O Humanismo Existencialista e a Questão da Má-fé Segundo o Pensamento de Jean-Paul Sartre. O existencialismo sartreano apresenta-nos uma radicalização do humanismo em oposição às concepções tradicionais do homem. A compreensão da condição humana impõe-nos a necessidade de pensar as noções de liberdade, responsabilidade, ação e, conseqüentemente, uma moral existencialista. Isso ocorre à medida que Sartre critica a idéia de natureza humana, promovendo a ruptura com as idéias gerais e abstratas atribuídas à realidade do homem e, portanto, a imposição de uma “moral consoladora”1. Desse modo, na conferência O Existencialismo é um Humanismo, de 1946, encontramos o núcleo da perspectiva filosófica e humanista do pensamento sartreano. Ao afirmar a precedência do existir em relação à essência, o filósofo estabelece a primeira máxima existencialista: “o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e só depois se define” (SARTRE, 1978, p. 12). Em consonância com o existencialismo ateu, o filósofo, parte do princípio de que se Deus não existe é possível encontrar pelo menos um ser no qual “a existência precede a essência”, um ser que anterior a qualquer definição religiosa ou metafísica exista no mundo: tal ser é o homem. Assim, Sartre afirma que não há nenhum destino ou propósito exterior à realização humana, isto é, o homem é um ser-no-mundo, utilizando aqui uma expressão heideggeriana, cuja característica primordial é a liberdade. Com isso, Sartre pretende despir toda a espécie de moralidade “consoladora”, o que resulta na conseqüente responsabilidade e posicionamento ético que o homem deve assumir. Observa-se, essa crítica às teorias que postulam determinadas referências fixas (a existência divina como encontramos em O existencialismo é um humanismo, por exemplo) como orientadoras das ações o que nos evidencia implicações extremadas, principalmente, em relação ao humanismo e a moral. Conforme Sass (2006, p. 72): “A crítica pode ser identificada no sentido de recusa de todo tipo de moral restritiva da 1 (Cf. BEAUVOIR, S. 2005, p.14). “Essa expressão denuncia às perspectivas morais que pressupõe uma referência exterior a realidade humana cuja função seria a de regular o plano das ações. A título de exemplo podemos citar a noção de Bem no platonismo e o imperativo categórico em Kant. Em outras palavras, a idéia de “moral consoladora” remete aos subterfúgios transcendentes e substancialistas presentes na história do pensamento”. liberdade ou de condicionamento das ações humanas. Um código moral é, para Sartre, a cristalização da condição da moral fundada na liberdade”. De acordo com a teoria existencialista, somos incondicionalmente livres, sós e sem desculpas.Uma vez destituídos de essência, o homem deve se fazer, criar a si mesmo, isto é, a cada momento o ser humano requer uma nova escolha e o conjunto de ações define o seu projeto existencial. Somos nós quem criamos a nossa imagem e os nossos valores, pois antes de alguém viver, a existência não é nada. O ser humano é o único responsável por dar sentido e atribuir valores a sua própria existência, os quais serão os resultados das escolhas. Dessa forma, a teoria existencialista afirma que o homem não é definível, pois, inicialmente, não é nada; só posteriormente será alguma coisa e será aquilo que fizer de si mesmo2. Para Sartre, o homem existe e tem consciência de sua existência, ou seja, ele é um ser que se lança para as coisas do mundo, projeta-se para o futuro, e, conseqüentemente, é a própria consciência do processo de fazer-se. Neste sentido se pode dizer que a realidade humana é antes um realizar-se do que algo de dado. Precisamente porque esse processo de realização é consciente, porque o sujeito é consciente de si como de algo que ele ainda não é, mas que precisa vir-a-ser, porque, não sendo determinado, esse sujeito tem de inventar a cada momento o seu ser, isto é, o significado que julga dever atribuir ao fato de existir, por tudo isso é que esse processo de tornar-se sujeito pela sucessão de suas escolhas estará sempre na dependência de um projeto existencial pautado por escolhas morais. (LEOPOLDO E SILVA, 2005, p. 12). Na conferência o “Existencialismo é um Humanismo”, podemos analisar a posição de Sartre frente quando afirma que a existência precede a essência: "significa que o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e só depois se define. "O homem é, não apenas como ele se concebe, mas como ele quer que seja, como ele se deseja ao impulso para a existência; ou seja, o homem não é nada mais o que ele faz, não é mais do que seu ato. Para Sartre, o existencialismo é uma doutrina que declara que toda a verdade e toda ação implicam um meio e uma subjetividade humana. O que significa