1 A DELAÇÃO PREMIADA E SUA (IN) VALIDADE Á LUZ DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS MARIANA DOERNTE LESCANO RESUMO O presente trabalho de conclusão de curso tem como objetivo analisar, através de argumentos doutrinários e jurisprudenciais, a situação da delação premiada no Brasil, confrontando as normas constitucionais com as normas que estabelecem o instituto. Dessa forma, analisa-se o instituto da delação premiada e sua evolução no ordenamento jurídico. Abordam-se os princípios constitucionais. Também se estuda a delação premiada no direito comparado. Por fim, analisa-se a orientação jurisprudencial sobre o tema. Palavras-chave: Delação Premiada; Instituto; Prêmio; Princípios Constitucionais; Direito INTRODUÇÃO A delação premiada é um fenômeno que cresce cada vez mais, principalmente no Brasil, que ainda não encontrou a fórmula certa para conter a criminalidade. O Estado, diante da necessidade imperiosa de conter o crime e penalizá-lo, ainda não logrou em achar nenhum meio eficaz para punir o criminoso. Utiliza-se de estabelecimentos prisionais que funcionam como meros depósitos degradantes de seres humanos, mas não alcançam ressocialização dos apenados. A criminalidade aumenta e a cada dia a violência campeia sem freios, o Estado fica cada vez mais impotente diante desta triste realidade: de um lado, o crescimento das organizações criminosas e sua modernização e, de outro lado, um sistema penal repressivo emperrado, despreparado e vulnerável. Assim, diante do quadro nebuloso, onde o poder público tenta de todas as formas conter os avanços das organizações criminosas, surge a figura da delação premiada, como solução para essa disparidade. Com o instituto, o legislador acredita ter encontrado a solução perfeita para o problema, no sentido de que bastaria oferecer um prêmio ao infrator e ele passaria a ser colaborador da investigação criminosa, fazendo assim o trabalho que o Estado não tem competência para cumprir, e passando por cima de conquistas históricas de um direito penal que contempla os princípios constitucionais. Nesta senda, o presente trabalho analisa a delação premiada e a sua (in) validade à luz dos princípios constitucionais. No primeiro capítulo, é analisada a origem da delação premiada no Brasil, é feito um comparativo com a ética e a moral, se traça um panorama sobre a sua evolução no ordenamento jurídico desde seu surgimento com a Lei 8.072/90, e por fim se conceitua a delação premiada no Brasil. No segundo capítulo, são tratados os princípios constitucionais, especificadamente aqueles que são feridos pela utilização da delação premiada. O terceiro capítulo contempla a delação premiada no direito comparado, para se fazer o comparativo com a utilização do instituto em outros países e no Brasil. 2 No último capítulo, é feita a análise da delação premiada nas jurisprudências do STF, STJ e TRF da 4ª. Região. Assim, o objetivo do estudo é analisar a delação premiada, entender as raízes deste instituto, mostrar que sua utilização fere os princípios maculados pela Constituição Federal do nosso País e estudar como a jurisprudência vem enfrentando o tema. 1 A DELAÇÃO PREMIADA: ASPECTOS GERAIS 1.1 A EVOLUÇÃO DA DELAÇÃO PREMIADA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO A delação premiada ocorre quando um investigado, ao ser interrogado em qualquer fase da investigação criminal, policial ou em juízo, confessa a autoria de um fato criminoso, e igualmente atribui a um terceiro a participação no delito como seu comparsa. A Legislação Penal Brasileira recepciona pela primeira vez a delação premiada na Lei nº 8.072/90 (Lei dos crimes hediondos). Atribuindo o benefício na extorsão mediante sequestro e nos crimes hediondos ou assemelhados praticados por bando ou quadrilha. 1.4.1 Lei 8.072/90, lei dos crimes hediondos O legislador constituinte restringiu, no inciso XLIII do artigo 5º da Constituição Federal, direitos e garantias fundamentais do cidadão ao estatuir que a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos 1. Elaborado pelo Deputado Roberto Jefferson, Relator na Comissão de Constituição, Justiça e Redação, o projeto de Lei, em virtude de acordo entre todos os líderes de partidos políticos e sem nenhuma discussão mais aprofundada, foi aprovado pela Câmara dos Deputados, em seguida pelo Senado Federal, transformando-se na Lei 8.072/90, promulgada por dois vetos (artigo 4 e 11), pelo Presidente da República, em 25.07.1990 2. O legislador procurou amenizar a responsabilidade criminal do delinquente, que com sua colaboração fornece às autoridades dados que facilitem a liberação do sequestrado. Surge, então, no ordenamento jurídico brasileiro a delação premiada. As disposições, como toda a Lei nº 8.072, foram introduzidas em nossa legislação sem qualquer cuidado, como se o legislador desconhecesse o nosso Código Penal, os princípios que norteiam o direito criminal e a nossa realidade social. Certamente, a lei, mais uma vez, não havia observado o conselho de Pontes de Miranda: "As leis devem herdar a clareza e os achados de expressão que vêm sendo capitalizados na história legislativa 3. O artigo 7º da Lei introduziu no artigo 159 do Código Penal, extorsão mediante sequestro, o parágrafo 4º, que estabelece uma causa redutora de pena em favor de corréu ou de partícipe, que colabore com a autoridade competente 4 Lei 8.072, artigo 7º 1 FRANCO, Silva Alberto. Crimes hediondos. 5. ed. São Paulo: RT, p. 100. FRANCO, Silva Alberto. Crimes hediondos. 5. ed. São Paulo: RT, p. 95. 3 JESUS, Damásio Evangelista de. O fracasso da delação premiada. São Paulo: Boletim IBCCRIM, n. 21, p. 01, set. 1994. 4 FRANCO, Silva Alberto. Crimes hediondos. 5. ed. São Paulo: RT, p. 354. 2 3 Ao art. 159 do Código Penal fica acrescido o seguinte parágrafo: §4º Se o crime é cometido por quadrilha ou bando, o co-autor que denunciá-lo à autoridade, facilitando a libertação do sequestrado, terá sua pena reduzida de um a dois terços. Então, com o referido Diploma Legal, institui-se no Brasil, importado do direito Italiano, a delação premiada, que era aplicada somente a dois tipos penais: a extorsão mediante sequestro e a quadrilha ou bando. Veja-se que o benefício somente será concedido se o crime for praticado por quadrilha ou bando, que exige mais de três integrantes. Assim, se cometido por número inferior de pessoas, o delator não fará jus ao prêmio. Diante dessa imperfeição técnica e da crítica recebida, a Lei 9.269/96 determinou nova redação ao artigo 4º, do artigo 159 do Código Penal: “Se o crime é cometido em concurso, o concorrente que denunciar à autoridade, facilitando a libertação do sequestrado, terá sua pena reduzida de um a dois terços.” O novo texto ficou em maior sintonia com a finalidade do instituto, a vida do sequestrado, visto que a delação foi estendida ao concurso de agentes, desprezando a exigência anterior de ter sido o delito praticado por quadrilha ou bando. Segundo Alberto Silva Franco, a delação premiada busca evitar prováveis desenlaces trágicos como possível morte da pessoa sequestrada, que se inserem na lógica do processo que envolve a ação extorsiva mediante sequestro. Busca-se, também o desmantelamento da associação criminosa e a efetiva punição de seus integrantes 5. Mister ressaltar que a redução de pena concedida não afasta os gravames decorrentes da hediondez, tais como: impossibilidade de fiança, de liberdade provisória, de indulto ou anistia, de regime fechado, etc. A denúncia precisa ser eficaz, ou seja, deve contribuir para facilitar a efetiva libertação do sequestrado, que corre risco de vida. Entretanto, se não ocorrer a libertação, apesar da colaboração do delator, e mesmo que por circunstâncias alheias à sua vontade, não receberá o direito ao benefício da delação premiada 6. O colaborador deve concorrer ou contribuir para a investigação policial ou processo criminal, sendo certo que tal cooperação deve ser, ao mesmo tempo, efetiva e voluntária. A efetividade é medida pelos resultados que advém da cooperação, isto é, pela concretização, mercê da contribuição realizada. A voluntariedade é reconhecível no ato de vontade do indiciado ou do acusado no sentido de cooperar com a autoridade policial ou judiciária 7. Ainda importante que a colaboração do agente logre objetivos de identificar os demais coautores ou partícipes do fato criminoso, de localizar a vítima sem nenhum agravo à sua integridade física. Então, para a sua concessão não bastam a voluntariedade e relevância, se faz necessária também a eficácia objetiva da colaboração, condicionada à efetiva libertação da pessoa com vida do cativeiro. Deslocado este requisito, vez que em determinados casos o insucesso da libertação da 5 FRANCO, Silva Alberto. Crimes hediondos. 5. ed. São Paulo: RT, p. 354. FRANCO, Silva Alberto. Crimes hediondos. 5. ed. São Paulo: RT, p. 359. 7 FRANCO, Silva Alberto. Crimes hediondos. 5. ed. São Paulo: RT, p. 357. 6 4 vítima pode ocorrer pela incapacidade policial, nada tendo a ver com a colaboração prestada pelo investigado. A denúncia a que se refere a lei deve ser voluntária e pode consistir em informações prestadas à autoridade policial, judicial ou ministerial. Deve ser também relevante, ou seja, contribuir de forma significativa para a efetiva libertação da pessoa encarcerada. Poderá consistir também em auxílio voluntariamente prestado à autoridade. O importante é que a informação ou o auxílio tenha relevância para o contexto em que se desenvolve o processo de libertação do sequestrado 8. Pelas circunstâncias legais, a pena será obrigatoriamente reduzida, desde que se configure relevância, voluntariedade e eficácia da denúncia. A dosimetria da redução fica a encargo do Juiz, que analisa do caso concreto. O artigo 8º da referida lei tratou dos crimes praticados em quadrilha ou bando, tipificado no artigo 288 do Código Penal. Art. 8º Será de três a seis anos de reclusão a pena prevista no artigo 288, do Código Penal, quando se tratar de crimes hediondos, prática da tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins ou terrorismo. Parágrafo único. O participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de um a dois terços. A lei prevê que o participante ou associado que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, envolvidos em crimes hediondos ou assemelhados, possibilitando seu desmantelamento, devem ter a pena reduzida de um terço a dois terços. Assim, neste caso o desmantelamento de quadrilha é requisito obrigatório, para que o imputado possa ser agraciado com o benefício premial9. Importante ressaltar que a lei desmantelamento do bando ou quadrilha. não explica o que seria o 1.4.2 A delação no crime organizado Por organização criminosa subentende-se, no mínimo, que algumas pessoas tenham se organizado, distribuindo tarefas, com o fim de cometer crimes 10. Na sociedade moderna cada vez mais as pessoas vem se agrupando com o objetivo de exercer atividades criminais, tanto contra o patrimônio, contra a vida, ou delitos relacionados ao tráfico de entorpecentes. Em resposta a essa situação surgiu a Lei 9.034/95, que recebeu o nome de Lei contra o Crime Organizado. Segundo Adalberto Silva Franco, a lei não definiu organização criminosa, desprezando a linha inicial do projeto. Não definiu, através de seus elementos essenciais, o crime organizado. 