revista juris da FACULDADE DE DIREITO FA A P - J U R I S F U N D A Ç Ã O A R M A N D O A LVA R E S P E N T E A D O Vo l u m e 5 – j a n e i r o a j u n h o / 2 0 11 ISSN 2175-2230 FUNDAÇÃO ARMANDO ALVARES PENTEADO Rua Alagoas 903 - Higienópolis São Paulo, SP - Brasil Desde 1947 Revista Juris da Faculdade de Direito, Fundação Armando Alvares Penteado. Volume 5 - janeiro a junho/2011 – São Paulo: FAAP, 2010 Semestral ISSN 2175-2230 Penteado. 1. Direito – Periódicos. I. Faculdade de Direito, Fundação Armando Alvares CDD 340 CDV 34 Apoio Institucional da FUNDAÇÃO ARMANDO ALVARES PENTEADO Conselho de Curadores da FAAP Presidente: Sra. Celita Procopio de Carvalho Integrantes: Sra. Maria Christina Farah Nassif Fioravanti Dr. Benjamin Augusto Baracchini Bueno Dr. Octávio Plínio Botelho do Amaral Dr. José Antonio de Seixas Pereira Neto Embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima Diretoria Executiva Diretor Presidente: Dr. Antonio Bias Bueno Guillon Diretor Tesoureiro: Dr. Américo Fialdini Jr. Diretor Cultural: Prof. Victor Mirshawka Assessoria Administrativa e Financeira: Dr. Sérgio Roberto de Figueiredo Santos e Marchese Assessoria de Assuntos Acadêmicos: Prof. Raul Edison Martinez Diretoria da Faculdade de Direito Diretor: Prof. Álvaro Villaça Azevedo Vice-Diretor: Prof. José Roberto Neves Amorim Comissão Editorial Editor: Prof. Rui Carvalho Piva Assistente: Milene D. Mussi Krueger Bibliotecária: Marilena Coscia Conselho Editorial Álvaro Villaça Azevedo José Roberto Neves Amorim Rui Carvalho Piva Antonio Cezar Peluso Carlos Blanco de Morais Carlos Eduardo de Abreu Boucault Cláudio Salvador Lembo Diego Corapi Eneida Gonçalves de Macedo Haddad Enrique Ricardo Lewandowski Fernando Facury Jorge Miranda José Geraldo de Sousa Junior Luiz Edson Fachin Manoel Gonçalves Ferreira Filho Marcos Fábio de Oliveira Nusdeo Maria Helena Diniz Maria José Constantino Petri Maria Lígia Coelho Mathias Mario Julio de Almeida Costa Sebastião Luiz Amorim Zeno Veloso Tiragem: Direitos e Permissão de Utilização 3000 exemplares Todos os direitos reservados. A reprodução de qualquer parte Dados para correspondência: desta revista será permitida mediante prévia autorização. Revista Juris da Faculdade de Direito A reprodução indevida estará sujeita às penalidades previstas na legislação pertinente. Rua Alagoas, 903 – Prédio 2 – Térreo Higienópolis – SP - CEP: 01242-001 Publicação Semestral Fone: (11) 3662-7339 Solicita-se permuta E-mail: [email protected] http://www.faap.br/faculdades/direito Editorial A sociedade brasileira está efetivamente inquieta. A construção do conceito de casamento permanece inacabada. As pessoas em sociedade, os seus representantes para elaboração das leis, os intérpretes do desejo dessas pessoas contido nas leis e os Magistrados aplicadores dessas leis conforme os desejos sociais nela contidos nem bem assimilaram a decisão do Supremo Tribunal Federal proferida no mês de maio, reconhecendo a possibilidade do reconhecimento de união estável entre pessoas do mesmo sexo, e já surgiu o novo desafio. Casamento entre pessoas do mesmo sexo. Mais especificamente, entre dois homens. Três dias antes do fechamento desta quinta edição da Revista JURIS, em 27 de junho de 2011, o Juiz Corregedor de Jacareí, em sentença inédita, mandou registrar o casamento de Luiz André e José Sérgio. Vale a pena conferir o inteiro teor da sentença, reproduzido nas Questões Polêmicas desta edição. Na entrevista, um brinde especial para os leitores da Revista e um privilégio para todos os envolvidos com esta edição. Momentos especiais da trajetória profissional e da vida do nosso Professor, o ilustre e sempre transparente Mario Luiz Sarrubbo, Diretor da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo. Ainda em torno das homoafetividades, já no espaço reservado para os artigos, estamos oferecendo a vocês a palavra sempre segura, experiente e formadora de opiniões do ilustre Professor Álvaro Villaça Azevedo, que nesta edição vem acompanhado dos argumentos muito bem construídos pela recém graduada Marcella Corrêa Marques Gonçalves dos Santos em seu trabalho de conclusão de curso aqui na FAAP, a respeito da adoção por casais homoafetivos. Este Editor repercutiu matéria de sua autoria sobre a conveniência de privilegiar comportamentos de fazer e de não fazer no cumprimento das prestações alimentícias. Os Professores Edson Ricardo Saleme, Silvia E. Barreto Saborita, Fabiano Carvalho e Maurício Bunazar produziram e repercutiram informações jurídicas de qualidade em seus bem elaborados artigos. Ainda nos artigos, uma verdadeira e sempre desejada “invasão” dos alunos dos Cursos de Pós-Graduação em Direito da FAAP. De São Paulo, tratando de assuntos de sustentabilidade ambiental, orientados pela Professora Juliana Cassano Cibim, os especialistas Carla Lupinacci Poças, Daniela Fonzar Poloni, Lívia Menezes Pagotto e Luís Paulo Agostino de Magalhães Duprat. De Ribeirão Preto, escrevendo sobre o tema ainda não resolvido das reservas florestais, orientado pelos Professores Marcelo Godke Veiga e Rui Carvalho Piva, o especialista Gil Donizeti de Oliveira. Ainda de Ribeirão, o especialista Renan Posella Mandarino, que concluiu o Curso de Direito Penal e Processual Penal, escreveu sobre liberdade provisória e o crime de tráfico ilícito de entorpecentes. Sobre jurisprudência, estamos publicando um acórdão muito bem elaborado pelo nosso Professor e digno integrante da Câmara Superior de Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda , Alexandre Naoki Nishioka, a respeito de imposto de renda de pessoa física incidente sobre recursos oriundos do exterior para aplicação em atividades de agenciamento e manutenção de estagiários junto aos clubes de futebol brasileiros. Com dupla colaboração nesta edição, o Professor Fabiano Carvalho produziu interessante resenha do livro de Didier e Zaneti sobre Processo Civil. Completando as questões polêmicas, o nosso culto e ilustrado Professor Marcio Pestana nos faz um irrecusável convite à reflexão em torno da inconstitucionalidade de dispositivo da Emenda Constitucional 30, decidida pelo Supremo Tribunal Federal. Finalizando, as nossas sugestões de leitura. Lá temos Vanda Amorim, com o seu comovente “Deus não abandona”, Jeffrey Hollender e Bill Breen com as suas pós-modernas recomendações contidas no “Muito além da responsabilidade social”, a deliciosa seleção que Paulo Fendler preparou sobre “Os melhores diálogos do cinema” e as peripécias do nosso Imperador Pedro I e sua esfuziante Marquesa de Santos manifestadas nas cartas selecionadas por Paulo Rezzutti. Boa leitura. Rui Carvalho Piva Editor revista juris da FACULDADE DE DIREITO FA A P - J U R I S A n o I / Vo l u m e 5 / S ã o P a u l o - 2 0 1 1 Sumário ENTREVISTA Mario Luiz Sarrubbo 07 I. ARTIGOS União Homoafetiva Alvaro Villaça Azevedo Comportamentos de fazer e de não fazer na prestação alimentícia Rui Carvalho Piva Sustentabilidade nos Hoteis de selva da Amazônia Edson Ricardo Saleme e Silvia E. Barreto Saborita 09 24 30 A função do relatório no Julgamento Colegiado. Manifestação do princípio do contraditório Fabiano Carvalho 35 Taxonomia da sanção civil: para uma caracterização do objeto da responsabilidade civil Maurício B. Bunazar 39 O Design e o Desenvolvimento de Produtos Sustentáveis Carla Lupinacci Poças 43 A solidariedade na responsabilização por danos ambientais Daniela Fonzar Poloni Da reserva legal florestal – desmatamento lícito e ilícito e suas repercussões Gil Donizeti de Oliveira 48 55 Mudanças climáticas e florestas: histórico das negociações, impasses e perspectivas em relação à implementação de mecanismos de REDD Lívia Menezes Pagotto Projetos voluntários de REED no Brasil como alternativa viável na luta para salvaguardar a biodiversidade amazônica e o bem estar dos povos da floresta Luís Paulo Agostino de Magalhães Duprat Adoção por casais homoafetivos Marcella Corrêa Marques Gonçalves dos Santos Liberdade Provisória e o crime de tráfico ilícito de entorpecentes: uma análise crítica sob a ótica do princípio da “presunção de inocência” Renan Posella Mandarino 64 73 82 90 II. Jurisprudência Acórdão da 1.ª Turma Ordinária da 1.ª Câmara Superior de Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda Imposto sobre a renda de pessoa física. Omissão de rendimentos Pesquisa e Apresentação: Alexandre Naoki Nishioka 101 III. Resenha DIDIER JR., Fredie e ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil – Processo Coletivo. 6ª edição. Salvador: JusPodivm, 2011. Fabiano Carvalho 110 IV. Questões Polêmicas Decisão judicial converte em casamento a união estável entre duas pessoas do sexo masculino Apresentação: Rui Carvalho Piva 113 Emenda Constitucional inconstitucional: um convite à reflexão Apresentação: Marcio Pestana 117 VI. Sugestões de leitura Deus não abandona Vanda Amorim 119 Muito além da responsabilidade social Jeffrey Hollender E Bill Breen 120 Os melhores diálogos do cinema Paulo Fendler 121 Titília e o Demonão Paulo Rezzutti 122 ENTREVISTA COM O DIRETOR DA ESCOLA SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO DE SÃO PAULO Mario Luiz Sarrubbo Estimado Professor Mario, Ginásio , Colégio, início da adolescência (momento especial da vida das pessoas), futebol, corridas, a Faculdade de Direito, o “filho” Mario Luiz, o “pai” e o “marido” Mario Luiz, o Promotor de Justiça, os acidentes aéreos, a Escola Superior do Ministério Público de São Paulo e o ofício arte do educador. Como vem sendo tudo isso na vida dessa pessoa especialmente transparente que é V. Exa.? Em primeiro lugar, gostaria de manifestar a minha alegria por ter a oportunidade de compartilhar com os amigos alguns aspectos de minha vida profissional e pessoal. Acho que todos percebem um determinado aspecto de minha personalidade: gosto de viver e vivo intensamente todos os momentos profissionais, com amigos, com a família e assim por diante. Essa característica trago comigo desde a infância. Vivi intensamente a minha infância e de forma saudável e feliz. Fui criado e até hoje moro no bairro de Moema, em São Paulo. Na minha infância, tive a oportunidade de aproveitar as melhores características do bairro, até então predominantemente residencial e muito próximo do parque do Ibirapuera, local que considero como “a minha praia” e onde vivi bons momentos na infância, seja jogando futebol, seja andando de bicicleta com amigos. Como disse, vivo intensamente e, obviamente, vivi as incertezas e agonias do início da adolescência também intensamente. A insegurança, o medo de ser deixado de lado pelo grupo, o início do interesse pelas colegas, o primeiro beijo, o primeiro namoro, foram anos intensos mas que terminaram felizes, pois consegui superar essa insegurança e acho que me tornei um jovem saudável e equilibrado. Consegui ultrapassar a escapar das armadilhas que vinham pela frente, como o cigarro, a bebida e as drogas, que já naquela época se apresentavam aos adolescentes de forma constante. Um grande aliado, desde a infância, foi o esporte. A grande paixão pelo futebol, a vontade de estar em forma e fazer parte do time, sempre me mantiveram longe das drogas, do álcool e do cigarro. Acho que esse foi o grande mote para uma adolescência também saudável. De um “sofrível” mas apaixonado “lateral direito”, troquei o futebol pelas corridas por um verdadeiro “acidente”. Já Promotor de Justiça, jogando futebol num domingo de páscoa, quebrei o tornozelo, me submeti a uma delicada cirurgia e o retorno aos esportes passou pela corrida que nunca mais abandonei. Ao contrário, com a idade, larguei o futebol (mas não o Palmeiras – outra paixão) e me dediquei às corridas. Hoje, com muito orgulho, já participei de sete maratonas completas, mais de vinte meias-maratonas e cerca de cinqüenta provas menores de dez quilômetros. Sou apaixonado pelas corridas, pois me mantém equilibrado não só no aspecto físico, mas principalmente no emocional. O Direito surgiu na minha vida quase por acaso. Desde criança pensava em ser engenheiro. As dificuldades com a matemática e a pouca afinidade com o desenho, fizeram com que eu mudasse completamente o foco. Aliás, essa mudança aconteceu num momento interessante. Eu estava na 7ª série (ainda era o ginásio) e fui “convocado” para um “júri” na escola. Deveríamos debater a “pena de morte”. Atuei como promotor, defendendo a pena de morte e me apaixonei pelo direito e especificamente pela promotoria. Prestei vestibular e fui aprovado no Mackenzie, 7 onde vivi os “cinco” dos melhores anos da minha vida. Claro que freqüentei de tudo...até mesmo as aulas....mas é claro que os momentos inesquecíveis foram os vividos na “atlética”, na política acadêmica e nas então famosas “festas”....Fui a todas, aproveitei mesmo e é por isso que digo aos alunos da FAAP...não percam o “eu to dentro” ou qualquer outra festa...aproveitem pois os anos passam e a responsabilidade chega. A família sempre foi e sempre será o grande eixo de minha vida. Ela é tão importante, mas tão importante, que meus pais moram numa rua e em cada esquina dessa rua estão os três filhos. Eu e minhas duas irmãs. Moramos muito próximos e, obviamente, estamos sempre juntos, como uma típica família italiana, com muitas brigas mas, principalmente, com muito amor. Acho que o momento é de devolução, ou seja, tento devolver aos meus pais tudo o que me proporcionaram na vida. Se a família é o eixo, o grande dilema é conciliar vida pessoal (corridas), profissional (Ministério Público e Magistério) e familiar. Estou casado há 17 anos com a Simone e temos dois lindos filhos, o Luis Felipe (13 anos) e o Pedro Henrique (10 anos). Tenho feito isso, modéstia à parte, com sucesso. Posso dizer que estou vendo os meus filhos crescerem. Viajo muito (em função do cargo que exerço atualmente no MP – Escola Superior) mas não economizo em telefonemas, abuso do Skype (pois é preciso ver) e tenho o costume de fazer pelo menos uma refeição em casa. Se não posso jantar, venho almoçar e vice-versa. Por outro lado, faço questão de levar as crianças para a escola. Minhas aulas na FAAP são marcadas para o início da manhã justamente para conciliar essa atribuição. Sou amigo dos meus filhos, mas não esqueço que, antes de amigo, sou pai. Procuro impor os limites e conscientizá-los para as responsabilidades. A mensagem é: família, estudo e esporte são as coisas mais importantes. Aliás, quando corro as maratonas faço sempre uma homenagem aos meus filhos. Na linha de chegada, após 42 km, grito o nome dos dois e afirmo a possibilidade de superação do ser humano. O Ministério Público, por outro lado, é a grande paixão. Nunca fui um aluno brilhante, então tive que estudar muito para conseguir vencer o concurso de ingresso. Fiz carreira rápida, assumi como promotor substituto de Araçatuba e fui titular em Queluz, Itaquaquecetuba, Mauá e, já na capital, o 1.º Promotor Criminal Regional do Jabaquara. Esse cargo foi emblemático em minha vida. Abrangendo a região do Aeroporto de Congonhas, trabalhar como Promotor de Justiça em pelo menos dois grandes acidentes aéreos. O de 1996 (com o Fokker 100 da TAM – 99 mortos) e mais recentemente o de 2007 (com o Airbus A-320 da mesma empresa – com cerca de 199 mortos). Experiência profissional marcante, com grande pressão da mídia e da sociedade por resultados e, principalmente, por conta da convivência muita próxima com os familiares dessas vítimas. O trabalho junto a policia 8 civil, as dificuldades com o Judiciário e o envolvimento emocional com as associações de familiares das vítimas, foram marcas que nunca mais sairão da minha vida. Obtive sucesso no caso de 2007, pois formulei acusação contra 11 (onze) pessoas. No entanto, mesmo em 1996, quando arquivei o inquérito por falta de provas, nunca abandonei as associações de familiares das vítimas. Tratei-os com a devida atenção e carinho e, até hoje, tenho amizade com alguns deles. Mais recentemente fui premiado pelo Ministério Público com minha eleição para exercer o cargo de Diretor da Escola Superior do Ministério Público. Vivo, sem dúvida, um momento profissional muito feliz, pois consegui conciliar as duas atividades que mais gosto, o magistério e o Ministério Público. O ensino, a formatação dos cursos e, principalmente, o convívio com os Promotores de Justiça recém ingressados, são para mim uma grande alegria. Sinto que sou útil, que posso fazer algo para aperfeiçoar o trabalho do Promotor. Essa satisfação, que todos os apaixonados pelo Magistério têm, é a mais bela remuneração de nossas vidas. Nos confere, com certeza, um sabor especial ao nosso dia a dia. Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. União Homoafetiva ALVARO VILLAÇA AZEVEDO Doutor em Direito, Professor Titular Aposentado de Direito Civil, Regente de Pós-Graduação e ex-Diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP); Professor Titular de Direito Romano, de Direito Civil e ex-Diretor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo; Professor Titular de Direito Romano e Diretor da Faculdade de Direito da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), em São Paulo; Advogado e exconselheiro Federal e Estadual, por São Paulo, da Ordem dos Advogados do Brasil; Parecerista e Consultor Jurídico. Resumo: O trabalho tem início com a apresentação do conceito de união homoafetiva ou homossexual e uma atraente análise de colocações feitas por Platão a respeito 1da busca que o homem sempre fez da sua outra metade correspondente, daí eventualmente resultando práticas homossexuais. Segundo o autor, ainda não se fazia referência a casamento entre pessoas do mesmo sexo, com a finalidade de constituir família. Mas, ao abrir o tema da união homossexual na legislação estrangeira, a questão central do trabalho foi assim colocada: muitos países já admitem o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Depois de analisar detidamente a evolução do assunto na sociedade e na legislação brasileiras, o autor reconhece a dinâmica do Direito de Família e a possibilidade de seu regramento especial vir a ser estabelecido fora do Código Civil, no Estatuto das Famílias. Palavras-chaves: União homoafetiva. União homossexual. Casamento. 1. Conceito União homoafetiva ou homossexual é a convivência pública, contínua e duradoura entre duas pessoas do mesmo sexo, com o intuito de constituição de família. O relacionamento homossexual vem existindo em diversas civilizações, desde os primórdios da sociedade. Esses relacionamentos homoafetivos foram frequentes nas sociedades gregas e romanas. Existiram na Ásia e em tribos africanas, como também nas Américas, principalmente em comunidades norte-americanas2. Nas sociedades gregas, lembre-se da obra de Platão3, em que se discute sobre o Deus Eros onde se refere o “grotesco da forma esférica do homem primitivo (antes de os deuses o terem dividido em dois, com medo de que a sua força titânica pudesse assaltar o céu, e quando ainda possuía quatro pernas e quatro braços sobre os quais se deslocava a grande velocidade, como sobre pás giratórias), vemos expressa, com a profundidade da fantasia cômica de Aristóteles, a idéia que até agora buscamos em vão nos discursos dos outros. O eros nasce do anseio metafísico de Homem por uma totalidade de Ser, incessível para sempre à natureza do indivíduo. Este anseio inato faz dele um mero fragmento que, durante todo o tempo em que leva uma existência separada e desamparada, suspira por se tornar a unir com a metade correspondente”4. Vê-se nítida a idéia de uma metade buscando a outra metade de um mesmo e único ser. Aí patenteada, a meu ver, a essência da união homossexual. Contudo, não descobri em minhas pesquisas que, nessa época, ou na antiguidade, além da prática homossexual, houvesse casamento entre o mesmo sexo, constituindo família, situação bem recente, no século XX, como mostrarei adiante. 2. União Homossexual na Legislação Estrangeira Muitos países já admitem o casamento entre o mesmo sexo5. Informa Federico R. Aznar Gil6 que alguns países europeus, como a Dinamarca, Noruega e Suécia, já aprovaram leis que equipararam, praticamente, as uniões homossexuais ao casamento heterossexual, com algumas restrições, como é o caso da proibição das adoções. Na Dinamarca, desde 1984, essa matéria vem sendo estudada por comissões, e, a partir de 1986, Wikipédia, a enciclopédia livre, disponível em: <lttp://pt.wikipedia.org./wiki/casamentoentrepessoasdomesmosexo>. Acesso em 30.05.2010. Werner Jaeger, Paidéia, A formação do Homem Grego, Ed. Martins Fontes, São Paulo, trad. do grego por Artur M. Parreira, 4ª edição, março de 2001, O Banquete de Platão, p. 732.. In O Banquete, 191 A, ­­­­­­192 B e seguintes, 192 E e 193 A, Platão, O Banquete, L&PM Pocket, trad. do alemão por Donaldo Schüler, reimpressão de janeiro de 2011 da 1ª edição de agosto de 2009, pp. 63 a 65 e 67; rodapé 6, p. 123: Alcebíades menciona que Sócrates se sente atraído por jovens belos, frequentes em seu círculo de discípulos. 4 Le Contrat d’Union Civile et Sociale, Rapport de Législation Comparée, Divisão de Estudos de Legislação Comparada do Serviço dos Negócios Europeus do Senado francês, publicação do Senado francês, outubro de 1997, com 16 páginas; Tereza Rodrigues Vieira, O casamento entre pessoas do mesmo sexo, no direito brasileiro e no direito comparado. Repertório IOB de Jurisprudência, nº 14/96, 3/12240, p. 250-55, jul. 1996, especialmente p. 252; Federico R. Aznar Gil, Las uniones homosexuales ante la legislación eclesiástica, especialmente item 2.b – Legislación europea, Revista Española de Derecho Canonico, da Universidad Pontificia de Salamanca, nº 138, v. 52, p. 157-190, jan./jun. 1995; publicações de revistas e de jornais, em geral. 5 Op. cit., p. 161. 6 Federico R. Aznar Gil, Op. cit. p. 161-162. 1 2 3 9 foram concedidos alguns direitos patrimoniais às uniões civis homossexuais, que foram legalizadas em 1989, reconhecendo-se, assim, os “casamentos entre pessoas do mesmo sexo”. A Lei dinamarquesa nº 372, de 1º de junho de 1989, da parceria homossexual registrada, que teve início de vigência em 1º de outubro do mesmo ano, prescreve, em seu item 1, que “duas pessoas do mesmo sexo podem ter sua parceria registrada”. Cuidando desse registro, no item 2, estabelece que “a parte 1, seções 12 e 13 (1), e cláusula 1 da seção 13 (2) da Lei sobre Formação e Dissolução de Casamento devem ser aplicadas, igualmente, para o registro de parceiros”, que só será possível se ambos ou um dos parceiros tiverem residência permanente na Dinamarca e nacionalidade dinamarquesa. Essa lei foi de iniciativa do Parlamento dinamarquês, que colocou a Dinamarca como primeiro país a adotar essa espécie de legislação. Esclareça-se que a mesma lei, em seu item 2 (3), deixou o procedimento desse registro a ser regulamentado pelo Ministério da Justiça, o que, parece, não ocorreu, até o presente. Quanto aos efeitos legais desse registro, assentase, em destaque, que a parceria registrada deve produzir os mesmos efeitos legais que o contrato de casamento, devendo ser aplicadas aos parceiros as mesmas disposições que se aplicam aos esposos, com exceção da Lei de Adoção, que não se aplica aos parceiros; também não se aplica a estes a cláusula 3 das seções 13 e 15 da Lei de Incapacidade e Guarda; bem como as disposições de outras leis dinamarquesas que se refiram a um dos cônjuges e de tratados internacionais, a não ser que concordem os outros países participantes. Quanto à dissolução da parceria, aplicam-se similarmente as disposições, ali indicadas, da Lei sobre Formação e Dissolução do Casamento e da Lei de Administração da Justiça. A Lei sobre Formação e Dissolução do Casamento, a Lei de Herança, o Código Penal e a Lei de Tributos Hereditários foram emendadas, com a introdução da parceria registrada, pela Lei nº 372, de 1º de junho de 1989, com início de vigência em 1º de outubro de 1989. Destaque-se, nesse passo, a emenda às seções 9 e 10 da citada Lei do Casamento. Na seção 9, para constar que “uma pessoa que tenha contratado, anteriormente, casamento ou que participe de uma parceria registrada, não pode contrair casamento enquanto o casamento ou a parceria anterior existir”. Na seção 10, cuida-se de questão patrimonial, que proíbe a contratação de casamento, por quem tenha sido casado ou parceiro, antes da divisão, ou do início dela, perante a Corte, da propriedade conjunta. Só não se aplica tal disposição se os interessados se uniram sob regime da separação total de bens ou quando uma isenção de divisão for concedida, em casos especiais, pelo Ministro da Justiça. Preceito semelhante é o da Lei de Herança, que determina a divisão dos bens comuns antes de novo casamento ou registro de parceria (item 2). No tocante ao Código Penal dinamarquês, emendouse sua seção 208, para constar como crime a contratação de parceria registrada por quem já for casado ou parceiro (prisão até três anos), entre outras especificações com alterações de penalidades. A Noruega acompanhou a Dinamarca, aderindo a essa situação em 1993, quase em posição idêntica, pela Lei nº 40, de 30 de abril, que teve início de vigência em 1º de outubro desse mesmo ano. A lei norueguesa, entretanto, permite que os parceiros possam partilhar da “autoridade parental” (poder familiar ou pátrio poder), o que a lei dinamarquesa proíbe. O Parlamento sueco, ao seu turno, reconheceu o partenariat desde 1º de janeiro de 1995, quando teve início de vigência a Lei de 23 de junho de 1994, oficializando as uniões entre o mesmo sexo. A responsável pela Lei de Parceria, na Suécia, foi Barbro Westerholm e, em 1995, já estavam oficializadas quase mil uniões. Destaque-se, entretanto, que o Consulado da Suécia, em Paris, não está autorizando uniões homossexuais. Registre-se, entretanto, que, na França, em 1993, concedeu-se a homossexual o direito de se beneficiar do seguro social de seu parceiro. Essa lei sueca baseou-se em trabalhos da comissão parlamentar, constituída em 1991, contendo quase os mesmos dispositivos da lei dinamarquesa; entretanto, a lei sueca possibilita a intervenção do juiz, para o registro da união, facultativamente, mas exige, obrigatoriamente, essa intervenção em caso de ruptura da mesma união. De mencionar-se que, dos países escandinavos, só a Finlândia não aderiu à legislação da união registrada de pessoas do mesmo sexo. Houve um projeto de lei, no Parlamento finlandês, em maio de 1996, que foi rejeitado em setembro de 1997. Na Holanda, em 1991, foram criados registros em alguns municípios, possibilitando que fossem registradas uniões homossexuais, como acontecera em algumas cidades norte-americanas, como São Francisco7, sendo certo que, em 16 de abril de 1996, elaborou-se projeto de uniões entre pessoas do mesmo sexo, com 70% da opinião pública a favor. Dá-nos conta o Cfemea8 de que, na Holanda, houve o “casamento” oficial de dois casais de lésbicas, tornando-se, em fevereiro de 1998, “os primeiros casos de casamento civil legal entre parceiros do mesmo sexo” nesse país, cuja lei que permite a união civil entre homossexuais teve início de vigência em 1º de janeiro de 1998. Jornal do Centro Feminista de Estudos e Assessoria, Cfemea, Brasília, ano 6, nº 61, p. 2, fev. 1998. Casamento gay é aprovado na Argentina, in estadao.com.br/vida, http://www.estadao.com.br/noticia_imp.php?req=not_imp582050,0.php, em 2 de agosto de 2010. Por Ariel Palacios, correspondente em Buenos Aires – O Estado de S. Paulo. 7 8 10 Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. “Um dos casamentos foi da cantora Sugar Lee Hoper e a companheira dela. A união legal entre gays na Holanda não é exatamente o mesmo que um casamento. Os parceiros não podem adotar crianças, nem as lésbicas podem ser artificialmente inseminadas.” Essa lei encontra suas origens no projeto de lei do Ministro da Justiça, adotado pelo Parlamento Holandês em julho de 1997, que permite aos casais homossexuais, que não podem se casar, bem como aos casais heterossexuais, que não querem casar-se, registrar sua união. A lei holandesa, diferentemente das escandinavas, não apresenta qualquer registro obrigatório no tocante à nacionalidade dos parceiros. Em 12 de setembro de 2000 o Parlamento holandês, por sua Câmara Baixa, aprovou projeto que possibilita que pessoas do mesmo sexo contraiam matrimônio. A lei, Bill nº 26672 ingressou na Câmara Alta, para ser promulgada a partir de janeiro de 2001. E o foi. Na Islândia, o Parlamento adotou um projeto do Governo, em 4 de junho de 1996, possibilitando a duas pessoas do mesmo sexo registrar sua união, tendo tido a lei início de vigência em 27 desse mês e ano. Essa lei islandesa guarda as mesmas disposições da lei dinamarquesa, possibilitando, também, que os parceiros possam partilhar a “autoridade parental”. Permitem, também, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, entre outros, os Países Baixos, em 2001, sendo legal na Bélgica, no Canadá, na África do Sul, na Espanha, e nos estados americanos de Massachusetts e Connecticut, Iowa, Vermont, Maine, New Hampshire. Em 1998, a Alemanha ampliou os direitos aos casais que vivem juntos e em 2002 registrou o primeiro divórcio legal de homossexuais, no tribunal de instância de Oldenbourg, no norte do país. Destaque-se que, no estado americano da Califórnia, a Suprema Corte, em 27 de fevereiro de 2004, negou pedido do procurador geral Billy Lockyer para anulação de mais de 3.500 casamentos gay e suspensão de outros. No Reino Unido, a Lei de Associação Civil, que permite o casamento entre pessoas do mesmo sexo, teve início de vigência em 5 de dezembro de 2005, com 1.200 cerimônias marcadas nas Prefeituras, na Irlanda do Norte, na Escócia, na Inglaterra e em Gales. Em 11 de fevereiro de 2010, Portugal aprovou a lei que permite o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo (Decreto nº 9/XI), na Assembléia da República, sem direito a adoção. Antes de promulgar a lei, em 17de maio de 2010, o Presidente da República Anibal Cavaco Silva enviou o diploma para o Tribunal Constitucional de modo cauteloso, para análise da constitucionalidade de seus artigos. O acórdão desse Tribunal, pela constitucionalidade dessa Lei, foi publicado em 28 de abril de 2010. Essa lei alterou a redação do art. 1.577º do Código Civil, definindo o casamento como “o contrato celebrado entre duas pessoas que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida”. Em 15 de julho de 2010, ao seu turno, a Argentina transformou-se no primeiro pais da América Latina a autorizar o casamento entre homossexuais. A aprovação da Lei pelo Senado, após 14 horas de duros debates, deu-se por 33 votos a favor, 27 contra, com 3 abstenções. Os demais Senadores ausentaram-se, entre eles o ex-presidente Carlos Menem. Essa Lei fora aprovada na Câmara dos Deputados em maio de 2010. A votação provocou divisões no governo e na oposição, sendo certo que muitos Senadores governistas se opuseram à posição da Presidente da República, Cristina Kirchner, favorável à lei, que segundo ela foi “um marco”9. Ressalta-se, ainda, que, na América Latina, o Uruguai conta com lei de união civil, mas não engloba todos os direitos, podendo os uruguaios adotar filhos, mas não se casar. Com a nova lei argentina conferiu-se o direito de herança entre os homossexuais como também o direito de adotar filhos, registrados em nome de ambos, o de pagar impostos como casal, de pedir crédito utilizando a renda dos dois, podendo ser incluídos no plano de saúde do outro. Registre-se, nesse passo, que, desde 15 de dezembro de 1973, por decisão da American Psychiatric Association e, depois, de outras organizações internacionais, a homossexualidade foi excluída do rol das doenças mentais, também nas publicações da Classificação Internacional de Doenças. Desde 1991, a Anistia Internacional considera violação dos direitos humanos a proibição da homossexualidade. Melhor união homoafetiva do que união estável Do mesmo modo, ainda que se cogite de mera convivência, no plano fático, entre pessoas do mesmo sexo, não se configura a união estável e sim a união homoafetiva autônoma. Realmente, desde que foram conferidos efeitos ao concubinato, até o advento da Súmula 380 do Supremo Tribunal Federal, sempre a jurisprudência brasileira teve em mira o par andrógino, o homem e a mulher. Com a Constituição Federal, de 5 de outubro de 1988, ficou bem claro esse posicionamento, de só reconhecer, como entidade familiar, a união estável entre o homem e a mulher, conforme o claríssimo enunciado do § 3º do seu art. 22610. Entretanto o art. 226 não é taxativo em relacionar os Com entendimento contrário, Maria Berenice Dias (União homossexual, o preconceito e a justiça. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, nº 8, p. 147) conclui: “Um Estado Democrático de Direito, que valoriza a dignidade da pessoa humana, não pode chancelar distinções baseadas em características individuais. Injustificável a discriminação constante do § 3º do art. 226 da Constituição Federal, bem como inconstitucional a restrição das Leis nos 8.971/94 e 9.278/96, que regulamentam a união estável, ao se referirem somente ao relacionamento entre um homem e uma mulher.” Cita a autora, lastreando seu entendimento, decisões da Justiça gaúcha (Op. cit., principalmente p. 131-36). 10 Álvaro Villaça Azevedo, Estatuto da Família de Fato, Ed. Atlas, São Paulo, 3ª edição, 2011, p. 240. 