que o 2 (Cf. SARTRE, 1978, p.6) “O homem, tal como o existencialista o concebe, só não é passível de uma definição porque, de início, não é nada”. homem enquanto existente, possui um conjunto de possibilidades que o obrigam a escolher e, ao escolher é a ele que se escolhe, o que desencadeia uma defesa existencialista cerrada na liberdade. Em decorrência disso, temos uma das mais célebres afirmações sartreanas: “o ser humano está condenado à liberdade”. Isto ocorre, segundo ele, exatamente pelo fato de que somos obrigados a escolher diante de várias possibilidades; pois não há um projeto ou destino pré-determinado, já que defende a não existência divina. Mas, ser livre significa que somos nós, e somente nós, os responsáveis em absoluto pelas nossas próprias decisões e ações. A preocupação sartreana é de que o homem, diante de suas inúmeras escolhas assuma a responsabilidade de uma opção. Porque cada escolha carrega consigo uma responsabilidade. E é fato que cada escolha ao ser posta em ação provoca mudanças no mundo que não podem ser desfeitas. Não se pode, segundo o existencialismo, atribuir a responsabilidade por tais atos a nenhuma força externa, como por exemplo, ao destino ou a Deus. Em cada momento, diante de cada escolha que se faz, o homem torna-se responsável não só por si, mas por toda a humanidade e, ao fazer tal escolha o homem atua e afeta o mundo. O que implica na situação solitária e na total responsabilidade humana perante sua liberdade. Assim, o homem ciente de sua finitude, receia ser livre, se torna um ser angustiado, e por isso procura abrigo na transcendência, no metafísico – no Absoluto. Atribui os fatos de sua vida ao destino e às circunstâncias externas que agem indiferentemente à sua vontade, ou seja, é mais fácil atribuirmos ou acreditarmos que há um propósito no universo, isto é, que nossos atos são guiados por uma força exterior. Dessa forma, os atos e suas decorrências não seriam responsabilidade humana. Neste quadro, o homem ao constatar que não há nenhum destino ou propósito exterior, isto é, que é único, só e possuidor de plena liberdade e conseqüente responsabilidade, vê-se mergulhado no desalento. É importante salientar que o princípio de Sartre é a não existência de Deus. Defender que o homem não tem ao que se apegar e a não existência de um Deus tem implicações extremadas. Considera que somos livres, sós e sem desculpas. Uma vez não tendo essência, a liberdade deve ser feita, criada. Dessa maneira, a consciência se lança no futuro se distanciando do passado. Sartre, nesta conferência, responde às críticas sofridas por tal concepção; afirma que o existencialismo não pode ser refúgio para os que procuram a inconseqüência e a desordem. O que significa que tal movimento não visa o abandono da moral, mas a coloca no seu devido lugar: na responsabilidade individual de cada um, que é determinada pela própria consciência. O ponto de partida do existencialismo sartreano é a subjetividade. Na subjetividade existencial, porém, o homem não atinge apenas a si mesmo, mas também aos outros, como condição de sua existência. Não há natureza, mas condição humana. Somos nós que criamos valores, pois antes de alguém viver, a vida não é nada. Quem vive é que deve aplicar-lhe sentido e conseqüentemente atribuir valores diferentes, os quais serão os resultados da escolha.O homem é sempre "situado e datado", embora o conteúdo de sua situação varie no tempo e no espaço. O homem não é um "em si" ele é um "para si", que a rigor não é nada. Esse vazio é a liberdade fundamental do "para si". É a liberdade, movendo-se através das possibilidades, que poderá criar-lhe um conteúdo. Eis o que é o homem, ao experimentar essa liberdade, ao sentir-se como um vazio, experimenta a angústia, isto é, a consciência humana da liberdade de escolha e da imprevisibilidade da própria ação, as quais nenhum homem pode escapar.O Humanismo Existencialista coloca ao homem que não há outro legislador a não ser ele mesmo e no desamparo é que ele decidirá sobre si; obviamente não se voltando apenas para si mesmo, mas ao procurar uma meta fora de si é que o homem se realizará precisamente como ser humano. Porém, muitos não suportam tal responsabilidade, e ao sentir o desalento e a angústia buscam refugiar-se. Mediante a tal condição, o homem busca maneiras de negar à liberdade, conseqüentemente à responsabilidade de seus atos, o que significa esconder-se na má-fé.Segundo a concepção sartreana a má-fé é uma auto defesa contra o desalento e a angústia, porém uma defesa equivocada. Pois a má-fé é a atitude característica do homem que finge escolher, sem na verdade escolher. É o processo de renúncia à liberdade, assim o homem imagina que seu destino está traçado, atribui