional, não falsificado, para que por ele
vades crescendo;” (I Pe 2.1,2).
“6 Ninguém oprima ou engane a seu irmão em negócio
algum, porque o Senhor é vingador de todas estas coisas,
como também antes vo-lo dissemos e testificamos.
7 Porque não nos chamou Deus para a imundícia, mas para a
santificação.” (I Tes 4.6,7).
A palavra daquele que tem um coração sem malícia é
fidedigna, porque se baseia no princípio de Cristo, de sim, sim,
não, não.
299
Aquele que tem um coração sem malícia é fiel aos seus
amigos, e nunca fingirá e dissimulará o que sente junto a eles.
Falsificar o amor é hipocrisia e então um coração sem malícia
não lisonjeará quando tiver que censurar. Nunca trairá a
quem quer que seja com um beijo.
Assim não podemos julgar amizades pela língua, pelas juras
de fidelidade e amor. As palavras podem estar cheias de mel
enquanto o coração está cheio do fel da malícia. Aquele que
atraiçoa o seu amigo não tem um coração que seja verdadeiro
para com Deus. Quando isto acontece é um sinal que o pecado
não foi perdoado, porque Deus não imputará nenhum pecado
àquele cujo coração está sem malícia.
Aquele que teve seus pecados perdoados está disposto a
perdoar outros que o ofenderam (Ef 4.32). Um hipócrita virá à
igreja, construirá hospitais, dará esmolas, mas não pode
perdoar injustiças que tenha sofrido.
Se nós temos espíritos perdoadores nós sabemos que iremos
para o céu. É principalmente por este meio que sabemos que
pertencemos a Cristo. Não precisamos subir ao céu para saber
se nossos pecados foram perdoados, basta olhar para os
nossos corações.
Deus olha para uma alma perdoada como se ela nunca tivesse
pecado. E esta é a grande consolação do seu povo, saber que
Ele perdoou as suas iniquidades (Is 40.1,2), e sabendo isto não
buscaríamos ser perdoados assim como temos perdoado os
nossos devedores?
Aquele cujo pecado foi remido por Cristo é olhado por Deus
como se nunca O tivesse ofendido. Embora o pecado
remanesça depois do perdão, contudo Deus não olha para ele
como um pecador, mas como um homem justo.
A alma perdoada está livrada para sempre da ira de Deus. E
quão terrível é a ira de Deus. Mas toda alma perdoada está
livrada da ira vingadora de Deus.
A consciência de quem foi perdoado não pode mais acusá-lo
da culpa do pecado. E nem pode mais atemorizá-lo.
Se a consciência estiver devidamente informada ela se
regozijará no perdão divino em vez de acusar o pecador.
Se o pecado foi perdoado a consciência está serena e
tranquila. O céu está claro e não há qualquer tempestade para
agitar a mente. E a misericórdia de Deus ilumina a alma.
300
A culpa corta as asas do perdão. Faz a face se ruborizar, mas a
confiança no perdão recebido faz com que olhemos com
gratidão e louvor a Deus como um Pai de amor e misericórdia.
Quando os nossos pecados são perdoados as nossa ofertas são
aceitas por Deus e Ele nos faz úteis no seu serviço (Zac 3.3,4).
Quando o pecado é perdoado Deus nunca nos censurará por
pecados anteriores, tal como aprendemos da parábola do filho
pródigo e de todos os pecadores que Jesus perdoou em seu
ministério terreno. Ele nunca lançou no rosto deles as faltas
que haviam cometido anteriormente ao perdão recebido.
A alma perdoada triunfa sobre a morte. Para estes a morte não
é uma destruição mas uma libertação. É uma passagem para o
reino de glória.
O perdão dos nossos pecados é uma joia preciosíssima que
pede por aclamações de louvor e gratidão. Você é grato pelo
pão diário e não seria muito mais pelo perdão? Você dá graças
pela cura da doença e não daria muito mais pela libertação do
inferno? Deus fez mais por você perdoando os seus pecados
do que lhe tivesse dado um reino na terra.
Mas não pensemos que por causa da bondade, misericórdia e
graça de Deus que o perdão é fácil. Não é de modo nenhum
fácil obter o perdão, pois temos visto que há condições para
ser perdoado por Deus, como por exemplo perdoar os nossos
devedores e nos arrependermos, e vimos que o
arrependimento consiste em contrição, confissão e
conversão, conforme se vê nas palavras do Senhor em II Crôn
7.14, quando revelou as condições para que possa perdoar o
seu povo, apesar de ter feito uma base para este perdão no
sacrifício de Jesus:
“E se o meu povo, que se chama pelo meu nome, se humilhar,
e orar, e buscar a minha face e se converter dos seus maus
caminhos, então eu ouvirei dos céus, e perdoarei os seus
pecados, e sararei a sua terra.”(II Crôn 7.14).
Deus não nos perdoará se não nos reconhecermos culpados
pelas nossas transgressões contra Ele e contra o nosso
próximo. Ele não nos perdoará se não confessarmos as nossas
culpas e se não nos dispusermos a nos convertermos dos
nossos maus caminhos.
Não podemos esperar ser ouvidos por Deus em nossas
orações se não resolvermos primeiro a necessidade que
301
temos de buscar nele o perdão para os nossos pecados. Isto
vale também para os crentes, como se vê em II Crôn 7.14,
porque estas palavras se aplicam ao povo de Deus.
Mas devemos também fugir do engano de que enquanto nos
esforçamos seguindo as instruções anteriores para obter o
perdão de Deus, que o façamos confiando no nosso próprio
mérito e justiça e não somente no sangue de Cristo como
sendo a base na qual devemos depositar a nossa fé para que
sejamos perdoados (Apo 1.5; Rom 3.25; I Pe 1.2). E o sangue se
mostra eficaz somente quando exercemos fé em Cristo.
E nós vimos também que não é um caminho fácil o que está
estipulado por Deus para o perdão dos nossos devedores,
porque, apesar de se exigir de nós uma atitude perdoadora,
isto é uma completa disposição para perdoar a outros, sendo
compassivos para com eles, exige-se o arrependimento da
parte deles para que sejam perdoados. Assim, quando um
irmão peca contra outro, ou anda de modo desordenado na
Igreja contra a doutrina de Cristo, e não se arrepende disto e
não reconhece o seu erro e muito menos o confessa e
abandona, nós não estaremos fazendo a vontade de Deus se
lhe perdoarmos estas ofensas, porque é necessário que haja
um verdadeiro arrependimento para a liberação do perdão.
Por isso Jesus não deu aos ministros do evangelho somente o
poder de declarar o perdão de pecados, mas também de retêlos por causa da falta de arrependimento (João 20.23).
E há casos em que nós mantemos um coração aberto em
relação àqueles que nos têm ofendido, mas não devemos nos
confiar a eles e nem confiar neles, tal como Davi fizera em
relação a Simei que lhe havia amaldiçoado, acusando-o
injustamente de crimes contra a casa de Saul que ele não
havia praticado.
Nós devemos seguir o exemplo de Cristo que quando era
injuriado não injuriava a ninguém e entregava-se
inteiramente ao cuidado do Pai, que julga retamente, e a
quem cabe todo o juízo.
É preciso pedir ao Senhor que aumente a nossa fé, tal como
lhe haviam pedido os seus discípulos durante o seu ministério
terreno, para que possamos confiar que de fato Deus julgará
todas as nossas demandas contra aqueles que nos têm
ofendido e prejudicado, enquanto temos uma atitude
302
perdoadora para com eles, na expectativa de que se
arrependam para a glória de Deus e para o próprio bem deles.
“3 Tende cuidado de vós mesmos; se teu irmão pecar,
repreende-o; e se ele se arrepender, perdoa-lhe.
4 Mesmo se pecar contra ti sete vezes no dia, e sete vezes vier
ter contigo, dizendo: Arrependo-me; tu lhe perdoarás.
5 Disseram então os apóstolos ao Senhor: Aumenta-nos a
fé.” (Lc 17.3-5).
Assim nunca nos cansemos de fazer o bem a todos,
especialmente aos domésticos da fé, orando por eles,
exortando-os, dando-lhes a porção necessária da Palavra de
Deus
para
serem
alimentados,
ainda
quando
estejam resistindo a isto, porque uma mãe não deixará de
alimentar o seu bebê quando ele estiver recusando o
alimento. O Senhor se empenha para nos conduzir ao perdão
evangélico que cobre multidão de pecados, e juntamente com
Ele devemos também esforçar-nos para que outros sejam
perdoados por Deus tal como nós o fomos. Usar de bondade e
benignidade apenas para com aqueles que se mostram
receptivos a nós e que nos procuram não é a norma do
Evangelho, conforme bem o demonstra a parábola das bodas
em que o Rei ordena que os convidados sejam forçados a
comparecerem ao casamento do seu Filho, porque isto será
para o próprio bem deles. Isto revela o empenho e a luta que
temos que fazer para propagar o perdão do evangelho,
dispondo-nos a amar e a perdoar aqueles que se manifestam
como nossos inimigos, de maneira que possamos ganhar a
alguns deles pelo nosso exemplo de paciência e mansidão no
serviço de Cristo.
A Sexta Petição na Oração do Senhor
“E não nos conduza em tentação, mas livra-nos do mal”
- Mateus 6.13
O verbo eisfero, no original grego, traduzido no nosso texto
por conduzir, é usado em outras seis passagens do Novo
Testamento (Mt Lc 5.18, 19; 11.4; At 17.20; I Tim 6.7; Hb 13.11),
com o mesmo significado de conduzir, trazer para dentro ou
introduzir.
303
E a palavra para tentação no original grego é peirasmos, e
significa experimento, tentativa, teste, prova, adversidade,
tribulação ou aflição enviada por Deus para testar ou provar o
caráter, a fé ou a santidade de alguém.
Esta petição da oração do Pai Nosso coloca diante de nós a
seguinte questão: Porventura Deus conduz alguém em
tentação? A resposta óbvia com apoio em outros textos
bíblicos como Tiago 1.13 é que não, porque Ele a ninguém
tenta e nem pode ser tentado.
Mas se a ninguém tenta, no entanto pode conduzir seus filhos
a condições para que sejam provados. E o Senhor Jesus nos
ensina a pedir a Deus para que não nos conduza a tais provas
em que seremos testados.
Uma chave para a compreensão desta petição da oração do Pai
Nosso é I Pe 1.6,7:
“6 Em que vós grandemente vos alegrais, ainda que agora
importa, se necessário, que estejais por um pouco
contristados com várias tentações,
7 Para que a prova da vossa fé, muito mais preciosa do que o
ouro que perece e é provado pelo fogo, se ache em louvor, e
honra, e glória, na revelação de Jesus Cristo;” (I Pe 1.6,7).
Neste texto é dito que somos contristados, por um breve
tempo, com várias tentações, mas somente se isto for
necessário,
a
saber:
Deus
não
nos
provará
desnecessariamente caso andemos em conformidade com a
sua vontade.
Quando a fé é provada, testada, Deus quer que conheçamos
qual é a nossa real condição espiritual, para que possamos
entender o quanto necessitamos progredir em santidade pelo
aumento da nossa fé.
O ponto é o seguinte: se formos achados aprovados não
necessitaremos ser submetidos a provas.
Entretanto, esta não é a condição normal que é encontrada na
quase totalidade dos crentes, e de um modo ou outro, num ou
noutro grau, todos são provados de alguma maneira para o
benefício da sua fé.
Então por que o Senhor ensinou a pedirmos a Deus para não
nos conduzir em tentações, uma vez que o apóstolo Tiago
afirma que devemos ter por motivo de toda a alegria o
passarmos por várias provações?
304
A chave para a compreensão desta aparente contradição se
encontra na continuidade do texto de Mt 6.13 no qual Jesus
também ensinou a pedirmos a Deus que nos livre do mal.
Então o tipo de tentação referido no texto se restringe às
provas em que o maligno estará atuando, como a tentação à
qual o próprio Jesus foi submetido no deserto (Lc 4.1,2).
Em Gênesis 22.1 nós vemos o próprio Deus colocando a fé de
Abraão a prova quando lhe pediu que sacrificasse Isaque. Não
houve qualquer participação de Satanás nesta provação da fé
e do amor de Abraão. O Senhor queria comprovar para o
próprio Abraão e para todos nós o quanto ele O amava, de
maneira que a sua obediência tornou-se um exemplo a ser
seguido por nós, na demonstração de que os interesses do
Senhor devem sobrepujar os dos nossos afetos naturais pelos
nossos familiares.
Há grande diferença portanto entre testar a graça dos crentes,
e permitir que as corrupções deles sejam excitadas pela
própria natureza deles corrompida pelo pecado ou pelo diabo.
Assim o pedido da oração do Pai Nosso tem a ver com o fato de
sermos guardados por Deus em não ficar sujeitos ao poder das
várias tentações que há no mundo, e que são estimuladas pelo
pecado e pelo diabo, de maneira que nos dê graça e força para
vigiarmos e nos guardarmos destas tentações, fugindo delas,
resistindo a elas, e tendo o suporte de graça e poder do
Espírito Santo necessários para viver de modo santo. O Senhor
poderia ter dito: “livra-nos da tentação”, mas disse “não nos
conduza em tentação”, isto é, não nos deixe entrar nelas, não
permita que sejamos trazidos para dentro delas, de maneira
que um crente fará muito bem em se manter afastado de
todas as possíveis fontes de tentação que poderão levá-lo a
pecar.
É necessário contar e ter efetivamente o poder da graça de
Deus no coração para poder resistir às fontes de tentações.
E uma destas fontes flui de dentro de nós mesmos (Tg 1.14). O
coração é a fonte de todo pecado. O maior tentador é o nosso
próprio coração, de maneira que todo homem é tentado pela
sua própria cobiça.
Mas além de virem de dentro de nós as tentações têm também
uma fonte externa que é Satanás. Ele é chamado de o Tentador
(Mt 4.3). Ele arma ciladas para nos causar danos, e usa as
305
tentações como explosivos para explodir o forte da nossa
graça.
Um crente ficará exposto às tentações durante todo o curso da
sua vida. E elas são numerosas e variadas, de maneira que não
é sem razão que o Senhor nos ensinou a pedir ao Pai que não
permita que sejamos conduzidos às tentações. E é de se supor
que aquele que não orar neste sentido, conforme o Senhor
nos ensinou ficará muito mais exposto e sujeito a ser afligido
por múltiplas tentações que procurarão enfraquecer as suas
graças e lhe furtar a paz.
A tentação é um grande molestamento para um filho de Deus,
porque quanto mais formos tentados pelo mal, mais somos
impedidos de praticar o bem. Nós estamos em grande perigo
de receber constantes ataques do Inimigo, e por isso devemos
orar frequentemente: “não no conduza em tentação”.
Se Deus não impusesse limites às tentações de Satanás e
deixasse os seus filhos sem o fortalecimento de graça e à
mercê do poder do diabo, ele poderia facilmente levá-los até
mesmo à insanidade mental ou ao colapso nervoso, mas há
um clamor no coração de cada crente que pede ao Senhor que
O livre das ciladas do diabo, e este clamor deve ser traduzido
em orações verbais nas quais peçam humildemente a Deus
que não os conduza em tentação.
Por isso é algo que deve ser evitado a todo custo por todos os
crentes, não apostatarem da fé pela prática deliberada do
pecado, de maneira que sejam conduzidos por Deus em
tentação, sendo entregues a Satanás para a destruição da
carne.
Se necessário for, que sejamos conduzidos em tentação
somente para o cumprimento de seus propósitos elevados,
em obediência à sua vontade, assim como se deu no caso de
Jó, que foi entregue a Satanás por Deus, sendo assim
conduzido em tentação, mas para que ficasse provado o
caráter da fé e do amor genuínos que Jó possuía. E de igual
forma o apóstolo Pedro, e até mesmo o próprio Senhor Jesus
no deserto, mas vemos que isto é sempre por um breve tempo,
e segundo o controle e vontade de Deus, e não por exclusiva
iniciativa do diabo, senão ele teria motivo para se gloriar do
seu poder diante dos crentes e do próprio Deus.
306
“Não veio sobre vós tentação, senão humana; mas fiel é Deus,
que não vos deixará tentar acima do que podeis, antes com a
tentação dará também o escape, para que a possais suportar.”
(I Cor 10.13).
Nós estamos vendo a complexidade deste assunto relativo a
tentações. Há nuances nele e distinções de operações, que
nos fazem entender que nem todo tipo de tentação é um
motivo para nos gloriarmos nelas (como o caso de ser
entregue a Satanás para destruição da carne por motivo de
desobediência deliberada a Deus), mas para que nos
envergonhemos da nossa condição e nos arrependamos.
Veja o caso de muitos na Igreja de Corinto conforme se
depreende das seguintes palavras do apóstolo:
“17 Nisto, porém, que vou dizer-vos não vos louvo; porquanto
vos ajuntais, não para melhor, senão para pior.
18 Porque antes de tudo ouço que, quando vos ajuntais na
igreja, há entre vós dissensões; e em parte o creio.” (I Cor
11.17,18).
“30 Por causa disto há entre vós muitos fracos e doentes, e
muitos que dormem.
31 Porque, se nós nos julgássemos a nós mesmos, não
seríamos julgados.
32 Mas, quando somos julgados, somos repreendidos pelo
Senhor, para não sermos condenados com o mundo.” (I Cor
11.30,32).
A Igreja de Corinto estava sendo vencida pelo engano do
diabo, através de falsos apóstolos que exploravam
financeiramente aquela Igreja que havia sido fundada pelo
apóstolo Paulo. Por causa disto, para não ser considerado
igual àqueles apóstolos fraudulentos, ministros de Satanás (II
Cor 11.3,13,14), Paulo havia servido a Igreja de Corinto com o
salário que recebia de outras Igrejas, especialmente da
Macedônia (II Cor 11.7,8), e afirmou que continuaria pregando
gratuitamente o evangelho em Corinto para cortar ocasião de
maledicência entre eles, por inspiração satânica, de que
pregava por interesse financeiro como os demais “apóstolos”
que estavam entre eles (II Cor 11.9), e que triste coisa é esta,
ter que fazer tal tipo de afirmação que comprovava a
infidelidade deles para com os verdadeiros ministros de Deus.
Não admira que tantos estivessem sendo enfermados,
307
enfraquecidos e mortos naquela Igreja como forma de
disciplina que o Senhor estava usando para conduzi-los ao
arrependimento.
Eles haviam caído no laço do diabo por causa do
endurecimento no pecado. Eles estavam inchados em sua
sabedoria carnal e não estavam se sujeitando à simplicidade
do evangelho de Cristo, em plena obediência à doutrina
verdadeira. Assim, tornaram-se uma presa fácil para o
Inimigo, e deste modo bem faríamos em considerar quão
perigosas são as tentações de Satanás.
Satanás inveja com ódio mortal a felicidade que o crente tem
com Deus. É algo insuportável para ele ver que um ser feito do
pó da terra venha a ser glorificado enquanto ele será
derrubado ao mais profundo abismo, ele que uma vez foi um
querubim glorioso, expulso do paraíso divino. Em Apocalipse
12.12 é afirmada a grande ira com que ele desceu à terra para
tentar os seus habitantes.
Então o maior prazer do diabo é encantar e arruinar almas e
trazê-las à sua mesma condenação, e quando isto lhe escapa
pela conversão de alguns, estes serão continuamente
espreitados por ele, esperando que fracassem em sua
vigilância, de maneira que possa tragá-los, não para o inferno,
porque sabe que não poderá mais ter crentes autênticos em
sua companhia no inferno, mas para conduzi-los a uma
condição de desobediência a Deus e à sua Palavra, de maneira
que fiquem sujeitos à sua disciplina e correção, enquanto
ficam privados da comunhão com Ele. Com isto ele consegue
ferir tanto o coração do crente quanto o do próprio Deus.
Sendo Satanás um espírito vingativo, malicioso, traiçoeiro,
enganador, nós devemos orar continuamente: “não nos
conduza em tentação”, para que Satanás não prevaleça sobre
nós.
Satanás anda inquieto como um leão à procura da sua caça.
Ele rodeará o mar para fazer um prosélito. Ele não desperdiça
o seu tempo e está sempre ocupado e se nós o repelirmos ele
não desistirá, e virá novamente sobre nós com uma tentação.
Se ele conseguir uma pequena vantagem sobre nós numa
tentação, ele procurará a todo custo levar isto até o seu ponto
extremo.
308
Ele tem uma variedade de tentações para usar e não se limita
a um único tipo de tentação. Se não conseguir prevalecer com
um tipo, ele usará outro; se não puder tentar com cobiça,
tentará com orgulho; se não conseguir amedrontar o homem,
ele o tentará com presunção; se não conseguir levá-lo a
profanar, tentará torná-lo formalista; e se não conseguir
conduzir ao vício, tentará conduzir ao erro. Para isto enganará
através de revelações falsas e toda forma de artifício que
estiver ao seu alcance. Por isso precisamos orar: “não nos
conduza em tentação”.
Satanás é representado como sendo o grande dragão
vermelho que lançou por terra a terça parte das estrelas do
céu (Apo 12.3,4); é chamado também de valente (Lucas 11.21) e
de príncipe deste mundo (João 14.30). Assim, embora ele
tenha perdido a sua santidade original, no entanto não foi
retirado dele o poder que Deus lhe havia dado.
Sendo um espírito ele pode influenciar a imaginação das
pessoas envenenando-a com pensamentos ruins. Foi ele
quem colocou no coração de Judas o pensamento de trair a
Cristo (João 13.2).
Embora ele não possa compelir a vontade, no entanto pode
apresentar objetos agradáveis aos sentidos exercendo grande
influência sobre eles. Ele pode usar as artes para gerar
idolatria nos corações das pessoas em relação aos artistas. E
faz isto especialmente com a música. Ele pode seduzir o
coração com riquezas terrenas tal como fizera com Acã
fazendo-lhe cobiçar as riquezas condenadas de Jericó nos dias
de Josué. Foi Satanás que influenciou Davi a fazer o censo que
lhe havia sido proibido por Deus (I Crôn 21.1). Ele pode fazer
com que uma faísca de cobiça se transforme numa chama.
Sendo um espírito ele pode encher as nossas mentes de
tentações de maneira que tenhamos dificuldade para
discernir se elas vêm dele ou de nós mesmos. Assim com um
pássaro pode chocar o ovo de um outro pensando que seja seu;
nós podemos estar chocando as influências do diabo
pensando que elas vêm dos nossos próprios corações.
Quando Pedro tentou dissuadir Cristo de sofrer, morrendo na
cruz, ele pensou que isto vinha do afeto que tinha pelo seu
Mestre, sem saber que a mão de Satanás estava naquilo (Mt
16.22).
309
E se Satanás tem este poder de instilar tentações sem que nós
o saibamos, nós temos necessidade de orar para não sermos
conduzidos em tentação. É preciso orar a Deus por livramento
porque é muito difícil distinguir entre aquilo que procede de
insinuações diabólicas e aquilo que procede de nós mesmos.
Mas podemos pelo menos tentar identificar a origem da
tentação, se do nosso coração ou do Inimigo, e uma das
maneiras de fazer tal identificação é que a tentação de Satanás
nos vem de maneira súbita, como um dardo que é atirado (Ef
6.16), e já a tentação que é originada no coração começa
através de graus, de maneira vagarosa procurando obter o
consentimento da mente. Em segundo lugar, a tentação que é
originada em nosso próprio coração não é tão terrível e não
agita e assusta a alma como as que são de origem satânica, que
chegam a insinuar até mesmo blasfêmia e suicídio. Em
terceiro lugar, quando são lançados maus pensamentos na
mente nós os detestamos e lutamos contra eles, e fugimos
deles como Moisés fugiu da serpente, e isto demonstra que a
mão de Joabe está nisto (II Sm 14.19), isto é, foi Satanás quem
produziu estes movimentos impuros.
O poder de Satanás na tentação é oriundo da longa
experiência que ele adquiriu através dos séculos e milênios
nesta arte. E esta experiência do diabo aumenta o nosso
perigo, e nós temos portanto necessidade de orar: “não nos
conduza em tentação”.
Satanás é um assassino que está no mundo para roubar, matar
e destruir, e devemos nos prevenir dele vigiando atentamente
os seus passos, de maneira que não venhamos a cair nos seus
laços.
Sigamos o conselho de Cristo vigiando e orando em todo o
tempo para não entrarmos em tentação (Mt 26.41).
Muitos perguntam por que Deus permite que os seus santos
sejam esbofeteados pelas tentações de Satanás.
Primeiro ele permite isto para que sejam provados. Satanás
usa a tentação com o fim de levar a efeito os propósitos
malignos a que nos referimos anteriormente, e Deus permite
a tentação para que sejamos provados de modo que possamos
crescer na fé através da resistência a Satanás e do aprendizado
da dependência e obediência ao Senhor para poder vencêlo. E quando o diabo é vencido pela graça e coragem do crente
310
em ficar firme no testemunho da verdade contra as mentiras
do diabo o Senhor e o evangelho são honrados. Através das
tentações Deus mantém os seus filhos livres do orgulho
espiritual, tal como permitira que Paulo fosse esbofeteado por
um mensageiro de Satanás para permanecer humilde
perante Ele depois de ter tido as visões gloriosas do terceiro
céu. Isto impediu que ele se gloriasse em si mesmo, e
soubesse que não foi por nenhum mérito pessoal e justiça
própria que lhe fora dada tal experiência gloriosa por Deus (II
Cor 12.7).
Deus também permite que seus filhos sejam tentados para
que possam adquirir experiência para poderem confortar a
outros (II Cor 2.11).
As tentações também nos revelam que o céu não é aqui neste
mundo. Que a terra foi amaldiçoada por causa do pecado e não
é nenhum paraíso com as múltiplas operações do diabo.
Definitivamente o mundo não é o nosso lugar de descanso e
devemos aspirar por uma pátria superior que é o céu.
Mas enquanto caminhamos neste mundo devemos nos
consolar com o pensamento relativo à verdade que Satanás e
até mesmo uma legião inteira de demônios não podem tocar
sequer um porco se Cristo não lhes der licença, como bem
aprendemos da história do gadareno. Se Satanás e os
demônios tivessem liberdade para agirem com total
liberdade, nenhuma alma seria salva.
E lembremos que se não é possível impedir a tentação, no
entanto nunca será da vontade de Deus que nós caiamos nela.
O peixe não será fisgado pelo anzol se não morder a isca.
Vencendo a tentação nós pisamos na cabeça da serpente
juntamente com Cristo. O diabo é vencido quando usamos
toda a armadura de Deus e estamos revestidos do Senhor e da
força do seu poder.
Quanto mais um crente for tentado mais ele lutará contra a
tentação e ficará cada vez mais experimentado nas batalhas
espirituais, amando a santidade e detestando as tentações
através das quais o diabo procura afastá-lo da sua firme
posição na fé. Assim as tentações cooperam indiretamente
para o aumento da fé e das demais graças de um crente. E
aquele que vence a tentação é confortado por Deus, assim
311
como Cristo foi servido pelos anjos depois de ter vencido o
diabo no deserto.
Mas ainda que um crente autêntico caia numa tentação,
contudo a semente da vida eterna está nele (I João 3.9). A graça
pode ser abalada mas não destruída, e o diabo sabe muito bem
disto. Ele não tentará lançar um crente no inferno, porque
sabe que isto é impossível, mas tentará neutralizar as suas
ações contra ele.
Deus nos aperfeiçoa em força e poder vencendo as tentações.
Que poder há num homem que não consegue vencer a menor
tentação?
Veja consequentemente que a vida de um crente não é
nenhuma vida fácil. É uma vida militar: há um Golias no
campo de batalha para lutarmos contra ele na força do
Senhor.
E não devemos estar nesta guerra contra as múltiplas
tentações do Inimigo, lutando sozinhos. Nós devemos estar na
comunhão dos santos para sermos bem-sucedidos nesta
guerra de muitas batalhas. A comunhão e a intercessão dos
santos é o melhor remédio contra a tentação.
E se você não deseja ser vencido pela tentação esteja sóbrio (I
Pe 5.8). A sobriedade consiste no uso moderado das coisas
terrenas. Um desejo imoderado destas coisas coloca os
homens na armadilha do diabo (I Tim 6.9). Aquele que ama as
riquezas imoderadamente as adquirirá injustamente. Acabe
se apoderou do vinhedo de Nabote derramando o seu sangue.
Aquele que está embriagado com o amor ao mundo, nunca
estará livre de cair em tentação.
Nós nos depararemos com o tentador em todos os lugares e
por isso devemos estar sempre empunhando a espada do
Espírito que é a Palavra de Deus. É com a verdade da Palavra
que se vence o pai da mentira. Quando usamos a Palavra em
nossas tentações e nos amparamos nas suas verdades e não
nos nossos sentimentos na hora da aflição e da tentação, o
Inimigo baterá em retirada e Deus dará paz às nossas mentes
e corações.
“6 Não estejais inquietos por coisa alguma; antes as vossas
petições sejam em tudo conhecidas diante de Deus pela
oração e súplica, com ação de graças.
312
7 E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará
os vossos corações e os vossos sentimentos em Cristo Jesus.”
(Fp 4.6,7).
Não há qualquer tentação que não tenha uma resposta
adequada na Bíblia pela qual podemos enfrentá-la. Por
exemplo, se o diabo insinuar a prática do adultério, nós
podemos dizer que está escrito: “não adulterarás”, ou que
“Deus julgará os adúlteros”. Se ele nos tentar a endurecer o
nosso coração contra qualquer pessoa, por algum dano ou
ofensa que nos tenha causado nós devemos dizer que está
escrito: “Amai os vossos inimigos”, “bendizei os que vos
perseguem“, “não vos vingais a vós mesmos”, “vençamos o
mal com o bem” etc.
Fujamos também de toda fonte de tentação. Os nazireus não
podiam comer ou beber qualquer produto da videira,
especialmente bebida forte, para que isto não ocasionasse
intemperança. Havia nesta prática de consagração da
dispensação da Lei uma clara figura de que os crentes que são
nazireus de Deus, pela consagração a Ele durante todo o
tempo de suas vidas, têm o dever de se guardarem da
intemperança em todas as suas formas. Se não nos guardamos
de intemperanças como a do beber e do comer
desordenadamente, por exemplo, nada adiantará orarmos
para que Deus não nos conduza em tentação.
Sendo criteriosos em todo o nosso modo de viver podemos
então contar com o poder das nossas orações. A oração
atormenta o diabo e o coloca em fuga, livrando-nos de cair na
tentação. Mas sejamos humildes enquanto oramos sabendo
que é o poder de Jesus que faz o diabo fugir, e não o nosso
próprio poder. Lembremos que a quem se humilha Deus
concede maior graça.
Para não cairmos em tentação devemos fugir de argumentar
com Satanás. Eva começou a entrar em desvantagem com o
Inimigo quando começou a argumentar com ele. Nós
podemos afirmar a verdade de Deus para o diabo mas se
entramos em considerações vãs argumentando com ele ou
com os seus instrumentos, nós poderemos acabar
persuadidos e vencidos pelo erro, ou abalados em nossas
convicções se não tivermos maturidade suficiente de fé.
Mesmo crentes maduros que têm as faculdades exercitadas
313
para discernirem tanto o bem quanto o mal devem evitar
contendas de palavras com os que se opõem à verdade, para
não ficarem expostos ao mal, e nem lançarem pérolas aos
porcos.
“23 E rejeita as questões loucas, e sem instrução, sabendo que
produzem contendas.
24 E ao servo do Senhor não convém contender, mas sim, ser
manso para com todos, apto para ensinar, sofredor;
25 Instruindo com mansidão os que resistem, a ver se
porventura Deus lhes dará arrependimento para conhecerem
a verdade,
26 E tornarem a despertar, desprendendo-se dos laços do
diabo, em que à vontade dele estão presos.” (II Tim 2.23-26).
Satanás foi vencido por Cristo na cruz, e não há portanto o que
se argumentar com um inimigo vencido. Devemos fazer valer
a vitória da cruz sobre ele vivendo de modo santo em inteira
firmeza de fé. A vitória sobre o diabo está diretamente
relacionada ao grau da nossa sujeição a Deus e à sua vontade.
Paulo não desconhecia os estratagemas de Satanás (II Cor 2.11)
porque estava experimentado em ver suas tentações tanto em
sua vida como na vida dos seus irmãos em Cristo. E de igual
modo nós devemos estar bem instruídos acerca dos
movimentos do Inimigo para destruir a nossa fé, de maneira
que possamos neutralizar os seus intentos malignos.
Devemos ser gratos a Deus por nos dar a vitória por meio de
Cristo Jesus (I Cor 15.57). É a graça do Senhor que nos conduz
em triunfo nas batalhas contra o Inimigo. Por isso somos
ensinados a orar: “não nos conduza em tentação” porque isto
não nos traz somente a eficácia, como também o
reconhecimento de qual é a fonte que nos garante a vitória
sobre as tentações.
A segunda e última parte da sexta petição da oração do Pai
Nosso é: ”mas livra-nos do mal.”. Há muito mais nesta petição
do que é expressado, porque o pedido para livramento do mal
tem em vista que possamos fazer progresso em nossa devoção
a Deus.
“Ensinando-nos que, renunciando à impiedade e às
concupiscências mundanas, vivamos neste presente século
sóbria, e justa, e piamente,” (Tito 2.12).
314
De um modo geral, quando nós oramos para sermos livrados
do mal, nós estamos orando para sermos livrados do mal do
pecado, e particularmente, como parece estar insinuado no
nosso texto de Mt 6.13, da prática do pecado que seria oriunda
de cairmos em tentação, o que se pode inferir do uso da
conjunção adversativa “mas” do texto “mas livra-nos do mal”
(allá, que se encontra no original grego significa contudo,
mas, entretanto), indicando assim que ao pedirmos a Deus
para não sermos conduzidos em tentação, está implícito que
Ele nos livrará de muitas tentações, mas também, para o
nosso próprio proveito, como vimos antes, permitirá que
sejamos provados com muitas tentações, e neste caso, o
Senhor nos ensinou a orar a pedir a Deus que nos livre do mal,
de maneira que não sejamos vencidos pelas tentações de
Satanás, que visam produzir danos e levar-nos a pecar.
Quando nós oramos para sermos livrados do mal nós não
estamos orando obviamente para sermos livrados de modo
final e imediato do princípio do pecado que opera em nós. Nós
não podemos nos livrar de modo definitivo desta víbora
enquanto estivermos vivendo neste mundo, mas podemos
pedir a Deus para nos livre cada vez mais das suas picadas
venenosas.
Quando nós consideramos o que é o pecado de maneira
correta e fazendo uma justa avaliação do mal execrável que
ele é, nós entendemos melhor porque devemos orar “mas
livra-nos do mal”.
O pecado é mau em sua natureza porque é uma transgressão
contra Deus. É a transgressão da Lei da Majestade Divina (I
João 3.4). Assim é um crime de lesa majestade.
A palavra hebraica para pecado (hatat) significa ofensa,
rebelião. E no grego, a palavra para pecado é amartia, e
significa errar o alvo.
Assim o pecado é tanto uma rebelião contra Deus, como não
acertar o alvo quanto à sua vontade em relação ao que
deveríamos ser e o modo de procedermos em nossa vida.
O pecado é um ato de alta ingratidão para com Deus. Ele
alimenta o pecador, é misericordioso e longânimo para com
ele, mas o pecador se esquece das suas misericórdias e abusa
da sua longanimidade para com ele.
315
O pecado faz com que o homem se torne escravizado à sua
própria vontade e à de Satanás. Somente o homem que estiver
livre da tirania do seu próprio ego e do diabo pode de fato
servir a Deus e viver de modo que exerça domínio sobre sua
vontade e sobre o diabo, ao invés de ser dominado por ambos.
O
pecado
produz
um
estado
ruim
na
alma
incompatibilizando-a de ter paz, harmonia e comunhão com o
Espírito de Deus. Quando o pecado estiver reinando o Espírito
Santo estará entristecido, mas quando é a graça que está
reinando o pecado é dominado e vencido pelo Espírito.
O pecado é a causa da aflição, e a causa é pior que o efeito. O
pecado traz todo tipo de dano; doença, espada, escassez e todo
os julgamentos em seu útero. Apodrece o nome, consome a
propriedade e arruína o corpo. Causa motins, divisões e
massacres. Por causa do pecado tudo morre no mundo, e o
próprio mundo passará pelo juízo de Deus por causa do
pecado.
A aflição propriamente dita pode servir de alerta para que nos
voltemos para Deus confessando os nossos pecados; e assim,
se produz tristeza para arrependimento torna-se em algo
proveitoso para nós, porque se transforma num imã que nos
puxa para perto de Deus. Assim no meio da adversidade
externa pode haver paz interior.
Muitas aflições são o resultado das repreensões de um Pai de
amor (Apo 3.9) que visa conduzir-nos através delas ao
arrependimento. Nós devemos então aprender a chorar não
propriamente pelas nossas aflições, mas pelo que geralmente
dá causa a elas que é o pecado.
Assim, os santos podem se alegrar em suas aflições (I Tes 1.6;
Hb 10.34), especialmente naquelas que lhes sobrevêm por
causa do seu testemunho em favor da verdade divina.
Nós podemos nos alegrar nas aflições, mas não no pecado, de
maneia que não podemos nos alegrar naquelas aflições que
foram originadas por causa dos nossos próprios pecados. É
preciso saber distinguir entre aflições e aflições. Nós
podemos e devemos ser gratos a Deus por estas aflições
originadas da prática do pecado porque são como sirenes nos
alertando para nos arrependermos do mal, e pedirmos
humildemente a Deus que nos livre do mal que deu causa às
nossas aflições, a saber, neste caso, o pecado.
316
O pecado é questão de vergonha e aflição e não de alegria (Os
9.1; II Sm 24.10).
Agora os sofrimentos que suportamos por amor a Cristo, tal
como os que Jó padeceu em sua paciência, serão
transformados numa coroa de glória, porque através deles
nós testificamos da nossa fidelidade e obediência à vontade de
Deus (Tg 5.2).
Com o pecado ocorre o oposto, porque se transforma a glória
em vergonha, tal como ocorreu com os filhos de Eli quando
tinham pecado e profanado o sacerdócio deles.
O zelo e a constância dos mártires em seus sofrimentos
eternizaram os nomes deles. Quando um crente está sofrendo
segundo a vontade de Deus como Pedro, quando estava na
prisão (At 12.5) Deus fará com que outros santos intercedam
em oração a favor dele. Mas quando um homem peca
deliberadamente e de modo escandaloso, ele terá as lágrimas
amargas dos santos e somente censuras, e ele se
transformará num fardo para os demais (Sl 31.2).
O aguilhão da morte é o pecado (I Cor 15.26), isto é, o pecado é
a causa da morte. A morte física faz apenas separação entre o
corpo e o espírito, mas o pecado sem arrependimento é uma
morte pior porque faz separação entre o espírito e Deus.
O pecado é pior que o inferno porque o inferno foi criado por
Deus para juízo do diabo, seus anjos caídos e dos homens
impenitentes. Mas o pecado não foi criado por Deus, antes é
um monstro criado pelo diabo. Os tormentos do inferno são
um fardo apenas para os pecadores impenitentes, mas o
pecado é um fardo para Deus. Como não oraríamos então
pedindo a Deus que nos livre do mal que é o pecado?
Necessitamos orar assim porque há pecados de omissão e
pecados ocultos que nem sempre conseguimos reconhecer e
que por conseguinte não confessamos. Mas tal como Davi
devemos também pedir a Deus que nos livre destes pecados.
Devemos fugir não somente dos pecados aparentes, que
aparecem, como também de toda aparência de mal. A
aparência do bem é muito pequena mas a aparência do mal é
muito grande e deve ser evitada a todo custo, porque ainda
que algo não seja pecaminoso, mas parece ser pecado, deve
então ser evitado. A aparência do mal pode escandalizar a
outros (I Cor 8.12).
317
O pecado original não pode ser erradicado, mas deve ser
mortificado. Os pecados irrompem porque não é mortificado
o pecado no coração de onde procede todo tipo de mal. As
primeiras evidências de orgulho, cobiça, impureza e paixão
devem ser suprimidos antes que cresçam subjugando o
espírito, a alma e o corpo. A expressão que o mal deve ser
cortado pela raiz bem se aplica à mortificação do pecado.
É preciso cultivar o temor de Deus no coração, sabendo que
Ele tudo vê e julga, que daremos contas de tudo o que tivermos
feito por meio do corpo no Tribunal de Cristo, e isto muito nos
ajudará a ter o devido temor de viver no pecado. E isto será
saúde para nós mesmos e para muitos outros que forem
alcançados pelo nosso bom testemunho.
Aquele que tem o temor de Deus vigia os principais portais da
alma que são os olhos e os ouvidos, e também cuida de vigiar
os seus pensamentos, porque é por estas portas que o
estímulo para o pecado costuma entrar. Um simples
pensamento de vingança pode conduzir a um assassinato ou a
uma ira e ódio injustificados. Assim a maioria dos pecados são
decorrentes da falta de cuidado com a vigilância.
O amor a Deus sendo continuamente cultivado no coração é
uma poderosa arma contra a força e insinuações do pecado. O
amor pela glória e santidade de Deus fará com que tenhamos
um objetivo nobre e elevado em nos cuidar não pecando
contra Ele.
Se você deseja ser livrado por Deus do mal mantenha-se então
ocupado em sua obra e você sentirá de perto que é impossível
servir a Deus sem santificação. De outro modo seremos
hipócritas falando a outros de uma santidade que falta em nós
mesmos.
Devemos considerar que quando oramos para que Deus nos
livre do mal, nós estamos pedindo que Ele nos livre do mal do
nosso coração, porque é uma fonte envenenada de onde flui
todo tipo de pecados (Mt 7.21). Satanás não poderia prevalecer
sobre nós tentando-nos a praticar o pecado se nós não lhe
déssemos consentimento em nossos corações. Tudo o que ele
pode fazer é colocar a isca, e a nossa falta é mordê-la. Então
oremos para que Deus nos livre do mal do nosso próprio
coração.
318
Também, quando fazemos esta oração pedindo a Deus que
nos livre do mal nós estamos pedindo para que nos livre do
mal de Satanás (Mt 13.19; Ef 6.12; I Pe 5.8; Zac 3.1).
Satanás encheu o coração de Aananias para que mentisse ao
Espírito Santo (At 5.3).
Finalmente, quando oramos para sermos livrados do mal,
além de orarmos pelo livramento do mal do nosso próprio
coração e de Satanás nós estamos orando para sermos
livrados do mal do mundo. Em Cristo nós somos livrados do
pecado, do diabo e do mundo. A obra de redenção consiste
também em nos desarraigar deste mundo mau e tenebroso
(Gál 1.4; Tg 1.27).
O mundo está cheio de armadilhas. Companhia é uma
armadilha, bem como recreação e riquezas são armadilhas.
A luxúria da carne é beleza e sensualidade; a luxúria dos olhos
é dinheiro e o orgulho da vida é fama e honra mundanos; esta
é a trindade do homem natural. O mundo é um inimigo
lisonjeiro que nos trai beijando. Os prazeres do mundo são
como o ópio que dão ao homem uma falsa sensação de
segurança.
É difícil beber o vinho da prosperidade e não ficar embriagado
com ele. Por causa da corrupção do pecado original que está
nas massas em geral da humanidade, o mundo é mau.
O mundo nunca incentivará portanto que os homens vivam
piedosamente e busquem a Deus, e nisto se torna um grande
perigo para os crentes que não são como os anjos eleitos,
senão pecadores como os seus semelhantes, que terão no
mundo um forte atrativo para retornarem ao velho modo de
vida, porque o mundo jaz no maligno, e o imenso imã do
mundo exerce uma grande atração sobre o imã do pecado que
reside na nossa natureza terrena.
Os cuidados terrenos sufocam a semente da Palavra,
conforme Jesus nos ensinou na parábola do semeador. E um
homem que tem a sua mente ocupada deste modo com as
coisas terrenas não consegue se ocupar com as coisas
celestiais, espirituais e divinas.
O mundo odeia portanto os crentes (João 15.19) porque eles
vivem num plano de vida (espiritual e na luz) que é diferente
do plano em que o mundo vive (somente terreno). O mundo
odiou a Cristo e também odiará os crentes que são fiéis a
319
Cristo porque protestam contra o seu pecado, e a luz tanto de
Cristo quanto dos crentes não pode ser amada por aqueles que
amam mais as trevas do que a luz.
Então nós devemos orar para que Deus nos livre do mal deste
mundo mau.
Embora seja ordenado aos crentes que amem os seus
inimigos, este (o mundo) é um inimigo que nós não devemos
amar (I João 2.15).
Ainda está incluído indiretamente na nossa oração por
livramento do mal que também façamos o bem, porque não é
suficiente que sejamos livrados do mal, porque isto tem um
propósito, conforme já comentamos anteriormente, que é
para que possamos fazer progresso em santidade. Ser livrados
de pecar não é o bastante, a menos que nós estejamos
apegados à virtude. A Bíblia assim une ambos os deveres (Sl
34.14; Rom 12.9; 13.14; Is 1.16,17; II Cor 7.1).
Um homem pode se privar do mal, contudo ele pode ir para o
inferno por não fazer o bem, porque toda árvore que não der
bom fruto será cortada e queimada (Mt 3.10).
Oremos sempre então para que Deus nos livre do mal, para
que possamos abundar no testemunho da prática das boas
obras que Ele preparou de antemão para que andássemos
nelas.
Jejum
Tradução e adaptação de Silvio de um texto de D. M. Lloyd
Jones.
“16 Quando jejuardes, não vos mostreis contristados como os
hipócritas; porque eles desfiguram os seus rostos, para que os
homens vejam que estão jejuando. Em verdade vos digo que já
receberam a sua recompensa.
17 Tu, porém, quando jejuares, unge a tua cabeça, e lava o teu
rosto,
18 para não mostrar aos homens que estás jejuando, mas a teu
Pai, que está em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te
recompensará.” (Mt 6.16-18)
320
Passamos agora à análise da terceira ilustração que nosso
Senhor usou quanto ao modo em que devemos nos conduzir
nesta questão da justiça pessoal. A primeira foi sobre as
esmolas, a segunda sobre a oração, e agora esta terceira sobre
o jejum.
Quanto ao jejum, nosso Senhor, nesta situação concreta
estava preocupado somente com um aspecto do tema, e era a
tendência de fazer estas coisas para ser vistos pelos homens.
Lhe preocupava este aspecto exibicionista, que em
consequência devemos necessariamente examinar. Porém,
me parece que, diante da negligência do tema por nossa parte,
é adequado e proveitoso também que o examinemos num
forma mais geral, antes de chegar ao ponto específico que é
enfatizado por nosso Senhor.
Examinemo-nos deste esta perspectiva. Qual é na realidade o
lugar do jejum na vida cristã? Em que ponto entra, segundo o
ensino da Bíblia? Esta é a resposta: É algo que é ensinado no
Antigo Testamento. Sob a lei de Moisés, os filhos de Israel
receberam o mandamento de jejuar uma vez por ano, no dia
da expiação nacional. Mais adiante lemos que, devido a certas
emergências nacionais, as pessoas escolhiam certos dias de
jejum adicionais. Porém o único jejum que Deus mesmo
ordenou de forma direta foi esse grande jejum anual.
Quando passamos para a época do Novo Testamento, vemos
que os fariseus jejuavam duas vezes por semana. Deus nunca
lhes mandou que o fizessem, porém eles o faziam, e o
converteram numa parte vital da sua religião. Sempre existe a
tendência, entre certas classes de pessoas religiosas, de ir
mais além da Bíblia, e esta é posição que os fariseus adotaram.
Se examinarmos o ensino de nosso Senhor, encontramos que,
se bem que nunca ensinou o jejum de forma direta, o ensinou
de forma indireta. Em Mateus 9 nos diz que se lhe formulou
uma pergunta específica acerca do jejum. Lhe disseram: “Por
que nós e os fariseus jejuamos muitas vezes, e teus discípulos
não jejuam?” Jesus lhes disse: “Acaso podem os que estão de
bodas terem luto quando o esposo está com eles? Porém virão
dias em que o esposo lhes será tirado e então jejuarão!”
Me parece que nesta passagem, em forma muito clara, está
implícito o ensino do jejum e quase diria a defesa do mesmo.
É evidente, de todos os modos, que nunca o proibiu. De fato, o
321
ensino que estamos examinando neste momento,
obviamente implica a aprovação do mesmo. O que diz é:
“quando jejuares, unge a tua cabeça, e lava o teu rosto,” de
maneira que, naturalmente, era algo que nosso Senhor
considerava justo e bom para os cristãos. E recordemos que
Ele mesmo jejuou quarenta dias e quarenta noites quando
esteve no deserto submetido à tentação do diabo.
Logo, passando do ensino e prática de nosso Senhor às da
Igreja Primitiva, vemos que foi algo que os apóstolos
praticaram. Na Igreja de Antioquia, quando enviaram a Paulo
e a Barnabé em sua viagem apostólica, o fizeram somente
depois de terem se dedicado à oração e ao jejum. De fato, a
Igreja Primitiva, diante de qualquer ocasião importante ou
diante da necessidade de tomar uma decisão vital, parecia
praticar sempre, não somente a oração, como também o
jejum. O apóstolo Paulo ao se referir ao mesmo e à sua vida,
fala acerca de ter jejuado frequentemente. Foi claramente
algo que tomou parte regular de sua vida. Os que se
interessam pela crítica textual, recordarão que em Mc 9.29 se
cita a Nosso Senhor dizendo:” Esta casta não pode ser expulsa,
senão com oração e jejum!”. É provavelmente acertado dizer
que a palavra “jejum” deveria ser eliminada de acordo com os
melhores documentos e manuscritos, porém, isto não tem
importância quanto ao ponto em geral, porque possuímos
todos os outros ensinos que mostram muito claramente que o
Novo Testamento inculca, em forma concreta, o jejum como
algo adequado e valioso. E quando examinamos a história da
Igreja, encontramos exatamente o mesmo. Os santos de Deus
de todas as épocas e em todos os lugares não somente têm
crido no jejum, senão que o têm praticado. Assim foi o caso
dos reformadores protestantes, dos Wesleys e Whitefield.
Tenho de admitir que o praticaram muito, antes que
houvessem se convertido de verdade; porém seguiram
jejuando também depois de sua conversão. E quem conhece a
vida deste grande cristão chinês, o pastor Hsi da China,
recordarão que quando se falava diante de alguma
dificuldade,
ou
problema
novo
ou
excepcional,
invariavelmente jejuava, além de orar. O povo de Deus tem
crido que o jejum não somente é bom, senão que é de grande
valor e importância sob certas condições.
322
Se estes são, pois, os antecedentes históricos, examinemos
agora este assunto de uma forma um pouco mais direta. Que
é exatamente o jejum? Qual é seu propósito? Não cabe dúvida
que, em última instância, é algo que se baseia na
compreensão da relação entre corpo e espírito. O homem é
corpo, mente e espírito, os quais estão intimamente
relacionados entre si e atuam estreitamente um sobre o
outro. Os distinguimos porque são diferentes, porém, devido
a essa mútua relação e interação, não devemos separá-los.
Não há dúvida de que os estados e condições corporais físicos
influem na atividade da mente e do espírito, de modo que o
jejum deve ser considerado dentro dessa relação peculiar de
corpo, mente e espírito. Portanto, o jejum significa
abstinência de comida com fins espirituais. Esta é a noção
bíblica do jejum que deve se distinguir do que é puramente
físico. A noção bíblica do jejum é que, por certas razões e fins
espirituais, as pessoas decidem abster-se de comer, este
ponto é muito importante, e por isso devemos apresentá-lo
também de uma forma negativa. Recentemente li um artigo
sobre este tema, e o escritor se referia a essa afirmação do
apóstolo Paulo em I Cor 9.27, onde diz: “Ponho meu corpo em
servidão!”. O apóstolo diz que o fazia a fim de poder trabalhar
com mais dedicação. O autor do artigo afirmava que aqui
teríamos uma ilustração do jejum. Isto não é mais do que o que
chamaria parte da disciplina geral do homem. Em todo
momento tem que manter seu corpo submetido, porém isto
não significa que sempre deve jejuar.
O jejum é algo excepcional, algo que o homem deve fazer de
vez em quando com um fim especial; tanto que a disciplina
deve ser constante. Por isso não pode aceitar textos como esse
de “ponho meu corpo em servidão”, e “mortificai vossos
membros, que estão na terra”, como parte do ensino relativo
ao jejum.
A moderação no comer é parte da disciplina do corpo; é uma
forma muito boa de manter o corpo em servidão, porém não é
jejum. Jejuar significa abster-se de comer por alguns
propósitos especiais, tais como a oração, a meditação ou a
busca de Deus por alguma razão específica, ou sob alguma
circunstância excepcional.
323
Para completar este ponto, deveríamos acrescentar que o
jejum, se o concebemos adequadamente, não somente deve
se limitar à comida e bebida. O jejum deveria realmente
incluir também a abstinência de tudo o que é legítimo em si
mesmo e por si mesmo, com o fim de alcançar alguma meta
espiritual especial.
Muitas funções corporais que são boas e normais e
perfeitamente legítimas, por razões peculiares, em certas
circunstâncias, deveriam ser submetidas a controle. Isto é
jejuar. Esta seria uma definição geral do que significa jejuar.
Há certas maneiras incorretas de jejuar. Eis aqui uma delas: se
jejuamos de forma mecânica, ou simplesmente por jejuar, me
parece que estamos violando o ensino bíblico relativo a este
assunto. Em outras palavras, se alguém faz do jejum um fim
em si mesmo, algo do qual alguém diz: “bem, como sou
cristão, tenho que jejuar tal dia e tal hora do ano, porque é
parte da religião cristã”, mais valeria que não o fizesse. O
elemento essencial do jejum fica perdido quando se age desta
forma.
Isto não é exclusivo do jejum. Não vimos por acaso o mesmo
no assunto da oração? É bom que as pessoas, se podem, que
dediquem certos momentos especiais à oração. Porém, se
elaboro meu programa para o dia e digo que a tal hora devo
orar, e oro somente para cumprir tal programa, já não estou
orando. O mesmo se dá em relação ao jejum. Há pessoas que
o consideram precisamente desta maneira. São cristãos, mas
preferem estar sob certa espécie de lei. Lhes agrada estar
debaixo de regulamentos. Lhes agrada que lhes digam
exatamente o que devem fazer e o que não devem fazer. Num
dia específico da semana não devem comer carne, e assim
sucessivamente. Isto não é vida cristã, senão não comer num
determinado dia. Logo, se em certo período do ano alguém
deve se abster de comer, ou comer menos. Há um perigo
muito sutil nisso, é uma violação do ensino bíblico. Nunca se
deve considerar o jejum como um fim em si mesmo.
Porém, a isto temos que agregar algo que já tenho indicado, e
que pode ser expressado assim: jamais se deve considerar o
jejum como uma parte da nossa disciplina. Alguns dizem que
é muito bom não comamos certas coisas um dia por semana,
ou então que em certo período do ano, nos abstenhamos de
324
outras. Dizem que é bom sob o ponto de vista da disciplina.
Porém a disciplina é algo que deve ser permanente. É algo
perpétuo. Sempre devemos nos disciplinar a nós mesmos.
Acerca disto não pode haver qualquer debate. Em todo tempo
devemos manter o corpo submetido.
Devemos jejuar somente quando o Espírito Santo nos guie a
fazê-lo, quando nos achamos empenhados em algum
propósito espiritual importante, não segundo regras, senão
porque sentimos que existe uma necessidade especial em
concentrar-nos inteiramente, com todo o nosso ser, em Deus
e na nossa adoração a Ele. Este é o momento de jejuar.
Tesouros na Terra e no Céu
“19 Não ajunteis para vós tesouros na terra; onde a traça e a
ferrugem os consomem, e onde os ladrões minam e roubam;
20 mas ajuntai para vós tesouros no céu, onde nem a traça
nem a ferrugem os consumem, e onde os ladrões não minam
nem roubam.
21 Porque onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu
coração.” (Mt 6.19-21)
O tema desta seção do Sermão do Monte é, como se
lembrarão, a relação do crente com Deus, enquanto seu Pai.
Nada há mais importante que isto. O grande segredo da vida,
segundo nosso Senhor, é vermos a nós mesmos e nos
considerarmos sempre como filhos de nosso Pai celestial. Se
o fizermos, nos veremos livrados de imediato de duas
tentações principais que assediam a todos nós nesta vida:
A primeira, é a tentação muito sutil que assedia a todo cristão
no assunto da piedade pessoal. “Como cristão tenho uma vida
privada, pessoal, de devoção”.
A este respeito nosso Senhor diz que a única coisa que importa
e tenho que considerar, é que os olhos de Deus estão postos
em mim. Não devo me importar com o que as pessoas dizem,
nem devo me interessar com o que penso de mim mesmo. Se
dou esmola, não devo dá-la para que outros me louvem. O
mesmo se aplica à oração. Não devo desejar dar a impressão
que sou um grande homem de oração. Se o fizer, de nada me
servirá. Não devo me interessar pelo que as pessoas pensem
325
de mim como homem de oração. O Senhor chama a nossa
atenção sobre isto. Devo orar como quem está na presença de
Deus. Os mesmos princípios se aplicam à questão da ajuda, e
vocês se recordarão como o examinamos em detalhes no
terceiro capítulo. Estas considerações nos conduzem ao final
do versículo 18 de Mateus 6.
A segunda, é quando chegamos ao versículo 19, no qual nosso
Senhor inicia outro aspecto deste grande tema, a saber, o
cristão que vive sua vida neste mundo numa relação com
Deus como seu Pai, envolvido em seus problemas, cheio de
preocupações, tensões e pressões. Na Bíblia, frequentemente
este problema é chamado “o mundo”.
Frequentemente dizemos que o cristão tem que enfrentar
nesta vida o mundo, a carne e o diabo. Nosso Senhor utiliza
esta tripla descrição de nosso problema e conflito. Ao tratar
desta questão da piedade pessoal, Ele se ocupa primeiro das
tentações que provêm da carne e do diabo. O diabo vigia muito
quando alguém é piedoso, e se ocupa em manifestar sua
piedade. Uma vez tratado isto, nosso Senhor passa a mostrar
que há outro problema, “o mundo”.
