Alterações eletrocardiográficas em atletas profissionais. II

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distúrbio do rítmo e da condução em atletas
Michel Batlouni *
Nabil Ghorayeb **
Dikran Armaganijan **
Romeu S. Meneghello***
Artigo Original
ALTERAÇÕES ELETROCARDIOGRÁFICAS
EM ATLETAS PROFISSIONAIS. II. DISTÚRBIOS
DO RITMO E DA CONDUÇÃO
Em um grupo de 70 futebolistas profissionais com idades de 19 a 33 anos, examinados em caráter
aleatório durante temporada de atividade atlética plena, os eletrocardiogramas registrados em posição
supina, após 15 minutos de repouso, apresentaram as seguintes disritmias: bradicardia sinusal, 50 casos;
marca-passo mutável, 2; ritmo de átrio esquerdo, 1; ritmo juncional, 2; extra-sístoles atriais e juncionais,
3; bloqueio atrioventricular (BAV) de 1º grau, 7; BAV de 2º grau tipo I de Mobitz (fenômeno de Wenckebach),
4; bloqueio incompleto do ramo direito (BIRD), 8 casos.
Os distúrbios do ritmo mostraram-se lábeis, observando-se elevação da freqüência cardíaca, restauração do ritmo sinusal e desaparecimento das extra-sístoles, tanto com o exercício, como após a administração de atropina e, na maioria deles, à simples mudança postural.
Nos 7 casos de BAV de 1.º grau, o intervalo P-R variou de 0,21 a 0,36 s, exibindo freqüentemente valores
diferentes em um mesmo traçado, e normalizou-se com manobras vagolíticas.
O BAV de 2.º grau, nos 4 casos em que estava presente, foi abolido pelo exercício, pela administração
de atropina e também pela mudança da posição supina para ereta. Após interrupção da atividade atlética por período de 15 dias, não se conseguiu mais registrá-lo. Esses dados, associados à excelente
performance atlética, à normalidade da função ventricular esquerda avaliada pela ecocardiografia, e à
ausência de caráter evolutivo em seguimento mínimo de três anos, sugerem que o BAV de 2º grau tipo I em
atletas, bem como as demais disritmias registradas neste trabalho, sejam anomalias de natureza funcional, conseqüentes à acentuada preponderância vagal decorrente do treinamento físico intensivo e prolongado. Entretanto, para melhor avaliação, são necessárias observações a longo prazo.
Dos 8 atletas com BIRD, havia evidências de crescimento ventricular direito em. 6, aos exames eletro,
vetor ou ecocardiográfico. Outrossim, a média do volume cardíaco radiológico nos futebolistas com
distúrbio de condução do ramo direito (DCRD) foi significantemente maior do que a média geral dessa
variável. É provável que o DCRD em atletas esteja relacionado à dilatação e/ou hipertrofia ventricular
direita, conseqüente à sobrecarga circulatória do exercício.
Os distúrbios da formação e da condução do estímulo
constituem alterações eletrocardiográficas comuns em atletas. Têm sido descritos em artigos e relatos específicos
abrangendo as mais diversas modalidades esportivas1-19.
Entretanto, sua real proporção e significado não estão ainda suficientemente esclarecidos e justificam investigações
adicionais.
No presente trabalho, estudam-se os distúrbios
do ritmo e da condução em futebolistas profissio-
nais em atividade atlética plena, através de registros
eletrocardiográficos efetuados em repouso e após esforço, com o auxílio de manobras, de procedimentos
farmacológicos e de outros métodos não invasivos.
CASUÍSTICA E MÉTODOS
A casuística aqui utilizada foi descrita por
pormenorizadamente no primeiro artigo desta série 20 . Serão repetidos os dados essenciais. In-
Trabalho realizado no Instituto “Dante Pazzanese” de Cardiologia, da Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo.
* Chefe da Seção de Cardiologia Clínica. Docente-livre de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás.
