REVISTA DA SOCIEDADE DE PSICOLOGIA DO RIO GRANDE DO SUL Efeitos da transferência no atendimento a pacientes oncológicos Effects of transference in the treatment of oncology patients 2 Andrea Theise a *, Marianne Montenegro Stolzmann Mendes Ribeiro b * Resumo: Este artigo busca refletir sobre o efeito da relação transferencial que se estabelece com pacientes oncológicos, bem como as questões que surgem diante da vulnerabilidade em que tais sujeitos se encontram. Além de fragilidade orgânica e psíquica, os pacientes atendidos encontram-se em situação de vulnerabilidade social. Assim sendo, nas primeiras sessões é feita uma escuta acolhedora a fim de dar suporte para que, no decorrer dos atendimentos, estes pacientes possam se confrontar com o adoecimento, bem como com seus conflitos psíquicos que podem estar relacionados com o câncer. Para isso, utiliza-se o entendimento psicanalítico, tendo como base a prática realizada junto à Liga Feminina de Combate ao Câncer da cidade de Novo Hamburgo. Ao fim dos atendimentos, o relato dos pacientes revela o quanto esta escuta contribui para a melhoria da qualidade de vida, sendo que muitos superam momentos de medo, luto e depressão. Alguns pacientes que antes se sentiam incapacitados em lidar com questões cotidianas, conseguiram, após certo número de sessões, retomar algumas tarefas diárias, construindo planos a médio prazo, resgatando o desejo em viver. Palavras-chave: transferência; psicanálise; paciente oncológico. Abstract: This article aims to reflect the transference relationship established with oncology patients, as well as the issues that arise from the susceptibility of such individuals. Those cancer patients are not only under physical and emotional distress, but also under social vulnerability. Thus, among the individual counseling session first offered to the patients, the psychologist provides them with a receptive listening so that they can get support in order to cope with the disease, as well as with the emotional conflicts, which might be related to cancer. Therefore, the psychoanalytic approach is the method used in the praxis offered at the Liga Feminina de Combate ao Câncer in Novo Hamburgo, Brazil. The feedback from the patients reveals how much those receptive listening sessions contribute to the patients' well-being. Many of those patients overcome moments of fear, grief and depression. Some patients who used to feel incapable of dealing with daily life activities could resume some of their daily tasks after undergoing a certain number of sessions. They are able to set short - term goals, recovering the desire to live. Keywords: transference; psychoanalysis; oncology patients. a Acadêmica do Curso de Psicologia da Universidade Feevale. Novo Hamburgo - RS - Brasil. * E-mail: [email protected] b Orientadora; Psicóloga; Psicanalista, membro da APPOA; Mestre em Psicologia Clínica PUCRS; Coordenadora do Centro Integrado de psicologia da Universidade Feevale; Professora e Supervisora de Estágio no Curso de Psicologia da Universidade Feevale. Novo Hamburgo - RS - Brasil. * E-mail: [email protected] Sistema de Avaliação: Double Blind Review 50 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 50-57 Este artigo é fruto de uma reflexão a respeito das particularidades percebidas nos atendimentos psicológicos realizados com pacientes oncológicos. Os atendimentos ocorreram nas dependências da Liga Feminina de Combate ao Câncer da cidade de Novo Hamburgo, semanalmente, com uma hora de duração. O encaminhamento destes pacientes ao atendimento é feito através de uma triagem. Desta forma, são selecionados aqueles com maior urgência de atendimento, avaliando se é o próprio paciente que irá se beneficiar desta escuta, ou ainda se será mais benéfico o atendimento ao cuidador, como um suporte a esta família, a qual, muitas vezes, tem suas relações adoecidas juntamente com o paciente oncológico. A família funciona como um sistema vivo, de maneira que tudo que acontece a um de seus membros repercute sobre os demais; assim, os seus efeitos não se restringem apenas a uma pessoa em particular, mas afetam normalmente todos os demais membros (SILVA, 