O que a Bíblia quer dizer com a expressão “o mundo”? Não
quer dizer o universo físico, ou simplesmente todo o conjunto
de pessoas, significa uma perspectiva e uma mentalidade,
significa uma forma de ver as coisas, uma forma de ver toda a
vida.
Um dos problemas mais delicados dos que tem que se ocupar
o cristão é este de sua relação com o mundo. Nosso Senhor
sublinha frequentemente que não é fácil ser cristão. Ele
próprio durante seu ministério terreno se viu tentado pelo
diabo. Também teve que fazer frente ao poder e sutileza do
mundo. O cristão se encontra na mesma posição. Há ataques
que lhe chegam tanto em sua vida privada, quanto no que diz
respeito ao mundo. E o mundo tem tudo o que pode fazer com
que o crente perca sua vida espiritual. Por isso é necessário
estar muito atento. E esta é uma luta na qual necessitamos de
toda a armadura de Deus, porque aquele que não a tiver será
derrotado. Não temos que lutar contra a carne e o sangue. É
uma luta séria, é um conflito violento.
Jesus nos ensina que este ataque do mundo, ou esta tentação,
do mundanismo, geralmente assume duas formas principais.
326
A primeira é o amor declarado pelo mundo. E a segunda é a
ansiedade, um espírito de preocupação ansiosa relativa ao
mundo. Jesus ensinou que ambos são igualmente perigosos.
O amor ao mundo é referido por Ele em Mt 6.19-24, e a
preocupação ansiosa é citada do verso 25 até o final do
capítulo (v. 34).
Devemos manter bem fixo diante de nós, que tudo o que Jesus
ensinou tinha por pano de fundo a nossa relação com o nosso
Pai celestial. Foi em função desta relação que Ele disse tudo
quanto nos ensinou no Sermão do Monte. Assim, não
podemos reduzir este seu ensino a uma série de regras e
normas, porque se o fizermos cairemos imediatamente no
erro do monasticismo ou do puro ascetismo. A Bíblia nos
ensina como vencer o mundo permanecendo nele, e não
tentando fugir dele em monastérios ou em práticas ascéticas
do tipo “não toques, não proves, não manuseies” (Col 2.21).
Afinal Deus tem disposto todas as coisas para o nosso
aprazimento, de modo que depositemos nele próprio a nossa
esperança, e não na instabilidade da riqueza (I Tim 6.17),
pensando, por um falso julgamento, que será na grande
quantidade de bens que acumularmos que teremos paz,
descanso e segurança.
Daí o mandado que o Senhor nos dá de não ajuntarmos
tesouros na terra, senão no céu (Mt 6.19,20). E o que Ele
ajuntou a isto, são razões para assim procedermos, porque no
mundo há aquilo que não há no céu, isto é, ” traça e ferrugem
que corrói, e ladrões que escavam e roubam.”.
Veja que Jesus não diz: “não ajuntem dinheiro”, mas “não
ajuntem tesouros”. Tesouro é uma palavra muito ampla que
não inclui apenas dinheiro. Significa algo muito mais
importante. Nosso Senhor se ocupa aqui nem tanto com
nossas possessões, quanto de nossa atitude diante dessas
possessões. Não importa o que o homem possa ter, senão o
que ele pensa acerca da riqueza, a atitude que tem para com
ela. Em si mesmo não há nenhum pecado em ter riqueza
material, o que pode ser mal é a relação do homem com sua
riqueza. E o mesmo se pode dizer de qualquer coisa que o
dinheiro possa comprar.
Nos é imposto o dever de aprendermos a estarmos contentes
com Deus e em Deus, em toda e qualquer situação, mas
327
também nos é imposto o dever de sermos diligentes, de modo
que ninguém pode alegar que está contente com a sua
penúria por motivo da sua falta de diligência em trabalhar, de
modo que se diz que aquele que não trabalha também não
coma. Se tudo o que estivermos alcançando através da nossa
diligência em trabalhar para o nosso sustento e de outros é a
pobreza, então estejamos contentes com isto, porque é isto o
que nos tem reservado a Providência. Mas se a nossa pobreza
é extrema por conta da nossa falta de empenho, por causa da
nossa indolência, então não temos porque estar contentes,
senão entristecidos pelo nosso pecado de não atendermos a
norma divina de sermos diligentes em todas as coisas.
O nosso contentamento deve estar em Deus que sempre
suprirá as nossas necessidades, por sermos seus filhos, tal
como Jesus nos ensina acerca disto no Sermão do Monte. O
problema reside na nossa atitude diante da vida neste mundo.
Nosso Senhor se ocupa aqui das pessoas que procuram, nesta
vida, sua satisfação principal ou mesmo total, isto é, somente
por meio das coisas que pertencem ao mundo.
Jesus nos adverte que os interesses e esperanças dos homens
não devem se limitar a esta vida. E assim tanto pobres quanto
ricos necessitam dar atenção a esta exortação de não
juntarem tesouros na terra. Não importa o que seja, pequeno
ou grande, o seu tesouro é o que é tudo para você, é aquilo para
o qual você vive. Este é o perigo para o qual Jesus nos alerta
nesta passagem do Sermão do Monte.
Isto nos dá uma ideia do que Ele quer dizer com “tesouros na
terra”. Vemos que é algo quase sem limite, pois pode incluir
dinheiro, bens, cônjuges, filhos, honrarias, posições, situação
financeira, carreiras profissionais, seja o que for, desde que se
relacione apenas a esta vida e a este mundo.
Em relação a estas coisas devemos ter o cuidado para que elas
não se convertam no nosso tesouro, porque onde estiver o
nosso tesouro será ali que estará o nosso coração, e nós somos
chamados pelo nosso Pai a termos o nosso tesouro nas coisas
espirituais, celestiais, divinas, isto é, naquilo que está no céu e
que procede do céu, e não naquilo que é da terra e que procede
da terra e termina nela.
Quando o coração se apega àquilo que é deste mundo sempre
ocorrerá um decréscimo correspondente em nossa
328
autoridade e poder espiritual. Isto pode ser medido pela perda
ou redução do interesse de agradar a Deus submetendo-se à
sua Palavra e de trabalhar por sua honra e glória, para
estarem, quase sem notá-lo, centrados em si mesmos e em
sua dedicação ao seu trabalho, carreira, ou qualquer outra
coisa que configure o seu tesouro terreno. O fazer tesouros na
terra é algo tão sutil que até mesmo boas pessoas podem ser o
maior inimigo de um homem.
Muitos pregadores têm sido prejudicados pela sua própria
congregação, por causa dos louvores que têm recebido dos
homens, e assim fazem com que estes pregadores se percam
como mensageiros de Deus, e se tornam culpados de
quebrarem o mandamento do Senhor, por juntarem tesouros
na
terra.
Quando
o
pastor busca,
ainda
que
inconscientemente, ser controlado pelo desejo de obter o
louvor de seu povo, e quando isto ocorre, este homem está
fazendo tesouros na terra. Os exemplos são inesgotáveis
quanto às possibilidades de se juntarem tais tesouros na terra.
Agora, com “juntar tesouros no céu” não está o Senhor se
referindo a alcançarmos a nossa salvação eterna, porque isto
foi alcançando somente pela graça, mediante a fé. Seria negar
a doutrina da justificação somente pela fé, admitir que o
homem deve fazer provisão no céu para que possa ser salvo.
Devemos ter em mente que Jesus estava se dirigindo a pessoas
nas quais se cumprem as bem-aventuranças. É o homem
pobre de espírito, o que não tem nada em si mesmo que lhe
recomende à salvação, que é bem-aventurado. É o que chora
devido aos seus pecados e assim sabe que nada pode fazer de
si mesmo pela sua salvação. .
Assim “juntar tesouros no céu” significa manter em
perspectiva que somos apenas peregrinos nesta vida, e que
andamos neste mundo debaixo da vigilância de Deus, na
direção de Deus e de nossa esperança eterna. Este é o
princípio pelo qual devem ser governadas as nossas vidas.
Se pensarmos sempre acerca de nós mesmos desta forma,
como poderemos nos desviar do alvo? Então tudo estará bem.
Este é o grande princípio que se ensina em Hebreus 11. Os
homens poderosos, os grandes heróis da fé tinham um só
propósito: “andavam como que vendo o invisível”. Diziam que
eram estrangeiros e peregrinos na terra, e se dirigiam à
329
cidade que tem fundamentos, e cujo arquiteto e construtor é
Deus. Eles desejavam uma pátria melhor, isto é, celestial.
Assim, se temos uma ideia adequada de nós mesmos neste
mundo como peregrinos, como filhos de Deus que se dirigem
a seu Pai, todas as coisas serão vistas na perspectiva adequada.
Imediatamente teremos uma ideia adequada de nossos dons
e possessões. Começaremos a pensar de nós mesmos como
administradores que em breve deverão dar contas de tudo,
porque não somos os possuidores permanentes destas coisas
terrenas. Não importa que seja o dinheiro ou inteligência ou
nós mesmos ou nossa personalidade ou qualquer dom que
possamos ter.
O homem mundano pensa que é ele que possui tudo. Mas o
crente sabe apenas que é um mordomo que terá que prestar
contas com Deus daquilo que pertence na verdade a Ele.
Assim, sabendo que terá que prestar contas a Deus o crente
diz: “devo ter cuidado como uso estas coisas, e quanto à
minha atitude diante delas. Devo fazer todas as coisas com o
fim de agradar a Deus!”.
O servo de Deus não deve se apegar a estas coisas. Não deve
permitir que elas se convertam no centro de sua vida e
existência. Não deve viver para elas nem se ocupar delas
constantemente, de modo que venham a absorver a sua vida.
Ao contrário, deve possuí-las como se não as tivesse, para
poder servir mais livremente e dedicadamente ao Senhor.
Ou Deus ou as Riquezas
“19 Não ajunteis para vós tesouros na terra; onde a traça e a
ferrugem os consomem, e onde os ladrões minam e roubam;
20 mas ajuntai para vós tesouros no céu, onde nem a traça
nem a ferrugem os consumem, e onde os ladrões não minam
nem roubam.
21 Porque onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu
coração.
22 A candeia do corpo são os olhos; de sorte que, se os teus
olhos forem bons, todo teu corpo terá luz;
23 se, porém, os teus olhos forem maus, o teu corpo será
tenebroso. Se, portanto, a luz que em ti há são trevas, quão
grandes são tais trevas!
330
24 Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de
odiar a um e amar o outro, ou há de dedicar-se a um e
desprezar o outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas.” (Mt
6.19-24)
Por que fazemos tesouros na terra quando sabemos o que
sucederá a estes tesouros passageiros e que não podem
satisfazer a alma? Por que não fazemos tesouros nos céus
onde sabemos que há pureza e alegria, santidade e felicidade
eternas? Acaso não somos exortados a começar a juntar este
tesouro enquanto estamos na terra, para o nosso completo
aprazimento e alegria? (Col 3.1-3).
O Senhor nos advertiu quanto ao perigo que há em juntar
tesouros na terra, porque nisto está envolvido o nosso
coração. Ah! O coração! Por isso Ele diz que onde estiver o
nosso tesouro ali estará também o nosso coração.
Logo após Ele fala acerca da mente em Mt 6.24 que “ninguém
pode servir a dois senhores.”. Isto nos fala do perigo que há em
que as coisas mundanas podem exercer um controle terrível
sobre nós. Todos estamos envolvidos nisso, todos estamos
debaixo da garra deste poder terrível do mundo, que
realmente nos dominará, a não ser que obedeçamos o
mandado que o Senhor nos dá.
Não é somente poderoso, é muito sutil. É o que realmente
exerce o controle na maior parte das vidas dos homens.
Nós temos nos fixado na mudança, na imperceptível
mudança, que tende a ocorrer nas vidas dos homens à medida
que eles triunfam e prosperam neste mundo? Eles
permanecem com facilidade, na humildade e mansidão que
são devidas a Cristo? Eles permanecem na sua devoção
piedosa diante de Deus? Negando-se a si mesmos, tomando a
cruz a cada dia e seguindo debaixo da direção e instrução de
Jesus?
Aqueles que são homens verdadeiramente espirituais
poderão resistir ao poder e influência do mundo, mas os que
não são, cairão invariavelmente debaixo deste poder e
influência.
Por isso Jesus nos adverte quanto a este poder senhorial
terrível que tende a afetar toda a nossa personalidade, não
somente uma parte de nós, mas o homem total. A primeira
advertência que Ele menciona é em relação ao coração,
331
porque se são as coisas terrenas o nosso tesouro, o nosso
coração, isto é, nossos sentimentos, nossos afetos e toda a
nossa sensibilidade serão dominados por estes tesouros
terrenos.
Nós amaremos o mundo porque toda a nossa natureza será
dominada por estes tesouros (João 3.19; I João 2.15).
A segunda advertência do perigo que há nos tesouros
terrenos, é que eles podem dominar a nossa mente. Assim
estas coisas terrenas podem não somente dominar o coração
como também a mente. Quanto a isto Jesus assim se expressa:
“22 São os olhos a lâmpada do corpo. Se os teus olhos forem
bons, todo o teu corpo será luminoso;
23 se, porém, os teus olhos forem maus, todo o teu corpo
estará em trevas. Portanto, caso a luz que em ti há sejam
trevas, que grandes trevas serão!
24 Ninguém pode servir a dois Senhores; porque ou há de
aborrecer-se de um e amar ao outro, ou se devotará a um e
desprezará ao outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas.”
(Mt 6.22-24).
Esta ilustração do olho é o exemplo do qual Jesus se valeu para
nos explicar a maneira pela qual contemplamos as coisas.
Segundo Ele, não há senão apenas duas maneiras de olhar as
coisas do mundo. Há o que Ele chama de olho bom, que é o
olho do homem espiritual que vê as coisas realmente como
elas são, verdadeiramente, e sem dúvidas. seus olhos são
claros e vêm tudo adequadamente; porém há o outro olho que
Ele chama de olho mau, que é uma espécie de visão dobre, ou,
se prefere, é o olho no qual a lente não está clara. Há sombras
e opacidades, e as coisas são vistas de uma maneira confusa,
não como Deus as vê. Este olho maligno está dominado por
certos prazeres e desejos terrenos. Este é o sentido da
afirmação que confunde a muitos, porque não é tomada no
seu contexto.
É aqui que Jesus se refere ao domínio da mente pelos tesouros
terrenos. Não são tantos os nossos pensamentos que se
baseiam nestes tesouros terrenos? Esta visão confusa tende a
afetar-nos também moralmente.
Somos muito inteligentes para explicar que algo que estamos
fazendo não é realmente desonesto e que é aprovado por
332
Deus. Somos dados a coar mosquitos e a engolir camelos no
campo da moralidade, tal como os fariseus.
A razão disto não é o nosso amor pelos tesouros terrenos?
Não é por causa disto que somos tão pouco generosos no dar
e compartilhar as necessidades de outros com os nossos
bens?
O nosso apego a tudo o que o dinheiro possa comprar passa a
ser o verdadeiro Senhor da nossa vontade, e por isso Jesus diz
que não podemos servir a dois Senhores, porque este Senhor
que nos domina por causa do amor aos bens terrenos
dominará a nossa vontade, impedindo que ela possa obedecer
efetivamente à vontade de Deus e os seus mandamentos. Ele
deixa assim de ser o nosso Senhor, quando o dinheiro passa a
ter o controle e domínio das nossas mentes.
Esta última advertência de Jesus relativa à impossibilidade de
se servir a dois senhores inclui, não somente o coração e a
mente como também a vontade. Se o que determina nossa
vida e o exercício dela é o que pensamos, então isto também
depende de onde está o nosso tesouro.
Estes tesouros terrenos são tão poderosos que dominam a
personalidade inteira. Apoderam-se do coração do homem,
de sua mente, de sua vontade e tendem a afetar seu espírito,
alma e todo o seu ser. Qualquer que seja o âmbito da vida que
examinemos ou acerca do qual pensemos, nós
encontraremos estas coisas. Elas afetam a todos, e são um
perigo terrível.
Como já dissemos antes, o perigo reside não nos bens
terrenos propriamente ditos, mas na maneira como nos
relacionamos com eles, permitindo ou não, sermos
dominados por eles, de forma que sejam ou não o centro
motivador de nossas vidas.
Jesus disse que quando amamos as riquezas não podemos
amar a Deus, e de igual modo, quando estamos amando
verdadeiramente a Deus, nós não amamos as riquezas. Elas
não serão o nosso objetivo de vida se temos de fato andado
com Deus, se contrariamente, o desejo e o amor por elas nos
dominam, faremos das riquezas o nosso objetivo de vida, o
que reflete o nosso andar longe de Deus.
Não podemos servir a Deus e às riquezas. Esta declaração de
Jesus é realmente algo muito solene, por isso a Bíblia se ocupa
333
disso tão frequentemente. A verdade desta proposição é óbvia.
Ambos querem um domínio total sobre nós.
As coisas do mundo, na realidade tratam de nos dominar de
forma totalitária, como temos visto. Elas exigem nossa
devoção total, desejam que vivamos para elas de forma
absoluta. Mas assim também Deus procede: “amarás o Senhor
teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com
toda a tua mente.”.
Como servir a Deus e às riquezas é impossível, então se uma
perspectiva materialista está nos dominando, somos ímpios.
Jesus diz que “se a luz que há em ti são trevas, quão grandes
trevas serão”, porque se alguém se julga religioso e que está
servindo a Deus, quando na verdade está apegado às coisas
terrenas, e toda a sua busca de Deus tem a ver com a obtenção
destas posses e nada mais, então esta pessoa está em grandes
trevas espirituais, porque não pode enxergar a verdade bíblica
quanto a impossibilidade de servir a Deus e às riquezas, pois a
pessoa referida no exemplo tem por problema, não o ser rica,
mas o fato de ser dominada e governada pelo desejo da
riqueza, que automaticamente exclui o governo de Deus da
sua vida.
A Detestável Escravidão ao Pecado
“19 Não ajunteis para vós tesouros na terra; onde a traça e a
ferrugem os consomem, e onde os ladrões minam e roubam;
20 mas ajuntai para vós tesouros no céu, onde nem a traça
nem a ferrugem os consumem, e onde os ladrões não minam
nem roubam.
21 Porque onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu
coração.
22 A candeia do corpo são os olhos; de sorte que, se os teus
olhos forem bons, todo teu corpo terá luz;
23 se, porém, os teus olhos forem maus, o teu corpo será
tenebroso. Se, portanto, a luz que em ti há são trevas, quão
grandes são tais trevas!
24 Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de
odiar a um e amar o outro, ou há de dedicar-se a um e
desprezar o outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas.” (Mt
6.19-24)
334
Um dos efeitos do pecado no homem é escravizá-lo a coisas
que deveriam servi-lo. Isto é algo terrível e trágico.
Segundo nosso Senhor, nesta passagem, as coisas terrenas,
mundanas, tendem a se converter em nosso deus. As
servimos e as amamos. Nosso coração se sente cativado por
elas; estamos a serviço delas. Quais são? São as mesmas coisas
que Deus em sua bondade tem dado ao homem para que lhe
sirvam, e para que possa desfrutar da vida enquanto viva neste
mundo. Todas estas coisas que podem ser tão perigosas para
a alma, devido ao pecado, Deus no-las deu, e no-las deu para
que desfrutássemos delas – alimento, família, amigos e tudo o
mais. Todas estas coisas não são senão uma manifestação da
bondade de Deus. No-las tem dado para que vivamos uma vida
feliz e prazeirosa neste mundo. Porém, devido ao pecado, nos
temos convertido em escravos delas. Nos dominam os
apetites. Deus nos tem dado os apetites da fome, da sede e do
sexo; tudo Deus tem criado. Porém, quando estas coisas
dominam o homem, torna-se um escravo das mesmas. Que
tragédia; inclina-se diante de coisas e adora coisas que teriam
que servir-lhe. Coisas que teriam que estar a seu serviço se
têm assenhoreado dele. Que terrível e espantoso é o pecado!
O último ponto, contudo, é o mais grave, o mais solene de
todos. O efeito final do pecado no gênero humano é que faz
com o homem se perca completamente. Este é o ensino da
Bíblia desde o princípio até o fim. Isto que começou a existir
por meio da serpente no jardim do Éden, não tem outra
intenção que nossa ruína final. O diabo odeia a Deus com todo
seu ser, e não tem senão um objetivo e ambição: lançar a
perder e arruinar tudo o que Deus fez, e no qual Ele se deleita.
Em outras palavras, procura sobretudo a ruína do homem e do
mundo.
Como o pecado arruína o homem? Encontraremos a resposta
nestes versículos do Sermão do Monte. Arruína o homem no
sentido de que, havendo passado a vida em entesourar certas
coisas na terra, no final se encontra com nada. Depois de
entesourar para si tesouros na terra onde a ferrugem e a traça
corrompem, e há ladrões que furtam e roubam, encontra-se
frente a frente com a morte, o adversário mais poderoso de
todos.
335
Então, este pobre homem destroçado, que tem vivido para
todas essas coisas, vê de repente que não tem nada; está
despojado de tudo e sem nada mais que sua alma desnuda. É a
ruína completa. “Que aproveitará ao homem, se ganhar todo
o mundo, e perder a sua alma?”
A isto conduz em última instância o pecado, e há muitas
passagens bíblicas que o demonstram. Vejamos Lucas 16.1931. Ali o encontramos em forma perfeita; não faz faltar nada. É
um assunto de sentido e entendimento comum, e basta
examiná-lo. Pensemos em todas as coisas pelas quais vivemos
neste momento, as coisas que realmente importam, as coisas
que têm realmente peso em nossa vida. Logo, façamo-nos esta
simples pergunta: “Quantas delas estarão comigo depois de
morrer?” O pecado é a ruína definitiva que ao final deixa o
homem sem nada.
E o pior de tudo é que, ao final, o homem também descobre
que durante toda sua vida tem estado inteiramente
equivocado. Nosso Senhor o expressa assim: “A candeia do
corpo são os olhos; de sorte que, se os teus olhos forem bons,
todo teu corpo terá luz;
23 se, porém, os teus olhos forem maus, o teu corpo será
tenebroso. Se, portanto, a luz que em ti há são trevas, quão
grandes são tais trevas!”
O que isto significa é o seguinte. Como temos visto, a luz do
corpo é, num sentido, a mente, o entendimento, esta
faculdade extraordinária que Deus deu ao homem. Se, como
consequência do pecado, e do mal, e devido ao controle que
exercem o coração, o prazer, a paixão, e o desejo, essa
faculdade suprema se tem pervertido, e quão grandes são
essas trevas! Há algo pior ou mais terrível que isto?
Poderíamos também vê-lo assim: O homem hoje em dia,
como vimos dizendo, e como sabemos muito bem, não
somente crê que se guia pela inteligência; repudia a Deus
devido a sua mente e faculdades. Se ri da religião, se ri dos que
se opõem a esta visão mundana da vida. Vive para o presente;
isto é a única coisa que conta. E crê que esse é um ponto de
vista racional. O demonstra até se satisfazer e se convence de
que se conduz pela inteligência. Não se dá conta de que a luz
que possui se tem entenebrecido. Não vê que suas faculdades
ficaram alteradas devido ao pecado. Não vê as forças distintas
336
que controlam e entorpecem sua mente, a qual, em
consequência, já não opera de forma livre e racional. Porém,
ao final chegará a vê-lo; e ao final se verá a si mesmo como o
filho pródigo. De repente verá que as coisas em que confiava
eram trevas, que lho haviam desorientado, e que lho tinham
feito se perder completamente – que a luz que possui é trevas
e que estas trevas são muito grandes. Não há nada pior que
descobrir afinal, que aquilo em que havia colocado a fé, é o
que lhe tem feito se perder.
Tudo isto pode ser visto no quadro do rico e de Lázaro de Lc 16.
Eu estou seguro de que o rico se justificava dia após dia
dizendo: “é justo o que eu faço”. Porém, depois de morrer se
encontrou no inferno e de repente compreendeu tudo.
Compreendeu que durante toda a sua vida havia sido um
néscio. Havia crido que havia somente agido bem, e por fim
chegou a isso. Viu quão néscio havia sido e suplicou a Abraão
que enviasse a alguém a seus irmãos, os quais viviam da
mesma forma que ele. Descobriu que a luz que havia nele
eram trevas e que essas trevas eram muito grandes. Esta é
uma das atuações mais sutis de Satanás. Persuade o homem
de que é racional o negar a Deus; porém, como temos visto
muitas vezes, o que na realidade sucede é que faz do homem
criatura de prazer e desejos, cuja mente está cegada e cujos
olhos já não são limpos. A faculdade mais elevada de todas se
tem pervertido.
Se algum dos leitores não é cristão, que não confie em sua
inteligência; é o mais perigoso que se pode fazer. Porém ao se
tornar cristão, a inteligência torna a ocupar uma posição
central e volta de novo a ser uma criatura racional. Não há
engano mais patético para o homem que pensar em que a fé
cristã é algo emotivo, o ópio do povo, algo puramente
emocional e irracional. O apóstolo Paulo diz em Romanos 6.17
a visão verdadeira: “Tendes obedecido aquela forma de
doutrina à qual fostes entregues!” Lhes pregou a doutrina, e
quando chegaram a vê-la, lhes agradou, creram nela, e a
puseram em prática. Receberam a verdade de Deus antes de
tudo com a inteligência. A verdade deve ser recebida com a
inteligência, e o Espírito Santo capacita a inteligência a ver
com claridade. Isto é a conversão, isto é o que sucede como
resultado da regeneração. A mente se vê livre da
337
desorientação do mal e das trevas; vê a verdade, e a ama, e
deseja acima de tudo. Assim é. Não há nada mais trágico para
o homem que descobrir ao final de sua vida, que tem estado
sempre equivocado. Umas palavras finais. Este homem infeliz
ao que o pecado tem feito se perder, não somente descobre
que nada tem, não somente descobre que se tem enganado a
si mesmo e tem sido desviado pela luz que supõe que tivesse;
descobre também que se acha fora da vida de Deus e sob sua
ira. “Não podeis servir a Deus e às riquezas”. De modo que se
alguém tem servido as riquezas toda a sua vida até a morte, se
encontrará depois da morte, sem Deus. Não tem servido a
Deus, de modo que somente uma coisa pode se dizer dele,
segundo a Bíblia, e isto é, que “a ira de Deus está sobre ele” (Jo
3.36).
Tudo aquilo pelo qual viveu tem desaparecido. Ali na
eternidade não é mais que uma alma desnuda que tem que se
enfrentar com Deus, ao Deus que é amor e que está cheio de
bondade. Aquele Pai que conta até os cabelos da cabeça do
crente, lhe parece estranho. Está sem Deus, e não somente
sem Deus no mundo, senão sem Deus na eternidade, sem
esperança, diante de uma eternidade infeliz e cheia de
miséria e lamentações. O pecado é uma perda total. Se alguém
não vive para servir a Deus, então esse será seu destino. Não
terá nada, e morará nessa negação, essa negação sem
esperança, durante toda a eternidade. Deus não quer que seja
este o fim de nenhum dos que estão escutando estas palavras.
Se desejamos evitá-lo, corramos para Deus, e confessemos
que temos estado servindo a coisas terrenas, acumulando
tesouros terrenos. Confessemos e nos entreguemos a Ele,
ponhamo-nos sem reservas em suas mãos e sobretudo lhe
peçamos que nos encha com seu Santo Espírito, o único que
pode iluminar a inteligência, aclarar a compreensão, limpar
os olhos e capacitar-nos para ver a verdade – a verdade acerca
do pecado, e o único caminho de salvação para o sangue de
Cristo – o Espírito Santo que nos pode mostrar como nos livrar
da perversão e da contaminação do pecado, e chegar a ser
homens e mulheres novos, criados segundo a imagem do
próprio Filho de Deus, para amar as coisas de Deus e servirlhe, servir a Ele somente.
338
Pássaros e Flores
“25 Por isso vos digo: Não estejais ansiosos quanto à vossa vida,
pelo que haveis de comer, ou pelo que haveis de beber; nem,
quanto ao vosso corpo, pelo que haveis de vestir. Não é a vida
mais do que o alimento, e o corpo mais do que o vestuário?
26 Olhai para as aves do céu, que não semeiam, nem ceifam,
nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta.
Não valeis vós muito mais do que elas?
27 Ora, qual de vós, por mais ansioso que esteja, pode
acrescentar um côvado à sua estatura?
28 E pelo que haveis de vestir, por que andais ansiosos? Olhai
para os lírios do campo, como crescem; não trabalham nem
fiam;
29 contudo vos digo que nem mesmo Salomão em toda a sua
glória se vestiu como um deles.
30 Pois, se Deus assim veste a erva do campo, que hoje existe
e amanhã é lançada no forno, quanto mais a vós, homens de
pouca fé?” (Mt 6.25-30)
Nestes versículos 25 a30 nosso Senhor se refere ao terrível
perigo que corremos nesta vida e que nasce da tendência de
nos interessarmos demasiadamente, de formas distintas,
pelas coisas do mundo.
Somos propensos a ficarmos ansiosos com o que comeremos,
beberemos e também quanto ao que vestiremos.
Chama a atenção ver como tantas pessoas parecem viver
completamente nesta linha; toda sua vida se resume em
comer, beber e vestir. Dedicam todo o tempo para pensar
nestas coisas, falar sobre elas, discuti-las com outros,
argumentar sobre elas e ler acerca das mesmas em distintos
livros e revistas. E o mundo de hoje faz tudo o que pode para
que todos vivamos desta forma. Esta é a mente do mundo, este
é seu círculo de interesse. O povo vive para essas coisas, e se
preocupa por elas de todas as formas. Sabendo isto e sendo
conscientes dos perigos, nosso Senhor, antes de tudo, nos dá
uma razão geral para evitar esse engano específico.
Porém, uma vez que nos tem admoestado quanto a não
estarmos ansiosos quanto ao que comer ou beber, ou acerca
do que temos de vestir, passa a examinar separadamente cada
aspecto da questão. O primeiro aspecto é examinado nos
339
versículos 26 e 27, e trata da nossa existência, da continuação
e sustento da nossa vida no mundo. Temos aqui o
pensamento:
“26 Olhai para as aves do céu, que não semeiam, nem ceifam,
nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta.
Não valeis vós muito mais do que elas?
27 Ora, qual de vós, por mais ansioso que esteja, pode
acrescentar um côvado à sua estatura?”
Alguns dirão que a afirmação do verso 27 pertence à seção
seguinte, porém, a mim, me parece absolutamente claro que
deve, por razões que diremos daqui a pouco, formar parte
desta primeira seção.
Quanto à questão geral do comer e do sustento da vida, nosso
Senhor nos oferece um argumento duplo. Ou, se o
preferimos, dois argumentos principais. O primeiro se deriva
dos pássaros do céu. Começa com uma observação geral,
chamando a atenção relativamente a algo que é um fato da
vida neste mundo. “Olhai para as aves do céu”. Contemplemolas. “Olhai” nem sempre implica o significado de observação
intensa. Somente nos pede que olhemos algo que temos
diante de nós.
Que se pode argumentar baseando-se nos pássaros que
vemos? Que eles sempre dispõem de comida.
Há uma grande diferença entre a forma em que se sustenta a
vida dos pássaros e a do homem. No caso dos pássaros, alguém
a proporciona. No caso do homem, está envolvido num certo
processo. Semeia, logo recolhe a colheita que tem crescido da
semente semeada. Depois passa a armazená-la em grãos e
conserva o que necessita. Esta é a forma de proceder do
homem, e é uma forma adequada, e a forma que nosso Senhor
ordenou ao homem depois da queda: “com o suor do teu rosto
comerás o pão” (Gên 3.19). Desde o começo da história, o
tempo de semear e de colher, foi determinado pelo próprio
Deus, não o homem, de maneira que este, desde o princípio,
teve que semear, colher e armazenar. Tem que fazê-lo, e é
assim como pode suster-se. Por isto o mandamento de “não
ficar ansioso” não pode significar que tenhamos que nos
sentar e esperar que o pão nos chegue milagrosamente cada
manhã. Isto não é bíblico, e quem imagina que é isto a vida de
fé, tem entendido mal o ensino da Bíblia.
340
Todavia, o homem nunca tem de se preocupar por essas
coisas. Não deve passar a vida olhando o céu, perguntando-se
que tempo vai fazer, e se vai conseguir algo para guardar no
celeiro. Isto é o que nosso Senhor condena. O homem tem que
semear, Deus o ordena. Porém, tem que depender de Deus,
que é o único que pode fazer crescer a semente. Nosso Senhor
chama a atenção sobre os pássaros. Nada há mais óbvio
quanto a eles que o fato de que continuam vivos e que na
natureza encontram alimento – vermes, insetos, grãos e todas
as coisas que os pássaros comem. O sustento está disponível
para eles. De onde procede? A resposta é que Deus o
administra. Aí, está, é um simples fato da vida, e Deus nos diz
que o observemos.
Deus é nosso Pai, e se nosso Pai cuida tanto das aves com as
quais tem uma relação somente de providência geral, quanto
maior deve ser por necessidade seu cuidado por nós, já que
somos seus filhos.
Deus é o Criador, e é o sustentador de todas as coisas que
existem. Cuida inclusive dos pássaros. Assim, deveríamos
pensar, segundo nosso Senhor, e enquanto o fazemos, vemos
que a ansiedade se torna impossível.
Quanto à impossibilidade de acrescentar um côvado ao curso
da existência isto significa que por maiores que sejam nossas
preocupações e ansiedades, não podemos prolongar com elas
a duração da nossa vida neste mundo.
As pessoas vivem angustiadas por suas necessidades
corporais porque desejam estender e prolongar sua vida
neste mundo.
Contudo, o que alguém faz, com todos os tremendos esforços,
com todas as angústias e ansiedades, pode prolongar a
duração da sua vida sequer por um instante? E a resposta para
esta pergunta é que não pode. O milionário com todo o seu
dinheiro e quantidade de comida e bebida que pode comprar,
não poderá decidir quanto à questão de poder viver por um
tempo maior neste mundo. Deste modo, o milionário não tem
nenhuma vantagem sobre a pessoa mais pobre do mundo.
Apesar de todos os conhecimentos modernos da medicina,
nosso tempo neste mundo segue estando nas mãos de Deus, e
em consequência, nos pergunta o Senhor, por que toda esta
341
excitação, porque todo esta preocupação e ansiedade? A vida
é um dom de Deus. Ele a dá e Ele decide o fim da mesma.
Agora devemos voltar nossa atenção para a seção que começa
com o verso 28:
“28 E pelo que haveis de vestir, por que andais ansiosos? Olhai
para os lírios do campo, como crescem; não trabalham nem
fiam;
29 contudo vos digo que nem mesmo Salomão em toda a sua
glória se vestiu como um deles.
30 Pois, se Deus assim veste a erva do campo, que hoje existe
e amanhã é lançada no forno, quanto mais a vós, homens de
pouca fé?”
Nosso Senhor apresenta o argumento como anteriormente.
Primeiro olhem os fatos, os lírios do campo, as flores
silvestres, a erva. Contemplem quão maravilhosos são, quão
belos são, contemplem sua perfeição. Nem sequer Salomão
em toda sua glória pôde se vestir como um deles.
Nas flores há uma qualidade essencial, sua forma, seu
desenho, sua textura, substância, fragrância, nada que o
homem, com todos os seus recursos, pode chegar a imitar
verdadeiramente. Em tudo isso o homem vê a mão de Deus, vê
a criação perfeita, vê a glória do Todo Poderoso.
Tiremos a conclusão: se Deus veste a erva do campo de tal
forma, não fará muito mais por nós?
A erva do campo é transitória, efêmera. Depois que morriam
e secavam eram usadas para aquecer o forno onde se fazia o
pão, nos dias de nosso Senhor. Por isso se entendo o poder do
argumento. Não podemos fazer com que as flores durem
muito tempo, e quando as cortamos começam a morrer. Estas
coisas maravilhosas vêm e vão. Porém, nós somos imortais,
pertencemos à eternidade. Deus tem colocado a eternidade
no coração do homem. O homem não está destinado a
desaparecer. Não se aplica à alma a citação: “pó és e ao pó
voltarás”. Ao dar-nos conta desta verdade acerca de nós
mesmos, pode-se crer que o Deus que nos tem feito e
destinado para a eternidade vai se esquecer do nosso corpo
enquanto estivermos neste mundo? Claro que não. “Pois, se
Deus assim veste a erva do campo, que hoje existe e amanhã é
lançada no forno, quanto mais a vós, homens de pouca fé?”
342
Não Ficar Ansioso
“25 Por isso vos digo: Não estejais ansiosos quanto à vossa vida,
pelo que haveis de comer, ou pelo que haveis de beber; nem,
quanto ao vosso corpo, pelo que haveis de vestir. Não é a vida
mais do que o alimento, e o corpo mais do que o vestuário?
26 Olhai para as aves do céu, que não semeiam, nem ceifam,
nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta.
Não valeis vós muito mais do que elas?
27 Ora, qual de vós, por mais ansioso que esteja, pode
acrescentar um côvado à sua estatura?
28 E pelo que haveis de vestir, por que andais ansiosos? Olhai
para os lírios do campo, como crescem; não trabalham nem
fiam;
29 contudo vos digo que nem mesmo Salomão em toda a sua
glória se vestiu como um deles.
30 Pois, se Deus assim veste a erva do campo, que hoje existe
e amanhã é lançada no forno, quanto mais a vós, homens de
pouca fé?
31 Portanto, não vos inquieteis, dizendo: Que havemos de
comer? ou: Que havemos de beber? ou: Com que nos havemos
de vestir?
32 (Pois a todas estas coisas os gentios procuram.) Porque
vosso Pai celestial sabe que precisais de tudo isso.
33 Mas buscai primeiro o seu reino e a sua justiça, e todas
estas coisas vos serão acrescentadas.
34 Não vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã; porque o dia
de amanhã cuidará de si mesmo. Basta a cada dia o seu mal.”
(Mt 6.25-34)
Alguns pensam que não estar ansioso significa não se
preocupar no sentido de nada fazer, porque chama a isto de
viver pela fé, mas estão equivocados.
No próprio caso dos pássaros na ilustração apresentada por
nosso Senhor devemos lembrar que não se limitam a ficarem
pousados todo o tempo nas árvores, esperando que se lhes
traga comida mecanicamente. Não é assim. Buscam a comida
ativamente. As aves do céu desenvolvem uma verdadeira
atividade. De modo que o próprio argumento empregado por
nosso Senhor a este respeito exclui completamente a
possibilidade de interpretá-lo como uma espécie de espera
343
passiva em Deus, sem nada fazer. Nosso Senhor nunca
condena o lavrador por arar, semear, colher e acumular em
celeiros. Nunca o condena, porque Deus ordenou que o
homem vivesse de tal forma, com o suor da face.
De igual modo estes argumentos apresentados em forma de
ilustrações incluem também os lírios do campo, porque
extraem o seu sustento da terra na qual estão plantados.
Nosso Senhor pergunta:
“Não é a vida mais do que o alimento, e o corpo mais do que o
vestuário?” Que quer dizer nosso Senhor com isto? O
argumento é profundo e poderoso, e estamos inclinados a
esquecê-lo! Diz com efeito: “tomem esta vida pela qual vos
preocupais e angustiais. De onde a obtivestes? De onde vem?”
A resposta é que é um dom de Deus. O homem não cria a vida.
Nenhum de nós decidiu vir a este mundo. O fato mesmo de
que estejamos vivos neste momento se deve inteiramente a
que Deus o decretou e decidiu assim.
Tenho que trabalhar e ganhar dinheiro, porém tudo o que o
Senhor diz é que nunca devo preocupar-me nem angustiarme nem sentir-me ansioso de que de repente não venha a ter
o suficiente para manter-me em vida. Nunca me sucederá tal
coisa; é impossível. Se Deus me tem outorgado o dom da vida,
procurará que essa vida prossiga. Porém aqui está a questão:
não fala acerca de como o fará. Diz simplesmente que assim
será.
Temos a afirmação desta verdade em Rom 8.32:
“Aquele que nem mesmo a seu próprio Filho poupou, antes o
entregou por todos nós, como não nos dará também com ele
todas as coisas?”
E também em Hb 13.5:
“Seja a vossa vida isenta de ganância, contentando-vos com o
que tendes; porque ele mesmo disse: Não te deixarei, nem te
desampararei.”
Nosso Senhor sintetiza seu ensino principal com estas
palavras: “homens de pouca fé”. Fé aqui, como veremos, não
significa algum princípio vago; tem em mente nosso fracasso
em entender, nossa falta de compreensão da visão bíblica do
homem e da vida como tem que ser vivida neste mundo. Este
é nosso verdadeiro problema, e o propósito de nosso Senhor
344
ao apresentar as ilustrações que examinaremos mais adiante,
é mostrar-nos como não pensamos como deveríamos pensar.
Deus tem um plano para cada vida. Nunca devemos
considerar nossa vida neste mundo como acidental.
“Não tem o dia doze horas”, disse Cristo um dia a seus
temerosos e assustados discípulos. E nós necessitamos dizê-lo
a nós mesmos. Podemos ter a segurança de que Deus tem um
plano e propósito para nossas vidas, e este plano se
cumprirá. Em consequência, nunca devemos estar ansiosos
por nossa vida nem como para a sustentarmos.
Fé Aumentada
“31 Portanto, não vos inquieteis, dizendo: Que havemos de
comer? ou: Que havemos de beber? ou: Com que nos havemos
de vestir?
32 (Pois a todas estas coisas os gentios procuram.) Porque
vosso Pai celestial sabe que precisais de tudo isso.
33 Mas buscai primeiro o seu reino e a sua justiça, e todas
estas coisas vos serão acrescentadas.” (Mt 6.31-33)
O argumento essencial de nosso Senhor nesta passagem, é
que nós como cristãos, devemos ser diferentes dos gentios,
isto é, daqueles que não conhecem a Deus, sendo, portanto,
estranhos para Ele.
Se alguém pretende aumentar a fé, a primeira coisa que tem
que fazer é dar-se conta de que preocupar-se com comida,
bebida e vestimenta, é, num sentido, fazer o mesmo que os
gentios.
Que quer dizer com isto? A palavra “gentios” significa na
realidade “pagãos”. Os pagãos eram pessoas que não
possuíam a revelação de Deus, e que por conseguinte, não
conheciam a Deus. Isso é o que tanto se sublinha no Antigo
Testamento; e o que distingue os filhos de Israel de todos os
demais. Paulo, em seu argumento relativo a este tema diz em
Rom 3.2 que “lhes tem sido confiada a Palavra de Deus!” Deus
se revelou de forma especial aos judeus, não somente no
chamamento de Abraão e em outros casos específicos, senão
sobretudo ao dar-lhes a lei e o grande ensino dos profetas. Os
pagãos não conheciam nada disso; não haviam tido esta
revelação especial, nem possuíam conhecimento de Deus.
345
Não tinham as Escrituras do Antigo Testamento, e estavam
por conseguinte, sem os recursos para conhecê-lo. Este é o
ponto essencial acerca dos pagãos, não sabem nada sobre
Deus num sentido real, estão “sem Deus no mundo”.
Quando o Senhor diz que os gentios buscam todas estas
coisas, esta palavra “buscam” é uma palavra muito forte.
Significa que o buscam com afã, que buscam constantemente
estas coisas, que vivem para elas.
Disto surge a pergunta vital e importante: Somos nós assim?
Se estas cousas ocupam o primeiro lugar na vida – diz nosso
Senhor – e se monopolizam nossa vida e nosso pensar, então
não somos melhores que os pagãos, somos mundanos, com
mentes mundanas. Esta palavra nos chega com poder e
significado terríveis. Há muitas pessoas que podem ser
descritas como mundanos espirituais. Se alguém lhes fala
acerca da salvação têm a ideia correta, porém se lhes fala
acerca da vida em geral, são mundanos. Sempre estão falando
sobre riqueza, posição, e possessões temporais. Estas coisas
na realidade os dominam. Elas são as que os fazem felizes ou
infelizes. E sempre estão pensando e falando acerca delas. Isto
é ser como os pagãos, diz Cristo, porque o cristão não deveria
estar dominado por essas coisas. Essas coisas não deveriam na
realidade fazê-lo feliz ou infeliz, porque esta é a situação típica
do pagão, estar dominado por elas em toda a perspectiva que
tem acerca da vida; e em seu viver neste mundo.
Os filhos de Deus estão destinados neste mundo a viver a vida
de fé, têm que viver à luz dessa fé que professam.
Nosso Senhor conclui o ensino desta passagem com as
palavras: “Mas buscai primeiro o seu reino e a sua justiça, e
todas estas coisas vos serão acrescentadas.” Que quer dizer
com isso? Obviamente não disse a seus ouvintes como fazerse cristãos; lhes disse como se comportar por serem cristãos.
Estão no reino de Deus, e porque estão nele devem buscá-lo
mais e mais. Têm que, como disse Pedro: “fazer firme sua
vocação e eleição”. Na prática significa que, como filhos de
nosso Pai celestial, deveríamos buscar conhecer-lhe melhor.
É citada pelo Senhor a justiça do reino de Deus. Por que
acrescentou esta justiça? É um acréscimo muito importante;
significa santidade, a vida de justiça.
346
Não somente tem que buscar o reino de Deus, no sentido de
colocar o coração nas coisas do alto; também tem que buscar
de maneira positiva a santidade e a justiça. Uma vez mais
estamos frente a uma repetição de “bem-aventurados os que
têm fome e sede de justiça, porque serão saciados!” Sim, é
isso. O cristão busca a justiça, busca ser como Cristo, busca a
santidade positiva e ser mais e mais santo, crescer na graça e
no conhecimento do Senhor. Esta é a maneira de aumentar a
fé. Funciona assim. Quanto mais santos somos, mais perto
estaremos de Deus. Quanto mais santos somos, maior será
nossa fé.
Podemos parafrasear as palavras de nosso Senhor da seguinte
forma: se queres buscar algo, se queres ficar ansioso por algo,
preocupa-te com tua condição espiritual, por tua proximidade
com Deus e por tua relação com Ele. Se buscas isto em
primeiro lugar, a preocupação desaparecerá; este é o
resultado. Esta grande preocupação acerca da tua relação com
Deus eliminará as preocupações menores acerca de comida,
bebida e vestimenta.
Preocupação: Causas e Remédio
“Não vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã; porque o dia de
amanhã cuidará de si mesmo. Basta a cada dia o seu mal.” (Mt
6.34)
Em Mateus 6.34, nosso Senhor conclui o tema que veio
tratando em toda esta seção do Sermão do Monte, a saber, o
problema que nos apresenta nossa relação com as coisas
deste mundo. É um problema com o qual todos nos
enfrentamos. As formas em que isto sucede são diferentes,
como temos visto.
Aqui, neste versículo, conclui esta exposição e o faz assim: por
três vezes emprega a expressão “não vos inquieteis”, em
relação à comida, bebida e vestimenta. Aqui conclui todo o
tema, e estou seguro de que muitos, ao lerem pela primeira
vez este versículo em seu contexto, devem ter sentido quase
uma sensação de surpresa de que nosso Senhor o quisera
acrescentar. Parece ter alcançado um ponto culminante
maravilhoso no versículo anterior (33), no qual resumiu seu
ensino positivo em memoráveis palavras. “Buscai em
347
primeiro lugar o reino de Deus e a sua justiça, e todas estas
coisas vos serão acrescentadas!”. Isto parece como uma
dessas afirmações finais às quais não se pode acrescentar
nada, e à primeira vista o versículo que agora examinamos
para ser quase um anticlímax.
Todavia, podemos ter a segurança completa de que não se
trata de um anticlímax; existe alguma razão muito boa para
esta afirmação. Conclui de modo negativo e é isto, à primeira
vista, o que constitui o problema. Por que o fizera? É porque é
na realidade uma extensão do seu ensino. Não é simples
repetição, ou simples síntese; é isso, porém é mais do que isso.
Até agora, tinha examinado este problema quanto ao que nos
concerne no presente imediato; e agora se refere a ele quanto
ao que se refere também ao futuro.
Estende o ensino e o aplica, para que englobe toda a vida.
A preocupação é um fracasso em aplicar nossa fé. Porém o que
devemos enfatizar, é que a preocupação é algo que se apodera
de nós e nos controla. É um poder muito forte, uma força ativa,
e se não nos damos conta disso, podemos ter a segurança de
que nos derrotará. Se não pode fazer-nos ansiosos, agoniados
e deprimidos devido ao estado e condição das coisas com as
quais nos enfrentamos no momento atual, dará o passo
seguinte e centrará sua atenção no futuro.
(uma das principais razões de nosso Senhor ter feito uma
aplicação tão extensão quanto à ansiedade, não foi para
motivos de nos dar um apanágio psicológico, para ajudar-nos
a ficarmos tranquilos e calmos, mas porque a ansiedade
expulsa a fé, e a fé é essencial e básica para se viver a vida
cristã – nota do tradutor).
Nosso Senhor mostra quão néscio é se preocupar com o
futuro. Basta a cada dia o seu próprio mal. Se o presente, tal
como é, já é suficientemente mal, por que pensar no futuro?
O viver o dia a dia é suficiente em si mesmo, temos que nos
contentar com isso. Porém, não somente isto. A preocupação
com o futuro é completamente inútil e vã; não consegue
absolutamente nada. Somos muito lentos em ver isto, e
contudo, quão verdadeiro é! A preocupação nunca serve para
nada. Isto se vê com especial clareza quando alguém
contempla o futuro. Aparte de outras coisas, é um simples
desperdício de energia, porque, por muito que alguém se
348
preocupe, não pode fazer nada em relação ao mesmo. De
qualquer modo, as catástrofes que se temem são imaginárias;
não são certas; talvez nunca ocorram.
O resultado de se preocupar com o futuro é o que paralisa o
presente, e diminui nossa eficiência relativamente ao dia de
hoje, e com isso reduz toda sua eficácia quanto a esse futuro
que terá que chegar. Em outras palavras, a preocupação é algo
que se deve a um fracasso absoluto em entender a natureza da
vida neste mundo.
Devemos assim vencer a tentação a que todos estamos
expostos de tentar armazenar graça pra o futuro. Isto significa
falta de fé em Deus, em cujas mãos se encontra o nosso futuro.
Não se inquietar não significa não pensar em nada, mas não
se preocupar, não ficar ansioso.
349
Mateus 7
“Não julgueis, para que não sejais julgados.” (Mt 7.1)
Em todo este sétimo capítulo de Mateus, o tema principal é o
do juízo.
O Senhor nos recorda em todo o momento em seu ensino que
nossa estamos de viagem aqui neste mundo, numa
peregrinação, e que conduz a um juízo final, a uma última
avaliação, e à determinação e proclamação do nosso destino
eterno.
A metade de nossos problemas se devem ao fato de vivermos
como assumindo que esta é a única vida e o único mundo.
Claro que sabemos que isso não é assim; porém há uma
grande diferença entre saber uma coisa e guiar-se e governarse realmente por este conhecimento na vida e perspectivas
ordinárias.
Nosso Senhor inicia sua consideração desta grande questão
acerca de nosso caminhar neste mundo, sob um sentido de
juízo, em função do ponto específico de se julgar uns aos
outros. “Não julgueis”. Nosso Senhor segue usando o mesmo
método que tem usado ao longo deste sermão. Faz um
pronunciamento e o apresenta depois numa forma mais
lógica e detalhada.
Faz primeiro o pronunciamento “Não julgueis”.
Se nos apresenta aqui uma afirmação que frequentemente,
tem conduzido a muita confusão. Temos que reconhecer que
é um tema que pode ser muito facilmente, ser mal entendido.
Houve épocas na história da Igreja em que se louvava aos
homens que mantinham seus princípios a todo custo. Porém,
hoje em dia não é assim. Estes homens são considerados
como difíceis, pouco cooperadores e assim por diante. Hoje se
glorifica ao homem que se pode descrever como “do centro”,
ao homem agradável, que não cria dificuldades, nem
problemas devia a seus pontos de vista. A vida, nos dizem, já é
bastante difícil e complexa como é, sem necessidade de se
tomar posturas firmes relativas a doutrinas específicas.
Numa época como a nossa, pois, há suma importância em
poder interpretar corretamente esta afirmação relativa a
julgar, porque há muitos que dizem que esse “não julgueis”
350
deve ser entendido simples e literalmente como é, com o
significado de que o cristão verdadeiro nunca deve expressar
opiniões acerca dos outros. Dizem que nunca se deve julgar,
que devemos ser brandos, indulgentes e tolerantes, e
permitir praticamente tudo, em prol da paz e da
tranquilidade, e sobretudo da unidade. (Este juízo é formado
sem se levar em conta tudo o que a Bíblia ensina
relativamente ao assunto, senão somente no que é da
conveniência e imaginação das próprias pessoas – nota do
tradutor).
Esta época não é época para este tipo de juízos, dizem; o que se
necessita hoje em dia é unidade e comunhão. Todos devemos
ser um. (Argumenta-se principalmente contra posições
radicais que possam servir para aumentar as divisões no
mundo, e assim, apela-se por uma paz mundial,
especialmente sem fronteiras religiosas, sociológicas etc –
nota do tradutor).
Todavia, se tomarmos o próprio contexto da afirmação do
“não julgueis”, veremos que esta interpretação é
completamente impossível.
Tomemos por exemplo o verso 6: “Não deis aos cães o que é
santo, nem lanceis aos porcos as vossas pérolas, para não
acontecer que as calquem aos pés e, voltando-se, vos
despedacem.” Como posso colocar isto em prática sem o
exercício do juízo? Como posso saber que tipo de pessoa pode
ser descrita desta forma como porco e cão?
Vejamos também a afirmação do verso 15: “Guardai-vos dos
falsos profetas, que vêm a vós disfarçados em ovelhas, mas
interiormente são lobos devoradores.” Como devemos
interpretar isso? Não posso guardar-me dos falsos profetas se
não penso e se tenho tanto medo de julgar o ensino deles.
Assim, pois, sem ir mais longe, essa interpretação não pode
ser a interpretação verdadeira porque diz que significa
somente ser “livre e fácil”, e ter uma atitude branda e
indulgente com qualquer um que em forma vaga se chame
cristão. É completamente impossível.
A própria Bíblia nos ensina que o juízo deve ser exercitado em
relação aos assuntos do Estado. Os juízes e magistrados
recebem o poder de Deus e que o magistrado deve pronunciar
juízo, e que esse é seu dever. É parte do método que Deus tem
351
para frear o mal e o pecado e os efeitos dos mesmos neste
mundo temporal. Portanto, se alguém diz que não crê nos
tribunais de justiça, contradiz a Bíblia.
Se encontra também o mesmo ensino na Bíblia relativamente
à igreja. A disciplina era, para os pais protestantes, sinal tão
distintivo da Igreja como a pregação da Palavra e
administração dos sacramentos. Porém sabemos muito
pouco sobre a disciplina. É o resultado desta noção frouxa e
sentimental de que não há que se julgar, e que pergunta:
“Quem és tu para julgar?” Porém a Bíblia nos exorta a fazê-lo.
Que significa então a exortação de nosso Senhor “Não
julgueis”?
Nosso Senhor não nos diz que não temos que fazer avaliações
baseados em juízos, porém que estejamos muito preocupados
pelo assunto de condenar. Ao tentarem evitar esta tendência
de condenar, algumas pessoas têm chegado ao outro
extremo, e com isso se encontram também numa posição
falsa. A vida cristã não é tão fácil. A vida cristã é sempre vida
de equilíbrio. Têm bastante razão os que dizem que andar por
fé significa andar por um fio de uma navalha. Alguém pode
cair de um lado ou de outro, mas tem que se manter no centro
mesmo da verdade, evitando o erro tanto de uma lado como
de outro. Portanto, ainda que digamos que não significa se
negar a exercitar o discernimento ou o juízo, devemos nos
apressar a dizer nos põe de sobreaviso contra o terrível perigo
de condenar, de pronunciar juízos num sentido definitivo.
Que perigo é este acerca do qual nosso Senhor nos põe de
sobreaviso? Podemos dizer antes de tudo que é uma espécie
de espírito, um espírito que se manifesta de certos modos.
Que é este espírito que condena? É o espírito orgulhoso de sua
própria justiça. O ego está sempre na raiz do mesmo, e é
sempre uma manifestação de autojustificação, um sentido de
superioridade, um sentido que nós andamos bem enquanto
que outros não. Isto conduz então ao espírito de censura, ao
espírito que sempre está disposto a se expressar de forma
detratora. E logo, junto com isto, se dá a tendência de
desprezar aos outros, a tê-los em pouca conta. Não somente
estou descrevendo os fariseus, estou descrevendo a todos os
que têm o espírito farisaico.
352
Me parece também que uma parte de importância vital deste
espírito é a tendência a ser hipercrítico. Há uma grande
diferença entre ser crítico e ser hipercrítico. O verdadeiro
espírito de crítica é algo excelente. Desgraçadamente, é muito
raro. A crítica verdadeira nunca é simplesmente destrutiva; é
construtiva, é uma apreciação.
O homem que é réu de julgar, no sentido em que nosso
Senhor emprega o termo aqui, é o hipercrítico, o qual significa
que se deleita na crítica pela própria crítica e com isso se
alegra. É o homem que se ocupa do que é criticável com a
esperança de encontrar faltas, quase anelando encontrá-las.
O espírito hipercrítico nunca se sente realmente feliz a não
ser que encontre estas faltas.
O melhor comentário a este respeito se encontra em
Romanos 14, onde Paulo diz aos romanos em detalhe que
evitem o julgar-se mutuamente em assuntos como a comida
e a bebida, e como o considerar um dia mais importante que
outro. Haviam situado estes assuntos numa posição
destacada, e se julgavam e condenavam em função destas
coisas.
Não se pode decidir se alguém é cristão ou não, examinando
as ideias que têm acerca de assuntos como estes, os quais não
são importantes.
Se descobrimos que temos prazer em saber acerca das faltas
de outros, essa é a atitude que conduz a este espírito de juízo
que nos torna réus perante o Senhor.