11. Em 2001, entrou no nosso ordenamento jurídico um novo texto legislativo que modificou a redação do artigo 1º e 2º, da Lei 9.034/95, e ainda 8 10 LEAL, JOÃO JOSÉ. Crimes hediondos: aspectos político-jurídicos da Lei nº 8.072/90. São Paulo: Atlas, 1996, p. 273. 9 LEAL, JOÃO JOSÉ. Crimes hediondos: aspectos político-jurídicos da Lei nº 8.072/90. São Paulo: Atlas, 1996, p. 273. SILVA, Eduardo Araujo da. Crime organizado procedimento probatório. São Paulo: Atlas 2003, p. 25. 11 FRANCO, Silva Alberto. Crimes hediondos. 5. ed. São Paulo: RT, p. 222. 5 incorporou dois novos institutos ambiental e infiltração policial. investigativos: interceptação Para tentar combater, de forma mais eficiente, esse novo tipo de crime, o legislador usou novamente da delação premiada, que já era empregada na Lei dos Crimes Hediondos. Assim, reza o artigo 6º da Lei 9.034/95: Nos crimes praticados em organização criminosa, a pena será reduzida de um a dois terços quando a colaboração espontânea do agente levar ao esclarecimento de infrações penais e sua autoria. A lei não esclarece se é exigido para a obtenção do benefício o cometimento de “infrações penais”, ou se estariam incluídas as contravenções penais. O requisito básico para a delação premiada ser concedida na lei ora em exame consiste na “colaboração espontânea do agente”. Agente, aqui, abrange qualquer pessoa que tenha tomado parte da organização criminosa e que em função disso, resolva contribuir espontaneamente. Aqui não basta a colaboração ser voluntária, precisa ser espontânea, entretanto, não é necessário que o agente esteja arrependido do ilícito penal 12. A lei não estipula o momento da delação, subentende-se que possa ser realizada em qualquer fase, e até mesmo no cumprimento da pena. A única exigência impostergável da lei é que a colaboração seja eficaz, isto é, tem que levar ao esclarecimento de infrações penais e de sua autoria. Desde que comprovado esse resultado, que é o esperado pela lei, não importa em que momento deu-se a colaboração 13. Sendo eficaz a colaboração, o agente passa a contar com o direito certo e líquido de ter sua pena reduzida de um a dois terços. O quantum da redução será determinado pelo juiz, levando em conta, principalmente, o grau de eficácia da colaboração 14. Ainda, mister ressaltar que a lei não trata a delação premiada da mesma maneira que a figura tradicional aproveitada como meio de prova em nosso processo penal. Adalberto Aranha, ao lecionar sobre a delação premiada, afirma que consiste na afirmativa feita por um acusado, ao ser interrogado em juízo ou ouvido na polícia, e pela qual, além de confessar a autoria de um fato criminoso, igualmente atribui a um terceiro a participação como seu comparsa 15 . No contexto agora analisado, estamos diante de uma colaboração premiada, vez que não é exigência que o investigado se autoincrimine. Somente lhe é exigido que sua ajuda conduza ao esclarecimento de infrações penais e sua autoria. 12 GOMES, Luiz Flávio. Crime organizado: enfoques criminológicos jurídicos e político criminal (Lei 9.034/95) São Paulo: RT, 1995, p. 135. 13 GOMES, Luiz Flávio. Crime organizado: enfoques criminológicos jurídicos e político criminal (Lei 9.034/95) São Paulo: RT, 1995, p. 135. 14 GOMES, Luiz Flávio. Crime organizado: enfoques criminológicos jurídicos e político criminal (Lei 9.034/95) São Paulo: RT, 1995, p. 135. 15 ARANHA, Adalberto José Q.T. de Camargo. Da prova no processo penal. 7. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 132. 6 1.4.3 A delação premiada, nos crimes contra o sistema financeiro atual, a ordem tributária, econômica e relação de consumo A Lei nº 9.080/95 institui a delação premiada como prêmio ao coautor ou partícipe de crimes cometidos contra o sistema financeiro nacional ou contra a ordem tributária, econômica e as relações de consumo, previstos na Lei nº 7.492/96, para os crimes contra o sistema financeiro, e a Lei 8.137/90, para crimes contra a ordem tributária, econômica e relações de consumo. As leis foram elaboradas com a finalidade exclusiva de se combater as condutas reprováveis e nefastas que se disseminavam no campo do sistema financeiro e da ordem tributária. Quando da feitura das leis, nenhum prêmio foi conferido ao infrator que colaborasse de maneira espontânea ou voluntária. O direito tributário somente regulava as infrações fiscais, ficando a encargo do direito penal a disciplinalização e penalização do delito fiscal. No artigo 138 do Código Tributário Nacional, criou-se a denúncia espontânea: Art. 138. A responsabilidade é excluída pela denúncia espontânea da infração, acompanhada, se for o caso, do pagamento do tributo devido e dos juros de mora, ou do depósito da importância arbitrada pela autoridade administrativa, quando o montante do tributo dependa de apuração. Parágrafo único. Não se considera espontânea a denúncia apresentada após o início de qualquer procedimento administrativo ou medida de fiscalização, relacionados com a infração. Assim, a denúncia espontânea passou a integrar o direito tributário, fenômeno próprio aos ilícitos fiscais. Com a nova tendência já maculada por outras leis, de oferecer prêmio ao infrator que colaborasse com a justiça, surgiu a Lei 9.080/95, com a finalidade única e exclusiva de fazer ingressar nos crimes de colarinho branco o instituto da delação premiada. Entretanto, o fenômeno agora viria não mais na qualidade de delação, mas de confissão espontânea 16. Art. 1º. Ao art. 25 da Lei 7.492/95, é acrescentado o seguinte parágrafo: § 2º Nos crimes previstos nesta Lei, cometidos em quadrilha ou co-autoria, o co-autor ou partícipe que através de confissão espontânea revelar à autoridade policial ou judicial toda a trama delituosa terá a sua pena reduzida de um a dois terços. § 2º Ao artigo 16 da Lei 8.137/90, é acrescentado o seguinte parágrafo único: Parágrafo único. Nos crimes previstos nesta Lei, cometidos em quadrilha ou co-autoria, o co-autor ou partícipe que através de confissão espontânea revelar à autoridade policial ou judicial toda a trama delituosa terá a sua pena reduzida de um a dois terços. 16 GOMES, Luis Flávio, OLIVEIRA, William Terra de e CERVINI, Raúl. Lei de lavagem de capitais. São Paulo: RT, 1998, p. 343. 7 Veja-se que, nesse caso, a norma exige uma confissão espontânea, e que revele toda a trama delituosa. A confissão deverá desnudar todo o iter criminis e apontar os que dele participam, sendo certo que tais elementos deverão ser objetos de comprovação probatória, para ensejar a aplicação do benefício. O crime deve ser oriundo de atuação de quadrilha (artigo 288 do Código Penal) ou resultante de agentes integrados, em qualquer caso, pelo próprio delator 17. A confissão espontânea poderá ocorrer tanto na fase inquisitorial ou na fase judicial, perante a autoridade policial, ou perante a autoridade judiciária. Mister ressaltar que o agente deve revelar toda a trama delituosa. Rodolfo Tigre Maia leciona que a norma ora analisada deveria, além de conceder um benefício, fixar sanções específicas para os casos em que a delação for mentirosa, mormente pelas graves consequências quando difundida pelos meios de comunicação de massa, e fornecer condições para assegurar-se a incolumidade física do delator 18. 1.4.4 A delação nos crimes sobre lavagem de dinheiro No seu artigo 1º, parágrafo 5º, a Lei 9.613/98 posicionou-se nestes termos: § 5º A pena será reduzida de um a dois terços e começará a ser cumprida em regime aberto, podendo o juiz deixar de aplicá-la ou substituí-la por pena restritiva de direitos, se o autor, co-autor ou partícipe colaborar espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações penais e de sua autoria ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime. O denunciado deve prestar esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações penais e de sua autoria, isso significa delação, precisamente porque, para além de proclamar sua culpabilidade, acaba por envolver outras pessoas, de outro lado, se seus esclarecimentos versam unicamente sobre a localização dos bens, direitos ou valores objetos do crime, estamos diante de uma mera confissão. 19 Na lei em questão verifica-se que para o delator obter a premiação pretendida não é preciso que ambos os resultados aconteçam, basta um só: a apuração das infrações e sua autoria OU localização dos bens. Mas necessário ressaltar que a conjunção “e”, no trecho “infrações penais e de sua autoria”, é inafastável, não basta a apuração somente de uma delas; é necessário que a colaboração desvende tanto autoria como infração 20. Importante observação a ser feita é a seguinte: o dispositivo legal em questão, a rigor, não prevê somente a “delação premiada”, que ocorre quando o sujeito admite sua responsabilidade no delito e incrimina outras pessoas, senão também a “confissão premiada”. 17 MAIA, Rodolfo Tigre. Dos crimes contra o sistema financeiro nacional. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 150. 18 MAIA, Rodolfo Tigre. Dos crimes contra o sistema financeiro nacional. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 151. 19 GOMES, Luis Flávio, OLIVEIRA, William Terra de e CERVINI, Raúl. Lei de lavagem de capitais. São Paulo: RT, 1998, p. 344. 20 GOMES, Luis Flávio, OLIVEIRA, William Terra de e CERVINI, Raúl. Lei de lavagem de capitais. São Paulo: RT, 1998, p. 345. 8 Assim, se ele presta esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações penais e de sua autoria, isso significa delação, precisamente porque, para além de proclamar sua culpabilidade, acaba por envolver outras pessoas, de outro lado se seus esclarecimentos versam unicamente sobre a localização dos bens, direitos ou valores objetos do crime, estamos diante de uma mera confissão (que será, a posteriori, premiada) 21. O Diploma legal, ao exigir que seja a colaboração espontânea, limita que a ideia provenha do próprio delator. Porque não basta que a colaboração seja “voluntária” (ato livre) – requer-se um plus, que é a espontaneidade. A colaboração pode ocorrer em qualquer fase da persecução penal. A lei não estabelece qualquer limite temporal. Supletivamente, o legislador conferiu ao juiz uma dupla possibilidade: a) deixar de aplicar a pena (perdão judicial); b) substituí-la por pena restritiva de direitos (CP, artigo 43). Cabe ao juiz, conforme seu prudente critério, com base na razoabilidade, aferir os casos em que seja justo um ou outro benefício. Saliente-se que sendo a colaboração inteira e rapidamente eficaz, de tal modo não a só permitir a descoberta de outras informações como também da autoria, bem como a localização dos bens, nesse caso poderia ser adequado o perdão judicial, nunca se esquecendo do benefício intermediário que também pode ser aplicado, pena restritiva de direito, independente da pena aplicada 22. Toda essa sistemática, entretanto, somente irá vigorar se efetivamente os esclarecimentos surtiram efeitos na apuração das infrações penais, objetos da investigação e, também, se tornaram possível conhecer os autores do crime ou a localização de bens, direitos e valores objetos do crime. 