** Médico do Setor de Aterosclerose.
*** Médico da Seção de Ergometria e Reabilitação.
187
Arq. Bras. Cardiol. 35/3 187-195 - Setembro, 1980
arquivos brasileiros de cardiologia
clui 70 futebolistas, com 2 a 14 anos de treinamento em
regime profissional, examinados em caráter aleatório durante temporada de atividade atlética plena. As idades
variaram de 19 a 33 anos, média de 24,03; os pesos de 57 a
84 kg, média de 71,83; e as alturas de 1,62 a 1,88 m, média
igual a 1,764. Quarenta e nove eram de cor branca e 21 não
brancos (11 pardos e 10 pretos). Oito eram goleiros, 20
zagueiros, 20 jogadores de meio-de-campo e 22 atacantes.
Todos eram assintomáticos em relação ao aparelho
cardiovascular e não apresentavam evidência clínica de
cardiopatia orgânica.
Os métodos, igualmente, foram descritos em trabalho
anterior 20 . Serão acrescentados os aspectos da
metodologia inerentes ao estudo dos distúrbios do ritmo e
da condução.
Os traçados eletrocardiográficos básicos foram
registrados com o atleta em jejum, sem fumar no dia do
exame, posição supina, cabeça ligeiramente elevada, em
ambiente tranqüilo e após 15 minutos de repouso. Para
melhor análise do ritmo e da freqüência cardíaca (FC), derivação D2 longa foi registrada ao final de cada traçado.
O cálculo da FC baseou-se na média de três intervalos
R-R consecutivos, quando o ritmo era regular, e na média
de 30 s de traçado, quando irregular. O intervalo P R foi
medido na derivação em que era mais longo, habitualmente D2. Os critérios diagnósticos foram os de Tranchesi21 .
Em presença de FC inferior ao limite arbitrário de 45
ciclos por minuto (cpm) e de bloqueios atrioventriculares
(BAV) de 1ºe 2º graus, os traçados eletrocardiográficos
foram repetidos: a) em posição ereta; b) após administração endovenosa de 1 mg de atropina, com registro contínuo nos primeiros três minutos e aos 5, 10, 60 e 120 minutos; c) fora do período de treinamento intensivo quando,
por contusão ou outro motivo, o futebolista houvesse interrompido suas atividades atléticas por 15 dias ou mais.
Nos casos de BAV de 2º grau, foi realizada
eletrocardiografia dinâmica, sistema Holter, com gravação
de 12 horas.
Todos os atletas foram submetidos a teste ergométrico
submáximo ou máximo e a exames vetocardiográficos,
radiográfico e ecocardiográfico; em 64 casos dispunha-se,
também, de estudo fonocardiográfico. Os respectivos métodos e resultados foram descritos no primeiro artigo desta série20.
Para a análise estatística, utilizou-se o teste “t” de
Student. Nível de significância, 5%.
RESULTADOS
Os resultados globais estão expostos na tabela I.
TABELA I - Distúrbios do ritmo e da condução observados no
ECG de repouso em 70 futebolistas profissionais.
Bradicardia sinusal
Marca-passo mutável
Ritmo de átrio esquerdo
Ritmo juncional
Extra-sístoles atriais e juncionais;
Distúrbio da condução intra-atrial
Bloqueio atrioventricular de 1.º grau
Bloqueio atrioventricular de 2.º grau, tipo I
Bloqueio incompleto do ramo direito
188
50
2
1
2
3
7
7
4
8
1. Bradicardia - A FC variou de 36 a 72 cpm, média geral
de 51,7 cpm (DPM = 0,9). A FC média dos goleiros foi igual
a 53 cpm; dos zagueiros 52,5; dos atacantes, 52,2; e dos
jogadores de meio-de-campo, 50,7 cpm.
A FC foi menor do que 40 cpm em 1 atleta; situou-se
entre 40 e 49 em 24 casos, entre 50 e 59 em 30; e entre 60 e
72 em 15. Portanto, 55 atletas (78,6%) apresentaram, em
condições basais, bradicardia, isto é, FC abaixo de 60 cpm.
Em 50 desses casos o ritmo era sinusal, regular ou irregular
(fásico e não fásico).