2000, p. 13). Observou-se, então, que o paciente com câncer e sua família sempre chegam aos atendimentos com uma grande carga de angústia. Isto se dá devido ao entendimento inconsciente de que há uma condenação à morte intrinsecamente ligada ao momento de recebimento do diagnóstico. "O câncer pode roubar-lhe aquela alegre ignorância que uma vez o levou a acreditar que o amanhã se estenderia para sempre". (PICHETI; DUARTE, 2008, p. 59). Esta carga emocional tem uma demanda de urgência, que, depois de ser acolhida, abre espaço para que tenham voz sentimentos e vivências relacionados ao adoecimento. A necessidade de uma escuta acolhedora, bem como a fragilidade destes pacientes, será descrita a seguir, assim como o manejo realizado nas sessões. Apesar de inicialmente os atendimentos possuírem o enfoque da psicoterapia de apoio, percebe-se que, no decorrer do tratamento, diante da aderência e da transferência estabelecidas, há um aprofundamento desta escuta, embarcando no campo da psicoterapia de orientação analítica. Para ilustrar estas especificidades, será exposto, no decorrer do artigo, o recorte de um caso de uma paciente que será apresentada como G. Quem é o paciente oncológico Até o final do século XIX, o sujeito acometido pelo câncer não tinha reais possibilidades de sobreviver, restando apenas esperar pela morte. Em 1920, surgiu uma novidade – a radioterapia – trazendo a esperança do prolongamento de vida do paciente, mas esta era utilizada apenas nos casos em que a cirurgia não havia sido bem sucedida. A partir de 1940, começaram a surgir as drogas anticâncer e a quimioterapia, trazendo ainda mais possibilidades com a combinação dos diferentes tratamentos, mas nem sempre a cura. A palavra câncer era ameaçadora de tal forma que o médico só revelava o diagnóstico aos familiares, jamais ao paciente. Câncer estava associado à dor, à tumoração deformante, ao odor fétido e, inevitavelmente, à morte. Havia desconfiança de que fosse doença transmissível, por isso o paciente era previamente rejeitado (SILVA, 2000, p. 21). Desta forma, o paciente oncológico, ao receber o diagnóstico, recebe também esta carga histórica. Muitos avanços já foram conquistados, mas de acordo com o Instituto Nacional do Câncer – INCA (2011), o câncer ainda é o responsável por 13% (7 milhões de pessoas) de mortes no mundo, sendo registrados só no Brasil cerca de 141 mil óbitos por câncer. Estes números aumentam anualmente, e o paciente que chega para o atendimento traz consigo, inconscientemente, estes estigmas. O paciente oncológico percebe o diagnóstico como uma ameaça e, a partir deste momento, sente-se como quem caminha pelo corredor da morte, vendo o fim sem escapatória. Depara-se com sentimentos de desesperança, angústia e medo. Este vivencia a solidão de enfrentar a ameaça de morte, tão iminente neste momento inicial. A reação psicológica do paciente ao diagnóstico de câncer começa com a suspeita. Apesar do carcinoma ser mais tratável, atualmente ainda persiste o medo, que tem repercussão nas atitudes e crenças em relação ao câncer (SILVA, 2000, p.26). Este paciente passa por momentos física e psicologicamente dolorosos, tratamentos momentaneamente incapacitantes que, além da dor, geram um mal estar total. Assim, o sujeito que chega para atendimento psicológico vem muito fragilizado, na maioria dos casos com as defesas psíquicas muito baixas, necessitando uma escuta acolhedora. O psicólogo coloca-se junto ao seu paciente, dá voz a alguns sentimentos e traz esclarecimentos práticos sobre a doença, dando sentido à angústia que toma conta do ser. Esta é uma pessoa experiente que se torna ajuda estrangeira, apoio que vem apaziguar essa excitação sendo também o portador de uma outra excitação que cava, entre a dor e o indivíduo, uma distância na qual poderá nascer uma concepção interpretativa da experiência dolorosa: uma vida psíquica nasce da experiência sensível ao desprender-se dela por apoio sobre um outro humano. Pela experiência de satisfação torna-se possível dar o passo qualitativo que, 51 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 50-57 certamente sem poder ser eximido do sofrimento, permite não