1.4.5 A delação premiada na lei 9.807/99 A Lei nº 9.807/99 dispõe sobre o sistema de proteção a vítimas e testemunhas. Na Lei em questão, tem-se a medida premial ensejando a extinção da punibilidade do agente ou a redução da penalidade porventura imposta. Vejase o texto legal Art. 13. Poderá o juiz, de ofício ou a requerimento das partes, conceder o perdão judicial e a consequente extinção da punibilidade ao acusado que, sendo primário, tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e o processo criminal, desde que dessa colaboração tenha resultado: I - a identificação dos demais co-autores ou partícipes da ação criminosa; II - a localização da vítima com a sua integridade física preservada; III - a recuperação total ou parcial do produto do crime. Parágrafo único. A concessão do perdão judicial levará em conta a personalidade do beneficiado e a natureza, circunstâncias, gravidade e repercussão social do fato criminoso. 21 GOMES, Luis Flávio, CERVINI, Raul, OLIVEIRA, Willian Terra de. Lei de lavagem de capitais. São Paulo: RT, 1998, p. 344. 22 GOMES, Luis Flávio, CERVINI, Raul, OLIVEIRA, Willian Terra de. Lei de lavagem de capitais. São Paulo: RT, 1998, p. 345. 9 Art. 14. O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime, na localização da vítima com vida e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de um a dois terços. O Diploma legal, ao prever hipóteses de benefícios àquele que, concorrendo para a prática de crime, presta colaboração voluntária à persecução estatal, trouxe a iume intrincado debate no meio jurídico. Em especial aos artigos 13 e 14, que, respectivamente, disciplinam hipóteses de concessão de perdão judicial e de causa de diminuição de pena 23. No artigo 13, o perdão judicial está subordinado ao concurso de condições elencados, que devem ser apreciados pelo juiz. Ainda exige a colaboração voluntária por parte do agente. O artigo 14 reconhece a existência de uma causa obrigatória de redução de pena na colaboração voluntária do indiciado ou acusado no curso da investigação criminal ou do processo judicial, que possibilite a identificação dos demais coautores ou partícipes, a localização da vítima com vida e/ou a recuperação total ou parcial do produto do crime. Assim, essa nova égide normativa inovou vez que além de acolher o instituto do perdão judicial, estendeu-se o benefício a todos os crimes cometidos em concurso de pessoas. A colaboração precisa esclarecer algum fato objetivo: ou a identificação dos comparsas, ou a localização da vítima, viva, ou a recuperação total ou parcial do produto do crime 24. Os pré-requisitos de ordem objetiva não são cumulativos, mas devem alternativamente ser considerados. O imprescindível é ter sido a contribuição voluntária e efetiva, isto é não resultante de nenhuma coação externa irresistível e caracterizada pela presença positiva e interessada do acusado. A efetividade, por isso, não pode ser confundida com a eficácia da colaboração. Auxílio efetivo é aquele caracterizado pela participação ativa do acusado na realização das diligências, na demonstração de um especial empenho pessoal no exitoso desdobramento das investigações. Não que necessite o acusado de pessoalmente imiscuir-se nas investigações. Contudo, pessoalmente deverá colaborar voluntária e de maneira permanente, estável, real e interessada no sucesso da descoberta do fato, da autoria do fato e na recondução da realidade o quanto possível ao seu estado quo ante 25. Outro ponto importante do referido Diploma Legal é o artigo 13, que para alcançar o perdão judicial a pessoa do acusado necessariamente deve ser réu primário, requisito não necessário no artigo 14. Pela primeira vez o dispositivo legal tenta ir ao encontro do princípio da isonomia, pois prevê os prêmios a todos os imputados (indiciados ou acusados) que cometerem crimes associativos (em concurso de agentes) na qualidade de autores, coautores ou partícipes. 23 MORAES, Rodrigo Lennaco de. Colaboração premiada no tribunal do júri. IBCcrim, ano 8, nº. 98, p. 7. 24 AZEVEDO, David Teixeira de. A colaboração premiada num direito ético. São Paulo: Boletim IBCcrim, ano 7, n. 83, p. 6. 25 AZEVEDO, David Teixeira de. A colaboração premiada num direito ético. São Paulo: Boletim IBCcrim. v. 7, n. 83, p. 5-7, out. 1999. 10 1.4.6 A delação premiada na nova lei de tóxicos A Lei 11.343/06 consagrou a delação premiada como causa de diminuição de pena, no seu artigo 41. Art. 41. O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de um terço a dois terços. Segundo Eugênio Pacelli a norma é de cunho imperativo constituinte do direito subjetivo do imputado, uma vez demonstrada sua efetiva participação, tanto no curso da investigação quanto na fase de ação penal 26. Na Lei em tela para que o denunciado seja merecedor do benefício, é necessário que sua colaboração seja voluntária e ainda eficaz na identificação de demais autores e na recuperação total ou parcial do produto do crime. Diferente do regularizado pela Lei 9.613/98, que prevê o benefício quando investigado ajudar no conhecimento de infrações penais e de sua autoria ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime, na Lei de Tóxicos está presente a conjugação “e”, sendo requisito para a diminuição de pena que o acusado colabore na identificação dos demais coautores ou partícipes do crime e na recuperação total ou parcial do produto do crime. Assim, o benefício somente será concedido quando os dois requisitos forem alcançados, caso o contrário a delação não terá o efeito premial. 1.5 CONCEITO DE DELAÇÃO PREMIADA NO BRASIL A delação premiada surge como uma novidade no ordenamento jurídico penal de nosso País, entretanto, não apresentando uma definição clara. O instituto deixa um aspecto pejorativo por onde passa, diante da conotação de traição que contém. Tanto é verdade que a massa carcerária o define como “caguete”. Assim, em nome de um controvertido Direito Penal funcionalista, utilitário e pragmático, que somente se preocupa com o resultado final e simbólico, estão pretendendo, no Brasil, enraizar a delação premiada 27. Em um entendimento amplo a delação premiada consiste na denúncia que um dos coautores ou partícipe faz à autoridade, no sentido de responsabilizar seu comparsa e ainda confessar sua autoria na prática delitiva. Quando se realiza o interrogatório de um réu e este, além de admitir a prática do fato criminoso do qual está sendo acusado, vai além e envolve outra pessoa, atribuindo-lhe algum tipo de conduta criminosa, referente à mesma imputação, ocorre a delação 28. Note-se que ela somente tem valor se o interrogado, além de atribuir a outrem a prática do crime, também confesse a autoria. Negar a autoria e imputar a terceiro é mero testemunho, e não delação 29. 26 27 28 29 OLIVEIRA, Eugênio Pacceli de. Curso de processo penal. 9. ed. Rio de Janeiro: Del Rey, 2007, p. 308. GOMES, Luis Flávio, CERVINI, Raul, OLIVEIRA, Willian Terra de. Lei de lavagem de capitais. São Paulo: RT, 1998, p. 347. NUCCI, Guilherme de Souza. O valor da confissão como meio de prova no processo penal. São Paulo: RT, 1999, p. 213. NUCCI, Guilherme de Souza. O valor da confissão como meio de prova no processo penal. São Paulo: RT, 1999, p. 213. 11 Adalberto José Aranha, sobre o tema, leciona: 30 A delação ou chamamento de co-réu consiste na afirmativa feita por um acusado, ao ser interrogado em juízo ou ouvida na polícia, e pela qual, além de confessar a autoria de um fato criminoso, igualmente atribui a um terceiro a participação como seu comparsa. Luiz Flávio Gomes sustenta que ocorre a chamada delação premiada quando o acusado não só confessa sua participação no delito imputado (isto é, admite sua responsabilidade), senão também delata, incrimina outro ou outros participantes do mesmo fato, contribuindo para o esclarecimento de outro ou outros crimes e sua autoria 31. Também denominada ‘chamamento de cúmplice’, ocorre quando no interrogatório o réu, além de reconhecer sua responsabilidade, incrimina outro, atribuindo-lhe participação 32. Veja-se que o importante é o delator ter assumido sua culpa na empreitada ilícita, somente assim estamos diante da delação premiada com valor probatório, pois de outra forma poderia somente estar querendo se esquivar de qualquer punição pelo delito cometido. A delação é acompanhada da qualificadora premiada. Como tal entende-se a existência de uma recompensa, de uma remuneração. O prêmio previsto em lei poderá ser a redução da pena de um a dois terços ou perdão judicial, resultando na extinção da punibilidade 33. Ressalta-se que o benefício somente pode ser aplicado pelo juiz sentenciador, que deve fundamentar sua aplicação. Assim, não se pode falar de acordos entre defesa e acusação. Note que não poderia ser de outra forma, pois não se poderia premiar o delator com a impunidade ou a sua exclusão do processo pelo órgão acusador, como ocorre nos Estados Unidos e na Itália 34. No ordenamento jurídico brasileiro vigoram os princípios da indivisibilidade e da indisponibilidade da ação penal, com o que não se pode falar eventualmente em se dar como recompensa a impunidade, a exclusão do processo, a renúncia ou qualquer outro benefício, mesmo que prometido pelo Ministério Público 35. Este benefício concedido pela colaboração é uma medida de política criminal já que, de um lado, interessa ao Estado que o criminoso interrompa sua ação delituosa e, de outro, que permita a descoberta de crimes de difícil elucidação. Assim, a proposição principal da delação é desnudar as etapas do iter criminis, fornecendo elementos probatórios da materialidade e da completa autoria do ilícito penal. 30 ARANHA, Adalberto José Q.T. de Camargo. Da prova no processo penal. 7. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 132. 31 GOMES, Luis Flávio, CERVINI, Raul, OLIVEIRA, Willian Terra de. Lei de lavagem de capitais. São Paulo: RT, 1998, p. 344. 32 TOURINO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 3. v. 27. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva 2005, p. 205. 33 ARANHA, Adalberto José Q. T. de Camargo. Da prova no processo penal. 7. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 139. 34 ARANHA, Adalberto José Q. T. de Camargo. Da prova no processo penal. 7. ed.rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 139. 35 ARANHA, Adalberto José Q. T. de Camargo. Da prova no processo penal. 7. ed.rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 139. 