A FC dos atletas mostrou-se lábil, elevando se significativamente com a adoção da posição ereta, com o exercício, administração de atropina e redução do nível de atividade atlética. Três futebolistas apresentaram resposta
atífica ou “amortecida” à atropina, com aumento da FC
inferior a 25% do valor basal22, após a administração EV de
1 mg da droga. Entretanto, o emprego de dose maior (2
mg), em dia subseqüente, provocou aumento da FC superior a 50% do valor basal. A interrupção do treinamento
físico intensivo, por 15 dias ou mais, determinou aumento
da FC de repouso em 12 atletas nos quais as observação
pôde ser realizada. Nesse grupo, a média da FC de repouso, igual a 52,4 cpm, no período de treinamento, elevou-se
para 63,1 cpm fora do mesmo (P < 0,05).
2. Ritmos ectópicos - Os seguintes ritmos ectópicos foram registrados: marca-passo mutável, 2 casos; ritmo de
átrio esquerdo, 1: ritmo juncional, 2; extra-sístoles atriais e
juncionais, 3. Essas disritmias eram transitórias, restaurando-se o ritmo sinusal e desaparecendo as extra-sístoles, tanto
com o exercício como após a administração de atropina e, na
maioria dos casos, à mudança de decúbito horizontal para a
posição ereta, à medida que a FC se elevava.
3. Distúrbio da condução intra-atrial - foi observado
em 7 casos, nos quais a duração da onda P variou de 0,08
a 0,10 s.
4- Bloqueio atrioventricular de 1º grau - Sete atletas
(10%) apresentaram BAV de 1ºgrau, isto é, intervalo P-R
(PRi) igual ou maior do que 0,21 no ECG de repouso. Nesses casos, o PRi variou de 0,21 a 0,36 s, exibindo às vezes
valores diferentes em um mesmo traçado (fig. 1). Retorno
do PRi aos limites da normalidade foi observado com as
diversas manobras vagolíticas.
5. Bloqueio atrioventricular de 2ºgrau - Em 4 atletas
(5,7%) registrou-se BAV de 2.º grau tipo I de Mobitz, com
períodos de Wenckebach típicos ou atípicos - A freqüência ventricular média, em cada caso, foi igual a 36, 40, 40 e
42 cpm.
A mudança da posição supina para ereta restaurou a
condução. 1: 1, com PRi normal em dois casos (fig. 2) e
aumentado (0,24-026 s) nos outros dois.
Durante os testes de esforço, o PRI encurtou progressivamente, atingindo valores de 0,11-0,12 s nas freqüências mais elevadas, em cargas de 250 ou 300 W (fig. 3). No
período de recuperação, observado até o 15.º minuto nesses casos, não se registrou BAV de 2.º grau.
A eletrocardiografia dinâmica mostrou que
o B AV d e 2 . º g r a u s o m e n t e s u rg i a e m p e r í o d o s
distúrbio do rítmo e da condução em atletas
Fig. 1 - Traçado eletrocardiográfico (D2) em seqüência, ilustrando bradiarritmia e intervalo P-R variável (0,18 a 0,32s).
Fig. 2 - Traçado eletrocardiográfico (D2) mostrando bloqueio atrioventricular de 2.º grau, tipo I (fenômeno de Wenckebach), em posição supina. Aumento
da freqüência cardíaca e normalização da condução atrioventricular em posição sentada.
de repouso, em decúbito horizontal, e nas freqüências cardíacas mais baixas (fig. 4).
A administração endovenosa de 1 mg de atropina aboliu imediatamente esse distúrbio da condução do estímulo, observando-se inicialmente (1 a 2 minutos) marca-passo mutável e períodos de ritmo juncional, seguidos (3 a 5
minutos )de ritmo sinusal, com FC de 50 a 66 cpm e PRI
variável de 0,16 a 0,24 s (fíg. 5). Posteriormente (10 minutos
até 2 horas de observação), estabilizou-se a FC em torno
de 50 cpm, com PRi normal em dois casos e aumentado nos
outros dois.