parar de gozar a vida cedo demais (VILLA, 2008, p. 334). (VENÂNCIO, 2004). Ansiedade e depressão são os mais frequentes, sendo o acompanhamento psíquico fundamental para um bom andamento do tratamento deste sujeito. Desta forma, este sujeito adoecido agora encontra uma escuta, um apoio, um lugar para enfrentar seus conflitos. Assim, surge um fortalecimento psíquico que é fundamental no enfrentamento do câncer. Vários estudos referentes ao câncer comprovam que pacientes que participam de atendimento psicológico possuem um melhor ajustamento à doença, redução dos distúrbios emocionais (como ansiedade e depressão), melhor adesão ao tratamento e diminuição dos sintomas adversos associados ao câncer e aos tratamentos, podendo até obter um aumento no tempo de sobrevida (VENÂNCIO, 2004, p. 55). A liga feminina de combate ao câncer Todos os atendimentos ocorreram nas dependências da Liga Feminina de Combate ao Câncer, da cidade de Novo Hamburgo (RS), que é uma entidade formada por mulheres voluntariamente associadas, com o propósito de arrecadar fundos em prol dos pacientes oncológicos. Sem fins lucrativos, conta com o apoio de empresas e da comunidade para oferecer ajuda a pessoas em situação de vulnerabilidade social e que foram acometidas por qualquer tipo de câncer. Atende tanto homens como mulheres, acima dos 18 anos de idade. Nas suas dependências, há uma sala destinada aos atendimentos psicológicos, garantindo o setting e valorizando a importância e a necessidade da psicologia junto ao adoecimento. A Liga atende a toda comunidade carente da cidade, fornecendo materiais como fraldas, perucas, lenços, curativos e cadeiras de rodas, entre outros, além dos atendimentos com nutricionista, assistente social, arteterapia, advogados e o atendimento psicológico. Os pacientes que demonstram necessidade de psicoterapia são entrevistados por uma psicóloga voluntária, que faz uma escuta prévia e os encaminha às demais psicólogas e estagiárias que trabalham voluntariamente na Liga. Para elucidar as especificidades destes atendimentos, será abordado o caso da paciente apresentada como G, a fim de preservar sua identidade. G estava com 34 anos no momento dos atendimentos e tinha descoberto o câncer de colo de útero havia dois anos. Já tinha passado por todas as oito sessões de quimioterapia recomendadas por seu médico, além de 25 sessões de radioterapia e sete de braquiterapia¹. Não precisou fazer cirurgia. Casada, tinha dois filhos com quinze e sete anos de idade. Chegou aos atendimentos bastante fragilizada, declarando não encontrar mais sentido em sua vida. Ao chegar para o atendimento psicológico, a paciente G trouxe uma grande carga de medo e ansiedade. Ao fim do tratamento médico, ela não fez os exames de controle, uma vez que, inconscientemente, preferiu permanecer acreditando na cura e no seu suposto poder de controlar a morte, ao invés de enfrentar novamente a possibilidade de um novo e doloroso tratamento, ou ainda uma cirurgia de histerectomia total². Afligida pelo medo da morte, G negava o adoecimento e se culpava por isso. O conflito da paciente ilustra o de muitos outros, pois culpa e negação estão associadas ao processo de adoecimento de grande parte dos pacientes oncológicos, já que, historicamente, o câncer estava associado à vida promíscua. Sempre foi algo a ser escondido por vir acompanhado de muitos estigmas, como a inevitabilidade da morte e as explicações equivocadas a respeito de sua etiologia que atribuíam sua origem à promiscuidade ou falta de higiene [...] (VEIT; CARVALHO, 2008, p. 16). Muitas pesquisas apontam que o paciente oncológico é frequentemente acometido por problemas psicológicos Ao negar o adoecimento, a paciente buscava mostrar-se saudável. Calava seu medo e sua dor, fazendo com que seu corpo manifestasse esta dor psíquica através do adoecimento. Neste caso, o câncer representou a dor de seu sofrimento desde criança. No decorrer dos atendimentos, G falou do abandono sofrido por seu pai aos dois anos de idade, seguido dez anos depois pelo abandono de sua mãe. Durante o tempo em que permaneceu com a mãe, G foi vítima de muito sofrimento, como a falta de alimentação, além