12 A delação premiada, a despeito da ausência de previsão legal, deve ser voluntária, isto é, produto da livre manifestação pessoal do delator, sem sofrer qualquer tipo de pressão física, moral ou mental, representando, em outras palavras, intenção ou desejo de abandonar o empreendimento criminoso, sendo indiferentes as razões que o levam a essa decisão. Não é necessário que seja espontânea, sendo suficiente que seja voluntária: há espontaneidade quando a ideia inicial parte do próprio sujeito, há voluntariedade, por sua vez, quando a decisão não é objeto de coação moral ou física, mesmo que a ideia inicial tenha partido de outrem, como da autoridade, por exemplo, ou mesmo resultado de pedido da própria vítima 36. Para Guilherme de Souza Nucci, a delação premiada é um contrato crítico entre o Estado e o criminoso, além de incentivar um ato moralmente reprovável, que é alcaguetagem. Pode gerar, ainda, erros judiciários, pois seria possível haver delações falsas, somente para receber a recompensa prometida por lei 37. O dispositivo da delação premiada, como medida de política criminal, procura se enquadrar no direito que tem o Estado de, em defendendo a sociedade, premiar os que colaboram com os princípios e valores básicos. Há uma relação de custo benefício na qual é sintomático que as garantias dos acusados se mostram como o maior empecilho na (in) eficiência do Estado de fazer justiça. 38 Nesse mesmo esteio, a aplicabilidade do instituto, além de duvidosa, somente visa o bem Estatal. É sabido que os "preceitos" que regem o submundo do crime não toleram alcaguetes, sendo certa a execução sumária de quem viesse a transgredi-los. Assim, nenhum delinquente se sentiria encorajado a "entregar" os comparsas ante a certeza da desforra mortal. Em remate, os próceres desta tese sustentam que os infratores não confiam em que o Estado cumpra a sua parte, uma vez que não dispõe de condições materiais para garantir a integridade física do delator e de sua família 39. Delação premiada consiste na redução de pena (podendo chegar, em algumas hipóteses, até mesmo à total isenção de pena) para o delinquente que delatar seus comparsas, concedido pelo juiz na sentença final condenatória, desde que sejam satisfeitos os requisitos que a lei estabelece 40. Como se tivesse descoberto uma poção mágica, o legislador contemporâneo acena com a possibilidade de premiar o traidor – atenuando sua responsabilidade criminal –, desde que delate seu comparsa, facilitando o êxito da investigação das autoridades constituídas. Com essa figura, o legislador brasileiro possibilita premiar o traidor, oferecendo-lhe vantagem legal, manipulando os parâmetros punitivos, alheios aos fundamentos do direito-dever de punir que o Estado assumiu com a coletividade 41. 36 37 38 39 40 41 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. Parte Especial. v. 3. 5. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 127. NUCCI, Guilherme de Souza, O valor da confissão como meio de prova no processo penal. São Paulo: RT, 1999, p. 218. SCHMIDT, Andrei Zenkner (coord.). Novos rumos do direito penal contemporâneo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 304. BRAGA, Wewman Flávio. A delação premiada. Disponível em: www.ibccrim.org.br. Acesso em: 06 fev. 10. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. v. 3. 5. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 124. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. v. 3. 5. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 125. 13 Apesar das muitas críticas e do pouco aplauso, a delação premiada hoje faz parte de nosso ordenamento jurídico. 2 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E O PROCESSO PENAL 2.1 O PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL O princípio do devido processo legal está diretamente ligado à ideia do contrato social estabelecido mutuamente entre Estado e cidadãos, em que o povo disponibiliza um percentual da sua liberdade individual pela ordem da coletividade e uma nação. Nessa perspectiva, a garantia do devido processo legal, estabelecida formalmente, funciona como freio ao poder dado pelo cidadão a um ente maior para que sejam respeitados os direitos do ser humano, de forma que o próprio Estado não usurpa a liberdade além daquela estipulada implicitamente pelo contrato e não se volte contra aqueles que têm o dever de proteger e respeitar 42 . Face ao paradigma limitador do Estado Democrático de Direito em relação ao poder e àqueles subordinados a esse poder, é que a Constituição define o devido processo legal como uma garantia do sistema penal e daqueles que estão sujeitos ao poder coercitivo do Estado. O devido processo legal, em sua perspectiva formal, instrumental, projeta princípios que, sem prejuízos da punibilidade, visam garantir desdobramentos hígidos, regulares, seguros, da relação jurídico-processual e que, desse modo, funcionam como escudos de contenção contra os excessos do Estado-Acusador 43. A Constituição Federal de 1988 consagra o princípio do devido processo legal, no seu artigo 5º, inciso LIV. Assim dispõe o dispositivo: “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Processo legal em uma definição ampla é o instrumento da preservação da liberdade do ser humano. Segundo Fernando Capez, o devido processo legal consiste em assegurar à pessoa o direito de não ser privada de sua liberdade e de seus bens, sem a garantia de um processo desenvolvido na forma que estabelece o artigo 5º, inciso LIV, da Carta Magna. No âmbito processual garante ao acusado a plenitude de defesa, compreendendo o direito de ser ouvido, de ser informado pessoalmente de todos os atos processuais, de ter acesso à defesa técnica, de ter oportunidade de se manifestar sempre depois da acusação 44. José Antonio Pagnanella Boschi ressalta: Considerando que o princípio do devido processo legal dá a base para o sistema acusatório não teríamos dúvida alguma em apontá-lo como princípio reitor do qual todos os outros são 42 GHISLENI, Cristiane; SILVA, Maria Fernanda da. Sistema constitucional das provas penais: ilicitude e direitos fundamentais. Monografias jurídicas. v. III. Santa Cruz: IPR, p. 101. 43 SCHMIDT, Andrei Zenkner (coord.). Novos rumos do direito penal contemporâneo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 315. 44 CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 356. 14 meras decorrências das atividades processuais das partes e do juiz, em matéria penal 45 Assim, Guilherme Souza Nucci salienta que para a efetivação dessa garantia constitucional exige-se um processo legislativo de elaboração da lei previamente definido e regular, trazendo dispositivos impregnados de razão e senso de justiça; pede-se a aplicação das normas jurídicas por meio de um instrumento hábil, que é o processo, e clama-se pela asseguração da paridade de armas entre as partes na resolução judicial da lide, prestigiando a isonomia 46 . O devido processo penal tem o papel principal de minimizar o conflito entre jus puniendi e o jus libertatis. O Estado somente poderá punir o cidadão que executar atos descritos como ilícitos através do processo, e o indivíduo tem, igualmente, direito assegurado de se defender (rebatendo as provas) usando de todos os meios possíveis e legais. Assim, o devido processo legal funciona como condição sine qua non do Estado Democrático de Direito consagrado na Constituição em vigor, ou seja, para esse existir, é necessário que haja a justa forma processual 47. 2.3 O PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA São elementos essenciais do contraditório a necessidade de informação e a possibilidade de reação. Antonio Scarance Fernandes, citando Joaquim Canuto Mendes de Almeida, explica que possuímos uma regra clássica que abrange esses dois elementos e define o contraditório como a ciência bilateral dos atos e termos processuais e possibilidade de contrariá-los 48 . O contraditório é a técnica processual que se estriba na bilateralidade das atividades processuais. Segundo Antônio Fernandes, no processo penal é necessário que a informação e a possibilidade de reação permitam um contraditório pleno e efetivo. Pleno porque se exige a observância do contraditório durante todo o desenrolar da causa, até seu encerramento. Efetivo porque não é suficiente dar à parte a possibilidade formal de se pronunciar sobre os atos da parte contrária, sendo imprescindível proporcionar-lhe os meios para que tenha condições reais de contrariá-los 49. Guilherme de Souza Nucci aduz que o contraditório prevê a bilateralidade dos atos processuais, que significa ter o réu sempre o direito de se manifestar quanto ao que for dito e provado pelo autor, produzindo contraprova 50. 45 46 47 48 49 50 BOSCHI, José Antonio Paganella. Ação penal. 3. ed. atual. ampl. Rio de Janeiro: AIDE, 2002, p. 63. NUCCI, Guilherme de Souza. O valor da confissão como meio de prova no processo penal. São Paulo: RT, 1999, p. 33. GHISLENI, Cristiane; SILVA, Maria Fernanda da. Sistema constitucional das provas penais: ilicitude e direitos fundamentais. Monografias jurídicas. v. III. Santa Cruz: IPR, p. 101. FERNANDES, Scarance Antonio. Processo penal constitucional. 5. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: RT, 2007, p. 63. FERNANDES, Scarance Antonio. Processo penal constitucional. 5. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: RT, 2007, p. 63. NUCCI, Guilherme de Souza. O valor da confissão como meio de prova no processo penal. São Paulo: RT, 1999, p. 36. 15 O princípio atualmente está consagrado no artigo 5º, inciso LV, que declara: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Contraditar é contra-aditar, isto é, afirmar em sentido contrário, contrariar, dimanando dessa garantia a base da intervenção da defesa. O que funda a garantia do contraditório é a proibição ética e jurídica de um julgamento sem oportunizar-se ao acusado a chance para impugnar a prova acusatória e oferecer a sua versão defensiva 51. A garantia do contraditório, portanto, é exclusivamente da defesa, não sendo adequada sua invocação pelo Ministério Público. Não que, por óbvio, o MP não detenha o direito de conhecer a prova produzida pela defesa. É que o fundamento desse direito provém não do princípio do contraditório, e sim do da igualdade das partes. Não é razoável o acusador invocar em seu prol garantia constante de capítulo da Constituição que dispõe sobre as garantias individuais e as liberdades fundamentais 52. Compreende, ainda, o direito de serem cientificados sobre qualquer fato processual ocorrido e ter a oportunidade de manifestar-se sobre ele antes de qualquer decisão jurisdicional 53. Segundo Antônio Scarance Fernandes, só se exige a observância do contraditório, no processo penal, na fase processual, não na fase investigatória. Ao mencionar o contraditório impõe seja observado em processo judicial ou administrativo, não estando abrangido o inquérito policial 54. De outra banda, Rogério Lauria Tucci sustenta a necessidade de uma contrariedade efetiva e real em todo o desenrolar da persecução penal e na investigação inclusive, para maior garantia da liberdade e melhor atuação da defesa 55. Defesa e contraditório estão indissoluvelmente ligados, porquanto é do contraditório que brota o exercício da defesa; mas é essa – com poder correlato ao de ação - que garante o contraditório 56. É, sem dúvida, o contraditório que garante o direito de defesa, posto que sua ausência turva a defesa ampla, possibilitando o surgimento de atos e fatos nebulosos, inconcebíveis em um processo tutelado pelas garantias constitucionais inerentes ao Estado Democrático de Direito. Contudo, contraditório e direito de defesa são distintos, pelo menos em um plano teórico. Substancialmente, o direito de defesa funciona como substituto à ausência ou negligência do Estado. A concentração do jus puniendi nas mãos do “homem artificial” – na linha de justificação teórica proposta pelo Pacto Social – priva o particular de fazer justiça pelas próprias mãos, mas não o 51 SCHIMIDT, Andrei Zenkner. Novos rumos do direito penal contemporâneo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 338. 