9 11 modos de constituição de família, sendo mais fácil admitir que, atualmente, a união homoafetiva foi reconhecida no âmbito do Direito de Família, sendo perfeitamente viável incluí-la no rol do art. 226, citado, como uma categoria autônoma. Já disse que o Estado não pode mencionar na Constituição de modo taxativo, como o povo deve constituir sua família. Por essa razão essa relação do art. 226 da Constituição Federal é meramente enunciativa11. Muito citada foi a decisão do Juiz José Bahadian, da 28ª Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro, na ação promovida contra o espólio de um pintor e iniciada em 17 de maio de 1988. Nesse processo, reconheceu-se direito do companheiro sobrevivo, em razão do falecimento do outro, após dezessete anos de convivência, à metade do patrimônio por eles amealhado. Patenteou-se, então, a existência de sociedade de fato entre os conviventes e de um patrimônio criado por seu esforço comum. Esta a decisão de primeiro grau. Pondere-se, nesse caso, que esse direito à metade do patrimônio do companheiro falecido estava assegurado por testamento deste, assinado em 1985, revogado por outro testamento, firmado pelo testador quando já estava internado, em estado grave, no Memorial Hospital de New York, conforme atestaram algumas testemunhas, e que não estaria ele na plena capacidade de entendimento dos fatos; tudo segundo ampla divulgação, à época, pela mídia. Em grau de apelação, no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em 8 de agosto de 1989, unanimemente, por sua 5ª Câmara Cível, sendo relator o Desembargador Narcizo A. Teixeira Pinto12, decidiu-se esse caso, como demonstra a ementa oficial: “Ação objetivando o reconhecimento de sociedade de fato e divisão dos bens em partes iguais. Comprovada a conjugação de esforços para formação do patrimônio que se quer partilhar, reconhece-se a existência de uma sociedade de fato e determina-se a partilha. Isto, porém, não implica, necessariamente, em atribuir ao postulante 50% dos bens que se encontram em nome do réu. A divisão há de ser proporcional à contribuição de cada um. Assim, se os fatos e circunstâncias da causa evidenciam uma participação societária menor de um dos ex-sócios, deve ser atribuído a ele um percentual condizente com a sua contribuição.” Como visto, nesse julgado reconheceu-se, tãosomente, a sociedade de fato, entre sócios, e não união livre como entidade familiar. Deixou evidenciado esse acórdão que a mesma Câmara, em outra decisão, em que foi relator o Desembargador José Carlos Barbosa Moreira, evidenciou que “‘o benefício econômico não se configura apenas quando alguém aufere rendimentos, senão igualmente quando deixa de fazer despesas que, de outra maneira, teria de efetuar’ (Apelação Cível 38.956/85). E assim deve ser, porque o esforço comum, que caracteriza a sociedade de fato, pode ser representado por qualquer forma de contribuição: pecuniária ou através da doação de bens materiais, ou ainda por meio de prestação de serviços. Este, sem dúvida, o sentido que o Código Civil brasileiro, ao definir o contrato de sociedade, empresta à locução ‘combinar esforços ou recursos para lograr fins comuns’ (art. 1.363). Como é de primeira evidência, a expressão ‘esforços ou recursos’ abrange todas as formas ou modalidades de contribuições para um fim comum”. O citado art. 1.363 do Código Civil de 1916 corresponde atualmente ao art. 981 do Código Civil. E se conclui nesse mesmo decisório que, “por maior que tenha sido a contribuição do apelado à obra do pintor, não se pode conceber que tenha sido equivalente à que deu o próprio criador dos quadros. E, não tendo sido iguais as cotas de contribuição, não podem ser iguais, como pretende o recorrido, os quinhões na partilha. A participação na divisão deve ser proporcional à contribuição para criação ou aquisição dos bens”. Daí a redução do percentual estabelecido na sentença, de 50% para 25% do patrimônio adquirido pelo esforço comum. Também o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, por sua 2ª Câmara, em 3 de dezembro de 1996, sendo relator o Juiz Carreira Machado13 decidiu que “a união de duas pessoas do mesmo sexo, por si só, não gera direito algum para qualquer delas, independentemente do período de coabitação”. Nesse caso, ainda, foi negada indenização por dano moral, reivindicada pelo companheiro sobrevivo, ao pai do falecido, vítima de Aids, malgrado tivesse esse sobrevivente “assumido assistência ao doente, expondo-se publicamente, em face da omissão” desse genitor, “a quem não pode ser atribuída culpa pela enfermidade” contraída por seu filho. Lembra, ao seu turno, Rainer Czajkowski14 que existe, em torno do tema uniões homossexuais, “uma forte carga negativa, de ordem moral e mesmo religiosa na sua avaliação”; por esse motivo, para que isso seja evitado, e “na medida em que o relacionamento íntimo entre duas pessoas do mesmo sexo pode ter efeitos jurídicos relevantes, é mais razoável que se faça uma abordagem jurídica e técnica da questão, e não uma análise moral, porque esta última, além de ser excessivamente subjetiva, concluirá pela negativa de qualquer efeito útil”. Pondere-se, nesse ponto, que, provada a sociedade de fato, entre os conviventes do mesmo sexo, com aquisição de bens pelo esforço comum dos sócios, está presente o contrato de sociedade, reconhecido pelo art. 1.363 do Código Civil de 1916 (atual art. 981), independentemente de casamento ou de união estável, pois celebram contrato Jurisprudência brasileira cível e comercial. Juruá, Curitiba: União Livre, 1994, nº 173, p. 206-9. RT 742/393. 13 Reflexos jurídicos das uniões homossexuais. Jurisprudência Brasileira, Juruá, 1995, Separação e Divórcio II, 176/95-107, especialmente p. 107. 14 Apud Euclides Benedito de Oliveira, Direito de herança entre homossexuais causa equívoco. Jornal Tribuna do Direito, p. 12, abr. 1998. 11 12 12 Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. de sociedade as pessoas que se obrigam, mutuamente, a combinar seus esforços pessoais e/ou recursos materiais, para a obtenção de fins comuns. Registre-se, nesse ponto, a celeuma em torno de uma decisão unânime do Superior Tribunal de Justiça, de sua 4ª Turma, sendo relator o Ministro Ruy Rosado de Aguiar15 que, na verdade, não atribuiu direito de herança a homossexual, mas reconheceu direito à partilha de bens adquiridos, pelos parceiros, em decorrência de sua colaboração comum. Do mesmo modo, foi normal a decisão unânime da Câmara Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, sendo relator o Desembargador Dirceu de Mello16 de 31 de julho de 1997, quando se entendeu deferir a guarda de criança a homossexual, constatando-se que essa circunstância, naquele momento, não era obstáculo à medida, dada a provisoriedade da natureza da guarda, que pode ser revogada a qualquer momento, ante qualquer desvirtuamento na formação psicológica da criança. Entendeu-se que era dificultoso, à época, colocar a criança sob cuidados de uma família substituta. Registre-se, finalmente, decisão de 20 de agosto de 1998, da 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região-RS, por unanimidade, sendo relatora a Juíza Marga Inge Barth Tessler17, que não reconheceu união estável entre pessoas do mesmo sexo, ante a vedação do § 3º do art. 226 da Constituição Federal; todavia, admitindo a inclusão de parceiro como dependente de outro, em plano de saúde. E isto, ante os princípios constitucionais da liberdade, da igualdade e da dignidade humana. Acentua-se, nesse julgamento, que estão preenchidos os requisitos exigidos pela lei para a percepção do benefício pretendido: “vida em comum, laços afetivos, divisão de despesas. Ademais, não há que se alegar a ausência de previsão legislativa, pois antes mesmo de serem regulamentadas as relações concubinárias, já eram concedidos alguns direitos à companheira, nas relações heterossexuais. Tratase da evolução do Direito, que, passo a passo, valorizou a afetividade humana abrandando os preconceitos e as formalidades sociais e legais”. Até, então, quando a união homossexual não era reconhecida como apta à constituição de família, os parceiros deviam acautelar-se com realização de contratos escritos, que esclarecessem a respeito de seu patrimônio, principalmente demonstrando os bens que existiam ou que viessem a existir, em regime de condomínio, com os percentuais estabelecidos ou não. Se for o caso, para que não esbarrem suas convenções no direito sucessório de seus herdeiros, devem realizar testamentos esclarecedores de suas verdadeiras intenções. Podem, ainda, os parceiros adquirir bens em nome de ambos, o que importa condomínio, em partes iguais, ou com menção dos respectivos percentuais. Todos esses julgados dos nossos Tribunais não reconheceram a união homoafetiva porque se basearam, estritamente no dispositivo constitucional da união estável, quando poderiam ter considerado a união homoafetiva, como modo autônomo de constituição de família como considerado recentemente pelo Supremo Tribunal Federal, albergado no art. 226 da Constituição Federal, como dispositivo genérico. Projeto Marta Suplicy e seu substitutivo na Câmara dos Deputados 4.1 Generalidades A então Deputada Federal Marta Suplicy apresentou o Projeto de Lei nº 1.151, de 1995, que objetiva a disciplinar a “união civil entre pessoas do mesmo sexo”. Como bem pondera a autora desse Projeto18, não se pode mais negar a existência de relações homossexuais e as diferentes formas de expressão da sexualidade, no Brasil e em outros países, sendo necessário “garantir direitos de cidadania sem discriminar as pessoas devido à sua orientação sexual”. E continua dizendo que seu projeto “não se refere ao casamento, nem propõe a adoção de crianças ou a constituição de família. Simplesmente possibilita às pessoas homossexuais que vivem juntas o direito a herança, previdência, declaração comum de imposto de renda e nacionalidade. Basicamente, direitos jurídicos para pessoas que pagam impostos e hoje são ignoradas pela sociedade. (...) A sociedade nos educa para a heterossexualidade como sendo esta a única forma correta e aceita de viver a sexualidade”. Instalou-se uma Comissão Especial na Câmara dos Deputados, para apreciar esse projeto, presidida pela Deputada Maria Elvira, tendo como relator o Deputado Roberto Jefferson. Prestando depoimento nessa Comissão, Luiz Edson Fachin19 sugeriu a substituição do termo união por outro mais adequado. O relator dessa Comissão entendeu correta essa sugestão, substituindo a palavra “união” por “parceria”. Esse jurista paranaense, escrevendo sobre a convivência de pessoas do mesmo sexo, em outubro de 1996, conclui seu artigo, ponderando que “humanismo e solidariedade constituem, quando menos, duas ferramentas para compreender esse desafio JTJ-Lex 198/121. DJU de 20/11/98, p. 585. O sol e a peneira. Manchete. Rio de Janeiro: Bloch, p. 98, 6 jul. 1996. 18 Luiz Edson Fachin, Aspectos jurídicos da união de pessoas do mesmo sexo. RT 732/47-54, especialmente p. 52-53. 19 A Comissão Especial destinada a apreciar e proferir parecer sobre o Projeto de Lei nº 1.151, de 1995, que “disciplina a união civil entre pessoas do mesmo sexo e dá outras providências”, em reunião, opinou contra os votos dos Deputados Jorge Wilson, Philemon Rodrigues, Wagner Salustiano, e, em separado, dos Deputados Salvador Zimbaldi e Severino Cavalcanti, pela constitucionalidade, juridicidade e técnica legislativa e, no mérito, pela aprovação, deste, com substitutivo, com complementação de voto, nos termos do parecer do relator. Participaram da votação nominal os Deputados Marilu Guimarães, Roberto Jefferson, Lindberg Farias, Maria Elvira, Jorge Wilson, Severino Cavalcanti, Salvador Zimbaldi, Tuga Angerami, Jair Meneguelli, Sérgio Carneiro, Fernando Lyra, Fernando Gonçalves, Fernando Gabeira, Wagner Salustiano, Philemon Rodrigues e Marta Suplicy. A documentação relativa ao projeto encontra-se reproduzida no Apenso deste livro, a final. 15 16 17 13 que bate às portas do terceiro milênio com mais intensidade. Reaprender o significado de projeto de vida em comum é uma tarefa que incumbe a todos, num processo sacudido pelos fatos e pela velocidade das transformações. Em momento algum pode o Direito fechar-se feito fortaleza para repudiar ou discriminar. O medievo jurídico deve sucumbir à visão mais abrangente da realidade, examinando e debatendo os diversos aspectos jurídicos que emergem das parcerias de convívio e de afeto. Esse é um ponto de partida para desatar alguns ‘nós’ que ignoram os fatos e desconhecem o sentido de refúgio qualificado prioritariamente pelo compromisso socioafetivo”. O relator desse projeto, Deputado Roberto Jefferson, votando por sua constitucionalidade e o aprovando, no mérito, nos termos do substitutivo pelo mesmo relator oferecido e, adiante, por nós analisado, entende que “negar aos homossexuais os direitos básicos surgidos” de sua “parceria equivale a repudiar os princípios constitucionais”, a saber, “a dignidade da pessoa humana; a justiça e a solidariedade entre os homens; a não-discriminação de qualquer espécie; e o respeito aos direitos humanos”. O Parecer da Comissão Especial não foi unânime, mas entendeu pela constitucionalidade e pela aprovação do projeto, com as alterações do Substitutivo e da mesma Comissão. Cumpre destacar, neste passo, primeiramente, o entendimento contrário do Deputado Salvador Zimbaldi: “A desmoralização que se quer legalizar; o desmantelamento da família, com a instituição desta aberração contrária à Natureza, que criou cada espécie com dois sexos, afronta os mais comezinhos princípios éticos da sociedade brasileira. Ao regulamentar tão estapafúrdia situação, sem mesmo fazer-se uma pesquisa, consultando a população sobre a viabilidade desta legalização, o legislador está indo abalroar a consciência coletiva de nossos cidadãos. Com a criação deste novo estado civil de ‘emparceirados registrados’ estar-se-á lançando a balbúrdia nos meios jurídicos, além da imoralidade atentatória aos nobres princípios da comunidade, e isto tão-somente para beneficiar uma minoria. A lei assim como o Estado brasileiro são laicos, bem o sabemos, entretanto não podemos violentar o nosso povo, impingindo-lhe algo que repudia.” Ao seu turno, com seu voto também contrário ao Projeto, manifestou-se o Deputado Severino Cavalcanti, sendo, adiante, destacados alguns trechos de seus comentários. Primeiramente, quanto aos “direitos dos homossexuais”, declara ambígua a palavra “direito”, no Projeto, comentando: “O que existe, por pior que seja, não pode ser negado que exista, mas isto não lhe confere automaticamente um direito a essa existência. O fato de existir o crime não lhe outorga direito de existência. Assim, uma situação que existe de fato, não pode passar, por esta simples razão, a uma situação de direito. Este só lhe é conferido em razão 14 de atributos próprios que se conformem com a lei natural e a lei positiva.” Depois, no tocante à referida “segurança na prática da homossexualidade”, anota: “O projeto quer eliminar assim uma certa vergonha, um salutar sentimento de culpa, que poderiam levar a uma mudança de vida, a uma continência sexual sustentada pela graça, mesmo conservando a tendência desviada. Pois Deus nunca falta àqueles que sinceramente desejam cumprir sua lei e pedem o seu auxílio. O projeto, pelo contrário, leva os culpados a uma certa tranqüilidade dentro do pecado, eliminando assim, quase completamente, a possibilidade de conversão.” Acrescenta ainda o Deputado que o “caráter profundamente rejeitável do projeto” é o de albergar “um tríplice atentado contra a lei moral” (nos campos individual, social e institucional) e o de “atrair a cólera divina sobre o Brasil”, mostrando a posição da Igreja Católica, concluindo: “Uma lei que promove, favorece e estimula a prática de atos contra a natureza está em contraste total com a lei natural. Portanto, não deve ser considerada como lei, mas sim como corrupção da lei. E, enquanto tal, ser repudiada e combatida; e jamais apoiada, acatada ou tolerada.” Ressalte-se, nesse estágio, que a votação desse projeto, sobre a união civil de pessoas do mesmo sexo, não ocorreu na sessão da Câmara do dia 4 de dezembro de 1997, por falta de quorum. A autora do projeto pedira para que fosse esse retirado de pauta, temendo a forte oposição existente à época. Todavia, insistiam, os contrários a esse projeto, em que ocorresse sua votação. Em 1998 deveria ter sido votado esse projeto, em sessão extraordinária da Câmara, mas não foi, ante ameaça muito forte, principalmente por Deputados católicos e evangélicos, de que seria boicotado o projeto de ajuste fiscal. O projeto sob estudo continua, portanto, sem andamento, ante esses fatos de acirrada oposição a ele e o temor de sua autora de uma derrota. 4.2 Análise do Projeto de Lei nº 1.151/95 e de seu Substitutivo Nessa trilha, passaremos à análise dos artigos do Projeto de Lei nº 1.151, de 1995, da Câmara dos Deputados, e de seu Substitutivo, adotado pela Comissão Especial, datado de 10 de dezembro de 1996. Partirei dos artigos do aludido Substitutivo, que melhorou a redação do Projeto originário, acrescentando alguns dispositivos de real importância. Assim, no art. 1º assegura-se a duas pessoas do mesmo sexo o reconhecimento de sua “parceria civil registrada”, objetivando, principalmente, a salvaguarda de seus direitos de propriedade e de sucessão hereditária. Essa parceria constitui-se mediante registro em livro próprio nos Cartórios de Registro Civil de Pessoas Naturais (art. 2º) com a apresentação dos documentos dos interessados enumerados no § 1º: declaração de serem Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. solteiros, viúvos ou divorciados; prova de capacidade civil absoluta, por meio de certidão de idade ou prova equivalente; e escritura pública de contrato de parceria civil. O § 2º incluído no Substitutivo repete a necessidade de que se registre a parceria, conforme caput do mesmo artigo. O § 3º estabelece a impossibilidade de alteração do estado civil dos contraentes, na vigência do contrato de parceria. Esse § 3º é de extremo rigor, porque corrobora que o pretendido registro, em livro próprio, no Cartório de Registro Civil, mencionado no caput do artigo, não é só para valer contra terceiros, mas cria, perigosamente, um novo estado civil, que não pode ser alterado sem a extinção do contrato de parceria civil registrada. Esse estado civil nem os conviventes possuem, na união estável, que é reconhecida constitucionalmente como forma de constituição de família. Vê-se, claramente, que, existindo constituição desse estado civil de parceiro ou de parceria, sua desconstituição judicial pode levar muito tempo, sobrecarregando o Poder Judiciário de ações e de processos dessa ordem. Mesmo em caso de morte do parceiro, deverá existir processo judicial para que, seguramente, constate-se esse fato, para que possa ser, por decisão do juiz, desconstituído o estado civil, no competente Registro. Os ônus que se vão criar, com isso, e os sérios danos à comunidade podem ser antevistos; principalmente se os parceiros se separarem de fato, sem qualquer providência judicial, constituindo novas parcerias de fato. Entendo a preocupação do pré-legislador em amparar, de certo modo, as parcerias homossexuais; entretanto, essa situação de fato, como é a união estável entre homem e mulher, ficará assoberbada com esses excessos de formalismo, a que o povo brasileiro não está acostumado. Admito que o registro desses contratos, como defendi a ideia na união estável, é salutar e de alta relevância na salvaguarda de direito de terceiros; mesmo criando novo estado civil, de parceiro civil ao lado do estado civil de solteiro, de casado e de divorciado. Nesse caso, deve também admitir-se o estado de separado judicialmente (hoje modificação do estado de casamento) e o estado de convivente ou companheiro, em relação à união estável entre homem e mulher. A criação de estado civil novo criará muitos problemas jurídicos à sua desconstituição, mormente com relação às situações de fato, com regulamentação legal dos efeitos jurídicos da convivência, seja na união estável, seja na parceria civil. Sugiro, pois, ao legislador que leve em conta essas observações, para admitir o registro do contrato de parceria entre o mesmo sexo, como também propus à união estável em meu projeto, vetado, nesse ponto, pelo Presidente da República, mas tão-somente para valer contra terceiros. Cria-se, assim, no clima de liberdade da convivência homossexual, como pretende a então Deputada Marta Suplicy, também um clima de responsabilidade e de justiça, relativamente a essa união, ainda que sem a criação de um novo estado civil, só alterável com a intervenção do Poder Judiciário. O registro será feito, então, só para valer contra terceiros. Aliás, nesse ponto, chego à conclusão de que o registro mais eficaz é o que se realiza na Circunscrição Imobiliária, em que a averbação das situações jurídicas convivenciais é mais importante, enquanto não houver um cadastramento geral das pessoas, que esteja informado em todo o sistema registral. Tudo, para que se evitem alienações de imóveis, por um dos parceiros, em detrimento do outro ou de terceiros, malgrado exista registro do contrato de parceria, no Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais. Ao seu turno, o art. 3º do Substitutivo e do Projeto dá caráter solene ao contrato de parceria registrada, o qual deverá ser lavrado em Ofício de Notas, pactuado livremente, mas devendo versar sobre “disposições patrimoniais, deveres, impedimentos e obrigações mútuas”. Se houver disposição expressa no contrato, suas regras podem operar retroativamente para contemplar patrimônio comum, formado anteriormente à união (§ 1º, no Substitutivo; parágrafo único, no Projeto). Inseriu-se no Substitutivo o § 2º desse mesmo art. 3º, pelo qual ficam proibidas disposições sobre adoção, tutela ou guarda de crianças ou de adolescentes, em conjunto, mesmo que sejam filhos de um dos parceiros. Tal providência foi importante para que se evitem traumas de caráter psíquico, principalmente para que não surjam na sociedade filhos, ou crianças, ou adolescentes que se mostrem só com pais ou só com mães. Sim, porque a autora do projeto de lei, embora tenha manifestado posição contrária à adoção pelos parceiros, a proibição da utilização desse instituto jurídico não se fez, expressamente, em seu texto de pré-legislação. Anote-se que o Projeto originário previa, nos incisos I e II de seu art. 4º, a extinção desse contrato de parceria pela morte de um dos parceiros ou por decreto judicial. Essa decisão, certamente, ocorrerá em caso de rescisão desse contrato, com descumprimento culposo de qualquer de suas cláusulas ou de dispositivos legais, atinentes a essa união, que é a infração contratual, prevista no inciso I do art. 5º do Substitutivo e do Projeto, ou, ainda, em caso de denúncia (resilição unilateral), quando a um dos parceiros não mais convier a convivência. Neste último caso, quando houver alegação, por um dos parceiros, de desinteresse na continuidade da união, conforme previsto no inciso II do art. 5º do Substitutivo e do Projeto. Nesse ponto, o Substitutivo, mantendo, em seu art. 4º, esses dois incisos, do art. 4º do Projeto, inclui, ainda, um terceiro, para possibilitar, também, essa extinção contratual, por consentimento das partes, desde que homologado pelo juiz. Aqui, então, prevista a figura da resilição bilateral ou distrato, em que os parceiros manifestam o desejo de se separarem, perante o juiz, que homologará esse acordo 15 escrito, verificando se foram cumpridos os requisitos legais e contratuais. Aliás, o Projeto já previa, no § 1º de seu art. 5º, a possibilidade de requererem, de comum acordo, consensualmente, as partes a homologação judicial da extinção de sua união civil. Mesmo incluindo o aludido inciso III em seu art. 4º, o Substitutivo mantém o mencionado § 1º, agora como parágrafo único de seu art. 5º, que, de modo repetitivo, assegura esse requerimento das partes, consensualmente, amigavelmente, pleiteando a homologação judicial da extinção de sua parceria registrada. Desse modo, atualmente, esse Substitutivo possibilita a referida extinção contratual por morte ou por via judicial, litigiosa ou amigável. Ocorrendo a mencionada extinção contratual, a sentença que declarar extinta a parceria deverá conter a partilha dos bens dos parceiros, nos moldes do contrato dos interessados (art. 6º do Projeto e do Substitutivo). Assinale-se que o art. 7º do Projeto foi eliminado, e exigia a averbação do registro da constituição ou da extinção da união civil, nos assentos de nascimento e de casamento das partes. O art. 8º do Projeto, ainda, instituía como crime de ação pública, condicionada à representação, “manter o contrato de união civil”, referido no aludido Projeto, “com mais de uma pessoa, ou infringir o § 2º do art. 2º”, punível com pena de detenção de seis meses a dois anos. Essa proibição de parceria civil com mais de uma pessoa, do art. 8º, foi reformulada, no Substitutivo, em seu art. 7º, sendo nulo de pleno direito o contrato que se fizer nesses moldes, ou, ainda, quando houver infração ao § 2º do art. 2º do mesmo Substitutivo (falta de registro desse contrato no Registro Civil de Pessoas Naturais). Estabelece-se, ainda, no parágrafo único desse art. 7º que a infração mencionada em seu caput implica cometimento de crime de falsidade ideológica, sujeitando o infrator às penas previstas no art. 299 do Código Penal. O intuito do pré-legislador foi, em verdade, o de proibir a existência de dois ou mais contratos simultâneos de parceria civil; não, propriamente, o de proibir a existência dessas várias uniões, o que seria impossível. Desse modo, pode alguém, na prática, ter vários parceiros, o que é impossível de proibir, como acontece com o casamento e o concubinato impuro, ou seja, adulterino ou incestuoso; como pode ocorrer o mesmo com a união estável (concubinato puro) e o concubinato desleal (em concorrência com o primeiro). Essas situações ocorrem na sociedade independentemente do que queira, ou não, o legislador. O que este pode coibir é o duplo registro civil. Todavia, para tentar impedir um registro, ante eventual existência de uma parceria civil, com escritura não registrada, é que o Substitutivo, sob cogitação, instituiu o 20 crime de falsidade ideológica para os parceiros que venham a registrar uma parceria, tendo omitido a existência de parceria civil ou de registro de escritura anterior. O crime, portanto, consiste nessa omissão e não na manutenção de duas ou mais parcerias. Tenha-se presente, ainda, que, existindo registro de uma parceria anterior, o próprio Cartório Civil impedirá o registro de outra escritura. O difícil será, eventualmente, acusar registro anterior, se não houver cadastramento do registro das parcerias. No art. 8º do Substitutivo (9º do Projeto) alteram-se os arts. 29, 33 e 167 da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos). O art. 29, no qual constam os atos que se fazem registrar no Registro Civil de Pessoas Naturais, fica acrescido do inciso IX, que autoriza, também, o registro dos “contratos de parceria civil registrada entre as pessoas do mesmo sexo”. No § 1º desse artigo, que cuida das averbações, fica autorizada a averbação da “sentença que declarar a extinção da parceria civil registrada entre pessoas do mesmo sexo”. No art. 33, referido, inclui-se em seu inciso III o livro E, para “registro de contratos de parceria civil registrada entre pessoas do mesmo sexo”. Finalmente, no art. 167, que menciona as atribuições relativas ao Registro de Imóveis, fica acrescido o item 35 (deverá ser item 37, porque, atualmente, já existe o item 35, que foi inserido pela Lei nº 9.514, de 20-11-97, bem como o item 36, acrescentado pela Lei nº 9.785, de 29-1-99; o item 35 atual refere-se ao registro da alienação fiduciária em garantia de coisa imóvel e o item 36 cogita da imissão provisória na posse do Poder Público ou de entidades delegadas, para a execução de parcelamento popular em favor das classes de menor renda), de seu inciso I, pelo qual, além da matrícula, será feito o registro “dos contratos de parceria civil registrada entre pessoas do mesmo sexo que versem sobre comunicação patrimonial, nos registros referentes a imóveis ou a direitos reais pertencentes a qualquer das partes, inclusive os adquiridos posteriormente à celebração do contrato”. Acrescenta-se, ainda, no inciso II desse art. 167, em seu item 14, a averbação, também, das sentenças de extinção de parceria civil registrada entre pessoas do mesmo sexo ao lado das “sentenças de separação judicial, de divórcio, de nulidade ou anulação do casamento”, sempre que, em qualquer delas, “nas respectivas partilhas existirem imóveis ou direitos reais sujeitos a registro”. O art. 9º do Substitutivo (art. 10 do Projeto) institui, como bem de família, o imóvel próprio e comum dos contratantes de parceria civil registrada, tornando-o impenhorável, nos moldes da Lei nº 8.009, de 29 de março de 1990. Álvaro Villaça Azevedo. Bem de família, com Comentários à Lei 8.009/90, Ed. Atlas, São Paulo, 6ª edição, 2010, p. 191. 16 Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. Essa Lei nº 8.009/90, que regulamenta o bem de família, só considera como tal o “imóvel residencial próprio do casal ou da entidade familiar”. Comentando esse dispositivo legal, já ponderei20 que “um dos requisitos a que se constitua, em bem de família, esse mesmo imóvel é que deva ser de propriedade do casal, ou da entidade familiar. (...) Todavia, nada impede que esse imóvel seja de propriedade de um dos cônjuges, se, por exemplo, não forem casados pelo regime de comunhão de bens. O mesmo pode acontecer com um casal de conviventes, na união estável, ou com os integrantes de outra entidade familiar, sendo um só deles proprietário do imóvel residencial, em que vivem. Basta, assim, que um dos integrantes do lar seja proprietário do imóvel residencial, a constituir-se em bem de família”. Como resta evidente, tal dispositivo de prélegislação desvirtuaria, à época, a lei analisada; pois na parceria civil registrada não existia intuito de constituição de família, não existindo lar, o que impediria a existência do bem de família. Entretanto, se tal dispositivo vingasse, teríamos, aí, uma exceção, em completa dissonância com a Lei nº 8.009/90. Sim, porque o bem de família só pode existir no âmbito desta. Atualmente, não haverá qualquer óbice, ante tal dispositivo, pois o Supremo Tribunal Federal já reconheceu a união homoafetiva como uma das formas de constituição de família. Ao seu turno, os arts. 10 e 11 do Substitutivo simplificam os textos dos arts. 11 e 12 do Projeto. Assim, o art. 10 inscreve o parceiro como beneficiário do Regime Geral de Previdência Social, como dependente de seu parceiro segurado, desde que esteja registrado o contrato de parceria civil; extinto este, cancelase, automaticamente, essa inscrição de beneficiário. Melhor o texto do Substitutivo, porque prescinde da inclusão, nos §§ 3º e 2º, respectivamente, dos arts. 16 e 17 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, de matéria relativa à parceria civil, com a da união estável; também no tocante ao cancelamento dessas união e parceria, com o da inscrição do cônjuge, na situação prevista no mencionado § 2º do art. 17 da citada lei. Do mesmo modo, no art. 11 do Substitutivo (art. 12 do Projeto), desde que comprovada a parceria civil, o parceiro será considerado beneficiário da pensão prevista no inciso I do art. 217 da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, que disciplina o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais. O art. 12 do Substitutivo (art. 13 do Projeto) prevê a necessidade de a Administração Pública, estadual, municipal e do Distrito Federal disciplinar, por legislação própria, os benefícios previdenciários de seus servidores que tenham relacionamento de parceria civil registrada com pessoa do mesmo sexo. Por sua vez, o art. 13 do Substitutivo, como o art. 14 do Projeto, concede direitos sucessórios aos contratantes de parceria civil registrada, nos moldes da Lei nº 8.971, de 28 de dezembro de 1994, relativa à união estável. Todavia, o aludido art. 13 do Substitutivo adapta, em quatro incisos, os casos de sucessão dos conviventes aos dos parceiros. Assim, o parceiro sobrevivente, desde que não firme novo contrato de parceria civil registrado, terá direito ao usufruto da quarta parte dos bens de seu parceiro falecido, se este tiver filhos; bem como ao usufruto da metade desses bens se não houver filhos, ainda que sobrevivam os ascendentes do mesmo falecido (incisos I e II). Entretanto, se o parceiro falecido não deixar descendentes e ascendentes, terá o sobrevivente direito à totalidade da herança (inciso III). Ressalte-se, nesse ponto, que esses três incisos são adaptações dos três primeiros incisos do art. 2º da Lei nº 8.971, de 28 de dezembro de 1994, já citada. Como acontecia, à época, presentemente, em matéria de união estável, quanto ao aludido inciso III, se editado esse, continuará a existir o absurdo de estarem alijados da herança os colaterais do falecido, relativamente aos bens adquiridos pelo parceiro, morto, antes de constituir a parceria civil registrada e os adquiridos, a título gratuito, durante a união. O inciso IV desse art. 13 do Substitutivo, sob exame, é a adaptação do art. 3º da mencionada Lei nº 8.971/94 (relativa à união estável). Por ele, se os bens deixados pelo parceiro falecido tiverem resultado de atividade com a colaboração comum do sobrevivente, terá este direito à metade desse patrimônio. Nesse passo, está presente a regra de condomínio na aquisição de bens comuns, sem menção de cota condominial; pois, se essa for estipulada em contrato escrito ou no documento, mesmo, de aquisição, deverá ser respeitada. O art. 14 do Substitutivo, tratando da matéria cogitada no art. 15 do Projeto, modifica a situação, nesse prevista, para pior. Realmente, pois esse art. 14 procura incluir novo inciso, no art. 454 do Código Civil, que trata, exclusivamente de curatela de cônjuge interdito, não separado judicialmente; nesse caso, o curador será o outro cônjuge. Na falta deste, os três parágrafos, que seguem, escalonam os pais do interdito; na falta desses, o descendente maior, mais próximo, precedendo ao mais remoto; na falta dessas pessoas, o curador escolhido pelo juiz. Resta evidente que, não sendo a parceria civil registrada considerada casamento entre o mesmo sexo, não há como misturar seu tratamento legislativo com matéria matrimonial. Por isso que, relativamente a essa modificação, melhor seria que permanecesse indene o art. 15 do Projeto Marta Suplicy, que assentava que, em caso de “perda da capacidade civil” de qualquer um dos parceiros, teria o outro a “preferência para exercer a curatela”. O art. 15 do Substitutivo refere-se ao conteúdo do art. 16 do Projeto, objetivando nova redação ao art. 113 da Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980, que cuida da situação jurídica do estrangeiro no Brasil. Nesse artigo da apontada lei, no capítulo que trata das condições 17 da naturalização, menciona-se que o prazo mínimo de residência, para concessão da naturalização, ou seja, quatro anos imediatamente anteriores a esse pedido, fixado no art. 112, III, pode ser reduzido, se o parceiro estrangeiro tiver contrato de parceria civil registrada com pessoa de nacionalidade brasileira. A posição do Projeto é a de incluir a matéria no inciso I do referido art. 113 (“ter filho ou cônjuge brasileiro” e “companheira de união civil entre pessoas do mesmo sexo, brasileiro ou brasileira”. Essa redação, além de não ser boa, implica, mais uma vez, a mistura de matéria matrimonial com parceria civil registrada, que não é casamento. Melhor, portanto, a posição do Substitutivo, que acrescenta o inciso VI, nesse art. 113, do seguinte teor: “ter contrato de parceria civil registrada com pessoa de nacionalidade brasileira”). O Substitutivo incluiu dois artigos, 16 e 17, estes, sim, de grande utilidade e alcance social. O art. 16 reconhece aos parceiros o “direito de composição de rendas para aquisição de casa própria”, bem como todos os direitos relacionados com “planos de saúde e seguro de grupo”. Como resta evidente, os parceiros podem somar suas economias, para possibilitar, esse somatório, a aquisição de sua moradia, que ficará garantida, como visto, como bem de família, caso essa exceção exista na futura lei. Também, o plano de saúde e de seguro de grupo, feito por um, beneficiará o outro. Finalmente, o art. 17 do Substitutivo admite aos parceiros a inscrição, um do outro, como dependentes para efeitos de legislação tributária, já que vivem em sociedade de fato, com ganhos e gastos comuns. Aplicam-se, assim, a eles as deduções tributárias. Os dois últimos artigos do Substitutivo, 18 e 19 (arts. 17 e 18 do Projeto), cuidam, respectivamente, do início de vigência, na data em que for publicada a lei, e da revogação de disposições em contrário. Todos esses direitos, previstos nesses Projeto e Substitutivo, estão atualmente admitidos por julgados de nossos Tribunais ou na esfera Administrativa, com o selo de reconhecimento da decisão do Supremo Tribunal Federal, a final, comentada. 