editorial - Andrews University

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EDITORIAL
BÍBLIA E JUDAÍSMO: PERSPECTIVAS HERMENÊUTICAS SOBRE A
TRADIÇÃO JUDAICO-CRISTÃ
Bible and Judaism: Hermeneutical Perspectives on the Jewish-Christian Tradition
Há seis meses tive o singular privilégio de ir a Israel pela primeira vez. De
Dan a Bersheba, um misto de emoções e sentimentos marcou aqueles vinte
dias em que estivemos ali. Não necessariamente o sentimento nunca reflexivo
dos peregrinos que se agarram chorando a supostos pedaços da história como
pedras, grutas e madeiras com as quais Cristo e/ou seus seguidores primitivos
teriam entrado fisicamente em contato. Mas, o assombro da experiência quase
surreal de andar pelas terras que, até então, não tinham passado da imaginação
resultante de uma leitura atenta das páginas da Bíblia. Porém, mais importante
que esse deslumbramento, foi o que, logo nos primeiros dias, ocorreu-me ali:
o impacto positivo do conhecimento da cultura hebraica e do judaísmo para
exegese do Antigo e Novo Testamentos.
Embora consciente disso anteriormente, aqueles dias serviram para me
mostrar não apenas que estava equivocado em alguns pontos ou quadros
mentais, mas também para perceber definitivamente que qualquer estudo
bíblico que não leve em conta seriamente a cultura e a geografia do mundo
bíblico estará fadado a sérios problemas interpretativos. Isso nos leva à
importância do diálogo no centro da tradição judaico-cristã.
Tendo em vista esse quadro, beira o absurdo o fato amplamente
comprovado que, ao longo da história “o cristianismo tem se mostrado uma
fonte de ideologias e movimentos anti-judaicos”1. Absurdo porque tanto o
judaísmo quanto o cristianismo “compartilham a mesma raiz e também a
mesma esperança”.2 O judaísmo não é apenas o berço do cristianismo, mas é
o berço de Cristo, dos discípulos e dos autores do NT.
1
FLUSSER, D. Christianity. In: COHEN, A. A.; MENDES-FLOHR, P. (Eds.). 20th
Century Jewish Religious Thought: Original Essays on Critical Concepts, Movements,
and Beliefs. Philadelphia, PA: The Jewish Publication Society, 2009. p. 66
2
IBIDEM, p. 66.
O diálogo entre as duas tradições é marcado por encontros e desencontros.
Desencontros trágicos, num grau menor como no desentendimento
da religião bíblica e de sua mensagem ou num grau maior como nas
ideologias antissemitas que resultaram na marginalização e perseguição
religiosa da Idade Média ou até nos horrores desumanos do holocausto.
No entanto, deixando de lado as páginas sombrias da história, podese concordar com Skarsaune quando deixa explícito no título de seu livro
que o cristianismo nasceu “à sombra do templo”3. Por isso, o entendimento
adequado da assim chamada tradição judaico-cristã, ou o que Skarsaune
chama da “redescoberta das raízes judaicas da fé cristã”4 é fundamental para
a prática de uma exegese que busca levar a sério a mensagem bíblica bem
como a prática de um diálogo frutífero entre as duas tradições.
Por isso, é com satisfação que apresentamos e oferecemos ao público
acadêmico mais um volume da Revista Hermenêutica, cujo número traz
interessantes contribuições nesse diálogo com a cultura e as escrituras judaicas.
Assim, nossa intenção é que através dos artigos aqui apresentados o estudo
das Escrituras seja enriquecido.
Para tanto, além de uma breve resenha do livro “Science, religion and
authority: lesson from the Galileo affair” de Richard J. Blackwell, o presente
volume traz cinco interessantes temáticas que na sua maioria cooperam
diretamente para uma adequada hermenêutica bíblica através do diálogo com
a cultura judaica antiga e contemporânea.
O primeiro artigo “A imortalidade da alma e a integralidade humana
nos escritos de Ellen White” está diretamente ligado à concepção hebraica de
entender a natureza humana. A noção bíblica do homem (humanidade) como
um todo indivisível é uma marca muito distinta do pensamento judeu que
desde seus primórdios contrasta diametralmente com o pensamento dualista
grego. Na presente pesquisa, os autores intentam analisar o pensamento
monista judaico-cristão e as infiltrações do pensamento dual platônico na
teologia cristã e, a partir daí, compreender o pensamento de White em trechos
selecionados de sua obra, buscando motivações e referenciais. As implicações
disso perpassam não apenas a obra da escritora, mas também a compreensão
das Escrituras como um todo.
O segundo artigo “A evidência linguística e extra-linguística para
a tradução de arsenokoitai”, embora não diretamente relacionado com
o mundo judaico, não pode ser dissociado do mesmo já que o termo
3
SKARSAUNE, Oskar; MENDES, Antivan Guimaraes. A sombra do Templo: as influências
do judaismo no cristianismo primitivo. São Paulo: Vida, 2004.
4
IBIDEM, p.460.
em questão vem da pena de Paulo “...circuncidado ao oitavo dia, da linhagem
de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu de hebreus; quanto à lei, fariseu”.
(Fl 3:5 ARA). No presente artigo, o autor visa esclarecer o termo arsenokoitai
que, essencialmente paulino, ocorre em 1 Co 6:9 e 1 Ti 1:9-10. O autor
examina o peso da evidência linguística (morfologia e semântica) e literária
(contexto histórico, crítica genética, gênero e contexto vital) para a tradução
mais apropriada do vocábulo em perspectiva.
Por sua vez, em “Verdade, mentiras e ironias: uma breve análise de 2Re
22”, os autores revisitam o enigmático personagem conhecido na narrativa
bíblica como o “espírito mentiroso” da parte de Yahweh. Os autores exploram
a perícope no contexto de uma cena judicial israelita do período da monarquia
dividida, levando em conta a linguagem irônica da passagem. Tal recurso é
amplamente utilizado na literatura bíblico- judaica como dispositivo literário.
Assim, como se verá, o intérprete estará muito mais preparado para abordar
essa singular narrativa veterotestamentária quando os contextos jurídico e
literário judaicos são levados em conta.
No quarto artigo, “O casamento judeu: rituais, crenças e significados”,
os autores examinam essa milenar instituição judaica. Nele é demonstrada
a necessidade de maior aprofundamento acerca das tradições ligadas ao
casamento judeu em seus rituais, crenças e significados. Além de proporcionar
insights interessantes sobre a relação conjugal como idealizada por Deus nas
Escrituras, o artigo também poderá contribuir para uma melhor compreensão
do contexto bíblico familiar tão impregnado em muitos textos da Bíblia
Hebraica e do Novo Testamento.
No último artigo, “Gauchet e o messianismo”, analisa-se a tese de
Marcel Gaucht de que Jesus foi um “messias ao revés”, que abarcava tanto
a exclusividade de Israel conforme expressa na aliança e na universalidade
de Yahweh enquanto criador e regente das nações. Ademais, busca-se ainda
o significado do messianismo para os judeus em comparação com “o rei
sagrado” dos povos vizinhos bem como do messianismo de Jesus para os
judeus, através da literatura judaica pós-cristianismo.
Assim, sinceramente esperamos que o presente número da Revista
Hermenêutica porporcione uma experiência mais edificante no estudo da
Palavra de Deus. Além disso, desejamos estimular o estudo da Bíblia a partir
de seu próprio milieu, a saber, a cultura, história e geografia do povo judeu
como importantes chaves hermenêuticas para a interpretação das Escrituras.
De fato, entender o judaísmo também significa entender melhor nossa própria
cultura ocidental, visto que poucas culturas exerceram tão profunda influência
sobre a política, economia, literatura e arte como aquela do povo judeu.
Isso não apenas nos chama a uma atitude de respeito, mas a uma
disposição de diálogo aberto onde ambos os lados, judaísmo e cristianismo,
podem sair ganhando. Por isso, andar pelas terras de Israel, mesmo que
deslizando pelas páginas dos livros, sempre será recompensador para o ávido
estudante das Escrituras oriundas da tradição judaico-cristã.
Professor de Interpretação do Antigo Testamento
Seminário Adventista Latino-Americano de Teologia
Email: [email protected]
JÔNATAS DE MATTOS LEAL
SOBRE A INTEGRALIDADE HUMANA E A MORTALIDADE
DA ALMA A PARTIR DOS ESCRITOS DE ELLEN WHITE
About the Human Completeness and the Immortality
of the Soul from the Writings of Ellen White
Wilhelm Wachholz1
Fábio Augusto Darius2
RESUMO
A integralidade humana – corpo, alma e espírito – como elementos intrínsecos e
absolutamente indissociáveis é mote que perfaz a totalidade da prolífica obra de Ellen
White, concebida ao longo de mais de setenta anos entre o fim da primeira metade
do século XIX e o início do século XX, sob o advento do progresso de sua nação
estadunidense. Teleológica e assistemática, sua obra abordou temas aparentemente
tão díspares como teologia geral, escatologia, estilo de vida, saúde, história e educação,
sempre visando à redenção humana, cujo processo será finalizado com o aparecimento
literal de Cristo, ressuscitador dos corpos. Os escritos whiteanos, monistas portanto, se
opõem diametralmente ao sistema dual platônico, legando aos adventistas do sétimo
dia de cuja denominação ela é cofundadora – uma posição minoritária entre os cristãos
contemporâneos. O presente artigo intenta analisar o pensamento monista judaicocristão e as infiltrações do pensamento dual platônico na teologia cristã e, a partir daí,
compreender o pensamento de White em trechos selecionados de sua obra, buscando
motivações e referenciais.
PALAVRAS-CHAVE: Integralidade Humana. Mortalidade da Alma. Teologia Adventista.
ABSTRACT
Human integrality - body, soul and spirit - as intrinsic elements is the motto that supports
White’s entire line of work, a concept developed for over seventy years between the 19th
century and the early 20th century, under the advent of progress of her nation, the United
States. Teleological and unsystematic, her work tackled themes seemingly disparate, such
as general theology, eschatology, lifestyle, health, history and education, always aiming
human redemption, whose process will be complete upon the literal appearance of
Christ, resurrector of bodies. In White’s texts, monism opposes the dual Platonic system,
bequeathing to the Seventh-Day Adventists – whose order she is a co-founder – a minority
position among contemporary Christians. This article intends to examine the monistic
Judeo-Christian thought process and the infiltrations of the dual Platonic thought process
in Christian theology and, from there, understand the reasoning behind White’s selected
snippets, seeking their motivations and references.
KEYWORDS: Human Integrality. Mortality of the Soul. Adventist Theology.
1
Doutor em Teologia pela Escola Superior de Teologia - EST. Professor na área de História da
Igreja nas Faculdades EST e pesquisador com apoio da CAPES. E-mail: <[email protected]>
2
Doutorando em Teologia pela Escola Superior de Teologia - EST. Atua como Historiador pela
Universidade Regional de Blumenau - FURB e pesquisador com apoio da CAPES, sobre a teleologia da
obra dialética da escritora estadunidense Ellen White. E-mail: <[email protected]>.
12 | WILHELM WACHHOLZ / FÁBIO AUGUSTO DARIUS
O PERIGO NEOPLATÔNICO NA TEOLOGIA CRISTÃ
O perigo do neoplatonismo no cristianismo latino e ocidental tem sua
principal origem em Agostinho de Hipona (354-430). Embora Agostinho
tenha abandonado o maniqueísmo3, que tinha muito em comum com o
gnosticismo4, haverá de se perceber nele um dualismo que se assentou sobre
o neoplatonismo que adotou durante sua atuação em Milão. O refúgio de
Agostinho no neoplatonismo tem a ver com o fato de que no maniqueísmo
não encontrou a concepção satisfatória de Deus. O maniqueísmo concebia
Deus como mutável, “dependente” das alterações existenciais independentes.
Segundo Hägglung (1995), o neoplatonismo concebia Deus como bem
absoluto, imutável, portanto, independente das mudanças existenciais.
Pessanha (1996) afirma que, para Agostinho, neoplatonismo
e cristianismo não se excluíam; pelo contrário, aquele auxiliava no
aprofundamento da compreensão deste, embora para ele a fórmula fundamental
era intellige ut credas, crede ut intelligas (“compreender para crer, crer para
compreender”). De fato, para o neoplatonismo, toda a busca humana é pela
felicidade: “certamente todos desejamos viver felizes” (AGOSTINHO, apud
HÄGGLUNG, 1995, p. 100).
Contudo, a busca pela felicidade não se dirige simplesmente às coisas
temporais, pois as coisas materiais não trazem a satisfação plena. Isso se
evidencia no fato de que, quando o ser humano alcança um alvo material
desejado, não se contenta com este, mas dirige sua busca na direção de
um novo alvo, o que evidencia que os alvos materiais/temporais não têm
valor absoluto. Além disso, o bem material e temporal é perecível e mutável;
portanto, a tentativa de fazer repousar a felicidade no que é temporal, logo
evidenciará também que a felicidade “morre” na dependência deste objeto
passageiro. Por isso, o alvo da satisfação plena somente pode ser encontrada
em Deus, que é summum et incommutabile bonum. Devido à busca humana pela
felicidade suprema, Agostinho conclui que existe no ser humano um desejo
natural por Deus. Hägglung (1995) ressalta que o ser humano, portanto, busca
a união com o transcendental. Nesta união, a alma encontrará paz e clareza.
3
Religião originária da Pérsia, fundada por Mani, na primeira parte do século III, caracterizava
a realidade humana a partir do espiritual/luminoso e da matéria/físico/tenebroso. Ante a esta situação,
a salvação consiste em separar os dois elementos. GONZALEZ, Justo L. E até aos Confins da Terra:
uma história ilustrada do cristianismo; a era dos gigantes. São Paulo: Vida Nova, 1980. p. 165.
4
Nome que caracteriza diferentes escolas de pensamento que surgiram nos primeiros séculos
do cristianismo, cujo sistema se caracterizava pelo dualismo entre o mundo do espírito e o mundo
material, sendo que a salvação significaria a libertação do espírito de sua dimensão corpórea e material.
HÄGGLUNG, Bengt. História da Teologia. 5. ed. Porto Alegre: Concórdia, 1995. p. 27.
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SOBRE A INTEGRALIDADE HUMANA E A MORTALIDADE DA ALMA A PARTIR DOS ESCRITOS...
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O credo ut intelligam possibilita o conhecimento de Deus, pois a fé
aproxima a pessoa do Inefável. O princípio neoplatônico concebia o Inefável
como círculos concêntricos decorrentes de uma pedra jogada na água. No
centro, as ondas são maiores e, quanto mais distantes deste seu centro, mais
se tornam menores até inexistirem. Por isso, a união e contemplação mística,
até mesmo chegando ao êxtase, permite o melhor conhecimento de Deus.
Agostinho tinha grande consideração, por esta razão, à vida de reclusão
(monástica), pois entendia que este caminho permitia a melhor comunhão da
alma com Deus (GONZALEZ, 1980, p. 167; HÄGGLUND, 1995, p. 101;
PESSANHA, 1996, p. 17).
Conforme Hägglund (1995), a busca do ser humano define
qualitativamente o seu amor, ou seja, aquilo que evidencia a vontade interior
do ser humano. Assim, a vontade humana pode evidenciar pelo amor caritas
ou cupiditas. Caritas é o amor verdadeiro, o amor ao bem excelso, que se dirige
ao eterno, ao celestial, para “cima” (ascendit). Cupiditas, ao contrário, é o amor
falso, pervertido, que se dirige ao mundo, ao sensual, ao material e temporal,
portanto, é o amor que se dirige para “baixo” (descendit).
Agostinho não desprezava, em decorrência de sua concepção de caritas
e cupiditas, as coisas da criação. O problema, para ele, era quando as coisas
do mundo alcançavam o primeiro plano de importância na vida da pessoa.
Por isso, em relação ao usufruir as coisas da criação de Deus, que é boa, ele
distinguia entre uti (usar) e frui (deleitar-se em). Somente se deveriam usar as
coisas temporais como instrumentos a serviço de um modo mais sublime de
vida e amor. Assim, mais uma vez, caritas e cupiditas definem a maneira como o
ser humano assume o uti ou o frui. O ser humano é caracterizado pelo cupiditas
ama “[...] por causa da coisa em si (diligere propter se)” enquanto o amor
caritas leva a amar “[...] por causa de outra coisa (diligere propter aliud)”
(HÄGGLUNG, 1995, p.102).
Caritas encontra sua verdadeira felicidade na pátria celestial, razão
pela qual as coisas temporais não se trazem à satisfação plena. Cupiditas, ao
contrário, busca a felicidade nas coisas finitas. Assim, Agostinho conclui
que “os bons usam o mundo para poderem encontrar seu prazer em Deus;
os perversos, ao contrário, querem usar a Deus para que possam gozar o
mundo.” (op. cit, 1995, p. 102).
A partir de caritas e cupiditas, Agostinho também desenvolveu sua
compreensão antropológica e soteriológica em combate ao pelagianismo.
Antes da queda, segundo Agostinho, o ser humano gozava da plena
liberdade, inclusive a liberdade que incluía a própria queda. Assim, o primeiro
pecado decorreu do próprio livre arbítrio que caracterizava o ser humano
“original”, antes da queda. Com a queda, o caritas foi substituído pelo cupiditas.
A única liberdade que restaria, após a queda, era a liberdade de pecar. O
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pecado marcaria para sempre a natureza humana de tal forma que, com o
batismo a culpa fica removida, mas a natureza pecadora da pessoa permanece
(PESSANHA, 1996, p. 20-21; HÄGGLUNG, 1995, p. 114).
A natureza pecadora do ser humano não lhe permite cooperar em sua
própria salvação. Contra Pelágio, para quem o ser humano tem liberdade
para escolher entre o bem o e o mal, para quem o pecado não é defeito da
natureza, mas somente da vontade, que pode ser dominada por escolha em
fazer o bem, Agostinho defendia a salvação como ação de fora, ou seja, obra
absoluta de Deus. Para enfatizar a salvação como obra absoluta de Deus,
Agostinho defendeu a predestinação, ou seja, a salvação não depende da
vontade e cooperação humana, mas da vontade e decreto de Deus. As pessoas
predestinadas por Deus para a salvação recebem a infusio caritatis (infusão de
amor) que transforma da vontade da pessoa, ou seja, restaura a vontade de
Deus na pessoa por meio de Jesus Cristo (HÄGGLUNG, 1995, p. 112-117;
PESSANHA, 1996, p. 12).
DUALISMO NEOPLATÔNICO E MONISMO JUDAICO-CRISTÃO
Até aqui, ficou já um pouco explicitado certo dualismo em Agostinho,
especialmente ao conceber a união da alma com Deus. O dualismo
neoplatônico do teólogo africano, contudo, aparece mais explicitamente ao
flertar com o gnosticismo em torno do tema da imortalidade da alma. Para
ele, o corpo é governado por uma substância distinta, denominada de alma,
que é imortal. O corpo, por sua vez, é instrumento para a consecução das
atividades materiais que decorrem da alma. “O corpo foi pensado como
instrumento da alma para que a alma possa agir no mundo”(COMBLIN,
1985, p. 81). Afirmou Agostinho: “E se quer uma definição da alma, e saber
o que ela é, respondo facilmente: É substância dotada de razão, apta a reger
um corpo” (1997, p. 66). Battista Mondin define a relação de corpo e alma
em Agostinho assim:
A sua argumentação para provar a espiritualidade da alma é a seguinte: ou a alma
pode exercer sua atividade (querer, pensar, duvidar, etc) sem o corpo, e então é
espiritual, ou é incapaz de exercer sua atividade sem o corpo, e então é material.
Ora, pelo menos em um caso a alma pode desenvolver sua atividade sem o corpo:
quando conhece a si mesma. Logo, a alma é espiritual.
A espiritualidade da alma é, pois, confirmada pelo que ela conhece de si mesma.
Quando a alma conhece a si mesma, descobre que é uma substância que vive, que
recorda, que quer, etc, e isto não tem nada a ver com o que é corpóreo.
Provada a espiritualidade, Agostinho passa a provar a imortalidade, retornando o
argumento platônico da relação da alma com as idéias (1982, p. 146-147).
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SOBRE A INTEGRALIDADE HUMANA E A MORTALIDADE DA ALMA A PARTIR DOS ESCRITOS...
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O neoplatonismo de Agostinho consiste no fato de permanentemente
definir o ser humano como uma alma que se vale de um corpo. No corpo, a
alma tem funções ativas – e o corpo, passivas! – sobre o corpo:
[...] atenta a tudo o que se passa ao redor, nada deixa escapar à sua ação. Os órgãos
sensoriais sofreriam as ações dos objetos exteriores, mas com a alma isso não
poderia acontecer, pois o inferior não pode agir sobre o superior. Ela, no entanto,
não deixaria passar despercebidas as modificações do corpo e, sem nada sofrer,
tiraria de sua própria substância uma imagem semelhante ao objeto. Essa imagem,
que constituiria a sensação, não é, portanto, paixão sofrida pela alma, mas ação
(PESSANHA, 1996, p. 13).
Pela instabilidade dos objetos exteriores, não é possível verdadeiro
conhecimento. Em outras palavras, o conhecimento não é dado a partir dos
objetos exteriores, razão pela qual o verdadeiro conhecimento somente pode
ser alcançado na descoberta de regras imutáveis, que residem na realidade
não-sensível. Portanto, a verdade somente pode ter como fundamento o
imutável, a saber, Deus. E, como explicita Mondin (1979, p. 11) para, então,
ter conhecimento da verdade de Deus, Agostinho elabora a doutrina da
iluminação – Deus se revela ao ser humano na alma deste –, que ocorre na
união da alma com Deus. “Entender algo inteligivelmente equivaleria a extrair
da alma sua própria inteligibilidade e nada se poderia conhecer intelectualmente
que já não se possuísse antes, de modo infuso” (PESSANHA, 1996, p. 1617).
A afirmação do “saber prévio”, de acordo com Pessanha (1996, p. 17),
aproxima Agostinho do platonismo, para o qual conhecimento é reminiscência.
Distingue-se, é verdade, de Platão, por não defender o entendimento como
descoberta de conteúdo passado, mas como irradiação do divino para dentro
do presente. Então, não é a alma que teria uma existência anterior, mas uma luz
eterna de Deus que irradia e possibilita o conhecimento das verdades sublimes.
Esta iluminação capacita o intelecto humano a pensar corretamente.
Que amo então quando amo o meu Deus? Quem é Aquele que está no cimo da
minha alma? Pela minha própria alma hei de subir até Ele. Ultrapassarei a força
com que me prende ao corpo e com que encho de vida o meu organismo. Mas não
é com essa vida que encontro o meu Deus, porque (nesse caso) também “o cavalo
e a mula, que não têm inteligência”, O encontrariam, pois possuem essa mesma
força que lhes vivifica os corpos (AGOSTINHO, 1996, p. 266).
Modin (1979, p. 11) afirma que nisso fica evidenciada a percepção
antropológica dualística de Agostinho, em que o ser humano fica reduzido
essencialmente à alma. E mais evidente ainda este dualismo fica na
compreensão de Agostinho sobre a imortalidade da alma. Dussel afirma
sobre este dualismo:
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Uma dupla questão impulsionava Agostinho a aceitar sem reservas o dualismo:
sua doutrina do pecado original e a demonstração da imortalidade. Ambas as teses,
tal como as explicou Santo Agostinho significam certa deformação da doutrina
original do judeo-cristianismo. Tratar-se-á como sempre de um dualismo mitigado
por uma consideração do homem como uma pessoa (1974, p. 176).
O dualismo neoplatônico de Agostinho levou o cristianismo ao perigo
da valorização da alma em detrimento do corpo. O corpo seria algo como
uma prisão da verdadeira humanidade da pessoa que estaria na alma. Por isso,
também, fez-se uma separação entre as atividades relacionadas ao intelecto
das atividades relacionadas ao corpo (trabalho braçal), privilegiando-se aquele.
O pensamento judaico-cristão, contudo, diferentemente do pensamento
grego, que não conhece uma relação entre corpo e intelecto, concebe o ser
humano como unidade. Corpo, alma e espírito são aspectos de uma unidade
e totalidade humana. “Para o evangelho cristão, tudo no homem é corporal,
tudo é espiritual, tudo é alma”(COMBLIN, 1985, p. 77).
Hans Walter Wolff propõe o resgate da antropologia judaico-cristã,
relendo os principais conceitos vétero e neotestamentários que caracterizam
o ser humano que, segundo ele, se perderam da passagem do Antigo para o
Novo Testamento pela tradução da Septuaginta. Segundo Wolff,
Ao traduzir, via de regra, os substantivos hebraicos mais frequentes com as
palavras “coração”, “alma”, “carne” e “espírito”, ocorreram equívocos de graves
consequências. [...] e acarretaram uma antropologia dicotômica ou tricotômica, na
qual o corpo, a alma e o espírito se encontram em oposição mútua (2007, p. 29).
Knight (2008, p. 352) apresenta que, para Ellen White, coração, alma,
carne, espírito, conforme o pensamento judaico-cristão não indicam partes,
mas o todo humano. Para dizê-lo de forma mais coloquial, cada um destes
conceitos podem ser comparados a janelas de uma casa. As janelas são
diferentes, mas permitem, cada qual, olhar para dentro de um todo, a casa, de
ângulos diferentes. O todo, contudo, fica preservado.
Wolff (2007, p. 30-31) se vale do conceito de Landsberger, a saber,
“estereometria da expressão ideativa”, para explicar o uso e compreensão dos
órgãos humanos. Estes, quando citados, podem facilmente ser substituídos
por pronomes (por exemplo: “A sabedoria entrará no teu coração - ... entrará
em ti – Pv. 2.10). Além disso, os órgãos são citados em suas funções, contudo,
esta função do órgão não tem fim em si mesma, mas função para todo o ser
humano. A partir disso, Wolff defende que o pensamento hebraico é sintético,
ou seja, que os órgãos não são independentes, mas “funcionam” e dizem
respeito ao todo. Disso conclui Wolff que o pensamento hebraico é sintéticoestereométrico.
A partir da verificação sintético-esteriométrica do pensamento hebraico,
| SEMINÁRIO ADVENTISTA LATINO-AMERICANO DE TEOLOGIA - SALT |
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Wolff aponta para a pluralidade de possibilidades de tradução e significados
dos termos hebraicos que definem o ser humano. Néfesh, que aparece 755
vezes no AT, foi traduzido 600 vezes por alma na Septuaginta. Seu significado,
contudo, é mais amplo, podendo indicar, além de alma, também garganta,
pescoço, anelo, vida, pessoa e, como já mencionado acima, o pronome
(WOLFF, 2007, p. 33ss). Portanto, néfesh não pode ser “imaterializado”,
“descorporificado”, como quer o pensamento grego.
O mesmo vale para outros importantes conceitos para nosso estudo.
Basar pode significar, além de carne, também corpo, parentesco ou fraqueza.
Cabe ressaltar que o hebraico somente tem o conceito basar para aquilo que
o grego pode utilizar sarx (carne) e sôma (corpo). Como basar pode também
significar fraqueza ética, fica evidenciado que não se pode traduzir basar
simplesmente como carne/corpo, ou seja, no sentido “material” como quer
o pensamento grego (op. cit, 2007, p. 56ss).
Semelhantemente, rûah, que pode ser traduzido como vento, respiração,
força vital, espírito(s), temperamento e força de vontade, indica a totalidade
da vida do ser humano – respiração, fôlego, força vital, estado de ânimo. Mais
do que isso, rûah liga o ser humano com Deus, pois a vida é força criadora que
vem de fora, vem de Deus (op. cit, 2007, p. 67ss).
Finalmente, lebeb/leb, que aparece 858 vezes no AT, é traduzido por
coração, sentimento, desejo, razão, decisão da vontade, o “coração” de Deus.
Os conceitos são utilizados em ambos os sentidos: coração com suas funções
fisiológicas (este uso é raro) e no sentido figurado. Neste caso, leb expressa
atividades de natureza intelectual-psíquica (op. cit, 2007, p. 79ss). Isso é
fundamental, pois o hebreu “não pensa com o cérebro, mas com o coração”.
Ou seja, a atividade intelectual não está separada da “afetividade que vem do
coração”.
Conforme Rosa (2010. p. 167-181), é o pensamento judaísta-palestinense
– e não o judaísta-helenista/grego! – que caracterizará o pensamento
neotestamentário, especialmente em Paulo. Psyché é empregado de forma
semelhante a néfesh, indicando a vida do ser humano na sua totalidade. Em
contraste com pnêuma (espírito), psyché indica a vida natural sem Deus; é o
psychikos anthrôpos (homem psíquico – cf. 1 Co 2,14), autocentrado em si
próprio. Em contraste com este, o homem pneumático é aquele que vive, na
sua totalidade, em Deus. Sarx, no grego, equivale a basar no hebraico e indica
tudo o que é meramente humano. Em Paulo, sarx é rebeldia contra Deus,
sinônimo de pecado. Portanto, o “homem carnal” é totalmente pecador.
Sôma, embora apareça muitas vezes como sinônimo de sarx, é distinto deste.
Enquanto sarx é o “velho homem”, pecador, que precisa morrer, o sôma é
algo da ressurreição e plenificação final. Finalmente, kardia se relaciona com
o conceito de leb. O uso em Paulo também não pode ser compreendido a
| REVISTA HERMENÊUTICA, CACHOEIRA-BA, VOL. 12, N. 2, P. 11-24 |
18 | WILHELM WACHHOLZ / FÁBIO AUGUSTO DARIUS
partir da concepção dualista grega que tende a separar coração de intelecto.
Em Paulo, kardia e nous (mente) aparecem de forma paralela. Portanto, kardia
é lugar da mudança da mente; é lugar da atividade intelectual e espiritual.
Disso se deve concluir que, o pensamento judaico-palestinense, que
perpassa toda Bíblia, não compartimentaliza o ser humano. O ser humano
sempre é uma totalidade. Ademais, a vida de santidade, ou seja, a “vida
pneumática” envolve novamente a totalidade do ser humano. Finalmente,
por causa disso, o pensamento hebraico não concebe a imortalidade da alma,
por ser supostamente uma dimensão separada e que pode se “descolar” do
corpo. Também não concebe a superioridade da alma em relação ao corpo,
como quer o neoplatonismo. A partir do até aqui exposto, buscaremos a
concepção antropológica proposta pela Igreja Adventista do Sétimo dia a
partir dos escritos de Ellen White.
CONTEXTO HISTÓRICO E DOUTRINÁRIO DA IGREJA ADVENTISTA DO
SÉTIMO DIA EM REVISTA
Dezesseis séculos após o advento de Agostinho, na fremente região
americana da Nova Inglaterra, palco do Grande Despertamento edwardiano e
nascedouro de sistemas filosófico-teológicos tão distintos quanto o moderno
espiritualismo e o mormonismo5, surge a Igreja Adventista do Sétimo Dia.
Incipiente e paradoxal em seu início, foi fruto de um movimento apocalíptico
iniciado por Guilherme Miller, um batista calvinista leigo, que “prometeu
contar ao mundo” (ROWE, 2008, p. 102) a volta literal de Cristo nas nuvens
do céu em outubro de 1844. Em parte, a paradoxalidade adventista do sétimo
dia reside em sua “rejeição à essência do mito americano” (BULL, 2006) – o
American Way of Life havia sido proposto poucos anos antes dando ênfase
às pretensões estadunidenses de hegemonia americana e mundial, crendo no
individual em relação ao coletivo, dentre outras características – embora, por
sua postura altamente pragmática e crenças específicas, esta denominação
possa facilmente ser associada aos Estados Unidos de seu tempo.
Maxwell (1982, p. 163) afirma que a Igreja Adventista do Sétimo Dia
foi formada a partir de uma “colcha de retalhos” doutrinária, recebendo
membros das mais diversas denominações cristãs – incluindo sacerdotes
católicos! – e, baseando-se no princípio reformador de recorrer somente às
Escrituras Sagradas como regra de fé e não contando com muitos eruditos em
seus quadros, além da já alegada pragmaticidade, muito hesitou em publicar
acerca de suas premissas. Na verdade, tamanha foi a oscilação que muitos
5
Surgiu em Palmyra, berço da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos dias e Hydesville,
cidade onde surgiu o moderno espiritismo estão a uma distância de apenas 18 quilômetros. WEISBERG,
Barbara. Falando com os mortos: as irmãs americanas e o surgimento do espiritismo. Rio de Janeiro:
Agir, 2011, p. 64.
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SOBRE A INTEGRALIDADE HUMANA E A MORTALIDADE DA ALMA A PARTIR DOS ESCRITOS...
| 19
eram contrários inclusive a uma estrutura denominacional.
No desenvolvimento de suas crenças, os adventistas do sétimo dia se preocuparam
mais em assimilar os ensinos práticos da Escritura do que em elaborar uma teologia
sistemática. Alguns assuntos receberam mais atenção que outros. Assim sendo,
do ponto de vista histórico, os adventistas do sétimo dia podem ser classificados
como de concepção arminiana6 embora, à semelhança do protestantismo como
um todo, admita ênfases diferenciadas (DEDEREN, 201, p. 255)
.
Para completar o quadro heterogênico da então ainda seita, Ellen White,
de acordo com Joslyn (2000, p. 6) fora a grande propulsora dos adventistas
do sétimo dia e era uma mulher negra e afrodescentende. Douglas (20003, p.
134) ainda afirma que ela era acometida por sonhos e visões que a ajudaram
a compor ao longo dos setenta anos dedicados à causa7, milhares de páginas
manuscritas, apesar de nunca ter terminado seus estudos (WHITE, 2000, p. 1315). O movimento de White, tentando fugir de uma espécie de estratificação
dogmática, “era anticredo” (KNIGHT, 2005, p. 30), como muitos outros
movimentos restauracionistas anteriores. Contudo, ele se percebia, ainda
seguindo os passos de Miller, como profético, tendo uma missão especial e
desafio para os “últimos dias”, a saber, restaurar a verdade bíblica:
A história da Igreja apresenta numerosos exemplos em que as denominações cristãs
têm permitido que a autoridade das Escrituras seja obscurecida por tradições
humanas, razão, experiência pessoal e cultura contemporânea. Os adventistas
estão convictos de que Deus suscitou a Igreja Adventista do Sétimo Dia, dentro
dos desafios dos últimos dias” (2Tm 3:1), para restaurar e enaltecer a autoridade
de sua Palavra e promover um sistema de interpretação bíblica derivado da própria
Escritura (TIMM, 2007, p. 12)).
Percebe-se que a identidade adventista do sétimo dia reside em seu
“senso de missão” de “restaurar” as antigas e esquecidas verdades bíblicas. A
integralidade humana e a questão da mortalidade da alma – juntamente com
a questão do sábado e do santuário celeste – são componentes absolutamente
indissociáveis e inegociáveis dessa complexa estrutura e maleável estrutura
teológica.
6
“A orientação teológica do adventismo tem mais a ver com aquilo que os historiadores
eclesiásticos chamam de a Reforma Radical ou os anabatistas”. KNIGHT, George R. Em Busca
de identidade: o desenvolvimento das doutrinas adventistas do sétimo dia. Tatuí: Casa Publicadora
Brasileira, 2005, p. 29:
7
De acordo com o autor, essas visões, que também acometiam outras mulheres, eram
“normalmente criticadas”.
