Greve de médicos e "pressão" para adesão - BuscaLegis

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Greve de médicos e "pressão" para adesão:
Abrigo do Código de Ética Médica ou constrangimento ilegal?
Fernando Martins Zaupa*
INTRODUÇÃO
Como infelizmente vem a ocorrer nos meios públicos, em razão da mais variada
sorte de mazelas e interesses, também a classe médica se vê, vez ou outra, compelida a
tomar medidas visando a regularização de sua situação, mormente frente a questões de máadequação e falta de estrutura dos serviços de atendimento médico-hospitalar.
Ocorre que, em alguns casos, na busca de adesão de colegas, muitos médicos ou
grupos se valem de expedientes equivocados, ilegais ou até mesmo criminosos.
Assim, eis o presente texto, com a finalidade de demonstrar, em termos jurídicos, o
excesso praticado por alguns médicos, na busca de arregimentação de colegas, para adesão
à greve, bem como suas conseqüências legais.
DA APLICAÇÃO DA LEI
Como premissa básica do ordenamento jurídico pátrio, vale lembrar que a
Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso II, estabelece:
"Art. 5º (omissis), II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer
alguma coisa senão em virtude de lei".
O preceito constitucional em tela, que traz ao ordenamento jurídico nacional o
princípio da legalidade, é claro em consignar que está possibilitado a qualquer cidadão
recusar imposições que não sejam previstas em lei.
O direito de greve, como é sabido, está previsto igualmente na Constituição Federal,
no art. 9º e art. 37, inciso VII.
O artigo 24 do Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 1.246/88), deixa claro o
direito do médico de "suspender suas atividades, individual ou coletivamente, quando a
instituição pública ou privada para a qual trabalhe não oferecer condições mínimas
para o exercício profissional ou não o remunerar condignamente, ressalvadas as
situações de urgência e emergência, devendo comunicar imediatamente sua decisão ao
Conselho Regional de Medicina".
É estabelecido, assim, pelo Código de Ética Médica, o direito dos médicos
reivindicarem melhores condições de trabalho, desde que o movimento paredista não
prejudique o atendimento mínimo à população. [01]
Não se adentrará, pela obviedade da matéria, na discussão acerca da essencialidade
do serviço (Lei nº 7.783/89) prestado pelo médico em órgãos públicos e,
conseqüentemente, a devida limitação ao direito de greve.
No entanto, é valido mencionar que o próprio Código de Ética, no Capítulo III (da
"responsabilidade profissional"), em seu art. 35, regra que: "É vedado ao médico: deixar
de atender em setores de urgência e emergência, quando for de sua obrigação faze-lo,
colocando em risco a vida de pacientes, mesmo respaldado por decisão majoritária da
categoria"(grifamos)
Como exemplo da aplicabilidade de tais dispositivos, cita-se o caso apreciado pelo
Conselho Regional de Medicina do Ceará, no julgamento de procedimento administrativo,
onde foi emitido o seguinte parecer:
"PARECER CREMEC Nº 19/2001
03/09/2001 ASSUNTO: Greve de Médicos Residentes: aspectos éticos.
RELATOR: Conselheiro Dalgimar Beserra de Menezes
"EMENTA: 1. O médico residente é responsável, ética e legalmente, pelos atos
médicos que pratica ou deixa de praticar, igualmente a qualquer outro médico.
2. O médico residente tem o direito de fazer greve, mas deve observar o
disposto nos artigos 24 e 35 do Código de Ética Médica.
3. Durante a greve, os responsáveis pelo funcionamento mínimo dos setores
essenciais são os médicos do corpo clínico permanente, do staff, com vínculo com a
instituição. No entanto, todo médico tem o dever de zelar pela continuidade da
assistência aos pacientes, e assim os médicos residentes em greve devem ter a
diligência e a cautela de fazer a transferência formal dos pacientes sob seus cuidados
para o preceptor. Os médicos residentes podem ainda contribuir com parte do seu
contingente para as atividades de plantões ou de assistência aos pacientes, pelo menos
provisoriamente, se entender que sua ausência pode ser prejudicial aos pacientes.
4. A regulamentação da Residência Médica exige a presença física do
preceptor no serviço, orientando e supervisionando o residente. Contudo, se este
assume, sozinho, o ato médico, em plantões ou na assistência a pacientes, é
responsável pelo que fizer ou deixar de fazer."(grifamos)
Observa-se que, jamais, poderá o médico, inclusive o médico residente, invocar
orientação ou mesmo determinação superior para se escusar do dever de corretamente
prestar o atendimento médico, na forma acima mencionada. [02]
Nesse diapasão, existe uma grande diferença em haver o exercício de um direito,
como o direito a greve, e a obrigação de adesão de todos os membros da classe, à essa
manifestação.
O Código de Ética Médica é muitas vezes invocado, de forma indevida, por alguns
grevistas, através de seu art. 78, na tentativa de constranger os demais colegas a aderir ao
movimento, aduzindo que todos os membros da classe teriam tal dever.