5. Situação atual no Brasil Importante notar, inicialmente, que a Instrução Normativa do INSS/DC nº 25, de 7 de junho de 2000, estabelece, por força de decisão judicial, procedimentos a serem adotados para a concessão de benefícios previdenciários ao companheiro ou companheira homossexual21. Desse modo, por essa Instrução, a pensão por morte e o auxílio reclusão podem ser requeridos por companheiro ou companheira homossexual, com fundamento nas rotinas disciplinadas no Capítulo XII da Instrução Normativa INSS/DC nº 20, de 18 de maio de 2000 (art. 2º). A comprovação da “união estável e dependência econômica” deverá ser feita mediante os seguintes documentos: “I – declaração de Imposto de Renda do segurado, em que conste o interessado como seu dependente; II – disposições testamentárias; III – declaração especial feita perante tabelião (escritura pública declaratória de dependência econômica); IV – prova do mesmo domicílio; V – prova de encargos domésticos evidentes e existência de sociedade ou comunhão nos atos da vida civil; VI – procuração ou fiança reciprocamente outorgada; VII – conta bancária conjunta; VIII – registro em associação de classe, onde conste o interessado como dependente do segurado; IX – anotação constante de ficha ou livro de registro de empregados; X – apólice de seguro da qual conste o segurado como instituidor do seguro e a pessoa interessada como sua beneficiária; XI – ficha de tratamento em instituição de assistência médica da qual conste o segurado como responsável; XII – escritura de compra e venda de imóvel pelo segurado em nome do dependente; XIII – quaisquer outros documentos que possam levar à convicção do fato a comprovar” (art. 3º). E completa o art. 4º: “Para a referida comprovação, os documentos enumerados nos incisos I, II, III e IX do artigo anterior, constituem, por si só, prova bastante e suficiente, devendo os demais ser considerados em conjunto de no mínimo três, corroborados, quando necessário, mediante Justificação Administrativa – JA.” Resta evidente que a enumeração do art. 3º não é taxativa, sendo também clara a importância aos documentos referidos nos incisos I, II, III e IX desse mesmo artigo. As outras provas ali mencionadas são muito fracas, ainda que em grupo de três, como a prova do mesmo domicílio, da procuração ou fiança reciprocamente outorgada ou conta bancária conjunta (dois estudantes de uma república podem apresentar dita documentação, sem serem homossexuais). O que se deve ter em conta é a convivência e a dependência econômica. Estudando a situação atual da matéria relativamente à união homoafetiva no Brasil, Flávio Tartuce e José Fernando Simão22 mostram a existência de duas correntes. Pela primeira, a união homossexual não constitui entidade familiar, configurando uma sociedade de fato, aplicando-se a ela o Direito das Obrigações, para a solução dos seus problemas. O parceiro é sócio devendo aplicar-se 21 Publicada no DOU nº 110-E, de 8-6-2000, p. 4 (em que se cogitava só de pensão por morte), e republicada no DOU nº 111-E, de 9-6-2000, p. 88 (em que se inclui, também, auxílio reclusão), fundamentada na Ação Civil Pública nº 2000.71.00.009347-0. 22 Direito Civil, Direito de Família 5, Ed. Gen e Ed. Método, São Paulo, 5ª ed., 2010, pp. 308 a 310. 23 Direito Civil, op. cit., 6ª edição, 2011, p. 320. 24 STJ, REsp 502.995-RN, 4ª Turma, rel. Min Fernando Gonçalves, j. em 26.04.2005; REVJUR vol. 332; STJ, REsp 148.897-MG, RSTJ 110/313, RT756/117, Lex STJ, vol. 108, agosto 1998/235, in RJTAMG; STJ, REsp 773.136 – RJ, rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª turma, j. em 10.10.2006, DJ de 13.11.2006, p. 259 (esforço comum); TJMG, processo 1.0024.04.537121-8/002, 12ª Câm. Cív., rel. Des. Domingos Coelho, j. em 24.05.2006; TJ GO, CNC 994-3 /194 (200701327426) – Goiânia, 2ª Seção Cív., rel. Des. Carlos Escher, DJE de 29.10.2007; casos citados por Tartuce e Simão, 5ª edição, ob. cit., 2010, pp. 307 e 308. 18 Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. quanto ao prisma patrimonial a regra do esforço comum, com aplicação da Súmula 380 do Supremo Tribunal Federal. Os parceiros, nessa situação, não podem adotar, a não ser individualmente, não podendo se valer, um do outro, de seguro saúde e de alimentos. Só haveria afeto e não um núcleo familiar. Citavam esses autores, como integrantes dessa primeira corrente, Maria Helena Diniz, Sílvio de Salvo Venosa, Inácio de Carvalho Neto e Álvaro Villaça Azevedo. Os mesmos autores, já em 201123, ressalvam que Álvaro Villaça Azevedo, filiado a essa primeira corrente, “conforme apontado em palestras e exposições, o Mestre das Arcadas mudou de posição, filiando –se agora à segunda corrente” Ressalte-se, nesse ponto, o posicionamento jurisprudencial quanto a esse primeiro entendimento, em inúmeros casos24. Destaquem-se, mais, julgados que admitem partilha de bens entre companheiros homossexuais, desde que comprovado o esforço comum na aquisição patrimonial25. Concedeu-se, ainda, a condição de herdeiro ao companheiro sobrevivo, na ausência de herdeiros sucessíveis, sendo nomeado inventariante26. Por outro lado, fundado em precedentes jurisprudenciais, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul aplicou, por analogia, à união homoafetiva os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da igualdade e os do Código Civil atinentes à união estável27. Decisão que merece destaque, do Tribunal de Justiça de São Paulo28, fundada em precedente do STJ29, assentou que o Tribunal de Justiça reconhecendo “um relacionamento levado a sério por mulheres resolvidas”, “impede que o falso moralismo bloqueie práticas afirmativas de inclusão dos parceiros ao regime dos benefícios das relações heterossexuais, como os proventos de aposentadoria”. Esclareço, de minha parte, que tenho entendido possível, ante a prova da parceria homoafetiva, poderem os parceiros usufruir, um do outro, dos benefícios previdenciários: seguro saúde e pensão junto ao INSS post mortem . Sempre tenho dito a meus clientes homossexuais para lançarem-se como companheiros na carteira de trabalho, declaração que tem fé pública, até prova em contrário, para fazerem jus aos mencionados benefícios previdenciários. Aconselho-os, também, a fazerem contratos escritos e/ou testamentos, para regularem o regime condominial de seu patrimônio. Lembre-se, ainda, de Jurisprudência que não admite que o parceiro figure como dependente em plano de saúde30 ou possa pleitear alimentos31. Também não se admitiu habilitação de herdeiro e meeiro em inventário de companheiro homossexual, sendo o direito sucessório restrito a união de homem e mulher32. Pela segunda corrente mencionada, a união homoafetiva é entidade familiar, devendo-se aplicar, por analogia, a ela, as regras da união estável, considerandose a proteção que se deve à pessoa, em face do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Defende esse entendimento Maria Berenice Dias, que considera meramente exemplificativa a enumeração dos parágrafos do artigo 226 da Constituição Federal de 1988. Em abono a essa segunda corrente, decidiu o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, sendo relatora a Des. Maria Berenice Dias33, entendendo que a ausência de lei específica sobre o tema não implica ausência de direito. Destaque-se que a corregedoria geral da justiça do Rio Grande do Sul, considerando o parecer 006/2004 do Conselho da Magistratura, promoveu a inclusão de um parágrafo único no art. 215 da CNNR-CGJ (Consolidação Normativa Notarial Registral), para possibilitar aos que vivem em comunhão afetiva o registro de documentos que digam respeito a tal relação. A Medida foi publicada no Diário da Justiça de 3 de março de 2004. De registrar-se, nesse passo, que o Tribunal Superior RT 849/379. TJSP, AI 6.337.424.100-SP, 4ª Câm. de Dir.Priv., rel. Des. Teixeira Leite, j. em 25.06.2009. Apel. cív. 70.005.488.812, rel. Des. José Carlos Teixeira Giorgis, j. em 25.06.2003, in RBD Fam 31/92. 28 Apel. cív. 478.576-4/4, rel. Des. Ênio Santarelli Zuliani, j. em 01.02.2007; em sentido contrário TJSP, Apel. cív. 994.093.422.625 – Americana, 7ª Câm. de Dir. Priv., rel. Des. Luiz Antônio Costa, j. em 16.12.2009; TJRS, Apel. cív. 70.026.584.698, 7ª Câm. Cív., rel. Des. José Conrado de Souza Júnior, pub. no DO de 05.06.2009, in RBDFS10/167, in Milton Paulo de Carvalho Filho, Código Civil, cit., p. 1.984. 29 STJ, REsp 395.904-RS, rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, j. em 13.12.2005, publ. no Dj de 06.02.2006. 30 TJRJ, Apel. cív. 2005.001.44730, rel. Des. Jessé Torres, 2ª Câm. Cív., j. em 23.11.2005, in Tartuce e Simão ob. cit., 5ª ed. p. 304. 31 TJRJ, Apel. cív. 2007.001.04634, rel. Des. Marcos Alcino A. Torres. 16ª Câm. Cív., j. em 24.04.2007, in Tartuce e Simão ob. cit. 5ª ed. pp. 304 e 305. 32 RT 812/220 (Ag In 266.853.4/8, TJSP, 4ª Câm, rel. Des. Rebello Pinho, j. em 28.11.2002, v.u.; no mesmo sentido TJRJ, Apel. 10.704/2000, 3ª Câm, rel. Des. Antonio Eduardo F. Duarte, DORJ de 03.05.2001, j. em 07.11.2000. 33 Apel. cív. 70009550070, 7ª Câm. Cív., j. em 17.11.2004, in Boletim IBDFAM nov./dez./2008, Jurisprudência e Nota, p. 11, com voto vencido do Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves. 34 Eleições 2004, http://noticias .terra.com.br/eleições2004/interna/0, OI394809-EI 2542,00. html, de 01.10.2004. Art.14, “7º- São inelegíveis, no território de jurisdição do titular, o cônjuge e os parentes consanguíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do Distrito Federal, de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro dos seis meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de mandato eletivo e candidato à reeleição”. 35 TJRS, Apel. cív. 70012836755, 7ª Câm. Cív., rel. Des. Maria Berenice Dias, j. em 21.12.2005; TJRS, Emb. Infr. 70006984348, 4º Grupo de Câm. Cív., rel. Des. Maria Berenice, j. em 14.11.2003; TJRS, Apel. cív. 70005345418, 7ª Câm. Cív., rel. Des. José Carlos Teixeira Giorgis, j. em 17.12.2003; in Tartuce e Simão, o.c., p. 306, 5ª edição. 36 TJMG, ACi com ReeNec 1.0024.06.930324-6/001-Belo Horizonte, 7ª Câm. Cív., rel. Des. Heloisa Combat, j. em 22.05.2007, v.u.; TJRJ, Apel. cív. 2005.001.34933, 8ª Câm. Cív., rel. Des. Letícia Sardas, j. em 21.03.2006; in Tartuce e Simão, o. c., pp. 306 e 307, 5ª edição. 37 TJSP, CC 170.046.0/6, Ac. 3571525-SP, Câm. Especial, rel. Des. Maria Olívia Alves, j. em 16.03.2009, DJESP de 30.06.2009. 38 REsp 820.475-RJ, 4ª Turma, rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, sendo rel. para o acórdão o Min. Luis Felipe Salomão, j. em 02.09.2008; no mesmo sentido TJRS, Apel. cív. 70.023.812.423, 8ª Câm. Cív., rel. Des. Rui Portanova, j. em 02.10.2008. 39 STJ, Ag . Reg. no Ag. 971.466-SP, 3ª Turma, rel. Min. Ari Pargendler, j. em 02.09.2008. 25 26 27 19 Eleitoral, por seu pleno, reconheceu o relacionamento homossexual de candidata à Prefeitura da cidade de Viseu, no estado do Pará, com a atual prefeita dessa localidade, para declará-la inelegível em face do art. 14 da Constituição Federal de 1988, cassando o registro dessa candidata34. Principalmente o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul vem admitindo a união homoafetiva com os mesmos elementos da união estável, constituindo uma célula familiar, para ser reconhecida35. Havendo outros Tribunais que, também, admitem essa união, como o de Minas Gerais e do Rio de Janeiro36, com aplicação analógica das regras da união estável e sob fundamento do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Sob os mesmos fundamentos, julgou o Tribunal de Justiça de São Paulo, reconhecendo a união homoafetiva, para fins previdenciários37 . Caso muito importante e citado é o do Superior Tribunal de Justiça38 que admite que a lei ao possibilitar a união estável entre homem e mulher, não proibiu a união entre dois homens ou duas mulheres, desde que tenha os mesmos requisitos daquela união. A união homoafetiva, gerando direitos analógicos à união estável permite seja incluído o companheiro dependente em plano de assistência médica do outro39, devendo haver partilha de bens adquiridos pelos parceiros, com direito recíproco a alimentos, sendo o feito julgado em varas de família40. Registre-se, ainda, a proposição do Governador do Estado do Rio de Janeiro, em fevereiro de 2008, junto ao Supremo Tribunal Federal, de uma Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 132RJ)41, no sentido de aplicar-se às uniões homoafetivas o regime das uniões estáveis. Nesse pedido, alegou-se a violação de preceitos fundamentais constitucionais, como o direito à igualdade (art. 5º, caput), o direito à liberdade, do qual resulta a autonomia da vontade (art. 5º, inciso II), o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III) e o princípio da segurança jurídica (art. 5º, caput). Em seu pedido o Governador relata as dificuldades do Estado na concessão administrativa a homossexuais de licenças em razão de doenças de pessoa da família e de auxílio doença e assistência médico hospitalar, entre outros posicionamentos. Tudo com parecer favorável da Advocacia geral da União, para anulação das decisões do TJRJ, à época de lavra de José Antonio Dias Tofolli, hoje Ministro do Supremo Tribunal. Em 2009, a Procuradoria Geral da República ajuizou outra ADPF (178-DF)42, com o mesmo objetivo, convertida na ADI 4.277-DF, que foram julgadas procedentes recentemente pelo Supremo Tribunal Federal e que são adiante analisadas. Restava, então, evidente a tendência de nossos Tribunais à consideração da união homoafetiva como instituto do Direito de Família, admitindo-se por analogia o preceituado nos arts. 1.725 e 1.790 do Código Civil, com a admissão em tese do regime patrimonial da comunhão parcial de bens, salvo contrato escrito, e do recebimento de herança pelo companheiro supérstite, quanto aos bens adquiridos onerosamente durante a união. Daí a possibilidade de adoção pelo casal homossexual, como admitido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul por decisão pioneira de 05 de abril de 200643. Em 02 de setembro de 2008, admitiu o Superior Tribunal de Justiça a possibilidade jurídica do pedido de reconhecimento de união homoafetiva. A Quarta Turma desse Tribunal determinou que a Justiça Fluminense retomasse o julgamento de ação requerida por homossexuais, que tinha sido julgada sem análise do mérito. O julgamento foi de 3 votos a 2, com o voto de desempate do Ministro Luís Felipe Salomão. Os Ministros Pádua Ribeiro (relator) e Massami Uyeda votaram a favor do pedido, que fora também negado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, e os Ministros Fernando Gonçalves e Aldir Passarinho Júnior que entenderam que a Constituição Federal só permite união estável entre homem e mulher como entidade familiar44, conforme noticiado. Essa citada notícia destaca, ainda, que o direito patrimonial de casais do mesmo sexo não é novidade no STJ, mencionando-se jurisprudência sobre várias situações: direito do parceiro receber metade do patrimônio obtido pelo esforço comum45; direito de receber pensão previdenciária por morte do companheiro falecido46; colocação de dependente em plano de saúde47. Havia toda uma tendência de nossos Tribunais, a considerar a união homoafetiva no âmbito do Direito de Família, com os benefícios de união estável. Ressalte-se, atualmente, no âmbito da segunda corrente analisada, o projeto de lei apresentado pelo Deputado Sérgio Barradas Carneiro, elaborado pelo IBDFAM, conhecido como Estatuto das Famílias (Proj. de lei 2.285, de 2007). Esse projeto mostra uma tentativa válida de criar o Estatuto próprio do Direito de Família, destacando-o dos livros, que compõem o Código Civil. Todavia, no que se refere à matéria relativa às TJRS, Apel. cív. 70.021.908.587, 7ª Câm. cív., rel. Des. Ricardo Raupp Ruschel, j. em 05.12.2007. In Flávio Tartuce e José Fernando Simão, ob. cit., p. 309, 5ª edição. Idem 43 Apel. cív. 70013801592 – Bagé, 7ª Câm. Cív., r. o Des. Luiz Felipe Brasil Santos, com a participação dos Desembargadores Maria Berenice Dias (Presidente) e Ricardo Raupp Ruschel. 44 Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/?noticias&noticia=2636, em 04.09.2008. 45 STJ, REsp 148897, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, de 1998. 46 STJ, REsp 395904, 6ª Turma, rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa j. em 13.12.2005; ver, ainda, decisão do STF, deferindo direitos previdenciários ao parceiro homossexual, Origem Pet 1984-RS, rel. Min. Marco Aurélio, publ. no DJ de 20.02.2003, j. em 10.02.2003; recentemente o STJ estendeu esses direitos previdenciários à previdência privada, REsp 1.026.981-RJ, rel. Min. Nancy Andrighi, j. em 04.02.2010. 47 STJ, REsp 773136, rel. Min. Humberto Gomes de Barros. 40 41 42 20 Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. uniões homossexuais, foi ela vetada em todo projeto, pois considerada não integrante do Direito de Família. Tudo para que o projeto fosse aprovado. O art. 68 desse projeto reconhece a união homoafetiva entre duas pessoas do mesmo sexo, que mantenham convivência pública, continua, duradoura e com o objetivo de constituição de família, como entidade familiar, aplicando-se, no que couber, as regras relativas à união estável, incluindo-se a guarda e convivência com os filhos, adoção de filhos, direito previdenciário e o direito à herança. Nota-se, assim, a tendência negativa do Poder Legislativo, que reluta em não admitir a entidade familiar composta de convivência de pessoas do mesmo sexo. Essa resistência vem sendo sentida, principalmente a partir do projeto de lei apresentado pela então Deputada Marta Suplicy (PL 1.151, de 1995), atrás analisado. Desse modo, já pelas decisões mencionadas do Poder Judiciário, a respeito desse relacionamento homoafetivo, percebe-se que esse Poder Judiciário passou além do Poder Legislativo, admitindo, amplamente, a consideração dessa união familiar entre o mesmo sexo. Os ministros do Supremo Tribunal Federal vinham mostrando entendimento a favor do reconhecimento dessa união homoafetiva, com todos os direitos que dela decorrem como o relativo à adoção de crianças e à concessão de pensionamento, conforme noticiado48. Ressalta essa notícia, ainda, que há falta de sintonia nas decisões dos tribunais estaduais e de juízes dos 26 Estados e do Distrito Federal, apresentando divergências sobre o tema. Daí a possibilidade de unificação do assunto mediante súmula editada por essa Suprema Corte. Tenha-se presente, também, que a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) deu parecer favorável à consulta de uma servidora pública, solicitando a inclusão de sua companheira como dependente para efeito de dedução do Imposto de Renda de Pessoa Física (IRPF). Esse parecer foi aprovado pelo Ministro da Fazenda, Guido Mantega, tendo força normativa por toda a administração federal. Desse modo, a partir do dia 2 de agosto de 2010, o (a) contribuinte que tiver relação estável homossexual de mais de cinco anos poderá incluir seu parceiro ou sua parceira como dependente na declaração do Imposto sobre a Renda da Pessoa Física, podendo fazer as retificações nas declarações apresentadas nos últimos cinco anos (desde 2006)49. Como visto, até este ponto, foram ressaltados importantes julgamentos a favor do reconhecimento da união entre homossexuais como entidade familiar. Já, então, dizia eu50, não havia como fugir-se à realidade. 6. Posição atual do Supremo Tribunal Federal Em 05 de maio de 2011, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, em ocasião histórica, julgou duas ações diretas de inconstitucionalidade (Arguição de descumprimento de preceito fundamental – ADPF nº 132 – RJ e outra conexa – ADI nº 4.277), relativas à apreciação de uniões homoafetivas, em que se discutiu a interpretação legitimadora do art. 1.723 do Código Civil, em face da Constituição Federal, permitindo a declaração de sua incidência também sobre a união de pessoas do mesmo sexo, com convivência pública, continua e duradoura, com o intuito de constituição de família. Ações já anteriormente mencionadas, respectivamente ajuizadas pela Procuradoria Geral da República e pelo Governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral. O julgamento foi pela procedência das ações, admitindo a união de pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, nos termos do acórdão, que está para ser publicado. Por essa procedência votaram a favor dez Ministros: o Relator Carlos Ayres Britto, Ricardo Lewandowski, Carmen Lúcia, Marco Aurélio, Celso de Mello, Luiz Fux, Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes, Ellen Gracie e Cezar Peluso; isso porque o Ministro José Antonio Dias Toffoli não votou em razão de impedimento, por ter dado parecer favorável à anulação das decisões do TJRJ, à época, pela Advocacia Geral da União. Embora não tendo sido disponibilizados todos os votos, o que pude observar é que eles reconhecem a união homoafetiva como entidade familiar, vendo o art. 226 da Constituição Federal não em numerus clausus, mas com texto dispositivo (não taxativo), admitindo direitos à pensão alimentícia e previdência, à herança de bens adquiridos em comum e à adoção conjunta. Aplicam-se à união homoafetiva como entidade familiar “as regras do instituto que lhe é mais próximo, qual seja, a união estável heterossexual, mas apenas nos aspectos em que são assemelhados, descartando-se aqueles que são próprios da relação entre pessoas de sexo distinto, segundo a vetusta máxima ubi eadem ratio ibi idem jus, que fundamenta o emprego da analogia no âmbito jurídico” (voto do Ministro Ricardo Lewandowski). O Ministro relator Carlos Ayres Britto fundamentou seu voto no art. 3º, inciso IV, da Constituição Federal, que proíbe toda discriminação em virtude de sexo, raça, cor, idade, ou por quaisquer outras formas. O Ministro da Defesa, Nelson Jobim, informou, no dia 6 de maio, seguinte a esse julgamento, que os direitos dos militares que convivem em parceria do mesmo sexo, serão garantidos pelas Forças Armadas, como no caso de pensão em caso de morte.51 Notícia de O Estado de São Paulo, por Mariangela Gallucci, na edição de 22 de agosto de 2009 (sábado), A28, no item Vida & Sociedade. Notícia por Adriana Fernandes, da Agência de O Estado de São Paulo, Economia & Negócios, http://economia.estadao.com.br/noticias/not_29873.htm, em 3 de agosto de 2010. Álvaro Villaça Azevedo, Estatuto da Família de Fato, Ed. Atlas, São Paulo, 3ª edição, 2011, p. 455. 51 Conforme Boletim IBDFAM, maio/junho de 2011, p. 6. 48 49 50 21 7. Minha atual posição Com todas as decisões que se originaram de nossos Tribunais a culminar com o julgamento recente de nosso Supremo Tribunal Federal, reconhecendo a união homoafetiva como entidade de direito de família equiparando-a em certas regras, analogicamente, com a união estável, admitiu-se uma realidade social brasileira e mundial, que vem acontecendo e da qual não podemos fugir. Assim, também o meu enfoque sobre a matéria sofreu alguma alteração, que merece ser, nessa feita, esclarecido. A proteção que sempre dediquei à união homoafetiva como sociedade de fato sofre uma transformação a considerá-la atualmente como união de caráter familiar. Assim aconteceu, também, porque o posicionamento social mudou, colocando em ostentação a convivência de pessoas do mesmo sexo que existia em verdadeiro anominato. Não pode o jurista fugir à realidade. O mero comportamento homossexual que sempre existiu na humanidade, mostra-se, atualmente, como núcleos familiares, que merecem o respeito da sociedade, que, em principio, mostra-se hostil a essa convivência, como em outras situações mostrou-se no passado. Assim aconteceu, com o repúdio à ideia do divórcio e com a convivência concubinária pura (não incestuosa e não adulterina), em que viviam pessoas desquitadas aos olhos críticos da sociedade, principalmente as mulheres que sofriam discriminações sociais pela sua condição de serem desquitadas e mal vistas como de mal comportamento. Restos de um machismo que agoniza atualmente, depois do reconhecimento paulatino dos direitos da mulher, principalmente a partir da Lei nº 4.121, de 27 de agosto de 1962, conhecida como Estatuto da Mulher Casada. No tocante ao concubinato puro, muito lutei pela sua defesa, que culminou com a publicação de minha tese intitulada do Concubinato ao Casamento de Fato, publicada um ano e meio antes da Constituição Federal de 1988. Com esforço meu muito grande junto ao Relator da Constituinte, então Senador Bernardo Cabral, foi incluído o concubinato puro (como era por mim chamado) no texto da mesma Constituição, no § 3º de seu art. 226, com o nome de união estável. O anteprojeto de lei que elaborei na aludida tese foi utilizado como Projeto de Lei, nº 1.888 de 1991, pela Deputada Beth Azize, com o apoio constante do grupo CFEMEA, de Brasília, e que se transformou na Lei nº 9.278, de 10 de maio de 1996. 52 Depois, a matéria foi incorporada ao Código Civil, tendo a união estável recebido o respeito e a aprovação de nossa sociedade, que reprovara, antes, a união concubinária pura. Atualmente, a grande defesa da união homoafetiva é sua equiparação à união estável, que acolhe especificamente a convivência heterossexual. A consideração atual de que as regras da união estável devem ser aplicadas analogicamente à união homoafetiva foi o entendimento do Supremo Tribunal Federal ao interpretar o art. 1.723 do Código Civil, diante dos casos concretos que foram apresentados à decisão. Todavia, além dessa interpretação da Corte Suprema, é melhor encarar a união homoafetiva como um instituto jurídico autônomo dentro do contexto enunciativo do art. 226 da Constituição Federal, já que esse Tribunal Supremo considerou essa convivência como entidade de Direito de Família. Bem apreendeu esse espírito o Ministro Ricardo Lewandowski quando referiu em seu cuidadoso e profundo voto, meu entendimento52: “Nesse sentido, aliás, observa o Professor Álvaro Villaça Azevedo que: “(...) a Constituição de 1988, mencionando em seu caput que a família é a ‘base da sociedade’, tendo ‘especial proteção do Estado’, nada mais necessitava o art. 226 de dizer no tocante à formação familiar, podendo o legislador constituinte ter deixado de discriminar as formas de constituição da família. Sim porque ao legislador, ainda que constituinte, não cabe dizer ao povo como deve ele constituir sua família. O importante é proteger todas as formas de constituição familiar, sem dizer o que é melhor”. Desse modo, enquanto não for a matéria objeto da legislação própria, a união homoafetiva irá recebendo a proteção como se fosse união estável, com os beneplácitos dos arts. 1.723 a 1.725. Não poderão, entretanto, os companheiros homoafetivos converter sua união em casamento, nos moldes do art. 1.726 do Código Civil, a não ser que seja entendida a posição do Supremo Tribunal Federal, como equiparação total das duas uniões. Ai, então, o Supremo Tribunal Federal estará autorizando essa conversão, criando assim, o casamento homoafetivo por conversão, suprindo a legislação competente pelo Poder Legislativo. Muitos juízes vem, atualmente, sob interpretação desse julgado pelo Supremo Tribunal Federal, admitindo a conversão de uniões homoafetivas em casaemtno, com aplicação analógica do art. 1.726 do Código Civil, como uma decisão em São Paulo e outra em Brasília. Álvaro Villaça Azevedo, Estatuto da Família de Fato cit., p. 240. 