Após a interrupção do treinamento físico por 15 dias ou
mais, os ECG basais mostravam apenas bradicardia sinusal
com BAV de 1.º grau, não se conseguindo mais detectar
períodos de BAV de 2.º grau
Os 4 futebolistas que apresentaram esse distúrbio da
condução não referiam sintomas que pudessem a ele relacionar-se e exibiam em campo excelente performance atlética, confirmada pelo teste ergométrico. Três deles eram
jogadores de meio-de-campo, especificamente médio-volantes. Todos apresentavam quarta bulha e um deles tam-
bém terceira bulha. Havia evidência eletrocardiográfica e/
ou vetorcardiográfica de sobrecarga ventricular direita em
1, sobrecarga ventricular esquerda em 2, e biventricular em
outro. Entretanto, a função ventricular esquerda, avaliada
à ecocardiografia, foi normal em todos.
6. Distúrbio da condução intraventricular - Distúrbio de
condução do ramo direito (DCRD) do feixe de His, tipo
bloqueio incompleto do ramo direito (BIRD), caracterizado
por complexo QRS de duração menor do que 0,11 s, com
dupla positividade em V1, foi registrado em 8 casos (11,4%).
Sete apresentavam morfologia. rSr’ e um rSR’ em derivação V1 (fig. 6).
Dos 8 atletas com DCRD, 3 apresentavam diagnóstico de
sobrecarga ventricular direita pelo ECG, 3 pelo VCG, e 2 por
ambos os métodos; em 5 havia aumento da dimensão
diastólica do ventrículo direito pelo ecocardiograma. Em apenas dois casos o diagnóstico de crescimento ventricular direito não foi realizado por qualquer desses métodos. Ademais, ao exame radiográfico, o volume cardíaco relativo esta189
arquivos brasileiros de cardiologia
Fig. 3 - Efeito eletrocardiográfico de hiperventilação e do exercício em bloqueio atrioventricular de 2º grau, tipo I. Em carga de 50 W, freqüência cardíaca =
90/min, PRi = 0,24s. Em carga de 250 W, freqüência cardíaca = 170/min, PRi = 0,12 s.
Fig. 4 - Eletrocardiografia dinâmica (sistema Holter) do mesmo caso da figura anterior.
190
distúrbio do rítmo e da condução em atletas
va aumentado em 5 casos, e a média do volume cardíaco
nos 8 atletas com DCRD foi significantemente maior do
que o respectivo valor global.
Bloqueio do ramo esquerdo ou de seus fascículos não
foi registrado em nenhum caso.
DISCUSSÃO
Bradicardia
Bradicardia é uma característica universalmente reconhecida em atletas bem treinados, especialmente praticantes de esportes de resistência. Em diversos trabalhos incluindo corredores, ciclistas e nadadores todos de longa
distância, a freqüência cardíaca (FC) média consignada
variou de 52 a 62 cpm nos eletrocardiogramas de repouso,
com os valores mais baixos entre os corredores de maratona1,2,5,7,13,23.
apoiada pelas observações de que as cobaias selvagens
têm menor freqüência cardíaca do que as domesticadas,
mas evidenciam maior aceleração após vagotomia, e que
os ratos com bradicardia induzida pelo exercício respondem à vagotomia com maiores aumentos na freqüência
cardíaca do que os controles30.
Em homens treinados, a bradicardia é habitualmente
sinusal (50 em 55 casos de nossa casuística) e acompanha-se, não raramente, de intervalo P-R alargado, o que é
concordante com a origem vagal de ambas as alterações.
A resposta “amortecida” à atropina, observada em 3 casos, sugere também a acentuada preponderância vagal.
O mecanismo eletrofisiológico da redução das descargas sinusais, pelo aumento do tono parassimpático,
está relacionado com a redução da velocidade de
Fig. 5 - A, ECG controle, B e C, dois e cinco minutos, respectivamente, após a administração endovenosa de 1 mg de atropia. Normalização da condução
atrioventricular sob o efeito da droga.
Em nossa casuística, a FC média em condições basais
foi igual a 51,7 cpm, com a média mais baixa entre os jogadores de meio-de-campo. Intensivo que seja o treinamento do futebolista profissionais na atualidade, é difícil admitir se situe em nível superior ao das especialidades atléticas acima referidas. Acreditamos que os menores valores
anotados poderiam ser explicados pelas rigorosas condições basais do registro eletrocardiográfico de repouso
neste estudo, as quais nem sempre foram observadas nos
trabalhos citados.