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ELLEN WHITE, A “VERDADE PRESENTE” E SUA CONCEPÇÃO
ANTROPOLÓGICA: APORTES BREVES E CONCLUSÃO
White e os fundadores do adventismo do sétimo dia acreditavam
naquilo que chamava de “verdade presente”, sendo que esta “era dinâmica
(e não estática) e que podia ser alterada à medida que o Espírito Santo
conduzia a igreja”(KNIGHT, 2005, p.12). White (2010, p. 25) enfatiza
que deste modo, a qualquer momento, qualquer crença poderia ser
posta em revisão e desuso, fazendo com que a compreensão doutrinária
dessa denominação perpassasse por um viés estritamente histórico.
Contudo, existem alguns “marcos antigos”, inegociáveis, a saber:
a luz do sábado do quarto mandamento lançava seus fortes raios no caminho
dos transgressores da lei de Deus. A não-imortalidade dos ímpios é um marco
antigo. Não consigo lembrar-me de alguma outra coisas que possa ser colocada na
categoria dos antigos marcos (WHITE, 2010, p. 21).
Portanto, desde praticamente os primórdios, a guarda do sábado e a
questão da mortalidade da alma aparecem nos textos de Ellen White. O tema
da integralidade e condição humana parece vir processualmente, de acordo
com a concepção da verdade presente. Teologicamente, White (1883, p. 8)
concordaria com Agostinho – a quem ela citou en passant algumas vezes, embora
somente uma vez aludido às suas palavras – acerca da plenitude humana antes
da queda, mas não lhe daria ouvidos a respeito de suas afirmações de que
o homem não pode cooperar com Deus na sua própria salvação(WHITE,
1911, p. 482). Ellen White não era dualista, jamais reduzindo o corpo apenas
à alma, como escreveu inúmeras vezes. Afinal, mais da metade de toda a
sua obra diz respeito ao cuidado com o corpo. Segundo ela, “toda criatura
humana é, corpo, alma e espírito, propriedade de Deus. Cristo morreu para
redimir a todos”(op. cit., p. 488).
Caviness (2012) relata que embora visualizasse o ser humano de forma
integral, enfatizando uma visão holística de equilíbrio entre corpo, alma e
espírito, White percebia a capital importância do espírito com relação à mente,
centro de comunicação com divino – que por fim penetra no coração8 – para
pleno funcionamento do todo humano. De acordo com ela, “as faculdades
do espírito são as mais elevadas potências: tem de governar o reino do corpo”
(op. cit., 1942, p. 399). No entanto, sem o cuidado do corpo, não haveria
completa comunicação com o espírito e o homem, nesse caso, estaria em
8
“A mente não pode pensar com clareza e ser vigorosa no agir, quando as faculdades físicas
sofrem em resultado de fraqueza ou doença. O coração é impressionado por meio da mente”. WHITE,
Ellen. Counsels to Parents, Teachers, and Students. Mountain View, CA: Pacific Press Publishing
Association, 1943, p. 177.
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SOBRE A INTEGRALIDADE HUMANA E A MORTALIDADE DA ALMA A PARTIR DOS ESCRITOS...
| 21
desequilíbrio – em pecado portanto – dessemelhante a Cristo, nosso único e
todo-suficiente exemplo. Afirma ela que:
A semelhança a Cristo sempre deve ser preservada. A mente e o coração têm de ser
purificados de todo pecado, de toda dessemelhança a Cristo. Deus tem deveres para
todos em Seu serviço, para serem reafirmados por todo membro de igreja. Seu povo
deve exaltar o poder da lei9 acima do juízo humano. Pondo todo o ser, corpo, alma e
espírito em harmonia com a lei, devem eles estabelecer a lei (WHITE, 1979, p. 99).
A visão antropológica whiteana, desde os primeiros tempos, concebia,
de acordo com a visão judaica, o homem como possuidor de uma alma
mortal. De acordo com esta visão, antitética à grega, há o reestabelecimento
e ressurreição literal dos corpos na parousia, corpos estes que no instante da
morte começam a apodrecer na sepultura. Sem o corpo, perece a alma, não
havendo nenhuma possibilidade de reencarnação ou contato com os mortos.
Afinal, “a alma não pode existir à parte do corpo, pois o homem é uma
unidade”(KNIGHT, 2008, p. 354). Essa perspectiva coloca os adventistas do
sétimo dia em uma posição minoritária em relação às outras denominações
cristãs. De acordo com Conkin (1997):
(...) As corrupções do mundo atual exigem um evento apocalíptico com a
intervenção de um salvador divino, o reino vindouro será, em todos os sentidos, um
reino, literal mundano, presidido por Jesus. Vai envolver uma ressurreição literal. As
pessoas vão voltar à vida novamente. Isso indica (...) um repúdio a qualquer crença
em uma mente separável, ou alma, qualquer concepção “espiritual” do reino, e
de qualquer continuação da pessoa humana após a morte e antes da ressurreição
(uma doutrina muitas vezes chamado sono da alma). Esta rejeição de imaterialismo
grego tem permanecido um marco distintivo dos adventistas, e correlativo a esta
tem sido uma rejeição de qualquer conceito de tormento sem fim (CONKIN,
1997, p. 115).
Ao escrever sobre a mortalidade condicional, White “corrige
o interesse popular no espiritismo [...] que ela considera um engano
introduzido pelo diabo e divulgado posteriormente pelo paganismo e pelo
falso cristianismo”(DEDEREN, 2011, p. 383). Para ela, a questão é das mais
urgentes e importantes nesses tempos finais e são inúmeros os manuscritos a
esse respeito. De acordo com ela, somos mortais porque pecadores:
A fim de possuir uma existência eterna, o homem devia continuar a participar
da árvore da vida. Privado disto, sua vitalidade diminuiria gradualmente até que
a vida se extinguisse. Era o plano de Satanás que Adão e Eva pela desobediência
incorressem no desprazer de Deus; e então, se deixassem de obter o perdão,
9
Para o adventista do sétimo dia, “na qualidade de reflexo do caráter de Deus, os Dez
Mandamentos são de natureza moral, espiritual, abrangente e contém princípios universais”. Igreja
Adventista do Sétimo Dia. Nisto Cremos: 27 ensinos bíblicos dos adventistas do sétimo dia. Tatuí:
Casa Publicadora Brasileira, 2003, p.311.
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22 | WILHELM WACHHOLZ / FÁBIO AUGUSTO DARIUS
esperava que comessem da árvore da vida, e assim perpetuassem uma existência
de pecado e miséria. Depois da queda do homem, porém, santos anjos foram
imediatamente comissionados para guardarem a árvore da vida. Em redor desses
anjos chamejavam raios de luz, tendo a aparência de uma espada inflamada. A
nenhum da família de Adão foi permitido passar aquela barreira para participar
do fruto doador de vida; logo, não há nenhum pecador imortal (WHITE, 1958,
p. 60).
A título de conclusão, percebe-se em White e nos adventistas do
sétimo dia, uma continuidade da tendência anabatista que deu início ao seu
movimento: um ministério leigo, apegado à Bíblia como regra de fé, que, a
despeito dos ditames majoritários, mantêm-se firmes à “verdade presente”,
percebendo aí sua missão e propósito de vida. Para eles, a percepção integral
do ser humano e a própria mortalidade deste, são preceitos tão imutáveis,
quando que mostram que as Escrituras resistirão à prova do tempo e da
filosofia.
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DATA DE SUBMISSÃO: 27/09/2012
DATA DE ACEITE: 03/12/2012
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A EVIDÊNCIA LINGUÍSTICA E EXTRALINGUÍSTICA
PARA A TRADUÇÃO DE ARSENOKOITAI
The Linguistic and Extra Linguistic Evidence
for the Translation of Arsenokoitai
Milton Torres1
RESUMO
O termo arsenokoitai foi provavelmente cunhado pelo apóstolo Paulo. Por essa razão, sua
tradução em 1 Co 6:9 e 1 Ti 1:9-10, suas únicas ocorrências no Novo Testamento, têm
enfrentado certas dificuldades. Quatro contextos principais têm sido propostos para o
significado de arsenokoitai no corpus paulino: exploração sexual (cafetinagem/prostituição
cultual), pederastia, sexo não consensual entre homens (estupro) ou sexo consensual entre
homens (homossexualismo). O presente artigo examina o peso da evidência linguística
(morfologia e semântica) e literária (contexto histórico, crítica genética, gênero e contexto
vital) para a tradução do termo arsenokoitai.
PALAVRAS-CHAVE: Arsenokoitai. Tradução. Novo Testamento. Homossexualismo.
ABSTRACT
The word arsenokoitai was probably created by the apostle Paul. For that reason, its
translation in 1 Co 6:9 and 1 Ti 1:9-10 – the only places where it occurs in the New
Testament – has become problematic. Four main contexts have been proposed to explain
the meaning of arsenokoitai in the Pauline corpus: sexual exploitation (pimping/religious
prostitution), pederasty, non consensual sex between men (male rape) or consensual sex
between men (homosexuality). This paper examines the weight of the linguistic evidence
(morphology and semantics) as well as of the literary evidence (background, genetic
criticism, genre criticism and Sitz im Leben) for the translation of arsenokoitai.
KEYWORDS: Arsenokoitai. Translation. New Testament. Homosexuality.
Em tempos recentes, dificilmente uma palavra do Novo Testamento
tenha provocado mais polêmicas quanto a sua tradução do que o termo
arsenokoitai, que ocorre apenas no corpus paulino. A opinião geral é de que se
trata de um neologismo criado por Paulo. Essa era uma prática comum nos
escritos do apóstolo, a quem se atribuem 179 neologismos, 89 dos quais não
foram copiados por nenhum autor posterior (DE YOUNG, 1992; TAYLOR,
2008). Por causa disso, apresento os dois textos a seguir, deliberadamente
eximindo-me de propor uma tradução para a expressão disputada: “Não
sabeis que os injustos não hão de herdar o reino de Deus? Não erreis: nem
os devassos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os
1
Pós-Doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG.
Professor dos cursos Letras e Tradutor e Intérprete no Centro Universitário Adventista de São Paulo UNASP. E-mail: <[email protected]>.
26 | MILTON TORRES
arsenokoitai” (1 Co 6:9). “Sabendo isto, que a lei não é feita para o justo, mas
para os injustos e obstinados, para os ímpios e pecadores, para os profanos
e irreligiosos, para os parricidas e matricidas, para os homicidas, para os
impuros, para os arsenokoitai, para os raptores de homens (andrapodistai), para
os mentirosos, para os perjuros e para o que for contrário à sã doutrina” (1
Ti 1:9-10).
A palavra arsenokoitai foi tradicionalmente traduzida como “sodomitas”,
uma escolha inadequada porque o termo não guarda relações diretas com o
nome da cidade de Sodoma. A New Amplified Bible, de 1958, foi a primeira
versão inglesa a traduzir a palavra como “homossexuais” (WHITE, 1994).
Em 1966, a Today’s English Version contraiu arsenokoitai e malakoi em uma
única expressão: “homossexuais pervertidos”, decisão que foi seguida pela
New English Bible, de 1970. Em 1973, a Nova Versão Internacional propôs
“homossexuais”, para 1 Co 6:9, e “pervertidos”, para 1 Ti 1:9-10. A New
Standard American Bible simplesmente optou por “homossexuais” em
ambos os casos. A partir de 2005, a Sociedade Bíblica de Portugal também
optou pela tradução “homossexuais”, em sua versão em língua moderna.
Essas versões recentes inflamaram ainda mais o debate. Sob a alegação de que
o termo arsenokoitai era um termo novo, fabricado nos primórdios da igreja
cristã e sem uso correlato na literatura pagã, muitos estudiosos têm chegado
à conclusão de que não se pode ter certeza quanto ao significado pretendido
à época (BOSWELL, 1980; MARTIN, 1996; MARTIN, 2006). De fato, a
palavra não aparece em nenhum texto que não seja cristão ou judaico até
o séc. VI (GAGNON, 2003). O propósito deste artigo é verificar se, com
base na evidência linguística disponível, pode-se determinar o significado
da palavra. O objetivo será também avaliar o peso da evidência linguística e
extralinguística (inclusive, literária) para a tradução do termo arsenokoitai.
Paulo escreveu a primeira epístola aos coríntios por volta do ano 55.
Os teólogos conservadores colocam a redação da primeira carta a Timóteo
entre 62 e 64, imediatamente antes de sua morte. Os teólogos liberais creem
que a carta a Timóteo foi escrita até 85 anos após a morte de Paulo (entre
100 e 150 A.D.), por um escritor desconhecido a quem costumam chamar
de “pastor” (TORRES, 2007). Independentemente das questões relativas à
autoria e datação, depois de seu emprego inicial nessas epístolas, o vocábulo
teve uso limitado pelos autores posteriores. A palavra arsenokoitês (forma do
singular) é um substantivo composto dos radicais arsen (“macho”) e koitês
(“aquele que se deita”). Embora não seja regra geral, o significado dos
substantivos compostos é geralmente obtido pela soma de suas partes. Se
isso se aplicar ao caso em questão, o significado de arsenokoitai será, então,
“aqueles que se deitam com machos”. No entanto, não se pode definir a
questão precipitadamente, pois a literatura nos oferece inúmeros exemplos
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A EVIDÊNCIA LINGUÍSTICA E EXTRALINGUÍSTICA PARA A TRADUÇÃO DE ARSENOKOTAI
| 27
em que o significado de substantivos compostos não é definido pela soma dos
significados de suas partes (WHITE, 1994; MARTIN, 1996). A etimologia de
uma palavra reflete apenas a sua história e não o seu significado (BARR, 1961,
p. 107-110).
As cidades de Corinto, destinatária da epístola de Paulo, e Éfeso, onde
Timóteo viva, eram reconhecidos centros das religiões de fertilidade. Em
Corinto, adorava-se Afrodite (ou Vênus); em Éfeso, Artemisa (ou Diana).
Não se sabe ao certo, porém, se, na época de Paulo, esses cultos retinham,
nessas cidades, a força que haviam exibido em sua época de esplendor, alguns
séculos antes. É provável, contudo, que a obsessão sexual de outrora ainda
prevalecia nesses grandes centros urbanos, mesmo sem a íntima ligação que
essas cidades antes desfrutavam com as religiões de fertilidade. Segundo
Ovídio (Metamorfoses 4.237), Catulo (63.5), Marcial (Epigrama 3.81.3),
Plínio (História natural 35.48, 165) e Lucrécio (A natureza das coisas
2.611), na época de apogeu do culto, os sacerdotes de Artemisa eram castrados
e vestidos com roupas femininas (KROEGER, 1987, p. 37). Duzentos anos
depois de Paulo, Eusébio de Cesareia ainda faz referência à prostituição de
mulheres e homens efeminados no culto a Afrodite.
A antiguidade greco-romana desfruta, além disso, da reputação de
grande tolerância para com a pederastia, isto é, o costume de homens mais
velhos receberem, sob sua guarda, jovens inexperientes a fim de educá-los nos
assuntos públicos. Esses relacionamentos com frequência atingiam um grau de
intimidade que ia além do respeito intelectual. Considerando-se a tenra idade
dos jovens envolvidos, essa prática receberia, em nossos dias, a reprovação
que geralmente destinamos à pedofilia. Lutero parece ter compreendido a
expressão arsenokoitai nesse contexto, razão pela qual a traduziu para o alemão
como Knabenschaender, “aqueles que abusam de crianças”.
Bailey (1975), Boswell (1980), Petersen (1986) e Scroggs (1983)
alegam que a arsenokoitia não pode se referir à condição, propensão ou
desejo homossexual porque o termo se limita a ações de um tipo particular
(BOSWELL, 1980; SCROGGS, 1983) ou porque a homossexualidade
propriamente dita não era conhecida na antiguidade (BAILEY, 1975;
PETERSEN, 1986). Nissinen (1998, p. 244) propõe que a chave para a
interpretação de arsenokoitai encontra-se na lista de pecados de Rm 1:24-27.
Ali, Paulo não menciona arsenokoitai ou tribades (termo usado pelos autores
pagãos em referência às mulheres que mantinham relações sexuais com
outras mulheres), mas é difícil imaginar que essas pessoas não fizessem parte
do referencial mais amplo que originou a lista. Aqui, porém, não prestaremos
atenção detalhada aos argumentos de Bailey (1975) e Petersen (1986) quanto
ao anacronismo de se aplicar a categoria do homossexualismo à antiguidade
greco-romana, tema já amplamente discutido na literatura (DE YOUNG,
| REVISTA HERMENÊUTICA, CACHOEIRA-BA, VOL. 12, N. 2, P. 25-49 |
28 | MILTON TORRES
1992; TORRES, 2000), nem nos deteremos na consideração da lista de Rm
1:24-27, trabalho já empreendido por Nissinen (1998). Em vez disso, nossa
atenção incidirá sobre o peso da evidência linguística (morfológica, genética
morfologia e semântica) e literária (contextual, genérica contexto histórico,
crítica genética, gênero e interna). De fato, quatro contextos principais
têm sido propostos para o significado de arsenokoitai no corpus paulino:
exploração sexual (cafetinagem/prostituição cultual), pederastia, sexo
não consensual entre homens (estupro) ou sexo consensual entre homens
(homossexualismo). Antes de analisar esses contextos (evidência semântica),
vamos, primeiramente, tratar do processo de composição do vocábulo
arsenokoitai (evidência morfológica) e da possível fonte para a cunhagem
desse termo (evidência genética). Depois, faremos referência à contribuição
que o gênero literário em que o vocábulo ocorre pode nos dar para a
compreensão de seu significado. Finalmente, mencionaremos brevemente o
que a evidência interna aos textos paulinos, especialmente 1 Coríntios, revela
sobre o assunto.
A EVIDÊNCIA MORFOLÓGICA
Conforme afirmado anteriormente, a literatura nos oferece inúmeros
exemplos em que o significado de substantivos compostos não é definido pela
soma dos significados de suas partes (WHITE, 1994; MARTIN, 1996), pois a
etimologia de uma palavra reflete apenas a sua história e não o seu significado
(BARR, 1961, p. 109). Em meio a algumas premissas problemáticas, Jepsen
(2006) argumenta, nesse caso corretamente, que o primeiro procedimento
para se determinar o significado de um termo composto é, de fato, fazer
a soma dos significados de suas partes. Só se deve adotar procedimento
alternativo depois que se verificou que a mera soma não é suficiente para
determinar seu significado conjunto.
A cunhagem de arsenokoitês, quer feita por Paulo ou não, obedeceu aos
processos morfológicos disponíveis na língua grega e em ação também em
outros vocábulos, algo necessário para que a palavra fosse compreendida
pelas pessoas da época em que foi criada. O radical koitês já tinha longo pedigree
literário como segundo membro de um termo composto quando apareceu
no substantivo arsenokoitês. Hesíodo, no século VIII a.C., usou a expressão
hylêkoitai (“aqueles que dormem no mato”) em seu poema épico Trabalhos
e dias (verso 529), uma combinação de hylê (“mato, selva”) e koitês. Hipônax,
o poeta de Éfeso, empregou, no sexto século a.C. (fragmento 12.2), a palavra
mêtrokoitês (“aquele que se deita com a mãe”) para se referir a uma relação
incestuosa. O escoliasta de Os cavaleiros (792a1), de Aristófanes, explica
que, durante a guerra do Peloponeso, devido à escassez de moradia, vários
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A EVIDÊNCIA LINGUÍSTICA E EXTRALINGUÍSTICA PARA A TRADUÇÃO DE ARSENOKOTAI
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atenienses se viram obrigados a dormir em cavernas, grutas e até mesmo nos
grandes jarros de cerâmica que serviam para armazenar grãos, sendo, por isso,
chamados de pithokoitai (“os que dormem em jarros”). Estrabão, o famoso
geógrafo grego do século I a.C., listou, em sua obra Geografia (1.5.7.6),
os chamaikoitai (“aqueles que dormem na terra”) entre os trogloditas e os
polyphagoi (“os que comem de tudo”). No mesmo século, uma obra anônima
intitulada Princípios de saúde (linha 45), atribuída a certo Asclepíades da
Bitínia, explica que, quando davam receitas, os médicos gregos costumavam
especificar o que o paciente devia fazer antes de dormir. Nesses casos, os
médicos usavam a expressão dexiokoitês (“quando pronto para se deitar”),
formada com dexios (“pronto”) e koitês. A assim-chamada Vida de Esopo
(49.1-7), obra de difícil datação, apresenta o caso em que Xantos, o marido,
chega em sua residência, entra no quarto e começa a adular e beijar a esposa,
que o rejeita, exigindo, primeiramente, um presente. Em sua irritação, a
mulher o ofende, chamando-o de doulokoitês (“quem dorme com escravos”)
e kynokoitês (“quem dorme com cães”). Apesar de o contexto da passagem
não ser suficientemente claro, a conotação deve ser sexual, pois, no quarto
século A.D., Paulo, um astrólogo de Alexandria, em sua obra Elementa
apotelesmatica (72.9-10) se refere aos doulokoitai como sendo kakogamoi, isto
é, pessoas que se casaram mal.
Novos vocábulos cunhados pelo mesmo processo de formação de
palavras continuaram a aparecer mesmo depois do primeiro uso de arsenokoitai.
No século II A.D., Pausânias Ático escreveu um dicionário grego intitulado
Coleção (1.120) e incluiu nele o substantivo anemokoitai, formado por anemos
(“vento”) e koitês, para descrever os sacerdotes de Corinto que conseguiam
acalmar os ventos, por assim dizer “fazendo-os dormir”, por meio de mágica.
No século V A.D., um autor épico conhecido como Nono usa mais de 50 vezes
o vocábulo parakoitês (“aquele que dorme ao lado”). Ainda no século V A.D.,
um cronógrafo religioso chamado João Malalas (Cronografia 436.12-16) faz
referência a um substantivo composto com koitês que pode ser entendido no
contexto das relações sexuais entre homens. Trata-se de androkoitai (“aqueles
que dormem com homem”):
καὶ εὐθέω̋ προσέταξεν ὁ αὐτὸ̋ βασιλεὺ̋ τοὺ̋
ἐν παιδεραστίαι̋ εὑρισκοµένου̋ καυλοτοµεῖσθαι. καὶ συνεσχέθησαν ἐν αὐτῷ τῷ καιρῷ πολλοὶ ἀνδροκοῖται, καὶ καυλοτοµηθέντε̋ ἀπέθανον. καὶ ἐγένετο ἔκτοτε φόβο̋ κατὰ τῶν νοσούντων
τὴν τῶν ἀῤῥένων ἐπιθυµίαν.
“E logo o próprio rei ordenou que aqueles que fossem encontrados praticando a
pederastia tivessem os caules cortados. E foram reunidos naquele tempo muitos
androkoitai que morreram depois de terem os caules cortados. E houve grande
temor, desde aquela época, entre aqueles que padeciam do desejo por machos.”
| REVISTA HERMENÊUTICA, CACHOEIRA-BA, VOL. 12, N. 2, P. 25-49 |
30 | MILTON TORRES
Enquanto o verbo composto kaulotomeô (“cortar os caules”) é um
eufemismo equivalente a “castrar”, o substantivo androkoitai (“aqueles ou
aquelas que dormem com homem”) vai cair no agrado do médico Étio, do
século seguinte, que o empregará três vezes em seus escritos, geralmente se
referindo à paixão de uma mulher por homens. Até onde se sabe, a última
vez em que uma palavra composta nova é cunhada com koitês como segundo
elemento, encontra-se nos escritos de um astrólogo do século XII, conhecido
como Miguel Glicas. Ele usa, em sua obra Anais (501.2), o termo athesmokoitai,
com o sentido de “aqueles que se deitam em leito ilícito”. No contexto da
passagem, percebe-se que, naquela época, também os adúlteros estavam
sendo ameaçados com a punição da caulotomia (isto é, castração).
Compostos com o radical arsen (“macho”) como primeiro elemento
também aparecem comumente na literatura grega. O astrólogo Maneto, do
terceiro século A.D., em Apotelesmatica (4.589-592), cita uma pequena lista
com três vícios sexuais: machloi (“aqueles que não conseguem controlar seu
apetite sexual”), didymostrophoi (“aqueles que se viram para os dois lados”),
provável referência ao hermafroditismo, e arsenomiktai (“aqueles que mantêm
relações sexuais com machos”). Plutarco, filósofo contemporâneo de Paulo,
emprega, em seu tratado Sobre Ísis e Osíris (368c10), o composto arsenothêlys
quando explica que os egípcios consideravam a lua como a mãe do universo e
portadora de natureza hermafrodita (arsenothêlys). A palavra é formada dos
radicais arsen (“macho”) e thêlys (“fêmea”). Essa mesma palavra aparece,
no quarto século A.D., no tratado Contra todas as heresias (2.31.2), em que
Epifânio explica que alguns não acreditavam que a criação havia terminado
no sétimo dia. Para esses, Deus havia criado o homem terreno no sexto dia,
mas, no oitavo dia, criara o homem espiritual (pneumatikos) e hermafrodita
(arsenothêlys), verdadeira imagem e semelhança de Deus. Cirilo, por sua vez,
em sua obra Catecheses ad illuminandos (6.18.2), criticava o fato de os pagãos
crerem que a sabedoria era uma divindade hermafrodita (arsenothêlys), e
considerava isso grande impiedade, já que Cristo é chamado de “sabedoria de
Deus” (theou sophia). Em seu hino de louvor à deusa Atena (7.3), o filósofo
pagão Proclo, de Atenas, usa, no século IV A.D., a expressão arsenothymos
(“aquela que pensa como um macho”) em relação à deusa. Finalmente,
um antigo, mas anônimo, escoliasta de Aristóteles (428.16), ao comentar o
tratado Ética a Nicômaco, discorre sobre a prática da arsenogamia, caso em
que alguns homens se associavam sexualmente a outros homens:
τὸ δὲ ἀρρενογαµεῖν τοῖ̋ µὲν ἐπιγίνεται ἐκ φύσεω̋ κακῆ̋ καὶ ἐπιρρεπούση̋ πρὸ̋ τὸ κακόν, ἄλλοι̋ ἐξ ἐθισµοῦ τινο̋, οἷον γυµναζόµενοι ἐκ
παίδων τοὺ̋ ἄρρενα̋ γαµεῖν, οὗτοι ἐθίζουσι τοῦτο παιδόθεν κακοῖ̋ ἀνδράσι
συναναστρεφόµενοι, καὶ ταῦτα φύσιν ἔχοντε̋ πρὸ̋ τὸ καλὸν ἐπιρρεπῆ.
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A EVIDÊNCIA LINGUÍSTICA E EXTRALINGUÍSTICA PARA A TRADUÇÃO DE ARSENOKOTAI
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“o associar-se sexualmente (arsenogameô) a homens resulta, para alguns, de sua
natureza depravada e de sua inclinação para o mal; para outros, de algum costume
como, por exemplo, ser treinado desde a infância para se associar sexualmente a
homens. Esses se acostumaram a isso, vivendo, desde a infância, junto com homens
depravados, mesmo sendo naturalmente inclinados para o bem em relação a essas
coisas.”
A evidência morfológica aponta, portanto, para o fato de que os radicais
da palavra arsenokoitês eram de uso corrente, no grego antigo, como elementos
de composição. Além disso, pode-se supor que um falante do grego não teria
dificuldades para interpretar o significado dessa expressão, mesmo que fosse
um neologismo da tradição paulina. Como elementos de composição, e na
ordem em que são usados, esses radicais têm geralmente conotação sexual,
embora sejam encontrados exemplos em que arsen apenas determine o gênero,
sem implicações estritamente sexuais, e koitês signifique apenas “dormir”, sem
ênfase sexual.
A EVIDÊNCIA GENÉTICA
Uma pista para a tradução de arsenokoitai pode vir da Septuaginta (LXX),
a versão grega da Bíblia Hebraica cuja tradução começou a ser elaborada
aproximadamente trezentos anos antes do período do Novo Testamento. Paulo
preferia citar a Bíblia Hebraica a partir da LXX em vez de a partir do próprio
texto hebraico (ELLIS, 1957, p. 150-152), o que aumenta as chances de que o
apóstolo tenha cunhado a palavra com base no texto da LXX. Infelizmente, a
LXX não emprega o termo. Por essa razão, diferentes vertentes apontam para
semelhanças com dois grupos de passagens ali encontradas.
Alguns estudiosos alegam que arsenokoitai teria sido cunhado com base
em 1 Re 14:24 (ROBINSON, 2011). Ao se referir aos prostitutos cultuais,
a passagem emprega o vocábulo syndesmos para traduzir o hebraico qadesh.
O termo syndesmos significa “aquele que se junta a outro” (obviamente, em
um contexto sexual). Como esta passagem trata especificamente do caso dos
prostitutos cultuais, os que defendem a associação entre arsenokoitai e syndesmoi
alegam, portanto, que não existe interdição neo-testamentária à prática do
homossexualismo.
Outros estudiosos (DE YOUNG, 1992, p. 215; MENDELL, 1990?;
GARLAND, 2003, p. 211-218) se voltam para o texto de Lv 18:22 e 20:13,
passagens que proíbem que um homem se deite com outro, para dar o pano
de fundo para o vocábulo do Novo Testamento. O primeiro desses versos
afirma meta arsenos ou koimêthêsei koitên gynaikos. Literalmente, o texto diz: “não
te deitarás na cama com um macho como com uma mulher”. O segundo
diz: hos an koimêthêi meta arsenos koitên gynaikos..., “quem se deitar na cama com
um macho como mulher...”. Nesses dois versos, percebe-se o emprego de
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palavras que remetem aos radicais de arsenokoitai: arsenos e koitên.
Segundo Scroggs (1983), contudo, a referência paulina a esses textos
estaria condenando apenas a pederastia, isto é, a antiga prática grega de que um
homem mais velho se ligasse sexualmente a um rapaz. Para outros estudiosos,
os versos de Levíticos como ponto de referência para a cunhagem do termo
arsenokoitai colocariam essa palavra no domínio cúltico (BOSWELL, 1980) ou
no contexto do excesso (SCHUH, 2007). Ou seja, a tradição paulina estaria
simplesmente proibindo relações sexuais com prostitutos cultuais ou em
casos em que havia exploração sexual (BOSWELL, 1980). Isso significaria
que Paulo condenava, sobretudo, o sexo por dinheiro. Em vez disso, seria
também possível que o apóstolo estivesse simplesmente desabonando os
casos em que um homem tinha vários parceiros sexuais (SCHUH, 2007).
Segundo essa forma de pensar, a tradição paulina não objetaria à relação
homossexual consensual e monogâmica.
Para outro grupo de estudiosos (DALLAS, 1996, p. 198; BRAUCH,
2000?; JONES; YARHOUSE, 2000; TAYLOR, 2008), Paulo, que costumava
usar a LXX em seus sermões e epístolas (TORRES, 1998), simplesmente ligou
essas duas palavras para cunhar o neologismo arsenokoitai. Ou seja, “o que
Paulo está condenando em 1 Coríntios é que uma pessoa faça precisamente o
que Levíticos condena” (MAYHALL, 2007). Seria, portanto, improvável que,
diante da interdição de Lv 18 e 20, Paulo estivesse empregando arsenokoitai no
sentido limitado de pederastia ou excesso (GAGNON, 2003). Aliás, o termo
“pederasta” já era de uso corrente em sua época e o apóstolo poderia ter
recorrido a ele, caso desejasse. Além disso, é muito mais provável que, com
arsenokoitai, Paulo estivesse se referindo a práticas como as que ele rejeita, em
Rm 1:24-27. No verso 27, ele particularmente reprova a torpeza cometida
arsenes en arsesin, “homens com homens”.
A EVIDÊNCIA SEMÂNTICA
A evidência semântica diz respeito ao universo de significados e aos
vocábulos disponíveis para uso em determinada situação textual. De fato, a
dimensão sexual constituía abundante celeiro de vocábulos com significação
rica e pertencentes a múltiplos campos semânticos que se interpenetravam e
se complementavam mutuamente. Assim, no acervo de palavras disponíveis
para Paulo encontramos, por exemplo: kinaidoi (“catamitas”), paiderastai
(“amantes de meninos”), paidomanes (“loucos por meninos”), paidophthoroi
(“corruptores de meninos”), arsenobatai ou androbatai (“aqueles que cobrem
homens”), arsenomanes (“loucos por machos”), dentre outras. Devido
provavelmente a seu caráter chulo, esses termos não ocorrem no Novo
Testamento ou na Septuaginta. Mas alguns deles aparecem, por exemplo, no
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A EVIDÊNCIA LINGUÍSTICA E EXTRALINGUÍSTICA PARA A TRADUÇÃO DE ARSENOKOTAI
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Léxico de Hesíquio, dicionário organizado, em Alexandria, provavelmente
no final do século V A.D.; e, se aparecem em dicionários, pode-se imaginar
que eram de uso corriqueiro no mundo greco-romano.
O problema é que, independentemente de seu emprego ou não, o
significado desses termos não é automaticamente dado em cada situação.
Estudos semânticos apontam para o fato de que uma palavra só adquire
significado explícito quando ocorre em um contexto. De Young (2002)
aponta os quatro princípios semânticos fundamentais para a atribuição de
significado: (i) o significado é determinado pelos contextos em que uma
palavra ocorre; (ii) o significado de uma palavra muda com o tempo; (iii) uma
palavra geralmente pertence a um determinado campo semântico; e (iv) não
existem palavras que sejam sinônimos perfeitos. A única forma segura de
analisar o significado de uma palavra é, portanto, investigar o maior número
possível de contextos em que a palavra é usada. A significação é atribuída a
uma palavra a partir da função que ela exerce em diferentes situações. No
caso de arsenokoitai, essa declaração tem um efeito positivo e outro negativo.
Não podemos simplesmente fazer a soma dos significados dos elementos
de composição do termo e acreditar que, com isso, solucionamos o impasse.
Por outro lado, mesmo que ignorássemos o significado dos elementos de
composição ainda seria possível “atribuir” algum significado à palavra com
base nos contextos em que esta ocorre.
Boswell (1980) contende que não se acha o termo arsenokoitia em nenhum
dos autores pagãos que discutem aspectos ligados à homossexualidade.
Sendo assim, o autor conclui que, portanto, arsenokoitia não significava
“homossexualismo”. Scroggs (1983, p. 108) rebate que o termo deve ter sido
cunhado pela tradição paulina ou pelos judeus da diáspora e que, por isso, não
poderia mesmo ter feito parte da discussão dos autores pagãos. Apesar dessas
incertezas, o fato de a palavra arsenokoitai ser usada no mesmo verso e logo
após a palavra malakoi tem levado alguns estudiosos a sugerir que o pecado
denunciado pela expressão é o da pedofilia (CANON, 2005; ROBINSON,
2011). Em 1 Co 6:9, malakoi é geralmente traduzido como “efeminados”. No
entanto, muitos estudiosos argumentam que o termo se refere aos meninos
que se prostituíam nos tempos antigos. Se isso é verdade, teremos, então,
a junção de malakoi e arsenokoitai, respectivamente os participantes passivos
e ativos na prática pedófila. Contudo, alguns estudiosos rebatem esse
argumento, chamando atenção para o fato de que, em 1 Ti 1:9-10, a palavra
arsenokoitai não aparece em conexão com malakoi, o que sugere que não havia
uma ligação tão intrínseca entre ambas como tem sido sugerido (BRAUCH,
2000?).
