A Volta do Marido Pródigo

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Recebido até Agosto/2011, aprovado até Setembro/2001.
Vinculada ao Curso de Letras: Licenciatura e Bacharelado e ao Programa de Mestrado em Letras
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul
Unidade Universitária de Campo Grande – MS
A VOLTA DO MARIDO PRÓDIGO: INTERTEXTOS EM CENA∗
Letícia Pereira de Andrade
UEMS/PG-UFRGRS
RESUMO: O presente trabalho propõe um diálogo do conto “A volta do marido pródigo”, de Guimarães Rosa,
com outros textos, sobretudo sua adaptação teatral realizada pelo escritor e tradutor Paulo Hecker Filho, a partir
do aparato teórico da Literatura Comparada e a intertextualidade.
Palavras-chave: intertextos; conto; teatro.
ABSTRACT: This paper proposes a dialogue of the short story "The Return of the Prodigal Husband," by Rosa,
with other texts, especially his theatrical adaptation performed by the writer and translator Paul Hecker Filho,
from the theoretical apparatus of Comparative Literature and intertextuality.
Key-words: intertexts; short story; theater.
ABRE-SE A CORTINA
Parece óbvio que o conto “A volta do marido pródigo”, extraído do livro Sagarana
(1946) de Guimarães Rosa, revela um caráter intertextual com a Parábola do Filho Pródigo,
encontrada no Novo Testamento, narrada, entre outros Evangelistas, em Lucas 15.11-32. Mas,
ao cursar a disciplina “Literatura Comparada: intertextualidade e Interdisciplinaridade”, os
horizontes de estudos deste conto são ampliados, pois se estuda “o intertexto como um campo
geral de fórmulas anônimas” (SAMOYAULT, 2008, p. 23). E são estas fórmulas anônimas,
que propiciam um conhecimento mais amplo do texto literário por uma exploração de suas
variantes, que se deseja aqui pontuar.
Além das fronteiras particularizadas, propõe-se observar as relações entre o conto “A
volta do marido pródigo” e alguns intertextos, como a parábola bíblica, as lendas do sapo e do
cágado, da rãzinha catacega, do Pedro Malasartes e o heroísmo em Memórias de um Sargento
de Milícia e Macunaíma, sobretudo, sua adaptação para o teatro de Paulo Hecker Filho, A
volta do marido pródigo, de 1987.
Observando a criação literária não como sistema fechado em si mesmo, mas em sua
interação com outros textos sejam literários ou não (CARVALHAL, 2003), verificar-se-á a
∗
Este artigo é resultado dos estudos da disciplina “Literatura Comparada: Intertextualidade e
Interdisciplinaridade”, ministrada pela professora Dra. Lúcia de Sá Rebello, no Programa DINTER
UFRGS/UEMS.
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relação deste conto com alguns intertextos tanto no nível formal como temático, tentando
perceber como se dá a adaptação do conto para o teatro. Neste estudo comparado, o conto
escolhido não será visto como um texto fonte ou primeiro, mas nas relações entre textos e
tessituras que se encontram de maneira horizontal, sem hierarquias, pois como explica René
Wellek,
A literatura comparada deseja superar preconceitos e provincianismos nacionais, mas
disso não resulta ignorar ou minimizar a existência e a vitalidade das diferentes
tradições nacionais. Precisamos tanto da literatura nacional quanto da geral,
precisamos tanto da história quanto da crítica literárias, e precisamos da perspectiva
ampla que somente a literatura comparada pode oferecer (WELLEK, 1980, p. 144).
Assim separou-se, para este trabalho, o conto “A volta do marido pródigo”, tendo em
vista dialogar com outros textos, sobretudo sua adaptação teatral realizada pelo escritor e
tradutor Paulo Hecker Filho, a partir do aparato teórico da Literatura Comparada. Tem-se uma
farta fortuna crítica de Rosa, mas não uma comparação entre seu texto “A volta do marido
pródigo” e o de Paulo Hecker Filho, sob o mesmo título. Frente a esta lacuna, justifica-se a
realização deste trabalho, tendo como base teórica uma bibliografia referente, sobretudo à
intertextualidade.