22 Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. Se, de futuro, o Poder Legislativo for levado a admitir no Brasil o casamento entre pessoas do mesmo sexo, aí minha sugestão é de que se siga o exemplo português, alternando-se os textos do Código Civil na parte relativa ao casamento civil, acrescentando-se ao lado da palavra “cônjuge” o vocábulo “companheiro”; ao lado da locução “homem e mulher” a expressão “cônjuges e companheiros”, esta última palavra também após a expressão “marido e mulher”. Como exemplo, o art. 1.511, ficaria assim redigido: “O casamento ‘Civil’ estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges ‘e dos companheiros’”; o art. 1.514, seria redigido: “O casamento civil realiza-se no momento em que ‘duas pessoas’ manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz ‘as’ declara ‘casadas’”; o art. 1.517, teria o seguinte texto: “As pessoas com 16 (dezesseis) anos podem casar-se exigindo-se autorização de ambos os pais ou de seus representantes legais, enquanto não atingida a maioridade civil”; e assim por diante. Isso, se não preferir o legislador admitir no novo Estatuto das Famílias, o restabelecimento de seu art. 68 (que foi retirado do projeto de lei nº 2.285, de 2007, criado pelo IBDFAM, e apresentado pelo Dep. Sérgio Barradas Carneiro (PT/BA). Eis a íntegra do art. 68 desse Estatuto: “É reconhecida como entidade familiar a união entre duas pessoas do mesmo sexo, que mantenham convivência pública, contínua, duradoura, com o objetivo de constituição de família, aplicando-se, no que couber, as regras concernentes à união estável. Parágrafo único. Entre os direitos assegurados, incluem-se: I – guarda e convivência com os filhos; II - a adoção de filhos; III – direito previdenciário; IV – direito à herança”. Como o Direito de Família é dinâmico e muda rapidamente com o progresso e com o comportamento da sociedade, é viável que ele se destaque do Código Civil, para ser continuamente adaptado segundo as necessidades sociais. Um Estatuto, fora do Código Civil, este com normas mais duradouras, como o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto da disposição do próprio corpo, o Estatuto do Idoso, o Estatuto do Consumo etc. of gay marriage in the foreign law, the central question of this study was well placed: many countries now recognize marriage between same sex. After carefully analyzing the evolution of matter in society and the Brazilian legislation, the author recognizes the dynamics of family law and the possibility it become established outside of the Civil Code, in the Statute of Families. Key words: Union of same sex. Gay marriage. Marriage. Abstract: The work begins with the presentation of the gay marriage concept and a compelling analysis of placements made by Platão about the search that man has always done its corresponding other half, thus eventually resulting in homosexual practices. According to the author, has not made reference to marriage between persons of the same sex, in order to raise a family. But when he open the issue 23 Comportamentos de fazer e de não fazer na prestação alimentícia RUI CARVALHO PIVA Doutor em Direito. Coordenador de Pesquisa da Faculdade de Direito da Fundação Armando Alvares Penteado – FAAP. Editor da Revista FAAP JURIS. Professor de Direito Civil dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação da Faculdade de Direito da FAAP em São Paulo e São José dos Campos. Professor de Direito Ambiental do Curso de Pós-Graduação em Direito do Agronegócio da FAAP em Ribeirão Preto. Resumo: O presente artigo tem o objetivo de destacar a importância dos comportamentos de fazer e de não fazer no cumprimento da prestação alimentícia, como complemento do cumprimento dessa obrigação por meio de prestação pecuniária. Para justificar a proposta aqui apresentada, foram analisados os seguintes aspectos: o simbolismo contido na palavra alimento, a expressão familiar e o afeto contidos na prestação alimentícia, a Psicologia, o Direito e o comportamento das pessoas, o pensar, o sentir e o agir humanos, o direito subjetivo e o agir do ser humano, o afeto envolvido no comportamento familiar da prestação alimentícia, localização e compreensão do instituto jurídico dos alimentos no Código Civil Brasileiro e modalidades das obrigações e a prestação alimentícia. Palavras-chaves: Família. Obrigação. Pensão alimentícia. Afeto. Comportamento humano. 1. O simbolismo contido na palavra alimento No seu mais tradicional significado gramatical, alimento é toda substância que, ingerida por um ser vivo, lhe dá sustento e nutrição, possibilitando-lhe a vida. Ao ser utilizada no plural, além de indicar uma flexão de número, a palavra alimentos ganhou um significado simbólico, ou seja, recursos considerados indispensáveis ao sustento de quem, estando impossibilitado de os prover, deles necessitar para suprir a obtenção de alimentação, habitação, vestuário, assistência médica e educação, dentre outras necessidades. Referidos recursos são devidos por pessoas mencionadas na lei e ligadas por laços familiares a quem estiver impossibilitado de provê-los. Qual o motivo deste significado simbólico? O que teria levado as pessoas a utilizar a palavra alimentos, ou seja, aquilo que se come para poder viver, com o significado ampliado de comida, estudos, lugar para morar, roupas para vestir e assim por diante? Respostas a estas perguntas, a partir de uma verificação moral e ética das relações entre as pessoas na sociedade, podem permitir interpretações das palavras contidas nas previsões legais sobre alimentos e dos fatos que concretizam estas previsões as mais próximas possíveis dos desejos desta sociedade contidos, mas não expressos na lei. A necessidade de “um prato de comida” como pressuposto de vida e a solidariedade humana contida na atitude espontânea de tantas pessoas no sentido de não deixar “faltar um prato de comida” a quem dele necessitar, 24 repercutem duas percepções humanas transportadas para as leis: o direito à vida e o direito ao bem estar advindo da prática da solidariedade. É por este motivo que, em determinado momento das relações sociais, bastava para as pessoas que o direito assegurasse a vida biológica. A penalidade prevista para quem matar alguém foi uma das expressões mais consagradas destas percepções. A obrigação familiar de disponibilizar alimento para seus integrantes foi outra. A evolução da expectativa das pessoas em relação à vida ampliou as exigências sociais incorporadas pelo direito no sentido de assegurar a efetivação dessa expectativa. Assim, não basta somente viver. Será necessário viver bem, com dignidade. Não basta mais somente o “prato de comida”, o alimento. Será necessário acrescentar nas previsões da lei a exigência do atendimento a outras necessidades. A sociedade exigiu e as leis elaboradas pelos órgãos legislativos competentes atenderam a exigência. Além da substância que dá sustento ao ser humano vivo, ou seja, além do alimento, será preciso disponibilizar habitação, vestuário, assistência médica, educação e assim por diante, a quem necessitar. Para não haver dúvidas quanto ao alcance desta exigência, é permitido entender que a doutrina jurídica utilizou-se da força da expressão inicial contida na palavra alimento para identificar direito de morar, vestir-se, ter atendimento médico, estudar e assim por diante. Desta maneira, alimentos passaram a significar Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. comida, moradia, roupa, escola e hospital. E o dever de disponibilizar moradia a quem dela necessite e não tenha meios para tanto um dever tão exigível como a alimentação. Igualmente em relação ao dever de disponibilizar escola, roupas, atendimento médico e, em palavras conclusivas, tudo aquilo que for necessário para uma vida digna. Para que o sistema legal atenda com efetividade os desejos da sociedade contidos nos textos das leis, as expressões alimentos e vida digna deverão ser compreendidas como conceitos jurídicos indeterminados, cujo verdadeiro alcance será verificado em cada caso concreto submetido à apreciação do Poder Judiciário. Conheça ou reveja as seguintes manifestações de nossos Tribunais sobre o assunto alimentos e identifique nas mesmas o reconhecimento das sugestões acima. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo 520.319-4/2-00. Agravo de Instrumento. Des. José Roberto Neves Amorim Alimentos provisórios. Obrigação imposta aos avós. Impossibilidade. Ausência de prova a respeito da incapacidade financeira dos próprios genitores. Condenação dos demais parentes autorizada apenas em caráter excepcional. Precedentes jurisprudenciais. Decisão mantida. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. 2009.002.21492. Agravo de Instrumento. Julgamento: 28/08/2009. Des. Marília de Castro Neves - Décima Câmara Cível. Agravo de Instrumento. Alimentos. Fixação dos provisórios em valor justo e razoável. Atendimento do binômio necessidade-possibilidade. Valor ora determinado se mostra adequado para atender as necessidades da alimentanda, até que seja concluída a fase de cognição, onde será apurado o valor mais consentâneo com a realidade e a efetiva necessidade das partes envolvidas. Recurso a que se nega seguimento na forma do artigo 557 caput do Código de Processo Civil. Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. 2009.035378-8. Apelação Cível. Julgamento: 06/08/2009. Des. Eládio Torret Rocha – Quarta Câmara Cível. Havendo alteração na situação financeira das partes ou qualquer outra justificativa plausível para majoração, diminuição ou extinção da obrigação alimentar, é possível a revisão do encargo, nos moldes do art. 1.699 do Código Civil. Todavia, como bem ensina o art. 1.694, §1º do Código Civil, os ALIMENTOS devem ser fixados na proporção das necessidades do alimentando e dos recursos econômicofinanceiros do alimentante. Recurso improvido. Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso. 140340. Habeas Corpus. Julgamento: 29/04/2009. Des. Maria Helena G. Póvoas – Segunda Câmara Cível. É legítima a decretação da prisão civil do alimentante inadimplente que não paga dívida correspondente às 3 (três) últimas parcelas cobradas em ação de execução de alimentos, bem como pelas prestações alimentícias não pagas no curso do processo. A ausência ou não de condições financeiras do Paciente para o cumprimento da obrigação alimentar foge à esfera de cognição do habeas corpus. A expressão familiar e o afeto contidos na prestação alimentícia 2.1. A Psicologia, o Direito e o comportamento das pessoas * A partir de textos construídos pelo autor em sua tese de doutorado mencionada na bibliografia. A psicologia é uma disciplina que tem por objeto a alma, a consciência ou os eventos característicos da vida animal e humana, nas várias formas de caracterização de tais eventos, com o fim de determinar sua natureza específica. (ABBAGNANO, Nicola. Dicionário..., p. 809). Prosseguindo na conceituação acima, Nicola Abbagnano esclarece que esses eventos podem ser considerados como puramente mentais (fatos da consciência) ou como eventos objetivamente observáveis (comportamentos), delimitando o campo da psicologia aos fenômenos característicos dos organismos animais, em especial o homem. É certo identificar nesses comportamentos humanos que resultam de uma escolha processada na consciência, objeto de estudo da psicologia, os mesmos comportamentos humanos objeto do estudo do direito, enquanto fatos jurídicos humanos voluntários, ou seja, acontecimentos que dependem da vontade e do comportamento humanos, previstos em lei, em decorrência dos quais nasce, modificase, extingue-se ou subsiste uma relação jurídica, a categoria básica do direito, que é um vínculo entre pessoas que incide sobre bens. É certo, ainda, que esses comportamentos, quando resultado de uma vontade conscientemente processada em 25 um ambiente familiar afetivo, tendem a resultar em ações adequadas, prestigiadas pela ordem jurídica e úteis para as pessoas que integram o meio social em que eles ocorrem, ações estas desejáveis para os fins do direito enquanto técnica da coexistência humana. O pensar, o sentir e o agir humanos Estas são as três áreas da estrutura das pessoas. Consideremos o pensamento como a atividade do intelecto em geral, ou seja, a faculdade de pensar ou uma técnica particular de pensar. Esta atividade é distinta da sensibilidade e da atividade prática. Quando estamos pensando, somos sabedores do que acontece em nós. O pensamento representa as coisas que estão fora de nós. Nicola Abbagnano (Obra citada, p. 751) refere-se a Platão, que dizia: quando a alma, que é o princípio da vida, da sensibilidade e das atividades espirituais, pensa, ela está discutindo consigo mesma por meio de perguntas e respostas, afirmações e negações. Quando, mais tarde, decidimos a respeito disto, a alma chegou a uma opinião, ou seja, pensamos. Em outra área da estrutura das pessoas, encontramos o sentimento, que é a fonte das emoções, o princípio dos afetos (sentimentos ternos de adesão por alguém) e das afeições (sentimentos amorosos em relação a alguém). Aceitar o sentimento como uma fonte autônoma de emoções significa reconhecer que a subjetividade humana não se reduz a um conjunto de elementos objetivos e não está sujeita a modificações passivas produzidas por esses elementos (ABBAGNANO, Nicola. Dicionário..., p. 874). Este reconhecimento caracteriza os primórdios da filosofia moderna. Na última destas áreas da estrutura das pessoas, vamos encontrar considerar o agir, que é sinônimo de comportamento, de atitude, ou seja, é toda resposta do ser humano a estímulos uniformes que sejam objetivamente observáveis por qualquer meio, que inclui a antecipação de pensamentos, sentimentos e escolha. É a face externa das pessoas, informada por processos internos de pensamentos e sentimentos. Com estes esclarecimentos, podemos avaliar a base racional e sentimental dos comportamentos das pessoas que concretizam previsões contidas na lei, ou seja, podemos avaliar a base racional e sentimental dos fatos jurídicos. O direito subjetivo e o agir do ser humano Popularmente, o direito é confundido com o conjunto das leis vigentes. 26 Porém, a verdadeira denominação deste conjunto de normas jurídicas vigentes é direito objetivo. Cada uma delas representa um imperativo autorizante (TELLES JÚNIOR, Goffredo. Iniciação na ciência do direito, p. 43), uma autorização, uma permissão para ter, não ter, fazer ou não fazer alguma coisa e também autorização para pleitear junto aos órgãos competentes a reparação do dano causado pelo comportamento de alguém que descumpra o que nelas estiver estabelecido. Esta autorização ou permissão dada por meio de normas jurídicas denomina-se direito subjetivo, também conhecido como o poder que advém da norma. Conforme Maria Helena Diniz (Curso de direito civil brasileiro, 1 v., p. 14), os comportamentos importam em significativa expressão de subjetivismo, que percorrem um itinerário psíquico onde se distinguem os momentos da solicitação (o cérebro recebe o estímulo do meio exterior), da deliberação (pensamentos e sentimentos atuam sobre o acontecido) e da ação (a pessoa toma uma atitude). É a propósito da deliberação comportamental acima referida, quando tomada em função de permissões dadas por meio de normas jurídicas que envolvem deveres impostos a integrantes da família em relação a prestações alimentícias, que vamos tecer as considerações que seguem. 2.2. O afeto envolvido no comportamento familiar da prestação alimentícia O direito não é só uma coisa que se conhece, é também uma coisa que se sente (BARRETO, Tobias. Introdução ao estudo do direito, p. 38). É certo afirmar que o senso jurídico é um fato psicológico de observação quotidiana, que se manifesta pelo sentimento do próprio direito e pelo sentimento daquilo que é o direito alheio. Segundo Tobias Barreto (Obra citada), o sentimento do próprio direito é uma das bases do caráter e o sentimento do direito alheio uma das fontes da virtude. Assim, quem é justo sente, além do próprio, o direito dos outros e procede de acordo com tal sentimento. A família, reconhecida atualmente como base da sociedade brasileira, sempre representou, ao longo da história de toda a civilização, uma fonte inesgotável de senso jurídico marcado pela preponderância da virtude em relação ao caráter, ou seja, no ambiente familiar, a percepção do direito do outro prevalece em relação ao direito próprio. É este desprendimento que proporcionou a sólida construção social e jurídica dos contornos da maternidade, da paternidade e da fraternidade. Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. Isto é assim porque a sustentação racional e sentimental do comportamento familiar vem marcada por uma insistente necessidade de acolher e conciliar posições conflitantes das pessoas que a integram, constatação esta que faz das atitudes originárias do ambiente familiar quotidiano um permanente exercício de ponderação, equilíbrio e compreensão de anseios opostos, mas harmonizáveis. Um permanente exercício da virtude. O que significa essa virtude? De modo bastante amplo, significa uma capacidade qualquer, uma excelência, seja qual for a coisa ou o ser a que pertença. Ela pode ser entendida como uma capacidade em geral, como uma capacidade do ser humano ou como uma capacidade moral do ser humano. Neste último sentido, que é o que interessa para os propósitos da identificação de uma especial característica do direito subjetivo quando exercido pela família, a virtude designa uma capacidade uniforme e continuada do ser humano, uma vez que esta capacidade exercida uma vez, isoladamente, constitui somente um ato moral e não uma virtude. Assim concebida, a virtude pode compreender (ABBAGNANO, Nicola. Obra citada, p. 1003: 1) a capacidade de realizar uma tarefa ou função; 2) o hábito ou disposição racional; 3) o sentimento ou tendência espontânea; 4) o esforço. Tal aptidão, a virtude, só pode estar sustentada em bases afetivas e, sob o aspecto da afetividade, a instituição familiar é inigualável. Berço do caráter, a família vem se constituindo numa indispensável presença. Se localizarmos esta presença em relação às atitudes que uma família pode tomar em face das autorizações que a norma jurídica lhe concede, certamente poderemos ficar na expectativa de atitudes adequadas, ou seja, atitudes prestigiadas pela ordem jurídica. Se identificarmos estas atitudes como exercício de direitos subjetivos e imaginarmos os membros família incentivados a exercê-los com virtude no cumprimento de prestações alimentícias, certamente poderemos pensar em maior efetividade do direito aos alimentos. Localização e compreensão do instituto jurídico dos alimentos no Código Civil Brasileiro O Código Civil Brasileiro disciplinou os assuntos relativos aos alimentos nos artigos 1.694 a 1.710, posicionando-o no Título II do Livro IV, assim identificando-o como um Direito Patrimonial, diversamente dos assuntos relativos ao casamento e às relações de parentesco, previstos no Título I, na condição de Direitos Pessoais. As previsões legais básicas do Código Civil relativas aos alimentos constam do artigo 1.694 e seus parágrafos, como seguem: Artigo 1.694. Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação. § 1.º. Os alimentos devem ser fixados na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada. § 2.º. Os alimentos serão apenas os indispensáveis à subsistência, quando a situação resultar de culpa de quem os pleiteia. Estruturado nestas previsões básicas, o Código estabelece regras complementares que podem ser assim resumidas: Os alimentos serão fornecidos por quem pode, em benefício de quem precisa e não tem condições de provêlos; A obrigação de prestar alimentos é recíproca entre ascendentes e descendentes, de qualquer grau, e subsidiária, na medida em que os de graus mais distantes somente poderão ser convocados a prestá-los quando os de graus mais próximos não puderem, total ou parcialmente. Isto significa que se trata de obrigação divisível; A obrigação dos descendentes se impõe somente na falta de ascendente em condições de prover os alimentos e, na falta de uns e outros, estão obrigados os irmãos, germanos ou unilaterais; Os alimentos estabelecidos podem ser cancelados e o seu valor pode sofrer aumento ou diminuição conforme ocorra alteração nas condições de quem os provê ou de quem os recebe; A obrigação de prestar alimentos é transmissível causa mortis, mas o direito aos alimentos extingue-se com a morte do credor; A obrigação alimentícia poderá estar representada por uma prestação de dar (dinheiro) ou pelo oferecimento de hospedagem e sustento; A culpa de um dos cônjuges na separação judicial litigiosa é fator excludente da obrigação de prover alimentos por parte do cônjuge inocente, mas se o culpado necessitar e não tiver parentes em condições de assumir a obrigação nem aptidão para o trabalho, o outro deverá assegurar-lhe, se puder, o mínimo indispensável; Filho havido fora do casamento pode pleitear alimentos do pai; 27 O direito a alimentos pode não ser exercido, mas é irrenunciável, insuscetível de cessão, de compensação e de penhora; Casamento, união estável, concubinato e procedimento indigno do credor em relação ao devedor de alimentos fazem cessar a obrigação; O novo casamento do cônjuge devedor não extingue a obrigação constante de sentença de divórcio. As modalidades das obrigações e a prestação alimentícia Direito das obrigações é o conjunto de disposições legais que regulam relações jurídicas de ordem patrimonial, que têm por objeto prestações do devedor em proveito do credor. Obrigações são relações jurídicas de caráter transitório, mediante as quais uma pessoa fica obrigada a dar, fazer ou não fazer alguma coisa economicamente apreciável em proveito de outra. A relação jurídica obrigacional vincula as pessoas do devedor e do credor transitoriamente, porque é da sua natureza o propósito de lhe dar cumprimento, levando-a à extinção. Ela é passageira. As modalidades básicas das obrigações, como se vê no conceito acima, são as obrigações de dar (entregar ou restituir coisa), fazer e não fazer. Elas podem assumir outras modalidades secundárias, como dar uma coisa ou outra (obrigação de dar alternativa), entregar um animal de raça para a prática de esportes (obrigação de dar indivisível), ministrar um curso em várias aulas (obrigação de fazer divisível), pagar toda a dívida mesmo sendo dois os devedores (obrigação de dar solidária), não se instalar, durante certo tempo, com atividade comercial concorrente nas proximidades da atividade transmitida a terceiro (obrigação de não fazer) e assim por diante. Prestação é o comportamento humano capaz de levar ao cumprimento da obrigação e, como se depreende do que ficou dito acima a respeito das modalidades básicas, trata-se de um comportamento que assumirá o caráter de entregar ou restituir alguma coisa, fazer alguma coisa ou não fazer alguma coisa, conforme seja a natureza da obrigação assumida. A propósito, no seu significado jurídico, coisa é tudo o que existe na natureza, com exceção do ser humano, que possa servir de objeto a uma relação jurídica. Ajustando a apresentação dos conceitos acima ao assunto objeto do presente item (as modalidades das obrigações e a prestação alimentícia), podemos assumir 28 que prestação alimentícia é o comportamento capaz de levar ao cumprimento do dever de prestar alimentos, ou seja, do dever de prover de comida, estudos, lugar para morar, roupas para vestir e assim por diante, a pessoa que necessitar destes bens e estiver impossibilitada de assumir as suas obtenções. O nosso Código Civil, como dito anteriormente, estabeleceu que a obrigação alimentícia poderá estar representada por uma prestação de dar (dinheiro) ou, somente se o beneficiário for menor, pelo oferecimento, além de outras necessidades pecuniárias designadas como sustento, de hospedagem, que pode caracterizar obrigação de fazer, sempre que entendermos hospedagem somente como oferta de serviços de instalação e acolhimento do beneficiário na casa onde mora o devedor da prestação. Como se vê, a preferência do legislador pelo cumprimento da obrigação alimentícia por meio de uma prestação de dar, ou seja, de entregar coisa economicamente apreciável e de expressão pecuniária, foi escancarada. Em sentido contrário, pergunta-se: seria possível e recomendada a utilização mais freqüente de comportamentos de fazer e de não fazer para o cumprimento da prestação alimentícia? Sim, deve ser a resposta. Tanto para prestação de fazer como de não fazer. O comportamento de fazer pressupõe um envolvimento maior da pessoa que vai prestar alimentos. Pelo menos, a parcela não pecuniária da prestação. Imagine o filho cumprindo a prestação alimentícia devida ao pai por meio de dois comportamentos. Um, de dar, representado pela disponibilização do dinheiro necessário para prover as necessidades pecuniárias. Outro, de fazer, representado, por exemplo, pelo comportamento de levar o pai às consultas médicas regulares, ali permanecendo ou retornando para apanhá-lo. O comportamento de fazer para cumprimento da prestação alimentícia pode assumir incontáveis contextualizações: pai médico atendendo consultas periódicas de filho credor de alimentos, filho massagista atendendo mãe com dores regulares, irmão professor ministrando aulas de reforço para irmão estudante, exmarido médico fazendo aplicação regular de botox na região dos olhos de ex-mulher portadora de distonia (espasmos musculares involuntários), mãe separada indo buscar filho na escola de inglês, ex-mulher devedora de alimentos para ex-marido com deficiência física indo ao supermercado fazer as compras, ou seja, atendendo a parte pecuniária e a não pecuniária da prestação alimentícia devida ao exmarido, neto indo mensalmente ao cinema com o avô que Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. não mais dirige carros. E assim sucessivamente, em um rol de previsões que pode conter as mais diversas de desejadas hipóteses de enriquecimento da qualidade da prestação alimentícia. Por sua vez, a adoção do comportamento de não fazer para cumprir a parte não pecuniária da prestação alimentícia também pressupõe um envolvimento maior da pessoa que vai prestar alimentos. E traz qualidade à prestação. É certo que em determinadas situações a aproximação entre prestador e beneficiário de prestação alimentícia se torna praticamente impossível, em decorrência dos conflitos que levaram à caracterização do débito alimentar. Mas, estas dificuldades não devem justificar a ausência de empenho na adoção de comportamentos de fazer e de não fazer no cumprimento da prestação alimentícia. Abstract: This article aims to highlight the importance of doing and not doing behaviors in compliance to alimony, in addition to the fulfillment of this obligation through monetary benefit. To justify the proposal presented here, we analyzed the following aspects: the symbolism contained in the word food, the familiar and affection provision contained in the alimony, psychology, law and people’s behavior, thinking, feeling and acting human, the subjective right and acting of human beings, affect family behavior involved in the provision of alimony, location and understanding of the legal institute of alimony in the Civil Code of the obligations and procedures and providing support. Key words: Family. Obligation. Alimony. Affection. Human behavior. Bibliografia ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. BARRETO, Tobias. Introdução ao estudo do direito. São Paulo: Landy, 2001. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, 1 v. PIVA, Rui Carvalho. Tese de Doutorado. PUC/SP. 2003. TELLES JÚNIOR, Goffredo. Iniciação na ciência do direito. São Paulo: Saraiva, 2001. 29 Sustentabilidade nos Hoteis de selva da Amazônia EDSON RICARDO SALEME Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo. Professor dos Cursos de Mestrado em Direito Ambiental da UEA e da UNISANTOS. Professor dos Cursos de Graduação da FAAP e da UNIP. SILVIA E. BARRETO SABORITA Mestranda em Direito Ambiental pela UNISANTOS. Professora de Pós-Graduação da FAAP em Direito Público. Membro ativo da Associação do Centro Vivo. Resumo: O desenvolvimento sustentável deveria ser o norte de todo o empreendimento que se queira implantar e possa trazer alguma espécie de impacto ao ambiente. Pelo sistema constitucional e legal (Lei 6938/81), as entidades federativas podem exigir de todas as atividades potencialmente poluidoras a respectiva licença ambiental.Este artigo pretende informar como o Hotel Ariaú, localizado no complexo das ilhas Anavilhanas, na circunscrição de Manaus, Amazonas, no Rio Negro, logrou, após sucessivas tentativas, adequar-se às especificações dos órgãos ambientais em termos de transformação de resíduos sólidos e líquidos. Esta pesquisa será do tipo bibliográfica. Aqui se buscará, por meio de entendimentos doutrinários, um equacionamento do problema em questão, a fim de tornar inteligíveis os pontos debatidos no desenvolvimento do estudo. Também será analisado o Estudo de Impacto Ambiental que deu azo à licença que viabilizou a finalização da obra. Os autores apresentaram este estudo no XIV Congresso Ibero americano de Urbanismo, com o apoio da FAAP. Palavras-chaves: Sustentabilidade – Hotéis de Selva – Amazônia – Turismo 1 – Introdução O objeto do trabalho será a questão da sustentabilidade e licenciamento dos hotéis situados na Floresta Amazônica, o bioma consistente no maior depositário de biodiversidade do Planeta. Será focada a atenção no Hotel Ariaú, situado no Arquipélago de Anavilhanas, no Município de Novo Airão, Estado do Amazonas. Aqui se observarão os avanços obtidos pelo estabelecimento após a adoção de medidas destinadas à sustentabilidade e apoio à comunidade indígena local. As normas brasileiras de proteção ao meio ambiente têm estreitado cada vez mais as exigências para ocupação de áreas naturais. Com a finalidade de proteção desse ecossistema amazônico, editou-se a Lei nº 9982/2000, criadora do Sistema Nacional de Unidade de Conservação da Natureza (SNUC). Importante também o cumprimento das regras da Lei nº 6938/1981, que estabelece a necessidade de licenciamento ambiental para obras de grande impacto. Um dos grandes problemas atualmente existentes é como manter os hotéis de selva em um meio ambiente protegido. Os hoteleiros do mundo e sobretudo da Amazônia reconhecem o valor das práticas ambientais responsáveis. Certamente, a gestão ambiental correta é imposta como condição para manutenção da licença do hotel. 30 Essa gestão envolve planejamento, organização, orientação dos diversos atores envolvidos na administração de recursos humanos e sua correta manutenção. O artigo trará os detalhes de aplicação de práticas ambientais sustentáveis no hotel Ariaú e como logrou ser reconhecido como um dos mais responsáveis da região por aplicar tais práticas. Isso sem falar do apoio que presta às comunidades indígenas locais, propiciando medicamentos educação e integração social. Certamente, o sistema normativo existente disponibiliza ao empresário fórmulas e métodos que o induzem a se manter interado dos padrões de sustentabilidade, como mecanismo capaz de atrair cada vez maior número de turistas, sobretudo aqueles preocupados com a causa ambiental. Deve o empresário manter-se em padrões legais e práticas adequadas criados por pesquisadores de ecoturismo para melhor condução da exploração desses hotéis, tal como existe no “guia de planejamento e gestão de ecoturismo” elaborada pela Ecoturismo Society dos Estados Unidos da América. 2 – Práticas brasileiras em prol da sustentabilidade. No Brasil, o Decreto n° 84.017, de 21.09.1979, foi um dos primeiros atos legislativos em prol da proteção de parques nacionais brasileiros. Referidas áreas foram definidas como “áreas geográficas extensas e delimitadas, Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. dotadas de atributos naturais excepcionais, objeto de preservação permanente, submetidas à condição de inalienabilidade e indisponibilidade no seu todo”. Apenas com a publicação da Lei n° 6.938, de 31.08.1981, houve tratamento da questão ambiental de forma mais abrangente. Essa Lei dispõe sobre a Política Nacional de Meio Ambiente – PNMA, e cria o Sistema Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA. Entre seus precípuos princípios está a proteção dos ecossistemas, com a preservação de áreas representativas (artigo 2°, inciso IV). Uma das maneiras de proteção desses ecossistemas foi a criação de espaços especialmente protegidos (art. 9°, inciso VI). Entre referidos espaços estão as UC – Unidades de Conservação da Natureza. Essa mesma Lei de Política Nacional do Meio Ambiente, nº 6.938/81, também estabeleceu em seu artigo 2°, VIII, entre seus princípios, a recuperação de áreas degradas. Após relacionar os objetivos da política nacional, referiu-se à restauração dos recursos ambientais (art. 4°, VI) e a imposição de penalidades ao poluidor e ao predador. Assim como consignou a prioridade de se recuperar prejuízos e danos eventualmente causados (art. 4°, VII). Essa restauração refere-se à reparação também prevista no artigo 225, § 1°, inciso I da Constituição brasileira, tudo de modo a garantir o meio ambiente equilibrado a todos. Após a instituição da PNMA e, como não havia lei federal que regulamentasse a matéria, o Conselho Nacional de Meio Ambiente – CONAMA – editou a Resolução n° 11, de 3.12.1987, cujo objeto seria a criação de um sistema de Unidades de Conservação, que foram propriamente tratadas na Lei nº 9985/2000. O art 7º dessa Lei estabeleceu que as unidades de conservação integrantes do SNUC dividem-se em dois grupos, com características específicas: unidades de proteção integral e as de uso sustentável. As primeiras estabelecem um sistema de preservação da natureza, admitindo apenas seu uso indireto, bem como de seus recursos naturais. Nas segundas existe a possibilidade de compatibilizar o uso da natureza com o uso sustentável de parcela de seus recursos naturais. 3 – Projetos e planos relacionados ao Hotel Ariaú O hotel não é recente no cenário amazônico. Possui, desde sua concepção, planos e projetos destinados não somente à integração dos hóspedes com a natureza, mas também relacionados às comunidades tradicionais e outros campos, a exemplo do tratamento a preservação dos animais por meio da bototerapia1. Além disso existem ações e iniciativas ambientais selecionadas para o segmento da parte operacional e administrativa do Hotel Ariaú, de maneira a contribuir com a empresa no atendimento aos novos requisitos ambientais, agregando valor às suas ações junto ao seu mercado. Exigiu-se do hotel, por meio do órgão ambiental estadual encarregado da autorização daquele ente federativo, o IPAAN – Instituto de Proteção Ambiental do Estado do Amazonas, que se tomasse o maior número de medidas mitigadoras de impacto em suas áreas de sua influência. Foram levantados os principais pontos de controle e medidas de proteção ambientais levando em conta a publicação do IHEI – International Hotels Environment Initiative, sobretudo porque, doravante, seria prática necessária e obrigatória aos demais hotéis de selva da região. A pesquisa realizada incluiu uma descrição da evolução das questões ambientais levantadas na fiscalização realizada pelo IPAAM no mês de fevereiro/2009 e as principais soluções de problemas no hotel, as alternativas apresentadas foram classificadas em dois tipos: Alternativas Tipo A: refere-se a iniciativas associadas as ações ambientais comuns, como consumo de água, energia e uso de produtos que agridem o meio ambiente. Alternativas tipo B: mudança do comportamento ambiental nos modelos de gestão do Hotel, associando aos objetivos e metas ambientais que poderão assegurar o sucesso ao empreendimento/ambiente. Observa-se que, em países economicamente desenvolvidos e de grande potencial paisagístico, o número de iniciativas relacionadas com a preservação ambiental provenientes do segmento hoteleiro vem crescendo exponencialmente. Isso se torna um diferencial competitivo muito significativo em relação às empresas hoteleiras brasileiras, cujas iniciativas ambientais só agora começam a despertar o interesse dos empresários desse setor com as precauções que deveriam ser tomadas há tempos.2 Nesse sentido, a ABIH – Associação Brasileira da Indústria de Hotéis lançou o Programa de Responsabilidade Ambiental Hóspedes da Natureza que tem como objetivo ajudar o segmento hoteleiro e preparar-se para atender os requisitos ambientais que já vêm sendo exigidos pelos sistemas internacionais de reservas, tais como o American Express, Wagon Lits Cook e outros. 