De Young (2002), fazendo uso dos quatro princípios fundamentais que
propôs, argumenta que não há impedimentos para que o termo arsenokoitai
| REVISTA HERMENÊUTICA, CACHOEIRA-BA, VOL. 12, N. 2, P. 25-49 |
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seja traduzido por “homossexuais”. Segundo ele, (i) esse significado é possível
em muitos dos contextos em que a palavra ocorre; (ii) não se detecta uma
mudança importante no referencial de significado da expressão; (iii) arsenokoitai
obviamente pertence a um campo semântico que inclui a homossexualidade;
e (iv), como não existem sinônimos perfeitos, o termo arsenokoitai pode, em
vários de seus contextos, ser traduzido como “homossexuais” já que, no
mínimo, incorpora vários traços de significado que também são encontrados
nos contextos em que a palavra “homossexuais” é usada hoje em dia.
Independentemente dessas conclusões de De Young (2002), vamos, a seguir,
avaliar os diferentes contextos em que o vocábulo arsenokoitai e seus derivados
são usados na literatura contemporânea aos escritos paulinos.
O PRIMEIRO CONTEXTO: ARSENOKOITIA COMO EXPLORAÇÃO SEXUAL
DE UM HOMEM POR OUTRO
Os textos antigos em que o vocábulo arsenokoitia ocorre podem ser
divididos em três grupos distintos: um grupo de passagens que sugere que
arsenokoitia era a exploração sexual de um homem por outro; um segundo
grupo que aplica o termo à pederastia; um terceiro grupo que sugere que
a arsenokoitia era a relação sexual não consensual entre dois homens; e um
último grupo em que a palavra parece se referir a qualquer tipo de relação
sexual entre dois homens, mesmo a consensual. Por uma razão meramente
classificatória e sem pretender refletir qualquer estruturação hierárquica
desses contextos, vamos chamá-los, respectivamente, de primeiro, segundo,
terceiro e quarto contexto.
Sêneca (Epístolas morais 47.7-8) condena o tipo de exploração
que forçava, por exemplo, um escravo adulto a se vestir e se comportar
como mulher. De fato, um grupo de escritos contemporâneos ou quase
contemporâneos a Paulo parece sugerir que os arsenokoitai eram cafetões que
viviam da exploração sexual de prostitutos. Os assim-chamados Oráculos
sibilinos constituem uma composição provavelmente pouco posterior à
tradição paulina. A data é incerta, mas a evidência aponta para a dependência
de Paulo, pois vários vocábulos da passagem em questão (2.70-77) ocorrem
também no corpus paulino. A passagem pertence a um subgênero que se
convencionou chamar de lista de vícios:
(ἐξ ἀδίκων ἔργων δῶρον χερὶ µήποτε δέξῃ.)
σπέρµατα µὴ κλέπτειν· ἐπαράσιµο̋ ὅστι̋ ἕληται
(εἰ̋ γενεὰ̋ γενεῶν <εἰ̋> σκορπισµὸν βιότοιο.
µὴ ἀρσενοκοιτεῖν, µὴ συκοφαντεῖν, µήτε φονεύειν.)
µισθὸν µοχθήσαντι δίδου· µὴ θλῖβε πένητα.
γλώσσῃ νοῦν ἐχέµεν· κρυπτὸν λόγον ἐν φρεσὶν ἴσχειν.
(ὀρφανικοῖ̋ χήραι̋ ἐπιδευοµένοι̋ δὲ παράσχου.)
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A EVIDÊNCIA LINGUÍSTICA E EXTRALINGUÍSTICA PARA A TRADUÇÃO DE ARSENOKOTAI
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“(jamais recebas, com as mãos, presentes de obras ímpias)
Não furtarás sementes para a semeadura da vida –
o que as pega é amaldiçoado (de gerações a gerações).
(Não arsenokoitarás, não delatarás, não matarás).
Paga o salário a quem trabalhou; não oprimas o pobre.
Cuidado com a língua. Guarda os segredos no coração.
(Sustenta os órfãos, as viúvas e os necessitados.)”
Martin (1996) argumenta que se trata de uma lista de pecados
econômicos: suborno, extorsão, retenção de salários, especulação agrícola
(provavelmente esconder parte da colheita para aumentar o preço dos cereais)
e chantagem. Nesse contexto, a ordem “não matarás” teria por referência o
homicídio por motivação econômica, como, por exemplo, a morte de Nabote
por ordem de Jezabel (1 Re 21). Como nenhuma outra expressão na lista
assume conotação sexual, Martin (1996) sugere, então, que o termo arsenokoitia
se refira a algum tipo de exploração econômica de natureza sexual, como, por
exemplo, a cafetinagem.
A obra apócrifa Atos de João (seção 36), datada no segundo século,
contém outra lista de pecados da qual consta a expressão arsenokoitês. Nela, o
autor repreende os homens de Éfeso:
ὁ δὲ χρυσῷ χαίρων καὶ ἐλεφαντίνων καὶ λίθοι̋ τερπόµενο̋ νυκτὸ̋ ἐπελθούση̋ ἃ φιλεῖ̋ θεᾶσαιˇ ὁ δὲ µαλακαῖ̋
ἐσθῆσι νικώµενο̋, εἶτα δὲ ἀπαλλασσόµενο̋ τοῦ βίου, ταῦτα
ὀφλῆσαι κἀκεῖ ὅπου πορεύῃˇ ὁ δὲ φονεὺ̋ γινωσκέτω τὴν ἀξίαν
τιµωρίαν διπλῆν ἀποκεῖσθαι µετὰ τὴν ἐνθένδε λύσιν. ὁµοίω̋
καὶ ὁ φαρµακό̋, ὁ περίεργο̋, ὁ ἅρπαξ, ὁ ἀποστερητή̋, ὁ
ἀρσενοκοίτη̋, ὁ κλέπτη̋, καὶ ὁπόσοι τοιούτου χοροῦ ὑπάρχοντε̋ [...]. ὅθεν ἄνδρε̋ ᾿Εφέσιοι ἐπιστρέψατε ἑαυτού̋, ἐπιστάµενοι καὶ τοῦτο ὅτι οἱ βασιλεῖ̋, οἱ δυνάσται, οἱ τύραννοι, οἱ
ἀλαζόνε̋, οἱ πολέµου̋ χειρωσάµενοι γυµνοὶ τῶν ἐνθένδε ἀπαλλασσόµενοι, ἐν κακοῖ̋ δὲ αἰωνίοι̋ συγγινόµενοι ὀδυνῶνται.
“Tu que te regozijas no ouro, no marfim e nas pedras preciosas, deleitando-te
nessas coisas, vês o que amas quando chega a noite? Tu que sucumbes às roupas
finas, quando morreres, vais utilizá-las no lugar aonde fores? Que o homicida saiba
que justo galardão duplo o espera depois que partir desta vida. O mesmo vale para
o envenenador, o feiticeiro, o saqueador, o vigarista, o arsenokoitês, o ladrão, e para
todos os que pertencem a esse bando [...]. Portanto, homens de Éfeso, corrigi-vos,
sabendo também isso: que os reis, os poderosos, os tiranos, os impostores, os que
promovem as guerras partirão nus desta vida e sofrerão, ao padecerem tormentos
eternos.”
A carta de Teófilo de Antioquia a Autólico (1.2), escrita no segundo
século, também inclui duas ocorrências (arsenokoitês e arsenokoitia) em listas de
pecado. Na primeira aparição da palavra, esta ocorre entre vocábulos que são
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quase os mesmos que compõem a lista encontrada nos Atos de João:
οὕτω̋ καὶ ὅταν ᾖ ἁµαρτία ἐν τῷ ἀνθρώπῳ, οὐ δύναται ὁ τοιοῦτο̋ ἄνθρωπο̋
θεωρεῖν τὸν θεόν. δεῖξον οὖν καὶ σὺ σεαυτόν, εἰ οὐκ εἶ µοιχό̋, εἰ οὐκ εἶ
πόρνο̋, εἰ οὐκ εἶ κλέπτη̋, εἰ οὐκ εἶ ἅρπαξ, εἰ οὐκ εἶ ἀποστερητή̋, εἰ
οὐκ εἶ ἀρσενοκοίτη̋, εἰ οὐκ εἶ ὑβριστή̋, εἰ οὐκ εἶ λοίδορο̋, εἰ οὐκ
ὀργίλο̋, εἰ οὐ φθονερό̋, εἰ οὐκ ἀλαζών, εἰ οὐχ ὑπερόπτη̋, εἰ οὐ
πλήκτη̋, εἰ οὐ φιλάργυρο̋, εἰ οὐ γονεῦσιν ἀπειθή̋, εἰ οὐ τὰ τέκνα σου
πωλεῖ̋. τοῖ̋ γὰρ ταῦτα πράσσουσιν ὁ θεὸ̋ οὐκ ἐµφανίζεται, ἐὰν µὴ
πρῶτον ἑαυτοὺ̋ καθαρίσωσιν ἀπὸ παντὸ̋ µολυσµοῦ.
“Assim também é quando há pecado na pessoa; tal pessoa não pode ver a Deus.
Portanto, mostra também tu que não és adúltero, nem prostituído, nem ladrão,
nem saqueador, nem vigarista, nem arsenokoitês, nem violento, nem caluniador,
nem iracundo, nem corruptor, nem impostor, nem invejoso, nem golpeador, nem
ganancioso, nem desobediente aos pais, nem vendedor dos próprios filhos. Não se
percebe Deus nos que assim procedem, a não ser que primeiramente se purifiquem
de toda nódoa.”
A palavra pornos (que traduzi como “prostituído”) tem geralmente esse
sentido no mundo antigo (CANTARELLA, 1992, p. 192-194). Essa tradução
é possível também no contexto do Novo Testamento, embora ali tenha, além
disso, o sentido mais amplo de “imoralidade”. As semelhanças entre as duas
listas apontam para sua provável fonte comum: o corpus paulino. Na lista de
Teófilo, cuja ordem varia nos diferentes manuscritos (BARDY, 1948; GRANT,
1970), predominam os pecados cuja motivação é o ganho ilícito, como, por
exemplo, roubar, saquear, ser ganancioso e vender os próprios filhos. Martin
(1996) entende a desobediência aos pais como sendo, nesse contexto, a recusa
de assumir a responsabilidade financeira pelos pais idosos.
Na segunda lista da carta de Teófilo a Autólico (1.14), arsenokoitiai
aparece no limiar entre os pecados sexuais (adultérios e prostituições) e um
pecado de natureza econômica (avarezas):
τοῖ̋ δὲ ἀπίστοι̋ καὶ καταφρονηταῖ̋ καὶ ἀπειθοῦσι τῇ ἀληθείᾳ,
πειθοµένοι̋ δὲ τῇ ἀδικίᾳ, ἐπὰν ἐµφύρωνται µοιχείαι̋ καὶ πορνείαι̋ καὶ
ἀρσενοκοιτίαι̋ καὶ πλεονεξίαι̋ καὶ ταῖ̋ ἀθεµίτοι̋ εἰδωλολατρείαι̋,
ἔσται ὀργὴ καὶ θύµο̋, θλίψι̋ καὶ στενοχωρία· καὶ τὸ τέλο̋
τοὺ̋ τοιούτου̋ καθέξει πῦρ αἰώνιον.
“Aos descrentes e desdenhadores bem como àqueles que desobedecem à verdade,
obedecendo, porém, à injustiça, depois que se abrasam com adultérios, prostituições,
arsenokoitiai, avarezas e idolatrias iníquas, restarão ira e fúria, tribulação e aperto; e,
no fim, será posto para estes o fogo eterno.”
Por essa razão, Martin (1996) e Harrill (1999) argumentam que o termo
envolve as duas dimensões: a sexual e a econômica.
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A EVIDÊNCIA LINGUÍSTICA E EXTRALINGUÍSTICA PARA A TRADUÇÃO DE ARSENOKOTAI
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No contexto ainda mais específico da prostituição cultual, sem
as implicações econômicas necessariamente atribuídas às ocorrências
mencionadas anteriormente, cita-se comumente uma passagem de Filo de
Alexandria (Leis especiais 3.7.40-42), judeu que viveu na época de Jesus:
αἴτιον δ’ οἶµαι τὸ παρὰ πολλοῖ̋ τῶν δήµων ἀκρασία̋ καὶ µαλακία̋
ἆθλα κεῖσθαι· τοὺ̋ γοῦν ἀνδρογύνου̋ ἔστιν ἰδεῖν διὰ πληθυούση̋
ἀγορᾶ̋ ἀεὶ σοβοῦντα̋ κἀν ταῖ̋ ἑορταῖ̋ προποµπεύοντα̋ καὶ τὰ
ἱερὰ τοὺ̋ ἀνιέρου̋ διειληχότα̋ καὶ µυστηρίων καὶ τελετῶν κατάρχοντα̋
καὶ <τὰ> Δήµητρο̋ ὀργιάζοντα̋. ὅσοι δ’ αὐτῶν τὴν καλὴν νεανιείαν
προσεπιτείνοντε̋ εἰ̋ ἅπαν ὠρέχθησαν µεταβολῆ̋ τῆ̋ εἰ̋ γυναῖκα̋ καὶ
τὰ γεννητικὰ προσαπέκοψαν, ἁλουργίδα̋ ἀµπεχόµενοι καθάπερ οἱ
µεγάλων ἀγαθῶν αἴτιοι ταῖ̋ πατρίσι προέρχονται δορυφορούµενοι, τοὺ̋
ὑπαντῶντα̋ ἐπιστρέφοντε̋.
“Eu acho que a razão disso é que, entre muitos povos, há prêmios para a
intemperança e a efeminação. Pelo menos, é possível ver andróginos o tempo
todo desfilando em plena praça e até conduzindo as procissões nos festivais, e
ímpios são sorteados para zelar pelas coisas sagradas, começando os mistérios e
os rituais de iniciação bem como celebrando o culto a Ceres. Alguns desses, tendo
estendido a bela juventude além de seus limites, desejaram a mudança para o sexo
das mulheres e amputaram os órgãos sexuais, vestindo-se de púrpura; assim como
os responsáveis pelos grandes bens da pátria, avançam com sua escolta, voltandose para os que se dirigem a eles.”
Filo está condenando, aqui, o envolvimento de andróginos nos
rituais dedicados à deusa Ceres, também conhecida como Cibele ou, mais
comumente, como mãe dos deuses. Trata-se de um ritual de fertilidade
considerado como importante solenidade pelos romanos. No entanto, o fato
de seus sacerdotes, conhecidos como “galos”, tentarem prolongar a própria
juventude, assumirem aspecto feminino e praticarem a castração ofendia a
opinião popular. No entanto, a aplicação dessa passagem ao contexto dos
arsenokoitai esbarra na dificuldade de que esse termo não ocorre no trecho
citado. Filo emprega apenas o termo “andrógino” e não há como garantir
uma ligação deste com arsenokoitês. Tampouco podemos estar inteiramente
seguros de que, além de sua aparência feminina, esses sacerdotes praticavam,
de fato, a prostituição cultual.
Os que defendem essa posição argumentam que não há passagens
bíblicas que condenem o relacionamento sexual entre mulheres. Nessa
concepção, isso não ocorre porque, entre os cananitas, a prostituição cultual
feminina não era comum. Ou seja, os textos da Bíblia Hebraica só proibiriam
o relacionamento homoafetivo no caso em que os rapazes se tornavam
prostitutos cultuais. Além disso, argumentam que, ao usar a expressão
arsenokoitai no Novo Testamento, Paulo se referia a uma prática bem conhecida
dos israelitas uma vez que não ofereceu nenhuma definição para o termo
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que, segundo essa visão, estava inventando. Diante disso, argumentam que a
prostituição cultual masculina se encaixaria bem nesse perfil. Pode-se objetar,
aqui, que, conforme mencionado anteriormente, a evidência morfológica
indica que, mesmo no caso de um neologismo, um leitor antigo não deve ter
tido dificuldades para decodificar, em linhas gerais, o significado do mesmo.
O SEGUNDO CONTEXTO: ARSENOKOITIA COMO PEDERASTIA
Outro grupo de escritos contemporâneos ou quase contemporâneos
a Paulo parece sugerir que os arsenokoitai eram pederastas, isto é, homens
maduros que se afeiçoavam a jovens inexperientes para deles se aproveitarem
sexualmente. Nessa categoria é geralmente inserida a passagem da Apologia
(12.9-13.5.1-5), de Aristides, escrita aproximadamente cem anos depois de
Paulo. Esse texto cristão critica a crença pagã nos deuses os quais coloca entre
os arsenokoitai:
πῶ̋ δὲ οὐ συνῆκαν οἱ σοφοὶ καὶ λόγιοι τῶν ῾Ελλήνων, ὅτι νόµου̋
θέµενοι κατακρίνονται ὑπὸ τῶν ἰδίων νόµωνˇ εἰ γὰρ οἱ νόµοι δίκαιοί εἰσιν,
ἄδικοι πάντω̋ οἱ θεοὶ αὐτῶν εἰσὶ παράνοµα ποιήσαντε̋, ἀλληλοκτονία̋
καὶ φαρµακεία̋ καὶ µοιχεία̋ καὶ κλοπὰ̋ καὶ ἀρσενοκοιτία̋· εἰ δὲ καλῶ̋
ἔπραξαν ταῦτα, οἱ νόµοι ἄρα ἄδικοί εἰσι κατὰ τῶν θεῶν συντεθέντε̋·
“Como não entendem os sábios e eloquentes dentre os gregos que os que
estabelecem as leis devem ser julgados por sua própria lei? Pois, se as leis são justas,
seus deuses são inteiramente injustos já que praticam coisas ilícitas, homicídios
mútuos, envenenamentos, adultérios, furtos e arsenokoitiai. Se, com facilidade,
praticam tais coisas, as leis são, então, injustas por conspirarem contra os deuses.”
De acordo com Patrick (2000), nesse contexto, o termo só pode se
aplicar à sedução de Ganimedes, o jovem príncipe troiano a quem Zeus
abduziu para fazer dele seu copeiro e amante. O episódio mitológico era
usado, segundo Ovídio (Carmina), pelos velhos pederastas para justificar sua
propensão a copular com rapazes sexualmente inexperientes.
A prática generalizada da pederastia entre os gregos e entre muitos
daqueles que eram influenciados por sua cosmovisão representava um
incômodo tão grande para os autores cristãos que Clemente de Alexandria,
em sua obra Exortação aos gregos (10.108.5), ao citar os dez mandamentos,
colocou lado a lado as expressões “não adulterarás”e “não praticarás a
pedofilia” (ou paidophthorseis).
O TERCEIRO CONTEXTO: ARSENOKOITIA COMO SEXO NÃO
CONSENSUAL ENTRE DOIS HOMENS
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A EVIDÊNCIA LINGUÍSTICA E EXTRALINGUÍSTICA PARA A TRADUÇÃO DE ARSENOKOTAI
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Além dos textos que colocam, explícita ou implicitamente, a arsenokoitia
entre os pecados de exploração econômica ou da pedofilia, existem também
textos em que a arsenokoitia é tratada como uma forma de violência sexual. A
mais conhecida dessas passagens é o relato reproduzido por Hipólito, em sua
obra Refutação de todas as heresias (5.26.23). Ali, o autor conta a lenda
gnóstica da investida do demônio Naas contra Adão e Eva. Segundo esse
relato, o demônio teria cometido adultério (moicheia) com Eva e arsenokoitia
com Adão:
ὁ δὲ Νάα̋ παρανοµίαν ἔσχε· προσῆλθε γὰρ τῇ Εὔᾳ ἐξαπατήσα̋
αὐτὴν καὶ ἐµοίχευσεν αὐτήν, ὅπερ ἐστὶ παράνοµον· προσῆλθε
δὲ καὶ τῷ ᾿Αδὰµ καὶ ἔσχεν αὐτὸν ὡ̋ παιδ<ικ>ά, ὅπερ ἐστὶ καὶ αὐτὸ
παράνοµον. ἔνθεν <δὲ> γέγονε µοιχεία καὶ ἀρσενοκοιτία.
“Mas Naas cometeu transgressão. Pois abordou Eva, enganou-a e adulterou com
ela, o que é transgressão. Abordou, então, também a Adão e o possuiu como a um
escravo, o que também é transgressão. Daí surgiram o adultério e a arsenokoitia.”
Martin (1996) argumenta que, uma vez que o trecho não diz
especificamente que Naas manteve relações sexuais consensuais com Adão,
pode-se objetar que a palavra arsenokoitia seja, neste caso, compreendida
nesse sentido. O problema com esse raciocínio é que o significado do verbo
“adulterar” (moicheuô), empregado no mesmo texto, ficaria limitado apenas ao
caso em que a mulher fosse enganada para praticar relações sexuais com um
consorte. No entanto, a literatura bíblica não restringe o significado do verbo
a esse uso particular.
Outro texto geralmente colocado nesta categoria vem de uma citação
que Eusébio de Cesareia faz, em Preparação evangélica (6.10.25), a
Bardesames, um autor do terceiro século:
ἀπὸ Εὐφράτου ποταµοῦ καὶ µέχρι τοῦ ᾿Ωκεανοῦ ὡ̋ ἐπὶ ἀνατολὰ̋ ὁ
λοιδορούµενο̋ ὡ̋ φονεὺ̋ ἢ ὡ̋ κλέπτη̋ οὐ πάνυ ἀγανακτεῖ, ὁ δὲ ὡ̋
ἀρσενοκοίτη̋ λοιδορούµενο̋ ἑαυτὸν ἐκδικεῖ µέχρι καὶ φόνου· παρ’
῞Ελλησι καὶ οἱ σοφοὶ ἐρωµένου̋ ἔχοντε̋ οὐ ψέγονται.
“Desde o rio Eufrates até o oceano que fica no oriente, quem é insultado como
homicida ou ladrão não se indigna muito, mas aquele que é insultado como
arsenokoitês se vinga até com o homicídio. Entre os gregos, mesmo os sábios que
têm amantes não são censurados.”
Bardesames se mostra surpreso em relação ao fato de que alguns
orientais considerassem a arsenokoitia como algo digno da reprovação pública,
senão vingança. O texto parece enfatizar a sabedoria dos gregos por não se
incomodarem com isso. Nessa leitura, Eusébio, um bispo da igreja, parece
não objetar às relações sexuais entre homens, desde que, como no caso dos
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gregos, fossem consensuais.
Um argumento que favorece a interpretação da arsenokoitia como se
referindo aos casos de sexo não consensual (estupro) vem de sua antiga
associação com a cidade de Sodoma. Conforme disse anteriormente, essa
associação não é direta. Traduzir arsenokoitia como “sodomia” passa a falsa
impressão de que o termo Sodoma é um dos elementos de composição
da palavra. No entanto, há exemplos de autores antigos que entenderam
arsenokoitia como incluindo a tentativa de estupro dos anjos que visitavam
Sodoma. No quarto século, Pseudo Macário, em sua obra intitulada Sermões,
capítulo 64, homilia 49.5.6.2, faz precisamente essa ligação:
Οὕτω̋ ἐπὶ Σοδόµων γέγονεν· οἱ πολλὰ ἁµαρτάνοντε̋ καὶ µὴ ἐπιστρέφοντε̋
ὕστερον τοιούτῳ τολµήµατι προσέκοψαν ἐπὶ τῶν ἀγγέλων—ἀρσενοκοιτίαν εἰ̋
αὐτοὺ̋ ἐργάσασθαι τολµήσαντε̋—, ὡ̋ µηκέτι ἔχειν αὐτοὺ̋ µετάνοιαν.
“Assim se passou em Sodoma: a maioria pecando e não se arrependendo mais
tarde dessa ousadia, atacou os anjos – tentando cometer arsenokoitia com eles –
pelo que não podem mais se arrepender.”
Outra passagem usada para defender o ponto de vista de que a arsenokoitia
consistia em relações sexuais não consensuais (BOSWELL, 1980, p. 364) vem
do século VI A.D., sendo, portanto, bastante tardia. Trata-se da declaração
atribuída a João Jejunator, em suas Penitências: τὸ µέντoι ἀρσενοκοιτία̋
µῦσő πολλoὶ καὶ µετὰ τῶν γυναικῶν αὐτῶν ἐκτελοῦσιν, “muitos [homens],
de fato, cometem o pecado da arsenokoitia até com as próprias esposas”.
No entanto, a passagem pode ser alternativamente interpretada como uma
referência ao sexo anal, em vez de em relação ao sexo não consensual.
O QUARTO CONTEXTO: ARSENOKOITIA COMO QUALQUER TIPO DE
RELAÇÃO SEXUAL ENTRE DOIS HOMENS
Contra os argumentos de que arsenokoitia se refira a um tipo particular de
relação homossexual (prostituição cultual, estupro, pederastia, cafetinagem)
tem sido feita a observação de que a tradição rabínica contemporânea ou
quase contemporânea a Paulo geralmente interpretou a expressão hebraica
mishkav zakur (“deitar-se com um homem”), de Levíticos, como se referindo
à prática do homossexualismo (BRAUCH, 2000?; GAGNON, 2003;
TAYLOR, 2008). Também temos acesso à evidência oriunda das primeiras
traduções das passagens paulinas. Wright (1984, p. 125-153) examinou as
primeiras traduções latinas, siríacas e coptas, chegando à conclusão de que,
em todas elas, a palavra arsenokoitai é traduzida por um ou mais termos que
fazem referência à prática sexual entre pessoas do mesmo sexo. Jerônimo, por
exemplo, a traduziu como masculorum concubitores, uma correspondência quase
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A EVIDÊNCIA LINGUÍSTICA E EXTRALINGUÍSTICA PARA A TRADUÇÃO DE ARSENOKOTAI
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exata com o grego.
Além disso, os primeiros autores cristãos usaram o termo cunhado por
Paulo também no contexto de Levíticos 18 e 20. Um exemplo disso nos vem
de Eusébio de Cesareia, em sua obra Demonstração evangélica (1.6.67):
ὁ µὲν Μωσῆ̋ µοιχοῖ̋ καὶ ἀκολάστοι̋ διετάττετο τὸ µὴ µοιχεύειν,
µηδὲ ἀρσενοκοιτεῖν, µηδὲ τὰ̋ παρὰ φύσιν ἡδονὰ̋ διώκειν,
θάνατον τὴν τιµωρίαν τοῖ̋ παραβαίνουσιν ἐπάγων, ἐγὼ δὲ µηδ’
ἐµβλέπειν γυναῖκα µετ’ ἐπιθυµία̋ ἀκολάστου τοὺ̋ ἐµοὺ̋ βούλοµαι.
“Se, por um lado, Moisés ordenou aos adúlteros e irrefreados que não adulterassem,
não arsenokoitassem e que tampouco buscassem prazeres contrários à natureza,
introduzindo a pena de morte para os transgressores; de minha parte, não quero
sequer que meus [olhos], com desejo irrefreado, fitem uma mulher.”
Belgau (apud TAYLOR, 2008) argumenta que, se tivéssemos um texto
da Bíblia Hebraica que proibisse que os homens fabricassem tijolos e outro do
Novo Testamento que afirmasse que os fabricantes de tijolos não serão salvos,
ninguém em sã consciência diria não saber o significado de “fabricantes de
tijolos”. Segundo ele, a combinação das passagens de Levíticos, 1 Coríntios e
1 Timóteo é suficiente para garantir o fato de que o significado de arsenokoitai
aponta para o relacionamento sexual entre homens.
A EVIDÊNCIA LITERÁRIA
Conforme muitos estudiosos perceberam, as poucas ocorrências do
termo arsenokoitai aparecem no subgênero literário (topos) conhecido como
“lista de vícios”. Os filósofos da antiguidade greco-romana tinham o hábito
de elaborar listas para que seus discípulos as memorizassem e, depois disso,
as colocassem em prática. Paulo também desenvolveu essa prática, tendo
produzido listas de virtudes, de vícios e de vicissitudes (TORRES, 2002).
Nessas listas, os itens são geralmente organizados em grupos compatíveis
ou em consonância com algum outro princípio organizador. Por essa razão,
Martin (1996) argumenta que a citação de 1 Timóteo coloca arsenokoitai e
malakoi entre os pecados de natureza econômica e não entre aqueles de
natureza sexual, como moicheia (adultério) e porneia (prostituição), por exemplo.
Para o autor, a lista de vícios, em 1 Timóteo, organiza os pecados em duplas:
transgressores e rebeldes; irreverentes e pecadores; ímpios e profanos;
parricidas e matricidas; homicidas e homens prostituídos (pornoi); arsenokoitai
e raptores de homens (andrapodistai); mentirosos e perjuros. O autor busca
apoio adicional no fato de que, na citação dos Oráculos sibilinos, a forma
verbal arsenokoitein parece ter um referencial econômico ou financeiro. Sendo
assim, propõe que a expressão não pode ser entendida como equivalente à
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prática consensual do homossexualismo.
No entanto, Jepsen (2006) argumenta que, a despeito de sua tendência
organizadora, há inúmeras listas de vícios e virtudes em que os itens guardam
pouca relação entre si. O autor apresenta um exemplo oriundo da própria
obra Oráculos sibilinos (2.75), em que vícios e virtudes são mencionados
de forma aleatória: julgar outras pessoas, dar falso testemunho, conservar a
castidade, praticar o amor e não usar pesos ou balanças mentirosos. Ou seja,
em muitas dessas listas, o único princípio organizador é que elas contêm
vícios e virtudes.
Além disso, embora seja geralmente considerado que as listas de vício
dificultem a interpretação do significado das palavras nelas contidas, uma
vez que essas são inseridas sem um contexto mais amplo que as identifique
(SCROGGS, 1983, p. 127-129), essas listas às vezes apresentam qualificações
adicionais que possibilitam a compreensão, pelo menos provisória, do
significado de seus itens constitutivos. Felizmente, há inúmeras listas de
vícios que nos chegaram da antiguidade, o que nos permite fazer esse tipo
de constatação. Um bom exemplo desse tipo de qualificação provém de um
teólogo cristão do século IV, conhecido como Efraim. Em uma das preces
incluídas em sua obra Petições à mãe de Deus (5.373.6-11), o autor apresenta
esse tipo adicional de qualificações aos pecados de sua lista:
Ἀποδίωξον ἀπ’ ἐµοῦ τοῦ ταπεινοῦ καὶ παναθλίου δούλου σου τὴν ἀκηδίαν, τὴν
λήθην, τὴν ἄγνοιαν, τὴν ἀµέλειαν, τὴν κενοδοξίαν, τὴν µοιχείαν, τὴν πορνείαν,
τὴν ἀρσενοκοιτίαν, τὴν γαστριµαργίαν, καὶ πάντα̋ τοὺ̋ πονηροὺ̋ καὶ αἰσχροὺ̋
καὶ βλασφήµου̋ λογισµοὺ̋ ἐκ τῆ̋ ἀθλία̋ καὶ ταλαιπώρου µου καρδία̋ καὶ τοῦ
ἐσκοτισµένου µου νοό̋, καὶ πάντων τῶν κακῶν µου πράξεων ἐλευθέρωσον, καὶ
κατάσβεσόν µου τὴν φλόγα τῶν παθῶν, ὅτι ἀσθενὴ̋ καὶ ταλαίπωρό̋ εἰµι.
“Tira de mim, teu humilde e miserável servo, a apatia, o esquecimento, a ignorância,
a indiferença, a vaidade, o adultério, a prostituição, a arsenokoitia, a comilança e todo
pensamento maldoso, indecente ou blasfemo; [tira essas coisas] de meu coração
desgraçado e digno de pena, e da minha mente escurecida. Também liberta-me de
todas as minhas ações perversas, bem como apaga a chama de minhas paixões,
pois sou fraco e miserável.”
Como se percebe, esta lista de vícios contendo a arsenokoitia se coloca
também no subgênero (topos) das enfermidades (paixões) da alma, uma das
temáticas filosóficas mais comuns da literatura greco-romana (TORRES,
2007). Uma característica fundamental desse topos literário consiste justamente
em sua capacidade de motivar o indivíduo ao crescimento intelectual, espiritual
e social. A prostituição cultual, a violência do sexo não consensual (estupro),
a pedofilia e a cafetinagem parecem não estar incluídas entre as preocupações
dessa modalidade filosófica.
Além disso, há uma passagem de Orígenes (Exposição sobre
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A EVIDÊNCIA LINGUÍSTICA E EXTRALINGUÍSTICA PARA A TRADUÇÃO DE ARSENOKOTAI
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Provérbios 7.74) que, embora não tenha feito parte das discussões teológicas
e filológicas de arsenokoitia, acrescenta um dado importante em relação à
compreensão antiga do termo:
Οἱ µὲν ἐν ταῖ̋ πλατείαι̋ ῥεµβόµενοι, µοιχεία̋ καὶ πορνεία̋ καὶ κλοπῆ̋
λαµβάνουσι λογισµού̋· οἱ δὲ ἔξω τούτων ῥεµβόµενοι, τὰ̋ παρὰ φύσιν
ἡδονὰ̋ µετέρχονται, ἀρσενοκοιτεῖν ἐπιζητοῦντε̋, καὶ ἄλλων τινῶν
ἀπαγορευοµένων πραγµάτων φαντασία̋ λαµβάνοντε̋·
“Alguns vagueiam pelas praças, colhendo relatos de adultério, prostituição e furto;
outros vagueiam fora das [praças], participando em prazeres contrários à natureza,
procurando arsenokoitar e recebendo desfiles de outras coisas proibidas.”
Orígenes deixa claro que a arsenokoitia era considerada, pela igreja
cristã primitiva, como uma violação da natureza humana. Essa descrição se
encaixa muito mais numa situação de autodepravação do que numa situação
exploratória de outras pessoas, quer no contexto econômico ou sexual. Nesse
contexto, Teodoreto (História eclesiástica 252.4) nos dá, no final do século
IV, outra pista para a decifração de arsenokoitia:
ἀντὶ γὰρ θείων ῥηµάτων αἰσχρότητα προὐβάλλετο, ἀντὶ σεµνῶν λόγων
ἀσέλγειαν, ἀντ’ εὐσεβεία̋ ἀσέβειαν, ἀντὶ ἐγκρατεία̋ πορνείαν, µοιχείαν,
ἀρσενοκοιτίαν, κλοπήν, πόσιν καὶ βρῶσιν τῷ βίῳ πρὸ̋ τοῖ̋ ἄλλοι̋
εἰσηγούµενο̋ εἶναι χρήσιµα.
“Em vez das palavras de Deus, propôs fealdade; em vez de discursos nobres,
imoralidade; em vez de piedade, impiedade; em vez de domínio próprio (egkrateia),
prostituição, adultério, arsenokoitia, furto, bebedeira e comilança, ensinando que
essas coisas, além de outras, são úteis para a vida.”
Não me parece que textos como estes condenem necessariamente a
prostituição cultual, a pedofilia, a cafetinagem ou o estupro. Listas de vícios
como estas reprovavam pecados individuais cometidos, muitas vezes, em
oculto: adultério, furto, prostituição. Além disso, a ênfase tampouco parece
recair sobre o que se faz contra o próximo, mas naquilo que a degradação
nos leva a fazer, quer contra o próximo quer contra nós mesmos. Orígenes,
por exemplo, se preocupa também com as coisas que fazemos longe das
praças públicas. Não me parece lógico que um cafetão ou prostituto cultual
estabelecesse seu “negócio” em áreas pouco visitadas da cidade. Teodoreto,
por sua vez, mostra que a arsenokoitia é a alternativa pecaminosa para a
temperança virtuosa (egkrateia). De novo, não me parece que a prostituição
cultual ou a cafetinagem sejam oriundas da falta de egkrateia. Como no caso do
adultério, da bebedeira e da comilança, o termo arsenokoitia deve ser descritivo
de um pecado contra a natureza e que emane da falta de domínio próprio.