O processo criativo de Guimarães Rosa neste conto já aponta para uma linguagem
dramatúrgica: “Quem sabe, a gente podia representar esse drama, hem seu Laio?” (ROSA,
2011, p. 108); uma linguagem cômica que subverte o Bíblico, uma parábola caipira de uma
sabedoria popular. Até o nome do protagonista, Eulálio de Souza Salãthiel, faz referência à
Bíblia, pois, Salathiel, filho de Jeconias, é citado em Mateus 1.12. Eulálio também possui uma
carga semântica significativa, pois, Eulalo, de origem grega, quer dizer “bem falante” adjetivo
que define perfeitamente a personagem.
Esse conto apresenta de forma picaresca os caprichos de Lalino Salãthiel, o marido
pródigo, um homem de muito riso, de muita graça e pouco trabalho, conforme nota-se nesse
trecho do conto: “Mulatinho levado! Entendo um assim, por ser divertido. E não é de
adulador, mas sei que não é covarde. Agrada a gente, porque é alegre e quer ver todo-omundo alegre, perto de si. Isso que remoça. Isso é reger o viver” (ROSA, 2011, p.110). O
espírito de malandragem dessa personagem possibilitou a Rosa empregar ironia e malícia,
remetendo as personagens Macunaíma e Leonardo, exemplos de “heróis-malandros” na
literatura brasileira.
Também, sua trajetória remete à do filho pródigo, que abandona a família, levando
consigo os seus bens, com o intuito de viver aventuras em lugares distantes e o regresso após
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a decepção que sofre com seus sonhos. Isso é apenas o motivo inicial, a partir do qual o
narrador delineia a personalidade do “mulatinho malandro”, a personagem que tem um
“jeitinho” brasileiro de agir. O que se percebe é que, no conto, não existe julgamento moral
sobre o caráter de Lalino, que poderiam ser consideradas “más”. Nessa recriação de
Guimarães Rosa há uma visão diferente daquela encontrada no ensinamento moral que a
parábola bíblica pretendeu passar. O importante é retratar essa malandragem que oferece
muitos elementos que explicitam a relação que o conto “A volta do marido pródigo” tem com
a parábola bíblica e as fábulas, podendo entender o conto como uma paródia da parábola
bíblica. Guimarães parece borrar as fronteiras de gênero parábola, conto e teatro. E a
adaptação de Paulo Hecker seria um conto em cena?
Nessa recriação de Paulo Hecker continua transcorrendo a visão rosiana: “SAPO
GRANDE - Saga! OS OUTROS TRÊS - -rana! –rana! –rana! SAGARANA!”. Mas os sapos
juntos a Lalino tornam-se personagens principais nesta sugestiva adaptação teatral, a qual é
iniciada e concluída com um questionamento do sapo-rei – “E quem é que fica com a minha
mulher?...” (HECKER, 1987, p. 14 e 108). Vejamos a seguir.
1. “A Volta do marido pródigo” e alguns intertextos
Como qualquer texto é o resultado de vários outros textos (KRISTEVA apud
SAMOYAULT, 2008), parece claro afirmar que o texto “A volta do marido pródigo” tem
vários intertextos ou contêm a fusão de alguma repetição esperada. Não se pretende aqui
elencar a todos: o que parece impossível, haja vista que cada leitor, ao ler o conto, poderá ter
várias outras percepções das já levantadas, aliás, “o intertexto é antes de tudo um efeito de
leitura” (SAMOUYALT, 2008, p. 25). Assim o texto rosiano dialoga com outras narrativas.
Nesse segundo conto de Sagarana é possível encontrar, por exemplo, a presença de uma
narrativa encaixada, a fábula esópica do cágado e do sapo. É possível verificar, ainda, uma
paródia que se realiza da parábola do filho pródigo, bastando, para isso, que se lembre do
título do conto.