Este espírito se manifesta na realidade na tendência de emitir
juízos definitivos acerca das pessoas como tais. Isto significa
que não é tanto um juízo do que fazem ou creem ou dizem,
senão das próprias pessoas.
É um juízo definitivo da pessoa, e o que o faz tão terrível é que
para ser assim, se arroga algo que pertence a Deus.
Este é um tema difícil, e até agora temos examinado somente
o mandamento. Não temos estudado todavia a razão que nosso
Senhor agrega ao mandamento. Simplesmente, temos
tomado as duas palavras, e confia que sempre as recordamos:
“Não julgueis”. Ao cumpri-lo agradecemos a Deus por ter um
evangelho que nos diz que “sendo ainda pecadores, Cristo
morreu por nós”, que ninguém se mantém por sua própria
justiça, senão pela justiça de Cristo. Sem Ele estamos
353
condenados,
completamente
perdidos.
Temos
nos
condenado a nós mesmos ao julgar a outros. Deus é Senhor e
nosso Juiz, e Ele nos tem proporcionado uma forma de passar
do juízo para a vida. A exortação é para viver nossa vida neste
mundo como pessoas que têm passado pelo juízo “em Cristo”
e que agora vivem por Ele e como Ele, dando-se conta de que
têm sido salvos por sua graça e misericórdia maravilhosas.
Por D. M. Lloyd Jones ( traduzido e adaptado por Silvio Dutra)
A Trave e o Argueiro – Mateus 7.1-5
“1 Não julgueis, para que não sejais julgados.
2 Porque com o juízo com que julgais, sereis julgados; e com a
medida com que medis vos medirão a vós.
3 E por que vês o argueiro no olho do teu irmão, e não reparas
na trave que está no teu olho?
4 Ou como dirás a teu irmão: Deixa-me tirar o argueiro do teu
olho, quando tens a trave no teu?
5 Hipócrita! tira primeiro a trave do teu olho; e então verás
bem para tirar o argueiro do olho do teu irmão.” (Mt 7.1-5)
Examinamos o mandamento de nosso Senhor, “Não julgueis”
e o que implica na prática. Agora, veremos nos versos 1 a 5 as
razões que dá para não julgarmos.
A primeira razão que nos apresenta é a seguinte: “Não
julgueis, para que não sejais julgados!” Se trata de uma razão
muito prática e pessoal, porém, que significa exatamente?
Há um juízo que é definitivo e eterno, é o juízo que determina
o estado do homem e sua posição diante de Deus. Este juízo
decide a grande separação entre o cristão e o não cristão,
entre as ovelhas e as cabras, entre os que alcançarão a glória
e os que alcançarão a perdição. Este é um tipo de primeiro
juízo, como um juízo básico que estabelece a grande linha
divisória entre os que pertencem a Deus e os que não lhe
pertencem. Isto é ensinado claramente em muitas passagens
da Bíblia. Este é o juízo que determina e fixa o destino final do
homem, sua condição eterna, se vai estar no céu ou no
inferno.
354
Porém esse não é o único juízo que se ensina na Bíblia, há um
segundo juízo, o juízo ao qual estamos submetidos como filhos
de deus, e por ser filhos de Deus.
Para entender isso, deveríamos ler I Coríntios 11, onde Paulo
expõe a doutrina relativa à santa ceia.
Ele diz: “27 De modo que qualquer que comer do pão, ou beber
do cálice do Senhor indignamente, será culpado do corpo e do
sangue do Senhor. 28 Examine-se, pois, o homem a si mesmo,
e assim coma do pão e beba do cálice. 29 Porque quem come e
bebe, come e bebe para sua própria condenação, se não
discernir o corpo do Senhor.” (I Cor 11.27-29)
E Logo adiante afirma:
“30 Por causa disto há entre vós muitos fracos e enfermos, e
muitos que dormem. 31 Mas, se nós nos julgássemos a nós
mesmos, não seríamos julgados; 32 quando, porém, somos
julgados pelo Senhor, somos corrigidos, para não sermos
condenados com o mundo.” (I Cor 11.30-32).
Esta afirmação é muito importante e significativa. Indica
claramente que Deus julga a seus filhos desta forma, que se
somos culpados de pecado, ou de viver mal, é provável que Ele
nos castigue. O castigo, diz Paulo, pode tomar a forma de
enfermidade.
Há quem está enfermo por seu mal viver.
Não quer dizer necessariamente que Deus lhes tenha enviado
a enfermidade, porém provavelmente significa que Deus
retira sua proteção deles e permite que o Inimigo lhes ataque
com a enfermidade. O mesmo tipo de afirmação é encontrada
na mesma carta quando fala de entregar um homem a Satanás
para que este lhe corrija dessa forma (capítulo 5). É uma
doutrina sumamente grave e importante.
Deus permite que Satanás controle estas pessoas devido à sua
negativa de julgarem-se a si mesmas e a arrepender-se e a
voltar para Deus.
A exortação que faz, por conseguinte, é que devemos
examinarmo-nos a nós mesmos, devemos nos julgar a nós
mesmos e condenar o mal que há em nós, para que possamos
evitar esse outro juízo.
Se engana, pois, o cristão que passa superficialmente pela
vida dizendo que crê no Senhor Jesus Cristo, e que, por
conseguinte, nada tem a ver com o juízo, que tudo está bem.
355
Em absoluto, devemos andar com cautela, devemos
examinarmo-nos e julgar em nossa consciência para que este
tipo de juízo não venha sobre nós.
Tudo isto está confirmado em Hebreus 12.5,6:
“5 e já vos esquecestes da exortação que vos admoesta como a
filhos: Filho meu, não desprezes a correção do Senhor, nem te
desanimes quando por ele és repreendido; 6 pois o Senhor
corrige ao que ama, e açoita a todo o que recebe por filho.”
Deus conduz seus filhos à perfeição, e em consequência os
disciplina neste mundo. Julga seus pecados e suas
imperfeições neste mundo para prepará-los para a glória.
O terceiro tipo de juízo que é ensinado na Bíblia é o juízo de
recompensa. É o juízo para o povo de Deus depois da morte.
Nós o encontramos em Romanos 14 onde Paulo diz que todos
compareceremos diante do tribunal de Cristo. Temos o
mesmo em I Cor 13 onde se afirma que a obra de cada um será
manifestada e o dia a declarará, se o homem tem edificado
sobre o fundamento, se ouro, prata, pedras preciosas,
madeira, feno ou palha, será julgado pelo fogo. Parte disso
ficará completamente destruído, a madeira, o feno e a palha,
porém o homem mesmo se salvará, “ainda que pelo fogo”.
Tudo isto indica juízo, juízo de nossas obras desde que nos
tornamos cristãos.
Este juízo se encontra também citado em Gál 6.5 onde se diz
que “cada um levará a sua própria carga”, porque cada um de
nós é responsável por sua própria vida e conduta. Também
este tipo de juízo, não decide nosso destino eterno, porém vai
constituir uma diferença, sendo um juízo de nossa vida desde
que nos tornamos cristãos.
É a este tipo de juízo que nosso Senhor se refere em Mt 7.1:
“Não julgueis para que não sejais julgados!”.
Não é simplesmente que se alguém não queira ser criticado
por outros, que tampouco devem criticá-los. Isto está certo
em ser dito, mas é muito mais importante o fato de que se
alguém está se expondo a si mesmo a juízo, e que terá que
responder diante de Deus por estas coisas. Se não vai perder a
salvação, é evidente que vai perder algo.
Isto nos conduz à segunda razão que nosso Senhor apresenta
para não julgar:
356
“Porque com o juízo com que julgais, sereis julgados; e com a
medida com que medis vos medirão a vós.” Nosso Senhor
declara que Deus mesmo, neste juízo que vimos descrevendo,
nos julgará segundo nossa própria medida.
Esta é uma das afirmações mais alarmantes da Bíblia.
Pretendo ter um conhecimento excepcional da Bíblia? Se é
assim, serei julgado em função desse conhecimento.
Pretendo ser um servo que conhece realmente estas coisas?
Então não devo surpreender-me se me acoitam muito.
Deveríamos ter muito cuidado, por conseguinte, em como
nos expressamos. Se com autoridade julgamos a outros, não
temos direito de nos queixarmos se somos julgados com a
mesma norma. É completamente justo e adequado, e não
temos razão nenhuma de nos queixarmos.
Se pretendemos ter este conhecimento, devemos demonstrálo vivendo de acordo com o mesmo. Segundo o que pretendo
ser, serei julgado. Se, por conseguinte, ponho muito empenho
em examinar a vida das outras pessoas, essa mesma norma se
me aplicará, e não terei motivo para queixar-me. A resposta
que se me daria, se me queixasse, seria esta: já o sabias,
porque o fazias com os demais. Por que não também no teu
próprio caso? É um pensamento surpreendente e alarmante.
Isto nos conduz à última razão que nosso Senhor apresenta
nos versos 3 a 5:
“3 E por que vês o argueiro no olho do teu irmão, e não reparas
na trave que está no teu olho?
4 Ou como dirás a teu irmão: Deixa-me tirar o argueiro do teu
olho, quando tens a trave no teu?
5 Hipócrita! tira primeiro a trave do teu olho; e então verás
bem para tirar o argueiro do olho do teu irmão.”
Nosso Senhor ensina a terceira razão para não julgarmos a
outros é que somos incapazes de julgar. Não podemos julgar.
Diz que nosso espírito é tal que não temos direito de julgar.
Antes de tudo, indica que não nos preocupa a justiça e o
verdadeiro juízo, porque se estivéssemos preocupados com
isso, nos ocuparíamos disso em nós mesmos. Porém, não o
fazemos, e por conseguinte nosso interesse não é realmente a
verdade.
Se alguém tiver um verdadeiro interesse pela justiça e pela
verdade, será tão crítico de si mesmo quanto dos demais.
357
O verdadeiro desejo do hipercrítico é condenar a pessoa,
muito mais do eliminar o mal que exista nela.
Isto nos faz incapazes de emitir um verdadeiro juízo. Se há
parcialidade, se há sentimento e animosidade pessoais, não
podemos ser verdadeiros examinadores.
No verso 4 nosso Senhor mostra que nossa própria condição é
tal que somos completamente incapazes de ajudar a outros.
Pretendemos estar preocupados por essas pessoas e por suas
faltas, e tratamos de dar a impressão de que estamos
preocupados somente com o seu bem. Dizemos que estamos
inquietos por essa pequena mancha que vemos neles, e que
estamos desejosos de eliminar esta palha. Porém, diz nosso
Senhor, não o podemos fazer, porque é um processo
sumamente delicado. A viga que está em nossos próprios
olhos nos torna incapazes disso.
Nosso Senhor afirma que é preciso ver claramente para que
se possa tirar o diminuto argueiro do olho de outra pessoa
pela qual demonstramos interesse em ajudá-la. Não se pode
ajudar a outros quando não enxergamos bem por causa da
viga que há no nosso próprio olho.
Quem não remove a viga de seu próprio olho é chamado de
hipócrita pelo Senhor, porque é um falso ajudador.
Isto pode ser interpretado assim. Se desejas realmente ajudar
aos outros, e ajudá-los a eliminar suas manchas, faltas,
fragilidades e imperfeições, antes de tudo tens que dar-te
conta que o espírito de juízo, hipercrítica e censura que há em
ti é realmente como uma viga, se for comparada com a
pequena palha no olho alheio.
A outra pessoa talvez tenha caído em imoralidades, em algum
pecado da carne, ou talvez seja ré de algum pequeno erro de
vez em quando. Todavia, isto não é mais do que uma pequena
palha no olho quando comparado com o espírito de
hipercrítica que há em ti, que é como uma viga.
Por isso tens que começar com teu próprio espírito, diz em
outras palavras; “enfrenta-te contigo mesmo com toda
honestidade e sinceridade e admite a verdade acerca de ti
mesmo!
Quando o homem se tem visto a si mesmo, nunca julga aos
demais de maneira equivocada. Dedica todo o tempo a
condenar-se a si mesmo, a lavar as mãos e a tratar de
358
purificar-se. Há somente um modo de se livrar do espírito de
censura e hipercrítica, e é julgar-se e condenar-se a si mesmo.
Isto nos humilha até o pó, e logo se segue, necessariamente,
que havendo-nos, desta maneira, nos livrada da viga dos
próprios olhos, estaremos em condições adequadas para
ajudar a outros, tirando-lhes a palha dos olhos.
O processo de tirar a palha do olho é difícil. Não há órgão mais
sensível que o olho. Quando o dedo o toca, se fecha. Por isso,
ao fazer isto necessitamos acima de tudo de afeto, paciência,
calma e equilíbrio. Isto é o que se necessita, devido à
delicadeza da operação.
Transportemos tudo isso para o âmbito espiritual. Vamos nos
ocupar de uma alma, vamos tocar a parte mais sensível do
homem. Como podemos tirar dela a palha? Somente uma
coisa importa quanto a isto, é que se seja humilde,
compassivo, e estar consciente do próprio pecado e da própria
indignidade, a fim de que ao encontrá-la em outra pessoa,
longe de condená-la, sintamos vontade de chorar.
Juízo e Discernimento Espirituais – Mateus 7.6
“Não deis aos cães o que é santo, nem lanceis aos porcos as
vossas pérolas, para não acontecer que as calquem aos pés e,
voltando-se, vos despedacem.” (Mt 7.6)
Neste versículo de Mateus nosso Senhor conclui o que tem
vindo dizendo relativamente ao tema difícil e complexo do
juízo.
Esta afirmação parece uma contradição com o que o Senhor
havia dito anteriormente neste sétimo capítulo. Aqui vemos o
que o Senhor dissera anteriormente não era tudo que se
relaciona a este assunto do juízo. De modo que para que haja
um equilíbrio adequado e para que a afirmação relativa a este
assunto seja completa, é essencial esta observação do sexto
versículo.
Se nosso Senhor tivesse concluído o ensino com os cinco
primeiros versículos do sétimo capítulo, teria conduzido sem
dúvida a uma posição falsa. As pessoas teriam cuidado em
evitar o terrível perigo de julgar. Não haveria o que se chama
de disciplina na Igreja; e a vida cristã, em sua totalidade seria
caótica. Não haveria coisas como denunciar uma heresia e
359
emitir juízo sobre a mesma, porque todo mundo teria tanto
medo de julgar ao herege, que cerraria os olhos diante da
heresia, e o erro se iria introduzindo na igreja mais do que já o
tinha feito.
Assim pois, nosso Senhor passa a fazer esta afirmação, porque
o esquecimento deste acréscimo ao ensino acerca do juízo,
faz com que tantas pessoas mostrem falta de discernimento e
estão prontas a louvar e a recomendar qualquer coisa que se
lhes apresente e que pretenda vagamente ser cristã. Dizem
que não devemos julgar. E esta posição é considerada como
apropriada a um espírito amistosos e caritativo, e por isso
tantas pessoas caem em erros graves e suas almas imortais
correm grandes perigos.
Como reconciliamos estas duas coisas A resposta simples é
que, enquanto nosso Senhor nos exorta a que não sejamos
hipercríticos, nunca nos diz que não discirnamos.
A Bíblia nos
discernimento.
exorta
continuamente
ao
espírito
de
Como podemos “provar os espíritos”, como podemos nos
guardar dos falsos profetas, sem não exercitarmos nosso juízo
e discernimento?
Em outras palavras, temos que reconhecer o erro, porém,
temos que fazê-lo, não para condenar senão para ajudar. (E
também para manter a verdade e a justiça entre os cristãos –
nota do tradutor).
Ao fazer a afirmação deste sexto versículo nosso Senhor quer
se referir à verdade, que é santa, e que tem sido comparada
com s pérolas. A pérola aqui referida é a mensagem cristã, a
mensagem do reino, as coisas relativas ao reino de Deus.
O cachorro, nos dias de nosso Senhor, na Palestina, não era o
animal doméstico que temos hoje. Mas viviam nas ruas
comendo do lixo, e era um animal selvagem e perigoso. E na
sociedade judaica o porco representava a tudo o que era
impuro e condenado pela Lei.
E estes são os dois termos que nosso Senhor emprega para nos
ensinar como discernir entre pessoa e pessoa. Temos que
reconhecer que há um tipo de pessoa que, relativamente á
verdade, se coloca na posição de cão e de porco.
360
Isto não se refere à posição de todos os não cristãos, porque de
outro modo nunca poderiam se converter porque estariam
impedidos de ouvir a verdade.
Mas se refere a discernir entre pessoa e pessoa quanto ao
modo que se posicionam em relação ao evangelho.
Veja como nosso Senhor evitou em expor a verdade quanto
interpelado por Pilatos e por Herodes.
Veja como Paulo e Barnabé se opuseram a continuar
pregando o evangelho aos judeus de Antioquia que estavam
resistindo à verdade (At 13.46).
Não há nada tão trágico e antibíblico como testemunhar aos
outros de forma mecânica. Há cristãos que são réus disto. Dão
testemunho, porém o fazem numa forma totalmente
mecânica. Nunca pensam na pessoa com a qual tratam; nunca
tratam de avaliá-la nem em descobrir exatamente em que
posição está. Falham completamente em por em prática esta
exortação. Apresentam a verdade exatamente na mesma
forma a todos e a cada um. Aparte do fato de que seu
testemunho se torna bastante inútil, a única coisa que
conseguem é um sentimento de autocomplacência, e expõem
o santo nome do Senhor à ignomínia e desonra.
Nosso Senhor descreve a reação do cão e do porco, ao pisotear
e destroçar, a blasfêmia e a maldição. E devemos ter sempre
cuidado em não dar base a ninguém para que blasfeme e
maldiga.
Buscar e Achar – Mateus 7.7-11
“7 Pedi, e dar-se-vos-á; buscai, e achareis; batei e abrir-se-vosá.
8 Pois todo o que pede, recebe; e quem busca, acha; e ao que
bate, abrir-se-lhe-á.
9 Ou qual dentre vós é o homem que, se seu filho lhe pedir
pão, lhe dará uma pedra?
10 Ou, se lhe pedir peixe, lhe dará uma serpente?
11 Se vós, pois, sendo maus, sabeis dar boas dádivas a vossos
filhos, quanto mais vosso Pai, que está nos céus, dará boas
coisas aos que lhas pedirem?” (Mt 7.7-11).
Não posso imaginar uma afirmação melhor, mais alentadora
ou mais consoladora, com a qual podemos enfrentar todas as
361
incertezas e dificuldades de nossa vida neste mundo, que a
contida nos versículos 7 a 11 de Mateus 7. É uma dessas
promessas cheias de graça que somente se encontram na
Bíblia. Não há nada que possa ser mais alentador que essas
promessas ao enfrentar-nos com a vida e todas suas
incertezas e possibilidades, e com nosso futuro desconhecido.
Numa situação assim, esta é a essência da mensagem bíblica
desde o princípio até o fim, esta é a promessa que nos é feita:
“Pedi, e dar-se-vos-á; buscai, e achareis; batei e abrir-se-vosá.”.
Para que estejamos completamente seguros disso, nosso
Senhor o repete, e o põe numa forma todavia mais vigorosa,
quando diz: “Porque todo aquele que pede, recebe; e o que
busca, acha, e ao que chama, se lhe abrirá.”.
Não cabem dúvidas acerca disso, porque é certo; é uma
promessa absoluta. E mais do que isso, é uma promessa que é
feita pelo Filho de Deus mesmo. Falando com toda plenitude
e autoridade de seu Pai.
A Bíblia nos ensina a cada passo que esta é a única coisa que
importa na vida. A visão bíblica da vida, em contraposição com
a visão mundana, é que a vida é uma viagem, uma viagem
cheia de perplexidades, problemas e incertezas.
Sendo assim, põe em relevo o que na realidade importa na
vida não é tanto as coisas diferentes que nos ocorrem, e das
quais temos que nos ocupar, senão nossa disposição
para enfrentá-las.
O ensino bíblico total a respeito da vida está sintetizado em
certo sentido em Abraão, de quem se nos diz que saiu sem
saber para onde ia.
Contudo, foi perfeitamente feliz, viveu em paz e tranquilidade.
Não teve medo. Por que? Um antigo puritano que viveu há 300
anos respondeu a esta pergunta por nós: “Abraão saiu sem
saber aonde ia, porém sabia com quem ia.”.
Isto é o que importa, sabia que havia saído nessa viagem com
Alguém.
Não estava só, havia Alguém com ele que lhe havia dito que
nunca lhe deixaria, nem abandonaria; e ainda que não
estivesse seguro quanto aos sucessos que iria encontrar, e os
problemas que ocorreriam, estava perfeitamente feliz,
362
porque conhecia, se me permitem dizê-lo assim, ao seu
Companheiro de viagem.
Abraão foi como o próprio Senhor Jesus Cristo, que, sob a
sombra da cruz, e sabendo que inclusive seus discípulos mais
íntimos iriam abandoná-lo por temor e preocupação de
salvarem suas próprias vidas, contudo pôde dizer isto: “Eis
que vem a hora, e tem já chegado, em que sereis espalhados
cada uma para seu lado, e me deixareis só; mas não estarei só,
porque o Pai está comigo” (João 16.32).
Segundo a Bíblia, isto é a única coisa que importa, nosso
Senhor nos promete transformar a nossa vida; não nos
promete remover dificuldades, provas, problemas e
tribulações, não diz que vai arrancar todos os espinhos e
deixar somente as rosas com seu aroma maravilhoso, não,
enfrenta-se a vida de forma realista, e nos diz que estas são
coisas que a carne manifesta e que têm que suceder.
Porém, nos garante que podemos conhecê-lo até o ponto que,
seja o que for que suceda, nunca teremos que nos assustar,
nunca teremos que nos alarmar.
Diz tudo isto nesta promessa tão grande e compreensiva:
“Pedi, e dar-se-vos-á; buscai, e achareis; batei e abrir-se-vosá.”.
Esta é uma das formas bíblicas de repetir esta mensagem, que
se encontra ao longo da Bíblia, como espinha dorsal, desde o
princípio até o fim.
Para tirar todo o proveito de palavras tão maravilhosas e
cheias de graça, devemos examiná-las com mais detalhes.
Não basta repetir uma frase como esta.
A Bíblia nunca deve ser utilizada como uma espécie de
tratamento psicológico.
Há pessoas que assim o fazem. Há pessoas que pensam que a
melhor forma de passar pela vida triunfalmente é ler e repetir
versículos maravilhosos. Desde logo, isso pode ajudar até
certo ponto; porém não é a mensagem bíblica nem o método
bíblico. Essa espécie de tratamento psicológico alivia somente
de maneira temporal.
É como o ensino que nos diz que não há enfermidades nem
dor. Isto parece muito útil e pode conduzir a melhoras
temporais; porém se há enfermidades que levam à morte,
363
como chegam a descobrir inclusive por si mesmos os
seguidores de tais ideias, de que serve tal ensino?
Esta não é a forma bíblica. A Bíblia nos transmite a verdade, e
quer que examinemos esta verdade. Assim pois, quando
chegamos a uma frase como esta não nos contentamos com
dizer: “está bem”. Devemos saber o que significa, e devemos
aplicá-la em detalhes em nossa vida.
Ao começar a analisar esta grande afirmação, devemos
recordar essa norma de interpretação que temos ouvido
frequentemente e que nos põe de sobreaviso contra o perigo
de tirar um texto de seu contexto.
Temos que evitar o terrível perigo de torcer a Bíblia, para
nossa perdição, ao não tomá-la em seu contexto, ou ao não
observar especificamente o que diz, ou ao não prestar atenção
tanto às limitações como às promessas.
Isto é sobremaneira importante no caso de uma afirmação
como esta. Há pessoas que dizem: “a Bíblia diz: Pedi, e dar-sevos-á; buscai, e achareis; batei e abrir-se-vos-á. Muito bem”, prosseguem – “acaso isto não está dizendo de forma explícita,
e não quer dizer necessariamente que tudo o que eu deseje ou
queira, Deus me dará?”. E porque creem que diz isto, e porque
pensam que esse é o ensino bíblico, prescindem os demais
ensinos e vão a Deus com todas suas petições.
Estas petições não lhes são concedidas, e então, caem em
depressão e em desesperança.
Sua situação é todavia pior do que era antes; e dizem: “Parece
que Deus não cumpre suas promessas”, e se sentem
amargurados e infelizes. Temos que evitar isto. A Bíblia não é
algo que funciona automaticamente. Por esta razão não
examinemos somente os versículos 7 e 8. Examinemos os
versículos 7 a 11 porque devemos tomar esta afirmação como
um todo, se não queremos nos desviar gravemente ao
examinar suas partes distintas.
Não é difícil mostrar que esta afirmação, longe de ser uma
promessa universal pela qual Deus tem se comprometido a
nos dar tudo o que pedimos, é de fato algo muito maior que
isso.
Dou graças a Deus – permita-me dizê-lo com toda clareza – dou
graças a Deus de que não esteja disposto a dar-me tudo o que
364
eu possa pedir-lhe, e digo isto como resultado de minha
própria experiência.
Em minha vida passada, e como todas as pessoas, pedi
frequentemente a Deus coisas, e tenho lhe pedido que faça
coisas, que naqueles momentos, desejava muito e que cria
que eram o melhor para mim. Porém, agora, situado neste
ponto concreto de minha vida e ao contemplar o passado, digo
que me sinto profundamente agradecido a Deus de que não
me tivesse concedido certas coisas que lhe pedira, e de que
me tivesse fechado a porta na cara. Naquele momento não
entendi, porém agora, sei, e estou agradecido a Deus por isso.
Pelo que Lhe dou graças de que isto não seja uma promessa
universal, e de que Deus não me dará tudo o que desejo e peço.
Deus tem coisas melhores para nós, e agora o veremos.
A forma adequada de ver esta promessa é a seguinte: Antes de
tudo perguntemo-nos o óbvio. Por que nosso Senhor
pronunciou estas palavras neste momento específico? Por
que estão nessa frase do Sermão do Monte? Recordemos que
haja pessoas que dizem que este capítulo sétimo de Mateus,
esta porção final do Sermão do Monte, não é senão uma
coleção de afirmações que nosso Senhor emitiu à medida que
se lhe ocorriam. Porém, já temos visto que esta análise é
muito falsa, e que há um tema que constitui a espinha dorsal
do capítulo.
O tema é o do juízo, e nos recorda que nesta vida vivemos
sempre sob o juízo de Deus. Nos agrade ou não, o olhar de
Deus nos segue, e esta vida é uma espécie de escola
preparatória para a grande vida que nos espera além da morte
e do tempo.
Em consequência, tudo o que fazemos neste mundo tem um
significado tremendo, e não podemos nos permitir o luxo de
não nos fixarmos em nada.
Este é o tema, e nosso Senhor o aplica deste modo. Começa
com a questão de julgar aos demais.
Devemos ter cuidado acerca disto porque nós mesmos
estamos sob juízo. Porém, por que então nosso Senhor
pronuncia esta promessa dos versículos 7 a 11 a esta altura?
A resposta é esta: Nos versículos 1 a 5 nos tem mostrado o
perigo de condenar os outros como se fôramos os juízes, e
abrigar amargura e ódio no coração. Também nos tem dito
365
que devemos procurar tirar a viga do nosso próprio olho antes
de extrair a palha do olho alheio. O efeito de tudo isto em nós
é revelar-nos quem somos e mostrar-nos nossa tremenda
necessidade da graça. Nos tem colocado frente a frente dessa
norma tremendamente elevada com a qual seremos julgados
– “Com o juízo com que julgardes, sereis julgados, e com a
medida com que tiverdes medido, também medirão a vós.”.
Esta é a situação no final do quinto versículo.
E no verso 6 Jesus nos ordena: “Não deis aos cães as coisas
santas, nem deiteis aos porcos as vossas pérolas, não aconteça
que as pisem com os pés e, voltando-se, vos despedacem.”.
Há um princípio espiritual imutável em Deus de honrar
somente àqueles que o honrarem.
Não admira portanto, que aqueles que não se interessam pelo
tesouro celestial, sejam pobres das coisas espirituais,
celestiais e divinas. Como não têm fome e sede de justiça, não
pedem e não procuram por este tesouro celestial.
Se colocamos um desprezo naquilo que é verdadeiramente
precioso, o que poderíamos esperar receber?
Note-se o caso de quem está sempre se alimentando de leite e
nunca está em condições de receber alimento sólido. Qual é a
razão disto? Deus teria porventura prazer em esconder e não
conceder do tesouro do conhecimento, entendimento e
prática da sua Palavra a nós?
Ou a causa disto se encontra em nós mesmos? Na nossa falta
de fome e sede de justiça? Na nossa negligência que não nos
leva a lhe pedir com a alma, e não com meras palavras, em
demonstração de firme interesse de aprender dele por uma
contínua meditação na sua Palavra e no aprendizado humilde
com os verdadeiros mestres que Ele levantou ao longo da
história da Igreja!
Oh! Quão duros somos para enxergar que sem buscar com
toda as nossas forças e alma, em grande interesse sincero
num maior conhecimento de Jesus, jamais poderemos ter um
verdadeiro crescimento na graça, que será o fator que nos
possibilitará compreender e viver as coisas profundas
relativas ao reino de Deus.
(“Buscai e encontrareis”, é o que Ele nos tem prometido. E por
acaso poderia negar a Si mesmo deixando de cumprir o que
prometeu?
366
Mas muitos têm confundido esta passagem das Escrituras
como um encorajamento a buscarmos as coisas que sejam do
nosso próprio interesse carnal, da simples solução dos nossos
problemas terrenos, mas o texto deve ser entendido no seu
contexto, porque foi proferido quando Jesus se encaminhava
para concluir o Sermão do Monte, e imediatamente após ter
proferido as seguintes palavras no verso anterior ao do nosso
texto: “Não deis aos cães as coisas santas, nem deiteis aos
porcos as vossas pérolas, não aconteça que as pisem com os
pés e, voltando-se, vos despedacem.” (Mt 7.6).
Ele estava falando da preciosidade das coisas santas, e do
cuidado que deveríamos ter com elas, em razão do seu
elevado valor tanto para Deus quanto para nós. Foi pensando
nelas que nos ordenou pedir, buscar e bater à porta do céu à
procura delas.
Se o fizermos, elas nos santificarão progressivamente. Darnos-ão o crescimento e amadurecimento espiritual que
procede de Deus. Poderemos ser nutridos com o alimento
sólido que procede do céu, pelo Espírito Santo, em aplicação
da Palavra ao nosso entendimento e corações, e segundo o
autor de Hebreus teremos as faculdades exercitadas para
discernirmos tanto o bem como o mal (Hb 5.14).
E o ser capacitado por Deus a se nutrir de alimento sólido
significa ser experimentado na palavra da justiça, segundo a
experiência que Ele próprio concede progressivamente
àqueles que honram o seu nome, valorizando o tesouro santo
do céu, por uma busca constante, fervorosa do mesmo, por
causa do seu amor pelo Senhor Jesus – nota inserida pelo
tradutor).
(O texto inserido por nós ao de D. M. Lloyd Jones, considerado
juntamente com os argumentos que ele havia apresentado e
que ainda continuará apresentando doravante sobre os versos
1 a 5, ajudam-nos a entender melhor a que Jesus queria se
referir com as palavras de Mateus 7.7 – inserido pelo tradutor).
Imediatamente nos damos conta de que temos sido
humilhados e começamos a perguntar: “Quem poderá viver
assim? Como posso viver de acordo com tais normas?” E não
somente isto; damo-nos conta da necessidade de purificação.
Apercebemo-nos do quanto somos pecadores e indignos, e o
367
resultado de tudo isto é que nos sentimos completamente
desesperançados e impotentes.
Dizemos: “Como podemos viver o Sermão do Monte? Como
pode alguém alcançar semelhante nível? Necessitamos de
ajuda
e
graça.
Onde
poderemos
consegui-los?”.
Aqui está a resposta: “Pedi, e dar-se-vos-á; buscai, e achareis;
batei e abrir-se-vos-á.” Esta é a conexão, e deveríamos
agradecê-la a Deus, porque ao nos situarmos frente a frente
com este glorioso evangelho, todos devemos sentir-nos pouca
coisa, e indignos.
Essas pessoas néscias que pensam no cristianismo somente
em função de uma certa moralidade que podem alcançar por
si mesmos, nunca têm entendido de verdade.
A norma que nos apresenta é a que se encontra no Sermão do
Monte, e segundo ela, ficamos prostrados até ao chão e nos
damos conta da nossa incapacidade total e de nossa
necessidade desesperada de graça. Temos aqui a resposta: a
provisão está disponível, e nosso Senhor a repete para colocála mais em relevo.
Ao examinarmos isto devemos nos fazer uma série de
perguntas: “Por que somos o que somos se existem tais
promessas? Por que é tão pobre a qualidade da nossa vida
cristã? Não temos diante de nós qualquer desculpa. Tudo o
que necessitamos está disponível; por que então somos o que
somos? Por que não somos exemplos mais perfeitos deste
Sermão do Monte? Por que não nos conformamos cada vez
mais ao modelo do Senhor Jesus Cristo mesmo? Se nos
oferece tudo o que necessitamos; tudo nos tem sido
prometido nesta promessa geral. Por que não nos servimos
dela como deveríamos? Por sorte, esta pergunta tem resposta
e este é o significado verdadeiro deste versículo. Nosso
Senhor analisa estas palavras e nos mostra porque não temos
recebido, porque não temos achado, e porque a porta não nos
tem sido aberta como deveria ser. Ele conhece o que somos, e
nos estimula a servir-nos desta promessa graciosa. Noutras
palavras, há que se observar certas condições para poder
desfrutar destes grandes benefícios que nos são oferecidos
em Cristo. Quais são? Mencionemo-los de forma simples e
breve.
368
Se queremos passar pela vida de maneira triunfal, com paz e
alegria no coração, dispostos a enfrentarmos tudo o que se
nos possa apresentar, e ser mais que vencedores, apesar de
tudo, há certas coisas que devemos observar, e aqui as temos.
A primeira é que devemos nos dar conta de nossa
necessidade. É estranho, porém há pessoas que parecem
pensar que a única coisa necessária são as promessas que
Deus fez.
Contudo, isto não é suficiente, porque o problema básico do
gênero humano é que não se dá conta do estado de
necessidade em que se encontra.
Há muitos que pregam acerca do Senhor Jesus Cristo sem
conseguirem nenhum efeito e este é o motivo: não têm
doutrina do pecado, nunca convencem as pessoas de seu
pecado. Sempre apresentam a Cristo e dizem que isto é
suficiente. Porém não é suficiente; porque o efeito do pecado
em nós é tal que nunca recorremos a Cristo a não ser que nos
demos conta de que somos pobres.
Porém, não nos agrada nos considerarmos como pobres, e
não nos agrada sentirmos nossa necessidade.
Assim, estão dispostos a escutarem sermões que apresentam
a Cristo, porém não lhes agrada que se lhes diga que são tão
incapazes, que Cristo teve que subir à cruz e morrer para que
pudessem ser salvos.
Pensam que isto é ofensivo. Temos que nos dar conta da nossa
necessidade. Os dois primeiros elementos essenciais para a
salvação e para a alegria em Cristo são a consciência da nossa
necessidade, e a consciência da riqueza da graça que há em
Cristo.
Somente os que se dão conta destas coisas podem
verdadeiramente “pedir”, porque somente o que diz
“miserável homem que sou!” busca a libertação. Os outros
não são conscientes de sua necessidade. O que sabe que está
quebrado é o que começa a pedir. E então começa a se dar
conta das possibilidades que existem em Cristo.
O que nosso Senhor destaca aqui, em princípio, é a
importância decisiva de conhecer nossa necessidade. Ele diz
por meio destes três termos: pedir, buscar, chamar.
Ao ler os comentaristas encontramos grandes discussões
relativas a se buscar, dizendo que é mais vigoroso que pedir, e
369
chamar mais vigoroso que buscar. Dedicam muito tempo para
discutir tais pontos. E como de costume, costumam se
contradizer. Uns dizem que pedir significa um desejo
superficial; buscar um desejo maior; e bater à porta algo
muito mais poderoso. Outros dizem que o homem que chama
batendo à porta é o que está fora e que é mais elevado pedir
que chamar. Dizem que o não cristão deve bater à porta e
começar a buscar, e que por fim, ao estar frente a frente com
o Senhor, pode começar a pedir.
Porém tudo isto está fora de propósito. Nosso Senhor
simplesmente quer enfatizar uma coisa, a saber, que temos de
mostrar persistência, perseverança, esforço contínuo.
(Buscar com toda intensidade e fervor de espírito, como
aqueles que têm e sentem realmente fome e sede de justiça;
reconhecendo nossa real necessidade, é a chave de
recebermos graça para sermos cada vez mais cristãos
melhores. Em resumo: não temos isto porque não buscamos,
uma vez que o Senhor tem prometido dar a quem buscar –
nota do tradutor).
Há momentos de fazer balanço da vida, quando nos detemos
e dizemos: “a vida segue; eu sigo, que progresso tenho feito
nesta vida e neste mundo?”. Concluímos que não vivemos a
vida cristã como deveríamos, não somos diligentes quanto
deveríamos na leitura da Bíblia e na oração. Dizemos que
vamos mudar tudo isto porque compreendemos que há um
nível mais elevado que devemos alcançar, e desejamos chegar
a ele.
Somos sinceros, somos muito sinceros, e verdadeiramente
desejamos fazê-lo.
Consequentemente, durante os primeiros dias de um novo
ano, lemos a Bíblia com regularidade, oramos e pedimos a
Deus sua bênção. Porém, e isto nos ocorre a todos – logo
começamos a falhar e a esquecer. No momento em que
pensamos em dedicar-nos à leitura ou à oração, sucede algo
imprevisto, como dissemos, algo que havíamos previsto, e
todo nosso programa fica alterado. Ao fim de uma ou duas
semanas descobrimos que temos esquecido completamente
nossa excelente resolução. Isto é o que preocupa a nosso
Senhor. Se temos de alcançar realmente estas bênçãos que
Deus nos tem reservado, devemos seguir pedindo.
370
“Buscar” simplesmente significa seguir pedindo, e chamar
significa a mesma coisa. É como uma intensificação da
palavra “pedir”. Seguimos, persistimos; somos como a viúva
insistente. Seguimos pedindo ao juiz, por assim dizer, como
ela o fez, e nosso Senhor nos diz o que o juiz disse: “como esta
viúva me incomoda, hei de fazer-lhe justiça, para que ela não
continue a vir molestar-me.” (Lc 18.5).
A importância deste elemento da persistência não se pode
exagerar. Encontra-se não somente no ensino bíblico, senão
também na vida de todos os santos. O mais fatal na vida cristã
é contentar-se com desejos passageiros e não crescer
espiritualmente. Se queremos realmente ser homens de
Deus, se queremos realmente conhecê-lo, e andar com Ele, e
experimentar essas bênçãos inesgotáveis que nos tem
reservado, devemos persistir em pedi-las todos os dias. Temos
de sentir esta fome e sede de justiça, e então seremos fartos. E
isto não quer dizer que estaremos cheios de uma vez por
todas, porque seguimos tendo fome e sede, como o apóstolo
Paulo, deixando as coisas que ficam para trás, prosseguimos
para o alvo, pelo prêmio da vocação celestial de Deus em
Cristo Jesus (Fp 3.14). “Não que já a tenha alcançado, ou que
seja perfeito; mas vou prosseguindo, para ver se poderei
alcançar.” (Fp 3.12), disse também o apóstolo. Assim é. Esta
persistência, este desejo constante, pedir, buscar e chamar.
Devemos estar de acordo em que este é o ponto em que a
maior parte de nós falhamos.
Retenhamos pois, este primeiro princípio. Examinemo-nos à
luz desta passagem e do quadro do homem cristão que é
apresentado pelo Novo Testamento. Contemplemos estas
gloriosas
promessas
e
perguntemo-nos:
“Estou
experimentando tais promessas?”. Se vemos que não, como
todos, devemos reconhecer então que devemos voltar a esta
grande afirmação. Isto é o que quero dizer com
“possibilidades”.
Se devo começar pedindo e buscando, devo seguir fazendo
isto até que esteja consciente de que o nível espiritual que
alcanço é mais elevado. E assim devemos seguir. É uma
batalha da fé; é o que persevera até o fim que será salvo neste
sentido. Persistência, continuidade, orar sempre e não
desmaiar. Não somente orar quando desejamos uma grande
371
bênção e logo parar; orar sempre. Persistência, isto é o
primeiro. Dar-nos conta da necessidade, dar-nos conta da
provisão, e persistência em buscá-la.
(Lembramos que tudo isto não tem a ver primeiro com os
nossos próprios interesses, mas com os interesses de Deus,
porque nos é ordenado buscar o seu reino e a sua justiça como
prioridade de nossas vidas, e lembramos também que isto não
coloca em perspectiva bênçãos ocasionais, mas o pedido
fervoroso da alma por uma vida mais santa e útil nas mãos de
Deus, para a realização dos seus santos propósitos através de
nós. Afinal, pelo contexto do Sermão do Monte, no qual a
promessa de Mt 7.7 foi feita, não se coloca em perspectiva
pedirmos bênçãos a Deus que nos tornem prósperos segundo
o padrão deste mundo, mas as operações da sua graça que nos
tornem mais semelhantes a Cristo – nota do tradutor).
Examinemos agora o segundo princípio, a saber, dar-nos
conta de que Deus é nosso Pai. Nosso Senhor fala acerca disto
a partir do versículo 9 e o apresenta assim: “Ou qual dentre
vós é o homem que, se seu filho lhe pedir pão, lhe dará uma
pedra? Ou, se lhe pedir peixe, lhe dará uma serpente? Se vós,
pois, sendo maus, sabeis dar boas dádivas a vossos filhos,
quanto mais vosso Pai, que está nos céus, dará boas coisas aos
que lhas pedirem?” (Mt 7.8-11). (O texto paralelo de Lc 11.13 traz
“dará o Espírito Santo àqueles que lho pedirem" no lugar de
“boas coisas aos que lhas pedirem” de Mt 7.11, e isto é muito
significativo porque revela qual é o caráter destas coisas boas,
a saber, as bênçãos espirituais que nos são dadas e aplicadas
pelo Espírito Santo. O reino de Deus e sua justiça, que
buscamos, é o que nos será dado, as demais coisas necessárias
à nossa sobrevivência neste mundo ser-nos-ão dadas como
um acréscimo à nossa fidelidade em buscar estas bênçãos
melhores e superiores, que são espirituais e que têm a ver
com o nosso amadurecimento espiritual – nota do tradutor).
Se um pai terreno faz tanto por seus filhos, quanto mais o fará
o Pai celestial?
Um dos maiores dos nossos problemas para vivermos a vida
cristã consiste no nosso fracasso em conhecer a Deus como
Pai, como deveríamos.
Este é nosso verdadeiro problema, e não o ter dificuldades
acerca de bênçãos específicas. O problema básico segue
372
sendo que não conhecemos, como deveríamos, que Deus é
nosso Pai. Ah, sim, dizemos, sabemos isto e cremos nisto!
Porém o sabemos na nossa vida e viver cotidiano? É algo do
que estamos sempre conscientes? Se estivéssemos
persuadidos disto, poderíamos sorrir diante de todos os
imprevistos que nos esperam.
Como Deus é nosso Pai, nunca nos dará algo mau. Dar-nos-á
somente o que é bom. Quem há entre os homens cujo filho lhe
peça pão, e lhe dê uma pedra? Multipliquemos isto ao infinito
e esta é a atitude de Deus para seus filhos. Em nossa
necessidade somos propensos a pensar que Deus é contra nós
quando nos sucede algo desagradável. Porém Deus é nosso
Pai; e como nosso Pai nunca nos dará algo mau. Nunca! É
impossível! Mesmo suas correções dolorosas são para o nosso
bem, para participarmos mais da sua santidade.
O terceiro princípio que se aprende no nosso texto é que Deus,
por ser Deus, nunca comete erros. Conhece a diferença entre
o bom e o mau numa forma única. Tomemos um pai terreno;
não dá pedras em vez de pães, porém, às vezes comete erros.
O pai terreno, com a melhor intenção, pensa às vezes, em
certo momento que está fazendo algo para o bem de seu filho,
porém descobre mais adiante que lhe prejudicou. Nosso Pai
que está no céu nunca comete tais erros. Nunca nos dará nada
que resulte em dano para nós, ainda que à primeira vista
pareça bom. Esta é uma das coisas mais maravilhosas que
podemos descobrir. Somos filhos de um Pai que não somente
nos ama senão que cuida de nós permanentemente. Nunca
nos dará nada mau. Porém acima de tudo, nunca nos
enganará, nunca cometerá erros no que nos dará. Sabe tudo,
seu conhecimento é absoluto. Se compreendêssemos que
estamos nas mãos de um Pai assim, nossa visão do futuro seria
totalmente transformada.
Finalmente, devemos recordar mais a cada dia os dons que
tem para nós. Já nos referimos que a passagem paralela de Lc
11.13 traz “Espírito Santo” no lugar de “coisas boas”. E ao nos
dar o Espírito Santo, nos dá todas as coisas e disposições que
necessitamos, todas as graças, todos os dons. Tudo nos é dado
nele. Pedro resumiu isto dizendo: “todas as coisas que
pertencem à vida e à piedade nos têm sido dadas pelo seu
divino poder.” (II Pe 1.3). Agora se vê porque deveríamos dar
373
graças a Deus de que pedir, buscar e chamar não signifique
que tudo o que lhe peçamos será dado. Claro que não. O que
significa é isto: “Peçamos uma dessas coisas que são boas para
nós, e que se encontram dentro da vontade de Deus para nós,
como a salvação da alma, a santificação, e tudo o que nos
aproxime mais de Deus, e Ele nos dará estas coisas boas. Ele
fará com que tudo coopere juntamente para o nosso bem, isto
é, para cumprir todo o bem que tem projetado para cada um
de nós, como seus filhos amados. E isto nos será concedido à
medida da nossa fome e sede de justiça, que nos leve a pedir,
buscar, chamar. E já dissemos, e voltamos a repetir que estes
pedidos são sobretudo pedidos da alma, anelos do coração,
por uma maior consagração a Deus.
Dar-nos-á coisas boas que são boas para nós, e a promessa é
literalmente esta, que se buscamos estas coisas boas, a
plenitude do Espírito, a vida de amor, alegria, paz, paciência
etc, todas estas virtudes e glórias que se viram resplandecer
com tanta intensidade no ministério terreno de Cristo, Ele nôlas dará. Se desejamos realmente ser mais como Ele é, e como
todos os santos, se realmente pedimos estas coisas, as
receberemos; se as buscamos, as acharemos; se chamarmos à
porta do céu ela será aberta para nós, e entraremos na posse
das mesmas. A promessa é, que se pedimos as coisas boas,
nosso Pai celestial nô-las dará.
Esta é a maneira de encararmos o futuro. Ver na Bíblia quais
são estas coisas boas e buscá-las. O que importa acima de tudo,
o melhor de tudo para nós, é conhecer a Deus, “o único Deus
verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviou”, e se buscarmos
isto acima de tudo, se buscarmos em primeiro lugar o reino
de Deus e a sua justiça, então temos a Palavra do Filho de Deus
de que todas estas coisas nos serão acrescentadas. Deus nô-las
dará com uma abundância que nem sequer podemos
imaginar.
A Regra de Ouro – Mateus 7.12
“Portanto, tudo o que vós quereis que os homens vos façam,
fazei-lho também vós a eles; porque esta é a lei e os profetas.”
(Mt 7.12)
374
Sempre há o perigo de considerar a lei como algo em si
mesmo e por si mesmo, e de pensar que a única coisa que há
que se fazer é observar todas as regras e que, se assim o
fazemos e nunca nos desviamos delas, se nunca nos
excedemos
em
cumpri-las
nem
as
cumprimos
deficientemente, tudo irá bem. Contudo, todas estas ideias
acerca da lei são completamente falsas.
Talvez podemos dizer que o perigo em que nos encontramos
é pensar na lei como algo negativo, algo proibitivo. Claro que
há aspectos da lei que são negativos; porém o que nosso
Senhor enfatiza aqui é que a lei que Deus deu aos filhos de
Israel por meio dos anjos e de Moisés é algo muito positivo, é
algo espiritual. Nunca quis ser algo mecânico, e a falácia
básica dos fariseus e dos escribas, e de todos seus seguidores,
foi que reduziram algo essencialmente espiritual e vivo a nível
do mecânico, a algo que era um fim em si mesmo. Pensaram
que como não haviam matado a ninguém, haviam observado
a lei relativa ao homicídio, e que, como hão haviam cometido
adultério físico, tudo estava bem no sentido moral.
Se fizeram culpados de não verem o desígnio espiritual, o
caráter espiritual da lei, e sobretudo de não verem o grande
fim e objetivo para o que se havia dado à lei.
Aqui, nosso Senhor diz tudo nesta síntese perfeita. O propósito
básico e o espírito verdadeiro que está na raiz de tudo isto é
que devemos amar o próximo com a nós mesmos, que temos
que nos amar uns aos outros.
Sendo como somos, contudo, não basta que se nos diga que
nos amemos uns aos outros; tem que ser detalhado. Como
resultado da Queda somos pecadores; em consequência não
basta dizer: “Amai-vos uns aos outros”. Nosso Senhor, em
consequência, o detalha e diz: do mesmo modo que valorizas
tua própria vida, recorda que os outros também valorizam as
suas, e que se tua atitude para com um homem é adequada,
não matarás a esse homem, porque sabes que valoriza sua
vida como tu valorizas a tua. O vital, depois de tudo, é que ames
a esse homem, que o compreendas e desejes o bem-estar do
teu próximo, dom esmo modo como desejas teu próprio bemestar. Esta é a lei e os profetas. Tudo se reduz a isto. As normas
detalhadas que são dadas no Velho Testamento – o que se te
diz que faças, por exemplo, se vês que o boi do teu vizinho
375
fugiu, com tens que levá-lo, ou se vês que algo vai mal em seus
cultivos, como tens que informar-lhe imediatamente e fazer
todo o possível para ajudá-lo.
Agora, devemos aplicar tudo isto ao mundo moderno e a nós
mesmos. As pessoas ouvem a regra de ouro, a louvam como
maravilhosa e estupenda, e como uma síntese perfeita de um
tema importante e complicado. Porém a tragédia é que,
depois de tê-la louvado, não a cumprem. E depois de tudo, a lei
não foi dada para ser louvada senão para ser praticada. Nosso
Senhor não pregou o Sermão do Monte para que vocês e eu o
pudéssemos comentar, senão para que o cumpríssemos.
A razão para que todos os homens, por instinto e natureza, não
se apressem a colocar em prática esta regra de ouro é porque
são egoístas.
Tudo pode ser reduzido numa palavra: o ego. Nosso Senhor diz
que deveríamos amar ao próximo como a nós mesmos.
Porém, isso é o que não fazemos, e não queremos fazê-lo,
porque amamos o eu demasiadamente e numa forma
equivocada. Não fazemos aos demais como gostaríamos que
eles fizessem a nós, porque estamos sempre pensando
somente acerca de nós mesmos, e nunca nos dedicamos a
pensar nos outros.
Como pode alguém colocar em prática esta regra de
ouro? Como pode nossa conduta e atitude se conformar com
o que nosso Senhor nos diz aqui? A resposta do evangelho é
que tem que se começar com Deus. Qual é o maior
mandamento? É este: “Amarás ao Senhor teu Deus com todo
teu coração, e com toda a tua alma, e com toda a tua mente”. E
o segundo é semelhante: “Amarás o teu próximo como a ti
mesmo.”
Se não amarmos primeiro a Deus não poderemos amar o
próximo.
A Porta Estreita – Mateus 7.13,14
“13 Entrai pela porta estreita; porque larga é a porta, e
espaçoso o caminho que conduz à perdição, e muitos são os
que entram por ela;
14 e porque estreita é a porta, e apertado o caminho que
conduz à vida, e poucos são os que a encontram.” (Mt 7.13,14)
376
A notável e surpreendente afirmação dos versículos 13 e 14, é
importantíssima e vital. Podemos dizer sem temor de nos
equivocar que Jesus concluiu realmente o Sermão do Monte
propriamente dito, e que de agora em diante o que faz é
arrematá-lo, aplicá-lo, fazendo ver a seus ouvintes a
importância e necessidade de praticá-lo e cumpri-lo na vida
diária.
Temos visto em nossos estudos que a seção do Sermão que
ocupa o sétimo capítulo de Mateus tem uma unidade
essencial, um tema comum, a saber, o do juízo. A rigor, o
Sermão é concluído no versículo 12, onde Jesus resumiu todos
os princípios que queria inculcar (“Portanto, tudo o que vós
quereis que os homens vos façam, fazei-lho também vós a
eles; porque esta é a lei e os profetas.” V.12).
O objetivo do Senhor neste sermão, como temos visto, é o de
conduzir os cristãos a darem conta de sua natureza e caráter
como povo de Deus, e em seguida lhes mostrar como têm que
manifestar essa natureza e caráter na vida diária. Nosso
Senhor, o Filho de Deus, veio do céu à terra para fundar e
estabelecer um novo reino, o reino dos céus. Veio aos reinos
deste mundo, e seu propósito é chamar a si pessoas do mundo
e constituí-las em reino. Por conseguinte, é essencial que
proponha com toda clareza que este reino que veio
estabelecer é completamente diferente de tudo o que o
mundo tem conhecido, porque é o reino de Deus, o reino da
luz, o reino dos céus. seu povo deve dar-se conta de que é algo
único e distinto; por isso, lhes faz uma descrição do mesmo.
Temos estudado essa descrição. Temos examinado o retrato
geral que se faz do cristão nas Bem-Aventuranças. Temos
escutado o Senhor dizer a este povo, que precisamente por ser
esta classe de pessoas, que o mundo reagiria de forma
especial em relação a elas; e que as perseguiria. Contudo, não
têm que sair do mundo para se converter em monges e
eremitas; têm que permanecer na sociedade como sal e luz;
têm que guardar a sociedade da putrefação e da
decomposição, e têm que ser luz; essa luz, sem a qual o mundo
permanece num estado de trevas absolutas.
Uma vez feito isto, passa à aplicação prática e à elaboração
disso. Recorda-lhes o tipo de vida que têm que viver, tem de
377
ser completamente diferente, inclusive superior à das
pessoas mais religiosas que existiam naquele tempo.
Contrasta seu ensino com o dos fariseus, dos escritas e dos
sacerdotes da lei. Eram considerados como os melhores, os
mais religiosos, e contudo mostra ao seu povo que a sua
justiça deve superar a deles. E passa a lhes mostrar como isto
deve ser feito dando-lhes instruções detalhadas como por
exemplo como se deve dar esmolas, como se deve orar, e
como devem jejuar. Finalmente se ocupa de toda a nossa
atitude em relação à vida neste mundo, e de nossa atitude para
com o julgamento das demais pessoas.
E agora, havendo feito isto, faz uma pausa, por assim dizer,
para contemplar os seus e dizer: “bem, este é meu propósito.
Que vão fazer? De nada aproveita escutar este sermão, se vão
se contentar em escutá-lo. Que vão fazer?”. Passa, em outras
palavras, à exortação, à aplicação.
O método do Senhor deve ser o nosso método. Não há
verdadeira pregação se não se aplica a mensagem e a verdade
que ela contém; não há verdadeira exposição da Bíblia se nos
contentamos em explicar uma passagem e não fazer depois a
devida aplicação. A verdade deve ser incorporada à vida, e tem
de ser vivida. A exortação e a aplicação são partes essenciais
da pregação. Vemos como nosso Senhor faz precisamente isto
aqui. O resto deste sétimo capítulo não é senão uma grande
aplicação da mensagem do Sermão do Monte para aqueles
que o ouviram pela primeira vez, e para todos os que, em todos
os tempos, pretendem ser cristãos.
Em consequência, agora passa a submeter à prova os seus
ouvintes. Diz de fato: “tenho terminado o sermão. Agora
devem se perguntar: o que vou fazer? Qual é minha reação?
Vou me contentar com cruzar os braços e dizer com muitos
outros que é um sermão maravilhoso, que é a mais grandiosa
concepção da vida que o gênero humano tem conhecido –
moral tão sublime, uma elevação tão maravilhosa – que é a
vida ideal que todos deveriam viver?”. O mesmo se aplica a
nós. É essa nossa reação? Limitarmo-nos a louvar o Sermão do
Monte? Se é assim, segundo nosso Senhor, seria o mesmo que
não tivesse sido pregado. O que Ele quer não é elogio; é prática.
O Sermão do Monte não deve ser simplesmente elogiado, tem
que ser praticado.
378
Assim segue dizendo que há outra prova, a prova do fruto. Há
muitos que têm elogiado este sermão porém que nunca o têm
encarnado em suas vidas. Cuidado com essas pessoas, diz
nosso Senhor. O que importa realmente não é a aparência de
uma árvore; a pedra de toque é o fruto que ela dá.
Deste modo há uma prova final, e é a que as circunstâncias nos
aplicam. Que sucede quando o vento começa a soprar, e o
furacão ameaça, e cai a chuva produzindo inundações que
sacodem a casa da nossa vida? Ela se mantém de pé? Esta é a
prova. Noutras palavras, o interesse que tenhamos por estas
coisas de nada serve e não tem valor a não ser que signifique
que temos algo que nos permitirá permanecer firmes nas
horas mais tenebrosas e críticas de nossa vida. Assim é como
Jesus faz a aplicação.
Ao escutar estas coisas, ao ouvi-las, já não basta elogiá-las;
segundo nosso Senhor é sumamente perigoso. Este sermão é
prático; foi pregado para ser vivido. Não é uma simples ideia
ética; é algo que temos que realizar e por em prática. E somos
exortados a fazê-lo sempre à luz do juízo, sabendo que Deus é
Onipresente e julga todos os nossos pensamentos e ações. E
isto não é apenas o ensino do Sermão do Monte, é o ensino de
todo o Novo Testamento.
Tomemos qualquer passagem da Bíblia como a carta aos
Efésios, capítulos 4 e 5. Ali temos exatamente o mesmo. O
apóstolo lhes dá conselhos práticos, lhes diz que não mintam,
que não furtem, que amem, que sejam amáveis e de coração
terno. Isso não é senão uma reiteração do Sermão do Monte.