O caráter geral da arsenokoitia, mais do que a possibilidade de uma
definição limitada tecnicamente, também é confirmado pelo comentário do
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escoliasta de Nuvens (1090c), do comediógrafo Aristófanes, que explica
que um personagem da comédia “acusa” (diaballei) os atenienses de serem
arsenokoitai, adúlteros (moichoi) e prostitutos (pornoi). Segundo o escoliasta,
com isso o personagem expunha o fato de os atenienses levarem “um estilo
de vida depravado” (phaulos bios), “abusando de seus amantes de modo
desavergonhado”(tois paidikois chrômenous anaidôs). Mais adiante (1090d), o
escoliasta chega a atribuir aos atenienses o que chama de arsenomania (“obsessão
por machos”). Apesar do caráter hiperbólico da declaração, não parece que o
escolista restrinja a arsenokoitia a pecados limitados a certas situações da vida
ateniense. Sua descrição aponta para uma tendência geral, uma permissividade
que afeta a população masculina de modo geral.
Uma evidência contrária a essa minha insistência, partilhada por outros
estudiosos (WRIGHT, 1984; MENDELL, 1990?), de que o termo arsenokoitai
deve ser entendido à luz dos pecados individuais que representam tentações
para os indivíduos de modo geral é o fato de que a lista de vícios de 1 Tm
1:10 inclui termos como matricidas, patricidas e andrapodistai (“raptores
de homens”). De fato, andrapodistai é uma palavra cujo significado é mais
facilmente determinado devido a sua ocorrência em diversos autores pagãos
(Aristófanes, Platão, Xenofonte, Demóstenes, Políbio e Dio Crisóstomo,
por exemplo). Devo reconhecer que a tentação de matar o pai e a mãe ou
raptar homens não parece do tipo que se mostraria atraente para mais do que
um punhado de pessoas. Não obstante, quando consideramos a evidência
disponível, o peso da balança parece se inclinar indiscutivelmente para o
fato de que arsenokoitia consistia, na visão bíblica, uma forma abrangente de
homossexualismo.
A EVIDÊNCIA INTERNA
A evidência quanto ao significado de arsenokoitia pode emanar, como foi
visto, da análise de vários aspectos pertinentes ao contexto em que o termo
aparece na correspondência paulina. No entanto, nenhum peso de evidência
deveria ser maior do que o próprio contexto. A esse respeito, recentes estudos
apontam para o fato de que as epístolas de Paulo aos coríntios fazem parte
de uma discussão cujo componente sexual desempenha importante papel
(HARRILL, 2001; LARSON, 2004; MAYORDOMO-MARÍN, 2006). A
comparação da correspondência paulina com as invectivas de Polemo de
Esmirna contra Favorino de Arles, um dos hermafroditas mais famosos do
início da era cristã, situa os escritos de Paulo, entre outras coisas, no contexto
da autodefesa de sua masculinidade diante de insinuações contrárias. De
acordo com Cícero (Brutus 18.59), um orador manterá,
in gestu status erectus et celsus; rarus incessus nec ita longus; excursio moderata
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A EVIDÊNCIA LINGUÍSTICA E EXTRALINGUÍSTICA PARA A TRADUÇÃO DE ARSENOKOTAI
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eaque rara; nulla mollia cervicum, nullae arguae digitorum, non ad numerum
arculus cadens; trunco magis toto se ipse moderans et virili laterum flexione.
“em sua postura, um estado ereto e elevado; com raros passos e nunca longos; os
movimentos devem ser moderados e raros, sem inclinação efeminada do pescoço,
sem movimentação excessiva dos dedos, sem marcação do ritmo; deve, em vez
disso, moderar-se pela pose de todo o torso e pela atitude viril do corpo.”
Na visão comum da retórica romana, para ser ouvido respeitosamente,
era importante que o orador se portasse masculinamente. Por essa razão, a
crítica à postura efeminada de um orador podia destruir sua credibilidade.
Vários outros escritores da época relatam casos em que uma das partes
adotava precisamente essa estratégia, entre eles Tácito, Sêneca, Plutarco e Dio
Cássio. A passagem de 2 Co 10:10 tem sido recentemente interpretada como
consistindo desse tipo de ataque à capacidade oratória de Paulo. As próprias
declarações do apóstolo com respeito a sua flexibilidade no tratamento das
diferenças entre os cristãos daquela cidade (1 Co 4:21; 9:19-23; 10:33) poderiam
colocá-lo na condição de bajulador, traço de caráter proeminentemente
associado à postura efeminada (MARSHALL, 1987, p. 281-325). Diante
disso, o apóstolo se defende (2 Co 10:1; 11:20), apelando para o valor cristão
da mansidão (2 Co 10:1; 12:5, 8-10) e prometendo recorrer, se necessário,
a sua autoridade apostólica (2 Co 13:2). Por essas razões, há um número
crescente de estudiosos que identificam, em Paulo, elementos de uma postura
aparentemente homofóbica (LARSON, 2004, p. 92; MAYORDOMOMARÍN, 2006). Segundo esses eruditos, os posicionamentos de Paulo foram
motivados pela tentativa de se mostrar suficientemente viril para granjear o
apoio de seus ouvintes. Assim, é necessário que Paulo se apresente como pai
da igreja de Corinto (1 Co 4:14ss; 2 Co 11:2ss; 12:14), guerreiro (2 Co 10:3-5)
e atleta (1 Co 9:24-27). Para esses estudiosos, 1 Co 6-11 constitui importante
passagem na qual Paulo estabelece sua condição de orador viril. Há inúmeros
aspectos que são disputados em relação a esse trecho da correspondência
paulina. No entanto, é possível afirmar que entender as palavras arsenokoitai
e malakoi como tendo por referenciais aspectos de comportamento ligados à
postura efeminada faz sentido à luz dessa controvérsia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A despeito da complexidade do tema, é possível chegar a algumas
conclusões plausíveis com respeito ao significado da arsenokoitia. A evidência
morfológica aponta para o fato de que, mesmo em se tratando de um
neologismo, o leitor de Paulo deve ter entendido, sem maiores dificuldades,
o sentido sexual de arsenokoitai. A evidência genética sugere que a palavra
foi cunhada a partir da LXX. A evidência semântica indica que o vocábulo
não tinha um sentido técnico ou limitado, mas que tinha, em vez disso,
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um significado abrangente. A evidência literária coloca o emprego paulino
do termo no subgênero das listas de vícios e no topos das enfermidades ou
paixões da alma. E, finalmente, a evidência interna aos escritos de Paulo,
especialmente 1 Coríntios, sugere que o apóstolo usou o termo durante uma
polêmica contra os coríntios em que sua própria masculinidade estava sendo
questionada. Por essas razões, pode-se dizer que a tradução de arsenokoitai por
“homossexuais” não é incompatível com a evidência.
Pode-se considerar, de fato, um sinal dos tempos que, na época de
João Crisóstomo (Sermão sobre 1 Coríntios 6:9-10), as pessoas objetassem
às passagens paulinas da arsenokoitia porque achavam injusto que os
bêbados fossem colocados no mesmo nível dos adúlteros, prostitutos e dos
arsenokoitai; mas, hoje, adúlteros, prostitutos e arsenokoitai objetam quanto a
serem colocados no mesmo nível em que os bêbados. Por outro lado, nada
existe nos evangelhos que nos leve a desprezar quem quer que seja em razão
de suas fraquezas. O evangelho de Cristo simplesmente não nos autoriza a
desfilar nosso olhar de superioridade, farisaicamente nos ufanando de sermos
melhores do que os outros. Não somos. Em vez disso, a mensagem de Cristo
é que amemos o próximo como a nós mesmos, sem levar em consideração se
esse próximo é bêbado, adúltero, prostituto ou arsenokoitês.
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DATA DE SUBMISSÃO: 07/11/2012
DATA DE ACEITE: 03/12/2012
| REVISTA HERMENÊUTICA, CACHOEIRA-BA, VOL. 12, N. 2, P. 25-49 |
VERDADES, MENTIRAS E IRONIAS: UMA BREVE ANÁLISE
DE I REIS 22
Truth, Lies and Ironies: a Brief Analysis of I Kings 22
Jônatas de Mattos Leal1
Diego Rafael da S. Barros2
RESUMO
O “espírito mentiroso” que procede de Yahweh, no episódio em que Micaías se apresenta
perante Acabe, parece depor contra a integridade de Deus. Este trabalho objetiva explorar
o sentido da ação de Micaías e do “espírito mentiroso”. Pretende ainda averiguar se há
contradição entre o texto e a teologia bíblica, no que se refere à pessoa e caráter de Deus.
Do ponto de vista metodológico, o texto de I Rs 22: 19-23 foi objeto de exegese, incluindo
análise gramatical, contextual e teológica. Agregou-se a isto a hipótese de uso de figuras
de retórica, especialmente a ironia. Concluiu-se que não era intenção divina ludibriar o
rei, mas alertá-lo quanto ao risco de sua decisão, a qual representava sua chance final de
arrependimento perante o juízo divino. O estudo do “espírito mentiroso” de Deus leva
à discussão de questões éticas paralelas, tais como o uso defensável da mentira e outros
artifícios eticamente questionáveis.
PALAVRAS-CHAVE: Exegese. Espírito Mentiroso. Ironia.
ABSTRACT
The “liar spirit” who proceed of Yahweh, in the episode that Micaiah presents himself
before Ahab, seems testify against God’s integrity. This work search investigate the sense
of the action of both Micaiah and “liar spirit”. Still intends inquire if there is contradiction
between this text and biblical theology, as for the person and character of God. In
the methodological point of view, 1 Kgs 22: 19-23 was object of exegesis, including
grammatical analysis, contextual and theological. It was added the hypothesis that were
used rethorical figures, especially the irony. It was concluded that God did not intend
to deceive the king, but warn him about the risk of his decision, wich represented his
last chance to repent before the divine court. The study of God’s “liar spirit” leads to a
discussion of parallel ethical issues, such as the defensible use of lies and another ethically
questionable devices.
KEYWORDS: Exegesis. Lying Spirit. Irony.
1
Mestre em Ciências da Religião pela UNICAP – Universidade Católica de Pernambuco. Atua
como professor de Línguas Bíblicas do SALT-IAENE - Seminário Adventista Latino-Americano de
Teologia. E-mail: <[email protected]>.
2
Aluno do 5º período do curso de bacharel em teologia do SALT-IAENE – Seminário
Adventista Latino-Americano de Teologia/ Instituto Adventista de Ensino do Nordeste. E-mail:
<[email protected]>.
52 | JÔNATAS DE MATTOS LEAL / DIEGO RAFAEL DA S. BARROS
INTRODUÇÃO
No episódio da batalha em Ramote-Gileade entre Israel e a Síria, o rei
Acabe estava seguro quanto à sua vitória. Ben-Hadade, rei da Síria, e seus
exércitos aliados já haviam sido rechaçados do território israelita três anos
antes, numa situação em que a Síria parecia estar em situação vantajosa. Agora,
a ofensiva bélica da aliança formada pelos reis Acabe e Josafá era favorita à
vitória. A Síria estava enfraquecida depois da baixa que tivera três anos antes,
e Israel, que vencera sem a ajuda de aliados, agora contava com o apoio de
sua nação-irmã, Judá. Na perspectiva humana, os fatores cooperavam para
que Israel lograsse vitória neste empreendimento, mas na perspectiva divina
esse não era o caso. No céu, o tribunal de Yahweh comissiona um “espírito
mentiroso” para que os profetas de Acabe sejam levados a mentir, e o rei
Acabe, crendo neles, avança para guerrear em Ramote-Gileade. Na batalha,
Acabe é atingido por uma flecha disparada aleatoriamente, e, após horas de
hemorragia, morre na batalha.
O leitor bíblico é levado a questionar os métodos usados por Deus,
que, aparentemente, decreta a morte de Acabe, utilizando-se de fraude e
engano. Isto põe em xeque o caráter do Deus de Israel e o situa no campo
da inconfiabilidade, uma vez que é aparentemente declarado ser Ele o autor
da mentira que induz o rei à batalha de Ramote-Gileade. O principal objetivo
deste artigo é propor uma compreensão mais adequada da perícope de I Reis
22:19-23, levando em consideração o contexto mais amplo da narrativa, a
linguagem e as implicações do entendimento literal desta.
O ANTECEDENTE DA NARRATIVA
Os eventos que ocorrem no capítulo 22 de I Reis não podem ser
escrutinados antes do estudo dos dois capítulos anteriores (caps. 20 e 21),
em especial o capítulo 20. Todas as três histórias estão conectadas ao tema
das profecias acerca da morte de Acabe (20:42 e 43; 21: 21 e 22; 22: 17, 28).
Deve-se ter em mente que a morte de Acabe fora profetizada três vezes por,
pelo menos, dois personagens diferentes3, a saber, Elias e Micaías.
O estudo dos capítulos 20 e 22 lança nova luz sobre os fatos. Os autores
da LXX, a versão grega da Bíblia Hebraica, alteraram a ordem dos capítulos
20 e 21. No texto desta versão, houve uma anteposição
3
Há quem defenda que o profeta do capítulo 20 é o próprio Micaías, mas, é claro,
essa suposição não tem sustentação escriturística. A ideia de que o profeta do capítulo 20 e
Micaías são a mesma pessoa é defendida com base nos escritos de Flávio Josefo, que em sua
obra mais conhecida, História dos Hebreus, identifica o profeta do SENHOR que pede para
ser golpeado na cabeça como Micaías e acrescenta que, devido a esta predição tal profeta fora
atirado ao cárcere (JOSEFO, 2008, p. 422).
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VERDADES, MENTIRAS E IRONIAS: UMA BREVE ANÁLISE DE I REIS 22
| 53
do capítulo 21 – que trata da tomada à força da vinha de Nabote – ao capítulo
20, deixando-o lado a lado com o texto do capítulo 22. Nesta inversão,
percebe-se o claro enfoque no paralelismo existente entre as histórias dos
capítulos 20 e 22, como pode ser observado no quadro a seguir:
QUADRO 1: PARALELO
ENTRE ISRAEL E SÍRIA
CAPÍTULO 20
ANTITÉTICO
DOS
RELATOS
DAS
GUERRAS
CAPÍTULO 22
O Rei da Síria ataca Israel (subiu a O Rei de Israel ataca a Síria (subiram a
Afeca) – v. 26.
Ramote Gileade) – v. 29.
Um profeta verdadeiro profetiza a 400 falsos profetas e Zedequias
vitória de Acabe (entregará nas tuas profetizam a vitória de Acabe (entregará
mãos) – v. 28.
nas mãos do rei) – v. 6
Ben-Hadade esconde-se em uma câmara Zedequias se esconderá em uma câmara
interior – v. 30.
interior – v. 25
Um homem, filho dos profetas, profetiza Micaías profetiza a morte de Acabe – v.
a morte de Acabe – v. 40-42
17; 19-23
O profeta é ferido por vontade própria Micaías é ferido contra sua vontade – v.
– v. 37.
24.
Este é um paralelismo de natureza antitética, e aplica uma ligação de
causa e consequência entre os textos dos capítulos 20 e 22, pois é o fato de
Acabe aliar-se aos arameus que causará finalmente a sua morte. Jerome Walsh
(apud BROWN, 2007, p. 373) afirma que “a primeira e a terceira história
(caps. 20 e 22) formam um par contrastante. (A LXX enfatiza o paralelo
antitético ao unir ambas e colocar a história de Nabot [sic] antes delas).” Este
contraste é um elemento que abre as portas para a entrada da ironia – em suas
mais variadas formas – na narrativa.
AS IRONIAS DA NARRATIVA
O contraste entre os capítulos 20 e 22 possivelmente implica certo
tom de ironia, comum na literatura histórica do Antigo Testamento4. Trata-se
do que hoje seria chamado popularmente de “ironia do destino” e que Stan
Goldman (1990) denominou “ironia gerativa”.
4
Para maior compreensão acerca do uso de ironias na Bíblia Hebraica ver, dentre
outros: Watson (1995, p. 306-312); Spangenberg (1996, p. 57-69); Rossow (1982, p 48-52);
Goldman (1990, p. 15-31); Acosta (2009, p. 9-32).
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54 | JÔNATAS DE MATTOS LEAL / DIEGO RAFAEL DA S. BARROS
A ironia gerativa é realmente uma dupla ironia que força o leitor a questionar seus
valores éticos e não-éticos. [...] É particularmente importante porque oferece uma
nova abordagem para a chave do revés da trama e a problemática ética da história.
(p. 15 – Tradução nossa5).
No contexto da morte do rei Acabe, o capítulo 20 de I Reis serve como
pano de fundo para justificar a derrota e a morte de um rei israelita nas mãos
de um exército gentio. Aqui, o uso da ironia gerativa visa justificar a derrota
da aliança Judá-Israel ante o desmoralizado exército sírio de Ben-Hadade.
Esta ironia leva o leitor a perceber que a infidelidade a Yahweh pode fazer
tombar até mesmo o rei da nação protegida por Deus, questionando valores
nacionalistas tais como a pertença incondicional à comunidade da aliança.
Assim, Acabe torna-se um padrão objetável perante a audiência israelita de
todos os tempos, ainda que tenha sido morto em um empreendimento de
interesse geral da nação (diga-se de passagem, talvez o único desta natureza
em sua vida). Isto fica evidente no modo como o Talmude lida com o episódio
da morte de Acabe: “Disse o Rabi. Aha ben Hanina, “ ‘Perecendo o ímpio,
há júbilo’ (Pv 11:10). Quando Acabe, filho de Onri, pereceu houve júbilo”
(NEUSNER, 2011, p. 659).
O uso de ironias nesta seção da Bíblia Hebraica não se limita ao
paralelismo antitético entre os capítulos 20 e 22. Diversos tons irônicos
perpassam a narrativa. Outras ironias retóricas, em especial as de linguagem,
conectam esta seção do livro de Reis a outras partes do mesmo livro. O
conflito entre os 400 profetas de Acabe e o profeta Micaías faz lembrar o
embate religioso do monte Carmelo no capítulo 18, e é um exemplo de ironia
retórica de tema.6
Em seu primeiro discurso, Micaías opta por falar a verdade de uma
maneira um tanto excêntrica, diferente da que normalmente se espera de um
profeta (v. 15).
[...] o profeta javista profetiza o mesmo placebo que os profetas da corte, e o
rei, que sabe que está condenado, exige veementemente a verdade. O efeito deve
aumentar o teor amargamente irônico da narrativa [...] (WALSH apud BROWN,
2007, p. 373).
Na leitura do próprio texto fica evidente que o mensageiro não tinha
a intenção de profetizar falsamente. O próprio Acabe percebe, de alguma
forma, que Micaías estava faltando-lhe com a verdade. O leitor inepto pode
5
Todos os textos retirados de obras originalmente escritas em inglês e espanhol foram
traduzidos pelos autores deste artigo, uma vez que delas não há nenhuma tradução disponível em
português.
6
Para Goldman (1990, p. 21), a ironia retórica de tema pode ser expressa através do uso
das mesmas palavras em contextos distintos para fazer uma espécie de conexão temática entre
diferentes partes da história, que, neste caso, pode ser o fato de Acabe sempre servir-se de profetas de
confiabilidade duvidosa.
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VERDADES, MENTIRAS E IRONIAS: UMA BREVE ANÁLISE DE I REIS 22
| 55
atribuir lábios mentirosos ao profeta filho de Inlá, mas isto não passa de
outro tom de ironia na narrativa. Qual a eficácia da falsa fala de Micaías?
Profetizando assim, o vidente potencializa o impacto da verdade, fazendo
com que o rei Acabe clame por ela: “Quantas vezes te conjurarei que não me
fales somente a verdade em nome do Senhor? (v. 17)”. Assim, Acabe confessa
sua culpabilidade nesta questão. Ele reconhece com seus próprios lábios ser
esta uma falsa profecia. Isso significa que ele acaba de confirmar que todos
os seus profetas mentiram – já que ele pede a verdade a Micaías e espera que
agora esta seja diferente da mensagem de seus 400 profetas.
A partir de agora, independentemente do que Micaías viesse a dizer
na sequência, Acabe tornar-se-ia indesculpável perante a audiência, pois
reconhece publicamente que o oráculo de seus profetas não é verdadeiro. O
que, então, desmascara Acabe? O uso da ironia na boca de um sábio profeta:
Micaías, filho de Inlá.
Outro momento irônico da narrativa é percebido no momento em
que o rei de Israel, disfarçado para não atrair o ataque dos Sírios, é acertado
aleatoriamente por uma “flecha perdida” (v. 34). Acabe despojou-se de suas
vestes reais e trajou a armadura de um simples soldado (v.30) para, talvez,
impedir o cumprimento da profecia de Micaías, mas o plano do rei de ludibriar
a Deus não se concretizou. Sua tentativa de virar a mesa e enganar a Deus foi
frustrada. Ironicamente, como enfatizou Josefo (2008, p. 426), “a troca de
roupas não mudou o destino de Acabe”. Este tipo de ironia é classificado por
Goldman (1990) como ironia retórica de incidente, onde o acaso é fator decisivo
e, obviamente, inesperado para a mudança da trama. Para Goldman “o efeito
particular da ironia de incidente é intensificar as expectativas literárias para
múltiplas ironias” (1990, p. 16). Esta cena é seguida imediatamente por uma
ironia retórica de perspectiva de narrativa. Ao deparar-se com esta faceta da ironia,
o leitor desfruta da ironia dramática, percebendo, mais que os próprios
personagens, o rumo que toma a narrativa, enquanto cada personagem ignora
tanto o seu destino como o ponto de vista dos demais (GOLDMAN, 1990,
p. 18). Isso se revela no momento em que, enquanto todos procuram o rei
para feri-lo, lá está Acabe moribundo, escondido em seu carro e sangrando
até a morte.
Esta sequência de ironias fornece uma pista para entender a mensagem
do texto, que como será proposto, é uma mensagem nada convencional. De
posse deste conhecimento, pode-se avançar rumo a uma compreensão mais
exata do texto.
| REVISTA HERMENÊUTICA, CACHOEIRA-BA, VOL. 12, N. 2, P. 51-69 |
56 | JÔNATAS DE MATTOS LEAL / DIEGO RAFAEL DA S. BARROS
A NARRATIVA
O Rei Acabe propõe a Josafá, rei de Judá, a reconquista do território
de Ramote-Gileade (lit. Altos de Gileade), que outrora, pertencera a Israel e
servira, inclusive, como cidade de refúgio (Dt 4:43). Este território havia sido
conquistado, em dado momento, pela Síria e, é provável que ao declarar guerra
contra os arameus, Acabe desejasse que este território fosse incorporado no
grupo de terras devolvidas a Israel por Ben-Hadade, conforme o tratado
de paz realizado por ambos em I Reis 20: 34. Acabe já tinha tomado a sua
decisão de ir à guerra e ele apenas indaga ao rei Josafá se este o acompanhará,
ou não: “Irás tu comigo à peleja, a Ramote-Gileade?” (v.4). Esta decisão é
anterior a sua consulta aos profetas que o serviam, uma vez que esta apenas
é realizada por sugestão do monarca do Sul (v.5). Isto é muito importante
para a compreensão do texto. Uma vez que Acabe decide subir à guerra antes
de consultar os oráculos proféticos, isto demonstra que este oráculo não é
decisivo para a decisão do rei.
Acabe reuniu, então, quatrocentos profetas e a estes perguntou: “Irei à
peleja contra Ramote-Gileade, ou deixarei de ir?” (v.6). A unânime resposta
afirmativa dos quatrocentos profetas não convencera a Josafá (v.7). Ele, de
alguma maneira, identificou que aqueles profetas não eram de Yahweh: “Não
há aqui ainda algum profeta do SENHOR ao qual possamos consultar?”
(v.7). É provável que o fato de os videntes de Acabe não falarem no nome do
SENHOR – Yahweh – mas utilizarem o termo ambíguo Adonay,7 tenha sido
o prumo de condenação de sua profecia. Tratando deste caso, Walsh (apud
BROWN, 2007, p. 373) propõe:
Seu conselho parece favorável, mas é, de fato, ambivalente. Não diz o nome da
divindade que lhe concederá a vitória (cf. v.12), nem especifica qual rei a receberá
(cf. a “sua mão” não ambígua em 20, 13.28). – Grifo do autor.
Sem as credenciais javistas, estes profetas não passam pelo crivo do rei
Josafá. Insatisfeito, ele pergunta por um profeta que fale no nome de Yahweh.
É então que outro personagem entra em cena. O rei de Israel recorda-se de
um vidente que fala no nome de Yahweh, mas não está disposto a convocá-lo,
porque, segundo ele, “este nunca profetiza o bem a meu respeito, somente
o mal” (v.8). Josafá censura o rei de Israel por seu discurso, e este, por sua
vez, envia um oficial palaciano para buscar Micaías, filho de Inlá e profeta do
Senhor.
7
Texto hebraico de I Rs 22:6 última parte, ênfase suprida :
[`%l,M,(h; dy:ïB.
yn"ßdoa]
!TEïyIw> hleê[] Wråm.aYOw:]
| SEMINÁRIO ADVENTISTA LATINO-AMERICANO DE TEOLOGIA - SALT |
VERDADES, MENTIRAS E IRONIAS: UMA BREVE ANÁLISE DE I REIS 22
| 57
Entrementes, os profetas de Acabe tentam consertar a grave falha que
cometeram, e profetizam em uníssono, agora no nome de Yahweh (v. 12)8.
Ao fazerem isso, os profetas caem no total descrédito da audiência, seja esta a
dos reis de Israel e Judá ou a dos leitores do texto hebraico. Eles reformulam
sua mensagem de forma que seja agradável ao ouvinte e isto mostra o baixo
nível de compromisso que estes possuem com a verdade.
CONCÍLIOS NA TERRA E NO CÉU
Após esta sugestão, enquanto os reis contemplam as profecias
formuladas e reformuladas dos profetas da corte e o mensageiro sai em busca
de Micaías, é vista uma cena que evoca as típicas práticas jurídicas do antigo
Israel. Ambos os monarcas dirigem-se aos portais da cidade, e sentam-se
sobre seus respectivos tronos (v. 10). Boecker, famoso biblista especialista no
direito israelita, declara que “como o local dos julgamentos, o AT menciona
frequentemente os portões da cidade, cf. Dt 21.19; 25.7; Is 29.21; Am
5.10.12.15; Sl 127.5; Pv 22.22” (2004, p. 15). Esta informação é relevante
dentro da análise dos tópicos seguintes. Com isso em mente, consegue-se um
maior vislumbre da cena em questão. Os reis de Judá e Israel estão sentados
em seus tronos para julgar o teor da profecia que lhes era apresentada. Assim,
os tronos representam aqui a autoridade que estes reis possuem na cena
indicada.
Depois deste foco na cena dos tronos, Micaías, filho de Inlá – esta é
a única informação existente sobre sua história – é inserido na trama e logo
promete ao mensageiro de Acabe que falará conforme o Senhor ordenar
(v.14). A princípio, Micaías demonstra um tom desafiador ao ironizar o Rei de
Israel, como pode ser percebido no verso 15: “sobe e triunfarás”. Esta ironia
parece ter sido enfrentada outras vezes por Acabe em seus contatos anteriores
com Micaías (v.16). Como já foi observado, o uso da ironia pelo profeta tem
a função de desmascarar a mentira, ridicularizando-a. É então que a pregação
do profeta assume um tom vazio de sarcasmo. A primeira visão de Micaías é
clara: o monarca do Norte irá falecer, as dez tribos se dispersarão e tornarão
para casa em paz (v. 17). Acabe ignora a voz do Senhor na fala de Micaías e
o acusa de amaldiçoá-lo constantemente (v.18). A segunda visão do profeta é
de um cunho ainda mais chocante.
O terceiro discurso de Miquéias [i.e. Micaías] não é solicitado; mas relata uma cena
que ele testemunha na corte celestial de Iahweh para explicar o desacordo entre
seu profeta e os profetas da corte de Acab. [sic] (WALSH apud BROWN, 2007,
p. 373).
8
Texto hebraico de I Rs 22:12, ênfase suprida:
[`%l,M,(h; dy:ïB.
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58 | JÔNATAS DE MATTOS LEAL / DIEGO RAFAEL DA S. BARROS
Ironicamente, assim como na terra, um tribunal também se reunira
para uma sentença de guerra. Este tribunal tinha por juiz o Senhor, que, tal
como os monarcas de Israel e Judá (v.10), estava assentado sobre seu trono
(v.19). Junto a Ele estavam todas as testemunhas do Seu concílio celestial.
Moberly (2003, p. 11) argumenta que isto “representa e descreve a realidade
espiritual do que está acontecendo aqui e agora na terra, à entrada do portão
de Samaria”. Esse contraste entre os concílios parece indicar mais um nível
irônico da narrativa. Os reis eram os representantes de Deus na Terra (cf. Sl
45: 6-7)9, e seus tronos representavam igualmente o trono de Deus. Assim,
quando uma assembleia jurídica se levantava em Israel, representava o próprio
Yahweh tomando decisões em Seu concílio celestial. A mensagem da visão de
Micaías é clara: as decisões de Acabe e Josafá não estavam em harmonia com
as decisões de Yahweh: o Supremo Rei-Juiz.
Micaías participa silenciosamente de uma audiência do concílio de
Yahweh. Isso torna sua mensagem mais confiável que a dos profetas de Acabe,
uma vez que os argumentos destes não se baseiam em visões ou revelações
diretas da parte da divindade. Como argumenta de Vries, “acesso ao concílio
celestial era presumivelmente de maior importância para a autoridade de uma
mensagem do que a afirmação de Heilspropheten10 de posse do rûaḥ Iahweh.”
(apud Hildebrandt 2008, p. 198). Pode-se, então, afirmar que esta cena torna
as palavras de Micaías uma fonte mais confiável do que a profecia dos 400
profetas da corte, uma vez que ele está na posição de testemunha ocular da
corte de Yahweh – o mais alto grau de autoridade profética.
Ao erguerem-se as cortinas da eternidade, Micaías pode contemplar
como Daniel (Dn 7:9 e 10) e Isaías (Is 6:1-8)11 o santuário que há no céu.
Pode-se perceber nestes três textos (Dn 7:9 e 10; Is 6:1-8; e I Rs 22:19-22)
uma correlação de atividades e cenas próprias do Santuário celestial. Nas
três visões percebe-se que: 1) os profetas alegam presenciar uma teofania
utilizando os verbos râ’âh (Is 6:1; I Rs 22:19) e hăzâh (Dn 7:9;); 2) Deus está
sentado em seu trono como Rei-Juiz universal (Dn 7:9; Is 6:1; I Rs 22: 19); 3)
9
No Antigo Israel havia a concepção de que o rei era adotado por Deus (cf. Sl 2:7 ) tornandose, então, Seu filho. Assim, o rei assumia a função de representante legal de Deus na terra. É claro que
isso não significa que a pessoa do rei seria divinizada (cf. Sl 89;2), mas torna o rei uma figura distinta
dos demais homens de Israel . Para maiores detalhes ver Vaux (2010, pág. 140-141).
10
Palavra alemã que parece significar “profetas da salvação” referindo-se aos 400 profetas da
corte de Acabe que profetizaram falsamente sua vitória em Ramote-Gileade.
11
Sobre a ligação entre Isaías 6: 1-8 e I Rs 22: 19-22, ver Mettinger (2008, p. 194).
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VERDADES, MENTIRAS E IRONIAS: UMA BREVE ANÁLISE DE I REIS 22
| 59
seres celestiais estão circundando e servindo Yahweh (Dn 7:10; Is 6: 2; I Rs
22: 19); 4) as três cenas evocam, de alguma maneira, o juízo; e 5) o conteúdo
das visões inclui guerras entre reinos12.
É razoável supor que os três textos são literalmente visões da atividade
de Yahweh nos domínios de seu santuário celestial. O caráter literal deste
texto evidencia, apoia e reforça a possibilidade da existência de um templo/
santuário nas dimensões celestes13.
Especificamente no contexto de I Reis, isto demonstra que a realidade
da terra é prefigurada no céu, ou seja, (1) acima do tribunal de Acabe, está o
tribunal do Senhor; (2) acima da decisão tomada em Samaria, está a decisão
tomada no santuário celestial.
A corte de YHWH é o equivalente espiritual a corte de Acabe, isto é, a outra
face de uma mesma moeda. A cena da corte de YHWH interpreta para Acabe a
realidade de sua própria corte (MOBERLY, 2003, p. 9).
Ainda que haja um nítido paralelo entre estas visões, há quem advogue
que esta visão é de natureza alegórica e que o seu conteúdo não deve ser
compreendido literalmente14. É provável que a dificuldade de lidar com a
presença de um “espírito mentiroso” sendo comissionado por Yahweh tenha
impulsionado esta interpretação.
Todavia, para defender o caráter alegórico da visão, algumas questões
que surgem parecem ficar sem respostas. Se, ao interpretarem-se textos de
teor similar como, por exemplo, os que foram anteriormente mencionados
(Is 6: 1-8 e Dn 7: 9-10) como literais, por que entender que a visão de Micaías
em I Reis 22:19-23 não passa de simples parábola? Como interpretar que
Daniel e Isaías, entre outros, tiveram uma experiência teofânica e ao mesmo
tempo negar este fato no tocante a Micaías?
Ao interpretar que os profetas Isaías e Daniel presenciaram uma cena
real e foram acometidos por uma teofania, deve haver uma inclinação a dar
o mesmo parecer a experiência de Micaías narrada no texto em questão (I Rs
22:19-23).
Outro argumento que favorece a interpretação literal da visão é que
em nenhuma outra parte da Escritura, Yahweh é o sujeito ativo de uma
parábola que represente a Ele mesmo e Suas prerrogativas. Isto indicaria que
12
Neste ponto, alguém pode ter dificuldades de compreender que na visão de Isaías há menção
de guerra entre reinos. Mas o ano da morte do rei Uzias (destacado no v. 1) coincide com o período da
marcha assíria para fazer guerra a Judá. Neste momento, o povo se inquietava sobre o destino da nação,
que não tinha muitas chances de sobrevivência a invasão da Assíria (cf., NICHOL, 1995, p.169) .
13
Sobre o tema da existência e função do templo/santuário celestial consultar Sousa (2005).
14
Cf. Nichol (1993, p. 837); Champlin (2001, p. 1455) e Lockyer (1999, p. 43), que falham em
apresentar evidências.
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60 | JÔNATAS DE MATTOS LEAL / DIEGO RAFAEL DA S. BARROS
o episódio consistiu em uma autêntica experiência teofânica. Sendo assim,
Micaías teve a visão do trono celestial e de uma cena real da corte de Yahweh
em seu palácio/templo. E as evidências textuais mostram que isto nada tem
de alegórico.
Porém, o caráter literal da narrativa impõe alguns questionamentos
que devem ser levados em consideração neste trabalho. Deus deseja enganar
Acabe? Um espírito mentiroso pode fazer parte do exército do céu? Yahweh
mente aos Seus profetas? Tais indagações estarão em foco na discussão a
seguir.
YAHWEH DESEJA SEDUZIR ACABE A IR A
DA ATUAÇÃO DE SEUS PROFETAS?