52 SCHIMIDT, Andrei Zenkner. Novos rumos do direito penal contemporâneo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 339 53 CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 357. 54 FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. 5. ed. atual. ampl. São Paulo: RT, 2007, p. 65. 55 TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. 2. ed. rev. ampl. São Paulo: RT, 2004, p. 211. 56 GRINOVER, Ada Pelegrini, FERNANDES, Antonio Scarance, FILHO, Antonio Magalhães Gomes. As nulidades no processo penal. São Paulo: RT, 2001, p. 77. 16 impede de exercer a autodefesa sempre que o Estado, criado para protegê-lo, for omisso ou ineficiente. O princípio da ampla defesa é a garantia de que, em qualquer processo ou procedimento, ao indiciado será garantido a defesa mais ampla, desdobrada em defesa técnica e autodefesa. Processualmente, o princípio da ampla defesa garante ao acusado o conhecimento inequívoco da imputação que lhe é feita, de seus termos da acusação e fundamentos, de fato e de direito. Posteriormente, fornece todos os meios possíveis para contrariá-la 57. Apresenta-se, então, como um direito de contraposição ao direito de ação e, no garantir de tal contraposição, revela-se o contraditório, fundado na informação e a reação. O acusado deve ser informado da acusação, dando-lhe a oportunidade de a ela reagir e, assim, de exercer sua defesa 58. O artigo 5 º da Carta Magna em seus incisos LV e LXXIV garantem a todos os cidadãos brasileiros a ampla defesa e contraditório, e ainda garante a assistência judicial gratuita aos menos afortunados. Rogério Lauria Tucci observa que esse princípio implica necessariamente no direito à informação, ou seja, na citação válida; na contrariedade e no direito à prova legitimamente produzida ou obtida 59. A defesa tem que ser vista como uma garantia constitucional, tanto para o acusado, quanto para o implante de um processo justo. A garantia da ampla defesa se apresenta sob tríplice perspectiva: a garantia de audiência, a garantia de presença e, por último, a garantia de representação por advogado 60. Num plano Constitucional, ampla defesa e contraditório estão indissoluvelmente ligados, numa relação de instrumentalidade, na qual “a defesa garante ao contraditório e também por este é garantida” 61. São, assim, a defesa e contraditório, como também a ação, manifestações simultâneas, ligadas entre si pelo processo, sem que um instituto derive do outro 62. Lopes Jr destaca a relevância da distinção ente os princípios A relevância da distinção reside na possibilidade de violar um deles sem a violação simultânea do outro, com reflexos nos sistema de nulidades processuais. É possível cercear o direito de defesa pela limitação no uso de instrumentos processuais, sem que necessariamente ocorra violação do contraditório. A situação inversa é, teoricamente, possível, mas pouco comum, 57 58 59 60 BUENO, Marisa Fernanda da Silva. O devido processo legal à luz do sistema de garantias proposto por Ferrajoli. Monografias Jurídicas: IPR, 2005. ALBERTON, Genecéia da Silva. Prazo para interrogatório face à ampla defesa e ao contraditório. In: TOVO, Paulo (Org). Estudos de Direito Processual Penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 90. TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. 2. ed. rev. ampl. São Paulo: RT, 2004, p. 205. SCHIMIDT, Andrei Zenkner (Org.). Novos rumos do direito penal contemporâneo, p. 336. 61 GRINOVER, Ada Pellegrini, FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES, Filho. Antonio Magalhães. As nulidades no processo penal. São Paulo: RT, 2001, p. 34. 62 FERNANDES, Scarance Antonio. Processo penal constitucional. 5. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: RT, 2007, p. 42. 17 pois em geral a ausência de comunicação gera a impossibilidade de defesa 63. O autor ainda observa que o limite que separa ambos é tênue e, na prática, às vezes quase imperceptível. Assim, enquanto a ampla defesa assegura a possibilidade de informação do acusado da imputação que lhe é feita, guardando-lhe os meios jurídicos necessários para atacá-la, o contraditório ligar-se-á na efetividade e plenitude do exercício defensivo frente à pretensão punitiva estatal. É essa igualdade de oportunidade que compõe a essência do contraditório e da ampla defesa enquanto garantia de simétrica paridade de participação no processo. 2.4 PRINCÍPIO DA INADMINISSIBILIDADE APROVEITAMENTO DAS PROVAS ILÍCITAS DA OBTENÇÃO E Convém, inicialmente, relembrar que o direito à prova é parte fundamental do princípio constitucional da ampla defesa. Porém, este direito subjetivo de produção de provas convive com certos limites, previstos não somente na Constituição Federal, como na legislação infraconstitucional. A primeira limitação ao direito probatório, em geral, é a vedação constante do artigo 5º, inciso LVI da Constituição Federal, que não permite a utilização, no processo, das provas obtidas ilicitamente. Daí, portanto, consideraremos a vedação constitucional como um verdadeiro limite ao direito da prova na representação dos fatos em juízo, sob pena de eivar-se o procedimento de nulidade 64. A Constituição prevê no seu artigo 5º, LVI, que são “inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”. Essa regra é o resultado de opção do constituinte por uma das correntes doutrinárias existentes. A Carta Magna adotou a corrente de que a obtenção da prova ilícita sempre contamina a prova impedindo sua apresentação e validade judicial. A Lei 11.690/2008 veio para regular a vedação à prova ilícita por derivação, alterando a redação do artigo 157 do Código de Processo Penal. Art. 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais. Mister distinguir rapidamente prova ilegal e prova ilícita. Aury Lopes Jr ensina que prova ilegal é o gênero, do qual são espécies a prova ilegítima e a prova ilícita 65. Prova ilegítima é quando ocorre a violação de uma regra de direito processual penal no momento da sua produção em juízo, no processo. A proibição tem natureza exclusivamente processual, quando for imposta em função de interesses atinentes à lógica e à finalidade do processo. 63 JR, Aury Lopes. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. v. I. Rio Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 185. 64 RABONESE, Ricardo. Provas obtidas por meios ilícitos. 1. ed. Porto Alegre: Síntese, 1999. 65 JR, Aury Lopes. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. v. I. 3. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008, p. 548. 18 Prova ilícita é aquela que viola regra de direito material ou a Constituição no momento da sua coleta, anterior ou concomitante ao processo, mas sempre exterior ao processo. Aury Lopes Jr, ainda, destaca que a rigor a prova ilícita nem entra no processo, ou, se erroneamente admitida, deve ser desentranhada 66. A prova obtida por meios ilícitos deve ser banida do processo, por mais relevantes que sejam os fatos por ela apurados, uma vez que se subsume ela ao conceito de inconstitucionalidade, por vulnerar normas ou princípios constitucionais – como, por exemplo, a intimidade, o sigilo das comunicações, a inviolabilidade do domicílio, a própria integridade da pessoa. Para não se radicalizar a teoria da inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos, há entendimento, atualmente, de que é possível a utilização de prova favorável ao acusado, ainda que colhida com infringência aos direitos fundamentais seus ou de terceiro. Assim, poderá ser admitida, em alguns casos, a “teoria da proporcionalidade”, tendo em vista que o preceito constitucional deve ceder em casos que sua observância intransigente levaria à lesão de um direito fundamental mais valorado. Segundo Aury Lopes Jr, a prova ilícita poderia ser admitida e valorada apenas quando se revelasse a favor do réu. Trata-se da proporcionalidade pro reo, onde a ponderação entre o direito de liberdade de um inocente prevalece sobre um eventual direito sacrificado na obtenção da prova 67. A aplicação do princípio da proporcionalidade, no cenário jurídico nacional, em se tratando da admissão das provas ditas ilícitas, é praticamente unânime quando em confronto ao direito de ampla defesa do acusado 68. Em suma, a norma constitucional que veda a utilização no processo de prova obtida por meio ilícito deve ser analisada à luz do princípio da proporcionalidade. A aceitação do princípio da proporcionalidade é ampla nos casos em que a prova da inocência do réu depende de prova produzida com violação a uma garantia constitucional. Não se conseguiria justificar a condenação, até mesmo a pena elevada, de uma pessoa quando há nos autos prova de sua inocência, ainda que tenha sido obtida por meios ilícitos 69. Mister ressaltar que a prova ilícita que excepcionalmente está sendo admitida para evitar o absurdo que representa a condenação de um inocente não pode ser utilizada contra terceiros. Ou seja, a mesma prova que serviu para absolvição do inocente não pode ser utilizada contra terceiros, na medida em que, em relação a ele, essa prova é ilícita e assim deve ser tratada 70. 66 JR, Aury Lopes. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. v. I. 3. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008, p.548. 67 JR, Aury Lopes. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. v. I. 3. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008, p. 552. 68 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 75. 69 GRINOVER, Ada Pellegrini, FERNANDES, Antonio Scarance; FILHO, Antonio Magalhães Gomes. As nulidades no processo penal. 7. ed. rev. atual. São Paulo: RT, 2001, p. 117. 70 JR, Aury Lopes. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. v. I. 3. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008, p. 553. 19 É importante destacar que atualmente a teoria dominante é a da inadmissibilidade das provas no processo penal, especialmente se produzidas violando o texto constitucional. Assim, o Código de Processo Penal, no seu artigo 157, vai de encontro com o elucidado pela Carta Magna, uma vez que veda do processo as prova ilícitas. 