“Dever-se-ia ensinar a filosofar, porque não se ensina nem se pode ensinar filosofia [...]”. Afirmações como esta demonstram as idiossincráticas convicções de Gonzalo Armijos Palácios e, consequentemente, resumem o teor da entrevista concedida pelo professor, que é titular da Universidade Federal de Goiás, UFG, desde 1992, e diretor do câmpus da Cidade de Goiás, onde instituiu o curso de filosofia no ano de 2008. O professor lamenta que a academia brasileira, além de não conseguir ensinar filosofia, desestimula o próprio “filosofar” que, para ele, é uma atividade de procurar respostas por si mesmo. Daí entende-se sua ênfase em dizer o quanto a maiêutica socrática o marcou em sua prática de docência, segundo ele, na tentativa de ajudar os alunos a desenvolverem caminhos argumentativos próprios diante de diferentes questões filosóficas. Gonzalo Armijos é equatoriano e possui graduação e doutorado em filosofia pela Pontifícia Universidad Católica del Ecuador, PUCE, além de doutorado pela Indiana University, IU, Estados Unidos. Em suas respostas aos alunos Anelito Graciano Rodrigues Mota, Danielle Maruk Nascente e Wagner Vieira Rodrigues Filho, da licenciatura da UFG, Gonzalo Armijos tenta ressaltar a importância do “filosofar”, não como algo para “nefelibatas e gente esquisita”, mas como algo necessário a qualquer um que se perturbe com as questões que a realidade implica. Assunto presente nos seus últimos escritos, em artigos acadêmicos ou em jornais, bem como em um dos seus livros publicados: De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio, pela editora UFG, de 1997, assim como no livro que está no prelo e que publicará em breve, Ensaios sobre filosofia e filosofar. 118 Dossiê: a filosofia e o seu ensino Entrevista com o prof. Gonzalo Armijos Palácios A didática dos clássicos influencia a sua didática? antigas teorias sobre o ser no Sofista. Naturalmente, especialmente os diálogos de Platão e o método maiêutico. Intelectualmente, mesmo que não politicamente, fui muitíssimo influenciado por Karl Popper, o filósofo da ciência. Mas a maiêutica socrática me marcou como professor. Se você foi minha aluna, e me lembro que foi, se lembrará de como eram minhas aulas, cheias de perguntas minhas e respostas dos estudantes. Qual sua concepção de filosofia? Na sua concepção, ensina-se filosofia ou a filosofar? como isso influencia a avaliação? Como? E Dever-se-ia ensinar a filosofar, porque não se ensina nem se pode ensinar filosofia, como bem dizia Kant. Tenho escrito muito sobre isso: ensina-se a filosofar, filosofando, assim como se ensina música tocando um instrumento, ou a escrever, escrevendo. Mas a academia brasileira não ensina nem uma, nem outra. Não ensina uma, a filosofia, porque não pode ser ensinada; e a filosofar não só não se ensina como se desestimula, como reconheceu o professor Porchat, da USP, em uma carta aos estudantes dessa instituição. E, claro, dependendo do que entendemos por ensinar em filosofia, vamos avaliar de acordo com isso. Dessa forma, se achamos que devemos enfiar informações, teses e textos nos estudantes para que decorem, sem tratar esse material crítica e reflexivamente, poderemos nos limitar a dar uma prova decorativa. Se estimulamos o filosofar, pediremos aos estudantes que produzam textos defendendo suas posições e defendendo-as face às críticas dos próprios colegas ou às ideias dos clássicos da filosofia. Como o estudo dos clássicos se relaciona com a autonomia do aluno em filosofar? Relacionar-se-ia sempre que o professor tivesse o cuidado de mostrar aos estudantes as inúmeras passagens em que os clássicos se afastam, criticam ou refutam a tradição e seus próprios mestres, e, às vezes, suas próprias posições anteriores, como Platão, ao criticar suas Inquietude, Goiânia, vol. 1, n° 2, ago/dez - 2010. 119 Por ser uma atividade, o filosofar não pode ser definido, já que há inúmeras e incomensuráveis maneiras de se efetuar essa atividade. E isso o mostra a própria história. Chama-se “filosofia”, na verdade, a esse conjunto heterogêneo e amorfo de atividades que, para mim, possuem essa característica: o pensador, ou pensadora, percebe que há algo que não entende ou que não sabe, é surpreendida ou surpreendido por alguma questão que não pode ser resolvida satisfatoriamente com o auxílio de nenhuma outra ciência ou qualquer tipo de sabedoria existentes. Isso leva essa pensadora e esse pensador a procurar por si mesmos as respostas. Aí começa o ato de filosofar. Dependendo do tipo de problema, de situação, assim como