RAMOTE-GILEADE ATRAVÉS
O texto nos fornece alguns indícios que apontam para uma atuação
negativa (do espírito mentiroso) com um objetivo positivo. Por um instante,
é necessário relembrar a cena. Acabe está obstinado a guerrear contra os
arameus em Ramote-Gileade (v.3). Os profetas são convocados não para
eliminar uma dúvida na mente de Acabe, mas para satisfazer a vontade de
Josafá (v. 4). A atuação dos profetas não é das mais convincentes. Eles não
falam no nome de Yahweh em sua primeira atuação, de maneira que Josafá
os identifica como profetas sem credenciais divinas (v. 7) e, logo em seguida,
refazem o oráculo, profetizando no nome de Yahweh, para tentar persuadir
também a Josafá. Micaías entra em cena sendo reconhecido como profeta de
Yahweh, o que o investe de autoridade javista na presença dos reis (v. 8). Em
seu primeiro discurso (recheado de ironia) o profeta Micaías fala da mesma
forma que os profetas de Acabe (v.15), ao passo que o rei pede a verdade em
seu oráculo (v.16).
Agora, algumas indagações de cunho geral podem ser respondidas. Se
a atuação dos profetas de Acabe foi um completo fiasco, que motivos teria
o rei de Israel para crer em suas palavras? Se estes profetas não foram nem
um pouco convincentes, como Deus os utilizaria para cumprir Seu propósito
de enganar Acabe? Ou será que este não era o objetivo final do Senhor? Por
que alguém que pretende enganar outrem, enviaria um profeta confiável para
dizer a verdade de maneira tão contundente? Talvez o objetivo de Deus não
seja o de ludibriar Acabe. Mas, se esta não era a real intenção do Senhor,
qual seria esta intenção? Se Deus não queria enganar Acabe, o que Ele queria
então?
A princípio, o “espírito mentiroso”, seja lá quem ou o que for15, só entra
em cena quando Acabe consulta os seus profetas. Já foi argumentado (mais
de uma vez neste trabalho) que a obstinada resolução do rei Acabe em ir à
15
Este assunto será brevemente tratado mais adiante, no próximo tópico/questionamento.
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VERDADES, MENTIRAS E IRONIAS: UMA BREVE ANÁLISE DE I REIS 22
| 61
guerra é tomada antes da consulta e da reunião do tribunal, em sua conversa
pessoal com Josafá (v. 4). Assim, House (1995, p. 237 e 238) entende que é
difícil chamar a Deus de mentiroso, pois Seu anúncio foi dado antes mesmo
do rei Acabe ir à guerra. Assim, ainda que pareça contraditório, o contexto
mostra que a intenção de Yahweh parece mais ser a de dissuadir o rei de sua
possível empreitada do que a de persuadi-lo através de artifícios enganosos.
Se não fora assim, como explicar o fato de o Senhor ter revelado a Micaías
as cenas do concílio celeste, e ter enviado a impactante verdade através da
atuação do profeta? Parece mais que Yahweh intenta mostrar a Acabe como
a sua credulidade (conveniente, diga-se de passagem) causará a sua própria
destruição.
Esta ideia recebe o reforço linguístico. O verbo “enganar”, utilizado
na sentença “quem enganará Acabe...?”, é o verbo pātâh. Goldberg (2008, p.
1249) define o verbo da seguinte maneira:
A ideia básica do verbo [pātâh] é a de ‘ser aberto’, ‘ser espaçoso’, ‘ser amplo’, e
pode dizer respeito à pessoa imatura ou simples, que está aberta a todos os tipos
de enganos por não ter criado são juízo discriminador quanto ao que é certo ou
errado.
Moberly (2003, p. 12) parece defender uma interpretação similar a esta:
A forma do verbo [pātâh] aqui significa “fazer de bobo”, i.e., “enganar”, como
alhures Joabe acusa Abner de fazer com Davi (II Sm 3:25). Assim, na proposta de
Deus “Quem enganará Acabe?”, Micaías está efetivamente dizendo, “Você é tão
bobo que está sendo enganado”.
Em outras palavras, Deus parece estar usando a mentira mal contada
dos profetas da corte como pano de fundo para que a verdade brilhe mais
intensamente, alertando Acabe do engodo do qual está sendo vitimado pela
sua própria obstinação.
Talvez, neste ponto alguém pense que o dilema ético da questão não
é solucionado. Pode Deus mentir, ainda que seja com uma finalidade nobre?
Talvez o termo mentira não se enquadre perfeitamente neste contexto. O
dilema ético que aqui é enfrentado pode ser solucionado pela declaração
de Charles Hodge (2001, p.1349) de que uma mentira “não é simplesmente
um ‘enunciatio falsi’16, [...] mas deve haver a intenção de enganar”. Hodge não
está solitário ao defender posições como esta. Ao discorrer sobre a postura
de Agostinho acerca da mentira, Norman Geisler (2010, p. 81) conclui que
a posição de Agostinho “parece implicar que a pessoa não mente quando
comunica algo verdadeiro à luz de suas intenções – mesmo que algum tipo de
ação duvidosa esteja, necessariamente, envolvida”.
16
Lit. afirmação (ou declaração) falsa.
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62 | JÔNATAS DE MATTOS LEAL / DIEGO RAFAEL DA S. BARROS
A visão que este artigo defende é a de que Deus, de maneira alguma,
tencionava ludibriar Acabe. Antes, desejava mostrar-lhe a verdade através
da própria mentira mal elaborada de seus profetas. Para tanto, Yahweh faz
uso do aspecto tradicional da figura de retórica mais presente no texto: a
ironia. Todo o contexto da morte de Acabe tem um pano de fundo irônico.
Uma definição satisfatória desta faceta da ironia israelita é encontrada nas
palavras de Kivitz (2009, p. 165): “a ironia... é uma maneira de mostrar a
verdade falando mentira [...]. É uma espécie de contradição que desmascara
a contradição [...]”. Deus revela a verdade ao rei Acabe não somente pela fala
de Micaías, mas também pela atuação duvidosa dos profetas da corte.
Entende-se, portanto, que Acabe foi iludido pelos seus mensageiros,
mas estes por sua vez não apresentaram um testemunho tão fiável quanto
o de Micaías. Parece que já era costume destes profetas falar somente o que
agradasse ao rei, uma vez que o profeta Micaías era o único de quem Acabe
esperava uma fala contrária ao seu desejo, isto é, o único que profetizava o mal
contra o monarca (v. 8, 18). O propósito da cena era denunciar a ingenuidade
de Acabe, todavia este rei recusou aprender a lição, o que resultou em sua
morte. Resolve-se, assim, o paradoxo da narrativa segundo o qual ambas as
mensagens – tanto a falsa como a verdadeira – seriam inspiradas pelo próprio
Yahweh. Ele inspira os profetas da corte a mentir, não de uma forma comum,
mas de maneira desconexa e incoerente; e, ao mesmo tempo, envia a verdade a
Micaías de maneira clara e impactante para que esta brilhe mais intensamente
em comparação com a fraude e o engano.
QUAL A NATUREZA
ENGANAR ACABE?
DO
ESPÍRITO MENTIROSO
QUE SE
PROPÕE
A
Há muita controvérsia acerca da natureza deste personagem. Pelo
menos três posições básicas são adotadas pelos estudiosos do texto. Em
primeiro lugar, alguns intérpretes argumentam que este espírito é o próprio
Satanás ou um espírito demoníaco que se apresenta diante de Deus, como no
caso de Jó (1-2), para pedir permissão para enganar Acabe.17 Todavia, é difícil
traçar uma linha de conexão entre o texto de Jó 1-2 e I Reis 22.
É fato que ambos os textos relatam cenas que se passam na corte
celestial de Yahweh, mas as semelhanças param por aí. O uso da partícula
hebraica gam (traduzida, neste caso, nas versões em português como também)
em Jó 1:6 e 2:1 parece indicar a ideia de que Satanás (hassatán, lit. o inimigo)
era um elemento estranho na audiência daquele concílio. Por outro lado, não
há nenhum indicador textual ou contextual que possibilite tal veredito sobre o
17
Ver, entre outros: Forsyth (1987, p. 112); Kaiser (1983, p. 256); Geisler (1999, p.
196); Jones (1994, p. 368).
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VERDADES, MENTIRAS E IRONIAS: UMA BREVE ANÁLISE DE I REIS 22
| 63
espírito de I Reis, que deve ser entendido como um ser celestial pertencente
ao exército de Yahweh que estava reunido naquele momento .
Ademais, a atuação de Satanás em Jó é completamente diferente da
forma como o espírito de I Reis age. Em Jó, Satanás é o proponente da
atuação (1:11 e 2:50 e Deus apenas autoriza sua ação (1:12 e 2:6) em I Reis
Deus é o proponente da ação (22:20) e o espírito é o executor da vontade de
Yahweh (22:22). No livro de Jó, Satanás parece ser o interessado na destruição
de Jó; já em I Reis está claro que Yahweh é quem sugere o engano de Acabe
(deve-se salientar, ainda que, tal engano não tem fins destrutivos). Assim,
diante dos fatos, esta teoria não pode ser aceita como plausível.
Então, se não é possível a compreensão do espírito mentiroso como
uma entidade demoníaca, como aceitar que um ser de tal natureza faça parte
do exército do céu sem manchar a reputação do Senhor deste exército? O
argumento de Sousa (2005, p. 223) é esclarecedor:
Como tópico do fato, espírito “mentiroso” é melhor interpretado como uma
atribuição funcional, ou seja, “mentiroso” não descreve a natureza do espírito, mas
retrata sua função na execução da proposta de YHWH de usar os falsos profetas
para trazer julgamento sobre o rei... Ele é um espírito “mentiroso” não no sentido
ontológico ou ético, ou porque ele é uma entidade demoníaca ao serviço de YHWH
– uma ideia que se desentende com a representação geral de YHWH através da
Bíblia Hebraica – mas no sentido de que o espírito induz os falsos profetas, que
já estavam sob as influências do mal, a nutrir o próprio autodestrutivo fim do rei
pelos fins de suas enganosas profecias.
Isto significa que o espírito agiria como inspirador da mentira, ao contrário
de ser mentiroso. Esta interpretação fica mais clara considerando-se que em
II Crônicas 18:21 – uma repetição deste episódio – e em alguns poucos
manuscritos massoréticos do livro de I Reis, a preposição “lamed” (traduzida
frequentemente como por ou para), antecipa o termo “espírito”18. Isto
possibilitaria a seguinte tradução como opção mais próxima do texto original:
Serei [por] espírito mentiroso na boca de seus profetas.
Em segundo lugar, há quem defenda a impessoalidade desse “espírito”19,
afirmando ser ele uma espécie de manifestação do espírito de profecia. Um dos
motivos para tanto é, talvez, a possibilidade de este espírito se colocar na boca
dos falsos profetas do rei Acabe. Se esta premissa for aceita, tem de ser aceita
também a impessoalidade ao Espírito do Senhor. Em textos como Êx 31:3
e Ez 2:2 o Espírito de Deus é colocado no interior dos seres humanos, mas
isto não é suficiente para argumentar a favor da impessoalidade do Espírito
de Deus. O bom-senso diria que isto não passa de linguagem figurada. É
possível concluir o mesmo no tocante ao “espírito” do relato de Micaías. O
espírito será “mentiroso” na boca dos profetas de maneira figurada. Chega18
Ver nota no aparato crítico da Bíblia Hebraica Stutgartensia na pág. 615.
19
Ver De Vries (1985, p. 268).
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se a esta conclusão percebendo que o tal espírito é protagonista de ações
pessoais:
Um uso de ruah muito parecido com o que ocorre em Jó 4:15 acontece em 1Rs
22: 21-22, onde um espírito se apresenta diante de Deus oferecendo seus serviços
a YWYH. Ele é o agente das ações verbais, assim como acontece em Jó 4:15. ruah
sai, apresenta-se, fala, induz e responde. Poderia este ser uma força impessoal ou
um vento? Obviamente não. Aqui nota-se um mensageiro celestial enviado por
Deus com um objetivo específico [...] Por esta razão, por mais que o uso de ruah
como mensageiro ou anjo seja raro não deve ser rejeitado (LEAL, 2010, p. 119).
De acordo com Hamori (2010, p. 30) ainda que ruah tenha sido
geralmente interpretado em contextos similares como um poder impessoal,
isto seria de fato algo muito estranho para os povos do Antigo Oriente
Próximo.
Por fim, vale mencionar o pensamento de Hildebrant (2008), o qual se
apresenta com uma posição ainda mais radical quanto à natureza do espírito,
identificando-o com o próprio ruah YHWH (i.e. Espírito do Senhor)20:
“Nesta referência, rûaḥ tem o artigo definido antes dele (hārûaḥ), indicando que
somente o único Espírito é capaz de operar o plano divino. Muitos conselheiros,
na corte real, raciocinaram em conjunto, mas somente o rûaḥ foi hábil para
implementar o plano e cumprir o propósito divino” (p. 199).
Ainda que não se possa definir facilmente qual é a mais adequada entre as duas
últimas posições (se o espírito é um anjo ou o próprio Espírito de Deus) nota-se
neste e em outros textos que a mentalidade israelita “percebia rûaḥ como sendo
uma personalidade independente” (Idem, p. 107).
COMO EXPLICAR O APARENTE DESEJO DE DEUS DE QUE ACABE CAIA
EM RAMOTE-GILEADE (V. 20) E A SUA DECLARAÇÃO DE QUE O ESPÍRITO
PREVALECERIA ATRAVÉS DA MENTIRA (V.22)? ISTO NÃO O TORNARIA
RESPONSÁVEL PELA MORTE DO REI ACABE?
Apesar da tentativa deste artigo de oferecer uma proposta de solução
para as questões anteriores, seria temerário ignorar essa última indagação.
A solução para esta questão é, de fato, o cerne da interpretação deste texto.
Como o “espírito mentiroso” prevalecerá através da atuação débil dos falsos
profetas?
Admitindo-se neste ponto a nitidez da falta de motivos que o rei Acabe
tinha para crer em sua corte profética, entende-se que é difícil argumentar
que o propósito final de Yahweh era o de fazer Acabe confiar neles. Se assim
Deus o quisesse, não teria motivos para enviar sua mensagem verdadeira
através de Micaías. Fatos como este levam o leitor à conclusão de que há mais
20
Ver também WALSH (1996, p. 351).
| SEMINÁRIO ADVENTISTA LATINO-AMERICANO DE TEOLOGIA - SALT |
VERDADES, MENTIRAS E IRONIAS: UMA BREVE ANÁLISE DE I REIS 22
| 65
misericórdia nestas palavras de Yahweh do que normalmente é cogitado.
A compreensão adequada destas questões pode repousar sobre a
natureza da visão. Mayhue (1993, p. 156) afirma que as visões podem ser
preditivas ou didáticas. De acordo com ele, a narrativa de I Reis 22:19-23 se
trata de um raro exemplo que possui elementos de ambas as categorias.
Admitindo esta premissa, não há problemas em conectar o caráter literal da
visão e sua intenção didática, que será detalhada a partir de agora. Ainda
de acordo com Mayhue (1993, p. 156), “o propósito primário da visão era
didático”21. Tal propósito didático, consequentemente, é o de demonstrar
que nada salvaria Acabe de sua obstinação desmedida. Em uma mesma
bandeja são servidos ao rei de Israel o engano e a verdade, e este escolhe o
prato da mentira. É dito ao “espírito mentiroso” que este prevaleceria contra
Acabe, mas isso não se trata da vontade de Yahweh; antes, esta é a vontade
do monarca. A fala de Deus de que o “espírito mentiroso” prevaleceria
(v.23) é mais descritiva que prescritiva, ainda que não se possa eliminar desta
fala o elemento punitivo – já que se trata de uma sentença. Deus não
decreta incondicionalmente a morte do rei Acabe, mas sentencia a este por suas
escolhas e ações inadequadas. Se o rei repensasse suas ações e voltasse atrás
em seus planos de reconquista do território de Ramote-Gileade, seria salvo
da morte. A queda do rei de Israel no campo de batalha é fruto de sua
obstinação. Uma vez que a sentença de Yahweh contra Acabe precede a sua
ida à batalha, esta fala divina não deixa de ser uma advertência compassiva.
Para Moberly, nesta cena, a “mensagem divina de compaixão deve
ser formulada como um desafio” (2003, p. 11), Assim, a sentença “Quem
enganará Acabe, para que suba e caia em Ramote-Gileade?”, é um desafio
que visa demonstrar ao ímpio rei com quem ele estava lidando. Neste desafio,
Acabe percebe que está confrontando a Deus e não ao profeta Micaías.
Durante todo tempo, o monarca concentrou a sua ira na figura do profeta
pelo teor de suas frequentes mensagens de desgraça. Mas ao rebelar-se contra
a palavra profética, o rei afrontava diretamente a Deus, a verdadeira fonte de
tais mensagens. O Senhor não apresenta sua misericórdia de forma simplória,
finalmente, para que esta não possa ser desvalorizada. Antes, ele combina
sua misericórdia com ironia, resultando em uma mensagem composta
simultaneamente de firme autoridade e sensível compaixão. Em parte, isto
é refletido nas sábias palavras atribuídas ao poeta Machado de Assis: “A
piedade, só por si, é triste; a ironia, sem mais nada, é dura; mas as duas juntas
dão um produto brando e cordial” (apud MAGALHÃES JR, 1956, p. 109).
Não que toda forma de piedade seja, por si só, triste, mas a simplicidade dela
21
Ainda que de acordo com Mayhue o propósito didático desta visão invalida sua
literalidade, já foi observado que dentro de uma hermenêutica histórico-gramatical faz mais
sentido interpretar a visão como se tratando de uma teofania real, e isto não impede que o
aspecto didático deste episódio esteja presente.
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66 | JÔNATAS DE MATTOS LEAL / DIEGO RAFAEL DA S. BARROS
torna-a facilmente rejeitável, e não era isso que Deus desejava.
Por isso, a autoridade de Yahweh é expressa em um desafio direto de
maneira a fazer com que Acabe perceba sua loucura suicida de afrontar o
Deus de Israel. Então, Moberly (2003, p. 12) conclui que “a descrição de
Micaías da misericórdia de Deus como hostilidade com respeito a Acabe não
pode ser compreendida se abstraída da dinâmica do encontro de Micaías com
Acabe.” Este desafio representa mais um nível da ironia da narrativa:
“... a corte celestial pode estar revelando a verdadeira natureza da corte terrestre,
i. e., que a manipulação, o logro, e a obstinação podem pertencer unicamente a
Acabe e seus profetas, e que estes estão sendo exibidos a Acabe em um irônico e
dramático desafio” (MOBERLY, p. 22).
Deus não iludiu Acabe a pelejar em Ramote-Gileade. Pelo contrário,
através do oráculo dado ao profeta Micaías, o Senhor o alertou das
consequências finais de sua obstinação. Isto aponta para o fato de que
Yahweh não mentiu para Acabe, ainda que tenha se utilizado da mentira
para demonstrar ao rei, bem como ao leitor da Bíblia, o perigo de crer em
falsos profetas por pura conveniência. Esta é uma das razões apresentadas
pela História Deuteronomista da queda não só do monarca de Israel, mas,
finalmente, da nação inteira.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Toda a narrativa de I Reis 22 e seu paralelo antitético no capítulo 20
formam uma estrutura que, à primeira vista, é de difícil entendimento. Mas
à medida que se compreendem graus de ironia que perfazem a narrativa
percebe-se que esta é uma dramática cena da História Deuteronomista que
possui concepções relevantes para a estrutura teológica da Bíblia Hebraica.
O terceiro discurso de Micaías revela uma cena de juízo que acontece
em uma reunião do concílio celestial. Neste oráculo são postos diante do rei
Acabe o engano e a verdade para que ele mesmo escolha, sua própria sentença.
Esta sentença já fora prevista por Yahweh em suas desafiantes palavras no
tocante ao êxito do “espírito mentiroso”: Acabe optaria pelo engano que o
levaria a morte. Nesta cena, é visto um exemplo literário de uma combinação
exótica de ironia e piedade, visando manter a autoridade e a misericórdia
unidas na sentença divina.
O Novo Testamento concede uma visão panorâmica do agir de Deus
em situações como a que se encontra no relato de I Reis 22, no tocante ao
engano de Acabe:
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VERDADES, MENTIRAS E IRONIAS: UMA BREVE ANÁLISE DE I REIS 22
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Por isso Deus envia a operação do erro, para que creiam na mentira, e para que
sejam julgados todos os que não creram na verdade; antes, tiveram prazer na
iniquidade (II Ts 2:11-12).
A operação do erro só é enviada aos que tiveram acesso à verdade e
não desejaram crer nela. Acabe não foi iludido pelo Senhor, mas foi julgado
por Ele. Uma vez que o rei é avisado por um profeta investido do maior grau
de autoridade possível (o de testemunha do concílio celestial) e opta por crer
na mentira e se comprazer na iniquidade, ele mesmo escolhe sua própria
sentença diante do tribunal de Deus.
Assim, o próprio fluxo da narrativa impede que Yahweh seja tratado
como culpado pelo engano de Acabe. Na cena do juízo do concílio celestial
fica claro que Deus ofereceu ao rei “a vida e a morte, a bênção e a maldição”
(Dt 30:19) e o ímpio monarca, em sua obstinação, preferiu enredar-se em
seu próprio desejo, escolhendo morte e maldição. Não atendendo a Palavra
do Senhor, Acabe, filho de Onri, torna-se, assim, culpado por sua morte e
desgraça no campo de batalha em Ramote-Gileade e modelo da infidelidade
ao concerto com Yahweh.
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DATA DE SUBMISSÃO: 27/09/2012
DATA DE ACEITE: 03/12/2012
| REVISTA HERMENÊUTICA, CACHOEIRA-BA, VOL. 12, N. 2, P. 51-69 |
O CASAMENTO JUDEU: RITUAIS, CRENÇAS E SIGNIFICADOS
The Jewish Wedding: Rituals, Beliefs and Meanings
Luiz Carlos Lisboa Gondim1
Lucas Mancilha Gondim2
RESUMO
O presente estudo intitulado, o casamento judeu, rituais, crenças e significados, tem como objetivo
refletir sobre tradição do casamento judeu em seus rituais, crenças e significados, e está
fundamentado principalmente nas ideias dos teóricos Asheri (1995), Lifschitz (1996),
Clements (1989), através de um estudo bibliográfico. Os resultados apontaram: uma cultura
demarcada pela relação com um Deus único e eterno que inspira os cerimôniais ritualísticos
demarcados em contornos sublimes que singularizam o princípio de indissolubilidade
do casamento e o esforço da nação no sentido de voltar às origens edênicas do pacto
matrimonial. As abordagens do estudo propõem o conhecimento e a necessidade de maior
aprofundamento acerca das tradições ligadas ao casamento judeu em seus rituais, crenças
e significados.
PALAVRAS CHAVE: Judaísmo. Casamento. Rituais conjugais judeus
ABSTRACT
The current study titled, the Jewish wedding, rituals, beliefs and meanings are intended to
reflect on the Jewish wedding traditions in their rituals, beliefs and meanings. Was based
mainly on theoretical ideas of Asheri (1995), Lifschitz (1996), Clements (1989), through a
bibliographic study. The results showed: a culture marked by a relationship with one eternal
God who inspires ritualistic ceremonies marked on contours which singularize the sublime
principle of indissolubility of marriage and the nation’s struggle towards edenic back to
the origins of the marriage covenant. The approaches of the study suggest the need for
knowledge and deeper understanding about the Jewish traditions related to marriage in
their rituals, beliefs and meanings.
KEYWORDS: Judaism. Marriage. Jewish marriage rituals.
INTRODUÇÃO
O presente estudo intitulado, o casamento judeu, rituais, crenças e significados,
teve como objetivo refletir sobre tradição do casamento judeu em seus
rituais, crenças e significados, e está fundamento principalmente nas ideias
dos teóricos Asheri (1995), Lifschitz (1996), Clements (1995), através de um
estudo bibliográfico.
1
Mestre em Família na Sociedade Contemporânea. Atua como professor do SALT - Seminário
Adventista Latino Americano de Teologia. E-mail: < [email protected] >.
2
Graduando em Teologia pelo SALT - Seminário Adventista Latino-Americano de Teologia e
em Tecnologia da Gestão Cooperativa na UFRB - Universidade Federal do Recôncavo Baiano. E-mail:
< [email protected] >
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A intrigante estrutura ritualista do casamento no povo antigo judeu,
que tanto influenciou o mundo do oriente ao ocidente com sua teologia e
filosofia, é apresentada em uma linguagem romântica, mas muitas vezes severa.
Este estudo apresenta detalhes do ritual do casamento pouco conhecido do
mundo ocidental. O que pensam os judeus sobre o casamento, como ocorre
esse ritual, qual o melhor momento para esta etapa da vida e qual a posição
judaica sobre o divórcio são temas que serão abordados.
Trata-se de uma breve reflexão que visa identificar e compreender a
tradição judaica em relação à instituição casamento. Além disso, o estudo revela
as bases religiosas que estruturam as tradições judaicas, reconhece os valores
matrimoniais judaicos e identifica o matrimônio como um compromisso do
cônjuge em uma tríplice díade – o casal com a conjugalidade, o casal com a
sociedade e o casal com o seu Deus.
Os resultados apontaram uma cultura demarcada pela relação com um
Deus único e eterno que inspira os cerimoniais ritualísticos em contornos
sublimes que singularizam o princípio de indissolubilidade do casamento e o
esforço da nação no sentido de voltar às origens edênicas do pacto matrimonial.
As abordagens do estudo propõem o conhecimento o e a necessidade de
maior aprofundamento acerca das tradições ligadas ao casamento judeu em
seus rituais, crenças e significados.
CONCEITO JUDAICO SOBRE CASAMENTO
Desde os primórdios cristãos, a igreja se manifesta unanimemente
aceitando as tradições judaicas como uma base parcial do ideal de Deus
para a humanidade. Não poderia ser diferente ao abordarmos os aspectos
relacionais que envolvem as tradições e cerimônias de casamento na cultura
judaica. Há uma forte relação que pode ser feita entre tradições judaicas e o
ideal de Deus para o casamento em função de sete entre os dez mandamentos
dados por Deus a Moisés. De fato, a lei moral estabelecida por Deus para
o povo de Israel faz referência às funções do casamento. Por exemplo, o
segundo mandamento enfatiza a importância do nome de Deus no lar; o
quarto mandamento direciona a família a obedecer ao sábado; o quinto
mandamento ordena os filhos respeitarem os pais; e o décimo mandamento
proíbe cobiçar qualquer coisa que pertença à família do outro. Três dos seis
mandamentos restantes, embora não nomeiem especificamente os membros
da família, fornecem orientações explícitas sobre as relações familiares. O
número 7 proíbe o adultério, o número 8 fala contra o furto e o número 9
proíbe dar informações falsas sobre o próximo. (DEDEREN, 2011).
Di Sante (2004) entende que não há vestígios de uma liturgia
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O CASAMENTO JUDEU: RITUAIS, CRENÇAS E SIGNIFICADOS
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matrimonial registrados em fontes bíblicas, mas no Talmud3 isto é amplamente
testemunhado, bem como são fixados seus elementos fundamentais; o
kidushin4, a ketubah5, as birkot hatanim6 e a quebra de um copo cheio de
vinho.
No judaísmo, o casamento sempre foi considerado uma instituição
sagrada. Desde os dias dos profetas, ele foi visto como um acordo sagrado entre
o homem e a mulher tendo Deus como intermediário. Desde os primórdios,
o casamento tem ocupado uma posição honrosa na sociedade judaica. Esse
contrato a respeito do amor e casamento merece o título de “Carta Sagrada”.
O próprio termo usado para descrever o casamento, kidushin, indica a alta
estima que a comunidade israelita tem pelo evento. (KOLATCH,1995).
Para Ausubel (1989) não havia no hebraico bíblico um termo
correspondente para a palavra “solteiro”, possivelmente pelo fato de que
não havia necessidade dela. Obviamente, a simples ideia de não se casar era
inaceitável para os judeus dos dias de remotos.
A idade correta para o casamento, de acordo com Lifschitz.(1996), é por
volta dos 18 anos de idade, mas era melhor fazer um jovem de 13 anos casarse para que ele não passasse pela experiência da ejaculação do sêmen, uma
vez que o instinto do mal começara a tentá-lo e empurrá-lo para o pecado.
No entanto, o casamento deveria acontecer nunca antes dos 13 anos, pois
uma jovem dessa idade ainda não poderia gerar filhos e isso seria considerado
imoral. Contudo, o homem nunca deveria passar dos 20 anos sem casar, pois
seria passivo de excomunhão. Outro motivo considerado muito importante
para o casamento precoce diz respeito ao fato de ser mais fácil educar os
filhos, tendo em vista que ter filhos tarde envolveria o risco de não viver o
suficiente para educá-los. Além disso, por trás da ideia de ter muitos filhos
está o objetivo de manter entre o povo de Israel um montante de pelo menos
600 mil homens acima de vinte anos de idade.
Se um homem não se desposasse, teria sido melhor que nem tivesse
nascido. Ao deixar este mundo, ele seria julgado por não ter deixado
descendência. A finalidade principal do matrimônio, portanto, era povoar
a terra. Ainda que o casal tenha gerado vários filhos do sexo masculino, o
mandamento só teria sido cumprido na vida do casal quando ele gerasse
uma filha. Dois fatores em particular parecem ter contribuído para a ideia
3
Escrito sobre leis judaicas.
O termo se refere à santificação pelo casamento, quando o noivo é separado, exclusivo para
a noiva, e vice-versa, e ambos são separados para Deus.
5
Contrato feito durante um casamento judeu (define as responsabilidades e compromissos de
um marido perante sua esposa).
6
Bênção nupcial.
4
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popular de que no Israel antigo a esposa tinha a conotação de posse de
seu marido: o uso da palavra baal7 para dizer marido, e a pratica de dar
mohar, comumente traduzido por preço da noiva. Contudo, a tradução
de presente de casamento era expressão mais adequada do que preço de noiva.
(LIFSCHITZ.1996).
Segundo CLEMENTS (1995, apud VAUX, 1989, P.75) estima que, Embora o
presente de casamento fosse dado ao pai da noiva, pertencia provavelmente à
moça de fato, daí a qualificação dele por Lia e Raquel como “nosso dinheiro” (Gn
31,15). O pai da noiva tinha o direito a seu recebimento, mas o capital voltava para
a moça quando o pai morria, ou mais cedo se o marido morria, como provisão
contra a miséria.
O casamento judeu carrega a simbologia do relacionamento de amor
de Iahweh8 com Israel, da alegria de Israel quando redimido pelo senhor. Na
visão judaica, a recusa em casar-se, em condições normais, constitui pecado.
O casamento é a condição natural do ser humano, e o próprio Deus disse
para contraí-lo.
Quanto à sexualidade no casamento, a prática parecia ingênua frente
a pluralidade e sofisticação da imaginação ocidental. O judaísmo encarava o
sexo como a ligação que assegura a união de dois amantes por toda a vida,
para compartilhar forças, prazeres, diversão, e também a tarefa de criar filhos.
O impulso sexual da esposa é notoriamente observado, em particular no
Talmud, onde o marido é exortado a estar sempre atento ao desejo sexual de
sua esposa e, sob nenhuma circunstância, negar-lhe o conforto de uma vida
sexual plena.
NOIVADO
O casamento era precedido, com antecedência de um mês a um ano,
pela cerimônia da promessa de casamento ou noivado, denominada em
hebraico, erusin, ou, mais popularmente tena’im9. (AUSUBEL, 1989).
O noivado era efetuado através de um documento. Disponível de
forma impressa, tal documento era assinado pela noiva e pelo noivo e por
duas testemunhas. É ratificado pela cerimônia conhecida como “tomar
kinyan”, na qual as partes contratantes seguram um lenço ou algum outro
artigo de indumentária a fim de declarar que uma troca se realizou e que o
acordo é obrigatório. Apesar da aparente rigidez dessa lei, seu valor ficou
provado através dos séculos em que a família Judaica permaneceu sendo
7
Em hebraico(l''[;B;)é uma palavra semítica que significa Senhor, Lorde, Marido ou Dono.
Nome próprio mais comum atribuído ao Deus de Israel.
9
Termo de acordo assumido pelas partes envolvidas na relação do casamento.
8
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O CASAMENTO JUDEU: RITUAIS, CRENÇAS E SIGNIFICADOS
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a unidade social mais forte que o mundo já conheceu. Essa cerimônia era um
ato que se efetuava num ambiente religioso; pois, no pensamento judaico,
não existe separação entre a lei e a religião. Assim, também, o casamento
será um contrato, com força de união legal, cuja cerimônia é chamada de
kidushin. Dessa maneira, o que é materialmente uma transação comercial, tem
o sentido singular de um ato religioso em que o noivo e a noiva mutuamente
se santificam e são santificados no meio de um povo que os ajudará a crescer.
Tais cônjuges são também consagrados ao próprio criador, que lhes deu,
como primeiro de seus mandamentos, “crescei e multiplicai-vos, e enchei a
terra” (ASHERI,1995).
O casamento é uma nova fase da vida para os noivos e tornou-se uma tradição
entrar nesta nova fase com jejum e oração, com a intenção de obter perdão pelos
pecados anteriores. A origem do costume de jejuar no próprio dia do casamento
deve ser procurado no tamuld de Jerusalém. (LIFSCHITZ.1996, p.37).
Essa tradição no noivado judeu, com base na lei rabínica, era uma
oportunidade onde o noivo e a noiva expiavam todos os seus pecados para
poderem começar sua vida de casados como uma espécie de folha em branco
em sua experiência com Deus. (AUSUBEL, 1989).
A CERIMÔNIA DE CASAMENTO
Como para o entendimento judaico o casamento contribuía na
perpetuação de seu povo, era celebrado, por muitos séculos, com entusiasmo
por toda comunidade, tanto como um dever tanto religioso quanto patriótico.
Uma tradição talmúdica vividamente lembrada diz que, no primeiro templo,
havia um portão especial para o noivo. Os habitantes de Jerusalém se reunião ali
para observar a entrada dos cortejos nupciais. Quando o noivo entrava, era-lhe
dirigida a tradicional bênção para a progenitura: “Que Deus, Cujo trono está
instalado nesta casa, alegre os seus corações com filhos e filhas!”. Um mérito
singular era estabelecido aos membros da comunidade que participavam das
alegrias da noiva e do noivo na cerimônia de casamento. As maiores homenagens
deviam ser prestadas ao casal no dia de seu casamento. Alguns dos sábios tinham
o hábito de transferir as aulas da ieshivah10 e, seguidos por seus estudantes,
acompanhavam o cortejo nupcial em sua marcha. (AUSUBEL, 1989).
A cerimônia realizava-se em uma sinagoga, começando com o noivo
e a noiva sendo levados por seus pais para baixo da chupá11. Em algumas
congregações, este é um dossel fixo, enquanto noutras é portátil, geralmente
com seus quatro suportes de canto sendo segurados por quatro amigos
10
Academia rabínica .
A Chupá ou Khupá (pronuncia-se rupá, do hebraico: hP'Wx), plural Chupot ou Chupos
(hebraico: twOPWx) é a tenda sob a qual se realiza o casamento judaico.
