Realidade Brasileira

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Realidade Brasileira
Divaldo Suruagy
São múltiplas e diversificadas as questões ensejadas pela
experiência brasileira de República. Ao apontá-las, fica a marca da
sensibilidade para identificar nossas raízes históricas e seu
desdobramento muitas vezes problemático. Analisando-as com a
necessária e indispensável acuidade, evidencia-se a preocupação em
equacioná-las, contribuindo para o processo de aprimoramento das
instituições.
Tenho como pressuposto, no entanto, que a efetiva
compreensão de significado do processo republicano assenta-se na
busca do conhecimento do nosso passado. Estou entre aqueles para
quem a História apresenta, em sua dinâmica, algumas leis
implacáveis. Entre elas, seguramente, avulta aquela segundo a qual a
repetição do passado – com toda a dramaticidade de seus eventuais
desacertos – é a mais terrível punição para quem o desconhece. E o
passado, já nos ensinava o perspicaz Mário de Andrade, “é lição para
ser meditada, não para reproduzir.”
Colônia européia desde o início do Século XVI, a ocupação
do Brasil se fez nos contornos da política econômica mercantilista –
ponto de partida do moderno sistema capitalista. Por essa razão,
aliada às condições específicas da petrópole portuguesa e às
oferecidas pela terra recém-descoberta, montou-se uma estrutura de
exploração econômica fundamentada, em três grandes pilares:
latifúndio, monocultura e escravidão.
O quadro assim estabelecido, assegurava ao nascente
capitalismo europeu o atendimento de seus interesses imediatos: o
modelo extrovertido da economia colonial abastecia o mercado
consumidor da Europa com os produtos e matérias-primas de que
necessitava. Este foi o quadro mais geral da colonização latinoamericana, do qual o Brasil, embora com indiscutível especificidade,
não diferia.
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Descapitalizar a colônia, no sentido de subtrair-lhe as
riquezas naturais, significava ampliar o poder de acumulação na área
central do sistema em formação – a Europa. Explorar a mão-de-obra
escrava colonial - quer a indígena, quer a africana – representava
melhores condições para instituir e incrementar o trabalho assalariado
nas regiões metropolitanas, sendo essa condição básica ao
desenvolvimento de uma economia de mercado.
O certo é que tal estrutura de exploração colonial
aprofundou raízes entre nós, deixou seqüelas e, em boa medida,
orientou o processo econômico brasileiro mesmo após a conquista da
Independência. O caráter cíclico da economia, a concentração
fundiária, a sociedade patriarcal, o conservadorismo sócio-político
podem ser apontados como decorrentes do modelo aqui implantado a
partir dos anos quinhentos.
Interessante observar como a base econômica, no Brasil,
como de resto em todas as sociedades, desempenha um papel
preponderante na fixação da ordem social e política-institucional. Os
dois primeiros séculos de colonização estiveram, como sabemos,
estribados na agroindústria açucareira nordestina. Não foi, pois, mera
coincidência a localização, nessa região, das elites e do centro político
da colônia. A cidade de Salvador, como capital, simbolizava a
realidade de então.
O declínio da atividade açucareira – determinada, por
exemplo, pela interrupção do fluxo de comércio com a célebre
Companhia das Índias Ocidentais e pela concorrência da produção
antilhana – coincidiu com a descoberta de jazidas minerais nas áreas
centrais da colônia: Minas, Goiás e Mato Grosso. Afora a imensa
corrida de pessoas – de outras regiões brasileiras e da própria
metrópole – que em apenas um século decuplicou a população da
colônia, a novidade representada pela extração mineral trouxe outras
conseqüências.
Se compararmos o quadro oferecido pelo Brasil, no século
XVIII, em função da mineração, com o do Nordeste açucareiro,
encontraremos sensíveis alterações. Houve um processo de
urbanização, a organização social tornou-se menos rígida, de modo a
propiciar o surgimento de classes intermediárias e, inclusive, a alforria
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de certo número de escravos. O mercado interno – mesmo que
fundamentalmente circunscrito à região aurífera, notadamente Minas
Gerais – pôde-se desenvolver-se. A mudança do eixo econômico
correspondia a novo núcleo político-administrativo: o Rio de Janeiro
era a nova capital. Ademais é plausível pensar que as contingências
que marcaram a economia mineradora, ao lado da exacerbação da
política fiscal portuguesa, estimularam no seio das elites coloniais a
consciência dos limites da exploração. Da Revolta de Felipe dos
Santos, em 1720, à abortada Conjuração de 1789, vê-se nitidamente a
evolução do espírito de contestação ao domínio metropolitano: da luta
fundamentalmente centrada na repulsa aos “excessos fiscais” avançase até a elaboração de um projeto de independência. Em linguagem já
tornada clássica, o Nativismo cedia lugar ao Emancipacionismo.