“A volta do marido pródigo”, portanto, faz referência explicita à parábola do filho
pródigo, desde o título. Trata-se de um varão chamado Eulálio de Souza Salãthiel que movido
pelo sonho de conhecer a cidade grande e seus prazeres, abandona a esposa, arrependendo-se
regressa para sua terra, sendo novamente acolhido por sua mulher. As seqüências narrativas
básicas, nos dois textos, são as mesmas: um sujeito com dinheiro em mãos, abandona sua casa
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e parte para uma terra distante, gasta todo o dinheiro com prostitutas, cai em desventura,
retorna, reconcilia-se com a família e sofre a reação da comunidade.
Contudo, enquanto a parábola pretende evocar uma temática divina (o modo como
Deus sempre está à espera de seus filhos pródigos), o conto retrata as relações dos humanos
entre si com outros desdobramentos intertextuais. Assim, além das referências bíblicas há
uma alusão ao fingimento e ao cumprimento dos papeis sociais marcados pela aparência e
pelas convenções, por isso o episódio de apascentar os porcos, na parábola bíblica,
corresponde à atuação política de Lalino, no conto, sujeito que fora rejeitado pela sua
comunidade local ao abandonar a esposa.
Daí entra em cena a questão da malandragem para superar essa marginalização,
referência implícita ao malandro Leonardo de Manuel Antonio de Almeida e Macunaíma de
Mario de Andrade, dentre outros, ao representar a personagem Lalino. No conto, são
representadas as artimanhas de Lalino de Souza Salãthiel, conhecido como “Seu Laio”. Essa
personagem confirma boa parte dos estereótipos produzidos sobre o mulato pela literatura
naturalista.
Eulálio Salãthiel é um mestiço, típico representante de uma esfera carente e
marginalizada da sociedade brasileira; ele é descrito como um mulato preguiçoso, astuto, sem
caráter, imaginativo, que conversa muito e faz pouco ou nada, levando muitas vezes os outros
a trabalharem por ele; é mestre em tirar proveito das situações, reconhecendo as forças e as
fraquezas alheias e lançando mão da cordialidade e amabilidade em sua fala, características
importantes no traçado malandro.
O protagonista, na condição de mulato, é avaliado por Ivone Minaes (1985) como um
malandro nos moldes definido por Candido em A dialética da malandragem. Uma vez que
simultaneamente ao encarnar a malandragem, Lalino apresenta amabilidade e cordialidade,
“— Olá, Batista! Bastião, bom dia! Essa fôrça como vai?!/ — Ei, Túlio, cada vez mais, hein?/
— Bom dia, seu Marrinha! Como passou de ontem?” (ROSA, 2001, p. 101); riso fácil,
“Lalino Salãthiel vem bamboleando, sorridente [...] E logo comenta, risonho e burlão”
(ROSA, 2001, p.101); possui, ainda, aderência aos fatos, que podem ser observados,
sobretudo pela capacidade desse herói de se adequar aos momentos. Ele não reflete, age
impulsivamente, guiado pelos desejos mais imediatos, sem ponderar as conseqüências,
simplesmente ajustando-se aos resultados produzidos por suas atitudes, vivendo, desse modo,
“ao sabor da sorte”, utilizando a astúcia para reverter uma situação adversa a seu favor.
Percebe-se que ele não se curva à sociedade que o marginaliza e não assume uma posição de
derrotado frente aos obstáculos que surgem.
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A linguagem é o elemento principal da malandragem presente no comportamento da
personagem principal, e não somente a verbal, mas também a gestual. Essa hipótese já vem
indicada no nome do protagonista, tendo em vista que Eulálio constitui-se em um nome
composto que indica dois radicais de origem grega: eu=, advérbio cujo significado é “bem”, e
lalein de “falar”. Eulálio significa, pois, aquele que fala bem, que é bom orador. A linguagem
gestual, assim como a verbal, tende a assumir relativa importância no traçado malandro
Lalino. Diversas passagens no livro contribuem a fim de indicar um destaque desse tipo de
comunicação:
Mas, lá detrás, escorregando dos sacos [...], dependura o corpo para fora, oscila e pula,
maneiro, Lalino Salãthiel [...] Lalino Salãthiel vem bamboleando, sorridente [...] Mas
Lalino não sabe sumir-se sem executar o seu sestro, o volta-face gaiato [...] E Lalino
fazia um gesto vago [...] Lalino Salãthiel gesticulava e modulava (ROSA, 2001, p.101103).