3.1 - Objetivos do Plano de Gerenciamento Identificar os resíduos sólidos gerados nos processos de operação do hotel e eliminar o risco de contaminação do solo, água, ar, fauna e flora local, por meio do gerenciamento dos resíduos líquidos de lavagem e tratamento de efluentes sanitários e formas de controle; Mitigar e reparar qualquer dano encontrado; Inserir e difundir práticas na atividade do hotel, um plano de Educação Ambiental promovendo ações 1 Terapia complementar de tratamento de saúde para pessoas com necessidades especiais. Disponível em : http://anadelfs.blogspot.com/2011/01/bototerapia-hotel-ariau-manaus-am.html, consultada em 20.04.2011. 2 Disponível no site, consultado em 20-4-2011. http://www.teclim.ufba.br/site/material_online/monografias/mono_maria_a_de_a_macedo.pdf 31 que envolvam Hotel, Comunidade, Poder Público, fornecedores, funcionários e hóspedes; Estimular e viabilizar projetos que estimulem fornecedores para o desenvolvimento de embalagens e produtos compatíveis à gestão ambiental do Hotel, diminuindo a produção de resíduos sólidos; Conscientização dos Novos Hóspedes da Natureza e principalmente da população nativa permanente, para usufruir, dentre outros, da fauna e flora local de forma sustentável. 3.2 Experiências Reais O maior estado-membro brasileiro é o Amazonas. Nele está a famosa Floresta Amazônica, não somente importante pela sua biodiversidade, mas por sua fauna e flora, muito diversificadas. Também aí está situada a maior bacia hidrográfica do Planeta formada pelo Rio Negro e Rio Amazonas. Nas palavras de Ozório Fonseca, a evolução biogeoquímica da Terra fez com que a maior diversidade biológica do Planeta surgisse em nosso País. “A Natureza proporcionou essa situação privilegiada e cabe a nós a tarefa de gerenciar esse recurso natural, que só tem sentido se for usado para o bem da espécie humana”. 3 O Arquipélago de Anavilhanas, formado por cerca de 400 ilhas e localizado a cerca de 40 quilômetros de Manaus (AM), é um dos parques nacionais brasileiros. É Unidade de Proteção Ambiental e parte integrante da Reserva da Biosfera da Amazônia Central4. A lei que o alça à categoria de parque foi sancionada pelo então presidente da República no final de outubro de 2008. 5 Anavilhanas é o segundo maior arquipélago fluvial do mundo, situado no rio Negro, no município de Novo Airão, estado do Amazonas. As inúmeras ilhas que compõe sua formação alongada estão incólumes e com a cobertura da floresta tropical amazônica. Esse complexo insular forma uma rede de canais que representam uma experiência única quanto à ambientes fluviais no mundo e na Amazônia. Observa-se nesse trecho do Rio Negro um comprimento especial de 60 km, que abriga uma estação ecológica estadual de Anavilhanas6. O Hotel de Selva Ariaú, localizado na margem esquerda do Rio Ariaú, é um dos maiores e mais antigos empreendimento de ecoturismo da Amazônia . Ainda, nas palavras de Ozório Fonseca, o turismo é apontado como fundamental na perspectiva do desenvolvimento regional, pois além de propiciar entrada de recursos, aproxima povos e gera intercâmbios proveitosos do ponto de vista social e cultural.7 A altitude média do Município de Iranduba, próximo a Capital do Amazonas, nos termos da sondagem do CODEAMA (1992), é de aproximadamente 30 (trinta) metros acima do nível do mar. O terreno da superfície é de 30 metros acima do nível do mar. Compõe o terreno local de terraços, planícies e restingas de inundação ou várzeas, que estão sujeitas a alagação periódica durante as cheias.8 O Hotel, inaugurado em 1986, foi construído sobre palafitas nas copas das árvores. As habitações seguiram o modelo local de casas de selva, com escadas para nelas ingressar. Existem 8 torres minuciosamente escolhidas de forma a se ter privilegiada visão da Selva e sua flora e fauna. O empreendimento está compreendido na unidade de conservação estadual, a 6 km de distância do Parque Nacional de Anavilhanas. 4 – Normas e Atos Reguladores A gestão ambiental é proveniente da necessidade de se ordenar as atividades humanas, a fim de que haja o menor impacto possível no ambiente. Essa gestão iniciase com a escolha da melhor técnica a ser empregada, o cumprimento dos dispositivos legais vigentes e a alocação adequada de recursos financeiros e humanos. A forma empresarial de gestão é aquela destinada as organizações, instituições e empresas. Pode ser definida como sendo um conjunto de políticas e práticas administrativas e operacionais que levam em consideração a saúde, a segurança das pessoas, a proteção do meio ambiente por meio da eliminação ou minimização de impactos e danos ambientais decorrentes do planejamento, a implantação e operação, entre outros atos relacionados ao estabelecimento do projeto . Da mesma forma, entende IBAÑEZ, nos termos da jurisprudência constitucional espanhola que “a ordenação territorial deve fixar os destinos e usos do espaço físico ou em sua totalidade, assim como ordenar e distribuir valoradamente as ações públicas sobre o território e infra estruturas, reservas naturais, extensões ou áreas de influência dos núcleos de população, comunicações etc.” 9 Com o objetivo de recuperar os impactos ambientais decorrentes dos resíduos sólidos, o Hotel de Selva Ariaú elaborou um Plano de Recuperação de Área Degradada – PRAD, de forma a se estabelecer critérios técnicos capazes de mitigar danos naquela área. O PRAD levou em consideração as normas do Código Florestal, Lei 4771/65, FONSECA, Ozório José de Menezes. Amazonidades. Manaus: Gráfica e Ed. Silva, 2004, p. 22. Atualmente, de acordo com a visitação turística da região, dera ela ter caráter educativo, conforme determina o antigo Plano de Manejo da Unidade, que se encontra em processo de atualização. As áreas abertas aos visitantes são restritas. Vide informação completa disponível no site: http://www.icmbio.gov.br/o-que-fazemos/visitacao/ucs-abertas-a-visitacao/32-parques-nacionais/212-parque-nacionalanavilhanas. Consultado em 20-4-2011. 5 A Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável aprovou, o Projeto de Lei 6409/05, do Senado, e se transformou a Estação Ecológica de Anavilhanas, no Amazonas, em Parque Nacional de Anavilhanas. A estação ecológica é uma unidade de conservação da natureza cuja área é representativa de um ecossistema e é destinada à realização de pesquisas científicas básicas e aplicadas de Ecologia, à proteção do ambiente natural e ao desenvolvimento da educação conservacionista. 6 Decreto n.º 86.061 de 02.06.1981. 7 Op. Cit. Página 149. 8 http://www.amazonia.org.br/guia/detalhes. Extraído em 16.09.2010. 3 4 32 Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. a Lei 7754/89, que estabelece medidas de proteção de florestas nas nascentes dos rios, a Lei 6938/81, sobre o Sistema Nacional do Meio Ambiente, a Lei 9605/98, que trata dos crimes ambientais e a Lei 11284/2006, que dispõe sobre a gestão de florestas públicas para produção sustentável, entre outros diplomas normativos. Foram tomadas as seguintes medidas, nos termos do relatório técnico: DIAGNÓSTICO AMBIENTAL – Indicador da situação ambiental da área de influência direta e indireta, sobretudo em seus aspectos físicos (geologia, geomorfologia, pedologia e climatologia, biológicos (fauna e flora) e ações antrópicas. AVALIAÇÃO DE IMPACTOS AMBIENTAIS – Análise das externalidades negativas e das possibilidades de mitigação de impactos por meio da identificação, quantificação e qualificação. O diagnóstico de causas e efeitos realizados por meio de levantamento de técnicos especializados capazes de relacionar impactos resultantes das atividades propostas garantindo, desta maneira, a implantação do projeto que teve aprovação governamental. SOLUÇÕES AMBIENTAIS - Os impactos ambientais foram mitigados a partir da seguinte sequência de atos: limpeza e análise do solo, preparo, abertura de covas e revegetação por meio do plantio de espécies nativas. PECULIARIDADES DA MITIGAÇÃO DE IMPACTO NO SOLO – Coletaram-se amostras de solo com o objetivo de, por meio delas, expostas aos resíduos ali descartados, investigar a melhor forma de recuperação a ser implementada. Os instrumentos empregados no processo de licenciamento ambiental para avaliação dos impactos ambientais– o EIA – Estudo de Impacto Ambiental e o RIMA – Relatório de Impacto Ambiental, formas criadas pela Lei 6938/81 (art. 9º, III), são de relevante importância para a prevenção e precaução dos riscos ambientais associados ao turismo e à construção de unidades na selva. Além de avaliar os impactos presentes também observam aqueles que futuramente podem ocorrer e causar degradação ou dano ambiental. Todos esses instrumentos propõem medidas mitigadoras dos impactos previstos. O licenciamento ambiental, nas palavras de MILARÉ10, “constitui importante instrumento de gestão do ambiente, na medida em que, por meio dele, a Administração Pública busca exercer o necessário controle sobre as atividades humanas que interferem nas condições ambientais, de forma a compatibilizar o desenvolvimento econômico com a preservação do equilíbrio ecológico.” Aspecto que merece comentário são os itens relativos às questões ambientais que envolvem os meios de hospedagem em ambientes selvagens. A Ecoturismo Society dos Estados Unidos criou um chek list para melhor aproveitamento das instalações (2003). As propostas não substituem levantamentos técnicos especializados capazes de melhor avaliar os impactos causadores de degradação. Elas apenas sugerem medidas, diretrizes e padrões capazes de preservar as características ecológicas de cada local. 11 Todas as fontes foram consultadas a fim de subsidiar o processo de licenciamento do hotel e suas atividades turísticas. Desde a concepção. 6 – Planos de Negócios Todos os negócios a ser objeto de turismo ecológico devem contar com profundo estudo ambiental e possuir Estudo de Impacto Ambiental elaborado por especialistas capazes de gerar opiniões conclusivas acerca da possibilidade ou não da viabilidade do negócio. Tecem considerações capazes de indicar quais seriam as formas mitigadoras de impacto ambiental e possíveis medidas mitigadoras a serem aplicadas em vista da observância dos princípios da sustentabilidade e da prevenção. Também devem ser respeitados os itens listados pela International Ecoturism Society, que estabelecem critérios a serem seguidos por todos os empresários de ecoturismo e que também queiram desenvolver atividades na selva. O hotel em estudo também buscou formas de cuidar dos botos vermelhos, da população local e da preservação da área que ocupa. Nesse sentido, pode-se estar diante de situação em que haja um dilema entre prevenção e precaução, a qual se inclinaria pela inviabilização de atividade que pudesse redundar em degradação irreversível. Nas palavras de FIORILLO, seria despiciendo pretender desenvolver uma diferenciação entre tais princípios. Na verdade, ambos os princípios se revelam em preceito fundamental, pois os danos ambientais são, em sua maioria, irreversíveis e irreparáveis. Trata-se de um “megaprincípio ambiental”, adotado na Constituição de 1988. Não se quer com isso, sublinha o autor, inviabilizar a atividade econômica, mas somente excluir o poluidor que ainda não constatou a escassez dos recursos ambientais.12 A aprovação de emissão de licença ambiental do hotel em análise se revelou lastreada em extenso estudo local com possíveis impactos e necessárias medidas mitigadoras. Certamente, o impacto é inegável. A própria existência humana já gera essa conseqüência. Porém, as medidas adotadas vão ao encontro dos modernos tratamentos dados aos empreendimentos turísticos em áreas protegidas e sua fiscalização é permanente, conforme pronunciamento do proprietário do estabelecimento. IBAÑEZ, Santiago Ganzález-Varas. Urbanismo y ordenacion del território Navarra: Ed. Aranzadi.2004, página 27 MILARÉ, Edis. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco. São Paulo: Ed. RT, 2009, página 420. Disponível em: www.ecotourism.org, acessada em 20-04-2011. 12 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2010, páginas 112-117. 9 10 11 33 7 – Conclusões A Região Amazônica é rica em recursos naturais. Ainda mantém praticamente incólume sua estrutura, mesmo diante da devastação causada pelas reiteradas queimadas, extração clandestina de madeira e uso como pasto para criação de gado. A exploração de recursos naturais deve possuir licenciamento ambiental regulamentado pela Lei 6938/81, também objeto de diversas resoluções do CONAMA, órgão ambiental brasileiro pertencente ao SISNAMA – Sistema Nacional do Meio Ambiente. As licenças necessárias, cuja natureza jurídica é de autorização, foram devidamente obtidas e o empreendimento tem capacidade para se manter em funcionamento de maneira sustentável. Na verdade, o empreendimento deve enquadrar-se nos planos nacionais, regionais e locais de planejamento, inserindo-se de maneira adequada no planejamento ecológico econômico, no plano diretor local, entre outros destinados a garantir a sustentabilidade e a manutenção das espécies locais. O hotel Ariaú tem como objetivo propiciar a seus hospedes a possibilidade de um contato e integração direta com o ecossistema em que se insere. Seus apartamentos são basicamente construídos nas copas das árvores, bem acima do nível do Rio Negro, de forma sustentável; também propiciam estudos com terapias alternativas, assim como ocorre com os botos cor-de–rosa e mantém comunidades tradicionais com medicamentos e suprimentos, além de propiciar empregabilidade para a população local. A fiscalização pode gerar a cassação da licença ambiental, na hipótese do beneficiário não empregar os recursos indicados no respectivo EIA. Portanto, agentes ambientais estão a todo tempo observando possíveis degradações ambientais provenientes do empreendimento. Isso já obrigou o empresário a adquirir moderno sistema de filtragem e transformação de resíduos líquidos e sólidos. Isso também o obrigou a manter materiais determinados em embalagens biodegradáveis, além de outras obrigatoriedades impostas e necessárias a plena manutenção do ecossistema local. Os hotéis de selva na Amazônia estão crescendo em número e qualidade. A inspeção tem sido cada vez mais rígida, de forma a gerar maior segurança aos que lá estão e também assegurar o mínimo de impacto ambiental. Existem ainda alternativas capazes de auxiliar a população local (índios), sem contar com a geração de trabalho, hospital e transporte até a capital. As atividades ecoturísticas devem obedecer a um grande número de exigências estabelecidas por normas ambientais, a fim de evitar um impacto local desproporcional. Isso, inclusive, com a limitação do número de hospedes, restrições no emprego de animais para finalidades terapêuticas, indicação determinada do local indicado para passeios ecoturísticos, inclusive com especificação de caminhos determinados para viabilizar visitas locais, sem deterioração de áreas incólumes, tudo em prol da proteção do ambiente e da biodiversidade. Abstract: Sustainable development should be north of the whole enterprise that wish to implement and can bring some sort of impact on the environment. Constitutional and legal system (Law 6938/81), the federations may require of all potentially polluting activities its environmental license. This article aims to inform as Ariaú Hotel, located in the complex of islands Anavilhanas, in the district of Manaus, Amazonas, Rio Negro, succeeded, after several attempts to adapt to the specifications of the environmental agencies in terms of processing of solid and liquid waste. This research will be of type literature. Here we seek, through doctrinal understandings, a solution of the problem at hand in order to make intelligible the points discussed in the development of the study. It also will analyze the environmental impact study that gave rise to the license that allowed the completion of the work. The authors presented the study at the XIV Latin American Congress of Urban Planning, with support from FAAP. Key words: Sustainability – Jungle lodges – Amazônia Tourism Bibliografia IBAÑEZ, Santiago Ganzález-Varas. Urbanismo y ordenacion del território Navarra: Ed. Aranzadi.2004. MILARÉ, Edis. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco. São Paulo: Ed. RT, 2009. FONSECA, Ozório José de Menezes. Amazonidades. Manaus: Gráfica e Ed. Silva, 2004 Sites consultados http://www.aquathought.com . Extraído em 16.09.2010. http://www.dolphinassistedtherapy.com. Extraído em 16.09.2010. http://www.ariau.tur.br/ Extraído em 16.09.2010. http://www.amazonia.org.br/guia/detalhes. Extraído em 16.09.2010. 34 Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. A função do relatório no Julgamento Colegiado. Manifestação do princípio do contraditório FABIANO CARVALHO Doutor e mestre em Direito pela PUC/SP. Professor da Faculdade de Direito da Fundação Armando Alvares Penteado FAAP. Advogado. Resumo: O texto examina a função do relatório no julgamento colegiado e sua relação com o princípio do contraditório, concluindo que o desprezo por esse importante elemento da decisão colegiada constitui grave equívoco, por violar o princípio fundamental do contraditório, podendo repercutir no sucesso da interposição dos recursos de estrito direito (especial e extraordinário). Palavras-chaves: Relatório – Órgão Colegiado – Princípio do contraditório 1. Em regra,1 razões de política legislativa impõem que os recursos, incidentes e causas de competência originária dos tribunais sejam julgados por órgãos colegiados. Não por outro motivo, afirma-se que, em matéria de recursos, o princípio da colegialidade domina e rege o Direito Processual pátrio.2 O termo colegiado diz respeito a uma forma de atuação jurisdicional, representado pelo conjunto de pessoas com igual poder, que, reunidas em sessão de julgamento, compartilham os fatos do processo na tomada de uma decisão. Essa decisão aparece no processo como “expressão de uma vontade unitária”.3 Com efeito, as expressões “câmara” e “turma” designam os órgãos colegiados mas não são sinônimas desses. De acordo com a melhor doutrina, “o órgão colegiado é composto pelo número de juízes que a lei ou o regimento interno indicar. Nem sempre todos os juízes que compõem órgão colegiado julgam a causa. Turma julgadora é a fração do órgão colegiado composta pelos juízes que efetivamente julgarão a causa. Numa câmara composta por cinco juízes, por exemplo, a turma julgadora de apelação será composta por apenas três deles; em sua composição plena (cinco juízes), essa mesma câmara julgará, por exemplo ação rescisória, embargos infringentes etc.”4 Nesse sentido, a palavra turma tem o mesmo significado de câmara. Na generalidade dos casos, normalmente, Turma é a denominação empregada nos Tribunais Superiores e nos Tribunais Regionais Federais; câmara é utilizada nos Tribunais dos Estados. Há outras expressões que simbolizam os órgãos colegiados, como, v.g., plenário, órgão especial, seções, grupo de câmaras, câmaras reunidas etc. O órgão colegiado opõe-se ao órgão singular, também chamado de monocrático, por seu conjunto, isto é, pela reunião de manifestações singulares, que se unem ou se agregam para formar uma decisão unitária (acórdão). O pronunciamento do órgão colegiado, diferentemente do singular, forma-se progressivamente, de acordo com as manifestações de cada juiz que participa do julgamento. A formação do pronunciamento do órgão colegiado, marcado pela mesma natureza e objeto, é ato complexo, porque se forma pela co-participação de mais de um integrante do órgão, em momentos sucessivos. Isso não significa que o pronunciamento de cada membro do órgão não possa variar (v.g. não unanimidade no julgamento, fundamento do voto divergente). Barbosa Moreira ensina que “é evidente que, num determinado instante do procedimento de votação, os pronunciamentos de todos os votantes hão de ter idêntico objeto, sob pena de somarem-se quantidades heterogêneas, o que não permite chegar a nenhuma conclusão válida. Ou todos se estão manifestando acerca de preliminar, ou todos acerca do mérito. Não é concebível que, na mesma etapa, um (ou alguns) votem quanto à preliminar e outro (ou outros) quanto ao mérito.”5 Assim compreendido, o pronunciamento do órgão colegiado se completa com o término da manifestação de cada um dos seus integrantes no momento da sessão de julgamento. A exceção é o julgamento unipessoal, nas situações delineadas nos arts. 120, parágrafo único, 527, I, 531, 544, § 4º, 557, caput, e § 1º-A, todos do CPC. José Frederico Marques, Instituições de direito processual civil, vol. IV, p. 7. Neste sentido parece ser a posição de Athos Gusmão Carneiro, Recurso especial, agravos e agravo interno, p. 227/228. 3 Cf. Calamandrei, Instituiciones de derecho procesal civil, vol. 2, p. 29. Sobre a função do colegiado v., com proveito, G. Zagrebelsky, “Colegialidad”, in Principios e votos. El tribunal constitucional e la política, p. 62-70 4 Nelson Nery e Rosa Maria de Andrade Nery, Código de processo civil comentado, p. 927. 5 Direito aplicado II, p. 126. No mesmo sentido: “Afigura-se nulo o aresto em que um dos integrantes do colegiado vota em preliminar, sem que os outros o façam, e não vote sobre o mérito, ao contrário dos restantes desembargadores, em julgamento de apelação.” (TJRJ, 1º Gr. de Câms. Civs., Emb. Infr. 4.139/90, rel. Des. Humberto Manes, apud Alexandre de Paula, Código de processo civil anotado, vol. 2 p. 2323). 1 2 35 A decisão proferida pelo órgão colegiado recebe a denominação de acórdão6, cuja estrutura, na essência, não se difere da sentença. Todo acórdão, além da ementa7 – nota distintiva da decisão singular -, conterá de forma ordenada e lógica: relatório, fundamentação e dispositivo. Com o foco no presente trabalho, apesar de não receber objeto de maiores reflexões, o relatório é peça fundamental para o adequado julgamento do órgão colegiado. 2. De início, é preciso considerar que o relatório é parte integrante do acórdão, como é da sentença.8 Sob o prisma do valor, o relatório transmite a certeza e a segurança de que todas as alegações das partes e as provas produzidas no processo foram apreciadas pelo órgão julgador, caracterizando-se “condição primordial do prestigio e autoridade do órgão julgador, sinal patente do cumprimento de um dever precípuo.”9. No campo da ética “serve o relatório, ainda, para mostrar que o juiz leu o processo e fixou-lhe as circunstâncias capitais. Bem haver estudado a causa é uma das condições para bem julgar”.10 Do ponto de vista da publicidade, o relatório divulga, para qualquer um que o leia, o que foi debatido do processo. Na generalidade dos casos, o relatório é ato de gabinete e consequência do estudo do processo promovido pelo relator.11 Enquanto ato processual, o relatório é essencialmente escrito. Na sessão de julgamento, o relator dará oralidade ao relatório para expor os “fatos” que interessam à cognição do colegiado.12 É importante destacar que “o relator não fica adstrito, na exposição oral, à pura repetição do que consta do relatório escrito: pode acrescentar pormenores esclarecedores e deve, se for o caso, proceder a retificações ou suprir omissões relevantes”.13 Em virtude da dinâmica da sessão de julgamento do colegiado, em algumas hipóteses, o Código de Processo Civil14 e os regimentos internos dos tribunais15 determinam que o relator faça prévia distribuição do relatório. Nada impede que essa providência, independentemente de imposição legal ou regimental, possa ser tomada pelo relator, mormente nos casos de maior complexidade, porquanto impõe aos demais integrantes do colegiado o conhecimento antecipado dos relevantes “fatos” que serão necessários para a tomada da decisão. O conteúdo do relatório e sua exposição oral são de suma importância, visto que delimita objetivamente as questões jurídicas sobre as quais o órgão colegiado discutirá e decidirá. Formalmente, o relatório deverá equacionar cuidadosamente todos os “fatos” necessários à cognição do colegiado. Daí por que a melhor doutrina acentua que é necessário que a exposição do relator “contenha todos os dados relevantes, dispostos em ordem que lhes facilite a apreensão e a memorização, sem contudo perder-se em minúcias fatigantes que desviem a atenção do essencial. A exposição é puramente objetiva. Descreve o relator os fatos que deram origem ao pleito, como os tenham narrado as partes, e mais os que, verificados no curso do processo, se revistam de interesse para o julgamento”.16 O objeto da exposição resume-se nos fatos relevantes, tais como “afirmações relevantes das partes, no que tange às questões de fato ou de direito, mas incertas ou controversas”17, e provas produzidas no curso do processo. Além disso, o relatório “deve ser uma narrativa imparcial do que consta dos autos, sem que da mesma se deve ou se possa vislumbrar o voto do seu subscritor a respeito da controvérsia em qualquer de seus pontos. Serve, apenas, para orientar os demais juízes, evitando a leitura do processo por todos seus pares, que causaria ainda maior perda de tempo”.18 Desse modo, ao expor o relatório em sessão de julgamento, relator “não deve antecipar sua opinião, nem adotar tom de crítica ou aprovação a qualquer ato ou pronunciamento das partes ou, sendo o caso, de outro órgão judicial que antes haja funcionado no processo”19 Em particular, no julgamento colegiado dos recursos, a praxe forense revela que, em sua exposição oral, o relator habitualmente reporta-se ao relatório constante da decisão recorrida. Embora essa prática não seja aconselhável, principalmente nos casos de maior complexidade, se tal técnica for empregada, impõe-se ao relator o dever de reproduzir o relatório20 da decisão recorrida, com o acréscimo das razões do recurso. Não será possível adotar semelhante procedimento quando se tratar Equivocada a conceituação do art. 163 do CPC (“Recebe a denominação de acórdão o julgamento proferido pelos tribunais”), já que os tribunais também proferem decisões unipessoais (ex vi legis art. 521, I, 531, 541 c/c 544, 557, todos do CPC). Nesse sentido, v. nosso Poderes do relator nos recursos, p. 57. O equívoco foi corrigido pelo Anteprojeto do NCPC (art. 159. Recebe a denominação de acórdão o julgamento colegiado proferido pelos tribunais). 7 Art. 563 do CPC, art. 862 do NCPC. 8 Cf. Sergio Bermudes, Comentários ao código de processo civil, vol. VII, 2ª edição, Revista dos Tribunais, 1977, p. 364-365. 9 João Monteiro, Theoria do processo civil e commercial, 5ª edição, Typographia Academica, 1936, p. 571. 10 Mario Guimarães, O juiz e a função jurisdicional, Forense, 1958, p. 342. 11 Art. 549. Distribuídos, os autos subirão, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, à conclusão do relator, que, depois de estudá-los, os restituirá à secretaria com o seu “visto”. 12 Art. 554. Na sessão de julgamento, depois de feita a exposição da causa pelo relator (...). Negrão-Gouvea-Bondioli anotam importante precedente do STJ, segundo o qual “tratando-se de procedimento sumaríssimo [sumário], em que inexiste revisão, o relator da apelação não haverá de, necessariamente, lançar o relatório nos autos, ao pedir dia para julgamento. poderá fazê-lo oralmente, em sessão, sendo trazido depois para os outros, integrando o acórdão” (Resp 3725/RJ, rel. Min. Eduardo Ribeiro, DJ 17.9.1990). 13 Barbosa Moreira, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. V, 15ª ed., Forense, Rio de Janeiro, 2010, p. 666-667. No mesmo sentido: Pontes de Miranda, Comentários ao Código de Processo Civil, t. VIII, 2ª ed., rev. e atualização legislativa de Sergio Bermudes, Forense, Rio de Janeiro, 2000, p. 213. 14 Assim, por exemplo, nos casos de julgamento de multiplicidade de recursos especiais com fundamento em idêntica questão de direito (art. 543-C, §6º, do CPC). 15 Por exemplo, o RISTF, cujo art. 87 dispõe: Aos Ministros julgadores será distribuída cópia do relatório antecipadamente: RISTF: art. 250 c/c art. 273 (também na ACO). I – nas representações por inconstitucionalidade2 ou para interpretação5 de lei ou ato normativo federal ou estadual; atual dispositivo da CF/1988: art. 102, I, a, §§ 1º e 2º, c/c art. 103, incisos e § 1º a § 4º. Norma não prevista na CF/1988. Lei n. 9.868/1999: art. 9º, caput (distribuição de cópia do relatório). II – nos feitos em que haja Revisor; RISTF: parágrafo único do art. 243 c/c art. 23, III (AP) – art. 262 c/c art. 23, I (AR) – art. 268 c/c art. 23, II (RvC). III – nas causas avocadas; Norma não prevista na CF/1988. IV – nos demais feitos, a critério do Relator. RISTF: art. 21, X (quando pede dia), XIV (quando apresenta em mesa) e § 3º (no Pleno ou na Turma). 16 Barbosa Moreira, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. V, 15ª ed., Forense, Rio de Janeiro, 2010, p. 666-667. 17 Araken de Assis, Manual dos recursos, 2ª edição, Revista dos Tribunais, 2008, p. 287. 18 Alcides Mendonça Lima, Introdução aos recursos cíveis, 2ª edição, Revista dos Tribunais, 1976, p. 374-375 19 Barbosa Moreira, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. V, 15ª ed., Forense, Rio de Janeiro, 2010, p. 666-667. 20 Sergio S. Fadel assinala que, nesses casos, o relator deverá ler as considerações do relatório da decisão recorrida “por ocasião da sessão de julgamento, para conhecimento dos demais membros do tribunal” (O processo nos tribunais, Forense, 1981, p. 296). 6 36 Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. de processos e incidentes de competência originária dos tribunais, porquanto, supere-se o truísmo, o relatório será feito pela primeira vez, em estrita observância ao art. 458, II, do CPC. Outra prática que se sujeita aos riscos de um julgamento nulo, e tem sido absolutamente reiterada, ao menos em alguns julgamentos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, é a solicitação do relator para dispensá-lo da leitura do relatório em sessão de julgamento, para manifestar diretamente seu voto. Esse comportamento, ressalvados os casos de teses repetitivas, a princípio, desnatura a função do julgamento colegiado. O relatório omisso, obscuro ou contraditório invariavelmente comprometerá a decisão do colegiado. Para evitar um julgamento comprometido por um relatório viciado, essas falhas podem ser corrigidas antes da sessão julgamento, competindo ao revisor, nos feitos em que houver, sugerir ao relator o complemento ou a retificação do relatório. Essas solicitações podem ser feitas durante a sessão de julgamento por qualquer magistrado ou mesmo pelo advogado, que deverá usar da palavra pela ordem21 ou, ainda, pelo membro do Ministério Público. Via de regra, antes da sessão de julgamento, a parte poderá acessar o relatório e da sua leitura constatar equívocos ou omissões que podem conduzir o órgão colegiado a praticar graves injustiças. Essas inexatidões podem ser sanadas pela sagacidade do advogado mediante apresentação de memoriais e/ou durante a sustentação oral, atraindo a atenção dos demais julgadores. Posteriormente ao julgamento, a via adequada para suprir essas falhas no relatório será opor embargos de declaração. A esse propósito, é preciso discutir quais são as conseqüências jurídicas para as hipóteses de não haver relatório no acórdão ou, existindo relatório, esse for deficiente. Por ser elemento indeclinável, imperativo e integrativo do pronunciamento colegiado, que lhe imprime juridicidade, constituindo premissa para a fundamentação e dispositivo do acórdão, a falta de relatório enuncia nulidade absoluta, “ainda que não cominada expressamente pelo Código”.22-23 Exclusivamente sob a perspectiva da decisão unipessoal (sentença), a doutrina considera que o relatório defeituoso pode não gerar nulidade “desde que, pelo exame da fundamentação, seja possível constatar que o juiz examinou todos os fatos e os apreciou devidamente”.24 No entanto, esse entendimento não pode ser aplicado indistintamente para o julgamento colegiado. Isso porque, à exceção dos casos em que figura o revisor, os demais integrantes do colegiado não têm contato algum com o processo antes do julgamento, confiando unicamente na exposição dos fatos pelo relator. Sem a transmissão adequada dos fatos processuais, é forçoso concluir que comprometido estará o debate e a decisão do grupo. No contexto do princípio do contraditório, o relatório qualifica-se como elemento intrínseco ao acórdão, por constituir elemento desse ato, mas com feição extrínseca, porquanto os fatos que compõem o relatório são discutidos em sessão de julgamento, formando, progressivamente, o julgado. Ainda sob a ótica do princípio do contraditório, ao transmitir em sessão de julgamento todos os fatos relevantes do processo, o relator mostra-se como sujeito colaborador do processo e compromete-se a proporcionar verdadeiro debate entre os demais integrantes do órgão colegiado, tornando possível a formação qualitativa do acórdão, a ensejar maior confiança e segurança às partes.25 Assim, a exposição dos fatos que ocorreram no processo, de forma defeituosa, limita o contraditório no órgão colegiado, compromete o “modelo cooperativo” do processo civil26 e, em última análise, põe em risco o “processo justo”.27 Finalmente, é preciso notar que o relatório poderá ser aditado para constar a realização ou renovação do ato processual destinada a reparar nulidade sanável (art. 515, § 4º, do CPC) ou, ainda, para constar a diligência efetuada posteriormente ao início do julgamento, necessária à decisão colegiada (art. 560, ambos do CPC). 