de abusos, como ouvir que ela não deveria ter nascido, e ter de presenciar as relações sexuais de sua mãe com diversos parceiros. Ao ser abandonada uma segunda vez, aos 12 anos de idade e agora por sua mãe, G demonstra pela primeira vez o desejo de ¹ ² A psicologia entendendo o câncer Braquiterapia é uma forma interna de radioterapia, onde uma fonte de radiação é inserida no local do tumor. Este tem se mostrado um tratamento muito eficaz, já que a radiação atinge diretamente o tumor de forma precisa. Histerectomia total é uma cirurgia para a retirada do útero, ovários, colo do útero e trompas de falópio, quando há alguma condição patológica, sem a possibilidade de outro tipo de tratamento. 52 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 50-57 morrer, pensando em cometer suicídio, sem conseguir chegar ao ato. Passa a morar com uma tia, irmã de sua mãe, que a trata como empregada, sem garantir-lhe direitos básicos como a educação. Aos 14 anos de idade é expulsa desta casa e, então, acolhida por uma família que a conhecia e tinha uma filha da mesma idade. Neste momento, G relata que foi surpreendida pelo carinho e acolhimento, deparando-se pela primeira vez com uma família. Novamente, surge o desejo de morrer porque, inconscientemente, não se achava digna dos cuidados que passa a receber. Pode-se entender que o desejo de morte presente na paciente não é dela, mas sim o que foi almejado para sua vida. Corso (1996) refere a necessidade em fazer esta leitura sobre as consequências psíquicas sofridas pela criança em ocupar o lugar do desejo de Outro, uma vez que é neste desejo que ela se constitui psiquicamente. Ele pressupõe a existência de um estádio de amor objetal passivo, no qual o adulto toma a criança como objeto de satisfação e esta responde introjetando-o. A violação, o trauma, a violência que ele detecta advém da condição objetal que ele percebe no infantil, no assujeitamento ao que chamaríamos de fantasma da mãe (CORSO, 1996, p. 70). São estas as sequelas de constituição demonstradas por G: o desejo de morte recebido de sua mãe e que agora, na clínica, encontra um lugar onde pode ser visto e ressignificado. G foi assujeitada a este desejo, tendo sido abandonada em três momentos de sua vida. Em especial, o abandono sofrido por seus progenitores foi por ela, inconscientemente, compreendido como desejo de morte. O ser humano adoece sempre como uma totalidade e então o câncer tem um significado dentro da história pessoal do paciente e, muitas vezes, se constitui na única maneira suportável de viver por ser mais acessível às deficiências adaptativas do indivíduo (ANGERAMI-CAMON, 2004, p. 79). Assim, pode-se compreender o adoecimento de G através da psicossomática, em que seu adoecimento físico mostra-se como o reflexo de um adoecimento psíquico, emocional e afetivo. A doença está além da desordem física, denotando uma motivação profunda e secreta à paciente, que, ao longo do atendimento, pode se confrontar aos poucos com a origem de suas dores. Assim sendo, podemos supor que o surgimento do câncer no útero expressa a dor da rejeição materna, estando o tumor em um órgão diretamente ligado à geração, à maternidade. Acolhendo os ruídos do corpo, Freud (1914[1915], p. 99) ressalta a organização hipocondríaca como a retirada do 'interesse da libido do mundo externo e dos objetos de amor, concentrando-a no órgão que lhe prende atenção'. Histeria e hipocondria aproximaram a psicanálise do fenômeno psicossomático, defrontando-a com desafios que não eram facilmente convocados à palavra, à expressão da vida onírica e fantasmática, à elaboração dos trabalhos de luto; enfim, à montagem de uma história nos moldes de um romance familiar (TEIXEIRA, 2006, p.24). Ao defrontar-se com o câncer, G vê concretamente a sua condenação à morte. Revela que, ao descobrir a doença, pensa em um primeiro momento em não tratar e simplesmente esperar a morte. Mas encontra no apoio e carinho do esposo e filhos a motivação para o enfrentamento necessário. Desvela a ambiguidade de seu sentimento, a pulsão de vida e de morte, a vontade de deixar-se morrer e a luta para viver. Enfrenta o tratamento com muitas