Ocorre que referido art. 78 reza: "É vedado ao médico: posicionar-se
contrariamente a movimentos legítimos da categoria médica, com a finalidade de
obter vantagens".(grifamos)
Assim, observa-se que referido dispositivo não pode ser utilizado para arregimentar
aqueles que não queiram aderir à greve, porquanto somente aplicável àqueles ‘contrários’
ao movimento ‘legítimo’ e, ainda, desde que seja evidenciado que a ‘contrariedade’ seja em
razão da ‘finalidade de obtenção de vantagens’.
Há, então, uma conjugação de fatores estabelecidos no imperativo em destaque, não
alcançando aquele que, às vezes até concordando com os termos da greve, simplesmente
não tem interesse em dela participar. Afinal, não está sendo contrário à greve.
Ademais, caso a não adesão se dê, ainda, por questões legítimas, como no caso de
médicos residentes, que estão em aprendizado e aperfeiçoamento, sendo que eventual
‘cruzamento de braços’ certamente implicará em falta de obtenção de conhecimento
(técnicas), eis que não configurada estará, a toda evidência, a chamada ‘finalidade de obter
vantagens’, já que o aprendizado é um exercício regular do direito. [03]
A pressão para a adesão à greve, no caso específico de médicos residentes, então,
não pode ser acobertada pelo art. 15 do Código de Ética Médica.
O Conselho Regional de Medicina de São Paulo, em consulta sobre a obrigação de
adesão à greve (Consulta nº 17.377/90), de forma que nos afigura equivocada e ilegal,
entende que poderá haver infringência ao Código de Ética, quando a recusa não incidir
sobre os casos de plantão e em urgência e emergência:
"(...) Se numa Assembléia dos Médicos Residentes do HC-RP, considerada
deliberativa pelo Estatutos da Associação que representa estes Residentes, for
decidida a paralisação de suas atividades, é anti-ético um Residente deste hospital,
contrariar a decisão da Assembléia?
Quais as consequências deste ato?
Resp. A indagação formulada, encontra resposta nos artigos 15 (Princípios
Fundamentais) e 35 do Código de Ética Médica, cujo teor pedimos vênia para
reproduzir:
Artigo 15 - Deve o médico ser solidário com os movimentos de defesa da
dignidade profissional seja por remuneração condigna, seja por condições de trabalho
compatíveis com o exercício ético-profissional da Medicina e seu aprimoramento
técnico.
É vedado ao médico:
Artigo 35 - Deixar de atender em setores de urgência e emergência, quando for
de sua obrigação fazê-lo, colocando em risco a vida de pacientes, mesmo respaldado
por decisão majoritária da categoria.
Na conformidade dos artigos mencionados, nas situações emergências, ou seja,
a primeira, caracteriza atitude anti-ética na medida em que o Residente deixa de ser
solidário com os colegas na luta por melhores condições de trabalho e uma justa
remuneração. A segunda, refere-se aos serviços de urgência e emergência. Se o
residente cumpriu a escala para a qual foi designado não há que se falar em
infringência.
Esta poderia ocorrer se deixasse de comparecer ao plantão.
Não incidindo estas hipóteses (urgência e emergência), o médico Residente
incorreu em falta ética capitulada no citado artigo 15 do Código de Ética Médica."
Ocorre que a atitude daqueles que exercem referida ‘pressão’, além de contrariarem
a norma maior que é a Constituição Federal (o qual, logicamente, espanca qualquer
disposição resolutiva de entidade de classe), conforme o grau e forma, pode configurar
ainda ilícitos civis e criminais, tipificados no Código Civil e Código Penal.
Aliás, eis trecho do mesmo Parecer do CREMSP, reconhecendo as possíveis
conseqüências legais:
"Apesar de se tratar de movimento justo, a paralisação destes setores em
eventuais intercorrências, poderá expor os médicos a procedimentos criminal e civil,
se ficar caracterizada que da sua atuação dolosa ou culposa restou dano a paciente
assistido."
Assim, vê-se que apesar do CREMESP apontar que, fora dos casos de plantão e de
urgência e emergência, a atitude do médico que não aderir à greve poderia configurar
desrespeito ao Código de Ética, ainda assim chega a reconhecer que se houver ‘dano ao
paciente assistido’, poderá haver responsabilização criminal e civil do médico grevista.
Essa posição, por si só, já demonstra que ninguém poderá ser compelido a entrar em
greve, seja por preceitos ditos ‘éticos’ de ‘apoio à classe’, já que, conforme dito, ‘ninguém
é obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei’ (CF, art. 5º,
II), ainda mais se essa postura puder redundar em danos a pacientes.
Seria enorme contra-senso e evidente constrangimento ilegal forçar um médico, sob
pretexto de afetação à norma ética, a praticar conduta tida como ilícita, seja civil ou
criminalmente.
Conforme o caso, ocorreria o crime de constrangimento ilegal:
"Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou
depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a
não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda: Pena - detenção, de três
meses a um ano, ou multa.