O final do século XVIII e os primórdios do século XIX
configuraram uma nova realidade. A Revolução Industrial,
desencadeada pela Inglaterra, consolidava o sistema capitalista
burguês, o qual, pela característica que implantava requeria formas
diferentes de relação entre centro e periferia. O Mercantilismo –
marcado
pelo
intervencionismo
estatal,
pela
excessiva
regulamentação e, sobretudo, pelo “Pacto Colonial” definido pelo
monopólio – havia cumprido seu papel. Chegara a hora do
Liberalismo. No plano político, desalojando o absolutismo monárquico
e oferecendo maiores espaços de atuação da cidadania; sob o ponto
de vista econômico, fazendo a defesa intransigente do livre-cambismo.
Esse quadro favorece e estimula a desagregação do antigo
sistema colonial, mesmo porque também atendia aos interesses
mercantis das elites coloniais. Assim, tornava-se plenamente
compreensível que, num espaço de tempo relativamente curto, as
colônias
americanas
tenham
conseguido
proclamar
sua
independência. De igual modo, vê-se a absoluta coerência da posição
britânica nesse processo: à maior potência industrial da época
interessava, e muito, a concretização da independência latinoamericana. Se, para os americanos, essa conquista significa a
emancipação política, a criação do Estado Nacional, para a linha de
ponta do capital internacional o sentido era outro: a possibilidade
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concreta de expandir seus investimentos, ampliar potenciais
mercados.
A singularidade da Independência do Brasil, distinguindose do restante da América, obriga-nos a uma análise que, mesmo
superficial, pode oferecer-nos subsídios para uma melhor
compreensão de nossa trajetória enquanto Estado Nacional.
Há que se considerar preliminarmente o nível de
desenvolvimento da capacidade produtiva do Brasil. Tal fato, além de
distinguí-lo de várias outras áreas coloniais americanas, conferia à
colônia uma robustez econômica que suplantava a própria metrópole.
Outro aspecto, inédito e único no Continente, graças à invasão da
Península Ibérica pelas tropas napoleônicas, deu-se com a
transferência da sede do Estado Português para o Rio de Janeiro,
capital da colônia.
Para nossa análise, é de secundária importância destacar
as razões que determinaram essa transferência, pomposamente
identificada com a “Transmigração da Família Real”. Sabemos todos
que ela foi contingenciada pela explosiva situação européia que
refletia o conflito conjuntural entre duas potências – Inglaterra e
França.
Importa-nos, sim, lembrar que as circunstâncias que
presidiam o estabelecimento do aparelho político-administrativo
português na colônia promoveram um novo quadro que, se favorecia a
penetração do capitalismo industrial – preponderantemente inglês –
também acenava com possibilidade de maiores lucros aos setores
agroexportadores locais, a partir da cessação dos entraves
monopolíticos da antiga ordem colonial.
Quando se normaliza a situação em Portugal, com os
vitoriosos da cidade do Porto, em 1820, impondo o retorno do governo
ao seu local de origem, as elites coloniais se mobilizam no sentido de
impedir a volta aos padrões clássicos do colonialismo.
O Sete de Setembro de 1822 foi a resposta a um tipo de
postura metropolitana considerada intolerável. Em meio a projetos
distintos de Independência, defendidos por facções das camadas
dominantes – a exemplo de José Bonifácio, propugnava pela solução
monárquica.
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Em termos globais, a Monarquia veio garantir a
emancipação política sem maiores traumas e a manutenção da
integridade territorial do país, fazendo da figura do Monarca um
verdadeiro emblema da unidade nacional. Ao fundo, a preservação do
modelo fundiário, da economia exportadora, da base escravocrata. Ao
contrário da América Espanhola que se fracionava política e
geograficamente, a ordem monárquica impedia que tal acontecesse no
Brasil.
Em termos políticos, pode-se considerar o período
compreendido entre a abdicação de Dom Pedro I, em 1831, e a
legalmente antecipadamente ascensão de Dom Pedro II, em 1840,
como o de verdadeira implantação do Estado Nacional. Às crises
constantes da fase regencial, determinadas pelas eventuais e naturais
divergências existentes entre as elites políticas, sucedeu-se a
acomodação dos interesses que propiciou a estabilidade que, em boa
medida, caracterizou o Segundo Reinado.