3. O vício no relatório poderá repercutir no sucesso da interposição dos recursos de estrito direito (especial e extraordinário). É bastante conhecida e firme a jurisprudência do STF e do STJ, segundo a qual, diante da exigência constitucional, para que ocorra o julgamento dos recursos extraordinário ou especial, “faz-se consideradas as premissas fáticas e jurídicas do acórdão impugnado”.28 No caso de recurso especial interposto com fundamento no art. 105, III, “c”, da CF, sob pena de não conhecimento, a divergência jurisprudencial há de ser comprovada, impondo-se esse ônus ao recorrente, que deverá demonstrar as circunstâncias que identificam ou assemelham os casos confrontados, com indicação da similitude fática e jurídica entre eles. Para que isso ocorra, é “indispensável a transcrição de trechos do relatório e do voto dos acórdãos recorrido e paradigma, realizandose o cotejo analítico entre ambos, com o intuito de bem caracterizar a interpretação legal divergente”.29 Nesse contexto, é preciso notar que as premissas fáticas e jurídicas somente constarão do acórdão se, em sessão de julgamento, forem relatados todos os Art. 7º, X, Lei n. 8.906/1994. Alcides Mendonça Lima, Introdução aos recursos cíveis, 2ª edição, Revista dos Tribunais, 1976, p. 374-375. Historicamente os tribunais sempre interpretaram dessa forma: nula é a decisão “que omite o relatório, ou o faz incompleto, pois sem esse requisito não se sabe o que decidiu, a final, o juiz, nem como ele chegou à conclusão do julgado, se a premissa não foi exposta” (Rev. Forense 246/394). 24 Grinover-Fernandes-Gomes Filho, As nulidades do processo penal, 6ª ed., Revista dos Tribunais, 1999, p. 208. 25 Antonio do Passo Cabral sustenta que o contraditório impõe deveres ao juiz – e no contexto do presente trabalho, ao relator. Nas palavras do professor da UERJ, o primeiro dever do magistrado é “instalar e promover verdadeiro contraditório judicial sobre as questões discutidas no processo, o que poderíamos denominar de dever de engajamento” (Nulidades no processo moderno, Forense, 2009, p. 234). 26 V. Fredie Didier Jr., Fundamentos do princípio da cooperação no direito processual civil português, Coimbra Editora, 2010, p. 46-50; Daniel F. Mitidiero, Colaboração no processo civil, Revista dos Tribunais, 2009, p. 134-140 27 Sobre interseção do contraditório com o processo justo, à luz dos direitos fundamentais, v. Marinoni-Mitidiero, Contraditório e motivação das decisões judiciais, in Direitos fundamentais no Supremo Tribunal Federal – balanço e crítica, Coord. Daniel Sarmento e Ingo W. Sarlet, Lumen Juris, 2011,p. 562-563. 28 STF, AgReg no RE 471170, rel. Min. Marco Aurélio, j. 7.4.2009; STJ, AgRg na MC 17535/RJ, rel. Min. Nancy Andrighi, DJ 17.12.2010. 29 STJ, REsp 448442/MS, rel. Min. Herman Benjamin, DJ 24.9.2010. 21 22 23 37 acontecimentos relevantes que ocorreram durante o curso do processo, pois, somente assim, o órgão colegiado julgador poderá discuti-los e qualificá-los juridicamente. No entanto, caso o relator não transmita adequadamente os “fatos” essenciais para o julgamento colegiado e não seja estimulado a complementar seu relatório, dificilmente a parte recorrente alcançará êxito com a interposição de recursos extraordinário e/ou especial contra acórdão constituído por relatório defeituoso, porquanto, esses recursos, certamente motivarão premissas fáticas que não estão na decisão do tribunal e muito provavelmente não serão conhecidos. 4. Conclusão por esse importante elemento da decisão colegiada constitui grave equívoco, por violar o princípio fundamental do contraditório. Abstract: The paper examines the function of the report at trial and his collegial relationship with the principle of contradiction, concluding that the neglect of this important element of collegial decision is a grave mistake, for violating the fundamental principle of the contradictory and may reflect the success of bringing of strict right resources (special and extraordinary). Keywords: Report - College Board - Contradictory principle. O exposto é suficiente para justificar a importância do relatório para os julgamentos colegiados. O desprezo Bibliografia ASSIS, Araken de. Manual dos recursos, 2ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 287. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Direito aplicado II: pareceres, 1ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2000. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao código de processo civil, vol. V, 15ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 666-667. BERMUDES, Sergio. Comentários ao código de processo civil, volume VII: arts. 496 a 565, 2ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977. CABRAL, Antonio do Passo. Nulidades no processo moderno. Rio de Janeiro: Forense, 2009. CALAMANDREI. Piero. Instituiciones de derecho procesal civil, vol. 2. Depalma, 1943. DIDIER JR., Fredie. Fundamentos do princípio da cooperação no direito processual civil português. Coimbra Editora: 2010, p. 46-50. FADEL, Sergio S. O processo nos tribunais, 1ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 296. FERNANDES, Antônio Scarance; GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades do processo penal, 6ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. FREDERICO MARQUES, José. Instituições de direito processual civil, 2ª edição, vol. IV. Rio de Janeiro: Forense, 1963. GOMES FILHO, Antônio Magalhães; GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance. As nulidades do processo penal, 6ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; FERNANDES, Antônio Scarance. As nulidades do processo penal, 6ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. GUIMARÃES, Mario. O juiz e a função jurisdicional, 1ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1958. MENDONÇA LIMA, Alcides. Introdução aos recursos cíveis, 2ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976, p. 374-375. MIRANDA, Pontes de. Comentários ao código de processo civil, t. VIII, 2ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 213. MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 134-140. ____ MARINONI, Luiz Guilherme. Contraditório e motivação das decisões judiciais, in Direitos fundamentais no Supremo Tribunal Federal – balanço e crítica, Coord. SARMENTO, Daniel. e W. SARLET. Ingo. Lumen Juris, 2011, p. 562-563. MONTEIRO, João. Teoria do processo civil e comercial, vol. 1, 5ª edição. São Paulo: Typographia Academica, 1936. NERY JR, Nelson. e ANDRADE NERY, Rosa Maria de. Código de processo civil comentado e legislação extravagante, 9ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. ZAGREBELSKY, Gustavo. “Colegialidad”, in Princípios e Votos, El tribunal constitucional e La política. Madri, Espanha: Trotta, 2008. 38 Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. Taxonomia da sanção civil: para uma caracterização do objeto da responsabilidade civil MAURÍCIO B. BUNAZAR Mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco-USP. Professor de Direito Civil. Advogado. Resumo: Para esclarecer qual é o objetivo da responsabilidade civil, o autor do presente trabalho jurídico analisa aspectos da responsabilidade jurídica, localiza a responsabilidade civil no sistema, elabora a taxonomia da sanção civil identificando as suas espécies “sentido amplo” e “sentido estrito” e conclui que só haverá responsabilidade civil em sentido estrito nas hipóteses em que ocorrer ato ilícito e conseqüência insuportável ou ato lícito e conseqüência insuportável, pois só estas possuem o constante necessário (ainda que nem sempre suficiente) para deflagração da estrutura de responsabilização civil senso estrito: o dano-injusto. Palavras chaves: Responsabilidade. Responsabilidade civil. Taxonomia. Sanção civil. Introdução Este trabalho almeja responder a uma pergunta: qual o objetivo da responsabilidade civil? A pergunta é singela e a resposta aparentemente simples: a indenização. No entanto, esta resposta não mais pode ser dada sem justificativa, pois vários dos partícipes que formam o complexo sistema jurídico, seja como órgãos de input ou output1, têm buscado ampliar aquele objetivo por meio da inclusão de uma função punitiva à responsabilidade civil. O problema é que tal ampliação é feita sem considerações sistemáticas e, com raríssimas exceções, quase que numa inocente busca por uma “justiça” demagógica. O que visamos aqui, então, é apenas reforçar aquela resposta simples e, para tanto, buscaremos, sem pretensão de esgotamento, inventariar, dentro do ambiente normativo do Código Civil de 2002, as várias espécies de sanção, com o que, cremos, aclararemos o real objeto da responsabilidade civil. 1. Responsabilidade jurídica A responsabilidade jurídica é o produto das normas jurídicas que tratam do dever imposto a alguém de responder (= arcar com as conseqüências normativamente impostas) pelos efeitos de atos próprios, atos de terceiro e fato de animais e coisas, normas estas que uma vez incidentes, conferem ao sujeito de direito o status de responsável, cuja antítese é o status de irresponsável. A responsabilização jurídica é a responsabilidade jurídica – potência – em movimento (ato), ou seja, é o resultado da deflagração do funcionamento da estrutura jurídica de imputação de conseqüências aos sujeitos. Sob esse ponto de vista e tendo sempre claro que a divisão em campos, áreas ou ramos do direito é puramente didática, a responsabilidade jurídica pode ser fundamento para responsabilização penal (= responsabilização jurídica com conseqüências pré-estabelecidas por normas qualificadas como de direito penal) e/ou administrativa (=responsabilização jurídica com conseqüências préestabelecidas por normas qualificadas como de direito administrativo) e/ou civil (responsabilização jurídica com conseqüências pré-estabelecidas por normas qualificadas como de direito civil). Cuidaremos, apenas, da responsabilidade e responsabilização jurídica civil. 2. Responsabilidade civil: uma abordagem em sentido em sentido amplo e em sentido estrito Se a responsabilidade jurídica é o produto das normas jurídicas que tratam do dever imposto a alguém de responder pelos efeitos de atos próprios, atos de terceiro e fato de animais e coisas, podemos dizer que a responsabilidade jurídica civil especializa-se em razão de tais normas pertencerem ao ordenamento jurídico civil2. Chamaremos, então, de responsabilidade civil em sentido amplo à responsabilidade jurídica que decorra de normas pertencentes ao ordenamento jurídico de direito civil. Sobre a complexidade do sistema jurídico e a interação entre seus elementos componentes, confira Antonio Junqueira de Azevedo, O direito como sistema complexo e de 2º ordem; sua autonomia. Ato nulo e ato ilícito. Diferença de espírito entre responsabilidade civil e penal. Necessidade de prejuízo para haver direito á indenização na responsabilidade civil. in. Pareceres de Direito Privado. São Paulo. Ed. Saraiva, 2004, p. 25 –37. 2 Reitere-se que essa divisão em ramos ou, aqui, ordenamentos é artificial, porém útil à exposição. 1 39 Dentro deste universo, procederemos à taxonomia da sanção no Código Civil, para, ao final, ligarmos a responsabilidade civil em sentido estrito à sua sanção própria, qual seja a consistente na imposição do dever de indenizar o dano injusto. 3. Taxonomia da sanção no Código Civil3 Buscaremos classificar, sob o critério exclusivo da forma de anatematização da situação jurídica insuportável, a sanção dentro do universo do Código Civil e, para tanto, valer-nos-emos da ideia geral de sanção e de exemplos de sanção retirados daquele universo. A sanção é classicamente entendida como a resposta que o ordenamento jurídico dá à sua violação4 Essa resposta impõe-se objetivamente, é dizer, independentemente de qualquer juízo de valor sobre a forma ou razão da violação do ordenamento jurídico5. Com efeito, o próprio sistema jurídico elenca quais as formas de sua violação e qual a resposta que dará em cada caso. O fato da violação em si é objetivo, porém a forma pela qual ocorreu pode ou não sê-lo Explicamos: o sistema jurídico pré-determina quais situações jurídicas não tolera e as sanciona a seu modo. Essas situações jurídicas intoleráveis podem consistir numa conduta (ação – ato ou atividade-, ou omissão) e/ou num resultado. O sistema jurídico, em cada caso, descreverá abstratamente a situação jurídica intolerável- é dizer, darlhe-á os contornos (ou, em linguagem ponteana, descreverá seu suporte fático) – e a forma de, uma vez verificada no mundo fenomênico, anatematizá-la. Disso resulta que o suporte fático cuja concreção no mundo fenomênico ensejará a sanção poderá ser composto segundo um dos seguintes modelos: (i) após a valoração negativa de uma conduta causadora de um resultado intolerável (dano injusto causado por conduta culposa ou dolosa); (ii) após a valoração negativa de um resultado com abstração da valoração da conduta que o ensejou (dano injusto por atividade lícita, por exemplo, dever de indenizar o terceiro que sofra dano injusto quando do exercício de conduta encoberta pela excludente da ilicitude do estado de necessidade); (iii) após apenas a valoração negativa da conduta com abstração de qualquer resultado (certos casos de abuso do direito, por exemplo, alguém constrói obra animado exclusivamente pelo fim impedir a incidência do sol sobre o prédio vizinho. É possível que seja condenado a desfazer a obra antes mesmo que haja um dia de sol, ou seja, antes que sua conduta produza o resultado). Destarte, vejamos quais as sanções impostas pelo Código Civil. Podemos arrolar, repita-se, sem pretensão exaustiva, as seguintes sanções no Código Civil: (i) Sanção consistente na invalidação de ato jurídico em sentido estrito ou negócio jurídico6. Exemplos: artigos 166 e 171. (ii) Sanção consistente na perda de uma posição jurídica ativa (sanção caducificante7). Exemplos: Parágrafo único do artigo 33 ( “se o ausente aparecer e ficar provado que a ausência foi voluntária e injustificada, perderá ele, em favor do sucessor, sua parte nos frutos e rendimentos”); artigo 150 (dolo bilateral. Perde-se tanto a posição jurídica ativa de pleitear a anulação quanto a posição jurídica ativa de exigir indenização); artigo 446 (“mas o adquirente deve denunciar o defeito ao alienante nos trinta dias seguintes ao seu descobrimento, sob pena de decadência”); artigo 583 (“Se, correndo risco o objeto do comodato juntamente com outros do comodatário, antepuser este a salvação dos seus abandonando o do comodante, responderá pelo dano ocorrido, ainda que se possa atribuir a caso fortuito, ou força maior”. No caso, haverá perda da posição jurídica ativa de alegar ocorrência de caso fortuito ou força maior); artigo 1.255 a contrario (se agiu de má-fé, perde a posição jurídica ativa de exigir a indenização); artigo 1.638 (perda do poder familiar); artigo 1.814 (indignidade); artigo 1.992 (sonegados) etc. (iii) Sanção consistente na imposição do dever de imputação patrimonial a título de pena (multa em sentido estrito). Exemplos: artigos 939 e 940; parágrafo único do artigo. 1.258 (“pagando em décuplo as perdas e danos, o construtor de má-fé)”; parágrafo 2º do artigo 1.336; artigo 1.337. (iv) Sanção consistente na imposição do dever de fazer ou não-fazer algo sem que necessariamente tenha ocorrido ou antes que ocorra dano injusto. Exemplos: artigo 12 (“exigir que cesse a ameaça”); artigo 20 (“....poderão ser proibidas, sem prejuízo da indenização, ....ou se se destinarem a fins comerciais”. A proibição não exige dano algum no caso de ser propaganda A base para essa classificação é a obra de Pontes de Miranda , mais especificamente o Tomo 2 , p. 193 e seguintes do seu Tratado de Direito Privado. No entanto, diferentemente do jurista, que parte do fato ilícito, partiremos da resposta do ordenamento jurídico à sua violação, pois não há correspondência necessária entre a ilicitude do fato e a sanção. 4 Não ignoramos a existência da chamada sanção premial, mas dela não cuidaremos, pois nosso objetivo, neste estudo, é investigar respostas a situações indesejáveis, e não técnicas de estímulo a certos comportamentos. Para conhecimento da ideia de sanção premial, remetemos à obra de Norberto Bobbio Da Estrutura à Função. São Paulo: Manole, 2006. 5 Aqui há que se ter cuidado para não confundir o conseqüente (imposição da sanção) com o antecedente (o que levou à imposição da sanção). 6 José de Oliveira Ascensão constrói interessante raciocínio para negar que a invalidação é sanção. Confira O Direito. Ed. Almedina: 2005 7 Pontes de Miranda fala em atos ilícitos caducificantes, ensinando que “os atos ilícitos caducificantes são aqueles atos culposos que, contrários a direito, têm como eficácia jurídica (= irradiação de conseqüências jurídicas) a caducidade. Os elementos contrariedade a direito e culpa é que os diferenciam das outras espécies de caducidade. Porque caducidade é eficácia (Tratado de Direito Privado, Tomo 2, p. 205. Sem negrito no original.). Veja que Pontes inclui no suporte fático do ato ilícito com eficácia caducificante a culpa, quando há casos em que há ilícito caducificante (= ato ilícito com sanção caducificante) em que o elemento culpa é irrelevante e, se há, sobeja. Pense-se, por exemplo, na figura prevista no artigo 446 do Código Civil. 3 40 Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. comercial); artigo 1.277; artigo 1.280 (tanto não há dano que o artigo fala em caução pelo dano iminente); artigo 1.302; artigo 1308 (“suscetíveis de produzir infiltrações ou interferências prejudiciais ao vizinho”. Note que não se exige a infiltração ou interferência prejudicial, basta a possibilidade de uma ou outra). (v) Sanção consistente na imposição do dever de fazer algo a título de indenização. Exemplos: artigos 186 e 187 combinados com o 927; e parágrafo único do 927; artigo 929; artigo 932. Todas as modalidades de sanções acima referidas encontram-se no campo daquilo que, para fins expositivos, resolvemos chamar de responsabilidade civil em sentido amplo. A responsabilidade civil em sentido estrito, no entanto, tem como única sanção a consistente no dever de indenizar (v), vejamo-la. 4. Responsabilidade civil em sentido estrito No campo da responsabilidade civil, a que chamamos responsabilidade civil em sentido estrito, existe uma norma implícita a partir da qual estrutura-se todo o esquema de imputação do dever de indenizar. Essa norma pode ser descrita de modo lógicoformal da seguinte forma: se for causado dano injusto, haverá obrigação de indenizar. A causação do dano injusto é o pressuposto; a obrigação de indenizar é a conseqüência. A partir dessa norma hipotética, podemos aclarar quais as questões próprias da responsabilidade civil em sentido estrito e, conseqüentemente, avaliar as possíveis soluções oferecidas pela doutrina e jurisprudência. Entendemos que, entre várias outras possíveis, são fundamentais à responsabilidade civil em sentido estrito as seguintes questões: (i) quais danos são injustos; (ii) quem causou o dano qualificado como injusto; (iii) quem deve indenizar; (iv) que é indenização ( =o que enche a fórmula dogmática indenização, ou o que é necessário pra que se considere indene a situação jurídica que apresentava danoprejuízo). Todos esses problemas podem e devem ser resolvidos pelo sistema jurídico, desde que encarado em uma visão material, e não puramente formal8. O problema (i) é puramente sistemático, pois é o sistema jurídico que, via de regra por exclusão, determinará quais são os danos justos. É dizer, em regra o sistema jurídico impõe a reparação dos danos-prejuízos sofridos, mas em algumas hipóteses determina que aquele que o sofreu o suporte. Pense-se, por exemplo, no dano-prejuízo estético sofrido por um criminoso ao ter sua prisão efetuada por um policial em estrito cumprimento do dever legal. O problema (ii) em regra é resolvido com dados do mundo fenomênico, o que não significa que a solução não é sistemática, afinal é o sistema jurídico que predeterminará quais dados do mundo fenomênico devem ser considerados pelo intérprete. Pensemos na seguinte hipótese: uma pessoa física conduz um cão bravio, que vem a morder um pedestre. No caso, a causação física do dano injusto foi levada a efeito por um não-sujeito de direto e a solução jurídica será sempre a atribuição da autoria da causação (em sentido jurídico) a um sujeito de direito, ou seja, com superação da realidade fenomênica. Ademais, esse sujeito de direito a quem foi imputada a causação jurídica do dano não necessariamente será quem arcará com a indenização, por exemplo, se o cão estivesse sendo conduzido por um menor sob autoridade e companhia dos pais O problema (iii) é também sistemático na medida em que o sistema jurídico é livre para eleger a quem imputará a responsabilidade pela reparação ou compensação dos danos-prejuízos injustos, não tendo de buscar identidade com a realidade fenomênica, embora possa fazê-lo e normalmente o faça. Pense-se, por exemplo, na pré-exclusão de alegação de fato exclusivo de terceiro positivada pelo artigo 734 do Código Civil. O problema (iv) é também sistemático, já que é o sistema jurídico que confere ao julgador as balizas (por exemplo, artigo 944, caput e parágrafo único do Código Civil) para determinar como o responsável anatematizará o dano-prejuízo injusto. Tais balizas podem ser mais precisas, como ocorre no dano patrimonial; ou mais tênues, no caso do dano moral. Porém, de forma alguma se pode confundir uma baliza tênue com ausência de baliza. O que há no caso do dano moral ou do dano ambiental extrapatrimonial, por exemplo, é uma maior discricionariedade do juiz na apreciação da existência e extensão do dano, o que, conseqüentemente, repercutirá na forma e/ou montante da indenização. Notemos que o juiz deve se ater ao dano-prejuízo, vale dizer, primeiro verificará sua ocorrência, depois sua extensão (artigo 944 do Código Civil) e com base exclusivamente em critérios fornecidos pelo sistema jurídico (por exemplo, parágrafo único do artigo 944 do Código Civil e parágrafo único do artigo 928 do Código Civil) fixará a forma e/ou montante da indenização. Com base no que expusemos, podemos descrever possíveis situações jurídicas com repercussão para o ordenamento jurídico civil, para, ao final, delimitarmos com precisão qual o campo de incidência da responsabilidade civil em sentido estrito. 8 Sobre uma visão de sistema jurídico material, remetemos ao nosso O duplo tratamento legal do bem de família e suas repercussões práticas, Direito de Família e Sucessões. Temas atuais, coordenação de Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, Flávio Tartuce e José Fernando Simão, São Paulo, Ed. Método, 2009. 41 Assim é possível que haja: I- Ato ilícito e conseqüência insuportável: Conduta culposa (ato ilícito) causadora de dano injusto (conseqüência insuportável); abuso do direito (ato insuportável) e dano injusto alheio (conseqüência insuportável). II- Ato lícito e conseqüência suportável: (i) sem prejuízo para ninguém: Transporte de pessoas (ato lícito) com extinção do contrato pelo cumprimento (conseqüência suportável); (ii) com dano prejuízo – justo – para alguém: reação em legítima defesa (ato lícito) causadora de dano estético ao agressor (conseqüência suportável). III- Ato lícito e conseqüência insuportável (danoprejuízo injusto): Ato em exercício de estado de necessidade (ato lícito) com dano-prejuízo a patrimônio do não-agressor (conseqüência insuportável). Atividade criadora de risco, porém estimulada pelo Estado inclusive com incentivos fiscais (ato lícito) com dano-prejuízo ambiental (conseqüência insuportável). IV- Ato ilícito sem conseqüência: Conduta culposa sem causação de qualquer danoprejuízo. Partindo dessas hipóteses, podemos afirmar que só haverá responsabilidade civil em sentido estrito nas hipóteses I e III, pois só estas possuem o constante necessário (ainda que nem sempre suficiente) para deflagração da estrutura de responsabilização civil senso estrito: o dano-injusto. Abstract: To clarify what is the purpose of civil liability, the author of this paper examines legal aspects of legal liability, civil liability is located in the system, draw up a taxonomy of the civil penalty identifying their species “broad sense” and “strict sense” and concludes that there will be liability only in the strict sense occur in cases in which tort and consequence unbearable or intolerable act lawfully and consequence, because only they have the constant need (though not always sufficient) condition for the outbreak of civil liability structure of strict sense : the damage-unfair. Key words: Responsibility. Liability. Taxonomy. Civil penalty. Bibliografia ASCENSÃO, José Oliveira. O Direito. Lisboa. Ed. Almedina: 2005. AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Pareceres de Direito Privado. São Paulo. Ed. Saraiva: 2004. BUNAZAR, Maurício. O duplo tratamento legal do bem de família e suas repercussões práticas, Direito de Família e Sucessões. Temas atuais, Coordenação de Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, Flávio Tartuce e José Fernando Simão, São Paulo. Ed. Método, 2009. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado - Tomo II, 3º ed. Rio de Janeiro. Ed. Borsoi, 1970. 42 Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. O Design e o Desenvolvimento de Produtos Sustentáveis CARLA LUPINACCI POÇAS Arquiteta graduada em São Paulo. Fez curso em Design, pelo Instituto Europeu de Design (IED) em Milão. Pós-graduação em Meio Ambiente Desenvolvimento Sustentável e Questões Globais pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) em São Paulo. Atua nas áreas de arquitetura promocional criando projetos para implantação no varejo, coordenação no setor de eventos institucionais e faz parte do grupo de trabalho multidisciplinar “Nossa Terra”, ministrando palestras em educação ambiental com foco em sustentabilidade nas empresas. Resumo: O trabalho compreende o desafio de discutir o desenvolvimento de produtos sustentáveis por meio do panorama da evolução do design e seu processo criativo. O design segue como uma possibilidade para a inovação, pois interfere na concepção do produto, em seu ciclo de vida e no modelo de produção industrial. Importante hoje é tentar promover mudança na cultura do consumo, estilo de vida e comportamento social com a inserção da variável ambiental. Neste contexto destaca-se a relevância da adoção de abordagens interdiciplinares do design, bem como nos serviços oferecidos a sociedade, criando produtos que se adéqüem ao conceito de sustentabilidade em sua visão mais ampla, considerando as dimensões culturais, econômicas, políticas, tecnológicas, ambientais e sociais. Palavras-chave: Consumo. Sustentabilidade. Design. Produtos sustentáveis. Desenvolvimento Introdução O objetivo deste artigo é tratar da concepção do desenvolvimento de produtos sustentáveis. O design vem desempenhando um papel fundamental no processo de criação dos produtos, por meio da determinação do material utilizado em sua confecção/fabricação e especificação da possibilidade de reaproveitamento, minimizando assim, o impacto ambiental. A relação do homem com o meio ambiente vem se transformando ao longo do tempo. A utilização dos recursos naturais na produção de novos produtos aumenta cada vez mais, principalmente a partir da revolução industrial e do crescimento populacional. Nos últimos 30 anos, a sociedade vem, aos poucos, se conscientizando dos limites do planeta e da necessidade de reconstrução de uma nova ordem econômica, pois o cenário de degradação no meio ambiente está cada vez mais preocupante. O sistema econômico baseado na demanda de bens de consumo, industrializados e constantemente renovados, atua de forma implícita e imediata na exploração dos recursos naturais. Hoje, podemos identificar os impactos das atividades humanas e suas conseqüências na economia. Mudar a forma de consumo faz parte do processo de pensar e trabalhar o ecodesign, ou seja, integrar o desenvolvimento sustentável na concepção dos bens, produtos e serviços. Essa mudança exige uma alteração de comportamento da sociedade de consumo, ou seja, para uma sociedade que dita o bom uso desses produtos. Os produtos devem ser concebidos de outra maneira, redefinindo-os e reavaliando a sua utilização e a sua necessidade, aliviando o peso da entrada desses produtos na economia do planeta. Diante dessa interferência que é universal, as propostas devem ser pensadas em escala humana planetária. Os bens produzidos pelas empresas são a principal razão para o desafio de mudança na cadeia produtiva por meio do aprimoramento tecnológico e da oferta de alternativas criativas. A produção de objetos de nosso dia a dia deve mudar, pois não se trata de produzir menos e sim produzir diferente, de outro modo: imaginar objetos eficientes e de uso simples, onde o seu final de vida esteja previsto e controlado. A sustentabilidade tem um conceito dinâmico, considerando a constante expansão da sociedade e o desenvolvimento. Este artigo abordará dois conceitos básicos e contextualização histórica do tema para melhor entendimento. Breve Histórico O século XX testemunhou o mais rápido avanço tecnológico de nossa história e também com isso as maiores degradações ao meio ambiente. 