Nesse sentido, esse “herói-malandro” persuade pessoas à sua volta por meio da
comunicação adequada a cada interlocutor; a astúcia pode ser inclusive evidenciada pela
utilização da linguagem que opera o convencimento e faz Lalino dominar a situação; a
cordialidade e a simpatia de que vem carregada a comunicação da personagem faz com que
ele se saia bem dos mais adversos momentos em que se encontra, levando todos, como se diz
popularmente, “no bico”.
A respeito da composição dessa personagem, pode-se ainda levar em conta a relação
intertextual com a lenda de Pedro Malasartes, que assim como Lalino, é um anti-herói da
gente simples, que adora artes e está quase sempre contra os mais ricos e poderosos. Chega
atrasado no trabalho, porém consegue conquistar o chefe, ganhar o dia e fazer com que
pensem em lhe arrumar um emprego melhor.
Sua genealogia é da “grei dos sapos”. A referência ao sapo da fábula “A festa no
céu”, traz a previsão que ele tem a sorte dos sapos, como o sapo da festa que consegue
enganar até o anfitrião, São Pedro, e retorna são e salvo a terra através de sua malícia. “A
festa no céu” consiste na estória do sapo que vai para o céu dentro da viola do urubu e que,
perdendo o amigo cágado que é esborrachado numa pedra, ao final da festa se vê obrigado a
arrumar um outro jeitinho de voltar a terra.
Lalino vem de um lugarejo chamado Rio-do-Peixe, que remete um parentesco
alegórico de Lalino com os sapos e as rãs, como a estória da rã catacega, que, trepando na laje
e vendo o areal rebrilhante à soalheira, gritou - "Eh, aguão!..." - e pulou com gosto, e,
queimando as patinhas, deu outro pulo depressa para trás. Estes anfíbios ora terrestres, ora
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aquáticos, são inconstantes, como sua conduta e seu próprio nome: Eulálio de Souza Salãthiel,
Senhor Eulálio, Lalino Salãthiel, Lalino, Seu Laio e Laio. Esses nomes aparecem de acordo
com sua reação de espírito malandro.
O heroísmo de Lalino é exatamente vender sua mulher e com o dinheiro ir para o Rio
de Janeiro e lá gastar tudo até regressar e reconquistar a esposa sem devolver o dinheiro ao
espanhol Ramiro que tinha pagado por Maria Rita, e ainda sai glorificado da situação. Ele tem
uma luta vitoriosa – ganha as eleições para o Major e recupera Maria Rita, tornando-se um
“herói às avessas”.
Ao voltar a seu vilarejo corre imediatamente a sua ex-casa onde a ex-mulher não o
guardava (como o pai do filho pródigo). Não obtendo sucesso em rever Maria Rita, fica a
contemplar a natureza: “Toma a trilha da beira do córrego. Mas, que lindeza que é isto aqui!
Não é que eu não me lembrava mais deste lugar?!” (ROSA, 2011, p. 122). E novamente lança
mão da música para acalmar as paixões: “Eu estou triste como sapo na água suja...” (ROSA,
2011, p. 123).
Além de ludibriar as pessoas, Lalino tem também um interesse por algumas
modalidades artísticas, como o teatro e a música. Oscar, inclusive, critica a postura sonhadora,
fingidora e artística de Lalino: “precisa tomar juízo, fazer o que todo-o-mundo faz!...”
(ROSA, 2011, p. 125). O interesse do protagonista pelo teatro é grande, inclusive, segundo
ele, estava responsável pela organização da peça Visconde sedutor, no qual se estabelece uma
relação indissociável entre gesto e a palavra. Parece desse modo que a sedução malandra da
personagem principal é caracterizada pela associação da linguagem verbal à mímica.