dores, buscando neste momento o cuidado de sua mãe e de seu pai, tentando resgatar relações arcaicas que foram abruptamente rompidas. G sempre manteve contato com sua mãe, mesmo estando distante e, neste momento de tamanho sofrimento, vai em busca de seu pai. Encontra-o morando em uma cidade vizinha e surpreende-se com o apoio e auxílio que passa a receber. A partir deste momento, constituiu-se uma relação fundamental para o tratamento de G. Durante as sessões, é possível analisar que, ao deparar-se com sua história passada, tão diretamente ligada ao desejo de morte, G. consegue se desvencilhar destes elos doentios que a mantinham presa. Passa a olhar para a vida que conseguiu construir de forma muito resiliente. Através deste resgate, rompe com estas relações adoecidas, percebendo de maneira única as diferenças entre a sua forma de maternar seus filhos daquela que observou em sua mãe. Uma vez inscritas no corpo as trocas afetivas e linguísticas vividas com o meio ambiente, torna-se possível ter acesso a elas novamente desde que se saiba interrogar o corpo e decifrar sua linguagem. Decifrar esta linguagem por meio dos disfarces, dos sintomas e dos sonhos devidos ao recalcamento permitiu a Freud compreender que o modo de expressão do psiquismo no corpo é essencialmente metafórico e analógico e que, para ser apreendido, ele exige, além de uma escuta atenta, um trabalho de interpretação. [...] Por querer conter o sofrimento psíquico, o corpo torna-se uma metáfora viva desse sofrimento (DUMAS, 2004, p. 12). Desta forma, entende-se que o corpo torna-se a fala do sofrimento. No caso de G, essa fala comunica de forma especial a 53 Diaphora| Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 50-57 dor do abandono desta mãe, e este mesmo adoecimento se faz na busca pelo resgate desta relação através dos cuidados que a paciente necessita. Posteriormente, será elucidado que, quando a paciente consegue distanciar-se da figura da mãe, é que ela pode ir novamente em busca do atendimento médico, tendo a vontade de fazer os exames necessários para avaliar suas condições físicas. Descobre que o câncer estava em remissão, não necessitando mais de nenhum tratamento adicional. Desvelando transferência com o paciente oncológico Foi com a descoberta da transferência que Freud inaugurou o método psicanalítico. Ele percebeu que os pacientes necessitavam de algo que iria além de simplesmente reviver seus traumas, para que, então, surgisse a manifestação daquilo que havia sido recalcado. Para que isso pudesse ocorrer, havia a necessidade de viabilizar a estes sujeitos meios os quais, mais do que reviver, possibilitariam ressignificar os traumas sofridos. O fenômeno da transferência é a chave da invenção desse novo método de tratamento. A Überträgung, termo alemão que além de transferência significa também transmissão, contágio, tradução, versão, e até audição, ganhará, enquanto conceito psicanalítico, o sentido de estabelecimento de um laço afetivo intenso, que se instaura de forma quase automática e independente da realidade, na relação com o médico, revelando o pivô em torno do qual gira a organização subjetiva do paciente (MAURANO, 2006, p. 16). Portanto, a transferência pode ser compreendida como o campo onde se estabelece o tratamento, sendo o lugar que este sujeito tem junto ao analista para confiar seus sentimentos, desejos, fantasias e vivências. Já o terapeuta utiliza-se da transferência para analisar as resistências e os demais sentimentos ali investidos pelo paciente, indicando, assim, qual o diagnóstico e as possibilidades de tratamento. Para Lacan, a transferência consiste na imissão que o paciente faz no terapeuta, que é compreendido como o grande Outro, sendo percebido como aquele que detém um saber que virá ao encontro do desejo posto nesta relação. O sujeito inconsciente crê que este Outro possui o conhecimento que ele precisa para libertar-se da experiência traumática. Na clínica com pacientes oncológicos, a transferência se constitui com o mesmo propósito, mas com algumas particularidades que serão abordadas a seguir, sendo ilustrada com o caso de G. Como já foi anteriormente mencionado, o sujeito