43 O aumento da produtividade após a revolução industrial, o acúmulo de capital e a utilização da máquina a vapor representaram um domínio humano sobre a natureza e seus recursos, permitindo empregar tecnologia para realizar as tarefas que antes só podiam ser realizadas manualmente, aumentando a quantidade de recursos utilizados. A revolução industrial e a geração de energia foram acontecimentos que mudaram o século XX, influenciaram no processo de desenvolvimento industrial e na forma com que a sociedade se relacionava com o comércio e com o consumo. Foi a partir de então que o consumo se intensificou exigindo dos fabricantes um maior uso de matéria-prima. Naquela época não se pensava em limites, limites para uso dos recursos naturais. A idéia era extrair cada vez mais para se desenvolver e isso significava a expansão das cidades, do consumo e da economia. Havia uma associação direta entre consumo e crescimento. A história mostra que a crescente escassez de recursos naturais é uma preocupação periódica, onde há relatos de previsões alarmantes que vêm sendo feitas há vários anos. No século XVIII, Thomaz R. Malthus previu que uma catástrofe de fome atingiria a sociedade devido à grande taxa de crescimento, que era superior à capacidade de produção da época. Outro exemplo, que um século depois W Stanley Jevons previu que as reservas de carvão na Inglaterra esgotariam em poucos anos. Foi então que em 1972 o Clube de Roma publicou o relatório “Limites do Crescimento”, onde fez uma previsão das principais reservas naturais. Essa problemática, por exemplo, foi lembrada na Convenção de Estocolmo, em 1972, e na Convenção do Rio de Janeiro, em 1992. O desequilíbrio na natureza começa a ser percebido e foi nesse momento que a sociedade e órgão públicos começaram a perceber que a degradação ambiental e o risco de colapso, realmente existiam. A sociedade avançava de forma desigual. A pobreza era um sinal da crise em um mundo que estava ficando cada vez mais globalizado. Nesse panorama da Conferência Rio 1992, as entidades expõem os relatos sobre o desenvolvimento e a sustentabilidade, sugerindo o que se deve amparar para as comunidades e pessoas. Foi ressaltadaa ainda a conservação da biodiversidade e dos processos naturais que regulam e mantém a vida na terra. A sociedade precisa encontrar o equilíbrio para manter a capacidade de produzir insumos, alimentos e energia. A idéia de um desenvolvimento sustentável faz com que se reflita sobre a forma de produção e de consumo, sobre como contribuem para mudar a vida cotidiana de seu usuário e as condições de vida no planeta, encontrando inspirações comuns nos valores do desenvolvimento sustentável. A relação entre o crescimento econômico e utilização dos recursos naturais ainda é um desafio, uma vez que os 44 recursos naturais são limitados. Por isso, a criação de novos produtos com design sustentável e inovação social será tratada aqui. O Design O conceito de design influencia a nossa sociedade e os novos conceitos que surgiram a partir da preocupação em contribuir e defender uma nova idéia. O design com viés sustentável sugere um formato para a criação dos produtos por meio da diminuição do impacto na produção, consumo e destinação final, ou seja, do seu ciclo de vida. O designer tem um papel importante na transformação da sociedade. É ele que pensa as novidades que afetarão o modo de vida dos consumidores, seja de produtos e aplicações ou serviços. Victor Papanek acreditava em um designer concentrado em três fatores: no homem, na ecologia e na ética, e ainda, acreditava que o que importa dessa profissão é a relação com as pessoas (KAZAZIAN, 2005, p.13-25). Dessa forma, a função do designer pode ser entendida como aquela que liga o que é possível tecnica e tecnologicamente ao que é ecologicamente necessário. Papanek aponta, inclusive, o crescimento da demanda por profissionais especialistas e intermediários culturais, capazes de produzir novos bens e fornecer as interpretações necessárias sobre seu uso (KAZAZIAN, 2005, P. 13-25). A atuação do designer como influenciador de uma nova forma de pensar e agir, uma nova atitude é importante. Ele é responsável pela concepção do projeto e responsável pela maneira e pela forma como que deverá ser usado. Júnior e Platcheck (2010) exemplificam isso no texto seguinte: A velocidade e a dinâmica imposta pelo mercado, que pode vir de clientes, concorrentes ou a indústria, exige uma flexibilidade muito grande e salienta a necessidade de dominar as várias formas de buscar e atingir o sucesso de um produto em um espaço de tempo o mais curto possível. A tecnologia minimizou o tempo de desenvolvimento de um produto, mas a pesquisa e a metodologia necessárias para conhecer o desejo do cliente e do empresariado ainda são compiladas, na sua grande parte, pela intuição do designer que usa dados levantados, tendências e procedimentos técnicos assegurando assim o caminho escolhido para o projeto e minimizando riscos dos investimentos aplicados. Os profissionais de Design assim como os empresários devem ser os principais condutores da mudança em curso e da quebra de paradigma de extração de recursos naturais para outro mais evoluído e sustentável. Essa mudança dos paradigmas deve ocorrer tanto nos processos de produção como nos produtos finais, não se restringindo apenas ao cumprimento Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. das leis, mas, aproveitando os benefícios e oportunidades que a proteção ambiental pode proporcionar através da colaboração de empresas e, conseqüentemente, do crescimento da produção de produtos ecologicamente eficientes através da aplicação do Ecodesign, o que certamente trará benefícios e oportunidades às empresas. É dentro desse contexto, que o Ecodesign deve ser assumido como um desafio que as empresas, mais cedo ou mais tarde, terão de assumir e, para o qual, deverão preparar-se desde logo. Empresas que buscam o design sustentável Os seres humanos e suas empresas têm algo em comum: produzem detritos. No entanto, na natureza, o que é detrito para uma espécie é alimento para outra. Assim a natureza está sempre reciclando. É o que deveriam buscar as empresas que almejam ser sustentáveis. Estas empresas deveriam estabelecer sistemas de produção cujo objetivo final é gerar zero resíduo (ALMEIDA, 2002). A geração zero de resíduos é “[...] uma aproximação da produção limpa pela redução máxima do conjunto de outputs e a venda das emissões restantes a outras empresas como matérias secundárias” (KAZAZIAN, 2005, p. 52). Dever-se-ia buscar um aproveitamento completo. Atitudes como essa podem garantir um tempo necessário, para que seja realizada a transição até uma sociedade sustentável. Os sistemas industriais complexos de hoje (aqueles que não se preocupam com a gestão ambiental), sob o aspecto da organização e da tecnologia, são a principal força de degradação ambiental. Por isso devem-se repensar as tecnologias e instituições sociais, para aproximar os projetos humanos e os sistemas ecologicamente sustentáveis. Uma comunidade sustentável é feita de tal maneira que sua economia, seus negócios, suas tecnologias e suas estruturas físicas não entrem em conflito com a capacidade de suporte dos recursos naturais. Diferentemente da forma atual de produção que é insustentável dos pontos de vista social e ecológico, e por isso inviável a longo prazo (CAPRA, 2002). Assim, na sociedade sustentável os fabricantes deverão oferecer produtos ecologicamente corretos, com alternativas socialmente aceitáveis e favoráveis ao ambiente, para que este não seja sobrecarregado (MANZINI; VEZZOLI, 2005). A sustentabilidade deverá ser uma nova forma de pensar mundial. Para a qual é necessária a mudança de atitude das nações, instituições, indivíduos e principalmente das empresas. Sendo assim, empresas também devem assumir seu novo papel, diferenciando-se do que vem sendo feito até hoje. Tornando-se parte da solução, promovendo a ética e agindo como atores sociais importantes na cadeia produtiva. 1 Do berço ao berço: um novo olhar para o design e para a forma de produção O arquiteto americano William McDounough e o químico alemão Dr. Michael Braungart foram os idealizadores do conceito Cradle to Cradle1(Conceito do berço ao berço). Em1995, começaram um movimento no cenário verde, mudando os paradigmas da época. Apresentaram projetos realmente inovadores. Eles desencadearam uma revolução no design e na forma de conceber o produto. Começaram a analisar a composição química dos objetos, evidenciando a possibilidade de reverter os resíduos gerados em alimento, estimulando um ciclo de vida circular e não linear, entendendo a terra como um sistema inteiro e o lixo como alimento (McDOUNOUGH e BRAUNGART, 2009). Eles sugerem um modelo para o conceito do berço ao berço (C2C). A idéia consiste na eliminação de resíduos por meio de projetos diferenciados, propondo o design sustentável baseados nas leis da natureza, podendo transformar a economia de consumo em uma ação regenerativa. A proposta C2C sugere criar, redesenhar os produtos e ingredientes para se tornarem nutrientes, permitindo dessa forma, que produtos antigos se tornem matéria-prima para novos produtos e serviços (McDOUNOUGH e BRAUNGART, 2009, p. 3-16). Segundo McDounough, o planejamento do berço ao berço (C2C) oferece o mesmo fluxo cíclico da natureza, por meio de ciclos regenerativos, proporcionando projetos e produtos totalmente positivos ao meio ambiente. Dessa forma, o produto, em vez de poluir, pode se tornar agente purificador do ar, da terra e da água, utilizando materiais seguros e sadios, reabastecendo o meio ambiente com essa matéria-prima sendo eternamente reaproveitada. Esse novo conceito vai além da modernização ou diminuição dos efeitos industriais. Reflete sobre a forma de pensar o produto em diferentes abordagens fugindo das convencionais. O planejamento do berço ao berço (C2C) poderá ser uma estratégia útil para essa transição, fazendo uso de alguns de seus conceitos que defendem o uso da energia eficiente para a fabricação dos produtos, pensando na reciclagem dos materiais e na diminuição do consumo, tendendo a reduzir os impactos que hoje são gerados pela sociedade. Não impede, no entanto, de interferir na natureza, mas propõe uma interferência consciente. Por exemplo: a reciclagem de carpetes, pode reduzir o consumo, porém, caso o forro contenha PVC em sua composição, o que na maioria das vezes acontece, o produto irá para o aterro e poderá se transformar em um resíduo perigoso ao ecossistema e também a nossa saúde. Os critérios do planejamento do berço ao berço (C2C) estimulam uma economia circular, na qual o setor industrial produz os materiais considerando sua composição as questões químicas, a energia limpa e a geração de Disponível em http://www.mbdc.com/detail.aspx?linkid=1&sublink=6. Acesso em 14 nov 2010. 45 resíduos, itens estratégicos para a proposta do sistema de ciclo fechado do berço ao berço (McDOUNOUGH e BRAUNGART, 2009). A estrutura C2C vem evoluindo na última década. Da teoria para a prática, novos projetos têm sido implantados por meio da adoção do conceito do berço ao berço. No setor industrial, já esta se adotando uma nova forma de conceber os produtos, considerando a matériaprima como nutriente, da mesma forma como ocorre na natureza. O resíduo de um organismo circula pelo ecossistema, tornando-se alimento para outros seres vivos. Nesse movimento cíclico da natureza não há desperdícios ou resíduos (MBDC, 2010). Alguns nutrientes biológicos e técnicos já estão sendo comercializados. Por exemplo, o tecido da empresa Climatex Lifecycle, que é uma mistura de lã livre de resíduos e pesticidas e rami cultivado organicamente, tingido e processado inteiramente sem toxinas. Todo o seu processo de fabricação e insumos foi desenvolvido em função da segurança humana e ecológica, respeitando o metabolismo biológico. Como resultado, temos todos os retalhos do tecido sendo transformado em feltro e utilizado por agricultores como matéria vegetal para o cultivo de flores e frutas retornando, dessa forma, os nutrientes ao solo (McDOUNOUGH e BRAUNGART, 2009, p. 101114). O novo conceito de produto e de serviços que podem ser oferecido pelas empresas à sociedade pode mudar totalmente o estilo de consumo, na medida em que os materiais utilizados retornem ao meio ambiente como nutrientes. Tornam-se reutilizáveis por meio de um sistema com a qualidade ainda maior e sem toxinas. A reciclagem será ascendente, ou seja, teremos produtos melhores e um sistema de produção mais inteligente e saudável gerando segurança (McDOUNOUGH e BRAUNGART, 2009, p. 101-114). Os resíduos gerados podem se tornar alimento para o solo e animais, eles retornam para a natureza de uma forma diferente, mais respeitando o modelo circular da natureza, onde não ha desperdícios (McDOUNOUGH e BRAUNGART, 2009, p. 101-114). Pensando dessa forma o consumo de produtos não tóxicos e que sirva de nutrientes, o ato de consumir conscientemente fará parte do ciclo de vida do produto e também da economia. O conceito C2C vai além dos conceitos anteriormente estudados, pois seu objetivo não é reduzir os impactos negativos (ecoeficiencia)2, e sim aumentar seus impactos positivos (ecoeficacia)3. Por isso, é necessário conhecer os processos produtivos que são seguros ao metabolismo biológico e refletir sobre esse processo no metabolismo técnico industrial. Para isso, é necessário criar o produto considerando seus componentes químicos e projetá-lo pensando na recuperação e reaproveitamento contínuos integrando os produtos consumidos ao meio ambiente e com responsabilidade social (MBDC, 2010). C2C defende alguns princípios referentes à energia, água, e responsabilidade social, são eles: - Eliminar o conceito de resíduo. “Lixo é alimento”4: Produtos com o ciclo de vida circular e seguros para a saúde humana e ao ambiente, podendo ser reutilizados perpetuamente através de técnicas e metabolismo biológico. Criar e participar de um sistema de coleta par recuperar o valor desses materiais após o seu uso. - Alimentação com energia renovável. “Usar receita solar”: maximizar a utilização de energia solar. - Sistema naturais de respeito. “Celebrar a diversidade”: gerenciar o uso da água para maximizar a sua qualidade promovendo ecossistemas saudáveis respeitando os impactos locais. A aplicação do modelo C2C elimina o conceito de resíduo e sugere que os resíduos sejam alimentos/ nutrientes, desde que em sua composição não contenham substancias tóxicas à saúde ou à natureza. Considera a saúde ambiental e humana; as características dos materiais ao longo de seu ciclo de vida; a reciclagem dos produtos/ biodegrabilidade; a eficácia da recuperação e reciclagem dos produtos; o uso de energias renováveis, a gestão da água e a responsabilidade social (McDOUNOUGH e BRAUNGART, 2009, p. 101-114). Finalizadas as etapas de avaliação do material, de desenvolvimento do produto, a próxima etapa é efetuar a certificação dos produtos para ser comercializado de forma controlada. Os conceitos de desenvolvimento e crescimento econômico estavam sendo questionados e as empresas começaram a entender a necessidade de rever os seus valores e a sua missão na sociedade. Foi neste contexto que nasceram alguns conceitos que englobavam as empresas, as pessoas, a natureza e os lucros. O aumento da população mundial traz o aumento da necessidade de consumo. Os conceitos propostos firmam-se na atitude emergencial de diminuir o consumo, usar novamente e reciclar. A partir daí o papel do designer deixava de ser estético e técnico para ser social. A transformação deve dar-se na concepção do produto. Ele tem que “nascer” de forma que não agrida o meio ambiente e a saúde das pessoas. Deve ser reaproveitado em todo o seu ciclo de vida, e não deve haver desperdício ou resíduos. Nasce, então, uma nova vertente: o conceito do berço ao berço, que propõe um modelo cíclico de produção e consumo. Ecoeficácia - A estratégia de “sustentabilidade” de minimizar danos aos sistemas naturais, reduzindo a quantidade de resíduos e poluição atividades humanas geram [Fonte: Disponível em http://www.mbdc.com/detail.aspx?linkid=1&sublink=26. Acesso em 14 nov 2010]. 3 Ecoeficiência - A estratégia de MBDC para criar uma indústria humana que seja seguro, rentável e de regeneração, produção, ambiental e social de valor econômico [Fonte: Disponível em http://www.mbdc.com/detail.aspx?linkid=1&sublink=26. Acesso em 14 nov 2010]. 4 Lixo é alimento - Um princípio dos sistemas naturais e MBDC que elimina o conceito de resíduo. Nesta estratégia de design, todos os materiais são vistos como valiosos, continuamente circulando em circuito fechado de íon produto, utilização e reciclagem [Fonte: Disponível em http://www.mbdc.com/detail.aspx?linkid=1&sublink=26. Acesso em 14 nov 2010]. 2 46 Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. Conclusão O design tem a missão de aperfeiçoar os objetos e sua utilidade. Diz Elisabeth Laville que o design é um ato político de repensar os nossos modos de produção e consumo. A criatividade e as habilidades do designer servem como ferramenta para modificar o processo de inovação social e tecnológica na forma de produzir e entender o produto, promovendo soluções na concepção e em seu ciclo de vida. Devemos também adotar a ética de vida sustentável. As pessoas devem reavaliar seus valores e alterar seu comportamento, promovendo valores que apóiem esta ética, educando a sociedade de modo que as atitudes necessárias sejam vastamente compreendidas e conscientemente disseminadas para as gerações futuras. Deste modo a evolução do design e sua evolução estão direcionadas para um futuro sustentável, onde os produtos são criados fazendo parte do todo. A matéria prima é reintegrada à natureza, promovendo o equilíbrio do nosso planeta. Por fim, o desenvolvimento sustentável não será atingido se não ocorrer uma mudança radical nos processos criativos e produtivos. Assim como nos aspectos quantitativos e qualitativos do consumo. A junção das verdadeiras necessidades do homem com as necessidades do planeta efetiva-se na essência do processo de desenvolvimento sustentável. Abstract: The research involves the challenge to discuss the development of sustainable products through the analyzes of the evolution of design and his creative process. The design follows as a possibility for innovation because it interferes in the product design, in its life cycle and in industrial production model. Important today is trying to promote change in the culture of consumption, lifestyle and social behavior with the insertion of the enironmental variable. In this context stresses the importance of the adoption of interdisciplinary work of design approaches, as well as the services offered the society, creating products that suit the concept of sustainability into their broader view, considering the cultural dimensions, economic, political, technological, environmental and social. Key words: Consumer. Sustainability in business. Cycles of design. Sustainable products. Cradle to cradle concept. Bibliografia A CARTA DA TERRA. Valores e princípios para um futuro sustentável. Disponível em: <http://www.cartadaterra. com.br/pdf/CartadaTerra.pdf>. Acesso em 18.set 2010. BRUNDTLAND, Gro Harley (Org.). Nosso futuro comum. São Paulo: FGV, 1987. CAPRA, Fritjof. As conexões ocultas: ciência para uma vida sustentável. São Paulo: Cultrix, 2002. COMISSÃO BRUNDTLAND. Comissão Mundial Sobre Meio Ambiente e Desenvolvmento. Nosso futuro comum. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Getúlio Vargas, 1991. DO BERÇO AO BERÇO [vídeo]. Disponível em <http://tvescola.mec.gov.br/index.php?option=com_ zoo&view=item&item_id=1169/>. Acesso em 12 nov 2010. FURTADO, Celso. Introdução ao desenvolvimento. Enfoque histórico-estrutural. Rio de Janeiro: Paz e terra, 2000. FURTADO, Celso. Política: o crescimento econômico. Revista de Economia. 2004. Vol.14 e 22. KAZAZIAN, Thierry. Haverá a idade das coisas leves: design e desenvolvimento sustentável. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2009. LAVILLE, Elisabeth. A empresa verde (tradução Denise Macedo). São Paulo: ÕTE, 2009. MANZINI, Ézio e VEZZOLI, Carlo. O desenvolvimento de produtos sustentáveis. Os requisitos ambientais dos produtos industriais. São Paulo: EDUSP, 2009. MARGOLIN, Victor; MARGOLIN, Sylvia. Um modelo social de design: questões de prática e de pesquisa. Revista Design em Foco. Salvador, v. 1, jul-dez, 2004. MBDC. Cradle to Cradle Implementation. Disponível em <http://www.mbdc.com/detail.aspx?linkid=1&sublink=7>. Acesso em 14 nov 2010. McDOUNOUGH, William e BRAUNGART,Michael. Cradle to cradle: remaking the way we make things. London: Vintage Books, 2009. MERICO, Luiz Fernando Krieger. Economia e sustentabilidade. São Paulo: Loyola, 2009. MILARÉ, Édis. Direito do meio ambiente: a gestão ambiental em foco. SãoPaulo: Editora revista dos tribunais, 2009 SACHS, Ignacy. Estratégias de transição para o século XXI. Para pensar o desenvolvimento sustentável. São Paulo: Studio Nobel, 1993. SACHS,Ignacy. Caminhos para o desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro: Garamound, 2009. VEIGA, Jose Eli da. Desenvolvimento sustentável, o desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Garamound 2005. 47 A solidariedade na responsabilização por danos ambientais DANIELA FONZAR POLONI Graduada em Direito pela Universidade Mackenzie. Pós-graduada em Direito Contratual pela PUC/SP e em Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável pela FAAP/SP. Atua como advogada na área de meio ambiente empresarial. Resumo. Este artigo aborda o instituto da solidariedade na reparação por danos causados ao meio ambiente, partindo do conceito de poluidor trazido pela Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, passando pela responsabilidade ambiental civil, onde se investigam as teorias acerca do risco e do nexo de causalidade, até chegar ao instituto da solidariedade. Palavras-Chaves: Responsabilidade ambiental, poluidor indireto, responsabilidade objetiva, teoria do risco criado, teoria da causalidade adequada, solidariedade. 1. A Responsabilidade Ambiental Em se tratando de responsabilidade ambiental, é imprescindível dizer que uma conduta lesiva ao meio ambiente pode ter desdobramento em três esferas, concomitantemente: na administrativa, na civil e na penal, conforme preconiza o art. 225, §3º da Constituição Federal. Esta tríplice responsabilização não implica, no entanto, em bis in idem1: O art. 225, § 3º da Constituição Federal, ao preceituar que as condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, sujeitarão seus infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a infrações penais e administrativas, independente da obrigação de reparar os danos causados, consagrou a regra da cumulatividade das sanções, até mesmo porque, como visto, as sanções penais, civis e administrativas, além de protegerem objetos distintos, estão sujeitas a regimes jurídicos diversos.2 (grifo do autor) Apesar de ser conhecida como a “Lei dos Crimes Ambientais”, a Lei 9.605/98 tratou de cuidar também das infrações administrativas, as quais são apuradas em sede de procedimento administrativo, portanto, extrajudicial, conduzidos pelos próprios órgãos integrantes do SISNAMA (Sistema Nacional do Meio Ambiente), designados no art. 6º da Lei 6.938/81. Tais órgãos são dotados de poder de polícia3, que lhes outorga legitimidade e competência para fiscalização e aplicação de infrações administrativas em caso de descumprimento da legislação ambiental. A responsabilidade administrativa atribuída àqueles que cometem uma infração ao meio ambiente pode ser tratada pelos entes da federação: União, Estados, Distrito Federal e Municípios, seguindo a regra da competência concorrente definida pela Constituição Federal, em seu art. 24, inciso VI, para fins de legislação acerca da matéria ambiental. Os processos administrativos podem correr paralelamente, mas o pagamento da multa nas unidades federadas implica o não-pagamento da multa federal. Esse artigo pode conduzir ao favorecimento do réu – pessoa física ou jurídica -, pois as multas pagas nos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios poderão ser menores do que a cominada pela União.4 A despeito de a legislação pátria ter adotado a responsabilidade objetiva para apurar as infrações administrativas contra o meio ambiente, no momento da análise da penalidade aplicável ela considera elementos da responsabilidade subjetiva5. Neste sentido dispõe o art. 3º, §2º do Decreto 6.514/08 que seja considerada a negligência, que é um dos elementos da culpa, ou dolo para fins de aplicação da pena de multa simples nos casos em que o autuado, uma vez advertido, deixe de cumprir com as exigências do órgão fiscalizador ou quando opuser embaraços à fiscalização. O art. 14, §1º da Lei 6.938/81 estabeleceu a responsabilidade civil em matéria ambiental ao dispor que incide ao agente poluidor a responsabilização administrativa O termo em latim bis in idem significa que ninguém poderá ser julgado ou punido mais de uma vez pelo mesmo fato. Ele tem aplicação nas diversas esferas da responsabilização, a saber, civil, administrativa (ambiental, tributária, etc.) e criminal. Na esfera ambiental, ele é tratado no art. 76 da Lei 6.938/81, que assim dispõe: “Art. 76 – O pagamento de multa imposta pelos Estados, Municípios, Distrito Federal ou Territórios substitui a multa federal na mesma hipótese de incidência.” 2 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 57. 3 O Código Tributário Nacional define em seu art. 78: “Considera-se poder de polícia a atividades da Administração Pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão e autorização do Poder Público, à tranqüilidade publica ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.” 4 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 18 ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 332. 5 “Na responsabilidade objetiva é desnecessária a demonstração da conduta do agente (dolo ou culpa). Todavia os seguintes requisitos são indispensáveis na verificação de aludida responsabilidade: 1) o ato; 2) o dano; 3) o nexo de causalidade entre o ato e o dano.” (FIORILLO, op. cit., p. 62) 1 48 Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. e penal, sem prejuízo da reparação dos danos causados. Ocorre que, diferentemente das responsabilidades administrativa e penal, as quais se apegam na análise da tipificação da conduta do poluidor, para a responsabilidade civil é imprescindível que esta conduta tenha gerado um dano ambiental. Embora ainda seja motivo de divergência entre a doutrina, pode-se concluir que o Direito Brasileiro adotou a teoria da responsabilidade objetiva no que tange à reparação dos danos ambientais. Não entra, portanto, na análise do elemento subjetivo da conduta (dolo ou culpa), mas sim na existência de uma conduta lesiva, um dano ambiental e um nexo de causalidade entre um e outro. O sistema de responsabilidade civil trazido pelo Código Civil de 2002 ajudou a consolidar a teoria da responsabilidade objetiva em matéria ambiental, abandonando a teoria da responsabilidade subjetiva, largamente difundida no século XVIII entre os países civilistas que tiveram por base o Código Napoleônico6. Neste sentido, é clara a regra do art. 927 e seu parágrafo único, que o causador do dano é obrigado a repará-lo independentemente de culpa. Dentre as grandes dificuldades encontradas no que diz respeito à apuração da responsabilidade civil por danos ambientais, as principais esbarram na comprovação do dano e delimitação da sua extensão (especialmente quando se trata de dano moral ambiental7). Como definir quem é o poluidor e delimitar sua responsabilidade, por exemplo, em uma situação onde diversas indústrias dispuseram, por anos, resíduos das mais variadas naturezas em um mesmo aterro clandestino? O paradigma tradicional da responsabilidade civil pressupõe a possibilidade do autor definir de maneira clara e precisa, quase matemática, a estrutura quadrangular dano-nexo causal-causador-vítima.8 2. Conceituando o Poluidor A Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (6.938/81) assim conceitua o poluidor: Art. 3º – Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por: IV – poluidor, a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental (grifo nosso) Ao classificar como poluidor aquele que direta ou indiretamente contribuiu para a atividade causadora do dano ambiental, o legislador lançou mão de um conceito indeterminado, que, assim como as cláusulas gerais ou normas abertas, dependem de interpretação doutrinária, diálogo das fontes, análise jurisprudencial, enfim, de um exercício profundo de hermenêutica jurídica para a atuação no caso a caso.9 Em que pese o conceito de poluidor ser aberto, o que permite uma gama de interpretações, deve o Operador do Direito agir com cautela, evitando colocar “na mesma cesta” todos os sujeitos que, ainda que remotamente, tenham vínculo ao evento danoso, para que não que se banalize o instituto, de forma a enveredar para a aplicação desmedida da deep pocket doctrine (doutrina do bolso mais fundo): Deep Pocket doctrine é um jargão forense que busca dar solução para aos casos nos quais existem muitas responsabilidades solidárias e dificilmente se pode chegar à definição sobre “quão responsável é cada responsável”. Os tribunais, com vistas a não deixar que a vítima permaneça sem os devidos ressarcimentos, escolhem aquele que é o mais saudável financeiramente e transferem para ele toda a responsabilidade econômica decorrente da indenização.10 A doutrina estrangeira utiliza o termo non-polluter para se referir aos sujeitos que tem contra si atribuída a responsabilidade civil, porém o dano ambiental não tem correlação direta com as atividades por eles desenvolvidas. Neste sentido, os casos onde houve reconhecimento da responsabilidade ambiental do non-polluter são tidos como exceção ao princípio do poluidor-pagador. Ao tratar do assunto, o advogado e professor holandês Lucas Bergkamp cita como exemplo de nonpolluters os proprietários, arrendantes, financiadores, industrializadores, geradores de resíduos, etc. e conclui o texto dizendo que é injusta a responsabilização ambiental “Tradicionalmente, como já foi visto acima, o fundamento da responsabilidade é a culpa. O Código Napoleão, que é considerado como o grande monumento da ordem jurídica liberal, consagra amplamente a culpa como o elemento central de toda responsabilidade. É o Code Civil o reconhecimento e o coroamento de uma nova racionalidade que se afirmou, tendo como seu epicentro o indivíduo e a sua vontade que, desde então, ocupam o papel central na cena jurídica. (...) No Direito brasileiro, a responsabilidade é um antigo instituo jurídico. O Código Civil brasileiro sofreu grande influencia da doutrina contida no Código Napoleão, fundando a responsabilidade na idéia de culpa e em todos os conceitos ideológicos subjacentes à referida subjetivação. A matéria, no Código está tratada ao longo de dois artigos; no artigo 43, está regulada a responsabilidade das pessoas jurídicas de Direito público: “Art. 43. As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo.” ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 9 ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2006. p. 203-204. 7 Poluição Ambiental. Ação Civil Pública formulada pelo Município do Rio de Janeiro. Poluição consistente em supressão da vegetação do imóvel sem a devida autorização municipal. Cortes de árvores e inicio de construção não licenciada, ensejando multas e interdição do local. Dano à coletividade com a destruição do ecossistema, trazendo conseqüências nocivas ao meio ambiente, com infringência, às leis ambientais, Lei Federal 4.771/65, Decreto Federal 750/93, artigo 2º, Decreto Federal 99.274/90, artigo 34 e inciso XI, e a Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro, artigo 477. Condenação a reparação de danos materiais consistentes no plantio de 2.800 árvores, e ao desfazimento das obras. Reforma da sentença para inclusão do dano moral perpetrado a coletividade. Quantificação do dano moral ambiental razoável e proporcional ao prejuízo coletivo. A impossibilidade de reposição do ambiente ao estado anterior justificam a condenação em dano moral pela degradação ambiental prejudicial a coletividade. Provimento do recurso. (Apelação Cível n. 2001.001.14586 –TJRJ – 2ª. T – Relatora Desembargadora Maria Raimunda T. de Azevedo – DJ 07/08/2002) 8 BENJAMIN, Antonio Herman V. Responsabilidade Civil pelo Dano Ambiental. Revista de Direito Ambiental. São Paulo: ano 1998, n. 9. p. 12. 9 A cláusula geral, portanto, exige do juiz uma atuação especial, e através dela é que se atribui uma mobilidade ao sistema, mobilidade que será externa, na medida em que se utiliza de conceitos além do sistema, e interna, quando desloca regramentos criados especificamente para um caso e os traslada para outras situações. AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. O Poder Judiciário e a concretização das cláusulas gerais. Revista de Direito Renovar, n. 18, p. 11-19, set./dez. 2000. p. 11 10 ANTUNES, op. cit., p. 208 6 49 destas pessoas, as quais não causaram a poluição e tampouco tinham mecanismos para preveni-la. Complementa relatando como sendo inviável a responsabilização ambiental nestas situações.11 Um clássico exemplo nesta mesma seara, ocorrido nos Estados Unidos, é o caso do Love Canal onde o agente de crédito imobiliário foi responsabilizado civilmente pela construção de habitações sobre solo contaminado.12 A responsabilização das instituições financeiras é o exemplo mais estudado atualmente no que tange à responsabilidade ambiental do poluidor indireto, ou seja, aquele que indiretamente contribuiu para a ocorrência do dano13. 3. A Responsabilidade Objetiva e as Teorias do Risco Quando foi publicada, a Lei 6.938/81 trouxe grande inovação ao sistema jurídico da responsabilidade civil ambiental: A promulgação da Lei n. 6938/81 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente) foi um divisor de águas no Direito Brasileiro. Não só porque, pela primeira vez, o País ganhava um sistemático arcabouço legal de sustentação a uma política nacional do meio ambiente, mas também porque, numa penada só, o legislador resolveu dois desafiadores problemas jurídicos: a) a irresponsabilidade, de fato, do poluidor – já que a base da responsabilização, nos termos do Código Civil, era ora baseada em culpa (art. 159), ora vinha objetivada, mas limitada no seu universo de aplicação (os direitos de vizinhança dos arts. 554 e 555) – e b) o acanhado modelo de implementação judicial (=legitimação para agir) nos casos de dano ambiental.14 No que tange ao risco, parte dos autores entende que a responsabilidade objetiva adotada pelo direito brasileiro em questões ambientais está calcada na teoria do risco integral, enquanto outra parte entende que está no risco criado. A principal diferença entre elas é que a responsabilidade objetiva alicerçada na teoria do risco integral prevê a obrigação de indenizar a partir da existência do dano e do nexo causal, não se admitindo excludentes de qualquer natureza. Já na teoria do risco criado são admitidas algumas excludentes:15 Conclusões: à semelhança do que ocorre no âmbito da responsabilidade objetiva do Estado, é que, no Direito positivo pátrio, a responsabilidade objetiva por danos ambientais é o da modalidade do risco criado (admitindo as excludentes da culpa da vítima ou terceiros, da força maior de do caso fortuito) e não a do risco integral (que inadmite excludentes), nos exatos e expressos termos do § 1º do art. 14 da Lei n.