11
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do noivo. Entre os mais religiosos, particularmente entre os chassidim12,
considerava-se melhor que se levasse a chupá para fora, a céu aberto. Na falta
de uma, podia-se improvisá-la fazendo quatro homens (altos, obviamente)
segurarem uma tallit pelas pontas. O chupá é um dossel de casamento,
geralmente uma peça grande de material decorado de seda, cetim ou veludo,
apoiada sobre quatro mastros firmes assumindo um formato de tenda.
Se a noiva já não tivesse sido casada antes, vestia branco e portava
um véu que era colocado sobre sua cabeça pelo noivo, imediatamente
antes da cerimônia. Em casos em que a noiva fosse órfã, cujo casamento
tinha se tornado se tornou possível pela comunidade, o véu é colocado
pelo rabino, que, ao mesmo tempo, abençoava-a com estas palavras: “Irmã
nossa, sejas tu a mãe de muitos milhares”. Uma vez que o casal estava sob
a chupá, era costume que a noiva caminhasse três, quatro ou sete vezes em
torno do noivo, dependendo da cultura local. Duas razões, pelo menos, são
dadas para isso: uma, é que a noiva mostra, dessa maneira, que o marido
será o centro da existência dela; a outra mais comumente aceita, é que isso
simboliza o fato de que o noivo agora está rodeado pela luz e pela virtude
que só o casamento traz. Outros afirmam que a origem tradicional das
voltas em torno do noivo são baseadas em Oseias (2:21-22), texto no qual,
Deus (o noivo) fala com Israel (a noiva) e diz “Eu te desposarei a Mim
para sempre, Eu te desposarei a Mim na justiça e no direito, no amor e na
ternura. Eu desposarei a Mim na fidelidade, e conhecerás o eterno.” O fato
de o verbo desposar aparecer três vezes justifica as três vezes remete a um
ritual em que dá três voltas a noiva em torno do noivo. ( KOLATCH, 1995).
Após a noiva haver caminhado em torno do noivo, o rabino ou outra pessoa
que esteja conduzido a cerimônia recita um fragmento do salmo 118 e uma
bênção curta. Deve-se notar que, tecnicamente, qualquer judeu instruído pode
conduzir a cerimônia de casamento; tal pessoa é chamada de m’sader kidushin13.
(ASHERI,1995, p.65).
A CERIMÔNIA DA ALIANÇA
Na sua forma primitiva, o casamento era em sua essência uma transação
comercial. Nela, o noivo “adquiria” a noiva pelo pagamento de uma moeda
de ouro ou de prata. Acreditava-se que, pela influência romana, esta prática
foi substituída em algumas comunidades por um anel, que, provavelmente,
simbolizava a autoridade usada no relato da bíblia pelo faraó, ao outorgar
autoridade a José colocando em seu dedo o anel real, para governar o Egito
(Gênesis 41:42). (KOLATCH,1995).
12
13
Em hebraico, a palavra “chassid” significa extremamente religioso e piedoso.
Executor da cerimonia de casamento judaica.
| SEMINÁRIO ADVENTISTA LATINO-AMERICANO DE TEOLOGIA - SALT |
O CASAMENTO JUDEU: RITUAIS, CRENÇAS E SIGNIFICADOS
| 77
Asheri (1995) revela que, após uma curta benção, o rabino
frequentemente pronunciava um breve sermão dirigido aos noivos, que era,
por sua vez, seguido pela bênção do primeiro dos dois copos de vinho que
devem ser bebidos durante a cerimônia. Em ambas as ocasiões, noivo e noiva
bebem do mesmo copo. Neste ponto é que o casamento propriamente dito é
efetuado. Primeiro o noivo paga à noiva um preço de aquisição, sob a forma de
um anel feito de algum metal precioso. Se não tivesse um anel, podia ser uma
moeda. Ele coloca o anel no dedo indicador da mão direita da noiva, uma vez
que esse é o dedo que se usa para comprar um objeto, indicando que o anel
não é simplesmente um adorno, mas compensação monetária pela própria
noiva. A noiva aceita o anel, indicando desse modo o seu consentimento na
transação. Este deve ser propriedade pessoal do próprio noivo, pois de outro
modo a cerimônia poderia ser invalidada.
VOTO E CONTRATO MATRIMONIAL
Imediatamente após a cerimônia do anel, o rabino recitava a promessa
de casamento a qual era repelida pelo noivo, palavra por palavra, afim de
não haver possibilidade de erro. O enunciado real do voto é: “eis que tu me
és santificada por este anel, de acordo com as leis de Moisés e de Israel”.
Desse modo, o noivo adquiria a noiva por palavras e atos na presença de
duas testemunhas que assinavam o contrato matrimonial. A função do
rabino era apenas cuidar para que tudo fosse feito corretamente, “de acordo
com as leis de Moisés e de Israel”. Assim, a primeira parte da cerimônia
estava terminada. A segunda parte da cerimônia era o momento da leitura
do contrato de matrimônio, chamado de Ketubá. Esse documento legal,
geralmente já impresso, era preenchido antes da cerimônia, na presença do
noivo e da noiva, mas era assinado pelas duas testemunhas da cerimônia.
Nas palavras de um conceituado rabino moderno, Dr. Immanuel Jakobovits,
tratava-se de um contrato unilateral, pois não era mencionado nada a respeito
das obrigações da esposa para com o marido. A Ketubá torna-se propriedade
pessoal da noiva, sendo-lhe entregue assim que era lida. De acordo com a lei
judaica o casal não podia passar mais que uma hora sob o mesmo teto sem a
sua Ketubá. Este documento era obrigatório e tinha validade até o fim da vida
ou que o divórcio marcasse o fim do matrimônio. (ASHERI,1995).
Asheri (1995) ainda revela que após a Ketubá ser lida, abençoava-se o
segundo copo, do qual a noiva e o noivo deviam beber. A bênção do vinho
deste segundo copo era a primeira das “sete bênçãos” recitadas durante o
casamento. Ela é seguida por mais seis, sendo costume repetir as sete ao final
da festa de casamento. Entre muitos ortodoxos, o matrimônio era celebrado
com uma festa dada em cada uma das seis noites que o sucedem e as sete
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bênçãos eram repetidas a cada vez. Após a recitação das sete bênçãos, um
copo (não aquele de que o casal bebeu) era colocado no chão e o noivo o
quebrava, pisando nele enquanto os presentes gritam “Mazzeltov!”14. Afirmase, geralmente, que o copo é partido em memória da destruição do templo, de
maneira que mesmo nas ocasiões mais alegres, os judeus não esquecem que
parte do povo judaico ainda está no exílio.
Asheri (1995) acredita que a experiência total do povo judaico achase carregada de superstições, muitas delas peculiares aos judeus. Para ele, a
origem desta cerimônia da quebra do copo tinha base em crenças de que
os casamentos são atraentes aos maus espíritos; por isso, cria-se que esses
barulhos afugentavam as influências malignas.
Por sua vez, J. Kolatch (1995) acrescenta que diversas explicações
existem em relação à obrigação do noivo de quebrar o copo, mas todas elas
convergem numa finalidade - criação de ruídos. Na sua visão, a explicação mais
popular e tradicional diz que o ruído de estilhaços é uma dura recordação da
perda da independência nacional judaica nas mãos dos romanos em 70 d.C.
Após o copo ser quebrado, a birchat cohanim15, é proferida, e os convidados
permanecem na sinagoga até que a noiva e o noivo tenham saído. A razão para
isso é muito importante: a cerimônia não é válida até que os recém-casados
tenham se encaminhado para um aposento onde possam ficar sozinhos por
alguns minutos. Seu encontro tem de ser a portas fechadas e a entrada ao
aposento deve ser testemunhada pelos dois homens que assinam o Ketubá.
A lei e o costume judeu era fortemente avessa à permanência de duas
pessoas do sexo oposto, sozinhas, no mesmo aposento, a menos que sejam
casados. A reclusão simbólica do casal indicava a sua condição de casados
e também que ela (a noiva) não era censurada, mas antes aprovada pela
comunidade. A reclusão do casal durava apenas alguns minutos, o suficiente
para que o mesmo tivesse um momento a sós, e para que aproveitasse a
oportunidade de falar um ao outro sem ter outros presentes. Costumeiramente,
quebrava-se o jejum do dia do casamento com um pouco de vinho e um
pedaço de bolo, sua primeira refeição juntos. (ASHERI,1995)
O término do rito do matrimônio era marcado pela quebra de um
copo de vinho: a finalidade era lembrar ao esposo que ninguém (nem ele
mesmo) podia ter felicidade distintiva e completa bem como para manter
vivo na memória o fato de não deixa-los esquecer de que não há alegria plena
enquanto o “templo de Jerusalém” (símbolo da presença divina) não fosse
reedificado. (DI SANTE, 2004).
14
15
Boa sorte, saúde e felicidades a todos!!
Bênção do sacerdote recitada na liturgia judaica.
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O CASAMENTO JUDEU: RITUAIS, CRENÇAS E SIGNIFICADOS
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LUA DE MEL
Uma tradição antiga com base na história de Jacó diz que as festas
de casamento devem durar sete dias, pois foram sete os anos exigidos a
Jacó por cada uma de suas esposas, Léa e Raquel. Desde a primeira refeição
após a cerimônia de casamento, repetem-se as sete bênçãos que tinham sido
recitadas sob a chupá. E durante os sete dias seguintes, reúne-se um minian16
a cada dia, com a noiva e o noivo presentes, para ouvir estas sete bênçãos
novamente. A lua de mel ocorre depois que esses sete dias tenham passado.
(LIFSCHITZ,1996).
De acordo com o Rabi Eliahu (1984), existe uma ética na sexualidade
judaica que proíbe ao homem, a partir da lua de mel, ter relações sexuais com
sua esposa no intuito de causar-lhe sofrimento ou frustração. O esposo, além
disso, não devia forçá-la a ter relações, pois um dos mandamentos existentes
no Israel antigo era o de “amar o próximo como a si mesmo”. (Levítico,
19:18). Outro dado importante apresentado por esse teórico revela que, nesse
ethos judaico, para o homem produzir prazer na mulher se fazia necessário que
ele soubesse as diferenças naturais que existem entre eles no âmbito sexual;
o homem tem o prazer mais rápido, enquanto que o prazer da mulher não
está no ato em si, mas no carinho, no amor, nos beijos e tudo que envolve
e antecede o ato. Assim, o ideal era que o homem se unisse à sua esposa
e os dois chegassem juntos ao clímax. Após o ato sexual, na lua de mel,
o homem é proibido de abandonar sua esposa. Aconselha-se que o casal
permaneça junto, ao término da relação, demonstrando assim o afeto e a
unidade existente entre eles.
Em uma pesquisa realizada por Risman (1997)17 foi enfatizada
a importância que o Judaísmo dava ao comportamento sexual para a
manutenção dos laços maritais de maneira que, o casal estaria sempre em
lua-de-mel, sensação esta renovada mensalmente no reencontro do casal que
ficava “afastado sexualmente” durante o Período de Niddah, aumentando
assim as alternativas de diálogo e a ampliação do desejo sexual.
A IMPUREZA DA MENSTRUAÇÃO
Os casais observantes do judaísmo seguiam uma regra antiga,
alternando tempo de abstinência e prazer. Esse controle sexual sempre fez
parte do matrimônio dentro da fé judaica. De acordo com a torá, qualquer
surgimento de sangue da vagina tornava a mulher ritualmente impura. Isto
significava que ela não podia ter relações sexuais com o marido. Por extensão,
16
É um grupo aleatório de dez homens que representam o povo judeu e que a presença é
necessária na realização de muitos atos e funções religiosas que devem ser realizados.
17
Psicólogo clínico. Pós graduado em sexualidade humana pela Universidade Gama Filho.
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80 | LUIZ CARLOS LISBOA GONDIM / LUCAS MANCILHA GONDIM
o marido não podia nem mesmo tocá-la, para não leva-la à violação de um
importante mandamento (lev. 15:19 e 18:19). No momento em que a mulher
notava que saía algum sangue da vagina, mesmo que não passasse de uma
mancha em suas roupas íntimas, ela se tornava uma nidda18, e devia abster-se
de manter relações sexuais com o marido. Além disso, tornava-se geralmente
impura e transmitia impureza ritual por contato. Por isso, muitos judeus
praticantes não apertavam a mão de mulheres, porque se pressupunha que
todas estavam no estado de impureza ritual, uma vez que não havia meio de
saber o contrário, pois a boa educação impedia que lhes perguntasse. Quando
o sangue era causado pela menstruação normal, presumia-se que o período
duraria cinco dias. Ao final desse período, a mulher devia contar mais sete
dias, nos quais não aparecesse sinal de sangue. Devia, então, purificar-se numa
mikvá19. Mesmo que o seu período terminasse um dia após ter começado, ela
não podia começar a contar os sete dias puros antes que cinco dias tenhamse passado, incluindo o dia em que o sangue aparecia pela primeira vez. Em
síntese, os casais judeus abstinham-se de manter relações sexuais durante dez
a dose dias consecutivos em cada mês. (ASHERI, 1995).
Passados os sete dias puros, a mulher devia fazer uma imersão total
(mikvá). Todas as comunidades judaicas de certo porte possuem uma casa
de banhos deste tipo. Isso era considerado tão importante que a lei judaica
estabelecia que quando se construísse uma nova comunidade num lugar,
a mikvá devia ser a primeira construção a ser empreendida. Só depois era
construída a sinagoga. A imersão tinha de ser completa e não devia existir
nada entre a mulher e a água. Além disso, ela devia estar acompanhada de
outra mulher, de mais de doze anos. Era preciso se certificar de que a mulher,
antes menstruada, estava inteiramente coberta pela água, até mesmo os
cabelos da cabeça, que não podiam ficar flutuando na superfície.
Como o dia judaico termina ao pôr-do-sol, a esposa para de contar sete
dias puros de abstinência, exatamente nessa passagem do dia para noite. A lei
diz que ela deve imergir-se na mikvá assim que as estrelas forem claramente
visíveis, a fim de não adiar a ação desse importante ritual e tornar possível o
mandamento igualmente importante das relações conjugais com o marido.
(ASHERI, 1995).
O sangue que acompanhava o parto também tornava a mulher ritualmente
impura. Se a criança que nascesse fosse um menino, a mãe era considerada
impura por sete dias, por causa do parto. Após o nascimento da criança, a mãe
18
Ritualmente impura, (do hebraico hdyn removido , separado) é a palavra que no judaísmo
designa o status de uma mulher durante seu período menstrual e os sete dias subsequentes, até que a
mulher mergulhe em uma mikvá, onde será considerada ritualmente purificada.
19
Banho de purificação ritual (em hebraico hw"q.mi) é o nome dado à imersão ritual em água
utilizada no judaísmo. Geralmente é utilizado para purificação da mulher após a menstruação e o
nascimento de um filho, e também é requerido aos que se convertem ao judaísmo.
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O CASAMENTO JUDEU: RITUAIS, CRENÇAS E SIGNIFICADOS
| 81
devia contar sete dias limpos e ir então à mikvá. Se desse à luz uma menina, o
período impuro era de quatorze dias, após os quais começam a ser contados
os sete dias puros (Lv. 12, 2-5). Os homens também utilizam a mikvá, mas por
motivos diferentes. Entre os mais ortodoxos, em especial entre os chassidim e
os estudantes da cabala, era costume visitar a mikvá nas tardes de sexta-feira,
antes do início do shabat20. Porém muitos homens iam à mikvá apenas uma vez
por ano, antes do yom kipur21.
DIVÓRCIO JUDEU
O judaísmo tratava o divórcio como uma catástrofe que só ocorreria
em casamentos equivocados. Os rabinos tinham instruções rigorosas para
desencorajar, adiar e evitar o divórcio até onde fosse possível. Segundo a lei
judaica, o casamento termina apenas pela morte de um dos cônjuges ou pelo
gett22. Se o casamento apenas no civil é até certo ponto reconhecido pela lei
judaica, o divórcio não o é. As leis que se referem à preparação do gett estão
longe de serem simples. Em primeiro lugar, o divórcio é concedido à esposa
pelo marido. A esposa não tem o poder de divorciar-se do marido. Contudo,
se uma mulher tivesse razões para querer divorciar-se do marido, podia dirigirse a um tribunal judaico chamado bet din23 e exigir que o marido se divorciasse
dela. Se o bet din concordasse que suas razões eram legítimas, podia ordenar
ao marido que concedesse o divórcio, sob pena de excomunhão se necessário.
(ASHERI,1995).
A lei de Dt 24-1 algumas vezes era considerada como tentativa de
restringir o direito absoluto do marido de divorciar-se da esposa, tornando
o adultério o único motivo para essa ação. Phillips (1981) contradiz essa
interpretação pelo fato de que a lei em (Dt 22:22) manda que a execução e
não o divórcio seja a punição pelo adultério. Costa (1995) comenta que a lei
mais antiga para a mulher que faz referência ao adultério impõe como pena
não a execução, mas o divórcio. Em Os 2,4 e Jr3,8 pode-se compreender
que o homem acusado de adultério era considerado o mais responsável. O
posicionamento firmado pela visão deuteronômica, impunha a pena de morte
para ambos os participantes, cuja a
20
É o sábado iniciado ao pôr-do-sol de cada sexta-feira até o pôr-do-sol do sábado.
Segundo o costume judaico é um dos dias mais importantes. No calendário hebreu começa
no crepúsculo que inicia o décimo dia do mês hebreu de Tishrei (que coincide com Setembro ou
Outubro), continuando até ao seguinte pôr do sol. Os judeus tradicionalmente observam esse feriado
com um período de jejum de 25 horas e reza intensa.
21
22
Gett é como se chama o divórcio judaico.
23
Termo usado para denominar um tribunal judaico, composto por duas testemunhas, ambos
judeus praticantes que não sejam aparentados entre si ou a qualquer dos membros do casal que se quer
divorciar.
| REVISTA HERMENÊUTICA, CACHOEIRA-BA, VOL. 12, N. 2, P. 71-84 |
82 | LUIZ CARLOS LISBOA GONDIM / LUCAS MANCILHA GONDIM
intencionalidade se presume (Dt 22,22-27). Este posicionamento pressupõe
um movimento da legislação rumo à igualdade.
Em geral todo gett pelo bet din são concebidos quando em consentimento
mútuo. Nenhum homem pode divorciar-se da mulher sem consentimento
dela, exceto no caso, que raramente ocorre, de adultério por parte dela. Uma
exceção é concedida ao marido no caso de insanidade por parte da esposa sem
esperanças de cura comprovada. Nesse caso, é lhe concedido uma “isenção”
Cherem de Rabbenu Gershom (proibição a poligamia). Teoricamente, terá duas
esposas, mas só pode viver com a segunda. Além disso, se uma mulher casada
mantinha uma relação de adultério com um homem, fosse este casado ou não,
ela ficava proibida de casar-se com ele após obter um divórcio do marido. Se,
em razão de ignorância dos fatos um casamento assim fosse realizado, teria
de ser dissolvido. Tão importante é esta lei que o nome do homem adúltero é
mencionado no gett e no sh´tar que é dado à mulher, a fim de evitar qualquer
possibilidade de que se casem mais tarde. (ASHERI, 1995)
Para Clements (1995) não há nenhum lugar onde a desigualdade dos
sexos e as limitações da liberdade da mulher aparecem mais vigorosamente
do que no assunto do divórcio. Não havia nenhuma circunstância em que
a esposa podia divorciar do seu marido, ao passo que o direito do marido
de se divorciar de sua esposa em qualquer tempo e por qualquer motivo
era absoluto. Contudo, uma certidão sh’tar, era então emitida para a mulher,
atestando que o divórcio lhe foi concedido, devendo ela apresentar o sh’tar
quando for se casar de novo. Esse tema era tão relevante, que o estado de
Israel não reconhecia como legal o divórcio redigido por alguém que não
fosse um rabino ortodoxo. (ASHERI,1995)
VIUVEZ JUDAICA
De acordo com a Tora (Deut. 25, 5-10), se um homem morrer sem ter
filhos, o irmão fica na obrigação de casar-se com a viúva. A criança do sexo
masculino que nascer deste casamento levirato24 será então considerada herdeira
legal do irmão falecido. Em todos os casos em que o casamento levirato seja
indicado, deve-se recorrer ao procedimento da chalitza. Este é encontrado no
mesmo capítulo do deuteronômio e reconhece o fato de que não pode haver
casamento sem consentimento de ambas as partes. (ASHERI,1995).
Entre os judeus praticantes, a cerimônia de chalitza era de muita
importância uma vez que sem ela a viúva não podia se casar de novo. Na prática,
a viúva e seu cunhado compareciam perante um bet din composto por três
24
Levirato (ou levirado) é o costume, observado entre alguns povos, que obriga um homem
a casar-se com a viúva de seu irmão quando este não deixa descendência masculina, sendo que o
filho deste casamento é considerado descendente do morto. Este costume é mencionado no Antigo
Testamento como uma das leis de Moisés.
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O CASAMENTO JUDEU: RITUAIS, CRENÇAS E SIGNIFICADOS
| 83
judeus praticantes. A viúva acusava o cunhado de recusar-se a casar com ela.
O cunhado reconhecia esse fato e a viúva, seguindo o procedimento descrito
em linhas gerais na tora, retirava o sapato do cunhado (na realidade um sapato
especial era formado por bet din para esse fim) e cospia no chão na frente dele.
A viúva recebia então um documento chamado Gett chalitza, com o qual podia
casar-se novamente. O irmão mais velho era quem devia passar pela cerimônia
da chalitza, mas se ele recusasse fazê-lo, qualquer um dos irmãos sobreviventes
podia substituí-lo. Uma viúva que tivesse necessidade da chalitza e não se
submetesse à cerimônia era considerada adúltera, caso viesse a se casar de novo
( uma vez que, legalmente, deveria ser esposa de seu cunhado), e seus filhos
seriam recusados para esposar judeus por serem mamzerim25 (ASHERI,1995).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise expressa neste artigo identificou os rituais, crenças e
significados do casamento judaico. Buscou-se responder o questionamento
quanto às características dos rituais conjugais no ethos israelense. O estudo
apresentou informações tais como conceito judaico de casamento, noivado,
cerimônia matrimonial, alianças e votos, lua de mel, divórcio e viuvez. A
pesquisa revela que a indissolubilidade do casamento na cultura judaica é
um princípio demarcado pela relação com um Deus eterno e único, que dá
aos cerimoniais ritualísticos judaicos contornos sublimes que singularizam
a visão de conjugalidade de uma sociedade preocupada em reconstruir os
ideais edênicos expressos no pacto matrimonial. O trabalho não encerra a
temática e sugere novos estudos para além dos rituais ligados ao casamento
e se expressa na intenção de contribuir com a produção teórica sobre o ethos
judaico.
REFERÊNCIAS
ASHERI, Michael; SALOMAO, Jaime. O Judaismo vivo: as tradições e as
leis dos Judeus praticantes. Tradução de Jose Octavio de Aguiar Abreu. Rio
de Janeiro: Imago, 1995.
AUSUBEL, Nathan; JUKIEWICZ, Eva Schechtman. Conhecimento
judaico I. Rio de Janeiro: A. koogan, 1989.
CLEMENTS, R. E; COSTA, Joao Rezende. O mundo do antigo israel:
perpectivas sociologicas, antropologicas e politicas. São Paulo: Paulus, 1995.
DEDEREN, Raoul (Ed.). Tratado de teologia Adventista do Sétimo Dia.
Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2011.
25
Frutos de toda relação sexualmente ilícita.
| REVISTA HERMENÊUTICA, CACHOEIRA-BA, VOL. 12, N. 2, P. 71-84 |
84 | LUIZ CARLOS LISBOA GONDIM / LUCAS MANCILHA GONDIM
DI SANTE, Carmine. Liturgia judaica: fontes, estrutura, orações e festas.
Tradução de Joao Anibal Garcia Soares Ferreira. São Paulo: Paulus, 2004.
ELIAHU. Modechai. Darquei Taharat. Israel, Jerusalém. Ed. Sucat
David, 1984.
KOLATCH, Alfred J; MESCH, Dagoberto. Livro judaico dos porques. 3.
ed. São Paulo: Sêfer, 2001.
LIFSCHITZ, Daniel; MAHL, Clemente Raphael. Homem e mulher
imagem de Deus o Sabado: a hagada sobre Genesis 2. São Paulo: Paulinas,
1998.
RISMAN, Arnaldo. Alguns aspectos da sexualidade no judaísmo. Revista
brasileira de sexualidade humana. Vol. 8. Nº 1, p. 80-84, janeiro-junho, 1997.
WOUK, Herman; HARARI, Lana. Este e o meu Deus: A maneira Judaica
de viver. São Paulo: Sêfer, 2002.
DATA DE SUBMISSÃO: 27/09/2012
DATA DE ACEITE: 03/12/2012
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GAUCHET E O MESSIANISMO
Gauchet and the Messianism
Flávio Silva Souza1
RESUMO
Este artigo se propõe a analisar a tese de Marcel Gauchet de que Jesus foi um “Messias ao
revés.” Gauchet entende que a aliança de Deus com Israel era exclusiva a este povo e os
tornava únicos. Por outro lado, o povo de Israel sustentava que este Deus era o Criador
Universal, portanto um Deus Universal, e que deveria ter uma dominação universal. Para
Gauchet, o messianismo é uma solução encontrada para resolver o problema entre a
exclusividade e a universalidade, entre a aliança e a dominação. Neste artigo são analisados
os argumentos de Gauchet a respeito da exclusividade da aliança, a partir de outros autores,
mas principalmente através do texto sagrado para os judeus, a saber, o Velho Testamento e
mais especificamente a Torá. Busca-se ainda o significado do messianismo para os judeus
em comparação com “o rei sagrado” dos povos vizinhos. Por fim, é verificado o significado
do messianismo de Jesus para os judeus, através da literatura judaica pós-cristianismo.
PALAVRAS-CHAVE: Gauchet. Messianismo. Aliança Universal. Exclusivismo Judaico.
ABSTRACT
This article proposes to analyze the thesis of Marcel Gauchet that Jesus was a "setback
Messiah." Gauchet understands that God's covenant with Israel was exclusive to these
people and made them unique. On the other hand, the people of Israel maintained that
this God was the Universal Creator, therefore a Universal God, and that should have a
universal domination. To Gauchet, the messianism is a solution found to solve the problem
between the exclusivity and the universality, between the covenant and the domination. In
this article are analyzed the arguments of Gauchet about the exclusivity of the alliance,
from other authors, but mainly through the sacred text for the Jews, namely, the Old
Testament and more specifically the Torah. Also seeking the meaning of messianism for
the Jews compared to the "sacred king" of the neighboring peoples. Finally, it is checked
the meaning of the messianism of Jesus to the Jews, through the Jewish literature postChristianity.
KEYWORDS: Gauchet. Messianism. Universal Alliance. Jewish Exclusivism.
INTRODUÇÃO
Neste artigo será investigada a plausibilidade da tese de Marcel
Gauchet, que identificou a Jesus como o “Messias ao revés”. Primeiramente
será destacada a teoria de Gauchet a respeito de como aconteceu o processo
1
Mestrando em Ciências da Religião pela UFJF, bacharel em Teologia pelo Seminário
Adventista Latino-Americano de Teologia, diretor de publicações da IASD. E-mail: <colportagem@
hotmail.com>.
86 | FLÁVIO SILVA SOUZA
de saída da religião. Em seguida será explicado o que é a saída da religião e a
influência da exclusividade da aliança mosaica de acordo com o pensamento
de Gauchet. Depois será motivo de estudo a aliança de Deus com o povo de
Israel e a exclusividade deste povo baseado no texto religioso judaico, a saber,
o Antigo Testamento e em especial o Pentateuco.
Em seguida, será analisado o surgimento do messianismo, seu marco
histórico, motivação e expectativas com base em LARONDELLE (2002),
HARRIS (1988), COENE; BROWN (2000), DAY (2005), MERRIL (2009)
e SCARDELAI (1998). A partir de SKARSAUNE (2004), será estudada a
relação entre o messianismo e o cristianismo. Serão também considerados
os diversos “messias” entre o século I a.C. e o século II d.C. com base
em SCARDELAI (1998), OTZEN (2003) e STEGEMANN (2004). Será
observado o modo como o judaísmo recebeu a Jesus e o cristianismo, à luz
dos estudos de DAY (2005) e SCARDELAI (1998). E por fim será analisado
se é possível identificar a Jesus como o “Messias ao revés”, a partir de
SIQUEIRA, (2004).
A TESE DE GAUCHET
Gauchet (2005)2 analisou o processo de enfraquecimento da influência
da religião sobre a sociedade no Ocidente. Segundo ele, a trajetória viva do
religioso está acabada no essencial e o processo de saída da religião tornouse algo visível, ou seja, a religião que antes organizava a sociedade agora não
organiza mais. Gauchet apresenta este processo da seguinte maneira: no
princípio estava a religião primeva, onde não havia Estado e ela determinava
o comportamento social.
A lei fundadora neste momento passa a ter representantes,
administradores e intérpretes no seio da sociedade, ou seja, com o surgimento
do Estado, o que era inquestionável pode agora ser questionado. A ideia do
divino passa a ter apenas efeito retroativo da ação política. Com o Estado,
entramos na era da contradição entre a estrutura social e a essência do
religioso.
A partir da criação do Estado, passa a ter lugar a dinâmica da
transcendência. Do ponto de vista do ator religioso, a transformação pode
ser vista por um duplo processo de redução da alteridade e promoção da
interioridade. A grandeza divina é a liberdade humana. Ou seja, quanto maior
e mais transcendente é o Outro, mais liberdade tem o ser humano.
2
Marcel Gauchet é um historiador e filósofo francês. Atualmente é diretor de estudos na École
des Hautes Études en Sciences Sociales e editor da revista Debate (Gallimard), uma das principais revistas
acadêmicas francesas, que fundou com Pierre Nora, em 1980. Disponível em: <http://fr.wikipedia.
org/wiki/Marcel_Gauchet> Acesso em 2 de junho de 2011.
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GAUCHET E O MESSIANISMO
| 87
Em seguida, de acordo com Gauchet, vem o surgimento do monoteísmo
com Moisés. Para ele, Moisés inventa um deus como nunca se havia conhecido
antes, um deus construído em oposição a qualquer outra espécie de deuses.
O surgimento do monoteísmo acontece como uma resposta do fraco para o
forte, seria uma forma de dominar a dominação. Assim, Gauchet argumenta
que a aliança de Deus com o povo de Israel era uma eleição exclusiva de
Israel entre todas as nações. Mas, como um Deus universal e criador de tudo
poderia ficar restrito a Israel? Surge então o messianismo, para um Deus
universal, uma dominação universal.
Depois de fixado o judaísmo, vem Jesus e o ultrapassa completamente.
Então, pode-se concluir que a vinda do Messias é uma etapa suplementar
do processo começado por Moisés. Mas, Jesus é um Messias ao revés. E o
cristianismo é a religião da saída da religião. Mas, o que vem a ser a religião da
saída da religião? Isto é o que será visto a seguir.
A RELIGIÃO DA SAÍDA DA RELIGIÃO
A saída da religião, segundo Gauchet, não acontece pela consciência
dos atores, mas pela articulação de sua prática. Não é pelo que pensam ou
creem, mas é a ordem de suas operações de pensamento, o modo de sua
coexistência, a forma de sua inserção no ser e a dinâmica de sua atividade.
A sociedade se torna algo além do religioso, pois a religião já não regula a
economia nem estrutura a vida social, material e mental como no princípio. O
pensamento mítico (origem) e o pensamento simbólico (sua correspondência)
se desfizeram. Todavia, o processo de decomposição/recomposição do marco
humano-social não impede a existência de sociedades de crença dentro de
uma sociedade inteiramente desprendida do influxo estruturante da crença.
Desse modo, o cristianismo realiza a saída da religião, pois é responsável
pelo desenvolvimento completo de uma articulação entre o humano e o divino,
que corresponde à inversão ponto a ponto da estrutura primordial de dívida
com o invisível. Compreendendo o que é a saída da religião para Gauchet e
a função do cristianismo nesta saída, é importante entender o surgimento
do cristianismo e suas motivações, como Gauchet apresenta o messianismo
de Jesus e, consequentemente, o cristianismo como uma etapa suplementar
do judaísmo, ou ainda uma solução para a questão entre a exclusividade da
aliança e a universalidade de Deus.
A ALIANÇA DE DEUS COM O POVO DE ISRAEL3
Segundo Gauchet, tem pelo menos duas inovações no javismo a partir
3
Para Eichrodt, o conceito central e símbolo apropriado que assegura a fé bíblica é a aliança.
O conceito da aliança, explica Eichrodt, ganhou esta posição central no pensamento religioso do AT a
fim de que, ao operar a partir dele, a unidade estrutural da mensagem veterotestamentária possa tornarse mais visível. (HASEL 2007, p. 175)
| REVISTA HERMENÊUTICA, CACHOEIRA-BA, VOL. 12, N. 2, P. 85-109 |
88 | FLÁVIO SILVA SOUZA
da aliança de Deus4 com o povo de Israel: um Deus que salva do infortúnio
e de exércitos mais poderosos, mas também responsável pelas calamidades
como consequência da desobediência, fazendo assim com que haja a reflexão
sobre si mesmos.
Outro fator novo foi o profetismo.5 Através da boca dos profetas se
aprendia a lição sobre as desgraças de Israel e se formulava a chamada reflexão
sobre si mesmo. Por exemplo, os profetas Elias, Isaías ou Jeremias buscavam
produzir uma religião interior no lugar da religião da tradição, a decisão
individual contra a inclinação comum. O profeta, diferente do vidente que
tinha mensagens pontuais e particulares, falava a partir de um desígnio global
da conduta humana. A mensagem era normalmente geral, mesmo quando
falava a indivíduos em particular.6 Pois, fala em nome da suprema vontade
legisladora.
Como a norma dada por Deus e a conduta dos indivíduos diferem
grandemente, a função do profeta se torna necessária para lembrar a estes
que eles têm uma responsabilidade diante da aliança feita. O profetismo
não surgiu para ajudar a escapar ao círculo das obrigações definidas pela
divindade, mas com o objetivo de, através de um esforço infinito, receber as
bênçãos dadas através da estrita observância da lei. A discordância do profeta
era proporcional à diferença entre os atos humanos e suas regras, diferença
que dava a medida da oposição entre o humano e o divino. Então, segundo,
Gauchet, com a lei de Moisés prescrita por Javé a Israel, há a fixação do
judaísmo. A palavra de Deus escrita se torna a norma indiscutível. Já não há
a necessidade dos profetas.
O MESSIANISMO
Como já foi mencionado, depois de fixado o judaísmo, vem Jesus e
o ultrapassa completamente. Gauchet entende que a pregação de Jesus
vem como solução à contradição original do javismo, agravada no seio do
4
A aliança de Deus com o povo de Israel se assemelha muito com as alianças hititas do final
do segundo milênio antes de Cristo, com (1) Título ou Preâmbulo (Dt 1: 1-5); (2) Prólogo Histórico (Dt
1:6-3:29); (3) Estipulações ou mandamentos (Dt 4-26); (4) Depósito do texto e leitura pública (Dt 31:
9-13; 24-26) (5) Testemunhas (Dt 31:16-30) e (6) Bênçãos e Maldições (Dt 28:1-68). NETO (2001),
5
O profetismo faz parte do contexto da aliança. Em Dt 18: 9-14, Deus ordena o povo para
que não tenha no meio dele adivinhos e feiticeiros. Como parte da aliança, Deus garante que o dom
profético estará no povo de Israel (Dt 18: 15-22), como resposta ao pedido do povo em Ex 20:19
(comparar com Dt 18: 16-17). Assim, o profeta será a boca de Deus e seu representante para lembrar
os termos da aliança e exigir o seu cumprimento. Sendo assim, o profeta ao discursar ao povo de Israel,
lembrava-lhe constantemente das bênçãos e maldições (Lv 26 e Dt 28) previstas na aliança, as primeiras
como recompensa pela obediência e as segundas como consequência da desobediência.