A mensagem cristã não é uma ideia teórica; é algo que
realmente tem de se converter numa marca de nossa vida
diária. Este é o propósito do restante deste sermão.
Agora devemos examinar os versículos 13 e 14 com os quais
nosso Senhor começa esta aplicação de sua própria
mensagem. Ele nos diz que a primeira coisa que devemos
fazer, depois de ter lido este sermão, é observar o tipo de vida
a que nos chama, de dar-nos conta do que significa. Temos
visto muitas vezes que o perigo, ao considerar o Sermão do
Monte, é perder-se em detalhes, ou desviar-se com coisas
específicas que não interessam. Este é um enfoque errado. Por
isso, Jesus nos exorta a que nos detenhamos a contemplar o
sermão como um todo e refletir acerca dele. Qual é o
379
elemento que sobressai como mais importante? Qual é o
elemento da vida cristã que deve ser captado como sendo seu
elemento básico? O Senhor nos responde dizendo que é a
“estreiteza”. É uma vida estreita, é um caminho estreito. E
aplicou isto de uma forma dramática afirmando que devemos
entrar pela portar estreita e caminhar por um caminho
também estreito.
Esta ilustração é muito útil e prática e o Senhor a apresenta
numa forma gráfica que nos permite visualizar
imediatamente a cena. Estamos caminhando, e de repente
encontramos diante de nós duas portas. Há uma à esquerda
que é ampla, e por ela entra uma multidão de pessoas. Do
outro lado, há uma porta estreita pela qual pode entrar
somente uma pessoa por vez. Ao olhar a porta ampla vemos
que conduz a um caminho amplo e que uma grande multidão
está caminhando por ele. Podemos ver o quadro com toda a
clareza. E o Senhor nos diz que esse caminho estreito é o
caminho que Ele deseja que sigamos, mas para isto devemos
entrar pela porta estreita, que é a que conduz a ele. Ele nos
convida para seguir este caminho porque é somente nele que
podemos encontrar a Ele seguindo adiante de nós.
Imediatamente recordamos algumas das características da
vida cristã à qual Jesus nos chama. É uma vida estreita e
apertada desde o seu começo. Não é uma vida que é bastante
ampla no começo e que à medida que a vamos vivendo vai se
estreitando cada vez mais. Não! A própria porta, que é a forma
de entrar nesta vida, é estreita. É importante sublinhar e
reforçar este ponto porque, é essencial desde a perspectiva do
evangelismo. Quando a sabedoria mundana e os motivos
carnais entram no evangelismo, descobrirão que isto não é a
porta estreita. Frequentemente isto dá a impressão que ser
cristão não é muito diferente de não ser cristão, que não tem
que se pensar no cristianismo como uma vida estreita, senão
como algo sumamente atrativo e maravilhoso, e que se entra
nessa vida de qualquer maneira. Segundo nosso Senhor, não
é assim. O evangelho de Jesus Cristo é demasiado sincero para
convidar a alguém dessa forma. Não se ocupa em persuadirnos de que é algo muito fácil, e que somente mais tarde
começaremos a descobrir que é difícil. O evangelho de Jesus é
algo que é anunciado desde o princípio como algo cuja
380
entrada é estreita. Isto significa que se queremos entrar nesta
vida há muitas coisas que teremos que deixar do lado de fora.
Não há lugar para elas. Porque temos que começar passando
por uma porta estreita e apertada. Agrada-me pensar nisto
como se fosse um torniquete que admite uma pessoa por vez
e não mais que isso. E é tão estreito que há certas coisas que
simplesmente não podemos carregar conosco. É importante
que consideremos este sermão para ver algumas destas
coisas que devemos deixar do lado de fora.
A primeira que temos que deixar do lado de fora é o que se
chama de mundanismo. Deixamos fora a multidão, o caminho
do mundo, porque esta porta é ampla e conduz à perdição.
Tornar-se cristão é converter-se em algo excepcional e pouco
frequente. Rompe-se com o mundo, com a multidão, com a
grande maioria das pessoas. É inevitável. É importante que o
saibamos. A forma cristã de viver não é popular. Nunca foi e
nunca o será. É uma forma diferente, excepcional. Ninguém
pode levar a multidão consigo na vida cristã, porque terá que
sair da multidão para entrar na porta estreita, e terá que fazêlo sozinho, e sem acompanhantes, numa firme decisão
pessoal, porque a porta é estreita. Implica inevitavelmente em
ruptura.
Estamos num mundo cheio de tradições, de hábitos e de
costumes, com os quais tendemos a nos conformar. É o fácil e
o óbvio, e podemos dizer que a maioria das pessoas não têm
nada que tanto odeiem quanto o serem diferentes.
Então uma das coisas mais difíceis que temos que enfrentar,
quando nos convertemos, é o pensar que isso nos tornará
diferentes. Porém isto tem que suceder. Uma das primeiras
coisas que sucedem à pessoa que escuta a mensagem do
evangelho é que diz para si mesma: “bem, seja o que for que
ocorra com a maioria, eu tenho alma e sou responsável por
minha própria vida.”. “Cada um levará a sua própria carga!”.
Consequentemente, quando uma pessoa se torna cristã,
começa a se ver como alguém separado deste grande mundo.
Estava vivendo intensamente com a multidão, porém se
detém de repente. Este é sempre o primeiro passo para chegar
a ser um cristão. E sente que deve se separar da multidão para
salvar sua alma e seguir a Cristo. E ainda que esta separação
seja difícil, sabe que deve fazê-lo. A porta estreita pela qual
381
passa somente uma pessoa por vez faz o homem reconhecer
que é responsável diante de Deus, seu Juiz Eterno. A porta é
estreita e apertada e nos conduz ao juízo, situando-nos cara a
cara com Deus, e leva-nos a considerar a questão da vida e de
nosso ser pessoal, de nossa alma e seu destino eterno.
Agora, uma coisa é deixar a multidão, porém outra muito
diferente é deixar o caminho da multidão. A falácia final do
monasticismo é isto. O monasticismo, na realidade se baseia
na ideia que se deixarmos as pessoas, deixaremos o espírito do
mundo. Mas não é assim. É possível deixar o mundo num
sentido físico, e se pode se afastar de uma multidão, porém na
solidão do mosteiro, o espírito do mundo pode nos seguir. O
mesmo pode ocorrer com a vida cristã. Há pessoas que têm se
separado do grupo ao qual pertenciam, e contudo, alguém
percebe que saiu do grupo, mas o espírito do grupo ainda
permanece nele. Não abandonou o espírito do mundo, mas
deve fazê-lo. Viver a vida do mundo e seguir o caminho do
mundo de um modo diferente, não nos torna cristãos. Noutras
palavras, devemos deixar do lado de fora da porta as coisas que
agradam ao mundo. Isto não pode ser evitado. Basta ler o
Sermão do Monte para chegar à conclusão que as coisas que
pertencem à nossa natureza não regenerada e que agradam a
esta natureza, devem ser deixadas do lado de fora dessa porta
estreita.
Isto pode ser ilustrado. No Sermão do Monte aprendemos
que devemos dominar o espírito que exige “olho por olho, e
dente por dente”, que não devemos resistir ao mal lutando
com as mesmas armas dele, e que devemos estar dispostos a
sofrer por amor a Cristo com a atitude de quem oferece a
outra face para ser ferida. Isto não se faz por instinto; não saem
espontaneamente de nós e não nos agradam. “Ao que
demanda contigo a túnica deixa-lhe também a capa!”. “A
qualquer que te obrigue a caminhar uma milha vai com ele
duas!”. “Amai os vossos inimigos, bendizei aos que vos
maldizem, fazei o bem aos que lhes aborrecem, e orai pelos
que lhes ultrajam e perseguem.”.
Não obedecemos estes mandamentos instintivamente, antes
resistimos a fazê-lo. O instintivo é devolver o golpe, defender
nossos direitos e amar os que nos amam e odiar os que nos
odeiam. Porém nosso Senhor nos disse que se queremos ser
382
seus discípulos e viver no seu reino, devemos deixar do lado
de fora o instinto mundano, as coisas que agradam a nossa
natureza caída e que o que essa natureza faz. Não há lugar para
tais coisas. Devemos nos dar conta desde o princípio que este
tipo de equipamento não pode entrar conosco no caminho
apertado. O Senhor nos adverte contra o perigo de uma
salvação fácil, que geralmente é traduzida pelo convite: “vem
a Cristo como és e estás e tudo irá bem!”. Não, o evangelho nos
diz desde o começo que vai ser difícil. Significa uma ruptura
radical com o mundo; é um tipo de vida completamente
diferente. De modo que deixamos fora não somente o mundo,
como também o caminho do mundo.
Mas não podemos deixar do lado de fora nosso antigo modo
de vida se não deixamos também do lado de fora o nosso “eu”.
E aqui é onde encontramos a pedra de tropeço maior. Uma
coisa é deixar o mundo e o caminho do mundo, porém mais
importante é deixar nosso eu. O eu é o homem adâmico, uma
natureza caída; e Cristo diz que tem que ser deixado fora.
“Despojai-vos do velho homem”, é o mesmo que dizer que
deve ser deixado do lado de fora da porta estreita. O velho e o
novo homem não podem passar juntos por esta porta que nos
dá acesso ao caminho do reino de Deus. O velho tem que ficar
do lado de fora.
O evangelho do Novo Testamento é muito humilhante para o
eu e para o orgulho. No começo do Sermão nos é dito: “Bemaventurados os pobres de espírito”. Mas a ninguém agrada ser
pobre de espírito. Por natureza somos exatamente o oposto,
porque todos nascemos com uma natureza orgulhosa, e o
mundo faz tudo o que pode para estimular este orgulho desde
o momento do nosso nascimento. A coisa mais difícil no
mundo é fazer-se pobre de espírito. É humilhante para o
orgulho, e contudo é essencial. A entrada desta porta estreita
tem um aviso que diz: “deixem do lado de fora o seu eu”. Como
podemos bendizer aos que nos maldizem, e orar pelos que se
aproveitam de nós, a não ser que façamos isto de fato?
O eu não pode existir nesta atmosfera; deve ser crucificado.
“Não julgueis para que não sejais julgados!”. Façam aos
demais o que querem que vos façam, e assim por diante. O
Senhor nos diz isto desde o começo. Não há como se criar
ilusões. Se alguém pensa que é uma vida na qual se poderá
383
alcançar fama e ser louvado, e ser considerado maravilhoso, é
melhor parar e retornar ao começo, porque o que entra por
esta porta sabe que deve dizer adeus ao eu. É uma vida de
humilhação. “Se alguém quer vir após mim!”. Que sucede?
“Negue-se a si mesmo (sempre em primeiro lugar), e tome
sua cruz e siga-me!”. Porém a auto negação, a negação do eu,
não significa abster-se de prazeres e coisas que nos agradam;
significa que negamos nosso direito mesmo ao nosso eu, que
deixamos fora o nosso eu, e que passamos pela porta dizendo:
“Já não vivo eu, mas Cristo vive em mim!”.
Jesus diz que a porta é estreita porque a vida cristã é difícil. Não
é uma vida fácil. É muito maravilhosa para ser fácil. Significa
viver como o próprio Cristo, e isto não é fácil. É por isso que
Jesus diz que são poucos que acham esta porta estreita.
Todo mundo pode seguir o comum e o fácil, porém quem
deseja alcançar as alturas, percebe que não há muitos que
estejam tentando fazer o mesmo. É isto o que se dá com a vida
cristã, é uma vida maravilhosa e elevada, que poucos
encontram e entram nela, simplesmente porque é difícil.
Além disso a porta é estreita porque sempre conduz ao
sofrimento, e porque quando se vive a verdade sempre traz
perseguição.
E a quem agrada ser perseguido? Não nos agrada que nos
critiquem e que nos tratem com rudeza. Nos agradam as
pessoas que falam bem de nós, e é muito irritante saber que
nos odeiam e criticam; porém Cristo nos tem advertido que
assim será se entrarmos por esta porta estreita. É estreita e
difícil, e ao entrar por ela, devemos estar dispostos ao
sofrimento e à perseguição.
Temos que estar dispostos a sermos mal-entendidos, temos
que estar inclusive dispostos a que isto ocorra com aqueles
que estão mais próximos de nós e quem queremos bem. Cristo
não disse que veio trazer a paz para todos os relacionamentos,
senão a espada, uma espada que talvez divida a mãe da filha, o
pai do filho, e os da própria casa talvez sejam os nossos
maiores inimigos. Por que? Porque ocorreu uma separação
operada pela espada. Quando se entra por esta porta estreita
não é possível mais estar unido em espírito com os que
entram pela porta espaçosa. Isto é muito difícil e muito duro.
Porém Jesus é sincero conosco, dizendo que teremos que
384
estar separados espiritualmente daqueles que não Lhe
seguem.
Agora, esta vida não é difícil somente no começo, pois segue
sendo depois. A porta estreita conduz a um caminho apertado.
A vida cristã é difícil do começo até o fim. Não existem férias
espirituais. A vida cristã é uma batalha da fé até o final. E há
inimigos em ambos os lados deste caminho apertado. Estão ao
longo da estrada até o seu final, as coisas que nos oprimem e
as pessoas que nos atacam. Ninguém terá uma vida fácil
quando está neste caminho. A verdadeira vida cristã, quando
realmente vivida será sempre difícil. Se alguém pensar que
será difícil no começo e que progressivamente vai se
tornando fácil, tem uma ideia completamente falsa do ensino
do Novo Testamento. É sempre apertada, terá inimigos e
adversários que nos atacarão até o último momento de nossas
vidas neste mundo.
Estou desanimando alguém com estas palavras? Haveria
algum ganho em dizer: “Bem, se é assim vou desistir?”. Antes
de dizer isto gostaria de lhe dizer, antes de se decidir, que há
algo sobre o final a que conduz este caminho. Porém afastado
dele o que se terá? Não é melhor continuar seguindo por este
caminho apertado? Mas em todo o caso, não tenhamos
ilusões, a luta contra os principados e potestades, contra as
trevas deste mundo e as hostes espirituais da maldade nas
regiões celestes, prosseguem enquanto os homens estão
nesta vida e neste mundo. No caminho da vida haverá
tentações sutis, e teremos que vigiar e estarmos alertas, desde
o princípio até ao fim. Nunca ninguém poderá descansar.
Sempre terá que ter muito cuidado; sempre terá que vigiar
com diligência, como Paulo disse, terá que vigiar todos os
passos que tiver que dar. É um caminho apertado que começa
assim e que assim continua.
O evangelismo genuíno, tal como o entendo, é o que
apresenta aos homens a vida cristã como um todo, e devemos
ter muito cuidado em não dar a impressão de que as pessoas
podem acudir em massa, por assim dizer, a Cristo, que podem
ter acesso à porta estreita sem levar em conta o caminho
apertado a que conduz. O Senhor foi quem pronunciou as
parábolas acerca dos néscios que não calculam o que custam
as coisas, como o homem que começou a edificar, sem levar
385
em conta o custo, por isso teve que deixar de concluir o
edifício. Assim também se deu no caso do rei que foi guerrear
contra outro rei, sem considerar a força do inimigo. O Senhor
nos diz que calculemos o que custa, e que avaliemos o que
temos de fazer antes de começar. Jesus não veio somente para
nos salvar do castigo do pecado, veio para fazer-nos santos, e
para “purificar para si um povo exclusivamente seu, zeloso de
boas obras”. Veio a este mundo para preparar o caminho de
santidade, e seu desejo e propósito em relação a nós é que
andemos nesse caminho seguindo suas pisadas, neste
chamamento tão elevado, nesta vida gloriosa, e que vivamos
da mesma maneira que ele viveu, resistindo inclusive até o
derramar do sangue se for preciso. Essa foi sua vida, um
caminho apertado e espinhoso; porém o seguiu. E o privilégio
de todos nós é o de sair do mundo e entrar nessa vida seguindo
a Ele até o fim.
Falsos Profetas – Mateus 7.13-20
“13 Entrai pela porta estreita; porque larga é a porta, e
espaçoso o caminho que conduz à perdição, e muitos são os
que entram por ela;
14 e porque estreita é a porta, e apertado o caminho que
conduz à vida, e poucos são os que a encontram.
15 Guardai-vos dos falsos profetas, que vêm a vós disfarçados
em ovelhas, mas interiormente são lobos devoradores.
16 Pelos seus frutos os conhecereis. Colhem-se, porventura,
uvas dos espinheiros, ou figos dos abrolhos?
17 Assim, toda árvore boa produz bons frutos; porém a árvore
má produz frutos maus.
18 Uma árvore boa não pode dar maus frutos; nem uma árvore
má dar frutos bons.
19 Toda árvore que não produz bom fruto é cortada e lançada
no fogo.
20 Portanto, pelos seus frutos os conhecereis.” (Mt 7.13-20)
Nos versículos 15 e 16, e até o final do sétimo capítulo de
Mateus, nosso Senhor ocupa-se somente de um grande
princípio, de uma grande mensagem. Enfatiza somente uma
coisa, a importância de entrar pela porta estreita e assegurar386
se de que estamos realmente andando no caminho apertado.
Em outras palavras, é uma espécie de reforço da mensagem
dos versículos 13 e 14. Ali o apresenta em forma de convite ou
exortação, que temos de entrar por essa porta estreita, e
caminhar e nos mantermos caminhando por este caminho
apertado. Agora o expande, mostrando-nos alguns dos
perigos, dificuldades e obstáculos que se apresentam a todos
os que se aplicam a fazer isso.
Jesus segue enfatizando este princípio vital, que o evangelho
não é algo que basta ser ouvido, ou aplaudido, senão que deve
ser aplicado.
Como disse Tiago, o perigo reside em se contemplar o espelho
e se esquecer imediatamente o que temos visto, em lugar de
contemplar insistentemente o espelho dessa lei perfeita e
recordá-la e colocá-la em prática.
Este é o tema que nosso Senhor segue sublinhando até o final
do Sermão do Monte. Antes de tudo o apresenta em forma de
dois perigos específicos e especiais que surgem no caminho.
Mostra-nos como temos que reconhecê-los e, uma vez
reconhecidos, como enfrentá-los.
Logo, uma vez expostos estes dois perigos, conclui o
argumento, e todo o Sermão, apresentando-o numa
afirmação simples, franca, clara, em função da metáfora das
duas casas, uma construída sobre a rocha e a outra sobre a
areia.
Porém, desde o início até o fim é o mesmo tema, e o fator
comum das três partes da afirmação geral é a admoestação
terrível sobre o fato do juízo.
Isso, como temos visto, é o tema que é apresentado em todo
este sétimo capítulo do evangelho de Mateus e é sumamente
importante que nos demos conta disso.
Não captá-lo explica a maioria de nossos problemas e
dificuldades. Explica o evangelismo superficial e
inconsistente tão comum hoje em dia. Explica a ausência de
vida santa que se percebe na maioria dos cristãos. Não é que
necessitemos de ensinos especiais acerca dessas coisas. O que
parece que todos esquecemos é que os olhos de Deus sempre
nos acompanham, e que todos caminhamos para o juízo final.
Por isso, nosso Senhor segue repetindo isto. Apresenta-o de
formas diferentes, porém sublinha sempre o fato do juízo, e a
387
índole do juízo. Não é um juízo superficial, não é um simples
exame de coisas externas, senão uma indagação do coração,
um exame de toda a natureza.
Sobretudo, sublinha o caráter definitivo, absoluto, do juízo, e
as consequências que lhe seguem.
Já nos disse nos versículos 13 e 14 porque devemos entrar pela
porta estreita. A razão é, diz Jesus, que a outra porta é ampla e
leva à perdição, a perdição que segue ao juízo final, no caso dos
ímpios.
Nosso Senhor, evidentemente, estava tão preocupado com
isto que constantemente o repetia. Isso mostra de novo a
perfeição do seu método como Mestre. Sabia a importância da
repetição. Sabia quanto obtusos e lentos somos, e sempre
dispostos a pensar que sabemos tudo, quando na realidade
não o sabemos e em consequência necessitamos que as
mesmas coisas nos sejam constantemente recordadas.
Nosso Senhor, portanto, nos recorda de novo estas coisas,
antes de tudo dando-nos advertências específicas. A primeira
é sobre os falsos profetas. “Guardai-vos dos falsos profetas,
que vêm a vós disfarçados em ovelhas, mas interiormente são
lobos devoradores.”.
O que devemos recordar é mais ou menos isto: Podemos dizer
que estamos junto ao umbral desta porta estreita. Temos
ouvido o sermão, temos escutado a exortação, e estamos
pensando no que fazer. “Agora”, diz nosso Senhor, “a esta
altura, uma das coisas com as que têm que ter cuidado é o
perigo de escutar os falsos profetas. Sempre estão aí, sempre
estão presentes, precisamente no umbral da porta estreita.
Esse é seu lugar favorito. Se alguém começa a escutá-los está
perdido, porque te persuadirão a que não entres pela porta
estreita, e que não andes no caminho apertado. Tratarão de
dissuadir-te de escutar o que te estou dizendo!”.
Existe pois, sempre o perigo dos falsos profetas que
apresentam esta tentação tão sutil.
A pergunta que se apresenta imediatamente é a seguinte:
“quem são estes falsos profetas? Como vamos reconhecêlos?”.
Esta pergunta não é tão fácil como parece, de ser respondida.
Uma escola de interpretação afirma que aqui se alude
somente ao ensino dos falsos profetas. E que a sua doutrina se
388
refere ao fruto que produzem, conforme referido pelo
Senhor.
Uma outra escola discorda da primeira citada e afirma que
esta referência aos falsos profetas não tem nada a ver com o
ensino, senão puramente com o tipo de vida que estas pessoas
vivem. seu ensino seria acertado, porém suas vidas não
corresponderiam ao seu ensino, por serem hipócritas.
Estas duas escolas têm razão em algo, mas também estão
equivocadas em algo.
Ambos elementos devem ser considerados. Não se pode dizer
que somente é questão de ensino herético, porque não é
muito difícil detectar tais ensinos.
A maioria das pessoas que possuem um certo discernimento
podem identificar um herege. E sem dúvida, a metáfora do
Senhor sugere que há uma dificuldade no reconhecimento
dos falsos profetas, que há algo sutil nisso. Ele fala em
vestimentas de ovelhas na metáfora. Sugere que a verdadeira
dificuldade, quanto a este tipo de falsos profetas, é que em
princípio não se imagina o que sejam.
Tudo é sumamente sutil; tanto é assim que o povo de Deus
pode ser levado ao engano por eles. Recordemos como Pedro
se referiu a isto no segundo capítulo da sua segunda epístola.
Estas pessoas, disse, “introduzirão encobertamente” os erros,
parecem pessoas justas, trazem a vestimenta de ovelhas, e
ninguém suspeita de qualquer falsidade.
Tanto o Antigo, quanto o Novo Testamento sempre fazem
ressaltar esta característica do falso profeta.
O perigo verdadeiro provém de sua sutileza.
Toda exposição genuína deste ensino, por conseguinte, deve
salientar devidamente este elemento específico.
Por esta razão, não se pode aceitar como sendo uma simples
admoestação acerca dos hereges e seus ensinos.
O mesmo se aplica ao outro grupo.
É óbvio que não há nada que ofenda na conduta dos falsos
profetas. Se fosse assim, todo mundo o reconheceria, e não
seria sutil nem constituiria nenhuma dificuldade. Ninguém
titubearia em deixar de segui-los.
O quadro que devemos ter diante de nós, portanto, deveria ser
este: o falso profeta é alguém que vem a nós e a princípio tem
o aspecto de ser tudo o que se poderia desejar. É agradável e
389
prazeroso; parece ser muito cristão, e parece dizer o que tem
que ser dito. seu ensino no geral é muito bom, utiliza muitos
termos que qualquer mestre cristão verdadeiro deveria usar.
Fala sobre Deus, fala de Jesus Cristo, da cruz, enfatiza o amor
de Deus, parece dizer tudo o que um cristão deveria dizer.
Obviamente, está vestido de ovelha, e em sua forma de viver
parece se harmonizar com isso. Em consequência ninguém
suspeita que haja algo mau nele, não há nada que chame logo
a atenção ou desperte qualquer suspeita, porque não há nada
abertamente mau.
Qual é pois o mal, e o que pode ser mau numa pessoa assim?
No entanto esta pessoa está equivocada tanto em seu ensino
quanto em sua forma de vida, porque, como veremos, estas
duas coisas sempre andam juntas. Nosso Senhor disse: “pelos
seus frutos os conhecereis”. O ensino e a vida humana não
podem ser separados, e onde há ensino errôneo, de alguma
maneira sempre haverá uma vida equivocada em algum
aspecto.
Como podem, pois, ser descobertas estas pessoas? Que há de
mau em seu ensino? A forma mais adequada de responder é
dizer que não há porta estreita neles, que não há caminho
apertado. O que dizem está certo, porém não inclui isto. É um
ensino, cuja falsidade tem que ser detectada não pelo que
dizem, mas pelo que não dizem. E é aqui que nos damos conta
da sutileza da situação. Como temos dito, qualquer cristão
pode detectar quem diz coisas abertamente equivocadas,
porém é injusto ou pouco caridoso dizer que a grande maioria
dos cristãos de hoje parece não poder detectar ao homem que
parece dizer coisas boas, porém que não diz coisas vitais.
E são justamente estas pessoas que não dizem coisas vitais que
são as mais perigosas.
O falso profeta não tem porta estreita nem caminho apertado
no seu evangelho. Não há nele nada que ofenda ao homem
natural; agrada a todos. Veste-se de ovelha, é atrativo,
agradável à vista. Apresenta uma mensagem tão bonita,
confortante e consoladora. Agrada a todo mundo e todo
mundo fala bem dele. Nunca o perseguem por seu ensino,
nunca o criticam com rigor. Tanto os liberais como os
modernistas o louvam. Em suas palavras não há nada do
escândalo da cruz.
390
Agora, o que é esta porta estreita e este caminho apertado?
Lembram que Pedro disse em sua segunda carta que “houve
também falsos profetas entre o povo de Israel” e que de igual
modo haveria tais falsos mestres na Igreja?
Voltemo-nos então ao Antigo Testamento para ler o que diz
sobre os falsos profetas, porque o modelo não muda.
Sempre estiveram presentes, e cada vez que aparecia um
verdadeiro profeta, como Jeremias, ou outro, os falsos
profetas sempre duvidavam dele, lhe resistiam, e lhe
acusavam e ridicularizavam.
Porém como eram eles?
Assim é como se lhes descreve: “curam a ferida da filha de
meu povo com leviandade, dizendo: Paz, paz, e não há paz!”.
O falso profeta sempre é um pregador muito consolador. Ao
escutá-lo dá sempre a impressão de que não há muitas coisas
más. Admite desde logo, que há algo mau; não é o bastante
néscio para dizer que não há nada mau. Porém diz que tudo vai
bem e que tudo irá bem. “Paz, paz”, diz. “Não escutem alguém
como Jeremias”, exclama. “é de mente estreita, é um herege,
não tem espírito cooperador. Não o escutem, tudo está bem!”.
“Paz, paz”.
Cura “a ferida da filha de meu povo com leviandade, dizendo:
Paz, paz, e não há paz!”, e se acrescenta de forma aterradora,
quanto ao modo como o povo de Deus recepcionava esta
mensagem dos falsos profetas: “o meu povo assim o quis”. O
povo desejava isto porque nunca lhes perturbava, nunca fazia
com que se sentissem incomodados. Se tudo seguir como
sempre foi, está tudo bem, não há porque se preocupar com
uma porta estreita e um caminho apertado, nem de uma
doutrina específica.
“Paz,
paz!”,
e
acrescentaríamos:
“prosperidade,
prosperidade”, é muito consolador, muito tranquilizante,
sempre é assim o falso profeta em seu vestido de ovelha,
sempre inofensivo e agradável, sempre, invariavelmente,
atrativo. Jamais apontará ao povo o dever de mortificar o
pecado e de andar em temor e reverência diante de Deus.
Nunca exporá toda a verdade da Palavra de Deus,
particularmente os seus juízos contra o pecado.
De quê maneira isto se manifesta na prática?
391
Diria que se manifesta de modo geral na quase ausência total
de doutrina, quanto na mensagem.
Sempre fala de variedades, de coisas vãs, e de modo geral,
nunca desce a detalhes doutrinais. Não lhes agrada a pregação
doutrinal; sempre é muito vaga. Porém alguém talvez
pergunte: “Que quer dizer com isto de descer a detalhes
doutrinais, e como se relaciona isto com a porta estreita e o
caminho apertado?”.
A resposta é que o falso profeta mui raras vezes nos diz algo
acerca da santidade, da justiça e da ira de Deus. Sempre prega
acerca do amor de Deus, e nunca menciona as outras coisas.
Nunca faz tremer a ninguém quando fala deste Ser santo e
Majestoso com o qual todos devemos prestar contas. Não diz
que crê nestas verdades. Não, não é essa a dificuldade. A
dificuldade é que não diz nada acerca delas. Não as menciona.
Não menciona as verdades que são destacadas na Bíblia, e é aí
que está o perigo. Não diz coisas que sejam obviamente
verdadeiras e justas. E por isso é falso profeta, porque todo
verdadeiro profeta que fala da parte de Deus aos homens tem
o dever de ensinar toda a verdade revelada. Ocultar a verdade
é tão reprovável e condenável como proclamar uma heresia,
e por isso o efeito de tal ensino é o de um “lobo devorador”.
Outra doutrina que o falso profeta nunca enfatiza é a do juízo
final e do destino eterno dos condenados.
Nos últimos cinquenta ou sessenta anos, não se tem pregado
muito acerca do juízo final, e tampouco acerca do inferno e da
destruição eterna dos ímpios. Não, porque aos falsos profetas
não lhes agrada ensinos como os que contém a segunda
epístola de Pedro. Porém está também na carta de Judas, em
João, no Sermão do Monte, proferido pela boca do próprio
Jesus.
O ensino do falso profeta tampouco enfatiza a condição
radicalmente pecaminosa do pecado e da incapacidade total
do homem para fazer algo por sua própria salvação. Eles falam
do pecado como se não fosse algo grave. Na verdade não lhes
agrada falar sobre o pecado, e sobre a necessidade de
mortificá-lo.
O falso profeta não enfatiza também a doutrina da
predestinação, da eleição, e da expiação e justificação pela
graça. Eles falam da cruz de forma sentimental, mas nada
392
sobre a ofensa da cruz. A pregação deles sobre a cruz, não é
loucura para os gentios, nem escândalo para os judeus.
Através da sua filosofia removem todo o efeito da cruz. Eles
fazem dela algo maravilhoso, uma grande filosofia de amor e
sentimento. Nunca conseguem vê-la como uma tremenda
transação santa entre o Pai e o Filho, na qual o Pai fez com que
o Filho se tornasse pecado por nós.
Tampouco enfatizam o arrependimento em seu sentido real.
Apresentam uma porta muito ampla que conduz à salvação e
um caminho muito amplo que conduz ao céu. Basta a pessoa
confessar que Jesus é o Salvador, que no entendimento deles
já ocorreu ali o arrependimento e a salvação.
Isto é muito diferente do evangelismo dos puritanos, de John
Wesley, de George Whitefield e outros; porque aquele
evangelismo conduzia ao temor do juízo de Deus, e à angústia
da alma, às vezes por dias, semanas e meses. John Bunyan nos
diz que durante dezoito meses sofreu a agonia do
arrependimento. Hoje em dia parece que não há muita
possibilidade disto, porque as pessoas têm uma ideia
superficial sobre o pecado e sobre a justiça de Deus. (Não se
pensa que há condições para o perdão de pecados presentes,
mesmo de cristãos, como o perdoar o próximo, e
principalmente o arrependimento que consiste basicamente
em três partes: contrição, confissão e conversão – II Crôn 7.14.
O perdão sempre será concedido com base no sangue e nos
méritos de Cristo, mas sempre também mediante o
atendimento destas condições. Mas quantos pregam sobre
isto, desta maneira, conforme é a verdade revelada por Deus
nas Escrituras, quanto ao perdão de pecados? - nota do
tradutor).
Pensa-se no pecado como o simples ato de errar e não a
condição de estado ruim da alma que desperta a ira de Deus.
O falso profeta não pensa na necessidade de se tomar a cruz
para se seguir a Cristo. Ele simplesmente se limita a curar a
ferida superficialmente dizendo que tudo está bem, que há
paz, que tudo o que se tem que fazer é vir a Cristo e se fazer
cristão.
Vê-se assim que a porta e o caminho do falso profeta não são
estreitos e apertados, mas bastante amplos, conduzindo
muitos à perdição, pela falsa ideia de que se arrependeram e
393
se converteram de fato de seus pecados para Deus, enquanto
não apresentam qualquer evidência de transformação
operada pelo Espírito Santo em suas vidas.
O falso profeta não diz que temos que praticar o Sermão do
Monte. Nunca o veremos pregando as coisas que Jesus ordena
neste sermão. O falso ensino não se interessa pela verdadeira
santidade, pela santidade bíblica.
Sustenta uma ideia de santidade parecida com a dos fariseus.
Os fariseus escolhiam certos pecados dos quais eles mesmos
não eram réus, segundo criam, e diziam que desde que as
pessoas não fossem culpadas daqueles pecados, os demais
não importava. Ah! Quantos fariseus existem hoje em dia! A
santidade se converteu em não se fazer três ou quatro coisas.
Já não pensamos em função de “não ameis o mundo, nem as
coisas que estão no mundo... os desejos da carne, a cobiça dos
olhos e a soberba da vida. E esta soberba da vida é uma das
maiores maldições na Igreja cristã. O falso ensino deseja uma
santidade como a dos fariseus. É simplesmente questão de
não fazer certas coisas acerca das quais nos temos colocado
em acordo. Com isso temos reduzido a santidade a algo fácil e
corremos em multidões ao caminho espaçoso, e tratamos de
segui-lo.
Estas são algumas das características destes falsos profetas
que vêm disfarçados de ovelhas. Oferecem sempre uma
salvação fácil, um tipo de vida fácil. Não aconselham o auto
exame diário; e chegam quase a afirmar que examinar a si
mesmo é uma heresia.
Dizem que não temos que examinar a nossa própria alma,
porque tudo o que temos que fazer é olhar somente para Jesus,
e nunca a nós mesmos para descobrir o pecado.
Assim, desaconselham o que a Bíblia nos aconselha que
façamos. Não lhes agrada o processo de auto exame e de
mortificação do pecado, que ensinavam os puritanos e os
grandes líderes do século dezoito, como Wesley, Whitefield,
John Fletcher e Jonathan Edwards.
Eles não creem nisto porque é incômodo. Querem uma
salvação fácil, uma vida cristã fácil. Nada conhecem do
sentimento de Paulo, quando disse “os que estamos neste
tabernáculo gememos com angústia”. Nada sabem acerca de
pelejar o bom combate da fé. Não sabem o que Paulo quer
394
dizer quando afirma que nossa luta não é contra a carne e o
sangue, mas contra os principados e potestades, contra os
príncipes das trevas deste século, contra as hostes espirituais
da maldade, nos lugares celestiais (Ef 6.12). Não entendem
isto, não vêm necessidade alguma de revestir-se de toda a
armadura de Deus, porque não têm visto o problema, afinal
para eles “tudo é tão fácil!”. Eles não incomodam o diabo com
o seu falso evangelho, e o diabo também não lhes incomoda,
porque nada perde com a pregação e ensino destes falsos
profetas, ao contrário, só tem a ganhar.
Hoje em dia não agrada às pessoas este tipo de ensino contra
os falsos profetas. Vivemos numa época em que as pessoas
dizem que contanto que alguém professe ser cristão, devemos
considerá-lo como irmão e seguir juntos. Porém a resposta é
o que disse nosso Senhor: “Guardai-vos dos falsos profetas!”.
Estas advertências terríveis e penetrantes estão no Novo
Testamento devido precisamente ao que temos comentado.
Claro que não devemos ser hipercríticos, porém tampouco
devemos confundir a amizade e afabilidade com a santidade.
Não se trata de personalidades. Não devemos desapreciar
estas pessoas. De fato o Dr. Alexander MacLaren tem razão
quando afirma que são hipócritas inconscientes. Não é que
não sejam agradáveis e complacentes, porque o são. Em certo
sentido, este é o perigo maior, e isso é o que faz ser uma tal
fonte de perigo. Ponho isto em relevo porque segundo nosso
Senhor, é algo que sempre nos cerca. Há um caminho que
conduz à perdição, e o falso profeta não crê na perdição ou
então não dá a devida consideração a ela.
Não é acaso correto que a explicação do estado atual da Igreja
cristã é precisamente isto que temos examinado?
Porque a Igreja está tão débil e ineficiente?
Não vacilo em responder que se deve ao tipo de pregação que
se introduziu como consequência do movimento de alta
crítica que começou no século dezenove, e que condenava
totalmente a pregação doutrinal. Advogava uma pregação
moral. Tomavam tais ilustrações da literatura e da poesia, e
Emerson veio a ser um de seus sumo sacerdotes. Esta é a
causa do problema. Prosseguiram falando de Deus, falando de
Jesus e de sua morte na cruz. Não se apresentavam como
hereges evidentes, mas em seu desejo de contextualizarem a
395
mensagem ao mundo moderno em que viviam, não
mencionavam as coisas que são vitais para a salvação.
Ofereciam essa mensagem vaga que nunca perturba a
ninguém. Eram sempre tão modernos e agradáveis; estavam
acompanhando a ordem do dia e não se poderia chamá-los de
fora de moda. Agradavam ao gosto popular, e o resultado é o
de igrejas medíocres na vida cristã que se encontram entre
tantos de nós.
Estas coisas são amargas e desagradáveis, e tenho que
confessar honestamente, que se não tivesse me
comprometido a pregar o Sermão do Monte, como estou
fazendo, nunca teria escolhido estas palavras como texto.
Nunca teria pregado acerca delas. Nunca tenho escutado um
sermão sobre elas. Pergunto-me quantos de nós o temos
escutado? Não nos agrada, é molesto, porém não nos compete
escolher o que nos agrade. Isto disse o Filho do homem, e o
situa no contexto do juízo e da destruição.
Assim, pois, ainda que me custe que me chamem de caçador
de heresias ou pessoa que se senta para julgar seus irmãos e
todo mundo, tenho tratado honestamente de explicar a Bíblia,
e rogo que pensemos outra vez nisso em oração, na presença
de Deus, enquanto consideramos o valor da nossa alma
imortal e seu destino eterno.
A Árvore e o Fruto – Mateus 7.15-20
“15 Guardai-vos dos falsos profetas, que vêm a vós disfarçados
em ovelhas, mas interiormente são lobos devoradores.
16 Pelos seus frutos os conhecereis. Colhem-se, porventura,
uvas dos espinheiros, ou figos dos abrolhos?
17 Assim, toda árvore boa produz bons frutos; porém a árvore
má produz frutos maus.
18 Uma árvore boa não pode dar maus frutos; nem uma árvore
má dar frutos bons.
19 Toda árvore que não produz bom fruto é cortada e lançada
no fogo.
20 Portanto, pelos seus frutos os conhecereis.” (Mt 7.15-20)
No estudo relativo aos Falsos Profetas, nós vimos que o
Senhor colocou em relevo a sutileza deles, porque vêm a nós
396
vestidos de ovelhas, quando que no seu interior são lobos
devoradores.
O falso profeta vestido de ovelha ensina que nunca se deve
dizer nada que soe como crítica ou então que seja duro de se
ouvir. Para não serem descobertos quanto à falta do
verdadeiro fruto espiritual em suas vidas, é que ameaçam aos
que estão debaixo da sua liderança a não efetuarem qualquer
tipo de juízo, por este temor de ser revelado que eles são na
verdade lobos vestidos de ovelhas.
Mas nosso Senhor queria enfatizar este ponto dizendo que os
falsos profetas são conhecidos por seus frutos, e que não se
pode colher uvas de espinheiros ou figos de abrolhos; porque
toda boa árvore dá bons frutos, porém a má árvore dá maus
frutos. E toda árvore que não dá bom fruto é cortada e lançada
ao fogo.
O Senhor quis destacar que apesar de duas árvores serem
parecidas em seu aspecto exterior, quando são julgadas pelo
tipo de fruto que dão, percebe-se que são totalmente
diferentes. Um se pode comer, porém o outro não. É evidente
que há aqui um ensino muito profundo.
Com isto Jesus quis mostrar que ser cristão é algo que está na
essência mesma da personalidade, que é algo vital e
fundamental. Não se trata de aparências superficiais quanto a
crenças. Parece querer nos ensinar sobre o perigo de nos
enganarmos com as aparências. É o mesmo caso do uso da
metáfora relativa aos falsos profetas que vêm vestidos de
ovelhas. Noutras palavras, está em foco o perigo de parecer
ser cristão sem sê-lo na realidade.
Já vimos que isto sucede no campo do ensino e da doutrina.
Alguém pode parecer estar pregando o evangelho quando, na
realidade, quando é julgado por provas genuínas, vê-se que
não o faz. O mesmo acontece no caso da conduta e da vida. O
perigo, neste caso, está em querermos ser cristãos
acrescentando coisas à nossa vida, em vez de chegar a ser algo
novo, em vez de se receber vida interior, em vez de que a
natureza que está em nós se renove segundo a imagem do
Senhor Jesus Cristo.
Assim, segundo o Senhor, alguém pode falar de maneira
adequada, pode parecer que vive bem, e contudo permanece
sendo um falso profeta. Pode ter a aparência da vida cristã sem
397
ser realmente um cristão. Isto tem sido uma fonte constante
de problemas e perigos na história da Igreja. Porém o Senhor
nos alerta desde o princípio que ser cristão significa uma
mudança na vida e na própria natureza do homem. É a
doutrina do novo nascimento. Nenhuma ação do homem vale
nada para a sua salvação, a não ser que tenha mudado sua
natureza.
Por isso devemos nos preocupar sobretudo com o estado do
coração porque é o centro da personalidade. Assim é o que há
no coração que sempre se manifesta. Manifestar-se-á nas
crenças, no ensino e na doutrina.
O Senhor diz que é por este fruto que sai do interior, da
natureza mesma, do coração, que podemos reconhecer a
pessoa, de modo que possamos saber se é um falso profeta,
apesar da aparência de ser cristão.
Estão indissoluvelmente unidos o que alguém crê e a vida. O
que o homem pensa, isso ele é. O homem atua da maneira pela
qual
pensa.
Em
outras
palavras,
manifestamos
inevitavelmente o que somos pelo que cremos e pensamos.
Não importa o cuidado que tenhamos, num momento ou
outro se manifestará. O fruto de nossas crenças e
pensamentos se manifestará.
Isto implica que por mais que alguém se afirme correto e
santo, ortodoxo, reto e aplicado em obedecer o ensino de
Jesus, isto será detectado se é verdade ou não, pelo tipo de
ação que produzir em sua vida. Como pode o mau praticar o
que é bom?
Talvez nos enganemos por um tempo. As aparências podem
enganar muito, porém não duram. Os puritanos gostavam
muito de tratar em detalhes a quem chamavam de “cristãos
temporais”. Com isto queriam se referir às pessoas que
pareciam estar debaixo da influência do evangelho, pessoas
que davam a impressão de serem verdadeiramente
convertidas e regeneradas. Falavam de forma adequada e
mostravam mudança na vida, pareciam cristãos. Porém os
puritanos lhes chamavam de cristãos temporais porque
chegavam depois a dar provas inconfundíveis e claras de que
nunca haviam chegado a ser verdadeiramente cristãos. Isto
ocorre muito nos avivamentos. Quantas vezes ocorre um
despertamento religioso, ou emoção religiosa em que se
398
costuma encontrar pessoas que, das quais podemos dizer,
seguem a corrente. Não se dão conta do que acontece, porém
caem sob a influência geral do Espírito Santo e por um tempo
se sentem realmente afetados, porém, segundo este ensino,
talvez nunca cheguem a ser verdadeiramente cristãos.
Em II Pedro 2 há uma exposição relativa a isto. O apóstolo
descreve de forma clara e gráfica casos assim. Fala de pessoas
que haviam entrado na igreja e haviam sido aceitas como
cristãs, porém logo haviam saído. Descreve-as como cães que
voltam ao vômito, e porcos lavados que voltam à lama. A porca
pode ser lavada, e parecer limpa no exterior, porém sua
natureza não foi mudada e isto a levará a amar a sujeira.
Em II Pe 1.4, ao se referir a verdadeiros cristãos o apóstolo diz
que por terem se tornado participantes da natureza divina,
escaparam da corrupção, que pela concupiscência há no
mundo.
Mas quando se refere a estes cristãos temporais, no capítulo
segundo, não diz que escaparam da corrupção, mas das
contaminações. E isto porque há uma espécie de purificação
superficial que não muda a natureza. A purificação é
importante, porém pode ser muito enganadora. O que
somente purifica o exterior, pode parecer cristão, porém,
segundo a argumentação de nosso Senhor o que torna alguém
um cristão é a natureza íntima, e essa natureza interior tem
que se manifestar.
O Juízo Final há de revelar muitas surpresas para muitos que
pensam ser cristãos zelosos por esta grande aplicação à
simples purificação exterior, sem que tenham de fato nascido
de novo. E alguns destes conseguem enganar a muitos por
muito tempo, porque são meticulosamente farisaicos em sua
atitude religiosa, levando até mesmo verdadeiros cristãos a
pensarem que eles são de fato nascidos de novo, quando na
verdade não são.
Mas na convivência com eles, os que são maduros
espiritualmente, poderão observar que há algo que se
manifesta na natureza deles, pelo fruto de sua conversação e
modo de compreensão da vida cristã que revela que há algo
muito duvidoso na alegada conversão que alegam terem
experimentado.
399
A verdadeira crença básica do homem se manifestará na sua
vida. Acaso se colhem uvas de espinheiros ou figos de
abrolhos? Estas coisas nunca podem ser separadas. A
natureza íntima se manifestará. Devemos portanto ter
cuidado em admitir como cristão verdadeiro quem na
realidade não passa de impostor em sua aparência externa. E
somos exortados a nos disciplinarmos para buscar com
cuidado o fruto.
Lembremos que é necessário também examinar quais são as
características do bom fruto. Devemos buscá-las em nós
mesmos e nos demais. Devemos ter cuidado, porque aquele
que se encontra fora da porta estreita nos dirá: “Não há
necessidade de fazer tudo isto. Este é o caminho”. E podem
nos enganar. Por isso devemos aprender a discriminar, e
também, ao examinar o fruto, devemos ter presente este
elemento de sutileza. Há tipos de vida que se parecem muito
com o verdadeiro cristianismo, e obviamente, são as mais
perigosas de todas. Parece cada vez mais claro que o maiores
inimigos da fé cristã genuína não são os que se acham no
mundo, perseguindo de forma agressiva o cristianismo ou
prescindindo de forma aberta ao seu ensino; são muito mais
aqueles que possuem um cristianismo falso e espúrio. São os
que receberam a condenação que o Senhor lança nesta
passagem contra os falsos profetas. Se alguém examinar a
história da Igreja, desde seus começos, descobrirá que
sempre foi assim. O cristianismo falso e fingido sempre tem
sido o maior obstáculo e inimigo da verdadeira
espiritualidade. E não há dúvida de que o maior problema nos
dias atuais é o estado mundano da Igreja. Deveria preocuparnos muito mais o estado da própria Igreja que o estado do
mundo fora da Igreja. Parece cada vez mais evidente que a
explicação do estado atual da Cristandade, se encontra dentro
da Igreja e não fora.
Por isso somos chamados a provar os espíritos.
Temos diante de nós alguém que fez profissão de cristão. Não
diz nada que seja obviamente errado, e parece viver uma boa
vida cristã. A qual prova submeteremos tal pessoa? Podemos
ter pessoas simpáticas, moralmente corretas, com uma
norma e código de vida pessoal elevados; parecem muito com
os cristãos, embora talvez não o sejam. Como podem ser
400
distinguidas? Temos aqui algumas perguntas às quais têm
que responder. Antes de tudo, por que esta pessoa vive este
tipo de vida? Tomemos o caso de um homem bom que não
pretende ser cristão, ou um homem que assiste regularmente
a um lugar de culto, porém que, julgado segundo as normas
do Novo Testamento, não é cristão. Por que vivem como o
fazem? Existem muitas razões para isso. Pode ser
simplesmente questão de temperamento. Há pessoas com
boa natureza. Têm um temperamento e caráter equilibrados;
são tranquilos, não há neles nada naturalmente vicioso e
ofensivo. Não têm que fazer nenhum esforço para ser assim;
nasceram assim, são assim. É algo puramente físico e natural.
Em segundo lugar, essa pessoa vive este tipo de vida porque
tem certas crenças ou aceita certo ensino moral? Há pessoas
que são o que se pode chamar de bons pagãos. Essas pessoas
têm normas muito elevadas e as praticam diariamente. Podese fazer isto completamente aparte do cristianismo. Assim
pois, se julgamos somente pelas aparências gerais da vida de
alguém, é possível nos enganarmos. Frequentemente se diz
que há melhores cristãos fora da Igreja do que dentro. Isto
quer dizer que podemos encontrar excelente moralidade fora
da Igreja. Porém a moralidade talvez não tenha nada a ver com
o cristianismo. Não tem conexão necessária com o mesmo. Os
grandes filósofos gregos propuseram seus grandes ensinos
morais antes que Cristo viesse. E é ainda mais significativo
que os filósofos gregos foram às vezes opositores violentos do
evangelho cristão, eles foram os que consideram como
loucura a pregação da cruz.
Em consequência é necessário não olhar somente ao homem
e sua vida em geral. Temos que descobrir as razões e motivos
de seus atos. Desde o ponto de vista cristão, existe uma só
prova vital a este respeito. Este homem dá a impressão de que
vive esse tipo de vida porque é cristão e devido à sua fé cristã?
Se não vive assim por ser cristão, de nada vale; é o que nosso
Senhor chama de maus frutos. O Antigo Testamento se refere
a isto com muito vigor quando diz que todas as nossas justiças
são como trapo de imundície. Aos olhos de Deus o que tem
valor, em última instância é somente o que é fruto do caráter
cristão, o que nasce da nova natureza.
401
Esta é a prova geral. Vejamos agora algumas provas
específicas. Nisto devemos ter cuidado para não nos
expormos a que nos acusem de espírito de crítica; ademais
devemos ter o cuidado para que aquilo que dissermos não
julgue a nós mesmos.
Ainda que a vida de alguém se conforme a um código moral
geral, mas se não vê que a mensagem da cruz é que a justiça
do homem nada vale e que o homem é um pecador sem
esperança, tudo isto se revelará em sua vida. Haverá assim
pontos falhos quanto ao que se exige para se caminhar no
caminho apertado. E se no modo de viver geral é muito
parecido com o cristão, se observará que nos detalhes haverá
muitas falhas. Há neles uma falta de qualidade e uma
ausência da atmosfera peculiar que sempre se encontra na
pessoa verdadeiramente espiritual.
Mas a grande prova que se deve buscar em todo aquele que se
diz cristão é a prova das bem-aventuranças, porque o cristão
verdadeiro é pobre de espírito, chora pelo pecado, é manso,
tem fome e sede de justiça, é pacificador, é puro de coração
etc.
Contudo alguém dirá: “Mas não há cristãos em que não há
evidências visíveis destas bem-aventuranças, por viverem
carnalmente?”. Isto é a verdade, e é daí que decorre a
dificuldade para se saber quem é verdadeiramente cristão
hoje em dia, porque são poucos os que procuram confirmar a
sua eleição vivendo diligentemente em santificação. Mas, em
todo o caso, quantos destes não correm o risco, por falta
destas evidências, de se julgarem cristãos, quando na verdade
podem não sê-lo efetivamente, porque se exige evidência de
santificação, exige-se segundo nosso Senhor, este fruto
positivo do Espírito Santo na vida, para a plena certeza da
esperança. Aquele que não o possui não pode estar seguro da
sua salvação.
É por estas provas que se excluem os bons pagãos, os falsos
profetas e os cristãos temporais, porque são provas da
natureza íntima do homem e do seu verdadeiro ser.
Somente a árvore boa pode produzir o fruto do Espírito Santo.
O homem que for somente moralmente justo não pode
produzi-lo.
402
O Senhor nos recorda nesta passagem que se alguém não é
humilde, tem que se ter muita cautela com ele. Pode estar
vestido de ovelha, porém não é verdadeira humildade, não é
verdadeira mansidão. E se a doutrina de alguém é equivocada
se manifestará nisto. Será afável, e agradável, será atraente
para o homem natural e carnal, porém não dará a impressão
de ser alguém que se tem visto como pecador a caminho do
inferno e que tem sido salvo somente pela graça de Deus.
O homem do Novo Testamento é sóbrio, grave, humilde,
manso. Possui o gozo do Senhor no coração, se, porém, não é
efusivo, não é ruidoso, não é carnal em sua vida. É alguém que
diz com Paulo: “os que estamos neste tabernáculo gememos
com angústia” (II Cor 5.4). Não se interessa na sua maneira de
vestir com a pompa e com o externo, não se interessa em
causar impressão; é manso e se preocupa com Deus e com sua
relação com Ele. E a prova definitiva, sem dúvida, é a
humildade. Se em nós há a soberba da vida e do mundo,
necessariamente, não sabemos grande coisa da verdade; e
deveríamos examinarmo-nos de novo para nos assegurarmos
da nova natureza. O que temos no interior se manifestará no
exterior. Se tenho mente mundana, ainda que pregue uma
grande doutrina, e ainda que tenha renunciado a certas
coisas, se manifestará em minhas palavras ociosas (Mt 12.36).
Mostramos realmente o que somos quando não estamos de
sobreaviso. Podemos dar a impressão que somos cristão,
porém nossa verdadeira natureza se manifestará.
A forma como alguém prega pode ser mais significativa do
que diz, porque pela maneira com que fala revela quem
realmente é. Os métodos de uma pessoa às vezes desmentem
a mensagem que prega. O que prega o juízo e a salvação, e
contudo, ri, e brinca, nega o que está pregando. A confiança
em si mesmo, o depender da habilidade humana e da
personalidade, proclamam que este homem possui uma
natureza muito afastada do Filho de Deus, que foi manso e
humilde de coração. Um homem assim não é como o apóstolo
Paulo, que ao pregar em Corinto, não foi confiando em si
mesmo e na sua sabedoria, senão com fraqueza e muito temor
e tremor. Como nos traímos, quando manifestamos o que
realmente somos com nossos atos espontâneos!
403
Mas ainda que nos enganemos em nossos juízos quanto a
identificar se somos e quem é de fato verdadeiramente
cristão, lembremos que Deus nunca se engana. Toda árvore
que não dá bom fruto é cortada e lançado no fogo. Que nos
esforcemos então para achar este bom fruto em nós, andando
humildemente na presença do Senhor. Que Deus tenha
misericórdia de nós. Que nos abra os olhos para estes
princípios vitais e nos capacite a exercer este discernimento
relativamente a nós mesmos e a todos os que possam se
tornar perigosos para nossas almas e que estejam falsificando
gravemente a causa de nosso bendito Senhor neste mundo
pecador e necessitado. Concentremo-nos em assegurar-nos
que possuímos a natureza divina, e que participamos da
mesma, que a árvore é boa, porque se a árvore for boa, o fruto
também será necessariamente.
Por D. M. Lloyd Jones ( traduzido e adaptado por Silvio Dutra)
Falsa Paz – Mateus 7.21-23
“21 Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino
dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está
nos céus.
22 Muitos me dirão naquele dia: Senhor, Senhor, não
profetizamos nós em teu nome? e em teu nome não
expulsamos demônios? e em teu nome não fizemos muitos
milagres?
23 Então lhes direi claramente: Nunca vos conheci; apartaivos de mim, vós que praticais a iniquidade.” (Mt 7.21-23)
Um simples homem jamais teria falado tais palavras, senão o
próprio Filho de Deus. Quantas vezes este texto é pregado nas
Igrejas?
Não devem muitos se declarar culpados do fato de que ainda
afirmem crer em toda a Bíblia, na prática, entretanto,
frequentemente negam parte dela simplesmente porque não
favorece a carne e lhes perturba?
Mas os que são fiéis a Deus devem examinar toda a sua Palavra
e devem evitar a todo custo os argumentos que procuram
obscurecer o ensino direto e claro da Bíblia.
404
Estas palavras do texto mostram muito claramente o que
ocorrerá no dia do juízo, quando todos terão que se apresentar
diante de Deus.
Todos os cenários humanos desaparecerão e a verdade de
cada pessoa será revelada pelo Filho de Deus que conhece o
que realmente cada pessoa é, e quais de fato tiveram suas
naturezas mudadas pela regeneração do Espírito Santo.
Este assunto é tão importante para o Senhor que Ele não se
limitou a descrever a sutileza dos falsos profetas, pois
prosseguiu alertando aos eleitos de Deus o perigo que eles
correm em serem iludidos pelas muitas falsidades que os
cercam neste mundo.
Ele declarou que há uma porta estreita e um caminho
apertado que define a vida cristã, ou a senda da salvação. Não
há outros. E esta porta e este caminho são definidos por Ele no
Sermão do Monte. Mas estão cheios de perigos, e de atalhos e
desvios na pessoa dos falsos profetas e falsos irmãos, dos quais
os verdadeiros eleitos deverão se precaver a bem de suas
almas, para não se verem privados da verdade ou fascinados
pelas práticas deles, contra um viver segundo a exata vontade
de Deus.
Os gálatas se deixaram fascinar pelos falsos mestres
judaizantes que ministravam entre eles como verdadeiros
cristãos. Os efésios viram homens pervertidos se levantarem
do próprio meio deles, atuando como pastores, com o
propósito de desviá-los da verdade.
“Guardai-vos dos falsos profetas!”. É a advertência do Senhor
para os eleitos. Fujam do ensino deles. Não se coloquem
debaixo da autoridade deles. Não foram enviados por Ele à sua
Igreja. São o joio que o Inimigo plantou por não terem os
eleitos vigiado e orado o tanto quanto deviam.