2.6 A DELAÇÃO PREMIADA E SEU VALOR COMO PROVA Ao conceituar prova, Aury Lopes Jr ensina que provas são os meios através dos quais se fará a reconstrução do fato passado. O objeto da prova inegavelmente é o fato, buscando formar a convicção do juiz sobre os elementos necessários para a decisão da causa. Somente constituem objeto da prova os fatos que possam dar lugar a dúvida, isto é, que exijam uma comprovação 71. No quadro de garantias do devido processo legal, insere-se o direito à prova, ligando-o ao direito de ação e de defesa. De nada adiantaria ao autor e réu o direito de trazer a juízo suas postulações se não lhes fosse proporcionada oportunidade no desenvolvimento da causa para demonstrar suas afirmações 72. Magalhães Gomes Filho esclarece que, cuidando diretamente do direito à prova no processo penal, nele engloba o direito à investigação, o direito de proposição (indicação, requerimento) de provas, o direito à admissão das provas propostas, indicadas ou requeridas, o direito a exclusão das provas inadmissíveis, impertinentes ou irrelevantes, o direito sobre o meio de prova (direito de participação das partes nos atos de produção de prova), o direito à avaliação da prova 73. Ada Pellegrini Grinover leciona que prova é o instrumento por meio do qual se forma a convicção do juiz a respeito da ocorrência ou inocorrência dos fatos. A autora, ainda, elucida que a garantia do contraditório não tem apenas como objetivo a defesa entendida em sentido negativo – como oposição ou resistência –, mas, sim, principalmente a defesa vista em sua dimensão positiva, como influência, ou seja, como direito de incidir ativamente sobre o desenvolvimento e o resultado do processo 74. A delação premiada é, de início, uma prova anômala, totalmente irregular, pois viola o princípio do contraditório, uma das bases do processo criminal 75. 71 TOURINO FILHO, Fernando Costa. Processo Penal. 13. ed. v. 3. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 202. 72 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 5. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: RT, 2007, p. 78 - 79. 73 FERNANDES, Antonio Scarance, p. 79 citando MAGALHÃES, Gomes Filho. Direito à prova no processo penal. São Paulo: RT, 1997, p. 85-89. 74 GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; FILHO, Antonio Magalhães Gomes. As nulidades no processo penal. 7. ed. rev. atual. São Paulo: RT, 2001, p. 122123. 75 ARANHA, Adalberto José Q. T. de Camargo. Da prova no processo penal. 7. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 133. 20 Guilherme de Souza Nucci leciona que o princípio do contraditório é constitucionalmente previsto, de modo que não se pode aceitar, singelamente, a afirmação de que ainda que violadora do princípio do contraditório a delação tem sido aceita pelos tribunais. Nada que viole um princípio constitucional pode ser aceito e assimilado pelo sistema jurídico 76 Nucci sobre o assunto Não é porque as decisões reiteradas dos tribunais vêm aceitando teses de constitucionalidade duvidosa – tais como a aceitação da declaração de co-réu, sem permitir a interferência das partes na produção desse depoimento ou mesmo a assimilação das confissões extrajudiciais, com uma força probatória bastante questionável e em oposição ao princípio do devido processo legal - que devam permanecer como estão 77. Segundo Tourinho Filho, se a Lei Maior erigiu o contraditório à categoria de dogma de fé, se o devido processo legal, outro dogma, pressupõe o contraditório, o mesmo acontecendo com a ampla defesa, é induvidoso que o delatio de corréu não pode ser tida como prova, mas, sim, como um fato que precisa passar pelo crivo do contraditório, sob pena de absoluta e indisfarçável imprestabilidade 78. Sob este último ângulo, se o princípio do contraditório visa garantir às partes que possam colocar em dúvida a existência do fato, a “homologação do acordo” pelo magistrado, que implica convencimento sobre a coautoria ou participação do delatado na prática do crime, extirpa qualquer possibilidade de desenvolvimento contraditório do processo que trate de tal crime e de tal acusado delatado 79. Com a “homologação do acordo” e com seu eventual “cumprimento” na sentença do delator, torna-se impossível, ao delatado, “colocar em dúvida”, mediante atividade probatória, os fatos delatados (a coautoria ou participação no fato delituoso), já que foram antecipadamente considerados pelo magistrado como “verdadeiros” 80. É induvidosa a inconstitucionalidade da delação premiada. E assim o é, porque há um ferimento inadmissível à regra do devido processo legal. Há, nas modalidades praticadas, pena sem processo, de todo inadmissível. Basta ver que, para que se possa homologar o acordo é preciso que haja processo (só dele pode advir pena), o que só se admite depois de oportunizado o contraditório. Na delação premiada, sem embargo de tudo, não há processo porque não há contraditório; e aí também reside a inconstitucionalidade 81. 76 NUCCI, Guilherme de Souza. O valor da confissão como meio de prova. 2. ed. rev. atual. São Paulo: RT, 1999, p. 215. 77 NUCCI, Guilherme de Souza. O valor da confissão como meio de prova. 2. ed. rev. atual. São Paulo: RT, 1999, p. 215. 78 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 3. v. 27. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 204. 79 ESTELLITA, Heloísa. A delação premiada para a identificação dos demais coautores ou partícipes: algumas reflexões à luz do devido processo legal. São Paulo: Boletim IBCCRIM, ano 17, n. 202, p. 2-4, set. 2009. 80 ESTELLITA, Heloísa. A delação premiada para a identificação dos demais coautores ou partícipes: algumas reflexões à luz do devido processo legal. São Paulo: Boletim IBCCRIM, ano 17, n. 202, p. 2-4, set. 2009. 81 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Fundamentos à inconstitucionalidade da delação premiada. São Paulo: Boletim IBCCRIM. v. 13. n. 159, p. 7-9, fev. 2006. 21 Violada, sem embargo fica a isonomia constitucional e o direito penal se esfumaça como estrutura democrática. O caminho natural, legal e constitucional seria a contestação perante os meios apropriados. Todavia, a fundamentação de tais acordos é secreta, não permitindo aos acusados, por eles afetados diretamente em suas defesas, verificar a própria legalidade. Fere o devido processo legal porque, em primeiro lugar, uma premissa fundamental é equivocada: obrigatoriedade e indisponibilidade. Em segundo lugar, o que é mais grave, porque aplica pena sem processo, ferindo o postulado básico nulla poena sine iudicio, tomba a inderrogabilidade da jurisdição 82. A delação só ocorre com a confissão, que, normalmente, só acontece no interrogatório, o qual, apesar de ser ato personalíssimo, quanto figura do réu, termina sendo realizado sem amparo constitucional que reclama o crivo do contraditório. Nucci assevera que, quando um corréu incriminar o outro, deve ser permitido pelo juiz que as partes façam perguntas e esclareçam dúvidas. Do contrário será uma prova totalmente inquisitiva, que irá produzir danos a quem não pôde participar 83. Verificar quais são os limites constitucionais que não podem ser ultrapassados de forma alguma nessa luta contra o crime torna-se, assim, sumamente importante. A barreira instransponível máxima de toda política criminal é evidentemente o Estado Constitucional de Direito 84. Urge perceber que já existe um devido processo penal preestabelecido, consolidado. E no que se relaciona com sua parte rígida, nada pode fazer o legislador ordinário a não ser ampliá-lo para facilitar a melhor fruição dos direitos fundamentais 85. Como bem explica Luis Flávio Gomes, é a prova mais contundente da pública e notória ineficiência do Estado atual para investigar e punir os crimes e criminosos. É a falência Estatal sempre confessada sem nenhum escrúpulo. Por falta de preparo técnico e de estrutura tecnológica, o Estado se vê compelido a transgredir com os mais elementares princípios éticos. A delação, disse-o com acerto Roberto Romano, enterra o Direito e a Justiça 86. 3 A DELAÇÃO PREMIADA NO DIREITO COMPARADO 3.1 ITÁLIA Na Itália, a organização conhecida modernamente como Máfia teve início como movimento de resistência contra o rei Nápoles. A partir da segunda 82 SCMIDT, Andrei Zenker. (coord.). Novos rumos do direito penal contemporâneo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 307-308. 83 NUCCI, Guilherme de Souza. O valor da confissão como meio de prova. 2. ed. rev. atual. São Paulo: RT, 1999, p. 216. 84 GOMES, Luis Flávio, CERVINI, Raul, OLIVEIRA, Willian Terra de. Lei de lavagem de capitais. São Paulo: RT, 1998, p. 350. GOMES, Luis Flávio, CERVINI, Raul, OLIVEIRA, Willian Terra de. Lei de lavagem de capitais. São Paulo: RT, 1998, p. 351. GOMES, Luis Flávio, CERVINI, Raul, OLIVEIRA, Willian Terra de. Lei de lavagem de capitais. São Paulo: RT, 1998, p. 348. 85 86 22 metade do século XX, seus membros passaram a dedicar-se à prática de atividades criminosas.87 Em 1982, a Itália mergulha na Operação Mãos Limpas, um enorme esforço da justiça, iniciado pelo promotor Antonio Di Pietro para combater a corrupção 88. Com a finalidade de restabelecer a ordem no país, através da contenção da violência e minimização da impunidade, nasceu a Lei misure per la difesa dell ordinamento constituzionale, que instituiu a delação premiada, permitindo a extinção da punibilidade do colaborador, bem como a proteção pelo Estado de toda a sua família 89. Eduardo Araújo da Silva ensina 90: No direito italiano, as origens históricas do fenômeno dos “colaboradores da Justiça” é de difícil identificação; porém sua adoção foi incentivada nos anos 70 para o combate dos atos de terrorismo, sobretudo a extorsão mediante sequestro, culminando por atingir seu estágio atual de prestígio nos anos 80, quando se mostrou extremamente eficaz nos processos instaurados para a apuração da criminalidade mafiosa. O denominado pentitismo do tipo mafioso permitiu às autoridades uma visão concreta sobre a capacidade operativa das Máfias, determinando a ampliação de sua previsão legislativa e a criação de uma estrutura administrativa para sua gestão operativa e logística (Setor de Colaboradores da Justiça). O sucesso do instituto ensejou, até mesmo, uma inflação de arrependidos buscando os benefícios legais, gerando o perigo de sua concessão a indivíduos que não gozavam do papel apregoado perante as organizações criminosas. Na Itália, embora utilizados como sinônimos, os vocábulos pentito, dissociado e colaborador da justiça têm origens e significados diferentes: 91 O petito, que deu origem ao fenômeno do pentitismo, foi criado pela imprensa nos anos 70, para designar a figura jurídica prevista no artigo 3º da Lei nº 304/82, ou seja, o sujeito que, submetido a processo penal, confessava sua própria responsabilidade e fornecia às autoridades notícias úteis à reconstituição dos fatos do crime (conexos com o terrorismo ou com a eversão do ordenamento constitucional) e à individualização dos respectivos responsáveis. Pela lei, o “arrependido” poderia ser beneficiado com hipóteses de não punibilidade, atenuantes e com a suspensão condicional da pena; porém, a proteção poderia ser revogada se as declarações fossem mendazes ou reticentes. O dissociado surgiu na Lei nº 34/87, que tratava exclusivamente das organizações e dos movimentos de matriz terrorista ou eversiva. Para o dissociado receber o prêmio punitivo, era exigido, além de informações sobre a 87 SILVA, Eduardo Araújo da. Crime organizado: procedimento probatório. São Paulo: Atlas, 2003, p. 21. 