Isso foi possível em face da emersão do café como
atividade fadada a sustentar a economia nacional. Substituindo a
mineração que se exaurira, consolidando a supremacia política do
Centro-Sul, ampliando crescentemente as áreas de plantio, o café,
particularmente a partir da década de 1840, liderava com estupenda
vantagem as exportações brasileiras e assegurava uma balança de
comércio favorável.
Com efeito, essa balança sempre foi superavitária entre
1860 e 1885, graças, com certeza, à progressiva ampliação das
exportações de café e ao conseqüente aumento percentual da
produção brasileira sobre a produção mundial desse produto. Alguns
números são impressionantes: enquanto que, na década de 18211830, o Brasil exportava pouco mais de três mil sacas de 60 quilos, no
decênio 1881-1890 esse número ultrapassava 51sacas.
A pujança da economia cafeeira também foi responsável
direta pelo equilíbrio das contas externas, de modo a possibilitar que
novos empréstimos contraídos nos centros financeiros internacionais,
até então tradicionalmente utilizados para cobrir déficits, pudessem
financiar o desenvolvimento interno.
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Construção, ampliação e aperfeiçoamento de ferrovias;
montagem de serviços de fornecimento de água em centros urbanos;
reaparelhamento de portos, foram alguns dos setores beneficiados
com a entrada, no Brasil, das divisas propiciadas pela venda do café
no mercado externo.
Ademais, não há como desvincular esse quadro gerado
pela cafeicultura do primeiro surto industrial conhecido pelo nosso
país, na segunda metade do século XIX. Para se ter uma idéia precisa
do que ocorreu basta verificar o número de patentes industriais
expedidas: se, no período compreendido entre 1821 e 1840, isso
aconteceu apenas cinco vezes, entre 1881 e 1889 as estatísticas
apontam para 955 patentes.
Quero crer que as décadas de 1840, 1850 e 1860,
notadamente as duas últimas, assinalaram a existência de indiscutível
estabilidade política que garantia o funcionamento, sem maiores
traumas, do Parlamentarismo “à brasileira”. Para alguns, isso ocorria
em função da ausência de diferenças substantivas entre os dois
grandes partidos políticos – o Conservador e o Liberal. Outros, como o
respeitado historiador José Murilo de Carvalho, explicam-na sob outra
ótica: “A atividade partidária podia ser exercida e o conflito partidário
existia sem qualquer ameaça à estabilidade política. Os partidos
políticos eram visto com bons olhos. A luta partidária e o conflito
político podiam se dar sem riscos para o Sistema”.
Julgo que a sólida base econômica tornava possível o
encaminhamento das questões políticas. A Constituição de 1824,
conquanto alterada pelo Ato Adicional de 1834, perdurou por todo o
Império. Os dois grandes partidos políticos permaneceram até 1889. O
Poder Moderador comparecia como uma instância legitimadora da
ordem estabelecida, dirimindo eventuais atritos institucionais.
A década de 1870 começa a assistir ao ocaso da
Monarquia. Aos efeitos da guerra contra o Paraguai há que se
adicionar um elemento novo em condições de influir decisivamente na
evolução histórica do Brasil: a expansão do café pelo oeste paulista.
Muito mais do que uma simples transferência de área
geográfica – do Vale do Paraíba às novas terras desbravadas -, a
nova cafeicultura trazia consigo uma mentalidade empresarial,
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consentânea ao próprio estágio de desenvolvimento do sistema
capitalista internacional. A preocupação em racionalizar a produção, a
procura de mão-de-obra alternativa à escrava, a figura do imigrante, o
esforço em ampliar os mercados e em investir os lucros obtidos em
outras atividades produtivas, que não apenas na expansão da lavoura,
atestam a nova realidade.
A estrutura monárquica, erigida por e em função de
interesses determinados, começava a dar sinais de esgotamento.
Novos atores ascendem à cena política – como seriam os casos da
nova fração de proprietários rurais aburguesados e das classes
médias urbanas – que vêem no Império diminuta ou quase nula
possibilidade de atuação.
Não há como negar que, muito mais poderosa que a
oposição vinda de fora, a decomposição monárquica deveu-se às
contradições internas e à paulatina perda de suas bases sociais. Mais
que a Questão religiosa, mais que a Questão Militar, pesou a decisão
de oficializar a abolição da escravidão.