Então após ter concluído o Sermão do Monte quanto ao que
sejam os cristãos e qual seja o dever deles em seu
comportamento e vida, diante de Deus, Jesus passa agora a
alertá-los quanto às dificuldades e perigos que terão que
enfrentar neste caminho apertado, e às renúncias que terão
que fazer para não somente entrarem pela porta estreita,
como também para prosseguirem fielmente em sua
caminhada no caminho apertado, de modo que possam viver
de modo digno da sua vocação.
405
E no propósito de alertar os eleitos diz que não é
simplesmente por fazerem uma profissão de reconhecimento
da sua autoridade, dizendo “Senhor! Senhor!” que se poderá
saber que são seus de fato. O Senhor ensina que o que importa
não é tanto o que o homem crê senão o que o homem faz,
porque disse que é o que faz a vontade do Pai que entra no
reino dos céus, e não quem diz simplesmente que crê nele, e
afinal não tem as evidências de um novo nascimento em sua
vida, pela santificação que se segue à regeneração.
Mais uma vez o Senhor está se esforçando para abrir os nossos
olhos para o terrível perigo do autoengano e da autoilusão.
Se dantes o perigo se referia aos falsos profetas, agora, neste
texto, refere-se a nós mesmos. E Jesus destaca que diante de
Deus nada tem valor senão a verdadeira santidade (Hb 12.14).
Com isso o Senhor nos alerta que apesar do que afirmemos,
não podemos estar na presença de Deus se não somos
verdadeiramente justos e santos. É o que a Bíblia ensina desde
o começo até o fim. Na verdade ela foi revelada por Deus a nós
para nos alertar sobre o modo da nossa redenção do pecado
para a santidade. E é nisto que consiste uma verdadeira fé, que
traz evidências de regeneração e santificação, e que não
consiste em meras afirmações verbais de crenças e de elogios
a Deus.
Ele não está criticando quem diz “Senhor! Senhor!”, até
porque é o que dirão os verdadeiros eleitos, pelo Espírito (I Cor
12.3), mas para que não nos iludamos com uma religiosidade
que consista apenas em se proferir palavras, e que não atinge
o coração, purificando-o e transformando-o.
Mas o homem não regenerado, não nascido de novo, pode
aceitar o ensino bíblico como uma espécie de filosofia, como
uma verdade abstrata e daí chamar Jesus de Senhor, mas Jesus
ensinou que isto não tornará tal pessoa digna de entrar no
reino dos céus.
Se nós lermos as obras dos puritanos, veremos que dedicaram
não somente capítulos, senão volumes inteiros ao assunto da
“falsa paz”. Este perigo tem sido reconhecido ao longo dos
séculos. É o perigo de confiar na fé, em vez de Cristo, de
confiar na fé sem te sido realmente regenerado pelo Espírito.
É possível também que estas pessoas talvez não sejam
somente cristãos sobre a verdade, senão também fervorosos
406
e zelosos. Não são apenas cristãos intelectuais. Há um
elemento de sentimento, de emoção, porque não dizem
apenas “Senhor.”, mas “Senhor! Senhor!”. Parecem cheios de
fervor em fazer coisas que julgam estar fazendo para Cristo e
sendo aceitas por Ele. Não é porventura o que ocorre com a
maioria dos que estão na Igreja Romana? Mas não são poucos
deste tipo que se encontram também nas Igrejas Protestantes.
Estes dizem muitas coisas adequadas acerca de Jesus, contudo
não entraram no reino de Deus.
Como pode se explicar isto? Digamos porque deve se
distinguir fervor e zelo espiritual de zelo e entusiasmo
carnais. O que se faz para Cristo deve nascer de uma nova
natureza recebida do Espírito, e não por uma questão de
temperamento carnal. É possível ficar impressionado e
emocionado debaixo da pregação de vários sermões e pensar
até que se é de Cristo, quando na verdade não ocorreu
nenhum verdadeiro arrependimento e conversão. E por que
devemos considerar estas coisas? Simplesmente para
ficarmos julgando a outros? Não, principalmente para vermos
em que bases temos crido que somos de Cristo, de maneira
que não nos iludamos com uma falsa paz, e um falso juízo de
que somos dele simplesmente porque profetizamos em seu
nome, expelimos demônios e realizamos maravilhas, uma vez
que o próprio Cristo nos adverte que é possível fazer tudo isto
e por fim não ser conhecido por Ele, permanecendo debaixo
da escravidão ao pecado.
Fazer estas coisas referidas com zelo e fervor não significa
verdadeira espiritualidade. A carne pode falsificar quase tudo.
Depois de ter falado de uma falsa confissão, baseada numa
falsa fé que não pode salvar, Jesus passou a ensinar que
ninguém deve confiar nas obras que faz em seu nome para ser
salvo por meio delas. Porque disse àqueles que afirmaram
profetizar, expelir demônios e fazer maravilhas em seu nome
que nunca os conheceu. Ninguém pode ser salvo por obras,
porque a salvação é pela graça, mediante a fé, sem as obras.
Trazendo para o nosso próprio tempo a referência que Jesus
fez ao profetizar em seu nome, e ainda assim não ser
conhecido por Ele, pode significar também o fato de alguém
pregar a doutrina correta e em nome de Cristo, e, contudo,
estar fora do reino de Deus. Nós vemos isto frequentemente
407
na Bíblia. Não foi o que se deu com Balaão, com Saul, com
Judas e outros? É possível falar a verdade e não viver a verdade.
Por isso Paulo nos diz o seguinte em I Cor 9.27 quanto ao que
fazia em relação a si mesmo, por saber deste grande perigo:
“Antes subjugo o meu corpo, e o reduzo à submissão, para
que, depois de pregar a outros, eu mesmo não venha a ficar
reprovado.”. Quando fala de colocar o seu corpo em servidão,
não somente pensa nos pecados da carne, mas se refere a toda
a sua vida. O homem tem que colocar o corpo em servidão e
submissão a Deus tanto quando sobe ao púlpito quanto
quando caminha na rua. Submeter o corpo à servidão significa
dominar, controlar e sujeitar tudo o que a carne deseja fazer.
A carne sempre tenta dominar a mente.
Pensemos em Fp 1.15, onde Paulo afirma que estas pessoas
pregam a Cristo por inveja e contenda. seu motivo é
equivocado, seus pensamentos são errôneos; porém pregam
a Cristo, dizem coisas adequadas acerca de Cristo. Paulo se
alegra de sua pregação, ainda que eles estão equivocados
porque o fazem com um espírito errôneo guiado pela inveja e
pelo desejo de sobressair sobre o apóstolo. Devemos concluir
então que é possível que o homem pregue a doutrina correta
e contudo estar fora do reino. Isto significa que haverá muitos
homens que haviam pregado e que foram louvados como
pregadores e que ficarão fora do reino. Disseram o que é justo
e de modo maravilhoso, porém nunca tiveram neles a vida e a
verdade. Tudo era carnal.
E estes homens podem ter até mesmo expelido demônios em
nome de Jesus, porque Ele pode dar poder a um homem que
não O conheça, tal como se deu com Judas, e tais homens
permanecerão perdidos.
E finalmente Jesus diz que estas pessoas poderão dizer que
fizeram muitas maravilhas em seu nome, e contudo estarem
fora do reino. Lembramos dos magos que fizeram maravilhas
nos dias de Moisés. Pensamos nas palavras de Paulo em II Tes
2.8 do grande poder que terá o Anticristo para fazer sinais e
prodígios mentirosos pela eficácia de Satanás.
O poder natural do homem pode imitar os dons do Espírito
Santo, até certo ponto, mas o verdadeiro entendimento e vida
espiritual são concedidos por Deus somente àqueles que
nascem de novo, e mesmo a estes se continuarem em
408
fidelidade oferecendo seus corpos como sacrifício vivo e
santo a Deus, de maneira que possam mais do que conhecer,
experimentar a boa, perfeita e agradável vontade de Deus
(Rom 12.2), porque o Espírito fala à Igreja mas somente
aqueles que têm ouvidos espirituais afinados podem ouvir e
entender as coisas do Espírito que se discernem
espiritualmente, isto é sendo espirituais, e não carnais, sendo
cristão espiritual, obediente ao Senhor que anda
humildemente na sua presença, honrando e praticando a sua
Palavra.
Deste modo pouco adianta tentar convencer alguém acerca
de verdades espirituais que se discernem espiritualmente,
ainda que seja um pastor, quando esta pessoa anda e vive na
carne, ainda que pense que tem andado no Espírito.
É por isso que o autoengano é uma realidade ensinada
claramente por Jesus no nosso texto, e Ele é muito enfático ao
mostrar que ao final das contas o que importa não é o que os
homens afirmem acerca da verdade e o juízo que eles têm
acerca do que é verdadeiramente espiritual porque é o Senhor
mesmo quem julga a todos e a todas as coisas. Todos serão
julgados pelos padrões de Cristo revelados na Palavra, e não
pelo nosso próprio entendimento do que somos perante Ele.
Estas pessoas às quais Ele se refere dizendo que nunca as
conheceu, pensavam que eram conhecidas dele e que Lhe
agradavam por seus louvores e obras.
Não devemos esquecer que o próprio Satanás se transfigura
em anjo de luz e os seus ministros, isto é, aqueles que ele usa,
em ministros da justiça bíblica (II Cor 11.14). E Satanás
persuade a muitos não cristãos que eles o são de fato, para
cumprir o seu propósito de enganar os eleitos e deter o avanço
da obra de Deus na terra.
Para confirmar esta falsa convicção nos falsos cristãos lhes
dará poder para realizarem sinais e maravilhas, e isto é
permitido por Deus porque não deram crédito à verdade,
senão à mentira.
Foi por isso que Jesus advertiu os discípulos a não se
alegrarem simplesmente com o fato de verem que os espíritos
malignos se lhes sujeitavam, mas por terem os seus nomes
arrolados no céu. Eles não deveriam se deixar iludir pela
simples realização de sinais e maravilhas, porque isto não é
409
uma credencial segura para identificar os verdadeiros filhos
de Deus.
Não se deixem persuadir por sinais e maravilhas para
identificarem os verdadeiros homens de Deus. Vejam o fruto
deles. Vejam se as vidas deles se conformam às bemaventuranças. Se são pobres de espírito, mansos, humildes, se
gemem em espírito diante do mundanismo, se são graves e
sóbrios, se são homens santos de Deus. Se são longânimos,
misericordiosos, pacificadores, íntegros, não amantes dos
prazeres, se têm uma vida piedosa. Se são pacientes com os
fracos. Se não buscam glória para si mesmos, mas somente
para o Senhor. Se louvam a glória da graça de Deus que os
salvou. Estas são as credenciais que devem ser usadas para
sabermos se alguém está de fato servindo a Deus e não a si
mesmo, ou aos homens. Não deixemo-nos levar pelas
aparências, mas pela própria realidade porque é ela que conta
diante de Deus, e que para tanto todo o nosso julgamento seja
segundo a reta justiça, segundo os critérios e padrões do
Senhor em sua Palavra.
Lembremos que é o Senhor mesmo quem profere as palavras
de Mateus 7.21-23, e que elas se referem ao dia do juízo,
quando Ele será o Juiz, de modo que não haja nenhum engano.
Lembremos que Ele disse sobre submetermos todo juízo ao
crivo de Deus, para que seja reto, e não ao dos homens: “E ele
lhes disse: Vós sois os que vos justificais a vós mesmos diante
dos homens, mas Deus conhece os vossos corações; porque o
que entre os homens é elevado, perante Deus é abominação.”
(Lc 16.15).
Leiamos o Novo Testamento e não tentemos omitir ou dar um
outro sentido às Palavras de Jesus e dos apóstolos, e então
veremos quais são as evidências concretas de um verdadeiro
filho de Deus. Meditemos nelas, apliquemos estas evidências
a nós mesmos e aos demais. Façam isto, diz o Senhor, e jamais
se equivocarão, nunca ficarão do lado de fora da porta estreita
e do caminho apertado.
Quando o cenário terreno tiver desaparecido e tivermos que
estar frente a frente com Cristo, teremos que enfrentar esta
verdade aterradora pela qual teremos que responder.
Deste modo, podemos ver quão perigosa é para contribuir
para este auto engano a que nos temos referido uma falsa
410
doutrina relativa à segurança da salvação que baseia a
segurança em certas afirmações que nós mesmos fazemos. O
homem que é verdadeiramente salvo e que tem uma
segurança genuína da sua salvação faz e deve fazer estas
afirmações, porém a simples afirmação não é garantia e nem
assegura necessariamente que seja salvo.
Consequentemente, devemos ter cuidado com esta tentação
muito sutil, e recordar a forma pela qual as pessoas se
persuadem erroneamente a si mesmas. Dizem: “Creio que
Jesus é o Filho de Deus e que morreu por meus pecados, e por
isso confesso que Ele é o meu Salvador!”. Não se lhes pergunta
se chegaram a ter uma experiência de salvação, se o
conheceram como seu Salvador, mas se simplesmente creem
no que têm dito. O cristão verdadeiro afirma estas coisas,
porém não se limita a dizê-las. Mas estes que não chegam a ter
uma experiência real de conversão creem na própria fé deles
e não no Senhor Jesus Cristo. Isto é o que se chama de
fideísmo.
Devemos então estar alertas contra o terrível perigo de se
basear a segurança da nossa salvação na repetição de certas
afirmações e fórmulas.
Por isso a Palavra ordena que nos examinemos a nós mesmos
e que não façamos repousar a nossa vida espiritual em certas
fórmulas decoradas e recitadas. Devemos pedir ao Senhor que
sonde o nosso coração e nos dê um espírito reto e santo. E para
tanto, devemos cooperar com Ele no exame que o Espírito fará
do nosso coração, para nos revelar os pecados que precisam
ser confessados e deixados.
De nada adianta tentar equilibrar nossa vida pondo coisas
distintas nos pratos diferentes da balança. Por exemplo, se
nossa consciência nos condena pela vida que vivemos, pomos
no outro prato alguma boa obra que fazemos. E pensamos que
as coisas que nos condenam serão assim anuladas. É o sangue
de Jesus que purifica a nossa consciência. É pela fé na sua
morte vicária que somos limpos e purificados de toda
injustiça. Mas é preciso ter humildade e deixar o Espírito
realizar o seu trabalho no nosso coração, criando em nós uma
nova disposição em nossos espíritos.
Assim, devemos dar ouvidos às acusações que são feitas pelas
nossas consciências, de maneira que possamos nos
411
arrepender destas coisas das quais somos justamente
acusados. É assim que se obtém uma boa consciência que não
pode nos acusar, uma vez estando no caminho da verdade.
Agora importa que uma boa consciência sempre nos julgará
pelos padrões da Bíblia, e daí a importância de conhecermos a
verdade tal como ela é, porque teremos uma má consciência
que nos condenará segundo os nossos próprios padrões e
critérios, ou então que nos absolverá quando deveria nos
condenar, pela falta de conhecimento da verdade.
A Bíblia ensina claramente que temos que pregar o
evangelho, a verdadeira mensagem, mas que também temos
que praticá-lo. E diz que devemos fazer isto com sobriedade e
com gravidade, com temor e tremor, com demonstrações de
Espírito e de poder, não com palavras persuasivas de
sabedoria. Porém, hoje em dia os métodos de evangelização
são uma contradição flagrante destas palavras e são
justificados pelos que os praticam em função dos resultados.
Eles dizem que olham para os resultados. E por causa dos
resultados põem de lado as afirmações diretas e claras da
Bíblia. Isto é crer na Bíblia? É isto fazer da Bíblia a nossa
autoridade final?
Se pretendemos evitar uma terrível desilusão no dia do juízo,
aceitemos a Bíblia tal como é. Não discutamos com ela, não a
critiquemos, não a manipulemos, não a forcemos, mas
submetamo-nos ao que ela nos diz.
O que nosso Senhor dirá no dia do juízo àqueles que se
enganaram a si mesmos é que têm feito todas estas coisas por
seu próprio poder. Nunca teve nada a ver com eles. Por isto o
mais importante para nós não é nos interessarmos em
primeiro lugar por nossas próprias atividades e pelos
resultados, senão por nossa relação com o Senhor Jesus
Cristo. Nós o conhecemos e Ele a nós?
Devemos submeter-nos a Ele e ao seu ensino, tal como lhe
agradou revelá-lo a nós na Bíblia, e se o que fazemos não se
conforma com isso, é uma afirmação da nossa vontade, é
desobediência que é tão repulsiva quanto o pecado de
feitiçaria.
Aqueles aos quais Ele dirá que nunca os conheceu tudo
fizeram para agradarem a si mesmos, e não para agradarem a
Ele. Examinemo-nos pois, seriamente, à luz destas verdades.
412
Os Dois Homens e as Duas Casas – Mateus 7.24-27
“24 Todo aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e as põe
em prática, será comparado a um homem prudente, que
edificou a casa sobre a rocha.
25 E desceu a chuva, correram as torrentes, sopraram os
ventos, e bateram com ímpeto contra aquela casa; contudo
não caiu, porque estava fundada sobre a rocha.
26 Mas todo aquele que ouve estas minhas palavras, e não as
põe em prática, será comparado a um homem insensato, que
edificou a sua casa sobre a areia.
27 E desceu a chuva, correram as torrentes, sopraram os
ventos, e bateram com ímpeto contra aquela casa, e ela caiu; e
grande foi a sua queda.” (Mt 7.24-27)
Nosso Senhor não diz que somente desceu a chuva, mas que
também os rios vieram e sacudiram a casa. Sempre me parece
que isto representa o mundo, em geral, no sentido bíblico da
palavra, ou seja, a perspectiva mundana, o tipo mundano de
vida.
Nos agrade ou não, sejamos cristãos verdadeiros ou falsos, o
mundo chega a sacudir esta nossa casa, desencadeando toda
sua fúria contra nós.
(Além do mundo, devemos considerar os ataques desferidos
contra a nossa casa espiritual, pela nossa própria natureza
terrena – carne, e pelos principados e potestades malignos –
nota do tradutor).
Os ataques do mundo podem ser traduzidos por sedução ou
por perseguição.
Todos sabemos algo sobre o que significa sentir que a casa
quase desaba às vezes. Não é exatamente que o cristão deseja
abandonar sua fé, porém o poder do mundo pode ser tão
grande que às vezes se pergunta se seus fundamentos
resistirão.
O jovem, tem uma maravilhosa fé em Cristo, porém, cedo ou
tarde, talvez até a metade da vida, começa a pensar em seu
futuro, em sua carreira, em toda sua posição na vida; e começa
a vacilar e duvidar, entra em jogo o processo lento de
envelhecimento, e também uma espécie de debilidade – esse
413
é o mundo que dá com ímpeto contra a casa, submetendo-a a
prova.
Depois vem o vento. Que quer dizer isto que sopraram ventos?
São ataques de Satanás. O diabo tem muitas formas diferentes
de nos atacar. Segundo a Palavra de Deus, pode se transformar
em anjo de luz e citar a Bíblia. Pode nos separar por meio do
mundo. Porém, às vezes nos ataca diretamente; pode lançarnos dúvidas e negações. Pode nos bombardear com
pensamentos sujos, maus, blasfemos. Leiamos as vidas dos
santos de outras épocas e encontraremos que se viram
submetidos a este tipo de coisas. O diabo promove ataques
violentos, para derrubar a casa, por assim dizer, e os santos ao
longo dos séculos têm sofrido por causa do poder desta forma
de ataque.
Talvez temos conhecido homens bons que se têm visto
sujeitos a isto, cristãos excelentes que têm vivido vidas
piedosas; então, um pouco antes do fim, talvez no leito de
morte, passam por um período de trevas e o diabo os ataca
violentamente. Na realidade, “não conhecemos luta contra
sangue e carne, senão contra principados, potestades, contra
os governadores das trevas deste séculos, contra as hostes
espirituais da maldade nas regiões celestes. Em Efésios 6, o
apóstolo Paulo nos diz que a única forma de resistir é se
revestindo de toda a armadura de Deus. E nesta passagem
nosso Senhor diz também somente o fundamento sólido que
Ele dá, permitirá que nossa casa resista.
Estas coisas nos chegam a todos nós. Porém, está claro, em
última instância, de forma certa e inevitável, chega a própria
morte. Alguns têm que suportar a chuva, outros os rios, e
outros os ventos e furacões, porém todos temos que nos
encontrar e fazer frente com a morte. Nos chegará a todos de
alguma forma e submeterá à prova o próprio fundamento
sobre o qual temos edificado.
Como resistimos a estas coisas? Em muitos sentidos, o labor
principal da pregação do evangelho é preparar os homens
para resistirem a estas coisas. O que importa não é a ideia que
se tenha da vida, nem dos sentimentos que tenhamos, se
alguém não pode resistir a estas provas que temos
enumerado, o fracasso é completo. Sejam quais forem os dons
de um homem ou seu chamamento, por mais nobre e bom
414
que seja, se sua ideia e filosofia da vida não o têm provido
destas certezas, é um néscio, e tudo o que tem lhe falhará e se
derrubará sob seus pés precisamente quando necessita de
mais ajuda. Já temos experimentado algumas destas provas.
Muitos parecem passar muito bem neste mundo, porém, seu
final não é em paz. Pobre criatura! Não se tem preparado para
isso, não está consciente de que se irá, se agarra ao que seja, e
não morre em paz.
Escutemos o Salmo 112.7: “Não terá temor de más notícias; seu
coração está firme, confiado em Jeová”. Não tem medo das
pestilências, não tem medo de que cheguem as guerras, não
tem medo nem sequer das más notícias. Não diz : ”que vamos
fazer dia após dia?” Nunca – “seu coração está firme,
confiando em Jeová”. Escutemos também estas palavras
magníficas de Isaías 28.16: “O que crê não se apresse”, ou se
preferem: “O que crer não será confundido, o que crer não
será apanhado de surpresa”. Por que? Porque tem prestado
atenção, vem se preparando, de modo que, seja o que for que
lhe chegue, tem fundamento sólido. Não tem pressa, nunca se
apressa. Nosso Senhor mesmo o tem ensinado perfeitamente
na parábola do semeador. Nos diz que o falso cristão “não tem
raiz em si”. Resistiu por um tempo, porém quando chegou a
perseguição, tudo se acabou. “O que foi semeado entre
espinhos, este é o que ouve a Palavra, porém o afã deste
século, e o engano das riquezas sufocam a Palavra, e se faz
infrutífera”. O ensino da Escritura a este respeito é
interminável.
Isto é algo que se ensina de forma positiva na Bíblia, e que a
experiência cristã confirma.
Leiamos o relato daqueles primeiros cristãos que, ao serem
perseguidos, e inclusive condenados à morte, davam graças a
Deus de que fossem considerados dignos de sofrer por seu
nome.
O ensino, pois, se resume nisto, somente os homens que têm
feito estas coisas, das quais nosso Senhor fala no Sermão do
Monte, possuem estas experiências. O falso cristão descobre
que quando necessita de ajuda, considerava como a fé não lhe
ajuda. Lhe abandona quando mais necessita dela. Não há
nenhuma dúvida relativamente a isto. O fator comum na vida
de todos os que têm se enfrentado com as provas da vida de
415
forma triunfal e gloriosa, é que têm sido sempre homens que
se têm entregado para viver o Sermão do Monte.
Como posso me assegurar de que estou edificando a casa
sobre a rocha? Como ponho realmente estas coisas em
prática? É a pergunta mais importante deste mundo. Nada há
mais vital que recordar diariamente estas coisas. Às vezes
creio que não há nada mais perigoso na vida cristã do que uma
vida devocional mecânica. Ouço pessoas falarem
superficialmente sobre fazer suas “devoções” diárias. Esta
atitude superficial, em meu modo de entender, é
absolutamente trágica. Significa que a estas pessoas se lhes
tem ensinado que é bom para o cristão, como primeira
atividade do dia, ler um pouca da Bíblia, e logo oferecer uma
oração, antes de ir trabalhar. Alguém cumpre este costume e
pronto. Claro que é uma coisa boa, porém pode resultar
sumamente perigosa para a vida espiritual, caso se converta
em algo puramente mecânico.
Diria pois, que o que se tem que fazer é o seguinte: certamente
tem que se ler a Bíblia e orar; porém não numa forma
mecânica, não porque se tem dito a alguém que tem que fazêlo, não porque se espera que se faça. Perguntemo-nos se
vivemos o Sermão do Monte, se estamos realmente o vivendo.
Não nos falamos a nós mesmos o suficiente; este é nosso
problema. Falamos demasiadamente com os demais e não o
suficiente conosco.
Devemos dizer para nós mesmos: “Nosso Senhor pregou este
sermão porém de nada nos valeria se não fizermos o que Ele
diz”. Ponhamo-nos à prova segundo os ensinos do Sermão do
Monte.
Conclusão do Sermão do Monte – Mateus 7.28,29
“28 Ao concluir Jesus este discurso, as multidões se
maravilhavam da sua doutrina;
29 porque as ensinava como tendo autoridade, e não como os
escribas.” (Mt 7.28,29)
Nos dois últimos versículos deste capítulo o escritor sagrado
nos diz o efeito que este Sermão do Monte produziu no
auditório. Desta forma nos oferece ao mesmo tempo a
416
oportunidade de examinar em geral que efeito deveria
produzir sempre este sermão nos que o leem ou o examinam.
Nestes dois versículos o interesse está mais centrado no
Pregador do que no Sermão.
Se nos pede, por assim dizer, que uma vez examinado o
Sermão, olhemos Aquele que o pronunciou e pregou.
Ao examinar o Sermão do Monte, nunca devemos nos deter
nem sequer no ensino moral, ético e espiritual; devemos ir
mais além de todas estas coisas, por maravilhosas que sejam,
por vitais que sejam, até a pessoa do próprio Pregador.
A autoridade do Sermão deriva do Pregador.
No caso dos demais mestres que o mundo tem conhecido, o
importante é o ensino; porém estamos diante de um caso no
qual o Mestre é mais importante do que o que ensina. Em
certo sentido não se pode dividir, nem separar um do outro.
Porém não haveria o ensino sem o Pregador, porque é o
reflexo da sua Pessoa divina.
Se alguém pergunta: “Por que devo prestar atenção a este
Sermão, por que devo pô-lo em prática, porque devo crer que
é o mais vital desta vida? “ A resposta é: devido à Pessoa que o
pregou. Esta é a autoridade, esta é a sanção do Sermão.
A primeira coisa que temos que observar nesta passagem é
que produziu admiração. A primeira coisa, que está clara, é a
autoridade geral com que falou – este homem que fala com
autoridade e não como os escribas. Este aspecto negativo é
muito interessante – que seu ensino não era segundo o estilo
dos escribas. A característica do ensino dos escribas era que
sempre citavam a autoridades e que nunca emitiam
pensamentos originais; eram experientes, não tanto na lei
mesma, quanto nas distintas exposições e interpretações da
lei que haviam sido propostas desde o tempo de Moisés.
Depois, sempre citavam os experts nestas interpretações.
(Não havia nas ministrações dos escribas, como não há em
muitas pregações na Igreja em nossos dias, pouco ou nada da
vida do Espírito Santo, inspirando os pregadores no conteúdo
do que devem falar, senão citações deste e daquele intérprete
das Escrituras – nota do tradutor).
Há que se destacar que havia também confiança e segurança
no que o Senhor falou no Sermão do Monte.
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O Senhor afirma que veio cumprir a lei e os profetas. Afirma
que é Aquele para o qual apontaram todos os profetas do
Antigo Testamento. É Ele que cumpre em sua própria Pessoa
as promessas.
Este é o que havia de vir, o esperado. Diz tudo isto no Sermão
do Monte.
O Senhor proclamou no final do Sermão que Ele será o Juiz do
mundo. “Muitos me dirão naquele dia: Senhor, Senhor! etc. “E
então lhes declararei: nunca vos conheci, apartai-vos de mim,
praticantes da iniquidade!”.
Como alguém disse muito bem:
“Aquele que esteve sentado no Monte para ensinar, é o
mesmo que ao final se assentará no trono de sua glória para
que todas as nações do mundo compareçam diante dele, e Ele
emitirá juízo definitivo sobre elas!”
418
Mateus 8
A Cura de um Leproso – Mateus 8.1-4
“1 Quando Jesus desceu do monte, grandes multidões o
seguiam.
2 E eis que veio um leproso e o adorava, dizendo: Senhor, se
quiseres, podes tornar-me limpo.
3 Jesus, pois, estendendo a mão, tocou-o, dizendo: Quero; sê
limpo. No mesmo instante ficou purificado da sua lepra.
4 Disse-lhe então Jesus: Olha, não contes isto a ninguém; mas
vai, mostra-te ao sacerdote, e apresenta a oferta que Moisés
determinou, para lhes servir de testemunho.” (Mateus 8.1-4)
O primeiro versículo recorre ao fim do Sermão do Monte,
porque as pessoas que o ouviram estavam maravilhadas da
doutrina do Senhor, e o efeito foi, que quando Ele desceu do
monte, grandes multidões o seguiram.
Nestes versos, temos o relato da cura de um leproso por
Cristo.
Sabemos, pelo evangelho de João, que o primeiro milagre que
Jesus fez foi a transformação de água em vinho nas bodas de
Caná, e temos o registro em Mateus, antes de Jesus ter
proferido o Sermão do Monte, que Ele havia curado a muitos,
como se vê no final do quarto capítulo.
Temos então, aqui, o registro do primeiro milagre de cura que
o Senhor fez depois de ter pregado o Sermão do Monte.
Nos dias de Jesus a lepra era uma doença incurável. Portanto,
através desta cura Ele mostrou que era o único que poderia
também curar a enfermidade incurável do pecado, a qual
continua, até os dias de hoje, e para sempre, sendo uma
doença incurável.
Os leprosos eram considerados imundos pela Lei, e deviam
viver fora das cidades de Israel.
De igual modo o pecado torna o homem imundo para viver no
céu, e caso não seja purificado não poderá jamais entrar no
reino de Deus.
Com a cura do leproso Jesus demonstrou que somente Ele é
competente para salvar os que se encontram banidos da
presença de Deus, por causa da enfermidade do pecado.
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O leproso foi sábio em reconhecer que Jesus tem todo o poder
para curar qualquer enfermidade incurável, mas isto está na
esfera e dependência da sua vontade, e por isso lhe disse:
“Senhor, se quiseres, podes tornar-me limpo.”
Ele se aproximou do Senhor e o adorou, mas reconheceu que
não poderia exigir nada de Jesus, caso não fosse da sua
soberana vontade.
O Senhor não somente teve misericórdia do leproso, como
tem de todos os que sofrem, como também, no seu caso, disse
que era da sua vontade purificá-lo, e o curou.
Pelos mais variados motivos, como por exemplo o de provar a
nossa paciência e fidelidade na tribulação, Deus poderá não
nos curar de nossas enfermidades, mas nos assistirá com a
sua graça, tal como fizera com o apóstolo Paulo quanto ao seu
espinho na carne.
É muito importante o fato de Jesus ter tocado o leproso para
curá-lo, porque isto demonstra que Ele não tem nenhum
receio relativo a qualquer contágio do pecado, quando
também nos toca para nos salvar, fazendo habitar em nós o
Espírito Santo.
Segundo a lei, se alguém tocasse num leproso seria
considerado imundo cerimonialmente, e impedido de
participar do serviço de adoração no templo, até que fossem
cumpridos o tempo e as exigências previstas na lei para a sua
purificação.
Ao tocar no leproso, curando-o, Jesus demonstrou que não
está sujeito, tal como nós, a ser contaminado pelas impurezas
de outros.
Motivo porque não podia ser considerado que havia violado a
lei de Moisés, porque tal prescrição da Lei tinha em vista
ensinar sobre a contaminação do pecado, que deveria ser
evitada, sob pena de ser castigada, em caso de
descumprimento da norma legal.
Quando um leproso era curado de sua lepra, deveria se
apresentar ao sacerdote com as ofertas exigidas pela lei, para
testemunho da sua purificação.
Como a lepra era incurável, então toda cura que havia no
passado, era o resultado de um milagre operado por Deus.
Jesus, comprovou então a sua divindade, ao curar o leproso
quando o tocou.
420
E para que se cumprisse a lei, lhe ordenou que se apresentasse
ao sacerdote, mas que não contasse o modo pelo qual foi
curado, porque não era ainda chegada a hora do Senhor ser
conduzido à morte pelos líderes religiosos de Israel, portanto,
a razão de seu pedido ao leproso, para manter a origem do
milagre em segredo, tinha em vista não precipitar uma
perseguição antes da hora.
A Cura do Servo de um Centurião - Mateus 8.5-13
“5 Tendo Jesus entrado em Cafarnaum, chegou-se a ele um
centurião que lhe rogava, dizendo:
6 Senhor, o meu criado jaz em casa paralítico, e horrivelmente
atormentado.
7 Respondeu-lhe Jesus: Eu irei, e o curarei.
8 O centurião, porém, replicou-lhe: Senhor, não sou digno de
que entres debaixo do meu telhado; mas somente dize uma
palavra, e o meu criado há de sarar.
9 Pois também eu sou homem sujeito à autoridade, e tenho
soldados às minhas ordens; e digo a este: Vai, e ele vai; e a
outro: Vem, e ele vem; e ao meu servo: Faze isto, e ele o faz.
10 Jesus, ouvindo isso, admirou-se, e disse aos que o seguiam:
Em verdade vos digo que a ninguém encontrei em Israel com
tamanha fé.
11 Também vos digo que muitos virão do oriente e do ocidente,
e reclinar-se-ão à mesa de Abraão, Isaque e Jacó, no reino dos
céus;
12 mas os filhos do reino serão lançados nas trevas exteriores;
ali haverá choro e ranger de dentes.
13 Então disse Jesus ao centurião: Vai-te, e te seja feito assim
como creste. E naquela mesma hora o seu criado sarou.”
(Mateus 8.5-13)
Nós temos aqui o relato de Jesus curando o servo de um
centurião romano que sofria de paralisia e que se encontrava
atormentado.
Isto se deu em Cafarnaum, onde Cristo estava habitando na
ocasião (Mt 4.13).
O centurião era um oficial do exército romano, e
provavelmente o principal comandante na área de
421
Cafarnaum, que mantinha uma guarnição na referida
localidade.
Ao ter atendido ao rogo do centurião e curado o seu servo,
nosso Senhor estava dando cumprimento à profecia relativa a
Ele de que seria uma luz para iluminar os gentios, tanto
quanto estava destinado para ser a glória do seu povo de Israel.
Ao curar o servo do centurião à distância, sem necessitar
tocar nele, Jesus mostrou que tem poder para curar de todas
as formas, quer seja de perto, quer seja de longe, quer a quem
visse ou a quem não visse, com os olhos de carne.
O centurião procurou Jesus demonstrando grande fé e
humildade, quando Lhe disse que reconhecia a sua
autoridade para dar ordens para serem cumpridas, e que
também reconhecia a sua excelência a ponto de não ser digno
de recebê-lo em sua casa.
Todos que se aproximam do Senhor à busca de uma bênção
deveriam se espelhar no exemplo que nos foi deixado pelo
centurião.
Aquele oficial romano demonstrou uma piedade e cuidado
pelo bem-estar do seu próximo, a ponto de estar disposto a se
humilhar por amor de um servo. Não foi por si mesmo ou por
um filho que recorreu a Cristo, mas por um criado de sua casa.
Quão grande valor o Senhor dá à intercessão que é feita em
favor de outras pessoas, porque isto dá mostras de não sermos
governados pelo egoísmo, mas pelo amor ao próximo que é
ordenado por Deus a todos os homens.
O centurião não demitiu o criado enfermo apesar de ter-se
tornado um peso para ele, e sem utilidade para desempenhar
suas funções, e além disso é dito que estava horrivelmente
atormentado.
Este amor e cuidado do centurião por aqueles que se
encontravam debaixo das suas ordens, explica em parte o fato
deles serem muito obedientes a ele, porque onde houver
verdadeiro interesse e cuidado pelos que estão debaixo do
nosso cuidado, isto lhes inspirará a serem gratos,
respondendo com o desejo de servir com atenção e diligência,
como forma de retribuição.
Não foi confiado em sua própria bondade que o centurião se
aproximou de Jesus.
422
Ele reconheceu a sua indignidade diante da majestade e
santidade do Senhor.
Este reconhecimento cabe a todos os homens, porque todos
somos pecadores.
Ele honrou tanto a Cristo com a sua grande fé, que afirmou
que confiava que o Senhor poderia curar o seu servo à
distância.
Ele deu mostras com isso de reconhecimento do grande
poder de Jesus.
E tal confiança é muito apreciada por Deus, porque sem fé é
impossível agradá-lo.
O Senhor se agradou muito da confissão de fé do centurião,
porque nela havia a marca do significado da verdadeira
obediência que Deus espera de nós. Não pelo
constrangimento da sua presença divina, mas pelo crédito e
honra a tudo que nos tem ordenado na sua Palavra.
Uma obediência que tem o caráter daquilo que se diz em Ef.
6.6:
“não servindo somente à vista, como para agradar aos
homens, mas como servos de Cristo, fazendo de coração a
vontade de Deus,”
A fé do centurião na Pessoa de Cristo deu ocasião para que o
Senhor profetizasse que aquilo era apenas um sinal, uma
pequena mostra da grande conversão a Ele que ocorreria em
todas as partes do mundo, inclusive no Ocidente, o que tem de
fato ocorrido nestes cerca de dois mil anos de Cristianismo.
Não foi no panteão de deuses romanos que o centurião
romano depositou a sua confiança, mas em Cristo, e assim
tem sido com muitos em todas as nações pagãs.
Os próprios judeus que eram tidos na conta de filhos do reino
de Deus, porque eram eles que estavam naturalmente
destinados a recepcionarem a Jesus como Salvador e Senhor
deles, vieram por fim a se endurecer em sua grande maioria,
rejeitando-O, dando com isso cumprimento às profecias
relativas a eles, especialmente as que encontramos no livro
do profeta Isaías, no qual se revela claramente que a
mensagem do evangelho seria rejeitada pelos judeus mas
seria obedecida pelos gentios.
A consequência disto e o que Jesus afirma nos versos 11 e 12:
423
“11 Também vos digo que muitos virão do oriente e do
ocidente, e reclinar-se-ão à mesa de Abraão, Isaque e Jacó, no
reino dos céus;
12 mas os filhos do reino serão lançados nas trevas exteriores;
ali haverá choro e ranger de dentes.”
A citação “filhos do reino” é uma referência aos israelitas,
porque eram o povo de Deus na antiga aliança, e era a eles que
o reino estava destinado, mas eles o rejeitaram, ao terem
rejeitado a Jesus.
Assim, os gentios (os não israelitas) que se convertem a Cristo
estarão no reino dos céus, e os israelitas que rejeitaram a
Cristo, no inferno, que consiste nas trevas exteriores, longe
das luzes do reino dos céus, onde há choro e ranger de dentes.
A Cura da Sogra de Pedro – Mateus 8.14,15
“14 Ora, tendo Jesus entrado na casa de Pedro, viu a sogra
deste de cama; e com febre.
15 E tocou-lhe a mão, e a febre a deixou; então ela se levantou,
e o servia.” (Mateus 8.14,15)
Nós temos aqui o relato da cura da sogra de Pedro.
Ela estava com febre, e geralmente febres são apenas
sintomas de algum mal que esteja acometendo o nosso
organismo, geralmente infecções.
Então, ao fazer cessar a febre, Jesus curou a enfermidade que
estava dando causa à mesma.
A sogra de Pedro encontrava-se acamada na casa do apóstolo,
e tão logo foi curada por Jesus, levantou-se e O servia.
A saúde que o Senhor nos concede é para servi-lo.
Por isso não deveríamos nos entristecer somente pela
enfermidade propriamente dita, mas pelo fato de nos
impossibilitar de nos dar continuidade ao nosso serviço para
Cristo.
Um simples toque de Jesus na mão da sogra de Pedro a curou.
O poder de cura atravessou todo o seu corpo e atingiu a parte
que estava abrigando a doença, porque não é de se supor que
fosse qualquer problema em sua mão que estivesse dando
ocasião à febre.
Disto aprendemos, que não há necessidade, como muitos
imaginam, que toquemos na parte do corpo em que esteja
424
supostamente localizada a enfermidade, para que uma pessoa
seja curada, quando oramos por ela.
Muitas Curas Operadas por Jesus – Mateus 8.16,17
“16 Caída a tarde, trouxeram-lhe muitos endemoninhados; e
ele com a sua palavra expulsou os espíritos, e curou todos os
enfermos;
17 para que se cumprisse o que fora dito pelo profeta Isaías: Ele
tomou sobre si as nossas enfermidades, e levou as nossas
doenças.” (Mateus 8.16,17)
Nesta passagem nós temos o relato do método que o Senhor
empregava usualmente para curar e expulsar espíritos
malignos: simplesmente pela sua palavra de ordem.
Nosso Senhor revelou o seu completo poder sobre as obras de
Satanás, para destruí-las.
Se o pecado não tivesse entrado no mundo não haveria
doenças e nem possessões malignas, então, ao curar os
enfermos e endemoninhados, Jesus demonstrou o seu poder
para também remover a causa de tais males, que é o pecado,
conforme foi profetizado acerca dele nas Escrituras:
“Verdadeiramente ele tomou sobre si as nossas
enfermidades, e carregou com as nossas dores; e nós o
reputávamos por aflito, ferido de Deus, e oprimido.” (Is 53.4)
“levando ele mesmo os nossos pecados em seu corpo sobre o
madeiro, para que mortos para os pecados, pudéssemos viver
para a justiça; e pelas suas feridas fostes sarados.” (I Pe 2.24)
Jesus pode curar enfermidades e expulsar demônios porque
carregou sobre Si mesmo todos os nossos males na cruz.
Ele teve que pagar este altíssimo e doloroso preço para que
pudéssemos ser curados e libertados.
É portanto, grande demonstração de gratidão para com o
Senhor, e de tributação de louvor e honra ao seu grande
nome, depositar total confiança nele para que sejamos
curados, e principalmente salvos do poder de destruição do
pecado.
Não é dito na passagem que Ele tivesse recusado a qualquer
tivesse vindo a Ele. Ele não o fez e jamais o fará.
425
O Senhor entrará na casa do coração de qualquer que lhe der
acolhida, e lhes abençoará com a sua presença.
Jesus Põe à Prova os que Queriam Segui-lo - Mateus 8.18-22
“18 Vendo Jesus uma multidão ao redor de si, deu ordem de
partir para o outro lado do mar.
19 E, aproximando-se um escriba, disse-lhe: Mestre, seguirte-ei para onde quer que fores.
20 Respondeu-lhe Jesus: As raposas têm covis, e as aves do céu
têm ninhos; mas o Filho do homem não tem onde reclinar a
cabeça.
21 E outro de seus discípulos lhe disse: Senhor, permite-me ir
primeiro sepultar meu pai.
22 Jesus, porém, respondeu-lhe: Segue-me, e deixa os mortos
sepultar os seus próprios mortos.” (Mateus 8.18-22)
Jesus não poderia se fixar numa determinada localidade de
Israel, porque seu ministério deveria atingir todas as partes
daquela nação, conforme estava determinado pelo desígnio
eterno do Pai.
Ele foi dado como o Grande Profeta para todos os israelitas. E
portanto, deveria percorrer todos as cidades e lugarejos da
nação.
Por isso, nós o vemos aqui nesta passagem se deslocando de
Cafarnaum para o outro lado do Mar de Tiberíades, também
conhecido como Mar da Galileia, junto ao qual ficava a citada
cidade.
“Respondeu-lhes Jesus: Vamos a outras partes, às povoações
vizinhas, para que eu pregue ali também; pois para isso é que
vim.” (Mc 1.38)
Em seu ministério terreno, nosso Senhor deveria se limitar
aos termos de Israel, porque, a ministração junto aos gentios
deveria ser feita pela Igreja, somente depois que o Espírito
Santo fosse derramado depois da sua morte e ressurreição, o
que ocorreu a partir do dia de Pentecostes.
Por isso se afirma nas Escrituras que Jesus foi ministro da
circuncisão, a saber, junto aos judeus, porque foi a eles que
foram feitas as promessas e as alianças:
426
“Digo pois que Cristo foi feito ministro da circuncisão, por
causa da verdade de Deus, para confirmar as promessas feitas
aos pais;” (Rom 15.8)
Por isso foi necessário que, mesmo pela Igreja, primeiro se
pregasse o evangelho aos judeus, e importava que eles o
rejeitassem, para que fosse estendido aos gentios.
A pregação do evangelho é um alto privilégio que está
reservado para aqueles que são chamados e enviados por
Deus para fazê-lo, como vemos em Rom 10.15.
Jesus foi eleito e chamado pelo Pai para pregar o evangelho, e
o Senhor chamou os apóstolos e discípulos para fazê-lo.
Agora, nós temos o relato de um escriba se apresentando a
nosso Senhor, dizendo-lhe que o seguiria aonde quer que Ele
fosse.
O escriba fizera isto por sua própria iniciativa, sem ter
recebido qualquer chamado do Senhor para fazê-lo.
Daí ter recebido a resposta dissuasiva que Jesus lhe dera:
“As raposas têm covis, e as aves do céu têm ninhos; mas o
Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça.”
O Senhor lhe apontou o custo que é cobrado àqueles que Lhe
seguem.
E não temos o registro de qualquer tréplica que tivesse sido
apresentada pelo escriba, depois de ter ouvido tal afirmação
do Senhor.
É bem provável que tenha percebido em si não a falta de
desejo para seguir a Cristo, porque é possível que fosse
sincero tal desejo, mas faltava-lhe a autoridade necessária
para fazê-lo, autoridade esta que é concedida pela graça do
Senhor somente para aqueles que são por Ele chamados, tal
como foi, por exemplo o caso dos apóstolos, e de todos aqueles
que Ele continua chamando ao longo da história da Igreja,
para pregarem o evangelho.
No verso 21 nós temos o registro do motivo alegado por um
dos discípulos do Senhor para retardar o atendimento à sua
chamada para segui-lo.
Ele pediu que esperasse primeiro que chegasse o dia da morte
do seu pai, para que somente, depois de então, pudesse seguilo para pregar o evangelho.
A resposta do Senhor para ele está registrada no verso 22:
427
“Segue-me, e deixa os mortos sepultar os seus próprios
mortos.”
O Senhor não consentiu com o pedido daquele discípulo,
porque o dever de todo discípulo do Senhor é segui-lo.
É dever de todo cristão estar onde estiver o seu Senhor. Então
Jesus lhe ordenou: “Segue-me”.
E logo em seguida apresentou-lhe um argumento consistente
para fazê-lo: os que receberam vida devem anunciar a vida aos
que estão mortos espiritualmente para que também vivam.
Jesus Acalma uma Tempestade – Mateus 8.23-27
“23 E, entrando ele no barco, seus discípulos o seguiram.
24 E eis que se levantou no mar tão grande tempestade que o
barco era coberto pelas ondas; ele, porém, estava dormindo.
25 Os discípulos, pois, aproximando-se, o despertaram,
dizendo: Salva-nos, Senhor, que estamos perecendo.
26 Ele lhes respondeu: Por que temeis, homens de pouca fé?
Então, levantando-se repreendeu os ventos e o mar, e seguiuse grande bonança.
27 E aqueles homens se maravilharam, dizendo: Que homem
é este, que até os ventos e o mar lhe obedecem?” (Mateus 8.2327)
Nós vimos no verso 18 que Jesus havia ordenado aos seus
discípulos que atravessassem para o outro lado do Mar de
Tiberíades, e eles estavam navegando para a região de
Gadara, situada na tribo de Gade, no lado oriental do Jordão.
Na passagem anterior nosso Senhor havia deixado de modo
bastante claro que renúncias e dificuldades são impostas a
todos aqueles que O seguirem.
E aqui, esta verdade está ilustrada de maneira prática, porque
tendo decidido atravessar para o outro lado do Jordão através
do mar, quando poderia fazê-lo por terra, percorrendo quase
que a mesma distância, Jesus deu aos discípulos uma
oportunidade de terem a fé deles provada, porque lhes
sobreveio grande tempestade quando se encontravam em seu
pequeno barco no mar.
Tranquilo e seguro quanto à providência divina para garantir
o cumprimento da sua missão, o Senhor dormia no barco em
meio à furiosa tempestade.
428
Alarmados e em grande desespero, os discípulos acordaram o
Senhor rogando-lhe que lhes acudisse.
Devia ser de tal ordem o grande temor deles que foram
repreendidos em vez de confortados.
O Senhor lhes disse que não deveriam temer, uma vez que se
encontravam debaixo do seu cuidado e companhia, e lhes
revelou que a causa de tão grande temor era a pequena fé
deles na sua pessoa divina.
Sabendo que necessitavam ter a fé aumentada, e que isto não
sucederia em tão pouco tempo, por causa da fraqueza da fé
dos discípulos, nosso Senhor não permitiu que a prova se
prolongasse, aumentando ainda mais a tormenta deles, e por
isso se levantou repreendendo os ventos e o mar, de maneira
que se seguiu grande bonança.
O modo de os discípulos se manifestarem diante do milagre
realizado, revela que apesar de Jesus ter realizado muitos
outros milagres anteriormente diante deles, ainda não
conheciam a sua natureza divina e o seu pleno poder sobre
todas as coisas, de maneira que o viam até então, como um
homem dotado de poderes extraordinários, mas seus olhos
espirituais não tinham ainda sido abertos para poderem ver
que nosso Senhor é o Deus que pode todas as coisas.
Há um grande ensino para a Igreja nesta passagem, porque
ela se encontra neste mundo, como os discípulos se
encontravam naquele pequeno barco, sendo batido pela fúria
das tempestades que tentam impedir que o barco chegue a
seu destino.
Se tivermos uma fé grande não será necessário que o Senhor
repreenda a fúria das tribulações e perseguições que nos
acompanham tão de perto em nossa jornada neste mundo,
porque perseverando em nossa confiança no Senhor, somos
mais do que vencedores e nenhuma porta do inferno poderá
prevalecer contra a sua Igreja.
Devemos então descansar nossos corações em todas as
circunstâncias difíceis da vida, sabendo que Jesus não
somente tem poder para curar enfermidades, mas até mesmo
para fazer cessar a fúria dos mares, o vendaval e as
tempestades, porque tudo tem que obedecer a sua palavra de
ordem, pela qual criou todas as coisas, quer visíveis, quer
invisíveis.
429
Mateus 9
A Cura de um Paralítico em Cafarnaum - Mateus 9.1-8
“1 E entrando Jesus num barco, passou para o outro lado, e
chegou à sua própria cidade.
2 E eis que lhe trouxeram um paralítico deitado num leito.
Jesus, pois, vendo-lhes a fé, disse ao paralítico: Tem ânimo,
filho; perdoados são os teus pecados.
3 E alguns dos escribas disseram consigo: Este homem
blasfema.
4 Mas Jesus, conhecendo-lhes os pensamentos, disse: Por que
pensais o mal em vossos corações?
5 Pois qual é mais fácil? dizer: Perdoados são os teus pecados,
ou dizer: Levanta-te e anda?
6 Ora, para que saibais que o Filho do homem tem sobre a
terra autoridade para perdoar pecados (disse então ao
paralítico): Levanta-te, toma o teu leito, e vai para tua casa.
7 E este, levantando-se, foi para sua casa.
8 E as multidões, vendo isso, temeram, e glorificaram a Deus,
que dera tal autoridade aos homens.” (Mateus 9.1-8)
Jesus retornou de Gadara, que ficava no lado oriental do
Jordão, e retornou para a cidade onde fora residir depois de ter
sido batizado por João, a saber, em Cafarnaum, onde Pedro
também residia.
As passagens paralelas a esta narrativa se encontram em
Marcos 2.1-12, e em Lucas 5.17-26. Nestes textos paralelos é
informado que o paralítico foi introduzido através do telhado,
na casa em que Jesus se encontrava, provavelmente a casa de
Pedro, porque o Senhor dissera que não tinha sequer onde
reclinar a cabeça, isto é, uma residência própria e fixa.
Todos os eventos narrados neste capítulo aconteceram em
Cafarnaum. E a primeira ocorrência naquela cidade foi a
salvação e a cura de um paralítico.
Era de tal ordem a paralisia deste homem que teve que ser
carregado em sua cama por alguns amigos até a presença de
Jesus. E nosso Senhor viu não somente a fé do paralítico como
também daqueles que lho haviam trazido até Ele, pois é dito
no verso 2: “Jesus, pois, vendo-lhes a fé...”
430
Deus opera de muitos modos para atrair as pessoas a Cristo,
para que sejam salvas.
A uns pela busca de cura do corpo, a outros pela busca de cura
da alma, e pelos mais variados motivos – tudo usa, todas as
circunstâncias, conforme o conhecimento perfeito que
possui do interior de cada pessoa, para conduzi-las à salvação.
Até mesmo aqueles que não podem tomar qualquer iniciativa
para virem a Cristo, como foi por exemplo o caso dos dois
endemoninhados gadarenos, livrará dos laços do diabo, pelo
seu próprio poder, àqueles que tem determinado manifestar
a sua misericórdia, para que sejam salvos.
Não importa se podemos caminhar por nossos próprios meios
ou se outros têm que nos conduzir ao Senhor, uma coisa é
certa, Ele não perderá a nenhum daqueles que Lhe foram
dados pelo Pai.
Como aquela paralisia, naquele caso, foi o meio usado para
que houvesse a busca de nosso Senhor pelo paralítico, Ele não
concentrou sua atenção na enfermidade, mas na
transformação do paralítico em filho de Deus, perdoando-lhe
todos os seus pecados (v. 2).
Ele poderia até mesmo permanecer com a paralisia, como
tantos outros em toda a história da humanidade, porque
aquilo que é realmente de importância, a única coisa que nos
é necessária, já havia sido feita em relação ao destino eterno
do seu espírito.
O que deu ocasião à cura da paralisia foi a murmuração de
alguns escribas, que disseram consigo mesmos que Jesus
estava blasfemando ao dizer que os pecados do paralítico
haviam sido perdoados.
Ninguém ao redor ouviu o que eles diziam em seus corações,
com exceção do Senhor, que tem o poder de conhecer os
nossos pensamentos, e por isso lhes disse: “Por que pensais o
mal em vossos corações?”.
Ele não precisaria fazer nenhuma outra coisa para provar-lhes
a sua divindade, quando lhes demonstrou a sua onisciência, e
capacidade de ler pensamentos.
Todavia, Deus não tem o dever de provar coisa nenhuma a
qualquer pessoa, e por isso nosso Senhor curaria o paralítico,
não por ter sido provocado por aqueles escribas, mas para
manifestar a sua misericórdia, que é a causa de sermos
431
perdoados por Ele, e não por qualquer bondade própria ou
mérito que haja em nós.
Quem pode mais pode menos.
É mais fácil curar uma enfermidade física do que justificar um
pecador, perdoando todos os seus pecados.
O trabalho de salvação de uma alma é muito maior e de
duração eterna, do que a cura do corpo.
No entanto, para a percepção humana, limitada e falha,
incapaz de perceber os poderes que operam salvando o
espírito, justificando e dando um novo nascimento espiritual
ao salvo, e que considera portanto, ser uma evidência de
poder muito maior ver uma cura física sendo efetuada, Jesus
disse o que lemos no verso 5:
“Pois qual é mais fácil? dizer: Perdoados são os teus pecados,
ou dizer: Levanta-te e anda?”
Realmente, é mais fácil dizer perdoados são os teus pecados,
do que levanta-te e anda, segundo a avaliação humana, à qual
nos referimos anteriormente.
Por isso nosso Senhor disse que levantaria o paralítico, para
que os circunstantes soubessem que Ele tem autoridade
sobre a terra para perdoar pecados (v. 6).
O efeito da cura foi que as multidões temeram e glorificaram
a Deus.
Quão cega é a natureza humana!
Tão incapaz de ver o mundo espiritual, e necessitada de ver
sinais para poder crer no poder de Cristo, dando a devida
honra à sua divindade.
Convém que seja diferente disso, ao menos quanto aos que
foram libertados da escravidão ao pecado. Convém crescer na
fé, e ter os olhos espirituais cada vez mais abertos, para
discernir o mundo espiritual, dando honra e glória ao Senhor,
em espírito, sem que haja necessidade de qualquer
manifestação visível da sua glória e poder, porque somos
chamados a caminhar por fé e não por vista.
A Chamada de Mateus – Mateus 9.9-13
“9 Partindo Jesus dali, viu sentado na coletoria um homem
chamado Mateus, e disse-lhe: Segue-me. E ele, levantando-se,
o seguiu.
432
10 Ora, estando ele à mesa em casa, eis que chegaram muitos
publicanos e pecadores, e se reclinaram à mesa juntamente
com Jesus e seus discípulos.
11 E os fariseus, vendo isso, perguntavam aos discípulos: Por
que come o vosso Mestre com publicanos e pecadores?
12 Jesus, porém, ouvindo isso, respondeu: Não necessitam de
médico os sãos, mas sim os enfermos.
13 Ide, pois, e aprendei o que significa: Misericórdia quero, e
não sacrifícios. Porque eu não vim chamar justos, mas
pecadores.” (Mateus 9.9-13)
O evangelista Mateus registrou aqui como foi o modo da sua
própria chamada por Cristo para o apostolado.
Ele era até então um publicano, ou seja, um coletor de
impostos para Roma, sendo um judeu.
As passagens paralelas de Marcos 2.15 e Lc 5.29, registram que
a casa em que Jesus se encontrava, conforme relatado nesta
passagem era a casa do próprio Mateus, a quem Marcos e
Lucas chamam de Levi, nos seus respectivos evangelhos.
Lucas afirma que Mateus ofereceu um grande banquete em
sua casa, e que numerosos publicanos e outros estavam com
eles à mesa.
Pode-se inferir portanto, que depois de ter sido chamado por
Jesus, Mateus pensou em dar este grande banquete em honra
ao Senhor.
É certo que muitos daqueles publicanos e demais pecadores
que se encontravam à mesa com Jesus, não eram pessoas
honestas e de boa reputação, porque, de outra sorte os
fariseus não teriam protestado perguntando aos discípulos do
Senhor, por que o Mestre deles comia em companhia de
publicanos e pecadores, diferentemente deles, fariseus, que
privavam apenas da companhia de pessoas religiosas.