conformadamente que os valores são ou estão dados por fatores externos, isto é, "mente para si mesmo", que é o autor dos seus próprios atos. Nesse processo recusa a dimensão do "para si", torna-se um "em si", semelhante às coisas: coisifica-se. Perde a transcendência, reduz-se a facticidade. Sartre enuncia no Capítulo II“As Condutas de Má- fé”, da obra O Ser e o Nada que podemos observar o exemplo da mulher, que tentando negar para si todo o entorno de significações, comprometimentos e impulsos que a situação carrega volta-se ao significado explícito, à coisificação. Ela é consciente do propósito o qual está pressuposto para o desenlace do encontro, das intenções por trás dos atos do cavalheiro. No entanto, mente a si mesmo, nega sua liberdade ao afirmar-se como transcendência. Assim, ao isolar o presente, vive-o sem viver.A mulher do exemplo admite seu desejo, mas o apreende não como sendo o que é, e sim em sua transcendência. Dessa forma, sua consciência faz o movimento entre facticidade e a transcendência. Eis, a definição de má-fé: enganar a si mesmo. Sartre apresenta a má-fé como tendo a mesma estrutura da mentira, mas suprimida a dualidade entre enganador enganado. Quem mente e quem recebe a mentira são a mesma pessoa. A consciência não é nada em si mesma, mas uma intencionalidade que tem de se relacionar com o mundo. A consciência busca o ser, e, portanto, é sempre consciência de alguma coisa: “a consciência é um ser para o qual, em seu próprio ser, ergue-se a questão de ser enquanto este ser implica um outro que não si mesmo”. Esse é o caráter da negação interna, que torna a má-fé tão peculiar dentro do conjunto de negatividades que é próprio ao ser humano. Conforme Sartre, o ser humano não só revela negatividades no mundo, como pode também tomar atitudes negativas em relação a si. O que implica que a diferença entre má-fé e mentira deriva da unidade de consciência, já que ambas assemelham-se na estrutura. Na má-fé, porém, a consciência se afeta a si mesma, o que significa que é necessário existir uma intenção primordial e um projeto de má-fé o que desencadeia numa compreensão da má-fé e uma apreensão pré - reflexiva da consciência. Nesse contexto, a má-fé revela como essencial se tomarmos o ser-no-mundo não como um estar de uma coisa em outras, mas em sua busca pelo ser constitutivo da existência humana. Sartre nomeia a má-fé de um fenômeno evanescente, com uma estrutura precária, justamente pela dificuldade que surge entre a translucidez da consciência e a própria má-fé, o que significa que não é possível mentir a si mesmo deliberadamente: a mentira retrocede e desmorona ante o olhar da consciência. Assim, verifica-se que Sartre tece uma crítica à psicanálise, pois a psicanálise introduz o conceito de mentira sem o mentiroso. Sabe-se que Freud rejeitou a filosofia discriminando-a de relações com sua psicanálise porque aspirava à certeza científica. Diferentemente Sartre, considera que a certeza só pode ser adquirida por intermédio da intuição. Ao atribuir a ação do homem a impulsos do inconsciente, a psicanálise nega a translucidez da consciência. Sartre nega que a consciência exerça um papel secundário no fenômeno da má-fé, isto é, nega a sua subordinação ao inconsciente. Em suma, o existencialismo é uma moral da ação, porque considera que a única coisa que define o homem é o seu ato. Ato livre por excelência, mesmo que o homem esteja sempre situado num determinado tempo e lugar, independente de um destino ou algo pré-determinado. Logo, a existência humana é que condiciona sua essência. Mas, o homem, ao esconder-se na má-fé, nega tal liberdade. O que revela uma problemática, pois ao projetar a má-fé, possui o intuito de servir de alívio por esconder-se da responsabilidade e da condenação de não poder deixar de ser livre, fato que camufla a realidade dos atos humanos. Assim, o homem, dominado pelo medo de optar e de escolher o caminho errado e de não saber quais as conseqüências de sua opção, abre mão de sua plena liberdade, nega sua total responsabilidade e, além disso, através de tal negação interna o homem busca assumir uma outra natureza humana diferente da que realmente almeja. REFERÊNCIAS ARANHA, Maria Lúcia A., MARTINS, Maria H.P. Temas de filosofia. São Paulo: moderna, 1992. COTRIM, Gilberto. Fundamentos da Filosofia. São Paulo: Saraiva, 1997. LEOPOLDO E SILVA, F. Sartre e a ética. In: LEOPOLDO E SILVA, F.; MARCONDES FILHOS, C.; KREINZ, G. Homenagem à Les Temps Moderns. São Paulo: Filocom/ ECA/USP, 2005. (Existo. com). SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. In: SARTRE, J. P.; HEIDEGGER, M. O existencialismo é um humanismo; A imaginação; Questão de método; Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção Os Pensadores).