Assim, se por um lado, o protagonista é sedutor como o Visconde da peça que
organiza, por meio da aplicação de uma linguagem adequada a cada interlocutor; por outro
lado, ele demonstra falta de caráter, pois é obrigado constantemente a utilizar essa sedução
verbal para fugir de suas obrigações. Percebe-se, assim, a personalidade do protagonista como
conseqüência da sua evidente procedência folclórica. Ele não tinha nenhum escrúpulo em
iludir o chefe, prejudicar os companheiros ou vender sua mulher como se fosse um objeto
para levar uma vida devassa no Rio de Janeiro; esse comportamento é compensado pela
amabilidade e cordialidade, fruto de sua condição de híbrido.
Híbrido também é a forma do extenso conto de Rosa: predominância de diálogos e
descrições, introduzindo um novo modo de leitura da parábola bíblica, cruzando o texto
folclórico com a literatura estrangeira, como a citação dos títulos Vingança do Bastardo, de
Eleonora Vorsky (pseudônimo de Alexandro Machado) e Um Visconde Sedutor de Jenna
Petersen.
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Lalino inventa sua peça de teatro, com vozes, cenário, atos, conforme a regra
literária:
- O primeiro ato, é assim, seu Marrinha: quando levanta o pano, é uma casa de
mulheres. O Visconde, mais os companheiros, estão bebendo junto com elas,
apreciando música, dançando... Tem umas vinte, todas bonitas, umas vestidas de luxo,
outras assim... sem roupa nenhuma quase...
- Tu está louco, seu Laio!?... Onde que já se viu esse despropósito?!... Até o povo
jogava pedra e dava tiro em cima!... Nem o subdelegado não deixava' a gente aparecer
com isso em palco... E as famílias, homem? Eu quero é levar peça para famílias...
Você não estará inventando? Onde foi que tu viu isso?
- Ora, seu Marrinha, pois onde é que havia de ser?!... No Rio de Janeiro! Na capital...
Isso é teatro de gente escovada... (ROSA, 2001, p.108).
Lalino nesta época não conhecia Rio de Janeiro, mas a sua mente fértil lhe fazia um
Visconde Sedutor que descobre uma atração poderosa de conhecer as delícias da cidade
grande.
Rosa transforma seu conto em um texto extenso, ao fazer relações com tantos outros
textos, como as estórias do universo folclórico, do teatro, do drama de “Visconde Sedutor”.
Observa-se que na análise intertextual não existe a pura repetição, sendo que o trabalho
literário exerce sempre uma função crítica sobre a forma e conteúdo, quer a intencionalidade
seja explícita ou não.
2. A volta do conto no teatro
Paulo Hecker Filho, crítico literário porto alegrense, publica, em 1987, (41 anos após
a publicação de Sagarana por Guimarães Rosa), A volta do Marido Pródigo: a volta do conto
rosiano para a literatura brasileira por meio da adaptação teatral.
Acredita-se que não foi difícil esta tarefa, pois o próprio Guimarães Rosa deu
indícios no conto para uma versão teatral, como o próprio Hecker aponta no prefácio: “estive
sempre vendo tudo em cena” (...) “Além das alusões no texto ao teatro como meta beleza, se
sente, ao adaptar, que tinha uma visão nítida da peça possível, como sua evolução dramática”
(HECKER, 1987, p. 5).
A adaptação teatral de Hecker se apóia na criação da personagem principal, Seu
Laio, como o conto que, aliás, se intitula também “Traços biográficos de Latino Salãthiel”.
Comparando os dois textos, percebe-se que não há fronteira nítida entre gêneros. A própria
palavra volta sugere aqui a circunferência, um contorno que não se sabe onde está o início
nem o fim. Rosa, ao escrever o conto, já borra essas fronteiras, pois ao invés de escrever uma
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narrativa curta, própria de um conto, escreve uma narrativa extensa, cheia de ação, descrições
e humor.
Paulo Hecker Filho (1987, p. 5), “sem se deixar levar pelas interpretações” (como ele
mesmo diz no prefácio), traz de volta à cena da arte brasileira, o mulato Laio, agora, com um
conjunto de sapos mais evidentes (O Sapo Grande e outros três). Uma hora depois do conto,
se passa as ações do texto teatral: no conto a saga inicia às “dez horas da manhã”; e na
adaptação, “às onze horas da amanhã”, o que parece sugerir poucas mudanças na adaptação.