6
As mensagens dos profetas normalmente eram de exortação ao povo. Por exemplo, Isaías
alertava o povo a respeito de sua apostasia e condenava o culto hipócrita (Is 1:10-17), a cegueira espiritual
e a hipocrisia do povo (Is 29:9-16). Mas também havia mensagens para indivíduos em particular como
a Ezequias, o rei de Judá (Is 39-1-8).
| SEMINÁRIO ADVENTISTA LATINO-AMERICANO DE TEOLOGIA - SALT |
GAUCHET E O MESSIANISMO
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judaísmo, entre a universalidade de Deus e o particularismo da aliança. Além
disso, Gauchet coloca o surgimento do Messianismo após a renovação solene
da Aliança, afinada pelos profetas e obtendo certa adequação entre a lei
de Moisés e a conduta de seu povo. Surge aí a questão: como conciliar a
vocação universal deste Deus, cuja onipotência e unicidade se destinam a
todos os homens, com sua eleição exclusiva de Israel entre todas as nações.
Aqui surgem duas questões a serem observadas. A primeira é se a
“aliança exclusiva de Israel” contradiz o universalismo do Deus de Israel,
ou seja, se esta eleição faz com que os outros povos estejam excluídos do
culto e da adoração ao Deus de Israel. A segunda é se o messianismo surgiu
realmente depois da aliança, e mais ainda depois dos profetas.
Contudo, antes de analisar o texto religioso judaico, é necessário
saber a partir de que ponto de vista de interpretação bíblica,7 Gauchet fez
suas afirmações, e se suas conclusões são plausíveis de acordo com seus
pressupostos.
Há indícios que permitem afirmar que Gauchet interpreta as narrativas
bíblicas a partir do ponto de vista histórico-gramatical. O primeiro é o fato
de que Moisés é visto como um personagem real.8 O segundo indício é
que ao falar de Moisés e o monoteísmo, Gauchet coloca Moisés e os seus
escritos são influência dos egípcios, no caso pelo Faraó Akenatón9 e não dos
babilônicos.
Sabendo assim da provável posição de Gauchet em relação ao texto
bíblico,10 é possível agora analisar suas conclusões em relação ao javismo
e ao judaísmo. Em primeiro lugar, analisaremos a questão a respeito da
exclusividade da aliança do Deus de Israel com seu povo. Mais uma vez, é
importante ressaltar que ao utilizar o texto bíblico neste artigo o propósito
7
Há duas escolas de interpretação. A crítico-histórica, que é baseada na teoria das fontes.
Teoria esta que foi formulada de maneira popular por Julius Wellhausen. Segundo esta escola, afirmase que os textos bíblicos são posteriores à data suposta pela cristandade (cerca de 1400 a. C.), sendo
escritos em sua maioria depois do cativeiro babilônico (séc. VI a. C.) e que coloca Moisés, Abraão,
Isaque e Jacó, entre outros, como personagens fictícios. A segunda é a histórico-gramatical, que aceita
as datas de composição e autoria segundo afirma a tradição do Baba Bathra (comentário judaico da
Bíblia hebraica). Assim, apoia a ideia de Moisés como um personagem real e autor do texto bíblico
chamado de Pentateuco e nascido no Egito e criado pela filha do Faraó.
8
Gauchet afirma que a reinvenção do divino começa com Moisés, entre outras passagens dá a
entender Moisés como um personagem real. Não há nenhuma referência no texto à teoria das fontes
ou documentarista. Em nenhum momento neste texto Gauchet questiona Moisés como personagem
real.
9
Isto é importante, pois coloca os textos de Moisés o próprio e Moisés no Egito. Esta
conclusão não defende a veracidade ou inerrância do texto bíblico, mas entende os textos mosaicos
como anteriores ao cativeiro babilônico e como anteriores aos demais textos bíblicos.
10
Ao que parece, ele seguia uma abordagem histórico-gramatical. Isto não quer dizer que ele
fosse um estudioso ou defensor do método histórico-gramatical. Apenas, pode-se observar que ele não
utilizou o método crítico-histórico e acalentava o pensamento tradicional em relação à autoria do texto
bíblico, e que as possíveis influências externas agiram no autor bíblico e não num grupo de sacerdotes
ou escribas posteriores que fizeram acréscimos.
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não é defendê-lo ou exaltá-lo, mas a partir dele entender a religião judaica, pois
este é o texto base desta religião, ou seja, a própria fonte para a compreensão
da mesma.
ALIANÇA EXCLUSIVA OU INCLUSIVA
Antes de saber se a aliança era exclusiva ou inclusiva é essencial saber o
contexto em que foi feita a aliança do Sinai ou Mosaica. Em primeiro lugar,
é importante destacar como Deus se apresenta a Moisés, ou seja, que Deus
é este que faz aliança com o povo de Israel. Ele se apresenta como o Deus
de Abraão, Isaque e Jacó (Ex 3:15 -16; Ex 4:5). Porque Deus se apresenta a
Moisés como o Deus de Abraão, Isaque e Jacó antes da aliança do Sinai? Por
que a aliança do Sinai está baseada numa aliança anterior (Ex 6:2-5 conferir
com Gn 17:1-8), a aliança que Deus havia feito com Abraão, Isaque e Jacó. O
resgate do povo de Israel e a aliança do Sinai estão dentro da aliança anterior
feita aos patriarcas, mais conhecida como aliança Abraâmica.
Logo, para entender a aliança mosaica, precisa-se entender a abraâmica.
A aliança abraâmica começa com o convite de Deus para Abraão sair da
cidade na qual ele morava. É interessante observar que além de Deus afirmar
que dele viria uma grande nação, Deus afirma categoricamente que nele
seriam benditas todas as famílias da terra (Gn 12:1-3), ou seja, não apenas o
povo de Israel, mas todas as nações. Esta afirmação não é um fato isolado,
mas se repete com o próprio Abraão (Gn 18:17-18), Isaque (Gn 26:2-4) e
com Jacó (Gn 28: 13-14). Dito de outro modo, uma das consequências da
aliança de Deus com o povo de Israel era abençoar o mundo inteiro, logo
se pode perceber que era uma aliança inclusiva e não exclusiva como afirma
Gauchet.
Observa-se ainda que Deus afirmou que se o povo guardasse a aliança,
este povo se tornaria um reino de sacerdotes (Ex 19:5-6) para levar a religião
de Israel para todos os povos, pois o estrangeiro deveria ser ensinado a temer
a Deus e a cumprir todas as palavras da lei (Dt 31:12). Mas a lei incluía o
estrangeiro ou o excluía? É o que será observado a seguir.
Em primeiro lugar, é digno de nota que o estrangeiro estava sujeito às
mesmas leis que o povo de Israel (Lv 17:12 e 15; 18:26 e 24:16). O estrangeiro
não devia ser discriminado e nem oprimido (Dt 23: 7;24:14 e 17; 27:19),
poderia morar entre o povo de Israel (Dt 16:11) e, além disso, as cidades de
refúgio11 eram também destinadas a eles (Nm 15:15). A justiça deveria ser
igual para o israelita como para o estrangeiro (Dt 1:16). Enfim o estrangeiro
11
Cidades destinadas a pessoas que cometessem homicídio não intencional, por acidente. Era
um meio de salvá-las de uma vingança e esta oportunidade de salvação estava também destinada aos
estrangeiros.
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GAUCHET E O MESSIANISMO
| 91
era igual ao israelita perante Deus (Nm 15:15). Os israelitas deveriam
amar os estrangeiros (Dt 10:18-19) como a eles mesmos (Lv 19:34). Isto
era demonstrado com o uso da beneficência para com o estrangeiro (Lv
19:10 e 33; 23:22; 25:36). Até parte dos dízimos (Dt 26:12) ou do que era
consagrado (Dt 26:13) poderia ser utilizado para socorrer o estrangeiro.
Além disso, o estrangeiro poderia participar também da religião. O
sábado deveria ser guardado também pelo estrangeiro (Dt 5:24), ele também
poderia participar da festa da páscoa (Ex 12:48-49), a principal festa do povo
de Israel,12 e isto não aconteceu apenas na saída do povo do Egito, era uma
lei que devia ser praticada (Nm 9:14). É curioso notar que quando o perdão
era dado a todo o povo, este perdão era estendido ao estrangeiro (Nm 15:26),
podendo ele mesmo oferecer ofertas diante de Deus (Nm 15:14). Quando
Salomão inaugurou o templo, construído por ele, em um culto solene, afirmou
que o templo estava destinado também aos estrangeiros e pediu a Deus que
ouvisse a oração dos estrangeiros e a atendesse (I Re 8:41-43; II Cr 6:32-33).
Observa-se, portanto, que de um ponto de vista bíblico, a nação de
Israel era inclusivista em relação aos estrangeiros. A respeito da saída do povo
de Israel do Egito, é dito que, juntamente com eles saíram muitas pessoas
que não eram israelitas (Ex 12:37-38). Logo em seguida, Moisés leva para o
acampamento sua mulher Zípora, que era cuxita,13 ou seja, não fazia parte do
povo de Israel. Mais adiante vemos o caso de Raabe (Js 2:1), a prostituta de
Jericó, e Rute, a moabita (Rt 4:10), tornando-se parte do povo de Israel e delas
descendendo o grande rei de Israel, Davi (Rt 4:21-22; Mt 1:5).
Salomão testemunha de seu Deus à rainha de Sabá, e, ao final, ela glorifica
a Deus (IRe 10:4 e 9). Elias vai até Sarepta, fora de Israel, para dar sustento a
uma viúva não israelita (IRe 17:10-22), Naamã, oficial sírio, é curado da lepra
e se converte (IIRe 5:6 e 14-18). Nabucodonosor, rei da Babilônia, depois de
ser restaurado como rei, reconhece o Deus de Israel como o verdadeiro Deus
(Dn 4:37). Jonas vai até Nínive pregar o arrependimento e conversão ao Deus
de Israel (Jn 3: 3-10). Os profetas, por sua vez, amaldiçoam aos que maltratam
o estrangeiro (Ml 3:5) e consideram crime e um grave pecado não tratá-lo
dignamente (Ez 22:7 e 29; Jr 22:3). Havia até promessas ao estrangeiro que se
convertesse (Is 56:3). É fundamental observar que o exclusivismo acontece
especialmente após o cativeiro babilônico, com o surgimento da seita dos
fariseus14. Esta seita não era a essência do judaísmo, ao contrário, era uma
12
Era a festa que lembrava a saída do povo de Israel do Egito, o principal evento da história
deste povo.
13
Nm 12:1. Miriam e Arão se rebelaram contra Moisés pelo fato de esta mulher não ser do
povo de Israel. Porém, o relato indica que Deus mostrou que não se deve fazer acepção de pessoas.
14
O significado do nome fariseu é separado, justo, santo. Surgiram possivelmente nos dias de
João Hircano por volta do ano 120 a.C. e eram contra a helenização dos judeus. Denominava todos os
estrangeiros de maneira pejorativa como gentios. Deles se originaram as duas escolas mais ortodoxas
de interpretação do texto veterotestamentário: Hillel e Shammai.
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deturpação do mesmo. Contudo, mesmo neste período helênico do judaísmo,
havia proselitismo por parte de seus membros.
Assim como os não-gregos podiam tornar-se “helenistas”, também os não-judeus
podiam, ao que parece, tornar-se adeptos ao “judaísmo” adotando o estilo de vida
judeu. [...] Parecia haver um fluxo cada vez maior de convertidos ao judaísmo,
em parte como resultado do agressivo espírito missionário que tomara conta dos
judeus. Jesus disse aos fariseus: “[Vocês] percorrem terra e mar para fazer um
convertido” (Mt 23:15). Além disso, fontes rabínicas confirmam este quadro de
zelo missionário entre os gentios (SKARSAUNE, 2004, p. 33, 36).
Logo, é possível concluir que a religião, que segundo Gauchet foi
instituída por Moisés, não era exclusivista em relação as suas leis, principalmente
em relação a seus ritos e cultos, e pode-se ver isto através da história de Israel.
Além disso,
Walter C. Kaiser conduziu uma pesquisa indutiva do Velho Testamento em
seu livro erudito Toward em Old Testament Theology (Grand Rapids, Mich:
Zodervan,1978). Concluiu que o foco central do Velho Testamento como uma
unidade orgânica é a promessa de Deus em abençoar todos os povos através
da semente de Abraão, também sumarizada na fórmula tripartida: “Eu serei o
Teu Deus e tu serás o Meu povo, e eu habitarei contigo”. Este plano de Deus
inclusivo e singular, esta promessa é o cerne fixo na revelação progressiva de
todos os concertos de Israel. Ele não é claramente uma “vara divina abstrata”
imposta aos textos do Velho Testamento, mas provê “seu próprio padrão para um
modelo permanente e normativo pelo qual julgar aquele dia e todos os dias por
uma régua que reivindica ter sido estabelecida para o escritor da Bíblia e todos os
subsequentes leitores simultaneamente”. Kaiser mostra que a promessa messiânica
é o foco central de todo o concerto de Deus com o homem desde o começo. Essa
promessa se relaciona com as predições divinas do Velho Testamento. Cristo [o
Messias] é o alvo da missão de Abraão e de Israel. Veio para redimir o mundo e
a raça humana como um todo. A salvação vem de Israel, mas não para os judeus
apenas. (LARONDELLE, 2002, p. 21-22)
Em outras palavras, o messianismo não é a solução de um problema
entre o Deus universal e a aliança exclusivista, o messianismo é o foco central
da aliança. Sendo assim, a pergunta que deve ser feita a seguir é: Então quais
foram os reais motivos para o surgimento do messianismo e quando isto
ocorreu?
MESSIANISMO EM ISRAEL
Ao perceber que a aliança não era exclusivista e que, portanto, não
seria um problema entre ela e a universalidade de Deus o responsável pelo
surgimento do messianismo, aparecem duas hipóteses: o messianismo pode
ser um fenômeno original do judaísmo ou uma apropriação da religião ou
das religiões dos países vizinhos de Israel. Para entender o significado do
messianismo em Israel e verificar se há uma apropriação da religião dos povos
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GAUCHET E O MESSIANISMO
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vizinhos, é fundamental a análise do termo Messias e sua aplicação pelo povo
de Israel e seus vizinhos.
O TERMO MESSIAS
A análise do termo “messias” e seu significado para o povo de Israel é
fundamental para verificar se este termo em Israel tinha a mesma conotação
para os povos do Antigo Oriente Próximo. Pois, é importante observar se há
ou não um empréstimo do pensamento religioso do Antigo Oriente Próximo
à religião judaica a partir do uso desse termo.
O termo “messias” aparece cerca de 40 vezes no AT, principalmente
em 1 e 2 Samuel e Salmos. Sendo um termo quase exclusivamente usado para
os reis.
Conquanto possa designar uma função, tal como sumo-sacerdote (Lv 4:3), mashîah15
é quase exclusivamente reservado como sinônimo de rei (melek), como em textos
poéticos, onde é paralelo de rei.16 São notáveis as frases “o ungido do Senhor” ou
equivalentes como “Seu ungido”, as quais se referem também a reis. (HARRIS,
1988, p. 885)
Apesar de serem ungidos os reis e os sacerdotes judeus como eram os
dos países vizinhos, parece que as unções eram diferentes, especialmente no
seu significado.
No que diz respeito à praxe de ungir em Israel durante o período primitivo, é
necessário tirar distinções cuidadosas históricas e terminológicas. De acordo com
investigações recentes (especialmente aquelas de E. Kutsch), embora a unção do
rei e a unção do sumo sacerdote (ou originalmente de todos os sacerdotes?) sejam
semelhantes quanto à forma, sua situação vivencial era inteiramente diferente. O
fundo histórico, em ambos os casos era o costume antigo oriental. Mesmo assim,
a unção dos reis de Judá parece ter sido [...] essencialmente associada com a dádiva
e a transferência da autoridade, poder e honra (Heb. Kabod; gr. Doxa-glória). A
unção outorgava à pessoa ungida uma posição de poder e o direito de exercê-lo.
Além disto, trazia a ela o respeito apropriado, juntamente com a honra, e, numa
ocasião as riquezas também. Há, do outro lado, muita coisa para apoiar a ideia de
que a unção dos sacerdotes era em primeiro lugar uma purificação ritual, tendo
por objetivo a capacitação dos sacerdotes para levarem a efeito um culto válido.
(BROWN e COENEN, 2000, p.1080)
Como se pode ver, o conceito de ungido (messias) para o povo de
Israel era diferente do conceito dos povos vizinhos a ele, mas há mais um
detalhe, este título não era exclusivo para os reis de Israel, pois Ciro, rei Persa,
é chamado de mashîah por um profeta de Israel em Is 45:1. Isto é importante
15
16
Transliteração do termo messias em hebraico, que tem como significado: ungido.
1 Sm 2:10; 2 Sm 22:51; conferir com Sl 2:2; 18:50
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para se entender o significado deste termo para o povo de Israel e sua religião.
O termo mashîah parece estar associado com à função de libertação do povo
de Israel.17 Além disso,
Neste contexto, vale a pena considerar com mais detalhes a descrição de Ciro, rei
da Pérsia, como “ungido” de Deus (Is 45:1), embora fique claro que não tinha sido
ungido rei em conformidade com o costume judaico (israelita). Vemos aqui uma
sublimação do conceito que o torna independente do ato externo, ao transferir o
peso inteiro do assunto para a nomeação da parte de Deus daquele que é designado
pela unção. Neste caso, a pessoa ungida é aquela que Deus escolheu de modo
especial, colocando-a sob seu comando. O ungido de Deus, portanto, depende
de Deus, além de ter sido integrado no Seu plano em obediência a sua vontade. É
assim que se explica, em parte, a razão porque os reis judaicos (de modo contrário
ao padrão das monarquias sacras noutros lugares) juntamente com o messias
judaico do AT, nunca adquiriram feições divinas, mesmo nos assim chamados
salmos de entronização, tais com Sl 2 e 110. (op. cit., p. 1081)
Pode-se observar que o ato da unção não era tão importante como a
escolha divina. Contudo não eram apenas as pessoas que eram ungidas, os
utensílios do templo também eram ungidos (Lv 8:10-11; Nm 7:10) e até o
povo era chamado de ungido (Hb 3:13). Pode-se concluir que apesar de os
povos vizinhos utilizarem a unção a reis e possivelmente a sacerdotes, a unção
para o povo de Israel tinha um conceito bem diferente, pois além de funções
diferentes para o rei e o sacerdote como já foi visto, um rei estrangeiro poderia
ser um “ungido de Israel” mesmo que não houvesse uma unção realizada por
nenhuma autoridade de Israel. Logo, pode-se afirmar que a unção e mesmo
o conceito do termo messias (ungido) não tem uma origem externa ao povo
de Israel.
REIS DE ISRAEL X REIS SAGRADOS
Como o messianismo em Israel se cumpre através de um rei davídico,
ao analisar as estruturas das realezas de Israel e de seus vizinhos pode-se
perceber se a ideia de um Messias é uma absorção da cultura dos povos
vizinhos ou é um conceito original do judaísmo.
Day (2005) comenta que há uma semelhança da unção dos reis em
Israel ou ainda uma apropriação da unção dos reis sagrados do Antigo
Oriente Próximo, especialmente de Canaã, influenciando assim na ideia de
um Messias. Entretanto,
O conceito bíblico de messianismo, que vai além da simples instituição da realeza,
tem dois aspectos principais: o primeiro, o Messias tem que descender da linhagem
de Davi, o primeiro rei israelita com aprovação divina; o segundo, o Messias é um
rei ideal. (op. cit., p. 73)
17
Ciro libertou o povo de Israel da Babilônia e autorizou a volta do mesmo para seu território.
Ainda pode-se ver Saul como mashîah na sua primeira campanha militar 1Sm 11.
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GAUCHET E O MESSIANISMO
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Além disso, o Messias era um rei que viria, ou seja, o reino ideal não
é o atual, mas um que está por vir, diferente da ideia de reino ideal que, na
Mesopotâmia, era o do momento atual.
Há ainda a ideia de que Israel incorporou a figura do rei sagrado de
Canaã para seus reis; em outras palavras, a partir da cultura cananeia, Israel
tornou seus reis, reis sagrados. Entretanto, “ao contrário do ponto de vista da
antiga Escola de Mito e Ritual, parece que os israelitas não consideravam seu
rei divino”.(op. cit., p. 87) Além disso:
É evidente que o Deuteronômio pretende, de algum modo, circunscrever
e restringir os poderes do rei. O rei apresentado aqui difere enormemente do
costumeiro conceito do Antigo Oriente Próximo do rei como executivo principal
em todos os aspectos da vida da nação. (op. cit., p. 286)
De maneira significativa, o rei não é o “filho de Deus”, nos termos da teologia
de Sião (Sl 2:7). Essa metáfora é antes aplicada a Israel (1:31- deste modo
aproximando Deuteronômio mais de Ex 4:22-23 e de Os 11:1 do que de passagens
que refletem a ideologia de Sião). Na verdade, o conceito de realeza de Sião é
sutilmente contestado na fórmula deuteronômica de escolha divina, que se aplica
ao local de culto (12:4, etc.) e ao rei. Esse par de objetos de escolha corresponde
aos da teologia de Sião (Sl 2:6). Mas o anonimato do primeiro, no Deuteronômio, e
o lugar humilde concedido ao segundo evidenciam um modo de pensar diferente a
respeito da natureza da organização de Israel. Longe de ser filho de Deus, de forma
especial, o rei é um irmão israelita (17:15b.20). Sua subordinação à Torá (vv. 18-19)
corresponde a essa igualdade fundamental de posição com seus semelhantes. (op.
cit., p. 287-288)
Observa-se que além de o rei ser igual aos seus cidadãos em sua
subordinação à Torá, na distribuição de poderes em Israel, ele não está na
posição de mais influência. Além disso, o rei não é nem mesmo imprescindível
para Israel.
Deve-se ressaltar também a significativa diferença entre os sistemas de
governo de Babilônia e Canaã em relação a Israel.
Pode-se dizer que os sistemas de governo da Babilônia e de Canaã estavam
simbolizados no domínio divino, e o rei é a figura essencial neste mundo simbólico.
O deuteronômio destina o rei a um papel administrativo que, sempre levando em
conta o elemento da escolha de Iahweh, pode ser chamado de secular. A história
deuteronomista também rejeita as teorias orientais sacras. (DAY, 2005, p. 19)
Pode-se ver então que um padrão canaanita para a realeza de Israel
é pouco provável. Em relação a um empréstimo a partir do Egito seria
improvável também, pois apesar da proximidade geográfica, Canaã e Egito
estavam muito afastados quanto a padrões e instituições sociais. A crônica
demótica, que demonstra uma esperança messiânica egípcia a respeito de
um soberano que viria de Heracleópolis, no Médio Egito que é do Período
Ptolomaico primitivo (sec. III a.C.) parece ser, pela data de sua composição,
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mais um empréstimo do pensamento judaico do que a origem do mesmo.
Além disso, a civilização egípcia tradicional estava longe de produzir qualquer
coisa parecida com a figura de um “Messias”.
Logo, pode-se ver que tanto em relação a uma absorção do padrão de
realeza como da origem do conceito de messias, é difícil apontar para uma
origem externa a Israel, quer seja cananeia ou egípcia. O mais provável é que
tanto o padrão de realeza, diferente da ideia do rei sagrado, como o conceito
de messias surgiram no judaísmo.
A ORIGEM DO CONCEITO DO MESSIAS EM ISRAEL
Será possível encontrar no texto veterotestamentário primitivo,
especialmente no Pentateuco, indícios de um conceito messiânico nos
primórdios da religião judaica, especialmente sem o auxílio da interpretação
cristã ou neotestamentária?
Desde o início da revelação do Antigo Testamento houve indícios, cada vez maiores
e mais claros, de um indivíduo especial que o Senhor chamaria e capacitaria para
libertar o mundo do pecado e do afastamento de Deus. A primeira aparição desse
indivíduo foi na enigmática menção à semente da mulher (Eva) que esmagaria a
cabeça da serpente (Gn 3:15), na antecipação da descendência real de Judá (Gn
49:10), na estrela de Jacó (Nm 24:17), no ungido (messias) da oração de Ana (1Sm
2:10) e, por fim, na descendência de Davi cujo trono o Senhor estabeleceria para
sempre (1Cr 17:11-14). (MERRIL, 2009, p. 490)
Klausner, por sua vez, traça as origens da doutrina messiânica em tradições bíblicas
muito antigas como, por exemplo, em Moisés e por extensão no evento da saída do
povo hebreu do Egito. (SCARDELA, 1998, p. 24)
Como se pode ver, há uma opinião entre os estudiosos de que o
messianismo estava presente desde o início do judaísmo. Há muitos textos
nos profetas (Isaías, Ezequiel, Daniel) entre outros que falam a respeito do
Messias. Mas como já foi mencionado, o objetivo aqui será analisar apenas
passagens do Pentateuco, para verificar se a ideia do messianismo era possível
no período inicial do judaísmo. Serão analisadas passagens de Gênesis,
Números e Deuteronômio.
Pode-se ver o messianismo na interpretação judaica do livro de
Deuteronômio:
A figura sugerida na interpretação judaica da leitura de Dt 18:15-20 exerce um
papel relevante para a compreensão do contexto messiânico e das expectativas
judaicas no século I, principalmente no que se refere ao paralelo entre o “messias”
e a missão do “profeta como Moisés”. Ambos, profeta e messias, aparecem em
perfeita conexão com os ideais do salvador esperado.
O judaísmo rabínico muitas vezes se referiu ao messias como protótipo de Moisés
em virtude da exegese oriunda do livro de Deuteronômio 18:15: “Deus suscitará
um profeta como eu no meio de ti”. (op. cit., p. 88,201)
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GAUCHET E O MESSIANISMO
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A respeito de Teúdas, é dito o seguinte:
Não devem ter sido poucos aqueles que, atraídos pela força carismática de Teúdas,
começaram a ver nele uma espécie de Moisés revividus, suscitado por Deus como
libertador (cf Dt 18:15). (SCARDELAI, 1998, p.197)
Em relação ao livro de Números, pode-se notar a interpretação dada
pelo rabino Akiba:
Não há razão para duvidar de que a referência feita por Akiba à passagem do livro
de Números 24:17 tenha sido uma tentativa pessoal para reforçar uma associação
explícita entre Kokhba e a expectativa redentora do messias. O eloquente
testemunho deste suporte está explicitamente expresso na atribuição de Akiba
à missão libertadora do líder da revolta, afirmando que Bar Kokhba era o rei
Messias. (op. cit., p. 177)
Fica então evidente que os judeus já identificavam o Messias com
base nas passagens do Pentateuco, demonstrando que, para eles, a ideia do
messias não era uma solução para um problema entre aliança exclusivista e a
universalidade de Deus. Para os judeus o messianismo faz parte do contexto
da aliança. Após esta conclusão seria oportuna uma pequena análise no livro
de Gênesis para verificar se na história anterior à aliança mosaica ou sinaítica,
pode-se encontrar o messianismo.
Em primeiro lugar, Gn 49:10 é uma clara alusão ao messianismo com a
vinda de Siló da tribo de Judá, a quem todos os povos obedecerão. Mas há dois
textos em Gênesis que merecem atenção. O primeiro é Gn 3:15, a promessa a
Adão e Eva da vinda de um descendente que venceria a serpente, que pisaria
a cabeça da serpente. Mas, pode-se perguntar: será que Eva entendeu isto
como uma promessa messiânica? Gênesis 4:1 pode ajudar a responder esta
questão.
Gênesis 4:1 em hebraico está assim:
dl,Teäw: ‘rh;T;’w: AT=v.ai hW"åx;-ta, [d:Þy" ~d'êa'h'äw> Gênesis 4:1
`hw")hy>-ta, vyaiÞ ytiynIïq" rm,aTo§w: !yIq;ê-ta,
Uma tradução literal poderia trazer: Coabitou o homem com Eva, sua
mulher. Esta concebeu e deu à luz a Caim; então disse: Adquiri um varão do
Senhor.
O nome Caim significa “o adquirido”. Pode-se perceber que
provavelmente Eva imaginou que seu filho primogênito fosse o Messias. A
decepção dela pode também ser sentida ao dar o nome ao segundo filho,
Abel, que significa “vapor”, “nulidade”, “vaidade”.
Como se pode ver, a esperança messiânica não é uma apropriação de
outras religiões e tem sua origem antes da aliança (Gênesis), pode ser notada
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no período da aliança (Números e Deuteronômio) e estava presente nos
profetas (Isaías, Ezequiel, Daniel entre outros). Logo, a ideia do surgimento
por empréstimo ou principalmente após o período dos profetas é muito
improvável.
Sabendo da origem do messianismo, cabe agora observar a sua relação
com o surgimento do cristianismo.
O MESSIANISMO E O SURGIMENTO DO CRISTIANISMO
O cristianismo surge a partir do messianismo, pois Jesus é reconhecido
como o Messias por seus seguidores, e o fato de ser o “Messias” é que o
habilitava a fazer os discursos que fez, realizar milagres e dar esperança a
seus discípulos. Por outro lado, as tensões e as condições da época em que
Jesus viveu propiciaram sua identificação e impulsionaram o messianismo e
consequentemente o cristianismo. A grande questão é o que motivou de fato
o surgimento do cristianismo: o personagem Jesus ou a situação histórica em
que viveu.
Gauchet (2005, p. 178) afirma que
Uma vez mais se trata aqui de manter juntos os dois extremos da cadeia:
necessidade estrutural, por um lado, contingência eventual e inclusa individual,
por outro. Jesus poderia não aparecer. As condições que o afetaram, as tensões que
o convocaram, os meios que o mobilizaram tinham também que estar em seu lugar
e estar operativos. Nada faz necessário que uma situação encontre seu homem.
Em outras palavras, para Gauchet, as condições do momento histórico
em que Jesus viveu foram mais importantes do que o personagem. Através
do messianismo, a saída do judaísmo para uma “religião da saída da religião”
aconteceria com outro personagem que se identificasse e fosse identificado
como Messias. Para Gauchet, o momento era oportuno, e as tensões
empurravam para que isso ocorresse. A situação não dependia de um homem
específico.
Seria oportuno ver se os dados históricos confirmam a ideia de que
outro personagem poderia ter feito o que Jesus fez. Em primeiro lugar, será
observado como era visto o messianismo no judaísmo dos séculos I a.C. até
II d.C. Se realmente havia tensões que o empurravam para acontecer e se o
cristianismo era uma saída esperada pelo judaísmo, ou seja, se o judaísmo
estava se preparando, mesmo que inconscientemente, para esta saída, e
se havia o mesmo pensamento no judaísmo a respeito do messianismo,
preparando, assim, o caminho para uma ampla aceitação desta “saída”. É
importante destacar que o judaísmo deste tempo não pode ser considerado
idêntico ao judaísmo do Pentateuco.
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GAUCHET E O MESSIANISMO
| 99
Hoje em dia, existe um pressuposto muito difundido entre os cristãos de que o
judaísmo - de onde saíram Jesus, os apóstolos e as primeiras comunidades cristãs
- é o mesmo judaísmo que os cristãos tomaram conhecimento pela Bíblia. Além
disso, as Bíblias protestantes não trazem os apócrifos do AT (c. 200 a.C. a 1 d.C.).
O pressuposto mais comum, portanto, é o de que o judaísmo de aproximadamente
30 d.C. seria mais ou menos o mesmo judaísmo dos livros mosaicos, dos profetas,
salmos e livros de sabedoria.
Tal pressuposto padece de um equívoco fundamental, e muitos outros fenômenos
do NT e da igreja primitiva deixarão de ser compreendios adequadamente se não
o corrigimos. Em suma: certas coisas muito importantes aconteceram ao judaísmo
e ao povo judeu no período intertestamentário, fatos estes essenciais para a
compreensão da origem do movimento suscitado por Jesus e pela igreja primitiva.
(SKARSAUNE, 2004, p.15)
A literatura extracanônica produzida em Israel, especialmente no século
I a.C. (Salmos de Salomão), juntamente com a literatura apocalíptica apócrifa,
podem ser pontos referenciais para estabelecer a expectativa messiânica judaica
num período que antecede a era cristã. Neste período e depois dele, havia
muitas correntes de pensamento a respeito do Messias. Como exemplo, pode
ser visto no Talmude Babilônico o Rabi Hiyya afirmando que os profetas só
haviam profetizado a respeito da Era Messiânica (TB Sanh. 99a), enquanto,
por outro lado, o grande Rabbi Hillel afirma que não haverá Messias para
Israel (TB Sanh. 99a) (SCARDELAI, 1998).
Em relação à pessoa do messias, havia pelo menos três linhas de
pensamento: O messias filho de Davi, o messias filho de José e o grande
profeta. A esperança no rei descendente de Davi pode ser vista especialmente
na ideia do valor dinástico que os seguidores de Judas Galileu (6 d.C.) e de
Menahem (66 d.C.) imprimiram em seus respectivos movimentos. Já em
relação ao messias filho de José, o episódio de Bar Kokhba (132-135 d. C.)
foi o divisor de águas responsável por solidificar as bases ideológicas. Além
disso, de acordo com a demanda, havia atualizações na ideia do que seria o
messias:
Se no perfil do messias guerreiro, “filho de José”, nota-se a ausência das habilidades
e outros aspectos inerentes à realeza do “filho de Davi”, é porque as expectativas
messiânicas tiveram que sofrer alterações exigidas pela demanda de sua atualização.
(op. cit., p. 69)
A ideia do messias filho de José como “messias sofredor” não poderia
ser aplicada à interpretação cristã do messias “servo sofredor” de Isaías.
A ideia cristã do messias vir para expiar os pecados de todo o Israel
também não teria apoio no judaísmo do tempo de Jesus.
As evidências são praticamente nulas em mostrar que a expectativa da vinda de
um messias sofredor estaria associada a expiação dos pecados de toda a nação de
Israel. (op. cit., p. 87)
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Pode-se ver como o pensamento judaico era diferente do pensamento
cristão. Além disso, havia pensamentos diferentes a respeito do messias,
dependendo da comunidade em que se estava inserido, um exemplo é a
comunidade de Qumran:
O messianismo da comunidade [de Qumran] tinha uma certa inclinação sacerdotal.
A exemplo de outros grupos judeus da época, a comunidade de Qumran aguardava
dois Messias, um que seria ungido sacerdote e outro que seria ungido rei (v. Zc.
4:11-14 como fundamento bíblico para esse modelo). Em Qumran, o Messias
sacerdotal – provavelmente o sumo sacerdote zadoquita escatológico – ficaria
acima do Messias davídico real. (SKARSAUNE, 2004, p. 111-112)
Logo pode-se concluir que havia pouca unidade no pensamento judaico
a respeito do messias, para o cristianismo ser aceito como um cumprimento
do messianismo e muito menos como uma saída do judaísmo.