A bradicardia do atleta é uma adaptação fisiológica,
transitória e reversível, resultante do treinamento físico
intensivo24-28.Seu mecanismo fisiológico imediato não está
totalmente esclarecido. As várias teorias propostas foram
revistas por Hall29. A maioria dos autores concorda que se
trata de alteração funcional, devida à preponderância vagal,
provavelmente em conseqüência do aumento do conteúdo de acetilcolina do nó sinusal, com ou sem redução
concomitante da atividade simpática. Essa hipótese é
despolarização diastólica lenta e com a hiperpolarização
das células do nó sinusal22.
Um mecanismo intracardíaco proposto por Tipton30 admite que o tecido atrial liberaria continuamente quantidades significantes de acetilcolina, a qual suplementaria a
liberada pelas terminações nervosas parassimpáticas; essa
liberação é maior nos corações treinados do que nos controles31. Outra hipótese, também intracardíaca, admite que
a distensão do átrio direito, provavelmente presente no
coração bem treinado32, estimulando elementos sensitivos,
provocaria bradicardia relativa. Entre os efeitos anatômicos
do treinamento, foram selecionados, por suas possíveis
relações com a freqüência cardíaca: a hipertrofia da musculatura esquelética, a hipertrofia do coração, o aumento
do volume sangüíneo e o acentuado desenvolvimento
capilar da musculatura esquelética29.
Além da bradicardia de repouso, é característica do indivíduo bem treinado a menor elevação da freqüência cardíaca a qualquer nível de exercício, em comparação com indi191
arquivos brasileiros de cardiologia
Fig. 6 - Ilustração eletrocardiográfica de bloqueio incompleto do ramo direito, em futebolista profissional.
víduos não treinados. Em verdade, essa é a mais notável
diferença na performance de exercício entre os dois grupo26,28,33. Outrossim, a freqüência cardíaca dos indivíduos
com boa aptidão física retorna ao normal após exercício
mais rapidamente do que nos indivíduos não treinados.
Os testes de esforço realizados no presente estudo comprovaram ambas as assertivas. Comumente, as freqüências submáxima e máxima foram atingidas em cargas de 250 e
300 W, em vários casos o exercício foi interrompido por
estafa muscular, em cargas altas, antes que se alcançasse
a freqüência máxima.
A investigação farmacológica do mecanismo da
bradicardia em atletas, utilizando a associação de uma droga parassimpaticolítica (atropina, 2,4 mg) e de um
bloqueador beta-adrenérgico (propranolol, 0,1 mg/kg de
peso) administrados na veia, sugere que, enquanto a
bradicardia de repouso é devida ao aumento do tono
parassimpático, a freqüência cardíaca relativamente mais
192
baixa durante o exercício é secundária à redução dos impulsos simpáticos28. Isso, por sua vez, seria possível porque um débito cardíaco adequado pode ser mantido através de maior volume sistólico, sem envolver necessariamente participação preponderante do sistema nervoso simpático28,34.
Ritmos ectópicos
Diversas disritmias supraventriculares, incluindo marca-passo mutável, ritmos ectópicos; atriais e juncionais,
têm sido comumente descritas em ECG de repouso de atletas2,4,10,13 e foram também detectadas neste trabalho. Esses
distúrbios do ritmo, regularmente abolidos pelo exercício e
pela atropina, são também atribuídos à preponderância
vagal associada ao treinamento físico intensivo.
Como as terminações nervosas vagais; apresentam uma distribuição não homogênea no
distúrbio do rítmo e da condução em atletas
miocárdio atrial 35 , estímulos colinérgicos intens o s p o d e m f a v o r e c e r o d e s e n v o l v i mento de
despolarização e repolarização não uniformes, e deslocar
o marca-passo cardíaco a determinadas áreas, como o seio
coronário, o átrio esquerdo ou às porções mais altas da
junção AV. Demonstrou se recentemente, que as respostas características de diferentes locais de marca-passo cardíacos, sob influências autonônomas; são importantes
fatores na produção de marca-passo migratório e no
desencadeamento de batimentos ectópicos36.
A freqüência de descarga normal do nódulo AV varia
de 45 a 60/min. Uma freqüência nodal abaixo de 45/min
constitui bradicardia juncional. A depressão vagal da
automaticidade do nó sino-atrial acompanha-se usualmente
de depressão proporcional da automaticidade juncional.