O narrador do conto aparece no texto de Hecker como a figura dramática ALTOFALANTE. Normalmente, de acordo com Brook (1970), o texto teatral dispensa o narrador,
porque no teatro a história não é contada, mas, sim, mostrada pelas personagens vividas pelos
atores. Entretanto, Hecker não dispensa o narrador (que é o alto-falante), os diálogos e as
rubricas (didascálias) que já constituíam elementos de ação dramática no conto rosiano.
As rubricas (didascálias), segundo Brook (1970), são elementos do teatro que
orientam os atores sobre o momento de proceder no palco. Contudo, Rosa em seu conto já
utilizava este recurso entre parênteses: “(Correia tinha feito uma cara ruim...); (Generoso
aceita, calada a boca)” (ROSA, 2001, p. 103-104). Essas frases ou palavras indicando o
ambiente, a época, os costumes, os gestos, os objetos e entonações de voz dos atores grafadas
entre parênteses, também, foram reutilizadas no texto de Paulo Hecker sem negrito para
diferenciar das falas grafadas em negrito.
Paulo Hecker Filho, em relação às falas, apenas tirou os sinais de travessões que
indicam início das falas das personagens no conto, e utilizou a separação por nomes de
personagens grafadas com letras maiúsculas: OS SAPOS, ALTO-FALANTE, BASTIÃO,
ESTEVÃO, MARRA, GENEROSO, CORREIA, LAIO, RAMIRO, MARIA RITA, JIJO,
OSCAR, ANACLETO, LAUDÔNIO, VIGÁRIO, SECRETÁRIO DO INTERIOR. Também,
ao invés de dividir o texto em IX capítulos, dividiu-o em dois Atos: Primeiro Ato, A
PARTIDA, p. 11; Segundo Ato, A VOLTA, p. 51.
Assim há apenas um encontro, uma volta realmente do conto rosiano ao roteiro
teatral de Hecker. Voltaram os gestos, as rubricas, as falas idênticas (exceto dos sapos que
foram acrescidos numa referência a SAGARANA), os repertórios musicais... Os gestos
continuam não enclausurados pelas palavras! Cada um tem o seu lugar importante. Agora os
sapos, na adaptação, ocuparam uma posição mais “elevada”: iniciar e terminar o drama.
O crítico Paulo Hecker Filho interessou pelos sapos que estavam diluídos no conto e
assim ressaltou a qualidade da encenação. No conto, o sapo era um intertexto. Na peça teatral,
uma das personagens mais importantes acoplado a Laio (o Sapo Grande). Como na análise
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intertextual do conto, na peça teatral, Laio é comparado aos sapos. Hecker Filho inicia seu
texto, depois de descrever o cenário, com quatro sapos num estranho diálogo:
O SAPO GRANDE
Saga!
OS OUTROS TRÊS
- rana!
SAPO GRANDE
Saga!
OS TRES
- rana!
SAPO GRANDE
Sagarana!
OS TRÊS
Sagarana!
SAPO GRANDE
Chico?
OS TRÊS
Nhô?
SAPO GRANDE
Você vai?
OS TRÊS
Vou!
SAPO GRANDE
Quando eu morrer, quem é que fica com os meus filhos?
OS TRÊS
(Consecutivamente) - Eu não... Eu não! (O primeiro, forte) Eu não!
(...)
SAPO GRANDE
Quando eu morrer, quem é que fica com a minha mulher?
OS TRÊS
(Exultantes) – É eu! É eu! É eu! É eu! É eu!
SAPO GRANDE
(Com humor) – Saga!
OS TRÊS
(Dionisíacos) – rana! Sagarana! Sagarana!
(HECKER, 1987, p. 11-13)
Além do título do texto, esse coaxar dos sapos remete ao livro de Guimarães Rosa,
Sagarana. Palavra esta que significa “próximo a uma saga”: saga – radical de origem
germânica significando “canto heróico”, “lenda”; e -rana – sufixo de origem tupi significando
“que exprime semelhança”. Essas vozes dos sapos fazem alusão à malandragem que há nas
relações sociais regidas pelos interesses: homens se interessam mais por mulheres do que por
filhos.