Como o Senhor ouviu o que tinham falado, respondeu com as
seguintes palavras: “Não necessitam de médico os sãos, mas
sim os enfermos. Ide, pois, e aprendei o que significa:
Misericórdia quero, e não sacrifícios. Porque eu não vim
chamar justos, mas pecadores.”
O espírito de julgamento, hipercrítico, que o Senhor havia
condenado no Sermão do Monte, aparece de maneira muito
clara na pessoa dos fariseus, nesta passagem, e em muitas
outras, dos evangelhos.
433
O orgulho religioso e a justiça própria foram manifestados na
pergunta que os fariseus fizeram aos discípulos de Jesus.
Corremos sempre o mesmo risco que eles, se somos
fermentados pela hipocrisia, que nos cega, e não permite que
enxerguemos, que aos olhos de Deus não há um só justo, que
possa se apresentar diante dele sem pecado, pela sua justiça
própria.
Todos os homens justos terão sido obrigatoriamente
justificados pela graça de Jesus.
Deste modo, neste mundo, nosso Senhor será sempre achado
trabalhando para chamar pecadores à salvação, até mesmo
entre os piores deles, porque, conforme a Bíblia afirma, não
há um justo sequer aos olhos de Deus, que não necessite ser
perdoado e lavado de seus pecados.
É importante portanto, observar, que o que há de mais
condenável é a falta deste reconhecimento da nossa condição
pecaminosa diante de Deus, como existia nos fariseus, do que
a condição reconhecida de pecadores, como estava em
Mateus e certamente, num bom número daqueles publicanos
e demais pecadores, que estavam à mesa do banquete
juntamente com Jesus.
Devemos vigiar, e tomar cuidado para não sermos tomados
por este espírito de falta de misericórdia, e que condena até
mesmo o próprio Cristo por se mostrar favorável aos
pecadores.
Jesus é o único e grande médico do espírito. Nenhum outro
pode curar a enfermidade do pecado, e livrar da morte
espiritual e eterna que é ocasionada pelo pecado.
Ele tem prazer em exercer o seu ofício, e criticá-lo nesta sua
função, significa atribuir grande desonra ao seu santo nome,
Jesus, que significa o Salvador.
Ele veio para nos salvar de nossos pecados, e será portanto,
honrado somente por aqueles que se submetem ao remédio
da graça que Ele veio nos administrar para sermos curados.
Os fariseus argumentavam que somente aqueles que
conhecessem as Escrituras, tal como eles, poderiam estar
reunidos em nome de Deus, então Jesus citou o texto das
Escrituras no qual o Senhor falou através do profeta Oseias:
“Pois misericórdia quero, e não sacrifícios; e o conhecimento
de Deus, mais do que os holocaustos.” (Os 6.6).
434
Esta citação feita por Jesus mostra em que consiste a
verdadeira religião: não em observâncias externas; não no
cumprimento dos ritos e cerimônias externas do Antigo
Testamento para a oferta de sacrifícios no templo; não em
disputas e debates teológicos, mas em fazer o bem aos corpos,
almas e espíritos de outros, em justiça e paz, levando-lhes a
mensagem da salvação, em demonstração de misericórdia.
Do Jejum – Mateus 9.14-17
“14 Então vieram ter com ele os discípulos de João,
perguntando: Por que é que nós e os fariseus jejuamos, mas os
teus discípulos não jejuam?
15 Respondeu-lhes Jesus: Podem porventura ficar tristes os
convidados às núpcias, enquanto o noivo está com eles? Dias
virão, porém, em que lhes será tirado o noivo, e então hão de
jejuar.
16 Ninguém põe remendo de pano novo em vestido velho;
porque semelhante remendo tira parte do vestido, e faz-se
maior a rotura.
17 Nem se deita vinho novo em odres velhos; do contrário se
rebentam, derrama-se o vinho, e os odres se perdem; mas
deita-se vinho novo em odres novos, e assim ambos se
conservam.” (Mateus 9.14-17)
Nós lemos no texto paralelo desta passagem, em Mc 2.18, o
seguinte:
“Ora, os discípulos de João e os fariseus estavam jejuando; e
foram perguntar-lhe: Por que jejuam os discípulos de João e os
dos fariseus, mas os teus discípulos não jejuam?”
Este texto paralelo registra que os discípulos de João e os
fariseus estavam em acordo prático, quanto à questão do
jejum.
Nós já comentamos na parte relativa ao jejum, no Sermão do
Monte, que os fariseus haviam acrescentado à prática
religiosa, um jejum obrigatório não previsto na Lei de Moisés.
É bem provável que João e seus discípulos tenham sido
influenciados por tal prática e se submeteram à mesma, uma
vez que era generalizada em Israel.
Poderia, portanto, parecer aos discípulos de João que era uma
violação da lei, ou então algo pecaminoso em si mesmo, não
435
observar aquele jejum prescrito pelos fariseus, para
determinados dias da semana.
Nós vemos que não foi sem razão que Jesus advertiu os seus
discípulos quanto ao cuidado que deveriam ter para não se
contaminarem com o fermento dos fariseus.
É muito comum que pessoas piedosas se deixem levar por
práticas religiosas que lhes sejam impostas como
obrigatórias, sem que haja qualquer base ou ordenação
bíblica para as mesmas.
Quão difícil é dissuadir aqueles que adotam tais práticas
quanto ao fato de não serem exigidas por Deus, porque admitilo, geralmente ofende suas consciências fracas e sensíveis.
Tanto que Jesus não condenou a prática dos fariseus e dos
discípulos de João, mas, como jejuavam desfigurando o rosto,
e como motivo de tristeza, deu-lhes a resposta de que não
havia motivo para que os seus discípulos fizessem um jejum
de tal tipo, enquanto tinham a sua companhia com eles, sendo
a sua permanente alegria.
Quando Ele lhes fosse tirado temporariamente, em sua morte
na cruz, então teriam motivo de tristeza, e poderiam jejuar tal
como faziam os discípulos de João.
No entanto, Cristo veio inaugurar uma Nova Aliança,
diferente em muitos aspectos da Antiga, que regia os
discípulos de João, que se encontravam debaixo das
disposições do Antigo Testamento.
Nosso Senhor não veio colocar um remendo de pano novo no
vestido da Antiga Aliança, que vigorava no Velho Testamento,
mas trazer a veste nova da sua justiça.
Muitos pensam que ao ter dito as palavras do verso 16, que
nosso Senhor veio colocar remendo novo em vestido novo.
Todavia, não é o caso, porque este vestido novo não necessita
de remendo, porque a justiça com a qual fomos justificados é
perfeita e eterna.
Usando uma outra metáfora, nosso Senhor disse que o vinho
novo da Nova Aliança não é colocado em odres velhos, mas em
recipientes novos, para que sejam conservados tanto o odre
quanto o vinho.
O cristão é uma nova criatura. Ninguém pode fazer parte desta
Nova Aliança se não for justificado e se não nascer de novo do
Espírito.
436
A obra de salvação não é uma obra de remendo do pecador,
mas a formação de uma nova criação. Deus destrói o velho
para erigir o novo. Tudo o que herdamos de Adão será
removido pela mortificação do pecado, para que permaneça
somente aquilo que temos herdado em Cristo e por Cristo.
A Ressurreição da Filha de Jairo e a Cura Uma Mulher
Enferma – Mateus 9.18-26
“18 Enquanto ainda lhes dizia essas coisas, eis que chegou um
chefe da sinagoga e o adorou, dizendo: Minha filha acaba de
falecer; mas vem, impõe-lhe a tua mão, e ela viverá.
19 Levantou-se, pois, Jesus, e o foi seguindo, ele e os seus
discípulos.
20 E eis que certa mulher, que havia doze anos padecia de uma
hemorragia, chegou por detrás dele e tocou-lhe a orla do
manto;
21 porque dizia consigo: Se eu tão-somente tocar-lhe o manto,
ficarei sã.
22 Mas Jesus, voltando-se e vendo-a, disse: Tem ânimo, filha,
a tua fé te salvou. E desde aquela hora a mulher ficou sã.
23 Quando Jesus chegou à casa daquele chefe, e viu os
tocadores de flauta e a multidão em alvoroço,
24 disse; retirai-vos; porque a menina não está morta, mas
dorme. E riam-se dele.
25 Tendo-se feito sair o povo, entrou Jesus, tomou a menina
pela mão, e ela se levantou.
26 E espalhou-se a notícia disso por toda aquela terra.”
(Mateus 9.18-26)
Nos textos paralelos de Marcos e Lucas (Mc 5.21-26; Lc 8.4052) nos é informado que o nome deste chefe da sinagoga era
Jairo. A história da ressurreição da sua filha está entrelaçada
com a da cura da mulher que sofria de hemorragia, porque
esta cura foi efetuada pelo Senhor quando se encontrava a
caminho da casa de Jairo.
É interessante observar que o evangelho de Marcos registra
que a menina que foi ressuscitada tinha doze anos de idade, e
a mulher que foi curada tinha hemorragia há doze anos.
Jesus estava diante de dois casos impossíveis de serem
resolvidos pelos homens, o primeiro (cura da hemorragia) do
437
qual os médicos da época não estavam conseguindo curar há
doze anos; e o segundo, que será impossível aos médicos de
qualquer época, a saber: ressuscitar alguém que tenha
morrido.
Seria de se esperar que a mulher tivesse confiança para tocar
em Jesus para ser curada, porque até então, ele havia realizado
inumeráveis milagres de cura; mas como não havia ainda
ressuscitado nenhum morto, foi grande a fé que o chefe da
sinagoga, Jairo, teve nele para que ressuscitasse sua filha
dentre os mortos.
A cura da hemorragia daquela mulher ajudaria a fortalecer a
fé de Jairo, porque de tudo o que podemos ver nos relatos
paralelos de Marcos e Lucas, tão logo Jesus terminou de
encorajar a mulher que fora curada, dizendo-lhe que a sua fé
nele lhe havia salvado, chegaram pessoas da casa de Jairo
dizendo-lhe que não incomodasse mais ao Senhor, porque a
sua filha tinha realmente morrido.
Percebendo que estas palavras haviam produzido um golpe
em Jairo, nosso Senhor lhe encorajou dizendo que não
temesse e continuasse crendo.
Assim se dá conosco, sempre que recorremos a Jesus em
busca de auxílio, porque se Satanás e os demônios não se
anteciparem tentando nos dissuadir de importunar o Senhor,
fazendo-o com sugestões dirigidas diretamente às nossas
mentes, para que duvidemos e enfraqueçamos na fé, eles o
farão através da agência de pessoas, ainda que sejam as da
nossa própria casa.
Quão importante é pois, ficar firme na nossa fé no Senhor, e
não dar ouvido a qualquer ação contrária à fé que nos venha
com o intuito de colocá-la à prova.
Sabendo que a provação da fé de Jairo ainda prosseguiria em
sua casa, o Senhor não permitiu que entrassem no quarto
onde a menina se encontrava, senão somente seus pais, e
Pedro, Tiago e João.
Os escarnecedores e incrédulos que haviam rido, quando
Jesus disse que a menina não estava morta, mas apenas
dormia, tiveram que ficar do lado de fora, porque não lhes
seria dada a honra de verem a menina sendo ressuscitada e
levantada pelo poder de Deus.
438
Foi apenas com a palavra de ordem que Jesus pronunciou em
aramaico “Talita cumi”, que significa ”menina levanta-te”
que Ele a ressuscitou, enquanto a firmava pela mão.
Aqueles que estavam alvoroçados e os tocadores de flauta,
que entoavam cânticos de lamento, porque não tinham
nenhuma esperança e em ninguém em quem confiar na hora
da morte, tiveram que silenciar diante do milagre que o
Senhor realizou.
Sosseguemos portanto, os nossos corações, mesmo na hora
da morte daqueles que conhecem ao Senhor, daqueles que
têm fé no seu nome, porque têm dele a promessa da
ressurreição futura, conforme o poder que demonstrou em
seu ministério terreno, ressuscitando não somente esta
menina, como também a outros, para que saibamos que Ele
mesmo é a ressurreição e a vida.
Por isso, vê a morte diferentemente de nós, como um sono
profundo e longo, porque somente Ele tem a autoridade para
nos despertar deste tipo de sono.
Os incrédulos que estavam na casa de Jairo não puderam ver
como a menina foi ressuscitada, mas tiveram que se calar
diante da evidência de que havia sido trazida de novo à vida, e
assim, esta notícia foi espalhada por toda aquela terra, dando
ocasião para que muitos viessem a crer futuramente no
Senhor.
A Cura de Dois Cegos e de Um Mudo – Mateus 9.27-34
“27 Partindo Jesus dali, seguiram-no dois cegos, que
clamavam, dizendo: Tem compaixão de nós, Filho de Davi.
28 E, tendo ele entrado em casa, os cegos se aproximaram
dele; e Jesus perguntou-lhes: Credes que eu posso fazer isto?
Responderam-lhe eles: Sim, Senhor.
29 Então lhes tocou os olhos, dizendo: Seja-vos feito segundo
a vossa fé.
30 E os olhos se lhes abriram. Jesus ordenou-lhes
terminantemente, dizendo: Vede que ninguém o saiba.
31 Eles, porém, saíram, e divulgaram a sua fama por toda
aquela terra.
32 Enquanto esses se retiravam, eis que lhe trouxeram um
homem mudo e endemoninhado.
439
33 E, expulso o demônio, falou o mudo e as multidões se
admiraram, dizendo: Nunca tal se viu em Israel.
34 Os fariseus, porém, diziam: É pelo príncipe dos demônios
que ele expulsa os demônios.” (Mateus 9.27-34)
Importava que Jesus operasse todos estes grandes milagres
em seu ministério terreno, especialmente para que fosse
confirmado para todas as gerações depois dele, que somente
Ele é o Messias prometido nas Escrituras, em tudo aquilo que
foi registrado quanto ao que faria, quando fosse manifestado
na plenitude do tempo.
Estes dois milagres aqui narrados estavam previstos nos
desígnios eternos de Deus para o ministério do Messias, como
se vê na seguinte profecia:
“5 Então os olhos dos cegos serão abertos, e os ouvidos dos
surdos se desimpedirão.
6 Então o coxo saltará como o cervo, e a língua do mudo
cantará de alegria; porque águas arrebentarão no deserto e
ribeiros no ermo.” (Is 35.5,6)
Muitas outras coisas foram profetizadas para confirmar que
Jesus é o Messias, como vemos nas seguintes passagens entre
outras:
“6 Eu o Senhor te chamei em justiça; tomei-te pela mão, e te
guardei; e te dei por pacto ao povo, e para luz das nações;
7 para abrir os olhos dos cegos, para tirar da prisão os presos,
e do cárcere os que jazem em trevas.” (Is 42.6,7)
“4 Verdadeiramente ele tomou sobre si as nossas
enfermidades, e carregou com as nossas dores; e nós o
reputávamos por aflito, ferido de Deus, e oprimido.
5 Mas ele foi ferido por causa das nossas transgressões, e
esmagado por causa das nossas iniquidades; o castigo que nos
traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos
sarados.
6 Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas, cada um
se desviava pelo seu caminho; mas o Senhor fez cair sobre ele
a iniquidade de todos nós.” (Is 53.4-6)
“1 O Espírito do Senhor Deus está sobre mim, porque o Senhor
me ungiu para pregar boas novas aos mansos; enviou-me a
restaurar os contritos de coração, a proclamar liberdade aos
cativos, e a abertura de prisão aos presos;
440
2 a apregoar o ano aceitável do Senhor e o dia da vingança do
nosso Deus; a consolar todos os tristes;
3 a ordenar acerca dos que choram em Sião que se lhes dê uma
grinalda em vez de cinzas, óleo de gozo em vez de pranto,
vestidos de louvor em vez de espírito angustiado; a fim de que
se chamem árvores de justiça, plantação do Senhor, para que
ele seja glorificado.” (Is 61.1-3)
Jesus estava voltando da casa de Jairo, para a sua residência,
provavelmente a casa de Pedro em Cafarnaum, quando dois
cegos lhe seguiam pelo caminho clamando: “Tem compaixão
de nós, Filho de Davi.”
Estes dois homens conheciam a promessa relativa à casa de
Davi, e que seria levantado dela Alguém que tornaria a
levantar a referida casa (tabernáculo), para restaurar-lhe a
antiga glória, com uma glória ainda muito maior e eterna.
Eles puderam reconhecer pelo Espírito que Jesus era o
descendente de Davi, no qual se cumpririam todas as boas
promessas que Deus havia feito no passado através dos
profetas de Israel.
Isto não poderia ter sido entendido por eles, senão somente
por meio da fé. E esta fé que é dom de Deus, lhes havia sido
dada não apenas para que fossem curados da cegueira física,
mas para que alcançassem a salvação de suas almas, pelo
conhecimento de Cristo, na condição de Filho do Deus vivo (Jo
17.3).
Por isso Jesus lhes disse que fossem curados então segundo
esta fé que haviam demonstrado ter nele. Não estava portanto
dizendo que deveriam se esforçar para terem fé para serem
curados, mas que pela fé que lhes foi concedida por Deus para
que cressem, é que seriam curados.
Esta fé havia sido confirmada antes de serem curados, quando
nosso Senhor lhes perguntou se eles criam que Ele poderia
curá-los. Eles responderam afirmativamente. O Senhor não
lhes fez tal pergunta para saber se tinham fé, mas para que
fizessem a confissão, por meio da qual somos salvos. Porque
não basta crer no coração, é necessário confessar com a boca
que Jesus é o Senhor, para que Ele seja glorificado.
Como nós veremos adiante, havia muita dureza e
incredulidade nos habitantes de Cafarnaum, motivo porque
nosso Senhor repreendeu tal cidade, assim como as
441
de Corazin e Betsaida, e possivelmente foi este um dos
motivos de Jesus não ter curado os cegos na rua, mas no
interior da casa, ao mesmo tempo que lhes ordenou que a
ninguém contassem o que lhes havia feito.
Contudo, não se contendo em si de alegria, desobedeceram à
ordem do Senhor, não por rebeldia, mas por imprudência,
vindo a espalhar por toda aquela região o que Ele havia feito.
Quando os que haviam sido cegos se retiravam da casa onde
Jesus estava, trouxeram-lhe um homem mudo e
endemoninhado.
Naquele caso, o que estava produzindo a mudez era o próprio
demônio, que tendo sido expulso por Jesus, o que era mudo
passou a falar. Isto também chegou ao conhecimento das
multidões, apesar deste milagre ter sido feito também no
interior da casa.
E as pessoas se admiraram dizendo que nunca tal se viu em
Israel. No entanto, não creram em Cristo entregando-lhe seus
corações e se arrependendo de seus pecados, apesar dos
sinais que fizera no meio deles.
“Ai de ti, Corazin! ai de ti, Betsaida! porque, se em Tiro e em
Sidom, se tivessem operado os milagres que em vós se
operaram, há muito elas se teriam arrependido em cilício e
em cinza.” (Mt 11.21)
“E tu, Cafarnaum, porventura serás elevada até o céu? até o
inferno descerás; porque, se em Sodoma se tivessem operado
os milagres que em ti se operaram, teria ela permanecido até
hoje.” (Mt 11.23)
Os fariseus foram ainda mais além do que estas pessoas que
ficaram maravilhadas e não se converteram, porque disseram
que era pelo príncipe dos demônios que Jesus expulsava os
demônios.
Jesus Pregando ao Longo do País – Mateus 9.35-38
“35 E percorria Jesus todas as cidades e aldeias, ensinando nas
sinagogas, pregando o evangelho do reino, e curando toda
sorte de doenças e enfermidades.
36 Vendo ele as multidões, compadeceu-se delas, porque
andavam desgarradas e errantes, como ovelhas que não têm
pastor.
442
37 Então disse a seus discípulos: Na verdade, a seara é grande,
mas os trabalhadores são poucos.
38 Rogai, pois, ao Senhor da seara que mande trabalhadores
para a sua seara.” (Mt 9.35-38)
Depois da cura dos dois cegos e do mundo endemoninhado,
em Cafarnaum, Jesus saiu por todas as cidades e aldeias de
Israel, tanto ensinando nas sinagogas, quanto pregando o
evangelho e curando todo tipo de doenças e enfermidades, e
se compadecia das multidões, vendo-as como ovelhas
desgarradas e errantes, por serem ovelhas que não tinham
pastor que as apascentassem.
Os líderes religiosos de Israel sempre haviam explorado o
rebanho do Senhor, em vez de apascentá-lo com a
verdade. Nunca tiveram um sincero cuidado com as ovelhas,
antes as deixaram desgarradas, longe do redil.
Então, veio nosso Senhor, o bom Pastor, em busca destas
ovelhas desgarradas, que não se encontram somente em
Israel, mas em todas as partes do mundo, estas últimas, Ele
disse que as reuniria depois, no mesmo rebanho, pelo
ministério do Espírito Santo, depois que Ele morresse,
ressuscitasse, e subisse aos céus em glória.
O rebanho do Senhor não é massa de manobra nas mãos dos
líderes religiosos, para usarem as ovelhas para atenderem aos
seus próprios interesses e projetos, que apesar de chamarem
de religiosos, na verdade não passam de projetos políticos que
visam à própria glória pessoal, ainda que seja dita em nome de
Cristo, porque isto é muito sutil, e permanece imperceptível
aos olhos espirituais daquele que não anda em sincera
humildade e piedade com nosso Senhor.
Os escribas, os fariseus, os sacerdotes de Israel, não tinham
qualquer cuidado ou interesse, segundo Deus, pelas ovelhas
do seu pasto.
Então, Jesus não confiaria a nenhum deles, na condição em
que se encontravam, o cuidado de apascentarem o seu
rebanho, senão àqueles que estavam sendo chamados pelo
Pai, para tal propósito.
Todavia, o Senhor revelou que esta chamada de líderes
autênticos é realizada por Deus, atendendo ao clamor da
Igreja, para que levante tais obreiros aprovados para a sua
seara, porque por maior que seja a quantidade de tais
443
obreiros, sempre será pequena em relação às necessidades da
grande seara que é o mundo.
Não é fácil o trabalho de cuidar e encaminhar na verdade os
que vão se convertendo ao Senhor. Além de ser um trabalho
difícil, em sua própria natureza, tem também esta dificuldade
da necessidade de se atender não a poucos, mas a muitos,
porque são muitos os eleitos do Senhor em toda a terra.
Por isso Jesus comparou este trabalho ao que é realizado na
colheita num campo, porque é sempre muito maior a
quantidade daquilo que se colhe, do que a dos colhedores.
444
Mateus 10
O Envio dos Apóstolos – Mateus 10.1-4
“1 E, chamando a si os seus doze discípulos, deu-lhes
autoridade sobre os espíritos imundos, para expulsarem, e
para curarem toda sorte de doenças e enfermidades.
2 Ora, os nomes dos doze apóstolos são estes: primeiro, Simão,
chamado Pedro, e André, seu irmão; Tiago, filho de Zebedeu,
e João, seu irmão;
3 Felipe e Bartolomeu; Tomé e Mateus, o publicano; Tiago,
filho de Alfeu, e Tadeu;
4 Simão Cananeu, e Judas Iscariotes, aquele que o traiu.”
(Mateus 10.1-4)
Até este ponto, nós vimos apenas Jesus pregando, ensinando,
curando, ressuscitando, expulsando demônios, fazendo
cessar a fúria das tempestades, e o seus discípulos se
limitando a acompanhá-lo.
Todavia, aumentando as frentes de trabalho e as necessidades
a serem atendidas, nós vimos no capítulo anterior o Senhor
dizendo aos discípulos para orarem para que Deus enviasse
outros trabalhadores para a sua seara.
Nós vemos no relato paralelo de Marcos e Lucas, que Jesus
havia passado toda uma noite em oração, e que ao descer do
monte pela manhã, designou doze dentre os seus discípulos,
aos quais chamou de apóstolos, e temos aqui o registro dos
seus nomes, bem, como, no restante deste capítulo, quais
foram as instruções específicas que o Senhor lhes dera
naquela ocasião.
O Senhor lhes deu, especialmente: “autoridade sobre os
espíritos imundos, para expulsarem, e para curarem toda
sorte de doenças e enfermidades.”
Isto não significa que teriam autoridade por si mesmos,
independentemente do Senhor, mas que Deus operaria com
o seu poder através deles.
É importante frisar esta verdade, num tempo em que grassa a
triste heresia que muitos estão ensinando e praticando,
dizendo que Jesus já nos deu a autoridade necessária, e que
tudo agora está por nossa conta, sem que haja necessidade de
incomodá-lo com nossas orações, pedindo-lhe o que podemos
445
fazer pelo nosso próprio poder, conforme a autoridade que Ele
já nos deu.
Isto não confere de modo algum, com o próprio testemunho
dos apóstolos, como por exemplo o de Pedro, diante dos
israelitas, quando o Senhor curou o coxo que estava no
templo, pela instrumentalidade de Pedro e João:
“Pedro, vendo isto, disse ao povo: Varões israelitas, por que
vos admirais deste homem? Ou, por que fitais os olhos em nós,
como se por nosso próprio poder ou piedade o tivéssemos
feito andar?” (Atos 3.12)
Depois de lhes ter falado sobre Jesus, Pedro lhes disse o
seguinte:
“E pela fé em seu nome fez o seu nome fortalecer a este
homem que vedes e conheceis; sim, a fé, que vem por ele, deu
a este, na presença de todos vós, esta perfeita saúde.” (Atos
3.16)
Os apóstolos tiveram que primeiro aprender de Cristo antes
de poderem ser enviados por Ele às cidades, mas
continuariam em total dependência dele para poderem
realizar o seu ministério, e nós tanto quanto eles,
continuamos na mesma dependência tanto de aprendizado
prévio, quanto do poder da sua graça, para a obra que nos tiver
designado.
Tal como fizera em relação aos primeiros discípulos, o
Senhor primeiro nos chama à conversão e a segui-lo para
aprender dele, e depois, nos chamará para a realização da sua
obra, e a alguns chamará de modo especial, tal como havia
feito com os apóstolos, para o exercício do ministério pastoral.
E estes que são assim chamados de um modo distintivo, serão
conhecidos pela evidência de terem recebido da parte do
Senhor, “autoridade sobre os espíritos imundos, para
expulsarem, e para curarem toda sorte de doenças e
enfermidades”, sendo que na autoridade sobre os espíritos
imundos está incluída também a capacitação sobrenatural
recebida para discernir o ensino de demônios e espíritos
enganadores, para a manutenção da verdade da Palavra entre
os cristãos.
Mateus nomeou os apóstolos em duplas, provavelmente,
conforme os pares que o Senhor designou naquela ocasião,
quando foram enviados por Ele. Então temos: 1) Pedro e
446
André; 2) Tiago e João; 3) Felipe e Bartolomeu; 4) Tomé e
Mateus; 5) Tiago, filho de Alfeu, e Tadeu; 6) Simão Cananeu e
Judas Iscariotes.
Lucas registra que Tadeu tinha também o nome de Simão,
que era chamado de Zelote; e que Simão Cananeu era também
chamado por Judas, filho de Tiago. E tal como Mateus, Lucas
também apresenta os nomes dos apóstolos aos pares.
Instruções para os Apóstolos – Mateus 10.5-15
“5 A estes doze enviou Jesus, e ordenou-lhes, dizendo: Não
ireis aos gentios, nem entrareis em cidade de samaritanos;
6 mas ide antes às ovelhas perdidas da casa de Israel;
7 e indo, pregai, dizendo: É chegado o reino dos céus.
8 Curai os enfermos, ressuscitai os mortos, limpai os leprosos,
expulsai os demônios; de graça recebestes, de graça dai.
9 Não vos provereis de ouro, nem de prata, nem de cobre, em
vossos cintos;
10 nem de alforje para o caminho, nem de duas túnicas, nem
de alparcas, nem de bordão; porque digno é o trabalhador do
seu alimento.
11 Em qualquer cidade ou aldeia em que entrardes, procurai
saber quem nela é digno, e hospedai-vos aí até que vos retireis.
12 E, ao entrardes na casa, saudai-a;
13 se a casa for digna, desça sobre ela a vossa paz; mas, se não
for digna, torne para vós a vossa paz.
14 E, se ninguém vos receber, nem ouvir as vossas palavras,
saindo daquela casa ou daquela cidade, sacudi o pó dos vossos
pés.
15 Em verdade vos digo que, no dia do juízo, haverá menos
rigor para a terra de Sodoma e Gomorra do que para aquela
cidade.” (Mateus 10.5-15)
É preciso entender que enquanto nosso Senhor esteve neste
mundo, cumprindo seu ministério junto à circuncisão
(judeus), o ministério de seus discípulos, especialmente dos
apóstolos, deveria ser uma extensão exata do próprio
ministério do Senhor, e daí a ordem para que não fossem aos
gentios, mas que pregassem e ministrassem exclusivamente
aos judeus.
447
Somente depois que o Senhor fosse glorificado, depois de sua
morte e ressurreição, e que o Espírito Santo fosse derramado,
que eles poderiam ministrar aos gentios, mas ainda assim,
teriam que pregar primeiro o evangelho aos judeus.
Isto nos ajuda a entender a grande quantidade de curas de
enfermos, ressurreição de mortos, purificação de leprosos e
expulsão de demônios, que realizaram, conforme nosso
Senhor lhes havia ordenado.
Importava que se visse que os seguidores de Cristo não
somente estavam debaixo de suas ordens, como também
estavam capacitados por Ele, e somente eles, a realizarem as
mesmas obras que Ele realizava.
Tudo isto se vê claramente nestas instruções que nosso
Senhor lhes deu, e que foram registradas nesta passagem por
Mateus.
Muito aprendemos desta limitação inicial imposta pelo
Senhor aos apóstolos, para que não caiamos na tentação de
realizar um ministério mais extenso do que aquele que o
Senhor tiver designado para nós, ou então fora do momento
apropriado.
Tudo deve seguir as suas ordens nos trabalhos realizados pela
sua Igreja, e quando digo Igreja, não me refiro exclusivamente
à Igreja local, mas a todos os recursos humanos e meios que
Deus, em sua providência, usa, para a sua exclusiva glória.
O alvo do ministério dos apóstolos, ao serem enviados no
início pelo Senhor, era apenas as ovelhas perdidas da casa de
Israel. Então temos aqui uma limitação dentro da limitação,
porque não somente deveriam se limitar aos termos de Israel,
mas concentrar seus objetivos nos eleitos daquela nação.
Paulo dizia que tudo fazia por amor aos eleitos.
Nosso Senhor afirmou que não rogava pelo mundo, mas por
aqueles que lhes foram dados pelo Pai (Jo 17.9).
Evidentemente, isto não exclui o dever de amar a todas as
pessoas, sem fazer qualquer tipo de acepção, mas devemos
estar conscientes que os benefícios permanentes do
evangelho serão eficazes somente naqueles que amarão a
Cristo, e que atendem à sua chamada ao arrependimento e à
conversão.
Por isso deveriam pregar que “É chegado o reino dos céus.”
448
Este reino está destinado àqueles que são descritos nas bemaventuranças, a saber: pobres de espírito; contritos de coração
que choram por causa do pecado; mansos; famintos e
sedentos de justiça; misericordiosos; limpos de coração;
pacificadores e perseguidos por causa da justiça.
Tal como os apóstolos haviam sido salvos pela graça, de igual
modo deveriam tudo fazer de graça e pela graça.
Eles deveriam vencer a tentação de fazerem um comércio
com as coisas relativas à graça do Senhor, e para que
soubessem que a mesma graça que lhes havia salvado,
continuaria provendo todas as necessidades deles, para que
não estivessem ansiosos quanto ao que comer, beber e vestir,
desviando-se assim da missão que deveriam cumprir, para se
dedicarem exclusivamente a atividades seculares, com vistas
à sua subsistência.
Por isso nosso Senhor lhes ordenou o seguinte:
“Não vos provereis de ouro, nem de prata, nem de cobre, em
vossos cintos; nem de alforje para o caminho, nem de duas
túnicas, nem de alparcas, nem de bordão; porque digno é o
trabalhador do seu alimento.”
Eles estavam a serviço exclusivo do evangelho e deveriam
portanto ser supridos somente pelo próprio evangelho, isto é,
viveriam do fruto do trabalho do seu ministério.
Pessoas gratas a Deus seriam levantadas por Ele para
suprirem as necessidades dos apóstolos, mas eles nada
deveriam cobrar pela cura de enfermos, expulsões de
demônios, pela salvação de almas, ou por qualquer outro
benefício decorrente do trabalho deles.
Por isso Jesus ordenou aos apóstolos que não fizessem
qualquer provisão prévia para poderem sair para pregar o
evangelho (v. 9,10).
Eles sairiam no cumprimento de uma missão curta e logo
retornariam a estar sob os cuidados diretos do Senhor, em
pessoa. A graça de Deus lhes proveria todo o necessário
através de pessoas dignas, de maneira que nosso Senhor lhes
ordenou o seguinte:
“11 Em qualquer cidade ou aldeia em que entrardes, procurai
saber quem nela é digno, e hospedai-vos aí até que vos retireis.
12 E, ao entrardes na casa, saudai-a;
449
13 se a casa for digna, desça sobre ela a vossa paz; mas, se não
for digna, torne para vós a vossa paz.
14 E, se ninguém vos receber, nem ouvir as vossas palavras,
saindo daquela casa ou daquela cidade, sacudi o pó dos vossos
pés.
15 Em verdade vos digo que, no dia do juízo, haverá menos
rigor para a terra de Sodoma e Gomorra do que para aquela
cidade.”
Os apóstolos deveriam se informar quanto a quem era digno
nas cidades e aldeias que visitassem. Deus moveria os
corações destas pessoas dignas, para que hospedassem os
apóstolos e provessem suas necessidades até que se
retirassem do meio deles.
Caso eles errassem quanto à dignidade da casa em que se
hospedassem, poderiam reconhecer tal erro porque
perceberiam a falta de paz na casa, apesar de terem saudado
seus habitantes com a paz do Senhor.
Evidentemente, deveriam se retirar e procurar outra
hospedagem, e caso esta fosse negada por alguma pessoa, ou
até mesmo por toda a cidade, não deveriam ficar intimidados
com isto e nem paralisarem a sua missão, porque neste caso
deveriam sair da cidade sacudindo até o pó dos seus pés, em
testemunho contra a rejeição não propriamente deles, mas do
Senhor, porque quem rejeita aos que são enviados por Cristo,
rejeitam ao próprio Cristo. Tal como uma coisa vil como o pó,
também eles seriam espalhados como o vento, no dia do
Grande Juízo de Deus.
E, como juiz de vivos e mortos, o Senhor julgará os tais com
maior rigor, do que aquele que haverá para os habitantes de
Sodoma e Gomorra, no dia do Juízo, porque a estes não foi
enviado por Deus, nenhum mensageiro da parte de Cristo,
com as boas novas de salvação, a saber, o evangelho.
Então, quando rejeitados, devemos deixar a questão do juízo
nas mãos do Senhor, e continuar fazendo o nosso trabalho
onde ele seja bem recebido.
Instruções para os Discípulos – Mateus 10.16-42
“16 Eis que vos envio como ovelhas ao meio de lobos; portanto,
sede prudentes como as serpentes e simples como as pombas.
450
17 Acautelai-vos dos homens; porque eles vos entregarão aos
sinédrios, e vos açoitarão nas suas sinagogas;
18 e por minha causa sereis levados à presença dos
governadores e dos reis, para lhes servir de testemunho, a
eles e aos gentios.
19 Mas, quando vos entregarem, não cuideis de como, ou o
que haveis de falar; porque naquela hora vos será dado o que
haveis de dizer.
20 Porque não sois vós que falais, mas o Espírito de vosso Pai é
que fala em vós.
21 Um irmão entregará à morte a seu irmão, e um pai a seu
filho; e filhos se levantarão contra os pais e os matarão.
22 E sereis odiados de todos por causa do meu nome, mas
aquele que perseverar até o fim, esse será salvo.
23 Quando, porém, vos perseguirem numa cidade, fugi para
outra; porque em verdade vos digo que não acabareis de
percorrer as cidades de Israel antes que venha o Filho do
homem.
24 Não é o discípulo mais do que o seu mestre, nem o servo
mais do que o seu senhor.
25 Basta ao discípulo ser como seu mestre, e ao servo como
seu senhor. Se chamaram Belzebu ao dono da casa, quanto
mais aos seus domésticos?
26 Portanto, não os temais; porque nada há encoberto que não
haja de ser descoberto, nem oculto que não haja de ser
conhecido.
27 O que vos digo às escuras, dizei-o às claras; e o que escutais
ao ouvido, dos eirados pregai-o.
28 E não temais os que matam o corpo, e não podem matar a
alma; temei antes aquele que pode fazer perecer no inferno
tanto a alma como o corpo.
29 Não se vendem dois passarinhos por um asse? e nenhum
deles cairá em terra sem a vontade de vosso Pai.
30 E até mesmo os cabelos da vossa cabeça estão todos
contados.
31 Não temais, pois; mais valeis vós do que muitos
passarinhos.
32 Portanto, todo aquele que me confessar diante dos
homens, também eu o confessarei diante de meu Pai, que está
nos céus.
451
33 Mas qualquer que me negar diante dos homens, também
eu o negarei diante de meu Pai, que está nos céus.
34 Não penseis que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz,
mas espada.
35 Porque eu vim pôr em dissensão o homem contra seu pai,
a filha contra sua mãe, e a nora contra sua sogra;
36 e assim os inimigos do homem serão os da sua própria casa.
37 Quem ama o pai ou a mãe mais do que a mim não é digno
de mim; e quem ama o filho ou a filha mais do que a mim não
é digno de mim.
38 E quem não toma a sua cruz, e não segue após mim, não é
digno de mim.
39 Quem achar a sua vida perdê-la-á, e quem perder a sua vida
por amor de mim acha-la-á.
40 Quem vos recebe, a mim me recebe; e quem me recebe a
mim, recebe aquele que me enviou.
41 Quem recebe um profeta na qualidade de profeta, receberá
a recompensa de profeta; e quem recebe um justo na
qualidade de justo, receberá a recompensa de justo.
42 E aquele que der até mesmo um copo de água fresca a um
destes pequeninos, na qualidade de discípulo, em verdade vos
digo que de modo algum perderá a sua recompensa.” (Mateus
10.16-42)
Depois das instruções para a missão temporária que havia
dado aos doze quando lhes enviou a pregar somente em Israel,
durante seu ministério terreno, nosso Senhor passou a
relacionar os sofrimentos dos seus ministros na realização do
trabalho deles, em todos os períodos da história da Igreja, a
começar pelas perseguições que sofreriam da parte dos
próprios judeus, logo após o derramar do Espírito no dia de
Pentecostes, e que culminariam com as grandes aflições que
os ministros de Cristo terão que suportar próximo da sua
segunda vinda.
Para suportarem tais perseguições e aflições, os discípulos de
Cristo devem aprender a renunciarem às suas próprias vidas,
amando-O acima de tudo e de todos, sabedores que até
mesmo no meio de seus familiares segundo a carne sofrerão
resistências por causa do amor deles a Cristo e à justiça do
evangelho, conforme nosso Senhor nos advertiu nesta
passagem.
452
Isto é necessário para que se possa perseverar na fé e na
doutrina de Cristo.
Há grande recompensa para todos os que forem fiéis a Deus e
contribuírem para o avanço do reino de Cristo na terra, de
modo que até mesmo um copo de água fresca dado a alguém
empenhado na obra do Senhor, terá a sua recompensa.
Está determinado por Deus que a obra do evangelho avance
em meio a perseguições e tribulações. E por serem
semelhantes ao seu Senhor, os cristãos serão odiados pelos
não cristãos, e estão encarregados de pregar o evangelho
como ovelhas no meio de lobos, motivo porque não devem ser
ingênuos, mas prudentes, enquanto mantêm a simplicidade
que é devida a Cristo. A prudência da serpente foi
recomendada porque quando diante de um agressor em
potencial, ela não passa a atacá-lo, mas se retira
prudentemente. De igual modo os cristãos devem evitar
confrontos desnecessários com os que se opõem à pregação
do evangelho.
A vontade do Senhor é a de que os seus servos não devem se
expor desnecessariamente a dificuldades que sofrem
normalmente neste mundo, e por isso lhes recomendou a
prudência das serpentes e a inofensividade das pombas com
vistas à preservação deles.
A inofensividade das pombas é recomendada ao lado da
prudência das serpentes, porque quando estas últimas são
atacadas, também revidam ao ataque, mas os cristãos, tal
como as pombas não devem revidar os ataques que lhes são
desferidos.
Estevão, o primeiro mártir do Cristianismo foi conduzido ao
sinédrio para ser julgado e condenado à morte por
apedrejamento, pelos seus próprios compatriotas, de
maneira que com isto, começou a se dar cumprimento à
profecia do Senhor do verso 17, de que os discípulos seriam
conduzidos aos sinédrios, que era a corte judaica para o
julgamento de questões religiosas relativas aos judeus.
De igual modo, a profecia de que seriam açoitados nas
sinagogas, foi experimentada não apenas por Paulo, como
também por outros, conforme testemunho que encontramos
na Bíblia e na história da Igreja.
453
Paulo se refere em II Cor 11.24, quanto a ter recebido o total de
195 chibatadas dos judeus, provavelmente em suas sinagogas,
em cinco ocasiões diferentes, por causa do evangelho.
O próprio chefe da sinagoga de Corinto, chamado Sóstenes foi
açoitado pelos judeus por ter-se convertido a Cristo (At 18.17).
Paulo foi perseguido intensamente pelos judeus, aos quais
pregou em suas sinagogas espalhadas pelo mundo antigo, e
foi conduzido à presença de governadores e de reis, pelo
desígnio prévio do Senhor para lhes servir de testemunho,
tanto a eles quanto aos gentios (v. 18).
Todavia, em meio a todas as perseguições que sofreram, e que
ainda têm sofrido, os ministros e demais servos do Senhor
têm
sido
capacitados
pelo
Espírito
Santo,
não
necessariamente para livrá-los, mas para darem um
testemunho corajoso relativo a Cristo, tal como havia feito
Estevão no passado.
Para muitos, a chamada para dar testemunho do evangelho
significará colocar em risco até mesmo a segurança relativa à
própria vida. Todavia, o Senhor nos ordena que não temamos
aqueles que podem somente tirar a vida do corpo, e que nada
mais podem fazer além disso. Somente Deus deve ser temido
quanto ao nosso destino eterno porque é Ele que tem o poder
de lançar não somente o corpo como também o espírito, no
inferno.
O cristão está a serviço de Deus e Ele o manterá em vida neste
mundo até que cumpra o ministério que lhe tem designado
para ser cumprido.
Se até de pássaros que são seres dos quais Deus cuida apenas
providencialmente, não como Pai, de quanto mais não
cuidará dos cristãos que são seus filhos (v. 29).
Nenhum pássaro morrerá se tal não for permitido por Deus.
Muitos mais nenhum de seus filhos será morto pelos seus
perseguidores se não houver uma permissão e um propósito
específico de Deus nisto.
De modo que nosso Senhor expressou o cuidado de Deus em
relação a seus filhos com as seguintes palavras:
“30 E até mesmo os cabelos da vossa cabeça estão todos
contados.
31 Não temais, pois; mais valeis vós do que muitos
passarinhos.”
454
Diante de tal cuidado, a missão de todo cristão é confessar
Cristo diante dos homens. Devem ser conhecidos na condição
de seus servos e proclamarem o evangelho às claras, de cima
dos eirados.
São estes que confessam Cristo como Senhor e Salvador
deles, que são os que Ele também confessa como sendo seus
diante do Pai, nos céus.
Por conseguinte, todos os que não conhecem ao Senhor, e que
não O confessam diante dos homens, não podem contar com
tal confissão de Cristo em relação a eles, na presença do Pai.
Tal confissão de Cristo não se trata simplesmente de abrir a
boca e pregar o evangelho a outros, mas antes, e sobretudo ter
o testemunho de uma vida transformada e que seja obediente
à sua vontade, conforme se infere das suas seguintes palavras:
“38 E quem não toma a sua cruz, e não segue após mim, não é
digno de mim.
39 Quem achar a sua vida perdê-la-á, e quem perder a sua vida
por amor de mim acha-la-á.”
Quanto não se pode dizer acerca do significado de se tomar a
cruz, negar-se a si mesmo e seguir o Senhor.
455
Mateus 11
João Envia Mensageiros a Jesus e o Senhor Dá Testemunho de
João – Mateus 11.1-15
“1 Tendo acabado Jesus de dar instruções aos seus doze
discípulos, partiu dali a ensinar e a pregar nas cidades da
região.
2 Ora, quando João no cárcere ouviu falar das obras de Cristo,
mandou pelos seus discípulos perguntar-lhe:
3 És tu aquele que havia de vir, ou havemos de esperar outro?
4 Respondeu-lhes Jesus: Ide contar a João as coisas que ouvis
e vedes:
5 os cegos veem, e os coxos andam; os leprosos são
purificados, e os surdos ouvem; os mortos são ressuscitados,
e aos pobres é anunciado o evangelho.
6 E bem-aventurado é aquele que não se escandalizar de mim.
7 Ao partirem eles, começou Jesus a dizer às multidões a
respeito de João: que saístes a ver no deserto? um caniço
agitado pelo vento?
8 Mas que saístes a ver? um homem trajado de vestes
luxuosas? Eis que aqueles que trajam vestes luxuosas estão
nas casas dos reis.
9 Mas por que saístes? para ver um profeta? Sim, vos digo, e
muito mais do que profeta.
10 Este é aquele de quem está escrito: Eis aí envio eu ante a tua
face o meu mensageiro, que há de preparar adiante de ti o teu
caminho.
11 Em verdade vos digo que, entre os nascidos de mulher, não
surgiu outro maior do que João, o Batista; mas aquele que é o
menor no reino dos céus é maior do que ele.
12 E desde os dias de João, o Batista, até agora, o reino dos céus
é tomado a força, e os violentos o tomam de assalto.
13 Pois todos os profetas e a lei profetizaram até João.
14 E, se quereis dar crédito, é este o Elias que havia de vir.
15 Quem tem ouvidos, ouça.” (Mateus 1.1-15)
Nós vemos no texto paralelo a este, do evangelho de Lucas,
que foram dois mensageiros, dentre os seus discípulos, que
João enviou a Jesus, e que para que tivessem a certeza de que
era Ele mesmo o Messias, de quem se dizia que operava
456
muitos sinais e maravilhas, Lucas registra que naquela
mesma hora, na presença dos mensageiros que João lhe
enviara, nosso Senhor ”curou a muitos de doenças, de
moléstias e de espíritos malignos, e deu vista a muitos cegos”
(Lc 7.21) comprovando-lhes que era o Messias do qual deram
testemunho os profetas do Antigo Testamento, que Ele faria
tais coisas quando se manifestasse a Israel.
Quando foi batizado por João nas águas, Deus Pai e o Espírito
Santo deram uma evidência a João de que Jesus era o Messias,
porque não somente ouviu a voz do Pai que dizia “este é meu
Filho amado em quem me comprazo”, como também viu o
Espírito Santo vindo sobre Ele na forma de uma pomba.
Agora, João estava na solidão do cárcere, aguardando pela sua
execução, e não desejava deixar este mundo sem receber uma
evidência da parte do próprio Cristo, de que Ele era o Messias,
e como não podia fazê-lo pessoalmente, por se encontrar
encarcerado, enviou-lhe dois de seus discípulos para
perguntarem a nosso Senhor se Ele era o Messias, ou se
deveriam continuar aguardando ainda pela sua manifestação
na pessoa de um outro.
O Senhor não recebeu a pergunta de João como uma prova de
incredulidade, mas como manifestação de um desejo em sua
fraqueza humana, para saber se havia de fato cumprido a sua
missão de anunciar o Messias, conforme estava profetizado
acerca dele nas Escrituras, uma vez que estava prestes a
deixar este mundo, e queria ter a plena consciência do dever
cumprido.
Como dissemos antes, o Senhor fez na presença dos
mensageiros de João, aquilo que estava profetizado acerca do
que o Messias faria, dando-lhe assim, Ele próprio uma firme
evidência de ser o Cristo, sem, no entanto, de deixar de fazer
a advertência de que era bem-aventurado todo aquele que não
encontrasse nele motivo de escândalo.
Não era por causa da rejeição que estava sofrendo da parte de
muitos judeus, que se comprova que não era o Messias.
Possivelmente, este deve ter sido um dos motivos de João ter
balançado temporariamente em sua convicção acerca dele,
porque afinal, o Messias fora prometido a todo Israel.
Todavia, a resposta que Jesus deu a João, e a advertência que
Lhe fez, serviria para lembrar-lhe, que ele, o próprio João,
457
mesmo na condição de seu precursor, também estava
sofrendo rejeições, a ponto de se encontrar num cárcere
aguardando o martírio.
Tribulações e perseguições não testemunham contra o fato
de sermos cidadãos do reino dos céus, ao contrário, antes, o
confirmam.
O Senhor não apenas foi paciente com a indagação vacilante
de João, como deu um passo além dando um firme
testemunho dele, como sendo o maior homem nascido de
mulher do Velho Testamento porque foi a Ele que Deus deu a
honra de não apenas falar acerca do Messias como os demais
profetas, mas a de dar testemunho dele em pessoa, dizendo
que era o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, e
pregando muitas outras coisas relativas a Jesus.
João era um homem resoluto e não um caniço agitado pelo
vento. Para dissuadir alguém que tentasse alimentar tal
pensamento acerca de João, de que era inconstante, Jesus se
apressou em fazer a defesa do seu caráter, dizendo que ele não
era assim.
João não oscilava em seus princípios e convicções acerca da
vontade de Deus, especialmente a relativa à sua chamada, ao
contrário, era firme e consistente a ponto de protestar contra
o pecado do próprio rei Herodes, que dera causa à sua prisão
e morte.
Ele era forte em espírito, tal como Elias, apesar de homens
fortes como eles, estarem sujeitos a momentos de depressão
como quaisquer outros, quando a graça de Deus lhes deixa
entregues a si mesmos, para poderem perceber quão fraca é a
natureza terrena, e que por isso, necessita ser mortificada.
Todavia, João estava morto para este mundo, e o mundo para
ele, tal como estivera para o apóstolo Paulo, porque não foi
achado em castelos e em glórias e honras mundanas, mas
modestamente trajado em peles de camelo, pregando no
deserto e se alimentando de mel e gafanhotos.
Ele não era um asceta, mas alguém que viveu como nazireu,
inteiramente consagrado a Deus, cheio do Espírito, desde o
ventre de sua mãe, para que pudesse ter a honra de ser o
precursor do Messias, honra na qual, deve-se dizer, estava
embutida a de ser mártir, ainda jovem, porque, no desígnio de
Deus, encontrava-se determinado a respeito dele, o modo
458
pelo qual sairia deste mundo, sendo decapitado, quando
contava apenas cerca 30 anos de idade.
Esta tem sido a parte e a honra de muitos servos de Deus que
têm sido também chamados por Ele para serem grandemente
honrados.
Veja o caso de Estevão, de Tiago, de Paulo, Pedro, e de tantos
outros que deixaram este mundo pelo martírio.
Foram grandemente honrados, mas estava designado para
eles também uma honra que poucos estão dispostos a desejar,
que é a de serem mártires de nosso Senhor Jesus Cristo, por
amor a Ele e ao evangelho.
João era grande aos olhos de Deus apesar das condições de
extrema humildade em que viveu neste mundo, conforme o
desígnio divino para ele, tal como havia sido antes para o
profeta Elias.
Para Deus João não era apenas um profeta, era mais do que um
profeta, porque não falaria como os demais do Cristo que
ainda viria, mas teria a honra de falar dele estando com Ele em
pessoa, e também Lhe prepararia o caminho, conduzindo
muitos ao arrependimento (v. 10).
João era grande, mas viriam muitos após ele, na nova aliança,
de uma nova dispensação, que Jesus inauguraria em seu
sangue, que seriam ainda maiores do que João, até mesmo o
menor deles, porque João anunciou um reino que viria, e estes
estariam participando do reino que João pregou.
Lembremos que João não realizou qualquer milagre, porque
isto não lhe fora concedido por Deus, como tem concedido a
muitos na Igreja.
O reino do Messias se manifestaria na Igreja, pelo derramar
do Espírito Santo, e os cristãos receberiam dons e uma glória
ainda maiores do que a que fora concedida a João, em seu
ministério neste mundo.
João era portanto o marco divisório entre duas alianças e
dispensações. Uma antiga e uma nova. O período do Antigo
Testamento estava sendo fechado com ele, porque desde
então Deus não levantaria nenhum outro profeta na Antiga
Aliança.
A morte de João representava portanto o fim do Velho
Testamento, e por isso Jesus disse acerca dele que: “todos os
profetas e a lei profetizaram até João.”
459
Ele era aquele que viria no espírito de Elias, conforme havia
sido profetizado por Malaquias, antes que o Messias viesse.
Deus Pai vinculou o ministério de João ao de seu Filho
unigênito, para sobretudo, marcar esta transição do Velho
para o Novo Testamento.
Então são os que se esforçam pela verdade, na defesa da
justiça evangélica, estando arrependidos, tal como João havia
ensinado, e que seguem o Cordeiro de Deus que tira o pecado
do mundo, que se apoderam do reino dos céus.
Era a isto que nosso Senhor se referiu quando disse as
seguintes palavras:
“E desde os dias de João, o Batista, até agora, o reino dos céus
é tomado a força, e os violentos o tomam de assalto.”
Não são apenas os que desejam entrar no reino dos céus que
entram efetivamente, mas o que se esforçam e lutam para
isto, principalmente contra as cobiças da carne e contra as
forças espirituais da maldade.
“23 E alguém lhe perguntou: Senhor, são poucos os que se
salvam? Ao que ele lhes respondeu:
24 Porfiai por entrar pela porta estreita; porque eu vos digo
que muitos procurarão entrar, e não poderão.” (Lc 13.23,24)
Jesus Repreende os Judeus Incrédulos – Mateus 11.16-24
“16 Mas, a quem compararei esta geração? É semelhante aos
meninos que, sentados nas praças, clamam aos seus
companheiros:
17 Tocamo-vos flauta, e não dançastes; cantamos
lamentações, e não pranteastes.
18 Porquanto veio João, não comendo nem bebendo, e dizem:
Tem demônio.
19 Veio o Filho do homem, comendo e bebendo, e dizem: Eis
aí um comilão e bebedor de vinho, amigo de publicanos e
pecadores. Entretanto a sabedoria é justificada pelos seus
filhos.
20 Então começou ele a lançar em rosto às cidades onde se
operara a maior parte dos seus milagres, o não se haverem
arrependido, dizendo:
21 Ai de ti, Corazin! ai de ti, Betsaida! porque, se em Tiro e em
Sidom, se tivessem operado os milagres que em vós se
460
operaram, há muito elas se teriam arrependido em cilício e
em cinza.
22 Contudo, eu vos digo que para Tiro e Sidom haverá menos
rigor, no dia do juízo, do que para vós.
23 E tu, Cafarnaum, porventura serás elevada até o céu? até o
inferno descerás; porque, se em Sodoma se tivessem operado
os milagres que em ti se operaram, teria ela permanecido até
hoje.
24 Contudo, eu vos digo que no dia do juízo haverá menos
rigor para a terra de Sodoma do que para ti.” (Mateus 11.16-24)
Jesus não repreendeu João por qualquer incredulidade, mas
declarou o que era a verdadeira incredulidade, a saber: deixar
de dar crédito à pregação de João, quanto à necessidade do
arrependimento, bem como deixar de aceitar as boas novas
que Ele, Jesus estava pregando, que além do arrependimento
pregado por João, oferecia a graça de um viver na alegria do
Espírito Santo.
Então eram estes que não choravam por seus pecados, e que
não se alegravam no Espírito, que eram os verdadeiros
incrédulos.
João não comia certos alimentos, especialmente não se
alimentava de qualquer produto da videira, porque isto era
vedado pela lei aos nazireus, e João foi nazireu por toda a sua
vida, tal como Sansão.
Acerca de João é dado o seguinte testemunho no evangelho
de Lucas:
“porque ele será grande diante do Senhor; não beberá vinho,
nem bebida forte; e será cheio do Espírito Santo já desde o
ventre de sua mãe;” (Lc 1.5)
Todavia Jesus não era nazireu, porque veio purificar tudo o
que a Lei considerava impuro, inclusive a própria união de
judeus e gentios (At 10.9-15).
Mas aquela geração rejeitou ambos os modos que Deus usou
para trazê-los das trevas para a luz.
Embora os meio da graça sejam desprezados e abusados por
muitos, contudo há um remanescente fiel que será
melhorado pela graça de Deus, que está sendo oferecida a
eles, para o bem de suas próprias almas.
Mas a “sabedoria” será justificada pelos seus filhos.
461
A sabedoria deste mundo que impede que se veja a verdadeira
Sabedoria: Cristo (I Cor 1.30), que é possuída somente pelos
que são filhos de Deus.
A simples sabedoria religiosa que os judeus possuíam não
pôde lhes livrar da ignorância espiritual, porque a visão que
tinham de santidade era algo externo, e por isso rejeitaram a
Cristo, porque consideravam que não fosse verdadeiramente
santo, porque andava na companhia de publicanos e
pecadores e comia com eles.
Eles tropeçaram, portanto, na sabedoria religiosa que tinham,
e que não lhes permitia enxergarem os verdadeiros desígnios
de Deus, especialmente aqueles que foram revelados e
manifestados em Cristo.
Eles também rejeitaram a João, não porque não fosse santo,
segundo o padrão de julgamento externo deles, mas porque
Ele se rebaixava e pregava a Cristo.
Pregava a necessidade de arrependimento e o batismo do
Espírito Santo. E isto eles não queriam.
Eles queriam apenas uma religiosidade externa, mas nada
que lhes exigisse uma religião do coração, que se baseasse na
transformação total e radical de sua natureza terrena.
Deus deveria ser um anexo em suas vidas, mas não a própria
vida e razão de viver deles, tal como pregavam João e nosso
Senhor.