Assim, a bradicardia sinusal do atleta deve estar sempre
associada à depressão juncional. A bradicardia juncional,
porém, não se torna manifesta, a menos que a freqüência
do marca-passo juncional seja maior do que a do marca
passo sino-atrial14.
Bloqueios atrioventriculares
O BAV de 1.º grau é achado comum em atletas bem
treinados com proporção variável de 5 a 30%1,2,7,9,10,13,15,37.
Neste estudo, 7 futebolistas (10%) apresentaram BAV de
1º grau, no ECG de repouso em posição deitada.
Este percentual é muito superior ao da população geral.
Manning e Sears38 diagnosticaram BAV de 1.º grau em
0,45% de 19.000 indivíduos jovens normais e Hiss e Lamb39
em 0.65% de 122.043 pilotos sadios.
O aumento do intervalo P-R em atletas bem treinados é
fenômeno extremamente lábil. Valores diferentes em um
mesmo traçado e retorno do intervalo P-R aos limites da
normalidade, com as diversas manobras vagolíticas, foram
observados em nossa casuística.
A ocorrência de BAV de 2.º grau, mesmo em atletas
altamente treinados, é considerada muito baixa. Poucos
casos foram descritos ma literatura médico-esportiva até
1975 (16 na revisão de Meytes e col.18) e a maioria deles
mereceu relatos específicos6,8,13,16,17.
Recentemente, Meytes e col.18 observaram fenômeno
de Wenckebach em 3 de 126 atletas com excepcional aptidão física nos traçados eletrocardiográficos obtidos em
posição supina, após 15 minutos de completo repouso. O
distúrbio era transitório, relacionando-se nitidamente com
a intensidade do treinamento. Esses autores sugeriram que
a proporção de BAV de 2.º grau em atletas com alta capacidade física deveria ser maior do que a até então relatada na
literatura, desde que pesquisado em condições adequadas.
Os resultados deste trabalho confirmam tal suposição.
Registrando o ECG nas mesmas condições, observamos
BAV de 2.º grau, tipo I, em 4 casos (5,7%). Convém salientar que em indivíduos normais, não atletas, a ocorrência
desse distúrbio da condução é raríssima: 0,005% e 0,003%,
nos estudos já referidos de Manning e Sears38 e de Hiss e
Lamb39, respectivamente.
Quais os mecanismos dos bloqueios atrioventriculares
em atletas e dos efeitos da postura, atropina e exercício
sobre os mesmos?
A labilidade da condução atrioventricular é reconhecida de longa data. Sabe-se que a estimulação simpática a
acelera e, portanto, encurta o intervalo P-R. Ao contrário,
a estimulação parassimpática deprime a condução
atrioventricular e, portanto prolonga o intervalo P-R e favorece o aparecimento de bloqueios.
O efeito da postura sobre a condução atrioventricular
tem sido estudado há muitos anos38,40,41. Admite-se que o
encurtamento do intervalo P-R, em indivíduos normais e
em pacientes com BAV, pela mudança da posição supina
para ereta, resulte da redução do tono vagal e aumento do
tono simpático, em conseqüência de reflexos posturais
originados principalmente nos pressorreceptores da aorta
e do seio carotídeo40,41. As alterações imediatas, observadas nos primeiros 10 a 15 segundos de adoção da posição
ereta, e que podem ocorrer comumente sem modificação
simultânea da freqüência cardíaca, são. compatíveis com
redução do tono vagal na junção AV mas ainda exercendo
seus efeitos no nódulo sinusal. As alterações subseqüentes, que aparecem juntamente com a elevação da freqüência cardíaca, seriam de origem simpática41.