88 ITÁLIA. Disponível em: www.culturabrasilitalia.hpg.com.br. Acesso em: 16 mar. 10. 89 GOMES, Geder Luiz Rocha. A delação premiada em sede de execução penal. Disponível em: http://www.lfg.com.br. Acesso em: 28 jul. 08. 90 SILVA, Eduardo Araújo da. Crime organizado: procedimento probatório. São Paulo: Atlas, 2003, p. 79. 91 SILVA, Eduardo Araújo da. Crime organizado: procedimento probatório. São Paulo: Atlas, 2003, p. 79. 23 organização criminosa que rompesse, também sua ruptura com a ideologia política que motivava o seu comportamento criminoso. O colaborador da justiça é uma evolução ampliativa dos dois modelos anteriores. Previsto no artigo 10 da Lei nº 82/91, abarcando aqueles que genericamente colaboraram com a justiça ou apresentaram informações úteis no curso das investigações, independentes de serem coautores ou partícipes dos crimes investigados, testemunhas ou pessoas que colaboraram de alguma forma com as autoridades responsáveis pela investigação. Assim, a lei dos arrependidos traz no seu bojo a possibilidade de benefícios na aplicação e execução da pena para os arrependidos que confessarem, quando do interrogatório sem a presença do defensor, fatos desconhecidos e de relevância para o processo, instituindo prêmios aos delatores 92. Os benefícios concedidos na Itália aos colaboradores situam-se principalmente no campo dos crimes cometidos contra a segurança interior do Estado, que seria, por exemplo, crime de sequestro por motivo de terrorismo ou subversão, e contra a liberdade individual. Percebe-se também o prêmio aos colaboradores da justiça no âmbito do narcotráfico, havendo a diminuição de pena àquele que evitar as ulteriores consequências da atividade delituosa ou ajudar a impedir o cometimento de delitos, favorecendo a ação repressiva. O extravasamento do prêmio punitivo, do campo das medidas adotadas contra o terrorismo, para a legislação penal comum não foi bem recebido pela maioria da doutrina italiana que se opôs não só à sua introdução no tipo do sequestro com o fim de extorsão, como também sua eventual ampliação para efeito de abranger a associação criminosa e a delinquência econômica 93. Adalberto Silva Franco, ao citar Marcello Maddalena, explica que, no campo da subversão política, a medida premial deu uma contribuição essencial para a derrota das maiores organizações terroristas que operavam no país e para a salvação das próprias instituições democráticas 94. 3.2 ESTADOS UNIDOS A delação premiada, segundo nos ensinam os doutos, teria surgido nos Estados Unidos no decorrer da campanha contra a Máfia a Cosa Nostra e outras organizações criminosas, quando por via de uma transação de natureza penal, firmada pelos Procuradores Federais e alguns suspeitos de militância criminosa, a estes era prometida a impunidade desde que confessassem sua participação e prestassem informações que fossem suficientes para atingir toda a organização e seus membros 95. 92 93 94 95 ROLDÃO, Simone. A delação premiada e sua valoração probatória. Tese de Doutorado. São Paulo: PUC/SP, p. 70. FRANCO, Adalberto Silva. Crimes hediondos. 5. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: RT, 2005, p. 352-353. FRANCO, Adalberto Silva. Crimes hediondos. 5. ed. rev. atual. ampl. São Paulo. RT, 2005, p. 352-353. ARANHA, Adalberto José Q. T. Camargo. Da prova no processo penal. São Paulo: Saraiva, 2006. 24 No direito americano, a colaboração espontânea surge na figura da testemunha privilegiada, que se apresenta ao Ministério Público e, mediante a uma punição menor, descreve os membros de sua organização criminosa 96. No país americano, a possibilidade da colaboração com a justiça encontra-se inserida no plea bargaining, que é a possibilidade de negociação que tem o representante do Ministério Público para fazer acordos com o acusado e sua defesa, estando reservado ao juiz a devida homologação desse acordo 97. Nos Estados Unidos da América, antes de homologar o acordo entre o prosecutor e o acusado (plea bargaining), por imposição da Rule II (d) da Federal Rules of Criminal Procedure, deve o magistrado dirigir-se publicamente ao acusado para verificar a voluntariedade de suas palavras. Inicialmente analisará sua capacidade de compreensão da proposta do órgão acusador, considerando sua idade, inteligência, entendimento da língua inglesa e o estado mental. Uma vez analisada a capacidade, o Tribunal constatará se a declaração é voluntary, ou seja, se não é produto de improper coercion (violências físicas ou mentais) ou de inductions (promessas que não possam ser cumpridas pelo Ministério Público ou resultantes de prévias discussões entre acusação e defesa) 98. Mister ressaltar que no modelo estadunidense o poder do Ministério Público é mais extenso que no Brasil, em que a titularidade da ação penal incondicionada é do Órgão Ministerial. No país americano, cabe ao órgão a condução da investigação criminal, o declínio ou prosseguimento da ação penal e a realização de acordos com a Defesa 99. Assim, a plea bargainig é um acordo oferecido pelo promotor para que o réu se declare culpado. O acordo é firmado pelas duas partes, assim se uma delas quebrá-lo deverá arcar com as devidas consequências 100. É preciso esclarecer que, nos Estados Unidos, existem duas formas de plea bargainig, isto é, colaboração negociada: 101 A primeira é a charge bargaining, em que o acusado se declara culpado, e o Ministério Público muda a acusação, substituindo o delito original para outro de menor gravidade. A segunda é a sentence bargaining, ocorre sempre depois do reconhecimento da culpabilidade, a acusação postula a aplicação de uma pena mais amena. Normalmente ocorre quando o promotor não quer diminuir as acusações contra o acusado, ele diminui a pena. Essa negociação necessariamente tem de ser aprovada pelo juiz. Há que se perceber neste sistema que há uma clara disparidade entre as partes na relação processual, uma delas é quem primeiro coordena, articula 96 SNICK, Valdir. Crime organizado: comentários. 1. ed. São Paulo: Livraria e Editora Universitária de Direito.1997, p. 367. 97 GUIDI, José Alexandre Marson. A delação premiada no combate ao crime organizado. França: Lemos e Cruz, 2006, p. 105. 98 SILVA, Eduardo Araújo da. Crime organizado: procedimento probatório. São Paulo: Atlas, 2003, p. 115. 99 GOMES, Milton Jordão de Freitas Pinheiro. Plea Bargaining no processo penal: perda das garantias. Disponível em: www.jus2.uol.com.br. Acesso em: 16 mar. 10. 100 LARSON, Aaron. How does plea bargaining work? Disponível em: www.expertlaw.com. Acesso em: 16 mar. 10. 101 LARSON, Aaron. How does plea bargaining work? Disponível em: www.expertlaw.com. Acesso em: 16 mar. 10. 25 a coleta de provas na fase do inquérito e prossegue com a sustentação da acusação perante o poder judiciária, a defesa somente fica a mercê desta subjugadora 102. O plea bargaingin infringe com o contraditório e a ampla defesa, que somente serão observados caso as partes não acordem e, então, se iniciará a instrução criminal. O plea bargaining visa, fundamentalmente, a punição, ainda que branda e socialmente injusta.103. Assim, estamos diante da tortura reinventada, mesmo que nenhuma gota de sangue escorra do corpo do acusado, como no caso de Michael Milken, injustamente acusado pelo então promotor Rudolph Giuliani, ou o caso de Clark Clifford e Roberto Altman, também injustamente acusados pelo promotor Robert Morgenthal. Entre os dois casos há uma regra em comum: não aceitaram as promessas que beiravam a coação, resistiram à execração pública, tiveram suas vidas destruídas e contra nenhum deles foi obtida a condenação 104. O instituto se incompatibiliza com o devido processo, porém se sobressai, por empunhar a bandeira da solução rápida da lide, ao lado da infalibilidade da aplicação da pena, face à admissão da culpabilidade. 3.3 ESPANHA O direito Espanhol trata a figura através do arrependimento processual, que permite a diminuição da pena. A delação premiada recebe o nome de delincuente arrependido. Na Espanha, exige-se, para a aplicação do equivalente a delação premiada, que o indivíduo em conflito com a Lei Penal atenda às seguintes condições: a) abandone as atividades criminosas; b) confesse fatos delituosos nos quais tenha participado; e c) ajude a impedir novos delitos ou a identificar e capturar os demais criminosos ou, ainda, na obtenção de provas que impeça a atuação de organizações criminosas em que o colaborador tenha participado 105 . 3.4 ALEMANHA Na Alemanha, existe a Kronzeugenrelegelung, em que o Estado concede um prêmio ao acusado que colaborar com a justiça. Através da delação premiada, o sistema alemão permite não só a diminuição da pena como também o perdão judicial para aqueles que atuem contribuindo para impedir as ações criminosas de grupos através da concessão de informações eficazes nesse sentido 106. O juiz poderá diminuir discricionariamente a pena ou deixar de aplicá-la quando o agente se empenhe seriamente a fim de impedir a continuação ou 102 GOMES, Milton Jordão de Freitas Pinheiro. Plea Bargaining no processo penal: perda das garantias. Disponível em: www.jus2.uol.com.br. Acesso em: 16 mar. 10. 103 ROLDÃO, Simone. Delação premiada e sua valoração probatória. Tese de doutorado. São Paulo: PUC/SP, p. 66 104 SCHIMIDT, Andrei Zenkner. Novos rumos do direito penal contemporâneo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 309. 105 GOMES, Geder Luiz Rocha. A delação premiada em sede de execução penal. Disponível em: www.ifg.com.br. Acesso em: 28 jul. 08. 106 GOMES, Geder Luiz Rocha. A delação premiada em sede de execução penal. Disponível em: www.ifg.com.br. Acesso em: 28 jul. 08. 26 prática de um crime. O agente não será punido mesmo que o resultado não seja obtido por circunstâncias alheias à sua vontade 107. O Código Penal alemão trata do arrependimento post delictum em que há a exclusão da responsabilidade criminal em decorrência de uma colaboração eficaz do agente, ou seja, quando logra em evitar que o delito ocorra. O Diploma Legal ainda estabelece o benefício à colaboração não impeditiva do resultado, mas que ao menos diminua o perigo provocado, ou seja, mesmo que a colaboração não logre êxito em impedir que o delito prospere, impede que a atividade criminosa seja levada a efeito ou sucedida por outra ou contribua para que a associação criminosa se extinga. Nesse caso, quando o resultado é completo e eficaz é concedida a impunidade total ao delinquente 108. Ainda a legislação alemã, pela lei de 9 de junho de 1989, modificada pela lei de 16 de fevereiro de 1993, prevê a possibilidade de se dispensar a ação penal, arquivar o procedimento já começado, atenuar ou dispensar a aplicação da pena no delito de terrorismo ou conexo 109. 