Gauchet (2005, p. 170) também afirma a respeito da ideia de um
homem-deus o seguinte: A encarnação do invisível era o meio por excelência
para indicar a continuidade da hierarquia terrestre com a ordem celeste.
Em relação ao cristianismo como solução para o judaísmo, Gauchet
afirma que o eixo principal do dispositivo é o mesmo: a ideia do homem-deus
não tem seguramente nada de uma ideia nova, como muitas vezes se deduziu.
(op. cit., p. 171)
Um ponto a se analisar a partir das conclusões de Gauchet é se os
judeus da era pré-cristã admitiam a natureza divina do Messias “filho de
Davi”. Scardelai (1998, p. 42) afirma que:
Parece não haver nenhuma base de sustentação para que as dimensões humanas
e divinas pudessem ser aplicadas à sua pessoa. A tendência mais comum entre os
eruditos judeus contemporâneos é uma nítida tentativa de reduzir a hegemonia da
figura pessoal do messias na tradição judaica. Defende-se, ao invés, a ideia de uma
“era messiânica” como condição preliminar motivadora da, e imprescindível para
a vinda do messias. Na hipótese de ser esse o ideal aceito pela maioria judaica na
antiguidade, então é fácil compreender certa resistência por parte do judaísmo em
dar crédito à existência de figuras messiânicas durante as décadas de crises crônicas
do século I da era cristã.
Além disso, depois do período pós-exílio, os judeus desenvolveram a
ideia de reino messiânico na terra. Pode-se observar que o contexto para
o surgimento do cristianismo é significativamente diferente do que propôs
Gauchet. Seria oportuno agora observar que tipos de messias estes diversos
conceitos a respeito do messianismo produziram em Israel.
OS DIVERSOS MESSIAS
Os muitos conceitos produziram muitos messias, alguns líderes judeus
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GAUCHET E O MESSIANISMO
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foram conhecidos como messias aclamados.
Considerável número de judeus revolucionários, reformadores ou até mesmo
agitadores e charlatães engrossam essa lista nos escritos de Flávio Josefo como
candidatos à categoria de “messias aclamados”. É preciso ressaltar, contudo, que a
palavra “messias” (ungido) é carente de definição precisa no judaísmo do século I.
(SCARDELAI, 1998, p. 103-104)
Os muitos messias serão analisados separadamente a partir da
interpretação segundo a qual o possível messias pode ser enquadrado, a saber,
o messias filho de Davi, o messias filho de José e o messias profeta.
Pertencendo ao primeiro grupo, pode-se colocar em primeiro lugar a
Ezequias (SCARDELAI, 1998; OTZEN, 2003), que foi um grande herói que
iniciou longa e significativa sucessão dinástica. Foi o principal promotor de lutas
armadas e das guerrilhas contra os romanos, fato que o levou à condenação
e pena de morte no ano 46-47 a.C. Seus dois filhos, Tiago e Simeão, após a
morte do pai também seguiram seus ideais e consequentemente encontraram
o mesmo fim. (SCARDELAI, 1998)
Após Ezequias, vem seu filho, Judas Galileu sendo ele o principal
responsável pela formação de um partido nacional. Ele iniciou efetivamente
as guerrilhas contra o império romano. (SCARDELAI, 1998; OTZEN, 2003;
STEGEMANN, e STEGEMANN, 2004). O ideal dinástico messiânico ganha
projeção a partir dele. Judas é um forte protótipo da esperança messiânica
de seu tempo, uma era impregnada de figuras que se dedicaram à causa da
liberdade política de Israel.
O último representante desta dinastia foi Menahem (Ben Ezequias 66
a.C.). Ele era filho de Judas Galileu, e consequentemente neto de Ezequias.
Para se ter uma ideia da importância de Menahem para o messianismo judaico,
as fontes escritas são fundamentais. As tradições rabínicas dão um grande
valor a ele e o Talmud o relaciona com a vinda do Messias. (SCARDELAI,
1998)
As ações de Menahem também podem ajudar a ver o ponto de vista
dele a respeito do seu messianismo.
Além dos pretensos messias davídicos dinásticos, havia também os que
eram davídicos, mas não faziam parte da dinastia de Ezequias. Como, por
exemplo, um personagem com pouco destaque e ainda obscuro, Atronges (4
a. C.-6 d. C.), que tinha sério comprometimento com a causa de Israel e atuou
um pouco antes de Judas da Galileia.
No período da grande Guerra Judaica (66 d. C.), surge mais um
personagem de caráter e personalidade relevantes para o estudo do
messianismo: João de Giscala. Ele foi o último de uma série de combatentes
que pregavam a luta de resistência em defesa da Galileia, entre os anos 66 e
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70 d.C.
Ele conseguiu reviver as esperanças messiânicas que estavam
adormecidas no inconsciente coletivo. Outro que também faz parte da lista
dos pretendentes messiânicos que lutaram pela libertação política de Israel foi
Simão Bar Giora, que segundo Josefo nasceu em torno de 35 d. C. Ele lutou
implacavelmente pela liberdade de Israel, e só parou sua luta por causa da
queda de Jerusalém em 70 d.C. Observam-se algumas semelhanças de Simão
Bar Giora com Jesus, como sua origem humilde, os estudos arqueológicos em
relação a sua aceitação através da esperança escatológica e sua entrada triunfal
em Jerusalém no período da Páscoa. (SCARDELAI, 1998)
Há ainda um pretenso messias que teve seu “messianismo” fora das
terras de Israel. Seu nome era Andreas Lukuas (114-117 d.C.), líder da grande
rebelião de 114 d.C. Ele comandou judeus de diversas localidades como
Cirene, Egito, Mesopotâmia e Chipre, e ainda foi proclamado rei.
Simão Bar Kokhba é o divisor de águas entre o messias filho de Davi e
o filho de José. Sua rebelião contra Roma foi um dos maiores acontecimentos
registrados nas crônicas judaicas depois da Grande Guerra de 66-70. O grande
destaque de Bar Kokhba em relação aos outros pretensos messias, é que pela
primeira vez alguém de destaque na religião judaica atribui o título de messias
a uma pessoa. (SCARDELAI, 1998)
Além disso, o Rabino Akiba considera Bar Kokhba como o cumprimento
da profecia de Números 24:17, e o Talmud confere a ele o título de messias.
Kokhba, como se sabe, fracassou em sua rebelião contra Roma. Então foi
adotada uma abordagem marginal, já conhecida na tradição oral, a doutrina
do “messias filho de José”. Era um elo entre a catástrofe daquele momento e
a esperança do futuro.
O próximo tipo de “messias” a ser estudado é o “messias profeta”.
Teúdas foi um personagem exótico no período anterior à Grande
Guerra de 66 a 70 d.C. Ele foi preso e condenado entre 44 e 46 d.C. Entre
suas acusações estava a propagação de expectativas redentoras. Não foi um
movimento isolado, Gamaliel cita-o em At 5:36. Téudas, baseado em Dt
18:15, cria que o messias seria um novo Moisés e ele se considerava este novo
Moisés. (SCARDELAI, 1998)
Ainda como messias profeta, Jonatas de Cirene e o falso profeta egípcio
também utilizam a ideia de um Novo Moisés e a metáfora do deserto. Como
pode ser visto aqui, entre o I a.C. e o II d.C., havia muitos pretensos messias,
ricos e humildes, descendentes de Davi e sucessores de Moisés, guerreiros e
profetas.
É curioso que Gauchet, além de não atentar para o fato de que a ideia
de um messias era muito plural e confusa em Israel, como já foi visto, afirme
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GAUCHET E O MESSIANISMO
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que poderia ser qualquer um o Messias, que as condições e as pressões da
época é que foram determinantes para que o messias fosse aceito. Questionase, desse modo, por que em meio a tantas possibilidades a religião que sai do
judaísmo é a de Jesus e não a de nenhum outro destes aqui apresentados?
Esta questão será discutida mais adiante.
O JUDAÍSMO E JESUS
Pelo que afirma Gauchet, parece que o cristianismo foi uma metamorfose
natural do judaísmo. É verdade que o cristianismo iniciou entre os judeus
e que os primeiros discípulos eram todos judeus. Mas, só o fato de terem
surgido “novos messias” demonstra que a aceitação do messianismo de Jesus
não foi tão grande assim por parte dos judeus e especialmente do judaísmo.
(SCARDELAI, 1998)
Se Jesus “não esteve a altura” das expectativas messiânicas de seu povo,
com o judaísmo normativo não foi diferente.
É curioso que o que identifica a Jesus como Messias no cristianismo é
o que o afasta no judaísmo: a morte na cruz, por exemplo.
Na visão judaica, sua morte na cruz não foi apenas um malogro diante das suas
pretensões messiânicas, como também privou-o do caráter messiânico. Como seria
possível reconhecer o redentor diante do malogro da redenção? (SCARDELAI,
1998, p. 263)
Scardelai (1998, p. 39) ainda acrescenta que o Talmud também pode
ajudar a confirmar esta rejeição do judaísmo a Jesus e ao cristianismo:
O Talmud, no entanto, retoma a questão da realeza para ironizar o messias cristão:
parece que esse rei está crucificado! (Sanh. IX, 7)
Ele acrescenta que
O Talmud tenta negar a divindade de Jesus nos termos que regiam a doutrina da
esperança messiânica predominante na época:“Rabi Abahu disse: Se um homem
disser ‘Eu sou Deus’, ele não passa de mentiroso; se (ele disser, Eu sou) o filho
do homem, no fim as pessoas o ridicularizarão; se ainda (ele disser) Eu subirei ao
céu, ele apenas diz aquilo que não será capaz de executar”. (TJ Ta’anith 65b) (op.
cit., p. 342)
Autores judeus posteriores ao segundo século também afirmam seu
messianismo longe de Jesus e do cristianismo. Saadia (882-942) com seu
pensamento a respeito do messias e em sua polêmica contra os cristãos
(DAY, 2005) e o apocalíptico tardio Sefer Zerubbavel séc VII e VIII são
exemplos claros de rejeição de Jesus pelo judaísmo, além dos talmudes que
ainda apontavam para um messianismo no futuro.
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Como se pode ver, o judaísmo rejeitou a Jesus como o messias. Podese concluir então que Jesus foi rejeitado pelo judaísmo ou pelo menos pela
maior parte dos judeus e sua liderança. Em seguida, passaremos à discussão
se é plausível a ideia de um messias ao revés.
JESUS, O MESSIAS AO REVÉS
Pode-se afirmar, com base na expectativa messiânica veterotestamentária,
pode-se classificar que Jesus é um messias ao revés? É fundamental, para
responder esta pergunta, estudar o contexto profético e as profecias de Israel
a respeito do Messias.
Em primeiro lugar, é preciso entender que a profecia faz parte do
contexto da aliança, ou seja, este dom profético foi dado por causa da aliança,
para que ao invés de Deus falar com o povo, o profeta falasse (Dt 18:9-22).
Esse ponto é essencial, pois o principal trabalho dos profetas em Israel era
exortar o povo a cumprir sua parte na aliança e alertar para as condições da
aliança, tanto as bênçãos como as maldições.
No texto da aliança, das bênçãos e maldições (Lv 26; Dt 28-30), podese ver a história de Israel, no seu afastamento de Deus e nas consequências
deste afastamento (Lv 26:16).18 O ápice das maldições era o cativeiro (Lv 26:
33-39; Dt 28: 64-68). Mas, o cativeiro não era o fim; ainda havia promessas de
restauração para Israel (Lv 26:40-45; Dt 30:1-14). Essas promessas estavam
divididas em dois grupos: condicionais (Lv 26:40-42) e incondicionais (Lv
26: 43-45).
Em segundo lugar, é importante destacar que em Israel havia dois tipos
de profecias. O primeiro tipo de profecia é chamado clássica. As profecias
clássicas são as mais comuns e poderiam ser condicionais (Jr 18:7-8; Jn 3:10).
Elas podem se cumprir ou não, depende da reação do ser humano à ordem
divina. O segundo tipo de profecia era a apocalíptica que era incondicional, ou
seja, não dependia do ser humano. Uma das funções da profecia apocalíptica,
era afirmar o que se cumpriria da profecia condicional. Além disso, a profecia
apocalíptica era dada em momentos de grande crise e dúvida sobre o
cumprimento do plano de Deus.19
18
Podem-se observar diversas consequências deste adaptamento: os inimigos saquearem as
plantações no tempo dos juízes (Jz 6:4, 5); Lv 26: 3-13; as bênçãos e a prosperidade podem ser vistos
no período de Samuel a Salomão (I Re 10), mas com Salomão vem a apostasia (I Re 11); o céu como
bronze no tempo de Elias ( I Re 17:1; 18:1); comer a carne do próprio filho no tempo de Eliseu (II Re
6: 28-29); o cativeiro babilônico - Amós e Habacuque clamam a Deus por causa da maldade do povo e
a resposta de Deus é: “mandarei os caldeus” (Hb 1:6-9); em Isaías e Oséias há o contexto da maldição,
já não há benção.
19
O livro de Daniel é dado num momento de grande crise pois o povo está no cativeiro na
terra em que Abraão morava antes de ser chamado por Deus (Gn 11;2, 31; Dn 1:2) para sair e se tornar
uma grande nação, parecia que tudo tinha voltado à estaca zero. Parecia que o plano de Deus não iria
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GAUCHET E O MESSIANISMO
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É dentro desse contexto de juízo-exílio e expectativa de restauração que surge
a profecia apocalíptica. Nesse contexto, aparentemente, surgiram perguntas tais
como: Está Deus realmente no controle da situação? Será que as Suas promessas
poderão um dia se cumprir? Como será isso possível? Como Deus as cumprirá?
(SIQUEIRA, 2004, p. 89-90)
As promessas condicionais da aliança, que apontavam para o período
pós-cativeiro, seriam interpretadas pela profecia apocalíptica de acordo com
o cumprimento da parte sob responsabilidade humana para que a promessa
fosse cumprida. A profecia apocalíptica para tal interpretação neste contexto
é o livro de Daniel.
Assim poderíamos dizer que as profecias apocalípticas foram dadas como uma
chave para ajudar na compreensão de como se cumpririam as promessas feitas por
Deus através dos profetas clássicos. Isso fica bem claro em Daniel 9, um capítulo
básico para a compreensão dessa questão. (op. cit., p.90)
A partir de agora será analisado o capítulo 9 do livro de Daniel como
interpretação das promessas condicionais do pós-cativeiro através de um
inter-relacionamento entre a profecia clássica e a apocalíptica. Daniel já estava
há cerca de 66 anos em Babilônia,20 e estava ansioso pelo cumprimento das
promessas de restauração.
É neste momento que Daniel tem duas visões que lhe causam muita
dificuldade. A primeira visão foi de quatro animais (Dn 7:1-7) que simbolizavam
quatro reinos, e depois um chifre pequeno que era outro tipo de poder (Dn
7: 8, 24) e uma visão da purificação do templo em 2300 tardes e manhãs (Dn
8:14), o que coloca como improvável o cumprimento da profecia de Jeremias
de que a duração do cativeiro seria de 70 anos (Jr 25:12; 29:10). Pois, seria
impossível se cumprir tudo isso em apenas 4 anos (Dn 8:26; Dn 8:14).21
Então, Daniel começa a orar e confessar os pecados dele e do povo
(Dn 9:2-19), pois ele sabia que esta era a condição para que se cumprissem
as promessas do pós-cativeiro (Lv 26:40-42; Jr 29:12-14; Dn 9:17-19). Talvez
ele imaginasse que o povo de Israel não estava cumprindo a sua parte, logo as
promessas também não se cumpririam. Imediatamente chega a Daniel o anjo
Gabriel para explicar a ele a relação entre a palavra,22 no caso de Jeremias, e a
se cumprir. Então Deus dá a profecia apocalíptica ao povo de Israel. No NT não é diferente. A igreja
estava sendo perseguida por Domiciano. A volta de Jesus parecia demorar mais do que imaginavam
os cristãos, e então vem o questionamento: o plano de Deus vai se cumprir? Então é dado o livro de
Apocalipse. Com relação aos apocalipses pseudoepígrafos do período, intertestamentários e posteriores
a este período parecem ser escritos inspirados em Daniel, mas sem nenhum valor para a religião judaica
como inspirados por Deus (não estão no cânon).
20
Dn 9:1 (no primeiro ano de Dario, o medo, cerca de 539 a.C.) Daniel havia sido deportado
em 605 a.C.
21
Dia em profecia equivale a ano (Ez 4:5; Nm 14:34; Lv 25:8), 2300 dias= 2300 anos.
22
A palavra traduzida como coisa em Dn 9:23 é rb’D’ ((davar) que tem como principal tradução:
o termo palavra.
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visão das 2300 tardes e manhãs (Dn 9:23).
Ao lermos o texto da profecia das 70 semanas, em Daniel 9:24-27, vemos que ela
responde diretamente às inquietações de Daniel: todo o verso 24 e as primeiras
partes dos versos 25-27 esclarecem como e quando se cumpriram as predições
da davar de Jeremias; enquanto que a segunda parte de cada verso em Dn 9:25-27
esclarece elementos pertinentes às visões do próprio Daniel. (SIQUEIRA, 2004,
p. 92)
Pode-se observar então que os dois temas, a profecia de Jeremias e a
visão de Daniel serão respondidas simultaneamente nestes versos. Observase que em Dn 9:25, afirma-se que a profecia de Jeremias vai se cumprir, mas
as condições em que ela se cumprirá serão outras.
É relevante para este estudo, o fato de as profecias de restauração de
Jeremias falarem também acerca do Messias. Observa-se que há uma relação
entre o Messias e a aliança nas profecias de Jeremias. Mais ainda, a ideia de um
Messias sofredor estava presente em Jeremias. Gabriel explica a Daniel não
apenas como aconteceria o sofrimento do Messias, mas também quando.
É curioso o fato de que Gabriel deixa claro que o Messias seria morto
e já não estaria, ou seja, não há mais reino messiânico aqui na terra. Esta era
a informação disponível para o povo judeu no período em que Jesus viveu.
Observa-se que o tema da aliança volta mais uma vez, e agora há uma nova
aliança entre Deus e Israel. E esta nova aliança está interligada com a morte
sacrifical do Messias.
Não era uma interligação simples ou secundária: a morte sacrifical do
Messias era a própria base do estabelecimento da Aliança do povo de Israel
com Deus. Além disso, pode se ver um significativo paralelo entre Jeremias
e Isaías, e Daniel trazendo uma luz adicional a estes dois livros proféticos do
Antigo Testamento.
A visão do capítulo 9 de Daniel, além de ter a função de fazer Daniel
entender as profecias de Jeremias, também tinha como objetivo explicar a
Daniel a relação de Jeremias com as visões dos capítulos 7 e 8 de Daniel e
demonstrar como as duas se relacionavam e se completavam.
Daniel 9:24-27 define o tempo que cada uma das predições iria ocorrer,
deixa claro que não eram eventos simultâneos como se supunha, e, talvez,
como o próprio Daniel imaginasse. Se houve confusão a respeito da função
do Messias no primeiro século da era cristã não foi por falta de informação. A
ideia de um Messias guerreiro e de um reino messiânico para o povo de Israel
estava totalmente descartada na profecia apocalíptica de Daniel.
Logo, pode-se concluir que Jesus, de forma alguma, pode ser chamado
de messias ao revés baseando-se na literatura profética de Israel como Isaías
e Jeremias, e especialmente na apocalíptica de Daniel. A relevância de Daniel
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GAUCHET E O MESSIANISMO
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para o entendimento da missão de Jesus pode ser vista no sermão profético
em Mateus 24. Expressões como o abominável da desolação (Mt 24:15; Dn
9:27; 11:31; 12:11), Filho do Homem (Mt 24:27, 30, 37, 39, 44; Dn 7:13),
grande tribulação como nunca houve (Mt 24:21; Dn 12:1), vindo sobre as
nuvens (Mt 24:30; Dn 7:13) e quatro ventos (Mt 24:31; Dn 8:8), são claros
elos com o livro de Daniel. O sofrimento do servo sofredor já estava predito
quase seis séculos antes de Jesus. Infelizmente, o povo de Israel, ou pelo
menos seus líderes, não percebeu.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através deste estudo pode-se ver que a tese de Gauchet, em relação
ao messianismo, encontra algumas dificuldades, pois é nítido que a aliança
de Israel com Deus era inclusiva e não exclusiva como supõe ele. Assim, a
afirmação de que a exclusividade da aliança foi um motivo determinante para
o messianismo é insustentável. Pode-se ver também que a ideia de Messias
em Israel era diferente do conceito de messias nos povos vizinhos de Israel.
Além disso, foi observado que o conceito de Messias em Israel, entre os
séculos I a.C. e II d.C., era muito diversificado e com vários tipos de Messias,
a saber, filho de Davi, filho de José e profeta, demonstrando, assim, que as
expectativas messiânicas, naquele período, eram diferentes do que propõe
Gauchet, ou seja, os judeus de uma maneira geral não aguardavam por um
tipo específico de Messias, muito menos um Messias como Jesus.
Ainda foram motivo de estudo os diversos “messias aclamados” dos
séculos I a.C. ao II d.C., tornando possível perceber que a ideia de Gauchet
de que qualquer um poderia ser o messias e mais ainda aquele que originaria
a chamada “religião da saída da religião” é muito improvável pelo número
destes messias aclamados e o resultado de seus movimentos após a morte de
cada um deles.
Ao observar a rejeição do judaísmo em relação ao cristianismo, que não
é mencionada por Gauchet, tem-se uma ideia bem diferente do conceito de
Gauchet em relação ao cristianismo como uma sequência natural do judaísmo.
Por fim, ao estudar o artigo de Siqueira (2004) a respeito dos profetas e o
messianismo, especialmente Daniel e Jeremias, compreende-se que Jesus não
foi um Messias ao revés como supôs Gauchet, mas foi um Messias como
foi previsto pelos profetas. Conclui-se, portanto, que a tese de Gauchet em
relação ao messianismo não é plausível.
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Harris (org.) Trad. Márcio Loureiro Redondo, Luis Antonio T. Sayão, Carlos
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DATA DE SUBMISSÃO: 27/09/2012
DATA DE ACEITE: 03/12/2012
| REVISTA HERMENÊUTICA, CACHOEIRA-BA, VOL. 12, N. 2, P. 85-109 |
O QUE O CASO GALILEU TEM A ENSINAR SOBRE AS
RELAÇÕES ENTRE CIÊNCIA E RELIGIÃO?
What The Galileo Case Has To Teach About The
Relationship Between Science And Religion?
Wellington Gil Rodrigues1
Jéssica Renata Ponce de Leon Rodrigues2
BLACKWELL, Richard J. Science, Religion and Authority: Lessons from
the Galileo affair. Marquette University Press, 1998.
Em 22 de fevereiro de 1998 durante um evento na Universidade
Marquete (Wisconsin – EUA) o professor de filosofia Richard J. Blackwell
apresentou a palestra Science, Religion and Authority: Lessons from the Galileo affair
a qual deu origem ao livro do mesmo nome. O professor Blackwell é autor
de várias obras relacionadas à filosofia e à história da ciência e também sobre
as relações entre ciência e religião, entre elas A Bibliography of the Philosophy of
Science (1983), Galileo, Bellarmine and the Bible (1991) e também traduziu a obra
clássica de Tomaso Campanella A Defense of Galileo, the Mathematician from
Florence (1994).
A obra Science, Religion and Authority: Lessons from the Galileo affair está
dividida em cinco partes principais. Na primeira parte, a qual consiste da
introdução, Blackwell apresenta as relações entre ciência e religião como uma
relação de amor e ódio ao longo da história da civilização ocidental cristã.
Ele oferece como exemplo de amor a síntese realizada por Tomás de Aquino
entre a teologia cristã e a filosofia aristotélica clássica e como exemplo de ódio
os casos Galileu e Darwin. Ele propõe algumas questões bem pertinentes:
Por que essa instabilidade no relacionamento entre ciência e religião? Por
que as tensões entre ciência e religião são tão persistentes? Por que esses
conflitos apresentam a aparência (e talvez a realidade) de serem insolúveis?
Diante dessas questões Blackwell propõe os seguintes objetivos: a) olhar para
o caso Galileu buscando os fatores-chave para responder a essa questões; b)
formular uma série de lições do caso Galileu sobre a natureza das relações
entre ciência e religião.
Na segunda parte, a qual ele denominou Considerações históricas preliminares:
as estratégias de separação e de integração, Blackwell afirma que o relacionamento
entre ciência e religião não segue uma estrutura fixa, mas tem variado ao longo
1
Doutorando em Ensino, Filosofia e História da Ciência pela Universidade Federal da Bahia
-UFBA. Atua como professor de Ciência e Religião na Faculdade Adventista da Bahia- FADBA. E-mail:
[email protected].
2
Acadêmica do curso de Psicologia da Faculdade Adventista da Bahia-FADBA.
114 | WELLINGTON GIL RODRIGUES / JÉSSICA RENATA PONCE DE LEON RODRIGUES
dos séculos, pois existem desenvolvimentos internos que forçam a mudança
a qual ocorre independentemente na ciência e na religião. Nesse sentido, a
recepção da ciência pela comunidade cristã tem sido marcada historicamente
por dois extremos: a) rejeição da ciência como perigosa aos objetivos da
religião; b) aceitação da ciência como um modo quase religioso de encontrar
a Deus na natureza. Entre esses extremos polares, Blackwell coloca duas
visões intermediárias que tem efeito recorrente na cultura contemporânea: a)
estratégia de separação e b) estratégia de integração.
A estratégia de separação se caracteriza por uma ênfase nas
diferenças, em uma tentativa de traçar uma linha de demarcação entre ciência
e religião para que a religião não seja comprometida pelos métodos e achados
da ciência. Blackwell atribui essa estratégia a uma atitude mental defensiva da
religião, mas estranhamente não cita o outro lado da moeda, ou seja, que a
ciência também pode adotar essa estratégia para se proteger das ingerências
indevidas de doutrinas e opiniões religiosas.
Blackwell percebe em Agostinho um exemplo dessa estratégia indicando
a sua preocupação de como o livro do Gênesis deveria ser interpretado. O
conselho de Agostinho basicamente seria de que quanto aos assuntos do
formato do céu e da terra o Espírito Santo que inspirou os escritores bíblicos
não tinham interesse em ensinar a esses homens fatos que não seriam úteis a
sua salvação, ou seja, o interesse da Bíblia é a salvação de almas e não ensinar
ciências. Blackwell também cita a famosa frase do cardeal Baronious (que foi
utilizada também por Galileu) “a intenção do espírito é ensinar-nos como ir
para o céu e não como o céu vai.” Ou seja, ciência e religião não deveriam
conflitar, pois elas não ocupam o mesmo território, a característica da religião
é ensinar moralidade e se preocupar com a vida eterna, e por seu lado a
ciência ensina fatos e se preocupa com o aqui e o agora.
Agostinho estabeleceu um corpo de princípios exegéticos que definiram
o debate ciência e religião desde então: a) Toda verdade é uma, desde que
tudo deriva de um Deus verdadeiro, ou seja, ciência e religião não podem
realmente conflitar; b) noção (que pode ser traçada até Aristóteles) que a
ciência natural pode alcançar/obter verdades absolutas. Então qual seria a
proposta de solução de Agostinho para conciliar ciência e bíblia? Quando uma
determinada interpretação da escritura conflitar com uma verdade da ciência,
o religioso deve reinterpretar a sua leitura da Bíblia para buscar concordância
com a verdade científica estabelecida.
Mas bem aqui surge uma importante pergunta que se constitui no
ponto central da questão: E o que fazer quando a convicção científica que
está em oposição à Bíblia for menos que uma certeza absoluta? O conselho
de Agostinho é que se dê preferencia à Bíblia visto que a confiança em Deus
| SEMINÁRIO ADVENTISTA LATINO-AMERICANO DE TEOLOGIA - SALT |
O QUE O CASO GALILEU TEM A ENSINAR SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE CIÊNCIA E RELIGIÃO?
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como seu autor é sempre mais forte que o julgamento baseado na razão e na
experiência humana.
E para introduzir a estratégia da integração Blackwell utiliza algumas
citações de Campanella nas quais ele faz comentários sobre os livros de Deus
e afirma que quem teme a contradição entre ciência e religião está cheio de
má fé.
O objetivo de Campanella parece ser unir a ciência e religião em um
todo unificado e não há maior exemplo dessa estratégia do que Tomás de
Aquino, o qual tomou para si a tarefa de reconciliar a filosofia e a ciência
de Aristóteles com a fé católica, uma tarefa muito arriscada, como atesta o
fato de que, apenas dois anos após a sua morte, o Bispo de Paris condenou
alguns de seus escritos, mas ainda assim Aquino se tornou a nova ortodoxia
católica.
Uma estratégia de integração como essa poderia ocorrer hoje? Para
Blackwell há uma chance mínima de isso ocorrer, pois integração envolve
reconceptualização das duas disciplinas (ciência e religião) e a reconciliação
causa furor na instituição religiosa, visto que ela é encarregada de manter a
revelação original intacta. Ex. Teilhard de Chardin. Portanto, a estratégia da
integração também envolve consequências problemáticas.
As visões de Agostinho (separação) e Aquino (integração) são ainda
importantes no modo como nós hoje vemos as relações entre ciência e
religião e o caso Galileu é o principal fator que formata as mentes modernas
sobre essas relações.
Na terceira parte, denominada Um breve esboço do caso Galileu Blackwell
afirma que os fatos do caso Galileu revelam os parâmetros que tem
caracterizado as relações entre ciência e religião desde então. O primeiro fato
é que houve dois julgamentos e não apenas um. O primeiro (1616) versava
sobre as questões da verdade, fatos e em um nível abstrato, já o segundo
(1633) versava a culpabilidade legal, questão de autoridade e em um nível
pessoal.
Por volta de 1597, Galileu começou a demonstrar crença no
heliocentrismo, a qual era já uma crença antiga mantida pelos gregos. Mas, só
em 1610 com as novas descobertas, Galileu vai assumindo o heliocentrismo
como a mais provável descrição do sistema solar.
Os inimigos de Galileu apontavam a inconsistência entre a nova
astronomia e as passagens das escrituras, tais como: Josué e Salmo 19:4-6.
Assim a nova astronomia parecia implicar que a Bíblia estava errada e tal
questão era um assunto muito espinhoso no contexto da reforma protestante
e da contra reforma católica.
Duas questões difíceis sobressaíam: a) a reinterpretação das escrituras
| REVISTA HERMENÊUTICA, CACHOEIRA-BA, VOL. 12, N. 2, P. 113-117 |
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e b) quem tinha autoridade para fazer essa reinterpretação. Em 1546 (8 anos
antes do nascimento de Galileu), o Concílio de Trento já tinha emitido um
decreto normatizando sobre as duas questões acima citadas declarando que
ninguém tinha o direito de interpretar as escrituras exceto a santa mãe igreja.
Galileu não era teólogo e sabia que não podia vencer nesse campo
de batalha; no entanto, na carta à Duquesa Cristina (1615), ele examina os
princípios gerais da exegese bíblica. Ele se baseia em Agostinho para defender
seu ponto de vista, o qual era: quando a ciência prova conclusivamente uma
afirmação sobre o mundo, a escritura deve ser interpretada de acordo, e
quando a ciência não pode provar a afirmação, a preferencia deve ser dada
à posição bíblica. Mas Galileu não diz nada sobre como se estabelecer essa
impossibilidade para a ciência. Ele também não toca na questão do meio
termo, ou seja, e quando a ciência poderia provar mas ainda não o fez até
aquela data?
Galileu faz um uso extensivo da distinção entre o uso literal e o
metafórico da linguagem na Bíblia. Isso desde há muito tempo tinha sido
um padrão entre os exegetas. Um outro princípio era o da acomodação, ou
seja, que as escrituras são acomodadas ao entendimento das pessoas comuns.
Galileu chama a atenção quanto a questão de não haver entendimento entre
os pais da igreja quanto ao heliocentrismo (um dos princípios do Concílio de
Trento) e que eles simplesmente usaram a linguagem do senso comum (o sol
nasce e se põe). Ele também levanta a questão se a estrutura dos céus era uma
“questão de fé e moral” (outro dos princípios do Concílio de Trento).
Por conta desses eventos, em fevereiro de 1616, a Congregação
do Santo Ofício decidiu que a astronomia copernicana era falsa, pois era
contrária às Escrituras. E em 05.03.1616 a Congregação do Índice anunciou
publicamente sua decisão de condenar o copernicanismo. O nome de Galileu
e os seus escritos não foram citados pelo decreto, mas ele sabia que estaria
preso ao decreto como qualquer outro católico.
Pelos próximos 17 anos Galileu permaneceu longe da disputa, mas em
1623 o seu velho amigo o cardeal Barberini foi eleito Papa (Urbano VI ) e então
Galileu decidiu (aparentemente com a aprovação tácita papal) escrever uma
obra “neutra” analisando as evidências das cosmovisões geo e heliocêntrica.
(p. 35). O livro apareceu em 1632 e criou uma sensação visto que o Dialogo
sobre os dois máximos sistemas de mundo favorecia fortemente o personagem
que defendia o ponto de vista de Copérnico, o que parecia claramente uma
violação direta do decreto de 1616.
Para piorar a situação, foi encontrado no arquivo do Santo Oficio o
documento sobre a injunção. Urbano VI ficou furioso porque Galileu não
lhe falou dessa injunção. No julgamento, Galileu afirmou que não sabia/
lembrava da injunção já que ele se guiava pela carta de Belarmino e esta não
| SEMINÁRIO ADVENTISTA LATINO-AMERICANO DE TEOLOGIA - SALT |
O QUE O CASO GALILEU TEM A ENSINAR SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE CIÊNCIA E RELIGIÃO?
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mencionava qualquer injunção. O julgamento se tornou inevitável e aconteceu
na primavera de 1633, no qual Galileu foi condenado a se retratar e a prisão
domiciliar pelo resto da vida.
Na quinta parte, denominada Considerações Finais Blackwell apresenta
as cinco lições que ele retirou do caso Galileu: 1) Há uma diferença
fundamental entre a descrição das coisas como elas são, e uma justificação de
uma descrição a qual autoriza sua verdade; 2) Ciência e religião concordam e
algumas vezes discordam no nível descritivo, mas elas são sempre diferentes
no nível de autoridade; 3) No nível de autoridade nem ciência e nem religião
são puramente racionais em caráter. Cada uma delas envolve um componente
volitivo derivado da vontade humana, mesmo que em diferentes modos;
4) Tensões no nível de autoridade vão se amplificando na medida em que
ciência e religião vão gradualmente se institucionalizado por um longo
período de tempo; 5) No nível de autoridade, verdade científica é entendida
ser completamente falibilista, no entanto, esse não é o caso considerando a
verdade no campo da religião. Esta diferença em suas respectivas concepções
de verdade torna a reconciliação entre ciência e religião consideravelmente
mais difícil.
Por fim Blackwell conclui que as mesmas forças básicas das controvérsias
sobre as autoridades da ciência e religião, as quais resultaram no caso Galileu,
ainda estão operando hoje e para ele esta é a razão porque a fascinação com
esse caso permanece até hoje e que se há uma lição a ser aprendida aqui é que
a autoridade religiosa tem seus limites, bem como também o tem a autoridade
cientifica.
DATA DE SUBMISSÃO: 07/11/2012
DATA DE ACEITE: 03/12/2012
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