O efeito da atropina, ao suprimir ou reduzir o grau de
BAV, é conhecido desde 1915, quando Wilson42 descreveu
a normalização da condução atrioventricular, sob ação da
droga. O aparecimento de ritmos juncionais, nos primeiros
minutos após a atropinização endovenosa, quando ainda
a freqüência cardíaca pouco se alterou, e antes do
restabelecimento do ritmo sinusal, é provavelmente devido à ação seletiva da atropina nas terminações vagais dos
nódulos sino-atrial e atrioventricular. Durante os primeiros momentos da ação da atropina, o efeito vagal na junção atrioventricular é suprimido, permitindo um aumento
da atividade do marca-passo juncional, antes que a inibição vagal do nó sinusal se efetive. Em seguida, o efeito da
droga mas terminações vagais do nó sinusal torna-se bem
evidente. E sendo o automatismo sinusal maior do que o
juncional (ambos sob efeito da droga), restaura-se o ritmo
sinusal, com intervalo P-R dimimuído38. Essa interpretação
é corroborada por estudos indicativos de que os nódulos
sinusal e atrioventricular podem exibir respostas diferentes, tanto à estimulação como à inibição vagal43.
O efeito do exercício, acelerando a condução
atrioventricular e reduzindo o BAV, parece depender essencialmente da atividade simpática. O aumento da freqüência cardíaca, resultante de tono simpático mais elevado, costuma acompanhar-se de intervalo P-R mais curto,
pelo efeito simultâneo da estimulação simpática ma velocidade de condução atrioventricular.
O BAV de 2.º grau é usualmente interpretado como sinal de
cardiopatia orgânica ou de efeito medicamemtoso44 . Entretanto, os seguintes fatos observados no presente estudo apoiam
a hipótese, proposta por alguns autores13,18, de que o BAV de
2º grau, tipo I, em atletas altamente treinados, é alteração de
natureza funcional, conseqüente a desequilíbrio do
sistema nervoso autônomo com acentuada prepon193
arquivos brasileiros de cardiologia
derância vagal: a) recuperação do ritmo sinusal à simples
mudança postural; b) abolição do bloqueio pela atropina;
c) idem pelo exercício; d) nítida relação com a intensidade
do treinamento físico.
Manobras posturais, atropina e exercício podem, também, influir favoravelmente nos bloqueios
atrioventriculares resultantes de lesões orgânicas38,41 e,
assim, pouco contribuiriam para a identificação destes
transtornos, quando supostamente funcionais. Todavia,
o efeito vagolítico mediado pelo exercício ou atropina pode
agravar ou precipitar um BAV de 2.º grau, tipo II, por aumentar a freqüência cardíaca, sem encurtamento
concomitante do período refratário efetivo do tecido de
condução atrioventricular45, o que não ocorreu em nenhum
dos casos desta série.
Outros aspectos clínico-evolutivos devem ser considerados. Os 4 futebolistas nos quais se detectou BAV de 2.º
grau, tipo I, exibiam em campo excelente performance atlética, confirmada pelo teste ergométrico. E, embora apresentassem evidências eletro e/ou vectorcardiográfica de sobrecarga ventricular, a função ventricular esquerda, avaliada
pela ecocardiografia, era normal. Outrossim, em seguimento
mínimo de três anos, posterior a este estudo, não se observou progressão do distúrbio da condução atrioventricular,
embora todos continuassem a exercer plenamente suas atividades profissionais. Um período de seguimento mais longo é necessário, porém, para melhor interpretação.
Avaliação mais rigorosa do sistema de condução, através de eletrograma do feixe de His, não foi realizada no
presente estudo. Entretanto, um futebolista e um corredor
de longa distância, não incluídos nesta casuística, e que
apresentavam alterações eletrocardiográficas semelhantes,
submeteram-se à cinecoronariografia e à ventriculografia
esquerda que resultaram normais, e ao eletrograma do feixe de His. Este evidenciou: a) na situação de controle, BAV
de 1º grau. pré-hisiano (junção atrioventricular); b) durante estimulação atrial, com freqüências inferiores a 120/min,
fenômemo de Wenckebach; c) período refratário efetivo
do nódulo AV inferior a 350 ms; d) após a administração
endovenosa de 2 mg de atropina, desaparecimento do BAV
de 1º grau. Estes resultados sugerem também a natureza
funcional do bloqueio, por aumento do tono vagal.
Distúrbios da condução do ramo direito
Distúrbios da condução do ramo direito, em seus diversos graus, podem ser observados no ECG de repouso de
indivíduos normais, sem outras anormalidades cardíacas21,46,47. Entretanto, na prevalência em atletas é maior do
que na população geral.