acometido pelo câncer chega ao atendimento psicológico psíquica e fisicamente muito fragilizado. Além do adoecimento, há outras questões em volta deste sujeito que podem ser classificadas como graves, tais como a falta de dinheiro, de alimentação adequada, falta de moradia, fortes sintomas do tratamento, entre outros sofrimentos que estes pacientes trazem consigo. Desta forma, surge a necessidade de um trabalho investigativo que busque compreender este adoecimento em meio a tantas outras questões que o cercam. Para que isto seja possível, é fundamental o estabelecimento de uma relação de confiança entre o paciente oncológico e o psicólogo que o atende. Portanto, para que esta relação com o terapeuta ocorra, é feito um acolhimento da angústia com que este paciente chega na clínica. A ele é oferecido o apoio que necessita neste momento, buscando trazer a clareza que ele precisa para que consiga sair da posição de condenado à morte e coloque-se como um sujeito desejante pela vida. Abre-se a possibilidade deste perceber-se como sujeito único, ao mesmo tempo em que pode voltar a ver que todos temos nossas dores e males. De fato viver é estar sob estresse. Ser humano é experimentar humilhações, rejeições, mudanças, separações, desapontamentos, fracassos, triunfos, vitórias, gratificações, esperanças e êxitos. Os acontecimentos da vida repercutem na mente, propagam-se pelo corpo, e acabam atingindo a saúde do indivíduo como tal (SILVA, 2000, p. 16). Podemos afirmar, ainda, que ao chegar para o tratamento psicológico este sujeito torna-se a própria dor que necessita de amparo. Isto posto, nesta relação que se estabelece, o psicólogo é aquele que pode se colocar entre o sujeito e sua dor, oferecendo um lugar no entre, que propicia, então, um novo significado deste sofrimento e o surgimento da fonte geradora do adoecimento. Neste sentido, Villa (2008) sugere que a transferência pode também ser compreendida como a apreensão do somático, já que é esta que possibilita o tratamento psíquico. Nos atendimentos com G, ficou claramente estabelecido que, na relação transferencial, ela vivenciava a psicóloga como sua figura materna. Em meio a sua dor, colocava-se como a filha, a criança, trazendo sua necessidade de cuidados, ao mesmo tempo em que fazia a negação faltando às sessões. De forma saudável, G conseguiu depositar nesta transferência suas dores, raivas e afetos, abrindo assim a possibilidade de elaborar suas questões. Cada ser humano precisa para bem de se apossar de suas plenas faculdades mentais abandonar a morada do corpo da mãe, perdê-la, tornando-se sábio de como se faz para reencontrá-la. Assim, quando o psicanalista oferece seu "saber de adulto" para livrar a criança do assujeitamento ao inconsciente dos pais, não faz mais do que querer lhes acelerar 54 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 50-57 a morte da coisa-mãe, para que apareça a representação da mãe, propiciar o saber que nasce da perda (CORSO, 1996, p. 72). Houve um momento em que G abandonou o tratamento, retomando-o posteriormente somente após um encontro com sua mãe. Neste encontro, ela tentou expor a esta mãe um pouco da aflição que emergiu no decorrer das sessões, mas não encontrou ali o apoio que buscava. Ao deparar-se com esta frustração, G consegue então retomar os atendimentos e é, neste momento, que se abre a possibilidade de elaborar alguns de seus traumas. E, não obstante, é provavelmente no retorno de/para esse sofrimento originário que se encontra o ponto onde pode se produzir a mudança, onde a escolha entre permanecer o mesmo e modificar-se modificando o mundo, por um instante se torna possível de novo. Mais além de toda simpatia, de toda a empatia e de toda antipatia, sobrevém uma exigência de reconhecer essa dor e o saber que daí adveio ou não, saber do sofrimento e pelo sofrimento (VILLA, 2008, p. 342). É importante ressaltar que foi também neste momento de sua vida que a paciente passou por uma nova bateria de exames, a fim de avaliar a eficácia do tratamento médico que já havia feito. A angústia e o medo permeavam os atendimentos, demandaram uma compreensão e uma entrega da terapeuta para que G