É verdade que o 13 de maio de 1888, apenas antecipou o
que era inevitável. Afinal, as sucessivas leis abolicionistas, da
proibição do tráfico à libertação dos nascituros e dos anciãos
escravos, levavam ao fim do escravismo. A decisão de antecipá-lo
golpeou aqueles setores da aristocracia agrária que sempre
sustentaram o governo imperial. A retirada desse apoio foi fatal para a
Monarquia.
A implantação da República decorreu desse quadro. Que
República foi proclamada a 15 de novembro de 1889? Em meio a
tantas outras, determinadas questões precisam ser destacadas e
criteriosamente estudadas e debatidas a fim de que se possa, com
maior segurança, fazer um balanço do que fomos, do que somos e do
que poderemos ser em termos de Nação e Estado.
Que projeto político presidiu a substituição do regime
monárquico pelo republicano? Houve efetiva consonância entre os
sentimentos da sociedade e a implantação da República? Em que
medida a nova ordem institucional promoveu a modernização do país?
De que maneira pode ser mensurada a transformação das estruturas
econômicas, sociais e políticas do Brasil?
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Eram vários os modelos republicanos em jogo naquele final
de século. Nas poucas áreas mais densamente urbanizadas,
particularmente no Rio de Janeiro, a cena política contemplava grupos
fortemente influenciados pelos ideais jacobinos emergidos da
Revolução Francesa. Para esses, prevalecia a idéia de radicalidade do
processo revolucionário, de modo a fazer a República o momento da
ruptura da História brasileira. Mas, ao excesso de ímpeto respondia a
ausência de base popular.
Havia, ainda, o projeto liberal que, doutrinariamente
influenciado pela Revolução Americana, pretendia a instalação do
regime republicano como viabilizador de reformas sociais e
econômicas.
Foi preciso atrair o segmento militar, foi preciso buscar
junto ao Exército – que se institucionaliza e começa a deter prestígio
com a vitória sobre o Paraguai – a liderança que comandasse a
substituição do regime.
A República nascia e se consolidava sem conseguir
ampliar a cidadania, razão mesma de sua existência. O fim do voto
censitário era acompanhado do surgimento de uma legislação eleitoral
que, por excludente, tornava ainda mais acanhada a participação
popular. A democracia continuava elitista.
Ao contrário da Monarquia, em que existiam partidos
políticos verdadeiramente nacionais – incluindo o Republicano a partir
da década de 1870 -, nossa República somente conseguiu viabilizá-los
após 1946.
Talvez esteja aí o cerne de toda a questão. A República é,
por definição, o regime político que incorpora a população, isto é, não
devendo ser excludente, deve estimular a população, o
desenvolvimento da cidadania, fazer da vida pública a cena política da
qual todos possam participar.
O modelo de 1889, reconheçamos, fracassou. Apenas para
ficar num exemplo – o processo eleitoral -, basta dizer que, até 1870,
participavam das eleições cerca de 10% da população. Na eleição
presidencial de 1894, a porcentagem caiu para incríveis dois por
cento. O índice de participação de 1870 só foi recuperado em 1945.
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Até 1930, o equilíbrio obtido na estruturação e na
organização do Estado fez-se à custa da exclusão da participação
popular, vale dizer, da plena cidadania. Há, a partir da chamada
Revolução de 1930, indícios de alteração nos quadros montados pela
Velha República oligárquica. Mas é sobretudo a partir de 1945, com a
derrocada do Estado Novo, que uma ordem republicana liberal
efetivamente começou a se afirmar.
Ao mesmo tempo em que a economia ensaiava vôos mais
elevados no sentido da modernização – com o incentivo à
diversificação da produção agrícola e do incremento da indústria de
base, cujo símbolo é a Companhia Siderúrgica Nacional - , uma
Constituição liberal, promulgada em 1946, balizava a ampliação dos
espaços de ação política.
A Constituição que elaboramos nos últimos anos,
promulgada a cinco de outubro de 1988, sinaliza para esse objetivo
que, afinal, é de todos nós. Estamos descobrindo, na dureza da
caminhada, que é possível conciliar a liberação política com a justiça
social. A quem possa parecer lenta essa caminhada, eu respondo com
sua irreversibilidade.
A base popular que faltou em 1889 ganha densidade em
2002. A ampliação dos direitos políticos é a garantia de que a
República está se firmando. O direito de voto conferido ao analfabeto
e ao jovem de 16 anos reforça a democracia de massa.
É assim que se faz uma República: professando a
verdadeira ética pública, defendendo e estimulando o integral
exercício da cidadania. É assim que se faz História.
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