§ 1º - As penas aplicam-se cumulativamente e em dobro, quando, para a
execução do crime, se reúnem mais de três pessoas, ou há emprego de armas."
Caso haja resultado danoso ao paciente, haverá responsabilização de ambos,
podendo estar configurado o crime de omissão de socorro:
"Art. 135 Deixar de prestar assistência quando possível fazê-lo sem risco
pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou a pessoa inválida ou ferida, ao
desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da
autoridade pública."
Por fim, vale lembrar que as atitudes lesivas podem ensejar reparações, nos termos
do Código Civil:
"Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem,
fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de
culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente
desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de
outrem."
Demonstradas, pois, as incidências legais aplicáveis ao caso de pressões para
aderência à movimento grevista por médicos.
CONCLUSÃO
Ante o exposto, chegam-se às seguintes conclusões:
1. É direito dos médicos (incluindo-se os médicos residentes), nos termos do artigo
24 do Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 1.246/88), a suspensão de suas
atividades, individual ou coletivamente, quando a instituição pública ou privada para a qual
trabalhe não oferecer condições mínimas para o exercício profissional ou não o remunerar
condignamente, ressalvadas as situações de urgência e emergência, devendo comunicar
imediatamente sua decisão ao Conselho Regional de Medicina;
2. A greve não poderá, contudo, prejudicar o atendimento mínimo à população, uma
que a atividade de atendimento médico-hospitalar é serviço de caráter essencial, nos termos
da Lei nº 7.783/89;
3. O direito à greve não pode ser confundido como obrigação de adesão ao
movimento grevista, já que a Constituição Federal, art. 5º, inciso II, é claro em estabelecer
que "ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei";
4. Não se pode aceitar a utilização do art. 15 e art. 18 do Código de Ética Médica,
para compelir médicos a aderirem ao movimento grevista, já que, além de seu art. 35 deixar
clara a restrição à adesão em casos de afetação a saúde dos pacientes, uma Resolução de
entidade de classe (Res. CFM nº 1.246/88), jamais teria força normativa capaz de elidir um
preceito constitucional (CF, art. 5º, II);
5. No caso de médicos residentes, não obstante serem médicos na acepção
profissional da palavra, inclusive tendo os mesmos direitos e deveres inerentes à profissão,
devem ter tratamento diferenciado no caso de greve, quanto ao disposto no art. 15 e 78 do
Código de Ética, já que a Lei nº 6.932/81, deixa claro que sua atividade deve visar ao
aperfeiçoamento e aprendizagem, não podendo ser embaraçada por pressões de adesão à
grave, caso não queira a ela ser submetida.
6. Em determinados casos, a ‘pressão’ para adesão à greve, conforme o grau,
intensidade e forma, pode ensejar responsabilização civil e criminal, nos termos do Código
Civil e Código Penal.
NOTAS
01
"O movimento de paralisação dos médicos residentes reivindicando direitos
inquestionáveis é justo, não fere a ética e está respaldado pelo artigo 24 do CEM. A
paralisação, de acordo com o que preceitua o artigo 24 do Código de Ética Médica,
deve ser imediatamente comunicada ao Conselho Regional de Medicina." Conselho
Federal de Medicina – CFM: PROCESSO-CONSULTA CFM Nº 6.155/2001 PC/CFM/Nº
20/2002.
02
"(...) Os atendimentos de emergência e urgência, UTI e atividades afins devem
ser garantidos durante o período de greve, como também mantida a seqüência do
tratamento dos pacientes internados até o início do movimento reivindicatório, seja por
médicos residentes ou do quadro permanente do hospital. A instituição deve estar
preparada para manter um nível de atendimento adequado a sua clientela. Para os
Conselhos Regionais e como médicos regularmente inscritos nos mesmos, os
residentes se submetem às normas legais aplicáveis à sua profissão, devendo ser
responsabilizados por eventuais danos que venham a causar por atos ilícitos ou
omissões(...) Assim, tanto os residentes como os preceptores estão passíveis de
responderem, ética e judicialmente, por atos (ou omissões) médicos, devendo cada
instância judicante definir a cota de responsabilidade a ser atribuída a cada membro
da equipe médica, pelo ato realizado ou omitido, caso seja questionada a sua licitude".
PARECER Nº 20/2002 do Conselho Federal de Medicina.
03
A residência médica, conforme o disposto na Lei nº 6.932, de 7.7.81, é uma
modalidade de ensino de pós-graduação que se presta ao aperfeiçoamento e aprendizagem
do médico, funcionando em instituições de saúde, universitárias ou não, sob orientação de
profissionais médicos de elevada qualificação ética e moral, os preceptores (CFM Parecer
nº 020/2002).
*Fernando Martins Zaupa - Promotor de Justiça do Ministério Público de Mato Grosso do
Sul, especialista em Direito Constitucional pela UNAES/FESMPMS.
Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11375
Acesso em: 12 de junho de 08.
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