Então aquela sabedoria religiosa os justificava para si mesmos
em suas consciências, mas não diante de Deus, porque a
verdadeira sabedoria exige uma justiça que não é própria, mas
que é atribuída e implantada pela graça de Cristo, e que
excede em muito a dos escribas e fariseus, que consistia nesta
religiosidade externa, baseada em cumprimento de ritos e
cerimoniais.
Quantos, que sendo seguidores daqueles antigos judeus,
deixam de ter um encontro pessoal com Cristo, ou então de
progredirem
num
verdadeiro
conhecimento
dele,
exatamente por causa da barreira que é imposta pela
sabedoria religiosa que eles julgam possuir, e confundem a
vontade e revelação da pessoa de Deus com a mesma, por não
terem coragem de renunciar às suas convicções religiosas,
para abraçarem e viverem a verdade conforme ela se
encontra revelada de fato nas Escrituras.
462
Esta sabedoria religiosa falsa e que cria orgulho espiritual não
será apenas repreendida por Cristo, mas trará sérios
julgamentos sobre aqueles que não abrem mão dela para uma
verdadeira conversão e viver cristão.
Isto se vê claramente nas palavras de juízo que nosso Senhor
começou a lançar sobre as cidades de Corazin, Betsaida e
Cafarnaum, onde havia operado a maior parte dos seus
milagres, e que no entanto não haviam se arrependido.
Estas cidades eram de Israel, e no entanto o Senhor declarou
que no dia do juízo haveria menor rigor para as cidades dos
gentios de Tiro e de Sidom, do que para os habitantes
incrédulos destas cidades de Israel.
O fato de serem descendentes de Abraão segundo a carne, de
nada lhes serviria, quanto a ser atenuado o rigor do juízo que
sobreviria sobre eles.
Aquela vaidade religiosa de serem considerados aceitos e
aprovados por Deus, pelo simples fato de fazerem parte do
povo que foi formado a partir dos patriarcas, estava sendo
uma grande barreira para eles, e lhes traria grande prejuízo,
em vez das bênçãos e benefícios que julgavam que Deus
estava na obrigação de lhes conceder, por causa de fazerem
parte da nação escolhida por Ele para revelar o Messias ao
mundo.
Os judeus não se converteram diante dos milagres operados
por nosso Senhor, e que evidenciavam ser Ele o Messias. No
entanto, muitos gentios viriam a se converter diante destes
milagres quando fossem operados por Ele através da Igreja.
E este seria o caso das próprias cidades de Tiro e Sidom, da
Fenícia, que Ele havia citado.
Cafarnaum, sendo não somente uma cidade israelita, mas o
local escolhido pelo Senhor para residir, não teria nenhum
privilégio no dia do juízo, em razão disso, ao contrário, isto
serviria de agravante, porque disse que até mesmo se em
Sodoma e Gomorra, Ele tivesse operado os milagres que havia
feito em Cafarnaum, aquelas cidades não teriam sido
destruídas pelo fogo, porque não sofreria tão grande rejeição
da parte deles, como a que havia sofrido.
463
O Convite de Cristo às Almas Cansadas – Mateus 11.25-30
“25 Naquele tempo falou Jesus, dizendo: Graças te dou, ó Pai,
Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas coisas aos
sábios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos.
26 Sim, ó Pai, porque assim foi do teu agrado.
27 Todas as coisas me foram entregues por meu Pai; e
ninguém conhece plenamente o Filho, senão o Pai; e ninguém
conhece plenamente o Pai, senão o Filho, e aquele a quem o
Filho o quiser revelar.
28 Vinde a mim, todos os que estai cansados e oprimidos, e eu
vos aliviarei.
29 Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou
manso e humilde de coração; e achareis descanso para as
vossas almas.
30 Porque o meu jugo é suave, e o meu fardo e leve.” (Mateus
11.25-30)
Nosso Senhor havia dito anteriormente no verso 15, que
somente aqueles que tinham ouvidos espirituais poderiam
entender as realidades celestiais e divinas sobre as quais Ele
estava discorrendo.
E aqui Ele revela quem eram estes que poderiam entender tais
coisas espirituais, a saber, os pequeninos, e não propriamente
os sábios e entendidos segundo o mundo.
É somente os que são pequenos a seus próprios olhos, sendo
pobres de espírito, reconhecendo a sua completa
dependência de Deus, para serem salvos e enriquecidos com
a sua graça, que podem conhecer o Pai, pela revelação que
lhes é feita através do Filho, porque aprouve ao Pai honrar,
somente àqueles que honrarem o seu Filho Unigênito, Jesus
Cristo.
Enquanto isto, os que se julgam sábios e entendidos, sem esta
revelação do Senhor, ficam sem a referida revelação, porque
o próprio Deus ocultará as riquezas espirituais da sua graça,
aos tais.
Nosso Senhor deu graças ao Pai por isto, porque por tal
critério o Pai lança fora do seu reino todos aqueles que se
conduzem pela soberba, pelo orgulho, pela arrogância, pela
vaidade, e por tudo o mais que impede uma verdadeira
unidade espiritual em amor, a qual somente pode ser
464
promovida por espíritos mansos, submissos, humildes e que
se honram mutuamente, e que reconhecem a soberania de
Deus sobre tudo e todos, consagrando-se a Ele num viver
obediente à sua vontade.
Por isso o convite da graça que é feito por Jesus se dirige
somente aos que se sentem cansados e oprimidos, e que estão
dispostos a se submeterem ao seu jugo, e a serem
verdadeiramente discípulos que querem aprender dele e
nele, a serem mansos e humildes de coração, tal como é o seu
Mestre. E assim fazendo serão aliviados pelo Senhor e acharão
descanso para as suas almas, porque é o próprio Jesus o
descanso espiritual deles.
Este jugo e fardo da obediência em amor que Jesus impõe aos
seus discípulos são respectivamente, suave e leve, porque os
seus mandamentos não são penosos, uma vez que somos
assistidos pela sua graça e pelo poder do seu Espírito a
cumprir tudo quanto nos tem ordenado; de modo que fazer e
experimentar a sua vontade não é um fardo, mas um deleite e
prazer.
Mas além deste caráter geral para a conversão, este convite
gracioso de nosso Senhor se aplica a todas as situações da
nossa vida neste mundo, especialmente em todas as nossas
tribulações e aflições, porque é somente indo a Ele em espírito
que podemos achar descanso e paz para as nossas almas
atribuladas.
A mansidão e humildade de seu coração divino jamais
rechaçará a qualquer que se dirigir a Ele em busca de consolo
com um coração contrito.
465
Mateus 12
Jesus Defende os seus Discípulos – Mateus 12.1-13
“1 Naquele tempo passou Jesus pelas searas num dia de
sábado; e os seus discípulos, sentindo fome, começaram a
colher espigas, e a comer.
2 Os fariseus, vendo isso, disseram-lhe: Eis que os teus
discípulos estão fazendo o que não é lícito fazer no sábado.
3 Ele, porém, lhes disse: Acaso não lestes o que fez Davi,
quando teve fome, ele e seus companheiros?
4 Como entrou na casa de Deus, e como eles comeram os pães
da proposição, que não lhe era lícito comer, nem a seus
companheiros, mas somente aos sacerdotes?
5 Ou não lestes na lei que, aos sábados, os sacerdotes no
templo violam o sábado, e ficam sem culpa?
6 Digo-vos, porém, que aqui está o que é maior do que o
templo.
7 Mas, se vós soubésseis o que significa: Misericórdia quero, e
não sacrifícios, não condenaríeis os inocentes.
8 Porque o Filho do homem até do sábado é o Senhor.
9 Partindo dali, entrou Jesus na sinagoga deles.
10 E eis que estava ali um homem que tinha uma das mãos
atrofiadas; e eles, para poderem acusar a Jesus, o
interrogaram, dizendo: É lícito curar nos sábados?
11 E ele lhes disse: Qual dentre vós será o homem que, tendo
uma só ovelha, se num sábado ela cair numa cova, não há de
lançar mão dela, e tirá-la?
12 Ora, quanto mais vale um homem do que uma ovelha!
Portanto, é lícito fazer bem nos sábados.
13 Então disse àquele homem: estende a tua mão. E ele a
estendeu, e lhe foi restituída sã como a outra.” (Mateus 12.1-13)
Uma leitura apressada desta passagem pode conduzir à
interpretação errônea de que nosso Senhor descumpria o
sábado sagrado da Lei de Moisés, ou então que estava
ensinando a transgredir o mandamento relativo ao descanso
do sétimo dia da semana.
Todavia, como poderia o próprio autor deste mandamento
ordenar o seu descumprimento ou desonrá-lo?
466
Como lemos no Sermão do Monte, nosso Senhor afirmou que
não veio revogar a Lei de Moisés, mas cumpri-la.
Nós vimos no comentário relativo ao Sermão do Monte, o
quanto os escribas e fariseus haviam adulterado a Lei de
Moisés, distorcendo os mandamentos da Lei, lhes
acrescentando preceitos de homens, que desfiguravam os
preceitos divinos relativos a estes mandamentos.
E não havia mandamento que eles mais tivessem desfigurado
do que o relativo ao dia de descanso, ou sábado, conforme
prescrito na Lei de Moisés, para vigorar no período do Velho
Testamento.
Eles levaram a ordenança de os judeus não se ocuparem com
os seus negócios e interesses comuns diários, neste dia de
descanso, separado especialmente para se cultuar a Deus
como Criador, a extremos que fugiam completamente do
espírito da Lei, que era a de se cultuar a Deus, e não
propriamente a cessação de qualquer tipo de atividade
considerada não religiosa no referido dia, uma vez que é
possível fazer-se isto e no entanto, não se tributar qualquer
culto ou honra ao Senhor.
Os judeus haviam feito do sábado um fim em si mesmo em sua
devoção religiosa.
Eles olhavam para o sábado e não para Deus.
Cultuavam o sábado e não o Senhor.
Com isso, estabeleceram proibições que nunca passaram pela
mente de Deus, por exemplo, até mesmo proibindo coisas
mínimas num dia de sábado, como o simples ato de dar um
nó, porque segundo eles isto implicava em ação, e ação
significa trabalho, e portanto, fazê-lo no dia de sábado
configuraria uma violação da Lei.
Foi este espírito errado que Jesus combateu, na expectativa de
que o mandamento relativo ao sábado fosse interpretado da
maneira correta.
Não havia portanto, qualquer pecado em se colher espigas
para se matar a fome, no dia de descanso.
Davi e seus homens, quando fugiam de Saul, e estando
exauridos de fome, não tiveram nenhum outro tipo de
alimento para mantê-los em vida senão os pães do
tabernáculo, que eram trocados no dia de sábado, e dos quais
467
não poderiam comer segundo a Lei, porque isto era reservado
somente aos sacerdotes.
No entanto, ficaram sem culpa diante de Deus, porque não o
fizeram por motivo de sacrilégio, mas pelo consentimento do
próprio Deus, que abriu uma exceção naquela situação para
que continuassem vivos.
Os próprios sacerdotes tinham que realizar muitas atividades
no tabernáculo, e depois no templo, especialmente quanto à
oferta dos dois cordeiros, que deveriam ser oferecidos à
manhã e à tarde deste dia, e no entanto, apesar de ser aquele
o trabalho deles, não poderiam cessá-lo porque afinal era o
trabalho do próprio Deus, na antiga dispensação, e assim,
ficavam sem culpa perante Ele.
Então, a questão de não trabalhar em dia de sábado não era
para ser tomada literal e legalmente, para impedir toda e
qualquer forma de atividade e trabalho, mas impedir que se
deixasse de celebrar ao Senhor como Criador neste dia, e
também para garantir a manutenção do culto que Lhe era
devido por Israel, de maneira que não caísse no esquecimento
a obrigação que tinham para com Ele.
Todavia, em vez de garantirem o objetivo de Deus com a lei do
sábado, os escribas e fariseus levaram o povo a cultuar o
próprio sábado, e não ao Senhor.
Jesus, no entanto, não era apenas maior do que o dia de
descanso, mas do que o próprio templo, onde eram realizados
os serviços religiosos previstos para o sábado.
A pretexto de guardarem o sábado, os líderes religiosos de
Israel, para manterem os ritos e cerimonial que eles próprios
haviam criado, acabavam condenando pessoas inocentes, que
não tinham descumprido o mandamento relativo a tal dia,
mas que eram condenáveis segundo o parecer deles, baseado
na interpretação incorreta que haviam feito da lei, e
principalmente por causa da sua falta de misericórdia para
com o próximo, porque preferiam ver alguém morrer de fome
do que dar-lhe comida em dia de sábado.
Eles comprovaram esta falta de misericórdia quando
condenaram os discípulos de Jesus por estarem colhendo
espigas por estarem muito famintos.
Jesus como Senhor de tudo e de todos, é também o Senhor do
sábado, e como dissemos antes, foi Ele, que juntamente com
468
o Pai e o Espírito Santo, deram a Lei do sábado a Israel, através
de Moisés.
Portanto, se houvesse violação da Lei por parte dos discípulos
por colherem espigas e comê-las, Ele seria o primeiro a proibilos de fazê-lo.
Como os escribas e fariseus pretendiam pegar Jesus em
alguma falta para terem motivo de acusá-lo e condená-lo à
morte, passaram a tentar enquadrá-lo como culpado por
transgredir o sábado, porque perceberam que não teriam
muita dificuldade para fazê-lo uma vez que, como dissemos
antes, haviam adulterado esta lei a tal ponto, que seria
impossível que não achassem oportunidade em algum
momento para acusar Jesus de estar violando o mandamento
relativo ao dia do descanso.
Realmente, como vemos no evangelho de João, o que
precipitou a grande perseguição que culminaria com a morte
de Jesus na cruz, foi o fato de ter curado um enfermo junto ao
tanque de Betesda, que significa no hebraico, casa da
misericórdia.
Nesta passagem dos versos 9 a 13 do evangelho de Mateus nós
vemos esta intenção maligna dos judeus em apanharem Jesus
com a falsa acusação de estar violando o sábado, quando
curou na sinagoga deles um homem que tinha uma das mãos
atrofiadas.
Segundo eles, fazer isto seria uma violação da lei, e tentaram
ao Senhor perguntando-lhe se era lícito curar nos sábados.
Eles não estavam esperando uma resposta esclarecedora,
mas levarem Jesus a afirmar que era lícito, e assim terem
motivo de acusá-lo, porque segundo eles não era lícito curar
alguém em dia de sábado.
Nosso Senhor lhes mostrou o quanto eram cegos e hipócritas,
porque lhes mostrou que caso tivessem uma só ovelha, e se
ela caísse numa cova em dia de sábado, eles logo se
apressariam em tirá-la do buraco.
Eles teriam misericórdia de si mesmos, para não terem
prejuízo com a perda da ovelha, e não propriamente com a
ovelha, mas nosso Senhor considerou o caso como sendo, em
todo o caso uma ação movida por misericórdia, em relação a
um animal, e por que então não se deveria demonstrar
misericórdia para com um homem, que vale muito mais do
469
que uma ovelha? A conclusão lógica então é a de que não
havia nenhuma violação da lei em curar um homem no dia de
sábado.
A Malícia dos Fariseus – Mateus 12.14-21
“14 Os fariseus, porém, saindo dali, tomaram conselho contra
ele, para o matarem.
15 Jesus, percebendo isso, retirou-se dali. Acompanharam-no
muitos; e ele curou a todos,
16 e advertiu-lhes que não o dessem a conhecer;
17 para que se cumprisse o que foi dito pelo profeta Isaías:
18 Eis aqui o meu servo que escolhi, o meu amado em quem a
minha alma se compraz; porei sobre ele o meu espírito, e ele
anunciará aos gentios o juízo.
19 Não contenderá, nem clamará, nem se ouvirá pelas ruas a
sua voz.
20 Não esmagará a cana quebrada, e não apagará o pavio que
fumega, até que faça triunfar o juízo;
21 e no seu nome os gentios esperarão.” (Mateus 12.14-21)
A prova de que Jesus não estava respondendo aos fariseus na
expectativa de que chegassem ao conhecimento da verdade,
mas simplesmente afirmando a verdade para a defesa dos
inocentes que eles estavam atacando, encontra-se logo no
início desta passagem, nos versos 14 e 15, em que se afirma
que os fariseus logo depois de terem ouvido o que o Senhor
lhes dissera e fizera, curando o homem da mão atrofiada,
tomaram conselho entre si contra Jesus, com o intuito de
matá-lo.
É dito também que nosso Senhor percebeu isso, e que por este
motivo se retirou daquela localidade, sendo acompanhado
por muitos enfermos, e Ele curou a todos eles, demonstrando
que não estava em nada intimidado pelas ameaças dos
fariseus.
Todavia, como não era chegada ainda a sua hora de se
entregar voluntariamente para morrer na cruz, para não
precipitar maiores perseguições desnecessárias, advertiu aos
que haviam sido curados que não espalhassem a notícia do
que lhes havia feito.
470
Com isto, deu-se cumprimento ao que fora profetizado acerca
dele pelo profeta Isaías:
“1 Eis aqui o meu servo que escolhi, o meu amado em quem a
minha alma se compraz; porei sobre ele o meu espírito, e ele
anunciará aos gentios o juízo.
2 Não contenderá, nem clamará, nem se ouvirá pelas ruas a
sua voz.
3 Não esmagará a cana quebrada, e não apagará o pavio que
fumega, até que faça triunfar o juízo;
4 e no seu nome os gentios esperarão.” (Is 42.1-4)
A fama de Cristo se espalharia não somente por Israel, mas
por todas as nações da terra, e por todas as gerações, mas isto
ocorreria sem que Ele fizesse uma propaganda extensiva da
sua própria pessoa e atos.
Ele não faria exibições públicas com o fim de ser visto e
aplaudido pelos homens.
Ao contrário, mesmo muitos daqueles que fossem
beneficiados por Ele, sendo curados de enfermidades físicas,
não se arrependeriam de seus pecados e também não Lhe
dariam a devida honra e louvor, antes o odiariam por lhes
dizer a verdade, de modo que é dito que:
“... como raiz que sai duma terra seca; não tinha formosura
nem beleza; e quando olhávamos para ele, nenhuma beleza
víamos, para que o desejássemos.” (Is 53.2)
Este foi o modo como foi visto em seu ministério terreno,
porque sempre denunciou o pecado, e não omitiu a verdade.
No entanto, é dito acerca dele nas Escrituras:
“Naquele dia o Senhor dos exércitos será por coroa de glória e
diadema de formosura para o restante de seu povo;” (Is 28.5)
“Os teus olhos verão o rei na sua formosura, e verão a terra
que se estende em amplidão.” (Is 33.17)
Ninguém pode ser comparado ao Senhor quanto à sua
formosura. Especialmente a formosura do seu espírito e
caráter não pode ser medida.
Ele não quer aplauso sem conversão.
Ele não busca o reconhecimento dos homens sem que
reconheçam a verdade.
Por isso o Pai o elegeu para ser o capitão da nossa salvação, por
se comprazer nele por toda a sua perfeição; e assim O ungiria
com o Espírito Santo quando se esvaziasse de sua divindade,
471
para assumir a forma de servo e ser achado na forma de
homem, para anunciar aos gentios o juízo de Deus.
Os gentios que andavam sem a revelação de Deus neste
mundo, teriam nele a esperança de serem alcançados e
reunidos à família de Deus, por meio dele (v. 21).
Isto seria feito a partir da sua manifestação a Israel, de forma
quase velada, anunciando a verdade e curando toda sorte de
enfermidades entre o povo, mas sem fazer alarido chamando
a atenção para a sua própria pessoa.
Seu alvo não era agradar o mundo, conquistar o mundo, mas
alcançar as ovelhas perdidas.
Por isso não esmagaria a cana quebrada e nem apagaria o
pavio fumegante, ou seja os pobres e miseráveis pecadores,
destituídos de toda e qualquer justiça diante de Deus, antes
faria nestes que são pobres de espírito, e que reconhecem a
sua real condição diante de Deus, o trabalho de restauração de
suas vidas, levantando os quebrantados de coração, e
acendendo a chama divina, nos corações desprovidos do fogo
e da luz do Espírito Santo.
E isto será feito enquanto durar todo o período da dispensação
da graça, até que venha para julgar os vivos e mortos.
Nesta nova dispensação da graça, Deus não está
estabelecendo um juízo final sobre os pecadores, mas dandolhes a oportunidade de serem salvos por seu Filho unigênito.
O Pecado contra o Espírito Santo – Mateus 12.22-32
“22 Trouxeram-lhe então um endemoninhado cego e mudo; e
ele o curou, de modo que o mudo falava e via.
23 E toda a multidão, maravilhada, dizia: É este, porventura, o
Filho de Davi?
24 Mas os fariseus, ouvindo isto, disseram: Este não expulsa
os demônios senão por Belzebu, príncipe dos demônios.
25 Jesus, porém, conhecendo-lhes os pensamentos, disselhes: Todo reino dividido contra si mesmo é devastado; e toda
cidade, ou casa, dividida contra si mesma não subsistirá.
26 Ora, se Satanás expulsa a Satanás, está dividido contra si
mesmo; como subsistirá, pois, o seus reino?
472
27 E, se eu expulso os demônios por Belzebu, por quem os
expulsam os vossos filhos? Por isso, eles mesmos serão os
vossos juízes.
28 Mas, se é pelo Espírito de Deus que eu expulso os
demônios, logo é chegado a vós o reino de Deus.
29 Ou, como pode alguém entrar na casa do valente, e roubarlhe os bens, se primeiro não amarrar o valente? e então lhe
saquear a casa.
30 Quem não é comigo é contra mim; e quem comigo não
ajunta, espalha.
31 Portanto vos digo: Todo pecado e blasfêmia se perdoará aos
homens; mas a blasfêmia contra o Espírito não será perdoada.
32 Se alguém disser alguma palavra contra o Filho do homem,
isso lhe será perdoado; mas se alguém falar contra o Espírito
Santo, não lhe será perdoado, nem neste mundo, nem no
vindouro.” (Mateus 12.22-32)
Nós vimos anteriormente, nos versos 32 a 34 do nono capítulo,
que Jesus havia curado um homem mudo endemoninhado,
em Cafarnaum, que Lhe foi trazido, depois de ter curado dois
cegos na casa em que Ele se encontrava.
Nesta mesma passagem do nono capítulo também é dito que
as multidões se admiraram dizendo que nunca tal se viu em
Israel, e que também os fariseus diziam que era pelo príncipe
dos demônios que Jesus expulsava os espíritos malignos.
Pode parecer que esta passagem deste décimo segundo
capítulo seja apenas uma explicação e extensão da narrativa
do nono capítulo.
Todavia, aqui não é dito que as multidões se admiraram
dizendo que nunca tal se viu em Israel, mas que indagaram
aos fariseus se Jesus não era o Filho de Davi, a saber, o renovo
que sairia do tronco de Jessé, pai de Davi, conforme
profetizado nas Escrituras, e também por muitas outras
profecias que associam o Messias à casa de Davi, porque viria,
da sua descendência, segundo a carne.
E também é dito que os fariseus disseram que era pelo
príncipe dos demônios que Jesus os expulsava, sendo que aqui
ele é nomeado como sendo Belzebu.
Todavia, não importa se foi um novo caso de cura, ou se uma
extensão e explicação da narrativa do nono capítulo, porque o
propósito do evangelista foi o de ensinar sobre o pecado
473
contra o Espírito Santo, e que Jesus nada tem a ver com o reino
do diabo, ao contrário, está em total oposição a tal reino, e se
manifestou para destruí-lo.
Satanás conquistou ainda que em grande parte, valendo-se de
enganos, os corações de muitos.
Não importa, o fato é que ele é o regente do mundo de trevas.
Ele é o príncipe do mundo caído no pecado, e governa os seus
súditos para que façam o que é da sua vontade.
O reino dele é de ruína e de morte.
Ele traz até mesmo os eleitos, por algum tempo, debaixo do
seu domínio e poder, até que sejam resgatados por Cristo,
para serem transportados para o reino da sua luz (Atos 26.1518).
Este reino de Satanás está sendo subjugado pelo Senhor
através da Igreja, e virá o dia em que Ele lançará pessoalmente
este reino de morte no lago de fogo e enxofre, numa
condenação por toda a eternidade.
Foi também para este propósito que Jesus se manifestou.
Ele não é somente o Salvador, mas também o Juiz de vivos e de
mortos.
Ele tem toda a autoridade tanto nos céus quanto na terra.
Todavia, esta função de Juiz está velada e aguarda pelo tempo
da sua manifestação, depois que for encerrada a dispensação
da graça, pela sua segunda vinda.
Portanto, ainda hoje, como nos dias do seu ministério terreno,
muitos estão sujeitos a caírem na tentação e no erro dos
fariseus, cometendo o pecado imperdoável de blasfemarem
contra o Espírito Santo, atribuindo as operações poderosas de
Cristo contra o reino das trevas, como sendo oriundas dos
principados e potestades demoníacos.
Muitos resistem à graça de Cristo nos cristãos, pelo simples
fato de serem cristãos, e os desprezam, e falam mal deles e os
perseguem, e chamam de trevas o que veem neles que é luz.
Fazem-no por motivo de inveja, ou para se justificarem na
prática de suas más obras, condenando as obras que sabem
que são de Deus, nas vidas de seus filhos.
Ora, estes são sérios candidatos a cometerem o pecado
imperdoável da blasfêmia contra o Espírito, ficando alijados
da possibilidade de terem seus pecados perdoados, quer nesta
ou na outra vida.
474
De Deus não se zomba, e tudo o que o homem semear, será o
que ele colherá.
O Senhor não terá por inocente, e não terá misericórdia de
todo aquele que resistir aberta e definitivamente à sua
vontade, uma vez tendo reconhecido a operação da sua graça,
quer em sua própria vida, quer na de outros, operando contra
os poderes das trevas.
Satanás era pouco incomodado antes que Cristo se
manifestasse em seu ministério, porque até então não havia e
não haveria tantas expulsões de demônios, e tanta atividade
contra as mentiras e enganos do diabo, pela afirmação da
verdade divina. Jesus era o descendente prometido a Adão e a
Eva, que esmagaria a cabeça da Serpente.
A expulsão de demônios seria portanto um dos sinais da
manifestação do reino de Deus, do seu advento, na Pessoa de
Cristo.
Então, não seria de supor que o diabo assistisse a tal ataque
violento contra o seu reino, de braços cruzados.
Ele resiste e reage, e o fizera nos dias do ministério terreno de
Jesus, especialmente através dos escribas, fariseus e
sacerdotes.
Justamente pelos homens religiosos de Israel, que tinham a
seu cargo guardarem a Lei.
Satanás continua usando a mesma estratégia para tentar
paralisar o avanço da Igreja verdadeira.
Ele usa o joio que ele mesmo planta na Igreja, com o fim de
obstruir a obra do evangelho e atacar aqueles que estão
agindo contra o seu reino infernal.
Ele os classificará de fanáticos dados a práticas de excessos, os
chamará de radicais e cismáticos que agem contra a unidade
da Igreja.
Dirá, através de seus instrumentos, dentro da própria Igreja,
que estes que seguem verdadeiramente a Cristo e que pisam
na sua cabeça maligna, são inchados em orgulho espiritual
considerando-se mais santos do que os demais, e assim por
diante, tudo fazendo para desacreditá-los, tal como os fariseus
haviam feito no passado em relação a Cristo e aos seus
discípulos.
475
Os fariseus pensavam que estavam do lado de Deus e contra o
diabo, e no entanto, estavam na verdade, lutando contra Deus
e fazendo a vontade do diabo.
Quão fácil é se equivocar quanto a isto, por motivos religiosos.
É bem possível estar do lado errado, pensando estar do lado
certo.
Mas, se o coração não está correto não é possível estar do lado
certo, ainda que o desejemos.
Como Jesus não se juntou ao partido dos fariseus para estar
debaixo da autoridade deles, então eles o consideravam como
inimigo da religião de Israel, da Lei de Moisés e do próprio
Deus.
Não há segmentos da cristandade que agem da mesma forma?
Pensam que aqueles que não pertencem ao seu partido, estão
irremediavelmente perdidos, e entregues a Satanás, quando
eles mesmos andam desviados da verdade.
Por qual critério devem ser identificados os verdadeiros filhos
de Deus? A Igreja verdadeira? Pelo que afirmam os homens
segundo a sua própria imaginação, ou pelos critérios que
Cristo fixou em sua Palavra?
A verdade deve ser avaliada com a verdade, e não meramente
com aquilo que afirmam ser a verdade, as pessoas que se
encontram em posição de autoridade religiosa neste mundo.
Por isso, em sua misericórdia, Deus nos deu as Escrituras,
para que tivéssemos um testemunho permanente da verdade,
para que não nos desviemos dela.
476
Mateus 13
A Parábola do Semeador – Mateus 13.1-23
“1 No mesmo dia, tendo Jesus saído de casa, sentou-se à beira
do mar;
2 e reuniram-se a ele grandes multidões, de modo que entrou
num barco, e se sentou; e todo o povo estava em pé na praia.
3 E falou-lhes muitas coisas por parábolas, dizendo: Eis que o
semeador saiu a semear.
4 e quando semeava, uma parte da semente caiu à beira do
caminho, e vieram as aves e comeram.
5 E outra parte caiu em lugares pedregosos, onde não havia
muita terra: e logo nasceu, porque não tinha terra profunda;
6 mas, saindo o sol, queimou-se e, por não ter raiz, secou-se.
7 E outra caiu entre espinhos; e os espinhos cresceram e a
sufocaram.
8 Mas outra caiu em boa terra, e dava fruto, um a cem, outro a
sessenta e outro a trinta por um.
9 Quem tem ouvidos, ouça.
10 E chegando-se a ele os discípulos, perguntaram-lhe: Por
que lhes falas por parábolas?
11 Respondeu-lhes Jesus: Porque a vós é dado conhecer os
mistérios do reino dos céus, mas a eles não lhes é dado;
12 pois ao que tem, dar-se-lhe-á, e terá em abundância; mas ao
que não tem, até aquilo que tem lhe será tirado.
13 Por isso lhes falo por parábolas; porque eles, vendo, não
veem; e ouvindo, não ouvem nem entendem.
14 E neles se cumpre a profecia de Isaías, que diz: Ouvindo,
ouvireis, e de maneira alguma entendereis; e, vendo, vereis, e
de maneira alguma percebereis.
15 Porque o coração deste povo se endureceu, e com os
ouvidos ouviram tardamente, e fecharam os olhos, para que
não vejam com os olhos, nem ouçam com os ouvidos, nem
entendam com o coração, nem se convertam, e eu os cure.
16 Mas bem-aventurados os vossos olhos, porque veem, e os
vossos ouvidos, porque ouvem.
17 Pois, em verdade vos digo que muitos profetas e justos
desejaram ver o que vedes, e não o viram; e ouvir o que ouvis,
e não o ouviram.
477
18 Ouvi, pois, vós a parábola do semeador.
19 A todo o que ouve a palavra do reino e não a entende, vem o
Maligno e arrebata o que lhe foi semeado no coração; este é o
que foi semeado à beira do caminho.
20 E o que foi semeado nos lugares pedregosos, este é o que
ouve a palavra, e logo a recebe com alegria;
21 mas não tem raiz em si mesmo, antes é de pouca duração; e
sobrevindo a angústia e a perseguição por causa da palavra,
logo se escandaliza.
22 E o que foi semeado entre os espinhos, este é o que ouve a
palavra; mas os cuidados deste mundo e a sedução das
riquezas sufocam a palavra, e ela fica infrutífera.
23 Mas o que foi semeado em boa terra, este é o que ouve a
palavra, e a entende; e dá fruto, e um produz cem, outro
sessenta, e outro trinta.” (Mateus 13.1-23)
É muito comum se ouvir da parte de muitos, que nem mesmo
Jesus conseguiu unanimidade quando esteve ministrando em
carne, na terra.
Falam isto não por julgarem segundo a reta justiça, mas como
que atribuindo insucesso a nosso Senhor no cumprimento da
sua missão, ou como para justificar o livre arbítrio humano,
como que o homem tivesse o direito de traçar o seu próprio
caminho sem se sujeitar a Deus.
Todavia, esta resistência permanente e declarada a Jesus da
parte de muitos; e a aparente recepção de nosso Senhor e de
sua mensagem por parte de outros - dizemos aparente porque
parecem terem se convertido, mas passado algum tempo,
voltam a seu antigo modo de vida - e finalmente a
perseverança daqueles que permanecem no Senhor e na sua
doutrina, já estava previsto nos conselhos de Deus, desde a
eternidade.
Isto foi revelado pelo Senhor na Parábola do Semeador.
Então, não é pelo fato de serem menos os que se convertem
em comparação com os que se perdem, que se comprova que
Jesus não é bem sucedido em sua função de Salvador do
mundo.
Ao contrário, Ele é mais do que suficiente e competente
capitão da nossa salvação, porque não perde a nenhum
daqueles que Lhe foram dados pelo Pai.
478
Deus conhece os que são seus, e estes não deixarão de ser
alcançados pela sua graça e poder, para que sejam salvos, e
ainda que nem todos frutifiquem no mesmo grau, porque uns
frutificam mais do que outros, entretanto, todos fazem parte
da família de Deus e não serão portanto, de nenhum modo,
rejeitados por Ele.
Esta verdade já havia sido profetizada cerca de 700 anos antes
de nosso Senhor ter-se manifestado a este mundo, na
plenitude do tempo, encarnando num corpo como o nosso.
Isto foi feito especialmente através do profeta Isaías, cujo
ministério foi, principalmente, o de preanunciar o evangelho
e a obra de salvação que nosso Senhor faria.
Todavia, Deus deixou claro, por meio do profeta, que Israel
não entenderia o evangelho apesar de ouvi-lo.
Não entenderiam o significado dos milagres realizados pelo
Messias e pela Igreja, apesar de testemunharem tais milagres
com a vista de seus olhos.
Isto, por causa do endurecimento deles no pecado,
especialmente pelo engessamento nas falsas convicções
religiosas em que viveriam por influência dos escribas,
fariseus e todos os demais líderes religiosos de Israel.
O Senhor falou ao profeta Isaías, quando lhe enviou depois de
ter sido tocado pela brasa do altar:
“9 Disse, pois, ele: Vai, e dize a este povo: Ouvis, de fato, e não
entendeis, e vedes, em verdade, mas não percebeis.
10 Torna insensível o coração deste povo, e endurece-lhe os
ouvidos, e fecha-lhe os olhos; para que ele não veja com os
olhos, e ouça com os ouvidos, e entenda com o coração, e se
converta, e seja sarado.” (Is 6.9,10)
Isaías é conhecido como o profeta evangélico, porque
profetizaria mais do que qualquer outro sobre a pessoa de
Cristo e o período da Igreja cristã, do milênio e da glória futura
dos santos.
Ele viu o Senhor Jesus na sua glória em sua chamada, porque
sua grande missão seria a de falar do ministério e glória do
Messias, e que somente nele havia esperança, não somente
para Israel, como para todas as nações.
Então não é para se estranhar que não tenha sido chamado
para convocar os israelitas de seus dias ao arrependimento,
durante o tempo do seu longo ministério, mas ao contrário,
479
lhes revelar que permaneceriam endurecidos à recepção do
Messias e do evangelho por um longo período.
Eles ouviriam o evangelho, mas não entenderiam.
Veriam os sinais realizados por Cristo e pela Igreja mas não
perceberiam a mão de Deus agindo, porque o seu coração se
tornaria insensível, e seus ouvidos ficariam endurecidos à voz
do Espírito, e seus olhos fechados para verem a verdade da
Palavra do evangelho (Is 6.9, 10).
Isaías falaria portanto, de coisas relativas ao evangelho, mas
eles não se converteriam a Deus, por ouvirem as coisas que
seriam reveladas ao profeta.
Ao contrário, a mensagem profética de Isaías lhes
endureceria o coração, fecharia os seus olhos e ouvidos, para
que não vissem com os olhos e ouvissem com os ouvidos a
mensagem da verdade, e assim, não podendo entender com o
coração, não se converteriam e não seriam sarados por Deus.
Isaías perguntou ao Senhor até quando duraria tal
endurecimento de Israel ao evangelho, e a resposta divina foi
a seguinte: “Até que sejam assoladas as cidades, e fiquem sem
habitantes, e as casas sem moradores, e a terra seja de todo
assolada, e o Senhor tenha removido para longe dela os
homens, e sejam muitos os lugares abandonados no meio da
terra.”.
A remoção do endurecimento de Israel ocorreria, conforme
do conhecimento do Senhor em sua onisciência, e como
revelou a Isaías, somente depois que a terra de Israel fosse
assolada, e as suas cidades e casas ficassem sem habitantes e
moradores e a sua terra totalmente assolada.
Isto ocorreria no cativeiro babilônico, e na diáspora causada
pelos romanos em 70 d. C., mas o grande cumprimento
da profecia aponta para o tempo das assolações que serão
realizadas pelo Anticristo.
Apenas um remanescente seria objeto da remoção do
endurecimento e se converteria ao Senhor, mas é
identificado como sendo menos da décima parte da
população que seria poupada.
Este remanescente foi chamado de santa semente, e
comparado ao renovo do toco de um carvalho que é deixado
na terra, depois que este é derrubado (Is 6.13).
480
Deus manteria apenas um remanescente, uma pequena sobra
de eleitos em Israel, de maneira que somente a estes seria
dado conhecerem os mistérios do reino dos céus, enquanto os
demais permaneceriam endurecidos, conforme conhecido
pelo Senhor em sua presciência divina.
Por isso, a verdade do reino dos céus soaria em Israel,
especialmente por meio de parábolas.
O conjunto de parábolas citadas neste capítulo foram
pronunciadas por Jesus à beira mar, provavelmente no mar da
Galileia, que era conhecido também por mar de Tiberíades (Jo
6.1), estando nosso Senhor num barco junto à praia, em razão
da grande multidão que havia se reunido para ouvi-lo.
Veja que nosso Senhor nunca se deixou impressionar pelo
imenso número de pretensos admiradores que O
procuravam.
Ele bem sabia o que é a natureza terrena, e assim, nunca se
deixou enganar por ela, e sempre pregou e ensinou a verdade
sem desejar ser visto pelos homens, ou para agradá-los com o
intuito de obter o seu aplauso.
Ele jamais negociaria a pérola da verdade e da justiça por
qualquer outra coisa que lhe fosse oferecida.
Nossos corações têm desejos não lícitos e impuros, mas isto
era algo desconhecido ao coração puramente santo de Cristo.
Ele não poderia ser tentado por suas próprias cobiças, porque
não tinha cobiças pecaminosas tal como nós estamos sujeitos
a tê-las.
Logo, tudo faria e tudo fez para a exclusiva glória do Pai, e em
perfeita santidade e justiça.
O fato de ter falado muitas vezes por parábolas comprova que
nosso Senhor não buscava realmente agradar a homens,
porque em sua grande maioria ficavam sem entender o que
lhe foi ensinado e pregado, inclusive os próprios apóstolos,
necessitavam ser ensinados à parte, quanto ao significado das
parábolas, coisa que Jesus nunca se negou a fazer
particularmente em relação a eles, porque eram cidadãos do
reino dos céus, e até com o menor membro de seu corpo, a
Igreja, Jesus será paciente em ensinar os mistérios do seu
reino, tal como fizera com os todos os seus discípulos no
passado.
481
É interessante observar as seguintes verdades na explicação
que nosso Senhor deu aos discípulos quanto ao significado da
Parábola do Semeador:
1 - A semente é a palavra do reino, a saber, a mensagem do
evangelho.
2 - Os vários tipos de solos representam os vários tipos de
corações:
a ) Beira do caminho, ou seja, fora do canteiro, representa os
corações desatentos que não dão qualquer consideração à
palavra pregada ou ensinada. Satanás remove inteiramente o
que foi aplicado a tais corações. Assim, estes sequer chegam a
entender a palavra do reino que ouviram.
b) Lugares pedregosos representam os corações endurecidos,
que podem até mesmo recepcionar a mensagem do
evangelho com uma alegria inicial, mas que não pode resistir
à angústia e à perseguição por causa do evangelho.
São como plantas que brotam mas não chegam a criar raízes,
e que portanto, não podem resistir às intempéries produzidas
por se ter abraçado o evangelho.
c) Lugares com espinhos, representam os corações volúveis e
cobiçosos, que não conseguem resistir aos cuidados e à
sedução das riquezas mundanas.
Estes são como plantas que podem até mesmo criar umas
poucas raízes e atingirem um certo crescimento, mas por fim
morrem espiritualmente, porque não permitirão que seus
egos cobiçosos sejam vencidos pela graça, produzindo uma
verdadeira conversão de seus corações.
d) Finalmente, o único tipo de solo que pode produzir o fruto
de conversão esperado por Deus são aqueles que possuem
corações que são solos férteis, que permitiram serem limpos
das pedras e dos espinhos que poderiam atrapalhar o seu
crescimento espiritual.
Estes não somente entendem a palavra do reino, como
produzem frutos para Deus, ainda que uns mais do que outros,
em função da fertilidade do solo de seus corações, na
diligência na busca da santificação, porque esta não é absoluta
e instantânea como a justificação e a regeneração. Ela
depende também do empenho de cada cristão.
482
Daí haver cristãos mais santificados do que outros, porque a
santificação depende do grau da consagração de cada um
deles a Deus.
Parábolas do Joio, do Grão de Mostarda, e do Fermento –
Mateus 13.24-43
Parábola do Joio
“24 Propôs-lhes outra parábola, dizendo: O reino dos céus é
semelhante ao homem que semeou boa semente no seu
campo;
25 mas, enquanto os homens dormiam, veio o inimigo dele,
semeou joio no meio do trigo, e retirou-se.
26 Quando, porém, a erva cresceu e começou a espigar, então
apareceu também o joio.
27 Chegaram, pois, os servos do proprietário, e disseram-lhe:
Senhor, não semeaste no teu campo boa semente? Donde,
pois, vem o joio?
28 Respondeu-lhes: Algum inimigo é quem fez isso. E os
servos lhe disseram: Queres, pois, que vamos arrancá-lo?
29 Ele, porém, disse: Não; para que, ao colher o joio, não
arranqueis com ele também o trigo.
30 Deixai crescer ambos juntos até a ceifa; e, por ocasião da
ceifa, direi aos ceifeiros: Ajuntai primeiro o joio, e atai-o em
molhos para o queimar; o trigo, porém, recolhei-o no meu
celeiro. (Mateus 13.24-30)
Parábola do Grão de Mostarda
31 Propôs-lhes outra parábola, dizendo: O reino dos céus é
semelhante a um grão de mostarda que um homem tomou, e
semeou no seu campo;
32 o qual é realmente a menor de todas as sementes; mas,
depois de ter crescido, é a maior das hortaliças, e faz-se
árvore, de sorte que vêm as aves do céu, e se aninham nos seus
ramos. (Mateus 13.31,32)
483
Parábola do Fermento
33 Outra parábola lhes disse: O reino dos céus é semelhante
ao fermento que uma mulher tomou e misturou com três
medidas de farinha, até ficar tudo levedado.
34 Todas estas coisas falou Jesus às multidões por parábolas,
e sem parábolas nada lhes falava;
35 para que se cumprisse o que foi dito pelo profeta: Abrirei
em parábolas a minha boca; publicarei coisas ocultas desde a
fundação do mundo. (Mateus 13.33-35)
Explicação da Parábola do Joio
36 Então Jesus, deixando as multidões, entrou em casa. E
chegaram-se a ele os seus discípulos, dizendo: Explica-nos a
parábola do joio do campo.
37 E ele, respondendo, disse: O que semeia a boa semente é o
Filho do homem;
38 o campo é o mundo; a boa semente são os filhos do reino; o
joio são os filhos do maligno;
39 o inimigo que o semeou é o Diabo; a ceifa é o fim do mundo,
e os celeiros são os anjos.
40 Pois assim como o joio é colhido e queimado no fogo, assim
será no fim do mundo.
41 Mandará o Filho do homem os seus anjos, e eles ajuntarão
do seu reino todos os que servem de tropeço, e os que
praticam a iniquidade,
42 e lança-los-ão na fornalha de fogo; ali haverá choro e ranger
de dentes.
43 Então os justos resplandecerão como o sol, no reino de seu
Pai. Quem tem ouvidos, ouça.” (Mateus 13.36-43)
Depois que nosso Senhor concluiu a sua pregação por
parábolas, quando se encontrava num barco à beira mar,
Mateus registrou mais um motivo pelo qual Ele falava por
parábolas: estava profetizado no Salmo 78.2 que Ele faria isto
quando se manifestasse ao mundo:
“34 Todas estas coisas falou Jesus às multidões por parábolas,
e sem parábolas nada lhes falava;
484
35 para que se cumprisse o que foi dito pelo profeta: Abrirei
em parábolas a minha boca; publicarei coisas ocultas desde a
fundação do mundo.”
Quando o evangelista afirma que “sem parábolas nada lhes
falava” isto não significa que Jesus somente disse parábolas,
mas que estas sempre fizeram parte do seu ensino e pregação,
porque isto estava profetizado acerca dele.
Um falso messias poderia criar parábolas para tentar
confirmar as Escrituras, mas certamente, não poderia falar
dos mistérios eternos do reino dos céus através de suas
parábolas, porque somente o Filho de Deus, que lá estivera, e
que tudo criara, poderia falar acerca das coisas relativas ao
reino dos céus.
Nós comentaremos as três parábolas (do joio, do grão de
mostarda, e do fermento) desta passagem, em conjunto, dado
haver pontos de similaridade entre as mesmas.
Na Parábola do Joio, a boa semente não representa a palavra
do reino, como na Parábola do Semeador, mas os próprios
cristãos (v. 38).
As parábolas do Grão de Mostarda, e do Fermento,
representam o crescimento, a expansão do evangelho. O
crescimento e a multiplicação da palavra do reino em todo o
mundo, a partir de um pequeno começo.
“E a palavra de Deus crescia e se multiplicava.” (At 12.24). Este
texto de Atos não significa que outras verdades eram
acrescentadas progressivamente à mensagem que fora
pregada e ensinada inicialmente por Jesus, mas que a palavra
do evangelho estava se espalhando por várias partes do
mundo.
Quanto à Parábola do Joio, muitos se enganam ao dizerem que
a Igreja verdadeira é composta tanto por trigo quanto por joio,
porque Jesus disse que o reino dos céus é composto por
ambos.
Todavia, não é este o ensino de nosso Senhor, porque deixa
muito claro que o joio é um elemento estranho ao reino dos
céus, à verdadeira Igreja, que foi semeado não por Deus, mas
pelo diabo, e está portanto, destinado a ser arrancado, porque
o Senhor arrancará de sua lavoura, no tempo próprio toda
planta que não foi plantada por Ele (Mt 15.13).
485
Além disso, nosso Senhor disse que o joio representa os filhos
do maligno, e que a boa semente são os filhos do reino. Assim,
somente os filhos do reino haverão de herdar a salvação.
Recomenda-se portanto, que a Igreja não exclua o joio, uma
vez plantado, pela simples iniciativa de seus líderes, porque
esta operação de exclusão da membresia será usada pelo
diabo para abalar a muitos que sejam verdadeiramente trigo
no meio do povo de Deus, por tomarem partido daqueles que
foram excluídos, ou então, por este joio excluído agir contra o
corpo de fiéis, causando danos a muitos. Do mesmo modo
quando se tenta arrancar da lavoura uma planta má, que
tenha crescido ao lado de uma boa, cujas raízes tenham se
entrelaçado à mesma. Ambas serão arrancadas ao se tentar
tirar uma delas. Ainda que o cristão verdadeiro, que se
escandalize com a retirada de um joio, não sofra qualquer
prejuízo quanto à sua condição de ser cidadão do reino dos
céus, no entanto, sofrerá algum tipo de dano na sua
comunhão com a igreja na qual congregue.
Então devemos deixar Àquele que é o ceifeiro, o trabalho de
fazer a separação do joio do trigo, quer neste mundo, quer
quando por ocasião da sua segunda vinda, quando dará
ordens a seus anjos para que façam tal separação
definitivamente.
Parábolas Curtas – Mateus 13.44-52
A Parábola do Tesouro Escondido num Campo
“44 O reino dos céus é semelhante a um tesouro escondido no
campo, que um homem, ao descobri-lo, esconde; então,
movido de alegria, vai, vende tudo quanto tem, e compra
aquele campo.” (Mateus 13.44)
A Parábola da Pérola de Grande Valor
“45 Outrossim, o reino dos céus é semelhante a um
negociante que buscava boas pérolas;
46 e encontrando uma pérola de grande valor, foi, vendeu
tudo quanto tinha, e a comprou.” (Mateus 13.45,46)
486
A Parábola da Rede e dos Peixes
“47 Igualmente, o reino dos céus é semelhante a uma rede
lançada ao mar, e que apanhou toda espécie de peixes.
48 E, quando cheia, puxaram-na para a praia; e, sentando-se,
puseram os bons em cestos; os ruins, porém, lançaram fora.
49 Assim será no fim do mundo: sairão os anjos, e separarão
os maus dentre os justos,
50 e lança-los-ão na fornalha de fogo; ali haverá choro e
ranger de dentes.
51 Entendestes todas estas coisas? Disseram-lhe eles:
Entendemos.
52 E disse-lhes: Por isso, todo escriba que se fez discípulo do
reino dos céus é semelhante a um homem, proprietário, que
tira do seu tesouro coisas novas e velhas.” (Mateus 13.47-52)
Nós temos nestes versos, quatro parábolas curtas.
I – A do Tesouro Escondido num Campo
Até esta altura nosso Senhor tinha comparado o reino dos
céus a coisas pequenas que cresceriam, e para que ninguém
pensasse erroneamente que isto significava algum tipo de
desvalor em si mesmo, Ele passou então a falar de coisas
valiosas para se referir ao reino dos céus.
Tal é a grandeza e a importância vital do reino dos céus, que
deveríamos nos despojar de tudo o que possuímos para que
possamos adquirir este tesouro espiritual e de valor eterno,
oculto aos olhos da carne.
Quando alguém descobre a riqueza que há em Cristo, deve se
apressar em adquiri-lo, comprando a salvação sem dinheiro e
sem preço (Is 55.1), porque este tesouro é adquirido
inteiramente pela graça, pelo alto preço que o próprio Jesus
pagou por nós em sua morte na cruz.
É importante observar que a parábola destaca que o tesouro
está escondido num campo.
E aquele que o descobre deve mantê-lo escondido em seu
coração.
487
Isto não significa que não deverá compartilhá-lo com outros,
mas que não deve fazê-lo até que o tenha adquirido de fato.
O campo é o evangelho.
Cristo está oculto na mensagem do evangelho.
Não podemos ter o tesouro que é Cristo, sem abraçar, adquirir
o evangelho. Porque a fé vem pelo ouvir a pregação desta
palavra que nos foi revelada desde os céus.
O ato de comprar o campo, ou seja, o evangelho, exigirá que
renunciemos a tudo quanto temos e somos, para podermos
ter verdadeiramente a Cristo.
As coisas do mundo terão que ser deixadas, porque de outro
modo, não poderemos adquirir este tesouro de imenso e
eterno valor.
Isto não significa que devemos sair do mundo, ou não usar
nada que seja do mundo, mas que nada desta vida poderá estar
em competição com Cristo, porque onde Ele impor alguma
renúncia para que possamos ter mais dele mesmo, será
necessário fazê-lo, para que o nosso coração esteja somente
neste tesouro do céu que nos foi dado gratuitamente, e não
nos tesouros que são da terra.
II – A da Pérola de Grande Valor
Aqui o tesouro é comparado a uma pérola de imenso valor,
que demandará, para ser adquirida, tudo o que possuímos,
para que possa ser comprada.
O próprio Cristo é a Pérola de grande valor.
Não podemos comprá-lo e nem mesmo a salvação que nele
está, com dinheiro ou com preço, mas não podemos adquirilo sem pagar o preço da consagração, da conversão, do
arrependimento, da renúncia ao ego e ao mundo.
Estas coisas constituem o preço que devemos pagar, não a
Cristo, nem a Deus, porque a salvação é de fato inteiramente
pela graça. Não se trata de uma transação comercial, de um
negócio. Mas de algo que se assemelha a um preço que
devemos pagar. É a parte que se exige de nós, se desejarmos
realmente a salvação que está em Cristo Jesus.
A salvação é pela graça, mas nosso Senhor nos mostra que
devemos calcular o custo, ou seja, o que se exige de nós para
alcançá-la.
488
III – A da Rede e dos Peixes
Aqui o mundo é comparado ao mar.
A humanidade em sua totalidade é representada na parábola
como os peixes que vivem neste mar.
Há peixes que são bons para a alimentação e outros que são
imprestáveis para tal fim.
Nosso Senhor mostra claramente que Deus rejeitará no dia do
Juízo a todo peixe ruim, e recolherá em seu cesto da salvação,
somente os peixes bons.
Estes, e somente estes serão livrados do mundo, não
pertencerão mais ao mundo, mas, os ruins serão lançados de
volta ao mundo de onde haviam sido retirados juntamente
com os peixes bons. Eles serão entregues ao seu próprio meio,
a saber, ao mundo de trevas.
A rede representa a mensagem do evangelho que é lançada ao
mundo. E nesta rede vêm tanto os que se convertem a Cristo,
quanto aqueles que permanecem sem a salvação, apesar de
terem se permitido capturar pela mensagem do evangelho.
Todavia, Deus sabe quais são verdadeiramente os peixes bons,
e rejeitará por fim estes que vieram na rede da pregação e
ensino do evangelho, e que não se converteram de fato a
Cristo.
Para arrematar seu ensino relativo ao reino dos céus, por
meio de parábolas, nosso Senhor fez ainda uma comparação
final do reino, àqueles que podem compreender estas coisas,
tal como os discípulos as haviam compreendido (v. 51), e que
portanto todos aqueles que examinassem as Escrituras, como
os escribas faziam, mas que tivessem se convertido de fato,
sendo verdadeiros discípulos de Cristo, seriam como um
dono de um tesouro que pode tirar do mesmo tanto coisas
novas quanto velhas (v. 52).
O sentido destas últimas palavras é que o entendimento de
um antigo sermão ou ensino nos ajudará a entender um novo,
e isto é como um tesouro inextinguível, porque as Escrituras
são infinitas e eternas.
As verdades e realidades relativas ao reino de Deus são
reveladas aos cristãos fiéis, e estes podem entender por causa
da graça de Cristo, estas coisas que lhes são reveladas.
489
Estes que podem aprender a palavra de Deus poderão ser
como escribas que ensinarão a palavra a outros, porque este
era o ofício de um verdadeiro escriba, tal como Esdras fora no
passado.
Aqueles que instruirão a outros necessitam portanto serem
instruídos eles próprios.
Os discípulos de nosso Senhor estavam buscando nele tal
instrução, e portanto, estariam sendo capacitados por Ele a
instruírem a outros.
O Desprezo de Cristo por seus Compatriotas – Mateus 13.53-58
“53 E Jesus, tendo concluído estas parábolas, se retirou dali.
54 E, chegando à sua terra, ensinava o povo na sinagoga, de
modo que este se maravilhava e dizia: Donde lhe vem esta
sabedoria, e estes poderes milagrosos?
55 Não é este o filho do carpinteiro? e não se chama sua mãe
Maria, e seus irmãos Tiago, José, Simão, e Judas?
56 E não estão entre nós todas as suas irmãs? Donde lhe vem,
pois, tudo isto?
57 E escandalizavam-se dele. Jesus, porém, lhes disse: Um
profeta não fica sem honra senão na sua terra e na sua própria
casa.
58 E não fez ali muitos milagres, por causa da incredulidade
deles.” (Mateus 13.53-58)
Para comprovar o comportamento profetizado por Isaías em
relação aos judeus sob a ministração do evangelho, que viam
os milagres de Jesus e não entendiam; que ouviam o seu
ensino acerca do reino dos céus e não entendiam, Mateus
registrou nesta passagem que os judeus da sinagoga da
localidade em que Jesus residia, se maravilhavam com as
coisas que ele ensinava e os milagres que realizava (v. 54),
porém, como sabiam que era de origem humilde, sendo José,
seu pai, um carpinteiro, e seus irmãos, filhos de Maria,
chamados Tiago, José, Simão e Judas, também homens
simples, bem como as irmãs de nosso Senhor que não são
nomeadas por Mateus, escandalizavam-se nele, ou seja, não
Lhe deram a honra devida, crendo nele como sendo o
Messias.
490
Eles não O reconheceram como o Grande Profeta prometido
desde Moisés, e não Lhe deram portanto, a honra de um
profeta, e por este motivo não fez ali muitos milagres, em
razão desta incredulidade.
Lucas acrescenta outros detalhes em seu evangelho, relativos
a esta ocasião, e nos informa que tal ocorreu quando Jesus leu
na sinagoga de Nazaré, num sábado, as profecias a seu
respeito no capítulo 61 de Isaías:
“16 Chegando a Nazaré, onde fora criado; entrou na sinagoga
no dia de sábado, segundo o seu costume, e levantou-se para
ler.
17 Foi-lhe entregue o livro do profeta Isaías; e abrindo-o,
achou o lugar em que estava escrito:
18 O Espírito do Senhor está sobre mim, porquanto me ungiu
para anunciar boas novas aos pobres; enviou-me para
proclamar libertação aos cativos, e restauração da vista aos
cegos, para pôr em liberdade os oprimidos,
19 e para proclamar o ano aceitável do Senhor.
20 E fechando o livro, devolveu-o ao assistente e sentou-se; e
os olhos de todos na sinagoga estavam fitos nele.
21 Então começou a dizer-lhes: Hoje se cumpriu esta escritura
aos vossos ouvidos.
22 E todos lhe davam testemunho, e se admiravam das
palavras de graça que saíam da sua boca; e diziam: Este não é
filho de José?
23 Disse-lhes Jesus: Sem dúvida me direis este provérbio:
Médico, cura-te a ti mesmo; Tudo o que ouvimos teres feito
em Cafarnaum, faze-o também aqui na tua terra.
24 E prosseguiu: Em verdade vos digo que nenhum profeta é
aceito na sua terra.
25 Em verdade vos digo que muitas viúvas havia em Israel nos
dias de Elias, quando céu se fechou por três anos e seis meses,
de sorte que houve grande fome por toda a terra;
26 e a nenhuma delas foi enviado Elias, senão a uma viúva em
Serepta de Sidom.