das habilidades e inclinações dessa pensadora ou pensador, as soluções serão as mais diferentes, diferença esta que refletirá a situação única que se cria quando alguém, com características, habilidades e problemas específicos, parte para, de uma forma muito concreta, tentar resolver o que lhe incomoda ou perturba. O que representou a aprovação da filosofia, pelo Conselho Nacional de Educação, como componente curricular do Ensino Médio? Essa inclusão deveria se estender ao currículo do ensino fundamental? A volta da filosofia ao Ensino Médio, aqui em Goiás, ocorreu um ano antes da resolução ministerial, em 2005. Essa decisão foi um triunfo de um pequeno grupo, dentre o qual eu me encontrava, de professores de filosofia e sociologia, para que as duas disciplinas entrassem na matriz curricular como obrigatórias. Organizei vários eventos regionais, em Goiânia e Brasília, e participei de outros no sul do país. Essa, para mim, foi uma vitória pessoal. Não tenho uma opinião formada sobre se deveria, o ensino de filosofia, ser estendido ao nível fundamental. O senhor é favorável à inclusão da filosofia nos vestibulares, em www.inquietude.org 120 Dossiê: a filosofia e o seu ensino particular no da UFG? Por quê? Precisaria debater isso com outros colegas. Não tenho uma posição formada e definitiva aqui também, porque há problemas. Um deles é este: se ela fizer parte do vestibular, os cursos de vestibular e os estabelecimentos particulares definiriam seu ensino pelas questões que cada semestre (porque daqui a pouco o vestibular será semestral também para a filosofia) apareçam no vestibular. Qual a terminologia correta a se adotar: “filósofo” ou “professor de filosofia”? A expressão “professor de filosofia” sempre foi um subterfúgio de falsa humildade daqueles que, de fato, deveriam professar o que faziam, ou seja, filosofar. Porém, como estes se limitavam a ensinar as ideias alheias, as ideias dos clássicos da filosofia, sem nunca produzirem nada filosoficamente, se escondiam nessa aparentemente ‘humilde’ posição de dizer que não eram filósofos, mas ‘professores’ de filosofia. O que é um escândalo. Porque se o professor de música não é músico, ou o de pintura, pintor, que então ensinam aos seus alunos? O mesmo vale para qualquer um, como na nossa área, que diz ‘professar’ o que não se sente capaz de fazer, pois aí está o problema: como professar o que não se sabe fazer? Que avaliação você faz da Licenciatura em filosofia na UFG? O currículo da graduação corresponde àquilo que é necessário para formar um profissional apto para lidar com o ensino? Como todos sabemos, a licenciatura, no curso de filosofia em Goiânia, foi sempre jogada às traças. E sempre encarregavam essa área ao ingênuo que chegava de fora, estrangeiro mesmo, como o Ralph e eu mesmo. Naturalmente, houve esforços para contornarmos essa situação, mas nunca foi fácil. Entrevista com o prof. Gonzalo Armijos Palácios 121 O que recomendo a qualquer que queira fazer algo bem feito. Que só faça se tem verdadeira paixão por questionar as coisas, perceber problemas e tentar resolvê-los com os instrumentos que temos: os grandes textos dos clássicos, antigos e atuais, e o próprio pensamento. Deve ter o valor para se jogar no abismo, e, uma vez no fundo, escalar o abismo de novo. Qual a sua avaliação sobre os manuais e livros didáticos de filosofia publicados até então no Brasil? Alguns, muito ruins. Um, talvez o mais famoso, um verdadeiro escândalo e um insulto à inteligência. Ultimamente estão aparecendo coisas boas. Como é possível, em uma sala de aula numerosa e diversificada, tornar a filosofia interessante aos estudantes do ensino médio? A filosofia exige uma didática específica? O professor deve, primeiro, mostrar que todos nós, inclusive eles, e preferencialmente eles, estamos inseridos em uma realidade na qual abundam problemas para serem resolvidos com o nosso pensamento. Questões como pobreza, discriminação, questões de gênero e sexualidade, todas elas preocupam os adolescentes. Partindo de questões que realmente lhes preocupam, poderíamos levá-los a pensar, debater, construir um texto e, depois, ler um texto clássico que trate sobre o assunto. Um texto clássico claro e direto, que há muitos. Isso mostraria que o filosofar não é algo para nefelibatas e gente esquisita, mas que lida com as questões que mais nos angustiam e preocupam. Além da formação acadêmica, o que o senhor recomenda àqueles que desejam se tornar filósofos? Inquietude, Goiânia, vol. 1, n° 2, ago/dez - 2010. www.inquietude.org