Revisão feita por Lichtman17 mostrou uma freqüência
média de 16% de bloqueio incompleto do ramo direito
(BIRD) nos eletrocardiogramas de repouso de 527 atletas
de diversas modalidades esportivas. Entre nós, Rocha e
col.47 referiram ocorrência de BIRD em 10,3% de remadores, 6,9% de nadadores, 5,3% de corredores de longa distância e 4,7% de jogadores de voleibol. França e col.12
relataram dois casos de BRD, um completo e um incomple194
to, associados a hemibloqueio anterior esquerdo, entre 14
futebolistas profissionais. Neste trabalho, 11,4% dos futebolistas apresentaram distúrbio de condução do ramo direito.
Para alguns autores, não existe associação entre os achados de distúrbio de condução do ramo direito e de crescimento ventricular direito15. Para outros, essa anomalia da
condução intraventricular do estímulo parece relacionarse à dilatação e/ou hipertrofia do coração, envolvendo o
ventrículo direito3,5 . Roskamm e col.3 relataram uma
prevalência global de BIRD em 19,1% de 413 atletas, com
percentual nitidamente maior (46%) entre os que apresentavam maiores volumes cardíacos. Em nossa casuística, 6
dos 8 futebolistas com distúrbio de condução do ramo
direito apresentavam sinais de crescimento ventricular direito pelo ECG, VCG ou ecocardiograma, e a média do volume cardíaco radiológico neste grupo foi significantemente
maior do que o respectivo valor global. É provável, pois,
que o distúrbio de condução do ramo direito, em atletas,
esteja relacionado à dilatação e/ou hipertrofia ventricular
direita.
Aumento da massa muscular na base do ventrículo direito foi descrito em cães com BIRD. Como os impulsos
eram conduzidos sem retardo entre o ramo direito do feixe
de His e a rede de Purkinje, admitiu-se que o bloqueio
fosse causado por despolarização epicárdica retardada,
em áreas de hipertrofia localizada48. Tais aumentos focais
da massa miocárdica talvez possam ser responsáveis por
algumas das anormalidades encontradas mo ECG de atletas, como o distúrbio de condução do ramo direito.
SUMMARY
In a group of 70 professional association football players, ranging in age from 19 to 33 years, randomly examined
during seasons of intensive training, the ECG taken in the
recumbent position, after a complete rest of 15 minutes,
showed the following arrhythmias: sinus bradicardia, 50
cases; wandering pacemaker, 2; left atrial rhythm, 1; junctional rhythm, 2; atrial and junctional extrasystolia, 3; firstdegree AV block, 7; second-degree AV block Mobitz type
I (Wenckebach phenomenom), 4; incomplete right bundle
brameh block (IRBBB), 8.
The rhythm disturbances were labile and transient. Increase of the heart rate, restoration of the sinus rhythm
and disappearance of the extrasystoles were observed with
exercise, atropine administration, and often by mere change
of posture.
In the seven cases of first-degree AV block, the P-R
interval ranged from 0,21 to 0,36 s, often with variable duration in the same tracing, which returned to normal values
with vagolytic maneuvers.
Second-degree AV block (Mobitz type I) was abolished
in the four cases by changing from the supine to a sitting or
standing position, with exercise or after atropine administration. It could not be demonstrated after interruption of
intensive training for a period of 15 days or more. This data,
together with the excellent athletic performance, normal left
ventricular function as assessed by echocardiogra-
distúrbio do rítmo e da condução em atletas
phy, and the absence of progression during a follow-up
period of three years suggests that this phenomenon, as
well as the other arrhythmias herein observed, in fully
active athletes, are of a functional nature, consequent to
enhanced vagal tone, following intensive physical training. Nevertheless, a much longer follow-up period is
necessary.
Of the eight athletes who had IRBBB, six had eight ECG,
VCG or echocardiographic evidence of right ventricular
enlargement. Furthermore, the mean radiologic cardiac
volume in those with IRBBB was significantly greater than
the same measure in the other football players. It seems
likely that IRBBB in athletes is associated with right ventricular dilation or hypertrophy consequent to prolonged
circulatory strain.
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