27 Também muitos leprosos havia em Israel no tempo do
profeta Elizeu, mas nenhum deles foi purificado senão
Naamã, o sírio.
28 Todos os que estavam na sinagoga, ao ouvirem estas coisas,
ficaram cheios de ira.
491
29 e, levantando-se, expulsaram-no da cidade e o levaram até
o despenhadeiro do monte em que a sua cidade estava
edificada, para dali o precipitarem.
30 Ele, porém, passando pelo meio deles, seguiu o seu
caminho.” (Lc 4.16-30).
Cristo continua sendo rejeitado ainda hoje por muitos em sua
própria casa, que é a Igreja, porque tem falado também pela
boca de pessoas iletradas, e operado milagres através de gente
simples, sem formação acadêmica, tanto quanto Ele e seus
primeiros discípulos.
Assim ficam escandalizados com o alimento espiritual com o
qual deveriam ser nutridos.
E nosso Senhor é rejeitado e desprezado por eles, tanto quanto
haviam feito os judeus da sinagoga de Nazaré.
O resultado é que isto entristece o Espírito Santo, e Ele se
retira do meio de um tal povo, e passa a operar onde seja
reconhecido e bem recebido.
Os fariseus e escribas andavam em finas vestes, eram
finamente educados, e o povo de Israel se deixava
impressionar pela aparência deles sem levar em conta se
eram verdadeiramente pessoas piedosas, cheias do Espírito e
da graça do Senhor.
Rejeitaram a Jesus porque fora criado por um carpinteiro.
Todavia, que mal há nisto?
Mas os que buscam a glória deste mundo são facilmente
enganados por suas mentes carnais e por Satanás, e rejeitarão
a glória que procede de Deus, em vasos humildes de barro.
Muitos se enganam pensando que serão aprovados por Deus
pelo simples fato de se colocarem debaixo da liderança de
pessoas letradas e cultas.
Este foi o grande erro dos judeus em relação aos escribas e
fariseus, que eram os religiosos notáveis da época, e este
continua sendo o grande erro de muitos na Igreja de Cristo,
que não fazem progresso espiritual, porque se colocam
debaixo da autoridade de lobos em peles de ovelha, mas não
uma pele comum, mas que reluz a glória das coisas deste
mundo.
Que mal há em ser culto segundo o mundo? Nenhum.
O problema está em colocar o coração simplesmente nisto, e
confundi-lo como sendo a vontade expressa mesma de Deus
492
para aqueles que se consideram seus filhos, a saber, que eles
estejam inchados de sabedoria secular e mundana.
Todavia, sua vontade não está concentrada nisto quanto à
salvação, porque tudo que se refere a ela está baseado em
realidades espirituais invisíveis, que não são deste mundo,
mas que nos são reveladas dos céus.
493
Mateus 14
A Morte João Batista – Mateus 14.1-12
“1 Naquele tempo Herodes, o tetrarca, ouviu a fama de Jesus,
2 e disse aos seus cortesãos: Este é João, o Batista; ele
ressuscitou dentre os mortos, e por isso estes poderes
milagrosos operam nele.
3 Pois Herodes havia prendido a João, e, maniatando-o, o
guardara no cárcere, por causa de Herodias, mulher de seu
irmão Felipe;
4 porque João lhe dizia: Não te é lícito possuí-la.
5 E queria matá-lo, mas temia o povo; porque o tinham como
profeta.
6 Festejando-se, porém, o dia natalício de Herodes, a filha de
Herodias dançou no meio dos convivas, e agradou a Herodes,
7 pelo que este prometeu com juramento dar-lhe tudo o que
pedisse.
8 E instigada por sua mãe, disse ela: Dá-me aqui num prato a
cabeça de João, o Batista.
9 Entristeceu-se, então, o rei; mas, por causa do juramento, e
dos que estavam à mesa com ele, ordenou que se lhe desse,
10 e mandou degolar a João no cárcere;
11 e a cabeça foi trazida num prato, e dada à jovem, e ela a levou
para a sua mãe.
12 Então vieram os seus discípulos, levaram o corpo e o
sepultaram; e foram anunciá-lo a Jesus.” (Mateus 14.1-12)
Quando Mateus escreveu esta narrativa, João, o Batista, já
havia sido morto por Herodes, e foi por isso que afirmou que
Herodes teria dito, quando soube da fama de Jesus, que Ele
seria João que havia ressuscitado dentre os mortos, tendo
agora o poder de também operar milagres.
Apesar de errado em sua teologia, aquele rei tinha
reconhecido que João era alguém que ministrava em verdade
da parte de Deus, sendo um profeta, e ainda assim, pelo seu
endurecimento no pecado, consentiu com que fosse
decapitado a pedido da filha da mulher de seu irmão, com a
qual vivia em adultério, a qual lhe fizera tal pedido por
sugestão da sua mãe, que odiava a João por ter protestado
contra o pecado de adultério dela e de Herodes.
494
Nós vemos no relato paralelo do evangelho de Marcos qual
era a atitude que Herodes tinha para com João:
“porque Herodes temia a João, sabendo que era varão justo e
santo, e o guardava em segurança; e, ao ouvi-lo, ficava muito
perplexo, contudo de boa mente o escutava.” (Marcos 6.20)
Ele temia a João, e estava com medo que tivesse ressuscitado
dos mortos para atormentar ainda mais a sua alma cheia de
pecados não perdoados.
Tal como o rei Acabe que se deixava conduzir por Jezabel,
Herodes também era fraco de caráter e se deixava conduzir
por Herodias.
Não por consentimento de Deus, mas por sua permissão
divina, deixou que João fosse martirizado de tal modo, porque
importava que ele saísse de cena, para que somente Jesus
fosse seguido.
O próprio João havia reconhecido que, em seu ministério,
convinha que ele desaparecesse para que somente a fama de
Jesus crescesse, não no sentido da glória deste mundo, mas da
honra que deveria ser dada exclusivamente ao seu nome,
porque com isto Deus estava dando uma mensagem a todos os
homens que não é João que deve ser seguido, mas o seu Filho
unigênito.
Cinco Mil Alimentados – Mateus 14.13-21
“13 Jesus, ouvindo isto, retirou-se dali num barco, para um,
lugar deserto, à parte; e quando as multidões o souberam,
seguiram-no a pé desde as cidades.
14 E ele, ao desembarcar, viu uma grande multidão; e,
compadecendo-se dela, curou os seus enfermos.
15 Chegada a tarde, aproximaram-se dele os discípulos,
dizendo: O lugar é deserto, e a hora é já passada; despede as
multidões, para que vão às aldeias, e comprem o que comer.
16 Jesus, porém, lhes disse: Não precisam ir embora; dai-lhes
vós de comer.
17 Então eles lhe disseram: Não temos aqui senão cinco pães e
dois peixes.
18 E ele disse: trazei-mos aqui.
19 Tendo mandado às multidões que se reclinassem sobre a
relva, tomou os cinco pães e os dois peixes e, erguendo os
495
olhos ao céu, os abençoou; e partindo os pães, deu-os aos
discípulos, e os discípulos às multidões.
20 Todos comeram e se fartaram; e dos pedaços que
sobejaram levantaram doze cestos cheios.
21 Ora, os que comeram foram cerca de cinco mil homens,
além de mulheres e crianças.” (Mateus 14.13-21)
Quando chegou ao conhecimento de nosso Senhor, que João
havia morrido, Ele se retirou da localidade sob a jurisdição de
Herodes, na Galileia, onde Ele se encontrava, para o deserto,
porque possivelmente Herodes tentaria matá-lo porque
pensava que era João que havia ressuscitado para se vingar
dele.
Devemos aprender do exemplo de nosso Senhor, que caso
não sejamos chamados para nos expor a perigos, pela vontade
de Deus, devemos fugir para a nossa própria segurança.
Ao atravessar por mar, para o lado oriental do Jordão, foi
seguido por uma numerosa multidão, que vinha ter com ele,
de todas as partes, da qual Ele curou os seus enfermos.
Quando Cristo, que é a nossa arca da aliança, se mover, é
nosso dever nos movermos juntamente com Ele.
O Senhor não somente se compadecerá daqueles que O
seguirem, como agirá para prover as necessidades prementes
deles, enquanto Lhe estiverem seguindo, e caso não lhes seja
possível obterem os recursos necessários, senão da sua mão
milagrosa.
Foi exatamente isto o que ocorreu com esta multidão que Lhe
seguiu.
Tal como os discípulos daqueles dias, é comum ocorrer com
os de todas as épocas, especialmente com os seus ministros, a
mesma atitude que se manifestou nos discípulos do passado,
quando viram a grande necessidade que estava diante deles,
ou seja, que toda aquela multidão necessitava se alimentada.
Eles pensaram em despedi-los para resolverem aquele
problema, e é geralmente o que somos tentados a fazer, mas a
misericórdia e a graça do Senhor, podem nos dissuadir de
nossas intenções e nos levar a agir em favor dos que se
encontram em necessidades, que não podemos solucionar
com o nosso próprio poder e capacidade.
496
Foi esta lição que o Senhor deu aos seus discípulos quando
lhes disse que não necessitavam despedir a multidão, mas que
eles próprios deveriam dar-lhes de comer.
Realmente não foram eles que multiplicaram os cinco pães e
dois peixes para alimentar aqueles cerca de cinco mil
homens, além de mulheres e crianças, mas nosso Senhor,
todavia, foram eles que tiveram que agir como garçons para
distribuir os pães e peixes, à medida que se multiplicavam nos
cestos.
Todos comeram e se fartaram, e do que sobrou foram ainda
enchidos doze cestos.
É importante comentar que aquelas pessoas não teriam onde
se alimentar, porque a tarde havia caído, e se encontravam no
deserto.
Além disso, não teriam como prover a necessidade delas de
alimento.
Então, excepcionalmente, nosso Senhor realizou este milagre
da multiplicação dos pães e peixes, porque se estivessem em
condições de proverem para si, o próprio alimento deles, Ele
não teria feito tal milagre.
Deus nunca nos incentivará a qualquer tipo de ócio.
Ele sempre abençoará o trabalho com o suor do rosto para se
obter o pão, porque foi o modo determinado por Ele para a
nossa subsistência.
Tanto isto é verdadeiro, que nós vemos que nosso Senhor
viria a repreender as pessoas desta multidão que lhe haviam
seguido, porque queriam fazê-lo rei, provavelmente com o
propósito em vista de não necessitarem mais trabalhar para
se alimentarem, porque pensavam que Jesus sempre agiria
como o médico não remunerado deles, bem como o provedor
das suas necessidades de alimentação, sem que
necessitassem trabalhar (vide João 6).
Jesus Anda Sobre o Mar – Mateus 14.22-33
“22 Logo em seguida obrigou os seus discípulos a entrar no
barco, e passar adiante dele para o outro lado, enquanto ele
despedia as multidões.
23 Tendo-as despedido, subiu ao monte para orar à parte. Ao
anoitecer, estava ali sozinho.
497
24 Entrementes, o barco já estava a muitos estádios da terra,
açoitado pelas ondas; porque o vento era contrário.
25 À quarta vigília da noite, foi Jesus ter com eles, andando
sobre o mar.
26 Os discípulos, porém, ao vê-lo andando sobre o mar,
assustaram-se e disseram: É um fantasma. E gritaram de
medo.
27 Jesus, porém, imediatamente lhes falou, dizendo: Tende
ânimo; sou eu; não temais.
28 Respondeu-lhe Pedro: Senhor! se és tu, manda-me ir ter
contigo sobre as águas.
29 Disse-lhe ele: Vem. Pedro, descendo do barco, e andando
sobre as águas, foi ao encontro de Jesus.
30 Mas, sentindo o vento, teve medo; e, começando a
submergir, clamou: Senhor, salva-me.
31 Imediatamente estendeu Jesus a mão, segurou-o, e disselhe: Homem de pouca fé, por que duvidaste?
32 E logo que subiram para o barco, o vento cessou.
33 Então os que estavam no barco adoraram-no, dizendo:
Verdadeiramente tu és Filho de Deus.” (Mateus 14.22-33)
Nosso Senhor não ensinou seus discípulos somente com
palavras.
Ele lhes ensinou sobretudo a aumentarem a sua fé nele,
através das tribulações, que permitiu que tivessem, como esta
que lemos nesta narrativa, da tempestade que lhes sobreveio
no mar, quando atendendo à ordem do Senhor, estavam
atravessando para o outro lado do mar da Galileia, na direção
da cidade de Genesaré.
As ondas batiam fortemente contra o pequeno barco dos
discípulos, e o vento lhes era contrário, ou seja, soprava na
direção contrária à que eles pretendiam seguir.
John Knox, o reformador suíço, quando quis se referir às
perseguições que a Igreja estava sofrendo em seus dias,
utilizou-se desta ilustração das tempestades espirituais que
atingem o pequeno barco da Igreja, enquanto esta atua no mar
da humanidade para cumprir a missão que lhe fora dada por
Cristo.
São suas palavras:
“A tribulação geralmente segue aquela igreja onde Cristo
Jesus verdadeiramente é pregado.
498
A palavra que nós professamos, clama diariamente em nossos
ouvidos: que nosso reino, nossa alegria, nosso descanso e
alegria nunca estiveram, estão, nem estarão na terra (Jo
18.36), nem em qualquer coisa transitória daqui, mas no céu,
no qual nós temos que entrar por muitas tribulações (Atos
14.22).
No evangelho de Mt 8.23-27 é relatada uma grande tormenta,
que se lançou contra o barco em que os discípulos de Cristo se
encontravam lutando contra a tempestade: mas isso foi à luz
do dia, e então, tinham Cristo com eles no barco a quem
pediram ajuda (porque naquele momento ele dormia no
barco), e assim, foram livrados rapidamente do seu temor
súbito. Mas agora estavam no meio do mar furioso, e era
noite, e Cristo o seu Consolador, estava ausente, e não lhes
veio, nem na primeira, segunda, nem terceira hora. Que
medo, você imagina que estavam então sentindo? E que
pensamentos surgiram dos seus corações tão preocupados
durante aquela tempestade? Como este dia em que grande
perigo entrou no reino da Inglaterra, fazendo uma tão grande
tempestade, que minha caneta possa expressar. Mas de uma
coisa eu estou bem seguro, que a presença de Cristo se fará
presente nesta grande perplexidade, como foi confortável aos
apóstolos, e sendo ainda maior do que fora dantes.
Considere, amado no Senhor, que do que lemos dos discípulos
de Cristo e do pobre barco deles, e você perceberá que a
mesma coisa se aplica à verdadeira igreja e congregação de
Cristo (que nada mais é nesta vida miserável do que um barco
pobre), viajando nos mares deste mundo instável e
problemático, para o porto divino, o porto da felicidade
eterna, que Cristo preparou para os seus eleitos.
O mesmo ocorre agora, querido amado, com a Igreja aflita de
Deus no reino da Inglaterra. A toda a hora a verdadeira Palavra
de Deus sofre contradição e repugnância. E assim o vento tem
soprado contra nós, até mesmo desde o princípio do recente
espalhar do evangelho na Inglaterra. Mas a nossa viagem não
pôde ser parada, apesar de ultimamente, ventos furiosos
estarem soprando nos mares instáveis, nos quais nos
encontramos nesta hora em meio à escuridão.
Devo escrever claramente a vocês, irmãos amados, que este
vento que sempre soprou contra a Igreja de Deus, é a malícia
499
e ódio do diabo, que justamente, neste caso, é comparado ao
vento.
Porque como o vento é invisível, e ainda os discípulos pobres
sentem que aborrece e bate contra o barco deles; assim é a
pestilenta inveja do diabo, enquanto sempre trabalhando nos
corações dos ímpios, tão sutil e astuciosamente, que não pode
ser visto pelos eleitos de Deus, mas eles sentem as primeiras
explosões do vento que sopra sobre o seu barco, empurrandoo para trás.
Inglaterra, você tem experiência manifesta disso; porque, no
tempo do Rei Henrique VIII, pelo vento veemente de seis
artigos sangrentos (inventados pelo diabo), pretendia
subverter o barco pobre e os discípulos de Cristo. Entretanto
nós tivemos Jesus Cristo conosco dormindo no barco e Ele não
menosprezou o clamor fiel dos que estavam então em
dificuldade; mas pelo seu poder poderoso, bondade, graça, e
força invencível da sua santa Palavra, Ele compeliu esses
ventos maus a cessarem, e a fúria desses mares a ser
acalmada.
A terceira hora ainda não terminou; lembre que Cristo veio
aos discípulos à quarta hora, e eles não se achavam em
nenhum menor perigo do que aquele em que você se
encontra agora; porque a fé deles desfaleceu, e os seus corpos
estavam correndo perigo de vida. Mas Jesus veio quando não
O esperavam; e assim Ele fará com você caso permaneça na
profissão de fé que você fez. Isto eu ouso ser corajoso em
prometer, no nome dele, de quem você ouviu e recebeu a
verdade eterna e o evangelho glorioso; que põe também em
meu coração uma sede sincera (Deus sabe que eu não minto)
da sua salvação, e um pouco de cuidado também pela saúde e
integridade dos seus corpos.
Há muitos exemplos na Bíblia que mostram de modo muito
evidente, que quanto mais a salvação e libertação se
aproximam, mais veemente é a tentação e a dificuldade.
Isto que eu escrevo para lhes prevenir, que embora vocês
vejam a tribulação abundar ainda mais, e que nada aparecerá
senão miséria extrema, sem qualquer esperança de conforto;
contudo você não deve apostatar de Deus. E que embora às
vezes você seja movido a odiar os mensageiros de vida, e que
por isso você julgará que Deus nunca mostrará misericórdia
500
depois, queridos irmãos, como ele ajudou outros antes de
você, assim ele fará o mesmo por você.
Deus fará a tribulação e a dor abundarem, que nenhum tipo
de conforto será visto no homem, porque a intenção do
Senhor é que quando o livramento vier, a glória possa ser
somente dele, porque é o único que pode pacificar as
tempestades mais veementes.
Ergam seus ouvidos, queridos irmãos, e deixem seus
corações entenderem, que como nosso Deus é imutável,
assim a mão graciosa dele não está encurtada neste dia. Nosso
medo e dificuldade são grandes; a tempestade que sopra
contra nós é dolorosa e veemente; e parecemos estar
submergidos no fundo. Mas se nós conhecermos o perigo,
pediremos libertação, porque a mão do Senhor está mais
próxima que a espada de nossos inimigos.
Embora Pedro desfalecesse na fé, e então fosse nitidamente
merecedor de ser reprovado, contudo Cristo não deixou que
ele afundasse no mar, nem permitiu que a tempestade
continuasse. Mas primeiro, ambos entraram no barco, e
depois disso, o vento cessou, e o barco chegou sem maior
demora ao seu lugar de destino.
Ó abençoados e felizes são aqueles que aguardam
pacientemente este livramento do Senhor. O mar furioso não
os devorará. Embora eles desfaleçam, contudo Cristo não lhes
deixará para trás no mar tempestuoso, mas repentinamente
estirará o seu braço poderoso, e colocará seu discípulo no
barco entre os irmãos dele; isto é, Ele administrará o número
dos eleitos e sua igreja aflita, com quem ele continuará até ao
fim do mundo (Mt 28.20).
A majestade da sua presença silenciará este vento
tumultuoso, a malícia e a inveja do diabo, que chega até os
corações de príncipes, prelados, reis, e de tiranos terrestres
que se levantam contra Deus e o seu Ungido, Jesus Cristo (Sl
2), mas Ele conduzirá o seu rebanho extremamente atacado, à
vida e ao descanso pelos quais eles trabalham.
Embora, às vezes eles desfaleçam na sua viagem, embora
aquela fraqueza de fé lhes permite afundarem, contudo não
poderão ser tirados da mão de Cristo, e Ele não os deixará se
afogarem. Mas para a glória do seu próprio nome, Ele tem que
livrá-los, porque foram entregues pelo Pai ao seu cuidado e
501
proteção (Jo 10); e então Ele os manterá e defenderá do
pecado, da morte, do diabo e do inferno.
Deus tem mil meios pelos quais Ele livrará, apoiará e
confortará a sua Igreja aflita.
Então, querido amado em Jesus Cristo, considerando que nós
entramos nesta viagem por ordem de Cristo, considerando
que nós sentimos que o mar será contrário a nós (como antes
foi profetizado a nós), e que veremos a mesma ira de
tempestade contra nós, e também sentindo que estamos
prontos a desfalecer, e ser oprimidos por estes mares
tempestuosos; prostremo-nos diante do trono da graça, na
presença de nosso Pai divino, e na tristeza de nossos corações,
confessemos nossas ofensas; e por causa de Jesus, deixe-nos
buscar depois a libertação e misericórdia, enquanto dizemos,
com soluços e gemidos de nossos corações preocupados:
“Ó Senhor! Tua sabes que nós somos de carne, e que não
temos nenhum poder de nós mesmos para resistir à tirania
deles; e então, Ó Pai, abra os olhos da Tua misericórdia sobre
nós, e confirma o Teu trabalho em nós, que a Tua própria
misericórdia começou. Nós reconhecemos e confessamos, Ó
Deus,
que
somos
castigados
justamente,
porque
consideramos o tempo de nossa visitação
misericordiosa muito superficialmente. Teu bendito
evangelho estava em nossos ouvidos como a canção de um
amante, enquanto nos agradando durante um tempo; mas ai!
Nossas vidas não fizeram nada de acordo com os teus
estatutos e mandamentos santos. E assim, reconhecemos que
nossas iniquidades compeliram a Tua justiça para levar a luz
da Tua Palavra a todo o reino da Inglaterra. Mas Tu estás
atento, Ó Deus, que é verdade que os teus inimigos blasfemam
o teu santo nome, e nossa profissão, sem nenhuma causa. Teu
evangelho santo é chamado de heresia, e nós somos acusados
como traidores por professá-lo. Então, seja misericordioso Ó
Deus! E seja a nossa salvação neste tempo da nossa angústia
(Is 33). Embora nossos pecados nos acusem e nos condenem,
contudo faça de acordo com o Teu próprio nome. Nossos
pecados e transgressões são sem número; e ainda Tu estás no
meio de nós. Ó Deus! Embora os tiranos sujeitem nossos
corpos com regras, contudo nossas almas têm sede do
conforto da Tua Palavra (Jer 4).
502
Assim queridos amados, vigiem, orem, resistam ao diabo,
remem contra esta tempestade violenta, e brevemente o
Senhor trará conforto aos seus corações que agora estão
oprimidos com angústia e cuidado. E com alegria vocês dirão:
Vejam, este é nosso Deus, nós esperamos nele, e Ele nos
salvou. Este é nosso Deus; nós tivemos muito tempo sede pela
vinda dele, e agora devemos nos alegrar na sua salvação (Is
26). Assim seja. O grande Bispo de nossas almas, Jesus nosso
Senhor, assim fortalece e ajuda seus corações preocupados
com o conforto poderoso do Espírito Santo, que nenhum
tirano terreno, nem tormentos mundanos têm poder para
exterminar a esperança daquele reino que está preparado
para os eleitos desde a fundação do mundo por nosso Pai
divino, a quem seja todo o louvor e honra, agora e para
sempre. Amém.
Lembrem-se de mim, queridos irmãos, em suas orações
diárias. A graça de nosso Senhor Jesus seja com todos vocês.
Amém.”
Não conheço palavras melhores do que estas de John Knox
para comentar esta passagem, as quais traduzimos,
reduzimos e adaptamos de um longo texto que foi escrito pelo
reformador suíço.
Jesus em Genesaré – Mateus 14.34-36
“34 Ora, terminada a travessia, chegaram à terra em
Genesaré.
35 Quando os homens daquele lugar o reconheceram,
mandaram avisar toda aquela circunvizinhança, e trouxeramlhe todos os enfermos;
36 e rogaram-lhe que apenas os deixasse tocar a orla do seu
manto; e todos os que a tocaram ficaram curados.” (Mateus
14.34-36)
Depois de ter vindo andando sobre o mar na direção do barco
em que se encontravam os discípulos, e de ter feito cessar o
vento que lhes era contrário, nosso Senhor chegou com eles
ao ponto de destino: a terra de Genesaré.
Os habitantes daquela região o reconheceram e logo se
apressaram em avisar a toda a circunvizinhança, para que Lhe
trouxessem todos os enfermos, e Lhe rogaram que lhes
503
deixasse tocar a orla do seu manto, e tendo nosso Senhor
consentido com o pedido deles, todos os que a tocaram
ficaram curados.
Não sabemos quantos destes que tiveram fé para serem
curados em seus corpos, tiveram a fé que salva, porque é
importante afirmar que depois dos três anos do seu
ministério terreno, apenas cerca de 120 discípulos haviam
perseverado em seguir ao Senhor, conforme registro que
lemos no livro de Atos.
Nós vemos que muitos podem ser beneficiados pelo
evangelho, pela ação dos ministros do Senhor, e no entanto
não alcançarem a salvação de suas almas.
Por isso, importa que não busquemos apenas ao Senhor para
a solução de nossas necessidades naturais, materiais,
seculares, mas sobretudo para a salvação de nossas almas.
É uma lástima procurar Aquele que pode nos curar se apenas
tocarmos na orla da sua veste e não o tocarmos com o
arrependimento e a fé de obediência à sua vontade para que
sejamos salvos, porque tudo Lhe é possível, e não se negará a
salvar a qualquer que se arrependa de seus pecados, e creia
nele como Salvador e Senhor de sua vida.
504
Mateus 15
O Que Contamina é o que Sai do Coração – Mateus 15.1-20
“1 Então chegaram a Jesus uns fariseus e escribas vindos de
Jerusalém, e lhe perguntaram:
2 Por que transgridem os teus discípulos a tradição dos
anciãos? pois não lavam as mãos, quando comem.
3 Ele, porém, respondendo, disse-lhes: E vós, por que
transgredis o mandamento de Deus por causa da vossa
tradição?
4 Pois Deus ordenou: Honra a teu pai e a tua mãe; e, Quem
maldisser a seu pai ou a sua mãe, certamente morrerá.
5 Mas vós dizeis: Qualquer que disser a seu pai ou a sua mãe:
O que poderias aproveitar de mim é oferta ao Senhor; esse de
modo algum terá de honrar a seu pai.
6 E assim por causa da vossa tradição invalidastes a palavra de
Deus.
7 Hipócritas! bem profetizou Isaías a vosso respeito, dizendo:
8 Este povo honra-me com os lábios; o seu coração, porém,
está longe de mim.
9 Mas em vão me adoram, ensinando doutrinas que são
preceitos de homem.
10 E, clamando a si a multidão, disse-lhes: Ouvi, e entendei:
11 Não é o que entra pela boca que contamina o homem; mas
o que sai da boca, isso é o que o contamina.
12 Então os discípulos, aproximando-se dele, perguntaramlhe: Sabes que os fariseus, ouvindo essas palavras, se
escandalizaram?
13 Respondeu-lhes ele: Toda planta que meu Pai celestial não
plantou será arrancada.
14 Deixai-os; são guias cegos; ora, se um cego guiar outro cego,
ambos cairão no barranco.
15 E Pedro, tomando a palavra, disse-lhe: Explica-nos essa
parábola.
16 Respondeu Jesus: Estai vós também ainda sem entender?
17 Não compreendeis que tudo o que entra pela boca desce
pelo ventre, e é lançado fora?
18 Mas o que sai da boca procede do coração; e é isso o que
contamina o homem.
505
19 Porque do coração procedem os maus pensamentos,
homicídios,
adultérios,
prostituição,
furtos,
falsos
testemunhos e blasfêmias.
20 São estas as coisas que contaminam o homem; mas o
comer sem lavar as mãos, isso não o contamina.” (Mateus 15.120)
Nós temos aqui o registro do confronto havido entre Jesus e os
escribas e fariseus que vieram de Jerusalém ter com Ele,
quando ainda se encontrava na Galileia.
Esperava-se que estes de Jerusalém, onde se situava o templo
e a grande concentração de sacerdotes, escribas, fariseus e
saduceus, fossem mais esclarecidos quanto à lei, do que os
poucos religiosos da região da Galileia, mas eles se revelaram
ainda mais cegos do que estes.
Quem se permitiria ser guiado por um cego? Não seriam
somente aqueles que são também cegos e que não sabem que
o que lhes dirige é tão cego quanto eles?
Este era o caso do povo judeu sendo conduzido pelos
sacerdotes, escribas e fariseus dos dias de Jesus.
E quando há este consentimento e desejo de permanecer na
cegueira; em justificar a cegueira, e este ajuste mútuo entre
os que guiam e os que são guiados, qual é posição de nosso
Senhor em relação a isto?
Eles devem ser deixados seguindo o seu caminho até que
venham a cair no abismo espiritual eterno que os aguarda,
conforme nosso Senhor disse aos seus discípulos no verso 14.
Quando se fecha os olhos para a verdade, e nos conduzimos
pelas tradições de homens, e defendemos estas tradições,
contra a verdade revelada de Deus e a sua vontade, como estão
exatamente registradas na Bíblia, ficamos expostos a este
perigo de sermos cegos que estão a caminho da condenação,
seja como guias, seja como aqueles que são guiados.
Os escribas e fariseus não somente invalidavam a Palavra de
Deus com a tradição deles, como também descumpriam os
seus mandamentos, como o citado por Jesus de se honrar os
pais, a pretexto de serem cumpridas as tradições que eles
acrescentaram à Lei.
Não importava se determinados mandamentos da Lei fossem
descumpridos, desde que a tradição deles fosse observada.
506
Por isso justificavam as pessoas que não cuidavam de seus
pais, desde que os recursos que deveriam ser usados para a
provisão deles fosse consagrado como oferta no templo; uma
vez que os líderes religiosos viviam de tais ofertas.
Eles estavam tão somente preocupados com o cumprimento
dos ritos e cerimônias que haviam acrescentado à Lei, como
este mandamento religioso criado por eles de se lavar as mãos
toda vez que se fosse comer alguma coisa, para que não
fossem contaminados religiosamente por alguma impureza
que houvesse nas mãos.
Não faziam isto por motivos sanitários, mas religiosos, e por
isso foram repreendidos por nosso Senhor.
Então Ele se apressou em aplicar o ensino de que nada do que
comemos pode nos contaminar diante de Deus, e muito
menos pelo fato de termos lavado ou não nossas mãos, porque
não há nenhum pecado nisto; mas sim com as coisas invisíveis
que saem de nós e que são manifestações do pecado, como os
exemplos que nosso Senhor citou: “maus pensamentos,
homicídios,
adultérios,
prostituição,
furtos,
falsos
testemunhos e blasfêmias.”
Tudo isto procede do coração, do interior, mas os escribas e
fariseus não podiam enxergar isto porque se preocupavam
somente com o que era exterior; uma vez que caso dessem
ênfase ao estado interior do coração, a condição pecaminosa
deles seria revelada, e isto não era obviamente, do interesse
deles, porque tinham fama junto ao povo, de serem homens
santos, que conheciam a Lei, e nem sequer isto eles
conheciam de fato, como convinha, e também enganavam o
povo quanto a este falso conhecimento que eles possuíam da
Lei.
Por isso seriam arrancados por Deus, porque eram plantas
que não haviam sido plantadas por Ele.
Não somente as opiniões corrompidas e práticas
supersticiosas dos fariseus, mas a própria seita deles, estavam
destinadas a desaparecer, segundo esta palavra proferida por
nosso Senhor, e desde há muitos séculos tal palavra teve
cumprimento.
A lavoura de Deus neste mundo é constituída somente por
aqueles que se encontram na Igreja de Cristo. Todas as demais
plantas serão cortadas e queimadas no dia do Juízo.
507
A mulher Cananeia (Paralelo: Mc 7.24-30)
“21 Ora, partindo Jesus dali, retirou-se para as regiões de Tiro
e Sidom.
22 E eis que uma mulher cananeia, provinda daquelas
cercanias, clamava, dizendo: Senhor, Filho de Davi, tem
compaixão de mim, que minha filha está horrivelmente
endemoninhada.
23 Contudo ele não lhe respondeu palavra. Chegando-se, pois,
a ele os seus discípulos, rogavam-lhe, dizendo: Despede-a,
porque vem clamando atrás de nós.
24 Respondeu-lhes ele: Não fui enviado senão às ovelhas
perdidas da casa de Israel.
25 Então veio ela e, adorando-o, disse: Senhor, socorre-me.
26 Ele, porém, respondeu: Não é bom tomar o pão dos filhos e
lançá-lo aos cachorrinhos.
27 Ao que ela disse: Sim, Senhor, mas até os cachorrinhos
comem das migalhas que caem da mesa dos seus donos.
28 Então respondeu Jesus, e disse-lhe: ó mulher, grande é a
tua fé! seja-te feito como queres. E desde aquela hora sua filha
ficou sã.”
Como já dissera Spurgeon: “A história desta mulher cananita
é plena de significado e há muitas preciosas lições que podem
ser aprendidas através dela. Mas pretendemos enfocá-la com
um único objetivo, a saber, o de encorajar aqueles que têm fé
suficiente para buscar a Jesus, mas não têm contudo o
bastante, para a sua alegria e paz, para encontrá-lo.
Esta mulher disse uma palavra que nos deixa admirados, pois
quando Cristo a comparou a um cachorro, ela consentiu nisto,
e disse: “Sim, Senhor, porém os cachorrinhos comem das
migalhas que caem da mesa dos seus donos.”. E diante destas
palavras Jesus curou a sua filha e lhe disse as palavras do
nosso texto. É o modo do Senhor, às vezes, nos fazer esperar
até que estejamos completamente exaustos, e não podemos
fazer nada mais; então ele entra com a plenitude do seu poder
divino, e nos dá o que nós temos importunamente buscado
em suas mãos. Nossa necessidade extrema é a sua
oportunidade.”
O que Jesus disse a esta mulher começou com uma
exclamação, como se ele fosse atingido por algo nela que o
508
agradou muitíssimo. Ele disse: “Ó mulher, grande é a tua fé!”.
Note que ele falou da fé dela, e somente dela. É para isso que
meu Senhor está olhando agora. Ele vem em volta e olha para
você, para ver se você tem fé nele. Há vários pensamentos
sugeridos nisto, que deveria encorajar os que estão buscando
a Cristo.
Ele pode espiar os começos da fé. "Se a tua fé for como um grão
de mostarda” ele verá isto, e aceitará isto. Se tens começado a
crer somente agora que Jesus é o Cristo, e entretanto a
confiança nele é verdadeira, a tua fé é fraca como um bebê
que nada pode fazer a não ser alimentar-se no peito de sua
mãe, mas Jesus vai contemplar este começo. Ele é o "Autor"
como também "o Consumador” de nossa fé.
Mas Ele fica muito contente quando ele vê uma grande fé.
Quando um grande pecador diz: "eu creio que ele é um
Salvador grande o bastante para me salvar", isto traz alegria ao
coração de Cristo. Cristo ama uma grande fé. Ele merece
grande fé.
Considere bem que está ao contrário da natureza do Senhor
recusar abençoar. Ele é cheio de amor; e se ele recusar um
pecador durante algum tempo, é somente porque está certo e
sábio em agir assim. Mas o coração dele anseia por todo
pecador que o busca. Ele o quer mais do que você o quer. Ele
deseja muito além de você. Ele deseja abençoá-lo. Ele tem que
fazer assim; é a natureza dele fazer assim.
Ele tem que lhe dar uma resposta confortável brevemente,
novamente, porque é contrário à sua glória recusar. Se ele
permitisse que um pecador que o busca morresse, que grande
dificuldade isso seria para Ele. Ele não disse que aquele que
viesse a Ele não seria lançado fora por Ele, e que de nenhum
modo o perderia? E se pudesse ser provado que Cristo já
expulsou uma única alma que veio a ele ? Isto não mancharia
a sua honra e glória. Nós não poderíamos continuar crendo
nele. Pereça o pensamento de uma tal coisa!
A Segunda Multiplicação dos Pães – Mateus 15.29-39
“29 Partindo Jesus dali, chegou ao pé do mar da Galileia; e,
subindo ao monte, sentou-se ali.
509
30 E vieram a ele grandes multidões, trazendo consigo coxos,
aleijados, cegos, mudos, e outros muitos, e lhos puseram aos
pés; e ele os curou;
31 de modo que a multidão se admirou, vendo mudos a falar,
aleijados a ficar sãos, coxos a andar, cegos a ver; e glorificaram
ao Deus de Israel.
32 Jesus chamou os seus discípulos, e disse: Tenho compaixão
da multidão, porque já faz três dias que eles estão comigo, e
não têm o que comer; e não quero despedi-los em jejum, para
que não desfaleçam no caminho.
33 Disseram-lhe os discípulos: Donde nos viriam num deserto
tantos pães, para fartar tamanha multidão?
34 Perguntou-lhes Jesus: Quantos pães tendes? E
responderam: Sete, e alguns peixinhos.
35 E tendo ele ordenado ao povo que se sentasse no chão,
36 tomou os sete pães e os peixes, e havendo dado graças,
partiu-os, e os entregava aos discípulos, e os discípulos à
multidão.
37 Assim todos comeram, e se fartaram; e do que sobejou dos
pedaços levantaram sete alcofas cheias.
38 Ora, os que tinham comido eram quatro mil homens além
de mulheres e crianças.
39 E havendo Jesus despedido a multidão, entrou no barco, e
foi para os confins de Magadã.” (Mateus 15.29-39)
Ao retornar dos termos de Tiro e Sidom, nosso Senhor chegou
ao pé do Mar da Galileia e subiu o monte.
“E vieram a ele grandes multidões, trazendo consigo coxos,
aleijados, cegos, mudos, e outros muitos, e lhos puseram aos
pés; e ele os curou.”
Isto durou por espaço de três dias, e tendo compaixão deles,
nosso Senhor não quis despedi-los em jejum, para que não
desfalecessem pelo caminho, ao retornarem às suas casas.
Os discípulos, que já tinham testemunhado anteriormente, o
milagre da multiplicação de 5 pães e 2 peixes, com os quais
foram alimentados cerca de cinco mil homens, além de
mulheres e crianças, não tiveram fé suficiente para crer na
repetição do mesmo milagre, e mais uma vez questionaram a
Jesus quanto à improcedência, segundo eles, do desejo
manifestado por Ele, dizendo:
510
“Donde nos viriam num deserto tantos pães, para fartar
tamanha multidão?”
Todavia, nosso Senhor não se ocupou em lhes dar qualquer
tipo de esclarecimento ou repreensão e foi direto ao lhes
perguntar quantos pães eles tinham. Responderam que
apenas sete, e alguns peixinhos.
Muitas vezes, a providência divina entrará na vida dos cristãos
sem lhes pedir licença, ou consultá-los se acham conveniente
ou não o que necessita ser feito, e Deus lhes abençoará, apesar
do endurecimento deles para poderem compreender a sua
mente divina.
Graças a Deus, que Ele opera de tal modo, senão estaríamos
perdidos em nossas necessidades, dificuldades e problemas,
que Ele resolve pela sua livre iniciativa e misericórdia, muitas
vezes multiplicando os poucos recursos que possuímos, tal
como fizera com aqueles sete pães e alguns peixinhos, para
alimentar com eles cerca de quatro mil homens, além de
mulheres e crianças.
Depois de ter dado das migalhas que caíam da sua mesa à
mulher cananeia, nosso Senhor deu um grande banquete aos
filhos de Israel, porque o seu ministério terreno, deveria ser
realizado junto aos judeus, pelas razões que já comentamos
anteriormente, em outras passagens.
Desta vez, foram recolhidos sete cestos de sobras, depois que
todos se fartaram.
O Senhor proveu todas as necessidades daquela multidão e
partiu através do mar da Galileia para outra região, a de
Magadã.
511
Mateus 16
Os Fariseus e Saduceus Pedem um Sinal – Mateus 16.1-4
“1 Então chegaram a ele os fariseus e os saduceus e, para o
experimentarem, pediram-lhe que lhes mostrasse algum
sinal do céu.
2 Mas ele respondeu, e disse-lhes: Ao cair da tarde, dizeis:
Haverá bom tempo, porque o céu está rubro.
3 E pela manhã: Hoje haverá tempestade, porque o céu está de
um vermelho sombrio. Ora, sabeis discernir o aspecto do céu,
e não podeis discernir os sinais dos tempos?
4 Uma geração má e adúltera pede um sinal, e nenhum sinal
lhe será dado, senão o de Jonas. E, deixando-os, retirou-se.”
(Mateus 16.1-4)
Mateus registra um novo pedido de sinal a Jesus, agora tanto
da parte dos fariseus, quanto dos saduceus, os dois maiores
partidos religiosos que existiam em Israel nos dias do Senhor.
Eles pediram um sinal do céu, ou seja, algo parecido com o
que Deus havia feito nos dias de Moisés, diante de toda a nação
israelita, reunida ao pé do Monte Sinai, quando eles não
somente viram as densas nuvens, o fogo e os relâmpagos que
envolviam o monte, como também ouviram trovões, e a voz do
próprio Deus pronunciando os dez mandamentos.
Então eles queriam que Jesus comprovasse que havia sido
enviado a Israel, tanto como Moisés no passado, através de
algum sinal desta magnitude.
Já comentamos anteriormente, que a quase totalidade
daquela geração dos dias de Moisés, era formada por pessoas
incrédulas que haviam tombado no deserto, e nenhuma das
maravilhas que Deus havia feito nos dias deles, desde os
grandes juízos que havia manifestado sobre o Egito na forma
de pragas, e todo o cuidado providencial que havia
demonstrado para com eles, como por exemplo o maná que
eles colheram por cerca de 40 anos, que lhes vinha
diretamente do céu, em nada contribuíram para a conversão
deles.
Continuaram no endurecimento do pecado e não dispuseram
seus corações para guardarem os mandamentos que Deus
lhes havia dado através de Moisés.
512
A geração dos dias do ministério de nosso Senhor não era
melhor do que a que foi contemporânea de Moisés. Então,
nenhuma maravilha extraordinária seria feita diante dos
olhos de toda a nação, quando o evangelho começasse a ser
pregado a eles.
Na verdade, isto não seria feito para nenhuma nação do
mundo, porque o modo de aplicação do evangelho às vidas é
pelo trabalho silencioso do Espírito Santo nos corações, pela
fé que é despertada pela pregação do evangelho.
Os homens devem aprender a discernir os sinais do tempo,
pelo cumprimento de todas as coisas que haviam sido
prometidas por Deus, desde os dias mais remotos,
especialmente os juízos que trouxe sobre o mundo, e
particularmente sobre Israel, por meio do ministério dos
profetas.
A expulsão deles da própria terra, nos cativeiros assírio e
babilônico, e a sua restauração, prometidas, na própria Lei de
Moisés, era uma evidência mais do que suficiente de que
havia chegado o tempo da sua visitação pelo Messias
prometido.
Os judeus sabiam discernir os sinais do tempo natural, mas
não se aplicavam em discernir os sinais do tempo espiritual e
sobrenatural. Como poderiam fazê-lo, se o coração deles
estava somente nas coisas terrenas, e não nas celestiais?
Além disso, eles estavam desprezando todos os milagres e
maravilhas que Jesus estava realizando, bem como não
abriram seus corações para entenderem que ninguém, senão,
um ser divino, poderia falar as coisas que Ele estava pregando.
Então, nenhum outro sinal especial lhes seria dado, além
daqueles que Deus havia previsto em sua soberania, e que
culminariam com a ressurreição de Cristo, depois de
passados três dias a contar da sua morte.
O Fermento dos Fariseus e Saduceus – Mateus 16.5-12
“5 Quando os discípulos passaram para o outro lado,
esqueceram-se de levar pão.
6 E Jesus lhes disse: Olhai, e acautelai-vos do fermento dos
fariseus e dos saduceus.
513
7 Pelo que eles arrazoavam entre si, dizendo: É porque não
trouxemos pão.
8 E Jesus, percebendo isso, disse: Por que arrazoais entre vós
por não terdes pão, homens de pouca fé?
9 Não compreendeis ainda, nem vos lembrais dos cinco pães
para os cinco mil, e de quantos cestos levantastes?
10 Nem dos sete pães para os quatro mil, e de quantas alcofas
levantastes?
11 Como não compreendeis que não nos falei a respeito de
pães? Mas guardai-vos do fermento dos fariseus e dos
saduceus.
12 Então entenderam que não dissera que se guardassem, do
fermento dos pães, mas da doutrina dos fariseus e dos
saduceus.” (Mateus 16.5-12)
No texto paralelo do evangelho de Marcos, nós vemos que
logo depois de Jesus ter repreendido os fariseus e saduceus,
ele retornou através do mar da Galileia, para a cidade de
Betsaida, que ficava do outro lado do referido mar.
Foi neste trajeto, quando se encontrava no barco com seus
discípulos, que lhes disse para se acautelarem do fermento
dos fariseus e dos saduceus.
O espírito de nosso Senhor ainda estava ponderando a causa
da incredulidade dos fariseus e dos saduceus, e sabendo que
a doutrina e a hipocrisia deles poderia causar o mesmo
endurecimento de coração em seus discípulos, fez-lhes tal
advertência.
Ninguém está livre de perder o que tem alcançado em Cristo,
com esforço.
Lembramos das palavras de Lutero, em seu comentário da
Epístola aos Gálatas, quanto a isto, quando permitimos que
falsas doutrinas penetrem o seio da Igreja.
São palavras do reformador:
“Paulo expressa no verso 6 de Gálatas: “Maravilho-me de que
tão depressa passásseis daquele que vos chamou à graça de
Cristo para outro evangelho;”. O seu lamento é pelo fato de
quão difícil é para a mente reter uma fé sã e firme.
Um homem trabalha durante uma década, antes dele ter
sucesso treinando a sua pequena igreja para que ela possa
estar em ordem, e então algum potro ignorante e viciado age
514
para subverter num só minuto todo o trabalho paciente de
anos.
Pela graça de Deus nós efetuamos aqui em Wittenberg a
forma de uma igreja cristã. A Palavra de Deus é ensinada como
deveria ser, os sacramentos são administrados, e tudo
prospera.
Esta condição feliz, alcançada em muitos anos de trabalhos
árduos, qualquer lunático poderia deteriorar num só
momento. Isto aconteceu nas igrejas da Galácia, que Paulo
tinha trazido em vida em trabalho espiritual. Porém, logo em
seguida à partida dele, estas igrejas da Galácia foram lançadas
em confusão pelos falsos apóstolos.
A igreja é uma planta tenra que deve ser cuidada.
Pessoas ouvem um par de sermões, esquadrinham algumas
páginas da Santa Escritura, e pensam que eles sabem tudo.
Eles são corajosos porque eles nunca passaram por qualquer
tentação da fé. Sem o Espírito Santo, eles ensinam o que lhes
agrada contanto que soe bem às pessoas comuns que sempre
estão prontas para se unir a algo novo.
Nós temos que vigiar em todo o tempo porque o diabo semeia
o joio entre o trigo enquanto nós dormimos.
É interessante observar que o apóstolo não diz que estava
maravilhado com o quanto os gálatas eram instáveis e infiéis,
mas que tivessem se afastado tão rapidamente.
Ele não se dirigiu a eles como malfeitores, mas como pessoas
que haviam sofrido uma grande perda.
Ele não os condenou mas aqueles que os haviam afastado do
evangelho.
Mas Paulo foi claro e honesto em dizer-lhes que caso tivessem
se firmado melhor na Palavra eles não poderiam ter sido
afastados tão facilmente.”
Era este tipo de cuidado a que se refere Lutero, que nosso
Senhor queria inculcar nos discípulos, não apenas em relação
à apostasia pessoal deles, mas sobretudo em relação aos
prejuízos que seriam trazidos à Igreja que teriam o encargo de
supervisionar, depois da sua partida para a glória celestial.
Jesus havia acabado de repreender os fariseus e os saduceus
por não saberem discernir os sinais relativos às dispensações
do tempo espiritual, e agora, Ele é surpreendido com a mesma
falta de discernimento que ainda havia nos discípulos, porque
515
aos lhes falar de fermento dos fariseus e saduceus, pensaram
que estava se referindo a pão natural.
Ele lhes repreendeu quanto a estarem endurecidos, porque
haviam visto em duas ocasiões distintas, o modo sobrenatural
como havia alimentado milhares de pessoas, com apenas
poucos pães e peixes, que Ele havia multiplicado
miraculosamente, e como poderia estar preocupado com a
falta de pão na viagem que estavam fazendo para o outro lado
do mar da Galileia?
Muitas vezes ficamos tão envolvidos com aquilo que é
material, que nos tornamos cegos quanto ao grande poder do
Senhor para prover todas as coisas, ainda que tenhamos tido
o privilégio de testemunhar os seus feitos poderosos
recentemente.
A fé demanda vigilância espiritual.
Se descuidamos na vigilância, a fé nos faltará e não
poderemos discernir as coisas espirituais de modo
conveniente.
Devemos sempre trazer em memória as muitas misericórdias
do Senhor das quais fomos alvo, para que no dia da provação,
não nos esqueçamos de que Ele permanece o mesmo, não
muda, e que por fim tornará a nos fazer o bem, como sempre
fizera antes.
A Confissão de Pedro – Mateus 16.13-20)
“13 Tendo Jesus chegado às regiões de Cesareia de Felipe,
interrogou os seus discípulos, dizendo: Quem dizem os
homens ser o Filho do homem?
14 Responderam eles: Uns dizem que é João, o Batista; outros,
Elias; outros, Jeremias, ou algum dos profetas.
15 Mas vós, perguntou-lhes Jesus, quem dizeis que eu sou?
16 Respondeu-lhe Simão Pedro: Tu és o Cristo, o Filho do Deus
vivo.
17 Disse-lhe Jesus: Bem-aventurado és tu, Simão Barjonas,
porque não foi carne e sangue que to revelou, mas meu Pai,
que está nos céus.
18 Pois também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra
edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não
prevalecerão contra ela;
516
19 dar-te-ei as chaves do reino dos céus; o que ligares, pois, na
terra será ligado nos céus, e o que desligares na terra será
desligado nos céus.
20 Então ordenou aos discípulos que a ninguém dissessem
que ele era o Cristo.” (Mateus 16.13-20)
Os discípulos tinham dificuldades no início para discernirem
que nosso Senhor era mais do que um simples homem,
porque para conhecer a sua divindade, é necessário ter uma
revelação especial do Espírito Santo para tal propósito.
E é isto o que vemos nesta passagem.
Ele comprovaria para os discípulos como todos erravam
quanto ao discernimento da sua procedência divina, aos lhes
perguntar o que diziam os homens ser o Filho do homem?
Ele não perguntou o que diziam ser o Filho de Deus, mas o
Filho do homem, para não lhes induzir a uma resposta
segundo a carne, e não segundo o espírito.
Nosso Senhor usou o mesmo chamativo que fora feito por
Deus a alguns profetas, especialmente Ezequiel, que era
chamado constantemente de filho do homem.
Eles responderam que diziam que Ele era João, o Batista, ou
Elias, Jeremias, ou algum dos profetas.
Isto era o dizer comum do povo em relação a Ele.
Então fez a pergunta diretamente aos próprios discípulos para
que lhe respondessem quem achavam que Ele era.
Pedro se adiantou e respondeu por eles, dizendo: “Tu és o
Cristo, o Filho do Deus vivo.”
Ele não poderia ter dito isto por si mesmo. Somente pela
revelação direta dos céus, da parte de Deus Pai, poderia Pedro
ter dado tal resposta.
Por isso o Senhor disse que ele, Pedro, era bem-aventurado,
porque não dera tal resposta pelo que ouviu dos homens, mas
pela revelação que lhe fora feita a partir dos céus.
É muito comum que se exija dos cristãos comportamentos e
respostas que não se encontram na própria capacidade deles
para serem dados.
Se o Senhor não for com eles, se não forem capacitados e
assistidos pela graça sobrenatural dos céus, nada poderão
fazer, senão agir segundo o homem.
Paulo havia aprendido que coisas espirituais se discernem
espiritualmente.
517
Então em vez de ficarmos na expectativa de que algum cristão
que não esteja acertando o alvo, o faça por si mesmo, ou então
que lhe exortemos a fazer o que é necessário com seus
próprios recursos, deveríamos antes, orar por ele, para que
Deus lhe conceda graça e revelação, para que possa agir em
conformidade com a sua vontade.
Pedro não errou na afirmação que fizera, porque foi assistido
pela graça que lhe revelou que nosso Senhor era o Messias, o
Cristo, o Ungido, prometido pelos profetas. Que era o Filho
unigênito do Deus vivo, sendo também divino como o seu Pai.
Isto lhe veio por revelação do Espírito ao seu espírito. De outro
modo, pouco lhe adiantaria examinar as Escrituras, como
faziam os escribas e fariseus para saberem quem seria o
Messias, porque erraria o alvo tanto como eles, porque não
tinham nenhuma revelação da parte de Deus aos seus
espíritos.
Pessoas que podem discernir as coisas espirituais, celestiais e
divinas, são as únicas às quais nosso Senhor pode encarregar
dos assuntos da sua Igreja, porque ela é uma agência divina na
terra, ligando ou desligando aqui, tudo o que tiver sido ligado
ou desligado nos céus.
Este é o único modo das portas do inferno não prevalecerem
contra a Igreja, a saber, tendo à sua frente líderes que saibam
discernir as coisas espirituais, especialmente a Pessoa do
próprio Cristo.
Quando nosso Senhor disse “tu és Pedro” a palavra
empregada no original grego é “Petros”, para Pedro, que
significa pedrinha. E quando disse “sobre esta pedra edificarei
a minha igreja”, usou a palavra grega “petra” para “pedra”,
cujo significado é rocha. Então a pedra ou rocha sobre a qual a
Igreja é edificada é o próprio Cristo, e não Pedro.
Como este conhecimento de ser nosso Senhor, o Cristo,
palavra grega para Ungido, equivalente à palavra hebraica
Messias, é pessoal e íntimo, por revelação do Espírito, tal
como ocorrera com Pedro, recomendou a seus discípulos que
a ninguém dissessem ser Ele o Cristo, porque, primeiro, não
dariam crédito ao testemunho deles, porque como afirmamos
antes, tal conhecimento é por revelação espiritual, e não por
mera informação intelectual, e além disso isto só serviria para
precipitar uma perseguição ainda maior contra Ele, do que a
518
que já vinha sofrendo, especialmente por parte dos escribas e
fariseus, que certamente afirmariam que estava
blasfemando.
Com a declaração que fizera, nosso Senhor estava dizendo que
arrancaria as chaves do reino dos céus que se encontravam
nas mãos dos sacerdotes e demais líderes religiosos de Israel,
que haviam falhado na missão deles em servirem a Deus, e
daria estas chaves para a sua Igreja, representada na ocasião
na pessoa de Pedro, que Lhe dera a resposta que lhe veio dos
céus.
Pedro é Repreendido – Mateus 16.21-23
“21 Desde então começou Jesus Cristo a mostrar aos seus
discípulos que era necessário que ele fosse a Jerusalém, que
padecesse muitas coisas dos anciãos, dos principais
sacerdotes, e dos escribas, que fosse morto, e que ao terceiro
dia ressuscitasse.
22 E Pedro, tomando-o à parte, começou a repreendê-lo,
dizendo: Tenha Deus compaixão de ti, Senhor; isso de modo
nenhum te acontecerá.
23 Ele, porém, voltando-se, disse a Pedro: Para trás de mim,
Satanás, que me serves de escândalo; porque não estás
pensando nas coisas que são de Deus, mas sim nas que são dos
homens.” (Mateus 16.21-23)
O mesmo Pedro que havia recebido a revelação dos céus sobre
a Pessoa de Cristo, mostrou nesta passagem, que
continuamos sujeitos à consideração dos propósitos e
realidades divinos, segundo o modo de ver do homem natural,
que não pode discernir as coisas do Espírito.
Se antes, ele foi alvo do elogio do Senhor, por ter afirmado ser
Ele o Cristo, o Filho do Deus vivo, agora ele é repreendido por
estar pensando não segundo Deus quanto às coisas
espirituais, mas segundo os homens naturais, que não podem
discernir senão as coisas da terra, e não as dos céus.
Não foi nenhum outro discípulo que não tivera a revelação
sobre a Pessoa divina de Cristo que tentou dissuadi-lo de
sofrer nas mãos dos anciãos de Israel, dos principais
sacerdotes e escribas, e que fosse morto para ressuscitar ao
terceiro dia, mas o próprio Pedro que tivera tal revelação.
519
Desta vez, Pedro não foi assistido por nenhuma revelação
especial para poder entender que o Messias deveria sofrer,
morrer e ressuscitar.
Pedro, usou o seu modo de entendimento meramente carnal
quanto à pessoa do Messias, querendo talvez, lembrar ao
Senhor, que o Messias não poderia morrer, e muito menos
numa cruz, como maldito de Deus.
O Senhor aproveitaria a ocasião para lhes ensinar que a sua
morte era a morte do próprio Pedro e de todos os que nele
creem, e assim, Pedro também teria uma cruz para carregar,
para que nela fosse crucificado o seu velho homem.
Todavia, Pedro, viria a ter tal iluminação e capacitação do
Espírito, posteriormente, especialmente no dia de
Pentecostes, quando o vemos fazendo um discurso ousado e
claro quanto aos motivos da morte e da ressurreição de nosso
Senhor.
Se antes, a revelação que Pedro havia recebido lhe veio da
parte do Espírito Santo, agora, ao que tudo indica, pelas
palavras de repreensão dirigidas por nosso Senhor a ele,
falara por inspiração do próprio Satanás. Assim, não foi Pedro
que foi chamado de Satanás, mas o próprio diabo, que lhe
estava inspirando a dizer tais palavras a nosso Senhor.
Pedro ainda não conhecia o mistério da cruz, e por isso o diabo
o usou.
Aquela cruz onde Jesus morreu é a cruz onde todos os cristãos
foram crucificados, juntamente com Ele, aos olhos de Deus,
porque aquela morte foi considerada, para nossa justificação,
como sendo a nossa própria morte.
Sofrimentos e tribulações também estão determinados por
Deus para todos aqueles que estão identi
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