conseguisse deparar-se com as dores psíquicas, juntamente com toda sua fragilidade emocional. Neste período do tratamento pelo qual G passava, a relação transferencial tornou-se seu lugar de amparo e possibilidades. Então, cabe ao profissional da psico-oncologia a importante tarefa de resgatar vida nesses pacientes, englobando os aspectos físicos e psíquicos para, assim, permitir a eles revelarem seus medos, desejos, emoções e sentimentos (CHRISTO; TRAESEL, 2009, p. 77). Recebendo o investimento de desejo oferecido pela terapeuta, a paciente conseguiu apresentar-se como sujeito em busca de seu próprio desejo, sem ter que se submeter novamente ao desejo do outro. Surge, então, a possibilidade de trilhar um novo caminho, liberta do aprisionamento desejante de morte proveniente de sua mãe. Se a constituição está fora do território da escolha, não é menos verdade que há certo grau de liberdade quanto à escolha da posição que podemos adotar diante dela. O destino que daremos às pulsões é aquele que a constituição vai encontrar em nossa vida e que vai se manifestar nas formas que a disposição à transferência vai engendrar (VILLA, 2008, p. 339). Assim, é oferecida a G a possibilidade de separação, mas agora de forma saudável, permitindo a elaboração do abandono sofrido. A paciente usufrui deste momento e, baseando-se na segurança desta relação, consegue compreender a distância existente entre ela e sua mãe, pondo em palavras o sofrimento que durante tanto tempo a atormentou. "Sabe Andrea, eu vivi correndo atrás da minha mãe, sempre eu, sempre eu. Eu queria o amor que nem eu tenho pelo G e a I (filhos), meu deus, não posso nem pensar em fazer com eles que nem ela fez comigo.(pausa) Mas eu acho que ela não tem pra dar. Eu queria que ela me amasse, mas como ela vai me dar uma coisa que ela não tem?" (SIC). Foi esta mesma relação que serviu como um lugar onde a paciente pode lidar com a angústia dos inúmeros exames pelos quais passou. As vésperas destas avaliações médicas, G sempre era tomada de uma angústia que a colocava em estado de alerta, não permitindo que ela descansasse. Este fator se observa nos pacientes de uma forma geral, e falar sobre o receio dos resultados traz o alívio de grande parte desta angústia. Isto revela o quanto esta escuta contribuiu para a diminuição do sofrimento, abrindo caminho para que novamente possa se dar continuidade às elaborações necessárias para o tratamento psíquico. Os atendimentos com pacientes oncológicos têm esta especificidade: a necessidade em lidar sempre com uma demanda urgente que pode surgir a qualquer momento. Esta urgência não se dá sozinha, mas em conjunto com o medo da morte, ou ainda, diante de uma cirurgia, o medo da mutilação, a angústia frente ao desconhecido, mas que sempre é previamente compreendido como um mau momento a ser enfrentado. No decorrer dos atendimentos de G, houve ocasiões em que seu oncologista apontou a possibilidade de se fazer mais algumas sessões de braquiterapia, o que não foi necessário. Mas, em meio à elaboração de seus sentimentos, especialmente aqueles relacionados a sua mãe, e o medo de ter que enfrentar novamente o doloroso tratamento, a paciente conseguiu enfrentar e superar esta fase, tendo o suporte desta relação transferencial. É necessário considerar todos os aspectos, físico, emocional, espiritual, social ou cultural, atingindo a qualidade de vida de todas as pessoas envolvidas no processo de adoecimento, independentemente da fase da doença, ou seja: prevenção do câncer, diagnóstico, tratamento, cura ou a terminalidade (CHRISTO; TRAESEL, 2009, p. 78). Inúmeras vezes, G pontuou que não conseguia falar deste sofrimento com outras pessoas, sendo a psicoterapia o suporte fundamental neste momento. Nesta etapa dos atendimentos, as 55 Diaphora | Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 14(1) | Jan/Ago | 50-57 sessões passavam do tempo previamente estabelecido, sendo esta uma flexibilidade necessária para a evolução da paciente. Diante deste suporte encontrado por G na terapia, ela começou a trazer mais questões que marcaram sua vida e que também podem ser relacionadas ao tumor desenvolvido. Se, por um lado, foi