4 ANÁLISE DA DELAÇÃO PREMIADA NA JURISPRUDÊNCIA DO STF, STJ E TRF4 Nada obstante o tempo de vigência das normas que tratam da delação premiada, ainda não se tem um conjunto de decisões judiciais com o volume e abrangência necessários para se formular uma conclusão sobre a visão de nossos tribunais acerca da matéria. Todavia, a análise de algumas decisões pode contribuir para a percepção de algumas tendências jurisprudenciais. EMENTA: Habeas Corpus. Pena de multa. Matéria não suscitada nas instâncias precedentes. Não conhecimento. Coréu beneficiado com a delação premiada. Extensão para o coréu delatado. Impossibilidade. Tráfico de entorpecentes. Intuito comercial. Elemento integrante do tipo. 1 A questão referente à nulidade da pena de multa não pode ser conhecida nesta Corte, por não ter sido posta a exame das instâncias precedentes.2 Descabe entender ao co-réu delatado o beneficio do afastamento da pena, auferido em virtude da delação viabilizadora de sua responsabilidade penal.3 Sendo o intuito comercial integrante do tipo referente ao tráfico de entorpecentes, não pode ser considerado como circunstância judicial para exasperar a pena. Ordem concedida, em parte, para, mantido o decreto condenatório determina que se faça nova dosimetria da pena, abstraindo-se a referida circunstância judicial No HC 85176/PE, do Supremo Tribunal Federal, relatado pelo Ministro Marco Aurélio e publicado no DJ de 08.04.2005, consagrou-se que a delação premiada não se estende aos corréus em caso de concurso de pessoas. No caso, um réu recebeu a pena de doze anos de reclusão e multa, pelo crime de tráfico de entorpecentes, enquanto o segundo réu logrou o perdão judicial 107 108 109 GUIDI, José Alexandre Marson. Delação premiada no combate ao crime organizado. Fraca: Lemos & Cruz, 2006, p. 107. KOBREN, Juliana Conter Pereira. Apontamentos e críticas à delação premiada no direito brasileiro. Disponível em: www.jus2.uol.com.br. Acesso em: 16 mar. 10. GUIDI, José Alexandre Marson. Delação premiada no combate ao crime organizado. Fraca: Lemos & Cruz, 2006, p. 107. 27 quanto à pena por ter confessado e delatado o paciente, que também teria confessado o delito. O Ministro nega a extensão do benefício ao corréu que primeiramente negou o delito, e somente depois se retratou e o confessou. A delação premiada ocorre quando o réu, além de admitir sua culpa, atribuir a terceiro a prática do crime, sendo assim, não se poderia pensar em aplicar o instituto ao paciente, vez que este em primeiro momento nega o crime e ainda não presta informações acerca do ocorrido. Ao analisar este precedente, conclui-se que o Princípio da isonomia é totalmente ferido, vez que réus que praticaram o mesmo ilícito penal têm penas distintas, vez que o delator conta com o perdão judicial por ter colaborado com o Estado, que não logrou êxito em sozinho desmascarar o tráfico de entorpecentes. Habeas Corpus. Extorsão Mediante Sequestro. Extorsão Circunstanciada. Quadrilha. Aplicação da causa de diminuição de pena prevista no Art. 14 da Lei N.º 9.807/99. Impossibilidade. Posterior retratação em juízo. Condenação pelo crime de quadrilha ou bando. Prática concomitante do crime de sequestro majorado pelo concurso de agentes. Incidência da majorante. Possibilidade. Bis in idem não caracterizado. Precedentes desta corte e do STF. Extorsão. Circunstanciada. Pena-base fixada no mínimo legal. Causa especial de aumento de pena fixada no máximo. Falta de fundamentação. Alegação de violação ao princípio constitucional da ampla defesa. Paciente assistido na instrução criminal por advogado, que formulou as razões da apelação. Não-demonstração de prejuízo. (Superior Tribunal de Justiça). No HC 120.454/RJ, relatado pela Ministra Laurita Vaz, no qual firmou o entendimento de que o benefício da delação premiada não é estendido aos casos em que embora o réu tenha colaborado com as autoridades, as informações não foram efetivas no sentido do conhecimento de terceiros envolvidos, desmantelamento da organização criminosa ou a recuperação total ou parcial de produto ou crime. Assim, embora tenha sido reconhecido que o denunciado prestou informações às autoridades, e informações até então desconhecidas, a delação premiada não foi aplicada, vez que os dados não levaram à responsabilização dos agentes criminosos. Necessário destacar que, mais uma vez, o agente não foi beneficiado com a sua ajuda, única e exclusivamente por não ter tido eficácia suas informações, não importando se isto não ocorreu por negligência da própria polícia. Veja-se o instituto mais uma vez em desuso, por mais que este tenha tido efetividade na sua ajuda, mostrando interesse e dedicação a todos os pedidos solicitados pelos agentes. Habeas Corpus. Crime de evasão de divisas. Incompetência de foro. Inépcia da inicial. Incompatibilidade de dispositivos. Indeferimento de expedição de carta rogatória. Certificação da existência de delação premiada. Denegação da ordem. (Tribunal Regional da 4ª Região, 16/04/2010). No HC nº 2010.04.00.000002-9/RS, que teve como relator o Juiz Federal Sebastião Ogê Muniz, a ordem para que o conteúdo da delação premiada fosse mostrado às partes foi denegada. 28 Os impetrantes pretendem assegurar o direito de saber se o informante foi beneficiado com algum tipo de delação premiada, e de saber quais são as autoridades envolvidas no acordo. O seu conteúdo não foi disponibilizado para os denunciados, ora pacientes, razão pela qual pretendem invocar seu direito de uma defesa ampla. A defesa trouxe como razão para a propositura do HC um precedente sobre a matéria do STF. No entanto, o Tribunal Federal da 4ª Região entendeu que o julgado foi prolatado num contexto em que havia fundados indicativos de eventual suspeição de agentes públicos que participaram do acordo de delação premiada. Então, usou como justificativa para a denegação de ordem para que o conteúdo da delação premiada fosse levado a público o voto vencido, da lavra do Ministro Meneses Direito. Assim, entendeu o Tribunal que a delação premiada não é prova, então, não podendo vedar acesso ao acordo, sob pena de violação do contraditório e da ampla defesa. Mas justificou, de outra banda, que se o conteúdo da delação premiada fosse levado à baila, seria o sistema violado, acabando por inviabilizar o uso do instituto. Sendo a delação premiada um instrumento adequado para se chegar mais rapidamente e com mais eficiência à apuração dos delitos, não se pode abrir uma exceção quanto à publicidade do acordo de delação premiada. Por ser um mero instrumento, não se pode, sob nenhum ângulo, configurar violação do direito ao contraditório e à ampla defesa previstos na Constituição. Dessa maneira, nos deparamos novamente com a delação premiada indo contra os princípios garantidores de um devido processo legal. É sabido que a delação premiada é utilizada como prova e, assim, obrigatório que todas as partes tenham conhecimento de seu conteúdo; caso contrário, estamos diante da violação do princípio do contraditório e da ampla defesa. O réu tem direito de conhecer todo o conteúdo do processo que está respondendo. Se a publicidade dos atos fere o sistema da delação premiada, é esta que deve ser banida do processo penal, e não os princípios consagrados pela Carta Magna. CONCLUSÃO À luz da matéria pesquisada e exposta ao longo deste trabalho, convém tecer algumas considerações conclusivas acerca das principais ideias apresentadas e analisadas. A criminalidade é um fenômeno que está tomando dimensões que o Estado não consegue conter. Cada vez mais, as organizações criminosas estão mais modernizadas, organizadas, com mais tecnologias, e o Estado continua emperrado em um sistema penal que já não tem efetividade para combater os desertores da sociedade. Não tendo o Estado meios mais potentes para suplantar a criminalidade, buscou na experiência do direito penal comparado, que admitiu a delação premiada, positivando, no Brasil, o referido instituto na esperança de alcançar os resultados que até então o sistema penal vigente não logrou sucesso. A finalidade objetivada é sempre no sentido de beneficiar o acusado quando o mesmo contribuir com a investigação, entretanto, com o presente estudo, foi possível perceber que são raras as vezes que o delator recebe o 29 benefício pelas informações fornecidas às autoridades. A efetividade das informações é vista pelos Doutos como requisito imprescindível para o delator receber a benesse, não bastando somente trazer dados até então desconhecidos, e então pela falta de efetividade dos novos dados fornecido é que deixa de se dar o prêmio ao delator. O Estado pretende com a delação premiar o infrator que trair seus comparsas de empreitadas delituosas, na intenção de receber informações relevantes às investigações policiais e ao processo criminal. Na verdade, espera que o delinquente faça o seu trabalho. O grande aspecto a ser discutido centraliza-se no fato de leis infraconstitucionais irem contra os princípios já consagrados pela Constituição Federal do Brasil, e mesmo assim serem utilizadas no nosso sistema jurídico. O instituto deixa às favas o devido processo legal, vez que não há observância do contraditório e da ampla defesa. No tocante ao seu valor como prova, somente pode ser acolhida em consonância com outras provas dos autos observando o princípio da inadmissibilidade da obtenção e aproveitamento das provas ilícitas. A delação não poder ser o único meio do Estado de obter informações acerca dos crimes praticados por uma organização criminosa, pois inadmissível, entretanto, não impossível de imaginar, que o denunciado seja coagido a prestar informações para receber um suposto prêmio e, assim, ter seu direito constitucional de permanecer em silêncio violado. Em que pese ser a delação premiada vista como trunfo ao combate da criminalidade, esta deve ser repensada, vez que viola os direitos e garantias sedimentados e erigidos ao grau de dogma constitucional. Assim, não deve o Estado ceder a um instituto contrário aos princípios constitucionais, sob pena de declarar a falência do sistema investigatório policial e do processo penal em nome de desmantelar as organizações criminosas com a finalidade de combater a criminalidade. O crescimento da criminalidade somente vai deixar de existir efetivamente quando o Estado, sozinho, puder combatê-la de maneira humana, segura e igual para todos. Conclui-se que o Direito Penal, consagrado em um Estado Democrático de Direito, somente será legítimo quando combater com eficácia a criminalidade, de maneira a conseguir diminuir a violência que grassa a sociedade, ao mesmo tempo em que observa as garantias constitucionais de seus indivíduos. Então, a delação premiada deve ser banida do nosso sistema penal – que já ineficaz para combater a criminalidade, acaba com o instituto declarando sua falência por completo e incapacidade de punir com excelência e banhado pelos princípios garantidores de um processo penal justo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS A sociologia em Émile Durkheim. Disponível em: www.culturabrasil.pro.br. Acesso em: 16 mar. 10. 30 ALBERTON, Genecéia da Silva. Prazo para interrogatório face à ampla defesa e ao contraditório. In: TOVO, Paulo (Org). Estudos de Direito Processual Penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 90. ARANHA, Adalberto José Q. T. de Camargo. Da prova no processo penal. 7. ed. rev. e atual. 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