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O Sapo-rei no conto é remetido às ações de Lalino, aqui, o Sapo Grande,
acompanhado do artigo definido funciona como anafórico, ou seja, indica um sapo que já
conhecemos – o Seu Lalino do conto que volta para sua mulher. Assim se tem o desfecho da
peça:
SAPO GRANDE
Saga!
OS OUTROS TRÊS
(Saltando e gritando em fuzarca) - rana! - rana! - rana!
SAGARANA!
SAPO GRANDE
E quem é que fica com os meus filhos quando eu
morrer?!
OS TRES
Eu não! Eu não! Eu não! Eu não! Eu não!
SAPO GRANDE
Pobres órfãos!... Pobres órfãos!... Saga!
OS TRÊS
- rana!
SAPO GRANDE
(com fleuma humorística) – E quem é que fica com a
minha mulher?...
OS TRÊS
(separados e juntos com entusiasmo) – É eu! É eu! É eu!
É eu! É eu!
SAPO GRANDE
(depois dum pestanejo malicioso, com clareza) – Mas é
que eu ainda não morri!... Tou vivo, mulher, e tou
indo!
(HECKER, 1987, p. 107,108)
Os outros sapos ficaram jururus, como os companheiros de Lalino quando este
retornou para casa. Todos queriam a sua mulher. Mas no conto não aparece sinais de crianças
do casal. Assim esta adaptação teatral, ao trazer o conto para um outro contexto, amplia o
humor e a crítica da sociedade através do circuito dos sapos que aparecem e reaparecem no
palco humano.
FECHA-SE A CORTINA
A volta do marido pródigo, seja o conto ou a adaptação teatral de Paulo Hecker
Filho, não foge à maneira de outros textos rosiano: sempre nos trazendo mais inquietações do
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que respostas; transmitindo perguntas, fazendo-nos não aceitar facilmente as convenções que
nos são oferecidas; ou seja, exigindo do leitor uma atitude de reflexão frente à sociedade.
Tanto o conto como o roteiro teatral tem uma gramática gestual, uma criação poética,
forte o suficiente para colocar personagens frente ao espectador/leitor. É possível enxergar as
cenas! E ao comparar o conto de Rosa com o roteiro teatral de Hecker, é possível intensificar
esteticamente ainda mais o diálogo com o espectador, pois os sapos coaxam audivisivelmente.
Em A volta do marido pródigo, de Paulo Hecker Filho há repetições das falas das
personagens e do narrador/alto-falante, com o acréscimo do circuito dos sapos. Percebe-se
que o conto de Guimarães, mesmo não estando no formato de roteiro teatral, já poderia ser
encenado, pois o texto é todo constituído de diálogo entre personagens e outros elementos
próprios do teatro. Como diz Hecker (1987, p. 5), “tem a vitalidade de uma comédia clássica”,
apoiada na criação de uma grande personagem, Laio.
Essas realizações propriamente poéticas da criação de Laio, além de apresentar um
vasto material folclórico e sociológico, imprescindível para o conhecimento de um “mulato
brasileiro”, iluminam trevas que vai nos fazer sorrir, como o dono dos bois no dito: “Pra uns
as vacas morrem, pra outros até boi pega a parir”...
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BROOK, Peter. O teatro e seu espaço. Petrópolis: Vozes, 1970.
CARVALHAL, Tânia. O próprio e o alheio: ensaios de literatura comparada. São Leopoldo:
UNISINOS, 2003.
HECKER FILHO, Paulo. A volta do Marido Pródigo. Comédia extraída de um conto de
Guimarães Rosa. Porto Alegre: Tchê, 1987.
MINAES, Ivone. A linguagem malandra em Guimarães Rosa. Revista de Letras. São Paulo,
n. 25, p. 25-34, 1985.
ROSA, João Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
SAMOYAUT, Tiphaine. A Intertextualidade. Trad. Sandra Nitrini. São Paulo: Hucitec. 2008.
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WELLEK, René. Conceitos de crítica. São Paulo: Cultrix, 1980.
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