extremamente benéfico, pois se abriu caminho para que sua dor tivesse voz, por outro, houve uma precipitação de seus sentimentos, que foram expostos no ímpeto da busca pela cura de suas dores. Seu sentir estava fragilizado pelo momento do tratamento médico e G tinha um medo real de morrer. Foi necessária uma nova combinação com a paciente, na qual, após estes atendimentos permeados pela profunda dor e sofrimento, ela precisava de um tempo maior que uma semana, sendo marcada nova sessão em quinze dias. Este rearranjo foi fundamental para o bom andamento do tratamento de G, pois ela encontrou amparo e segurança, sabendo que poderia ter o seu tempo e a terapeuta estaria aguardando por ela. Não havia perdas nem abandonos. Portanto, houve a possibilidade de a paciente desenvolver outras formas eficazes de enfrentamento da doença, permitindo a expressão das suas emoções. A partir disso, é necessário enfrentar, lidar, lutar diante do diagnóstico de câncer e sabe-se que o enfrentamento vem sendo um fator relevante para a qualidade de vida, como por exemplo, a potencialização da esperança como estratégia importante para a trajetória do câncer e que pode mudar o transcorrer do tratamento (CHRISTO; TRAESEL, 2009, p. 78). Deste modo, o adoecimento pode receber uma nova significação, mudando a forma como ela se percebia frente ao câncer. Se, antes, sentia-se fraca e incapaz de enfrentar o tratamento, agora percebia a força que já possuía e que, por toda sua vida, manteve-a lutando para sobreviver. Considerações Finais Compreendendo que o sofrimento físico pode ter sua causa em um campo além do fisiológico, podendo ter sua procedência em um local secreto e desconhecido, o fazer do psicólogo se dá na busca desta incógnita que repousa no inconsciente. O trabalho na clínica com pacientes oncológicos pode-se mostrar exaustivo no que diz respeito a acolher o sofrimento tanto físico quanto psíquico apresentado pelo paciente, tendo sempre em vista a busca pela origem psíquica da doença organicamente manifesta. Contudo, mostra-se extremante gratificante diante das possibilidades apresentadas e, na maioria das vezes, muito bem aproveitadas por estes sujeitos. Com o entendimento de que as relações afetivas são inscritas no corpo, pode-se pensar que, se estas se constituem de forma adoecida, há a probabilidade deste corpo também adoecer. Cabe ao psicólogo possibilitar o espaço de segurança que o paciente necessita para compreender suas relações e ressignificá-las, trazendo um novo entendimento sobre a doença. Assim, a clínica com pacientes oncológicos torna-se o local que possibilita esta ressignificação das inscrições subjetivas que levam ao adoecimento. Cada sujeito tem seu tempo para lidar com as questões que o trazem à terapia, mas, no caso do paciente com câncer, este tempo precisa ser muito bem compreendido, uma vez que a possibilidade da morte é concreta, podendo ser esta a questão. Muitas vezes, há a necessidade de avaliar qual a urgência psíquica que deve ser trabalhada, havendo um foco muito bem estabelecido com o paciente, sendo a transferência quem anuncia e conduz este tratamento emergencial. Desta forma, a relação transferencial com o paciente oncológico surge permeada não apenas pelas fantasias, desejos e crenças do paciente, como também pela dor física. No estabelecimento desta relação é esta a dor que surge como a primeira demanda. Aos poucos, abre-se espaço para que o conflito psíquico possa surgir, convocando todos os medos e fantasmas deste paciente a se apresentarem. Referências: ANGERAMI-CAMON, Valdemar Augusto. Tendências em Psicologia Hospitalar. São Paulo: Pioneira-Thomson Learning, 2004. BRASIL, Ministério da Saúde. A situação do câncer no Brasil. Instituto Nacional do Câncer - INCA, 2011. CHRISTO, Zuriel Mello de. TRAESEL, Elisete Soares. Aspectos psicológicos do paciente oncológico e a atuação da psico-oncologia no hospital. Disc. Scientia. Série: Ciências Humanas, S. Maria, v. 10, n. 1, p. 75-87, 2009. CORSO, Diana. Os Caça-fantasmas. In: Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, ano VII, 1996, p. 65-77. DUMAS, Marc. 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