º 6.938/81, que, como vimos, somente empenha a responsabilidade de alguém por danos ambientais, se ficar comprovada a ação efetiva (atividade) desse alguém, direta ou indiretamente na causação do dano. (grifo nosso) Segundo Paulo Bessa, a responsabilidade por risco integral não pode ser confundida com a responsabilidade por fato de terceiro, não sendo admissível que um empreendimento que tenha sido vitimado por fato de terceiro passe a responder pelos danos causados por este.16 Tal distinção é de extrema relevância no que tange à internalização dos fatores negativos ao meio ambiente, preconizado pelo princípio do poluidor pagador, uma vez que seguindo a teoria do risco integral, todo e qualquer risco conexo ao empreendimento deverá ser integralmente internalizado pelo processo produtivo. Já para a teoria do risco criado, dentre todos os fatores de risco, procura vislumbrar apenas aquele que, por apresentar periculosidade, é efetivamente apto a gerar as situações lesivas, para fins de imposição de responsabilidade.17 Segundo Antonio Herman Benjamin, o direito brasileiro abriga a responsabilidade civil objetiva baseada na teoria do risco integral, a qual encontra seu fundamento na “idéia de que a pessoa que cria o risco deve reparar os danos advindos de seu empreendimento. Basta, portanto, a prova da ação ou omissão do réu, do dano e da relação de causalidade”, não aceitando, por tais motivos, as excludentes de fato de terceiro, de culpa concorrente da BERGKAMP, Lucas. Liability and environment. The Hague: Kluwer Law International, 2001. p. 331 No Direito Brasileiro ainda não se consolidaram julgados neste sentido. No entanto, já se reconhece a solidariedade do agente financeiro pela solidez e segurança da obra. “A obra iniciada mediante financiamento do Sistema Financeiro da Habitação acarreta a solidariedade do agente financeiro pela solidez e segurança.” (Resp nº 51.169 RS – STJ – CC Turma – Relator Ministro Ari Pargendler – DJ) 13 Vide Lei 6.938/81, Art. 12; Decreto 99.274/90, Art. 23; Lei 8.974/95 e Lei 11.105/05. Por força da latente preocupação com o crescimento do desmatamento da Amazônia, que é inclusive atribuído ao desenvolvimento de atividades pecuárias e agrícolas na região, foi publicada a Resolução 3.545 do Conselho Monetário Nacional, de 03/05/2008, que instituiu a avaliação de aspectos ambientais para o financiamento de atividades agropecuárias nos municípios integrantes do Bioma Amazônia em instituições oficiais de crédito ou bancos privados que sejam agentes financeiros de créditos públicos. Além disto os contratos de financiamento também deverão conter cláusula prevendo que, em caso de embargo do imóvel no qual as atividades serão desenvolvidas, a liberação das parcelas seja suspensa até regularização ambiental do imóvel, e se esta não ocorrer em até 12 (doze) meses, o contrato será considerado vencido antecipadamente. 14 BENJAMIN, op. cit. p. 12 15 “No mesmo sentido, lê-se em Alvino Lima – Culpa e Risco, Ed. Rev. Tribs., 2ª ed. atualizada por Ovídio Rocha Barros Sandoval, 1998, p. 320: “A responsabilidade pelo dano ecológico, à vista do disposto no art. 14 da Lei n.º 6.938/81, na conformidade da jurisprudência atual, é objetiva, pois “obriga o poluidor a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade, independentemente de existência de culpa. Portanto, em cada caso concreto, haverá de existir a prova de dois pressupostos indispensáveis: a existência do dano ambiental e seu nexo causal com a ação ou omissão do pretenso responsável que seja a causa eficiente do evento capaz de gerar o prejuízo a ser indenizado”. Fica, assim, definitivamente, demonstrada, que, em virtude do texto expresso da Lei n.º 6.938/81, a responsabilidade pelo dano ambiental, é fundada na teoria do risco criado e não na do risco integral.” (MUKAI, Toshio. Responsabilidade objetiva por dano ambiental com base na teoria do risco criado. 2003, p. 8) 16 ANTUNES, op. cit., p. 206 17 STEIGLEDER, Annelise Monteiro. Considerações sobre o Nexo de Causalidade na Responsabilidade Civil por Dano ao Meio Ambiente. Revista de Direito Ambiental. São Paulo, ano 8, n. 32, p. 86 18 BENJAMIN, op. cit., p. 41 19 Código Civil. Art. 393. Parágrafo Único – O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir. 20 MACHADO, op. cit., p. 378-379 21 GRIZZI GRIZZI, Ana Luci Limonta Esteves; BERGAMO, Cyntia Izilda; HUNGRIA, Cynthia Ferragi; CHEN, Josephine Eugenia. Responsabilidade civil ambiental dos financiadores. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 24 11 12 50 Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. vítima, de caso fortuito ou de força maior.18 Paulo Affonso Leme Machado, ao tratar da responsabilidade civil e caso fortuito e força maior19, cita José de Aguiar Dias, pontuando que a caracterização do caso fortuito e de força maior deve ser procurada não no evento em si, posto que este é um fato necessário, mas sim em seus efeitos, os quais poderiam ou não ser evitados ou impedidos, de forma a afastar ou não a responsabilidade ambiental na esfera civil. Neste sentido, em se tratando da responsabilidade objetiva, deverá ser “analisada a ausência de previsão e tomada de medidas para evitar os efeitos do fato necessário”.20 Trazendo os conceitos acima à questão da responsabilidade dos entes financeiros, Ana Luci Grizzi aponta que na busca do nexo de causalidade entre a conduta do ente financiador e o dano ambiental, não se deve vincular a responsabilidade objetiva com a teoria do risco integral da atividade, sob pena de se causar transtornos ao sistema financeiro, com retração das concessões de crédito.21 Em se tratando de responsabilidade civil ambiental, há que se avaliar a questão sob o prisma do princípio do poluidor pagador e do art. 393, parágrafo único do Código Civil, que se apega à possibilidade de evitar ou impedir os efeitos do fato. Assim, deve-se perquirir quanto à previsibilidade do fato (e aqui faz-se referência expressa ao princípio da prevenção e da precaução) e se estava ao alcance do sujeito a tomada de medidas possíveis e eficazes para impedir ou evitar os efeitos negativos do evento danoso e ele não o fez. 4. O nexo de causalidade entre a conduta e o dano ambiental O nexo causal é o elo que une a conduta do agente poluidor ao dano ambiental. É através dele que se pode concluir quem foi o causador do dano. Sem o nexo causal não há responsabilidade civil.22 Dentre as diversas teorias existentes acerca do nexo causal, destaca-se a teoria da causalidade adequada, segundo a qual se deve levar em consideração, dentre todas as condições que concorreram para o evento danoso, somente aquela que, em concreto e em abstrato, era a mais adequada a produzir o resultado23. Isto significa dizer que: (...) entre as diversas causas que podem ter condicionado a verificação do dano, aquela que, numa perspectiva de normalidade e adequação sociais, apresente sérias probabilidades de ter criado um risco socialmente inaceitável, risco esse, concretizado no resultado danoso.24 A teoria da causalidade adequada se contrapõe à chamada teoria da equivalência dos antecedentes, também conhecida por teoria da condição sine qua non ou teoria da equivalência das condições. Esta teoria preceitua que, se várias condutas ou condições concorreram para o mesmo evento, todas se equivalem. Não se investigando, portanto, qual teve maior relevância ou foi mais ou menos adequada ou eficaz. “Condição é todo antecedente que não pode ser eliminado mentalmente sem que venha a ausentarse o efeito”.25 Em havendo diversos sujeitos que potencialmente podem ser classificados como responsável por um dano ambiental, como é o caso do poluidor indireto, parece adequado que se aplique a teoria da causalidade adequada, buscando-se no nexo causal quão determinante foi sua conduta, comissiva ou omissiva, para a ocorrência do dano ambiental, sendo admitida a aplicação também das excludentes de responsabilidade, como caso fortuito, força maior e fato de terceiro, com respaldo na teoria do risco criado e do art. 393 do Código Civil. De fato, o que esta ciência demonstrou, irrefutavelmente, é que para aferir a responsabilidade civil pelo acidente, o juiz deve retroceder até o momento da ação ou da omissão, a fim de estabelecer se esta era ou não idônea para produzir o dano. A pergunta que, então, se faz é a seguinte: a ação ou omissão do presumivelmente responsável era, por si mesma, capaz de normalmente causar o dano? Tal pergunta é a conseqüência desde princípio: para se estabelecer a causa de um dano é preciso fazer um juízo de probabilidades. Portanto, se se responde afirmativamente, de acordo com a experiência da vida, se se declara que a ação ou omissão era adequada a produzir o dano, então, este é objetivamente imputável ao agente. O juízo de probabilidades ou previsibilidade das conseqüências é feito pelo juiz, retrospectivamente, e em atenção ao que era cognoscível pelo agente, como exemplar do tipo do homem médio.26 5. A aplicação do Instituto da Solidariedade Diante do conceito aberto que a legislação brasileira deu à figura do poluidor, inserindo tanto o causador direto quanto o indireto, e considerando situações comumente encontradas onde há pluralidade de sujeitos potencialmente responsáveis pela reparação de um dano ambiental, como o exemplo do aterro clandestino mencionado anteriormente, deve-se assumir que na teoria da responsabilidade objetiva e do risco integral da atividade, tende a ser reconhecida a solidariedade pelos danos ambientais: CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 4 ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 67 Ibid., p. 70 STEIGLEDER, op. cit., p. 91 25 CAVALIERI FILHO, op. cit., p. 68 26 Ibid., p. 70 22 23 24 51 O modelo jurídico-ambiental, portanto, não só aproveita a solidariedade do Direito Civil clássico, como a amplia, dando-lhe feições peculiares. Nada mais justo, sendo o Direito Ambiental uma disciplina jurídica de crise a exigir, por isso mesmo, notáveis e urgentes aperfeiçoamentos no organograma da responsabilidade civil. Nessa linha, “é de particular relevância o princípio da solidariedade, que historicamente correspondia ao da fraternidade, consagrado pela Revolução Francesa de 1789. O que não se pode admitir é o réu alegar, como eximente, “o fato de não ser só ele o degradador, de serem vários, e não se poder identificar aquele que, com seu obrar, desencadeou – como gota d’água – o prejuízo”.27 (grifo do autor) Ocorre que consoante o art. 265 do Código Civil, a solidariedade não se presume, resultando de lei ou da vontade das partes. Assim sendo, exceto se convencionado entre os interessados, em momento algum a legislação ambiental tratou de atribuir solidariedade por reparação aos danos causados ao meio ambiente. Não se pode simplesmente tomar o conceito aberto de poluidor trazido pelo art. 3º, IV da Lei 6.938/81, que determina que é responsável aquele que direta ou indiretamente contribui para o evento danoso, e combiná-lo com o art. 952 do Código Civil, o qual prevê que havendo mais de um autor da ofensa, todos responderão solidariamente pela reparação. O Decreto 6.514/08 estabelece expressamente a responsabilidade (administrativa) ambiental de todos os entes da cadeia produtiva por cultivos ou produção em áreas embargadas28, punindo com multa de R$ 500 por quilograma ou unidade, aquele que adquire, intermedeia, transporta ou comercializa produto ou subproduto produzido sobre área objeto de embargo (art. 54). Tratou o legislador de estender os efeitos lesivos do desmatamento ilegal não apenas ao produto obtido diretamente do desmatamento, no caso a madeira originada das florestas, mas também aos produtos obtidos indiretamente na área desmatada, como, por exemplo, aos animais (no caso leia-se gado) ali criados e os frutos ali cultivados (como lavouras de soja, milho, arroz, cana, etc.). Seria uma aplicação da máxima que acessório que acompanha o principal, no caso, os efeitos negativos do dano ambiental perpetrado no terreno acompanhando todos os bens produzidos sobre ele. Poder-se-ia pensar que se trata de aplicação da responsabilidade solidária entre todos estes stakeholders (atores envolvidos) pela conduta daquele que diretamente praticou o desmatamento ilegal. No entanto, não se pode perder de vista que a Lei 6.839/81 dispõe que a sanção administrativa é aplicável sem prejuízo da reparação dos danos causados. Portanto, a responsabilidade estabelecida aqui é de caráter administrativo e não civil. Além disto, o legislador individualizou as condutas (desmatar, adquirir, intermediar, transportar e comercializar). Logo, não se trata de solidariedade entre os sujeitos. Outra situação largamente difundida onde se verifica a co-responsabilização ambiental ocorre na aquisição de imóveis rurais sem reserva legal. Os tribunais29 já consolidaram o entendimento de que na compra e venda de imóveis rurais sem reserva legal, fica o adquirente responsável pela reparação do dano ambiental, que, neste caso é tratado como propter rem30. Faz sentido sim atribuir ao comprador a responsabilidade administrativa pela infração de não averbar reserva legal, afinal, tal obrigação recai sobre o proprietário, tenha ele adquirido o imóvel com ou sem reserva legal (artigos 48 e 55 do Decreto 6.514/08). No entanto, não cabe impor ao adquirente de um imóvel sem reserva legal a obrigação por reparação por dano ambiental, sem que haja comprovação da existência de dano ao meio ambiente e sem que seja avaliada em que medida a conduta do proprietário contribui para tanto. Corroborando o entendimento acima, cabe trazer à tona a Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305/10), que atribui aos diversos sujeitos envolvidos na cadeia dos resíduos sólidos uma responsabilidade compartilhada, porém individualiza as suas condutas, não tratando um como solidariamente responsável por uma conduta imputada a outrem: Art. 3º. XVII - responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos: conjunto de atribuições individualizadas e encadeadas dos fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes, dos consumidores e dos titulares dos serviços públicos de limpeza urbana e de manejo dos resíduos sólidos, para minimizar o volume de resíduos sólidos e rejeitos gerados, GOLDENBERG; ITURRASPE apud BENJAMIN, op. cit. p. 38 O embargo a que se refere este artigo consiste na penalidade administrativa imposta pela autoridade ambiental, conforme previsto no artigo 16 do mesmo Decreto. Recurso especial. Faixa ciliar. Área de preservação permanente. Reserva legal. Terreno adquirido pelo recorrente já desmatado. Impossibilidade de exploração econômica. Responsabilidade objetiva. Obrigação propter rem. Ausência de prequestionamento. Divergência jurisprudencial não configurada. As questões relativas à aplicação dos artigos 1º e 6º da LICC, e, bem assim, à possibilidade de aplicação da responsabilidade objetiva em ação civil pública, não foram enxergadas, sequer vislumbradas, pelo acórdão recorrido. Tanto a faixa ciliar quanto a reserva legal, em qualquer propriedade, incluída a da recorrente, não podem ser objeto de exploração econômica, de maneira que, ainda que se não dê o reflorestamento imediato, referidas zonas não podem servir como pastagens. Não há cogitar, pois, de ausência de nexo causal, visto que aquele que perpetua a lesão ao meio ambiente cometida por outrem está, ele mesmo, praticando o ilícito. A obrigação de conservação é automaticamente transferida do alienante ao adquirente, independentemente deste último ter responsabilidade pelo dano ambiental. Recurso especial não conhecido. (REsp 343.741-PR – 2ª T. – STJ – rel. Min. Franciulli Netto – DJU – 07.10.2002) (grifo nosso) 30 “A obrigação propter rem é aquela em que o devedor, por ser titular de um direito sobre uma coisa, fica sujeito a uma determinada prestação que, por conseguinte, não derivou da manifestação expressa ou tácita de sua vontade. O que faz o devedor é a circunstância de ser titular do direito real, e tanto isso é verdade, que ele se libera da obrigação se renunciar a esse direito.” (RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil – Parte Geral das Obrigações. Vol. 2. 21 ed. São Paulo: Saraiva, 1993. p. 105). No caso dos danos ambientais, a afirmação final desta premissa é relativa, posto que ainda que transfira a propriedade, o causador do dano, ainda que não mais na posse ou propriedade do bem, continua responsável por ele. 27 28 29 52 Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. bem como para reduzir os impactos causados à saúde humana e à qualidade ambiental decorrentes do ciclo de vida dos produtos, nos termos desta Lei; Conclusão Os princípios de Direito Ambiental do desenvolvimento sustentável, do poluidor-pagador, da prevenção e da precaução estão na base de sustentação da responsabilidade ambiental. Da conjugação destes princípios pode-se concluir que o foco da responsabilidade ambiental deve residir nas ações que antecedem o dano e não naquelas que o sucedem, pois sendo o meio ambiente composto por elementos da natureza, sobre os quais o ser humano não tem plenos poderes de ingerência, é praticamente impossível trazê-lo ao status quo ante. Assim, a responsabilização para reparar um dano ambiental fica adstrita a uma remediação de algo já consumado, cujos efeitos negativos já foram exteriorizados no meio ambiente, resumindo-se, na maioria das vezes em compensação de caráter pecuniário. Foi por intermédio da Lei 6.938/81 que a responsabilidade civil em matéria ambiental passou a ser objetiva, bastando, portanto a existência do dano e do nexo de causalidade com a conduta do agente, não se perquirindo se este agiu com culpa ou não. Sendo o risco o principal elemento da responsabilidade objetiva, passou-se a discutir, então, qual seria a natureza deste risco em sede de responsabilidade ambiental. Não é pacífico o entendimento doutrinário acerca da adoção pelo Direito Brasileiro pela teoria do risco integral ou do risco criado. Sendo o desenvolvimento sustentável um dos pilares do Direito Ambiental e também do desenvolvimento econômico, ambos constitucionalmente tutelados, em se tratando de responsabilidade civil do causador indireto do dano ambiental, a aplicação da teoria do risco integral pode trazer grande insegurança jurídica às relações econômicas. Mais adequado seria a aplicação da teoria do risco criado, posto que esta admite a aplicação das excludentes da responsabilidade, como o ato de terceiro, o caso fortuito e a força maior, que são fatos sobre os quais alguém que esteja vinculado de forma remota à atividade não tem como evitar ou impedir. Adicionalmente a isto, no que tange à busca do nexo de causalidade entre a conduta do poluidor indireto e o dano ambiental, há que se verificar quão relevante foi ela para a ocorrência do dano ou não, conforme preceitua a teoria da causalidade adequada. Desta forma, dois patamares podem ser estabelecidos, trazendo o causador indireto do dano para, pelo menos, uma co-responsabilidade subsidiária, pois, de outra forma, ter-se-á a aplicação da figura da solidariedade, colocando o responsável direto pela conduta danosa e o poluidor indireto em pé de igualdade, no que tange à reparação. Responsabilidade compartilhada não implica em solidariedade. É certo que o modelo econômico capitalista, baseado no liberalismo e na Revolução Industrial, propulsionou a corrida pelo desenvolvimento a qualquer custo, trazendo, sim, prejuízos ao meio ambiente, como a poluição do ar e das águas e o uso desenfreado dos recursos naturais. De outro lado, não se pode ignorar que a Constituição Federal, em seu art. 170, preconiza a busca do equilíbrio entre a ordem econômica e o respeito ao meio ambiente, tal qual a Declaração do Rio de Janeiro de 1992 sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. É neste sentido que o operador do Direito deve estar muito atento para compreender que o desenvolvimento sustentável é a conjugação dos interesses econômicos com os interesses ambientais e buscar sempre o equilíbrio entre um e outro, pois se o desenvolvimento há que ser sustentável, a sustentabilidade, por sua vez, só tem sua razão de ser se existir o desenvolvimento. Abstract: This article ascertains the co-responsibility for environmental damages, as to the legal definition on the Brazilian National Environment Act, the indenminfication for environmental damages, evaluating the theories with regard to the activity created risk and the causation nexus, and finally the solidarity. Key words: Environmental liability, non-polluter liability, strict liability, actitivity created risk theory, last chance theory. 53 Bibliografia AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. O Poder Judiciário e a concretização das cláusulas gerais. Revista de Direito Renovar, n. 18, p. 11-19, set./dez. 2000. ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 9 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. BENJAMIN, Antonio Herman V. Responsabilidade Civil Pelo Dano Ambiental. Revista de Direito Ambiental. São Paulo, ano 1998, n. 9, p. 5-52. BERGKAMP, Lucas. Liability and environment. The Hague: Kluwer Law International, 2001. CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 4 ed. São Paulo: Malheiros, 2003. DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. 2 ed. São Paulo: Max Limonad, 1997. FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2008. GRIZZI, Ana Luci Limonta Esteves; BERGAMO, Cyntia Izilda; HUNGRIA, Cynthia Ferragi; CHEN, Josephine Eugenia. Responsabilidade civil ambiental dos financiadores. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 18 ed. São Paulo: Malheiros, 2010. MUKAI, Toshio. Responsabilidade objetiva por dano ambiental com base na teoria do risco criado. 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Este trabalho tem como objetivo o estudo de aspectos controvertidos do instituto da reserva legal florestal, notadamente no que se refere ao que chamaremos de desmatamento lícito ou ilícito, questões que se revelam de suma importância para o desdobramento das suas conseqüências na esfera jurídica do direito do particular. Palavras-chaves: Reserva legal. Reserva legal florestal. Limitações e restrições ambientais. Limitações e restrições administrativas. Desmatamento lícito. Desmatamento ilícito. Código Florestal. Do Direito de Propriedade O estudo do instituto da reserva legal florestal passa, necessariamente, pela análise do direito de propriedade. Por sua vez, não se pode falar do direito de propriedade sem uma prévia abordagem histórica deste instituto. Conforme menciona Maria Helena Diniz1, citando Theodor Sternberg, “impossível seria a análise dos problemas jurídicos sem a observância do seu desenvolvimento através dos tempos.”. O desenvolvimento da civilização acabou por suavizar o caráter individualista e absolutista do direito de propriedade. A plenitude do direito de propriedade na pessoa do titular do domínio foi relativizada em prol do interesse da coletividade. Embora as restrições ao direito de propriedade sejam mais sentidas no Brasil a partir de recentes leis, com destaques para a Constituição Federal de 1988 e o atual Código Civil (2002), é de fácil constatação, na análise da evolução histórica do instituto, que desde as mais remotas civilizações o direito de propriedade vem sofrendo alterações em prol da coletividade e do bem comum, em contraposição ao caráter absoluto e individualista que por muito tempo reinou entre os diferentes povos e civilizações. Mesmo no direito romano, de início, não havia uma sistematização do direito de propriedade, como leciona Luiz Antônio Rolim2. Nesta fase da civilização, conforme noticiam muitos doutrinadores, prevalecia o direito de propriedade coletivo, embora esta informação seja contestada por alguns pela inexistência de informações seguras que levem a esta conclusão. Arimatéia3 (2003, p 18) sintetiza esta divergência quando diz que “A ciência do Direito ainda não solucionou a questão polêmica de saber se a propriedade nasceu coletiva ou individual”. 1 2 3 Na propriedade individual desenhada a partir da propriedade coletiva que reinou nos primórdios da civilização, a relação entre o dono e a coisa revelavase como um DIREITO ABSOLUTO e EXCLUSIVO, exercido em função do titular do domínio e sem limites ou restrições de qualquer ordem que fosse, de forma que o titular do domínio tinha o mais amplo e irrestrito campo de atuação no exercício de seu direito, enfeixando o conjunto de poderes conhecidos como jus utendi, o jus fruendi e o jus disponend ou abutend, respectivamente, o direito de usar, gozar e de reaver a coisa de quem quer que injustamente a possua. Afirma-se que o Código de Napoleão de 1804 teria sido a primeira manifestação clara da submissão da propriedade às regras impostas pelo estado em favor do interesse coletivo. O interesse coletivo, não no sentido de restaurar a propriedade coletiva que muitos acreditam ser a origem do direito de propriedade, mas sim no sentido de sobrepor o interesse coletivo e o bem comum ao interesse particular do proprietário. Nesta nova ordem de valores, as restrições ambientais ao direito de propriedade se revelam a todo o momento. Na fase atual, não mais se discute se o interesse coletivo se sobrepõe ou não ao individual, questão já superada, mas sim quais os limites que devam ser impostos ao particular em prol da comunidade da qual ele faz parte e quais as conseqüências jurídicas, no campo do direito do particular, destas limitações a ele impostas. O espírito individualista do século XIX, que também reinou no início do século XX, é rompido pelo princípio da sociabilidade, da função social da propriedade. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro – p 105 ROLIM, Luiz Antônio. Curso de Direito Romano – p 187. ARIMATÉIA, José Rodrigues. O Direito de Propriedade. P 18 55 Guilherme Calmon Nogueira Da Gama4, abordando não apenas a função social no direito de propriedade, mas também em todo o direito civil, nos dá uma boa idéia do significado da função social, a saber: O sentido da expressão da função social deve corresponder à consideração da pessoa humana não somente uti singulus ou uti civis, mas também uti socius. Neste contexto, a doutrina da função social emerge como uma matriz filosófica apta a restringir o individualismo, presente nos principais institutos jurídicos, face aos ditames do interesse coletivo, a fim de conceder igualdade material aos sujeitos do direito. Trata-se de uma transição do individualismo para a sociabilidade. O homem vive no ambiente natural, necessitando dos recursos nele existentes para sobrevivência da sua espécie, inclusive das futuras gerações. É necessário conservar o meio ambiente como um bem comum, visando a qualidade da vida, seguindo aqui os termos empregados pelo legislador constituinte, emergindo daí, como menciona Rui Carvalho Piva5 “uma nova ordem de interesses que o direito protege”. A Constituição Brasileira de 1937 foi a primeira a abordar de maneira expressa a função social da propriedade privada. A Constituição atual não faz referência expressa às limitações administrativas. Entretanto, o princípio implícito da supremacia do interesse público, de um lado, e a enunciação da função social da propriedade (art. 5.º, XXIII e art. 170, III, ambos da CRFB/88), de outro, estão a indicar os fundamentos para qualquer tipo de intervenção do Estado na propriedade, inclusive das limitações genéricas. Para melhor compreensão da natureza das restrições impostas ao particular pelo instituto da reserva legal florestal, é preciso definir o direito de propriedade na legislação pátria. Nas palavras de Caio Mário da Silva Pereira6, “Não existe um conceito inflexível do direito de propriedade” tamanha é a divergência entre os conceitos apresentados pelos diferentes estudiosos e das mais diversas ciências que se debruçam sobre tema. A verdade é que a propriedade mais se sente do que se define, como diz o mesmo autor,. Historicamente, embora sob censura, é comum os autores se referirem ao Código de Napoleão como a primeira tentativa legal de definição do direito de propriedade (MONTEIRO, 1990, p. 88; PEREIRA, 1990, p. 71), que o definiu como sendo “O direito de gozar e dispor das coisas de maneira mais absoluta, desde que delas não se faça o uso proibido pelas leis e regulamentos”. O nosso Código Civil atual não dá o significado de direito de propriedade, o que também se verificava na legislação pátria revogada através da leitura do artigo 524 daquele diploma7. No Código atual, a matéria é tratada no artigo 1.221, que repetindo a preferência do legislador de 1916, optou por relacionar os direitos decorrentes e atribuídos ao proprietário. De maneira geral, à mingua de uma definição mais perfeita, os autores preferem a definição da propriedade como sendo o direito de usar, gozar e dispor da coisa, e reivindicá-la de quem injustamente a detenha, o que não torna difícil concluir que o legislador brasileiro optou por adotar a mesma postura dos doutrinadores e de outras legislações. A questão principal advinda dos atributos do direito de proprietário, antes e principalmente hoje, fixa-se na forma de usar e gozar deste direito, vale dizer, quais são os seus limites, pois que os direitos de usar e gozar já não são absolutos. As limitações são de toda ordem, pública ou privada, em prol da coletividade ou de outro indivíduo, decorrentes de lei ou de contrato. Do direito adquirido do particular em face do interesse comum A ordem jurídica de qualquer Estado democrático tem como uma das bases mais sólidas o princípio da segurança jurídica. Aliás, o Estado de Direito tem este princípio como base maior, concedendo aos cidadãos das mais diversas e diferentes classes sociais proteção e estabilidade das relações entre as pessoas e entre estas e o próprio Estado. A proteção do direito adquirido, da coisa julgada e do ato jurídico perfeito, constitui importante instrumento para a manutenção da segurança jurídica e a estabilidade nas relações entre os jurisdicionados. Em face desta segurança jurídica, na hipótese de mudança na legislação, os atos praticados sob a égide da lei anterior produzirão os efeitos segundo os termos da lei revogada. Neste contexto, é possível visualizar, desde já, que aquele que promoveu o desmatamento lícito, vale dizer, de acordo com a lei vigente à época da abertura da terra, não pode ter o mesmo tratamento dado àquele que promoveu a abertura da terra em contrariedade à lei vigente, embora seja certo que ambos devam se submeter à nova ordem legal. Isto não significa que o direito não possa ser objeto de restrições e limitações futuras em prol da coletividade e que estas limitações tragam conseqüências como, por exemplo, direito de indenização do particular que agiu licitamente. Desta forma, ao lado da conclusão de que não existe o direito adquirido do particular em face do interesse comum, concluímos também que as normas que impõem restrições ambientais de toda ordem aos particulares, entre elas o instituto da reserva legal, qualificam-se como normas GAMA, Guilherme Calmon Nogueira. Função Social no Direito Civil. P. 3 PIVA, Rui Carvalho. Bem Ambiental. P 109. PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições de Direito Civil. P. 64 7 Art. 524 do Código Civil de 1916. “a lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens e de reavê-los de quem injustamente os possua.” 4 5 6 56 Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. de interesse da coletividade e, portanto, não existe o direito adquirido do particular na manutenção da exploração das terras. Quando não é possível a prevalência do direito do particular, a questão se resolve no campo do direito de indenização. Falamos, doravante, do direito de indenização deste particular, já que esta é a única alternativa que resta à sociedade para, ainda que de forma indireta, compensar o particular dos prejuízos que sofreu a partir do sacrifício de seu direito em prol de toda a coletividade representada pelo Estado, a quem cabe arcar com este prejuízo. Diz-se que não há qualquer prejuízo ao proprietário particular, quando as restrições são de ordem geral e não prejudicam o exercício do direito de propriedade de forma substancial ou que atinja os atributos do direito de propriedade. A questão principal é de se saber quando existe para ele o direito de indenização, ou seja, a partir de que grau a intervenção é passível de indenização. Percebam que existem limitações e restrições que são inerentes ao próprio direito de propriedade e, conforme já dito, sempre existiram mesmo quando reinava entre os diferentes povos o caráter individualista e absolutista do direito de propriedade, ainda que de forma menos sensível (Ex: colocação de placas de identificação de nome das ruas no prédio particular, recuo nas construções, abertura de janelas, proibição de determinadas culturas agrícolas em regiões determinadas). Não é difícil imaginar que, vivendo em sociedade, é impossível que este direito seja absoluto, diante da infinidade de possibilidades de hipóteses de confronto entre os interesses dos particulares entre si e com a própria coletividade. Evolução histórica da proteção legal da flora no Brasil Historicamente, conforme nos relata Ozório Vieira Dutra8, verificamos que nas Ordenações Afonsinas (1.500), vigentes após o descobrimento do Brasil e editadas pelo Rei Dom Afonso IV, havia a tipificação do corte de árvore frutífera como crime, proibição que foi mantida nas Ordenações Manuelinas 1521 e nas Ordenações Filipinas de 1850, mas que revelava uma preocupação com a alimentação e não com os recursos naturais. Na Carta Régia de 13.03.1797, segundo menciona Osny Duarte Pereira citado por Américo Luís Martins da Silva9, aquela norma “declarou a propriedade real sobre todas as matas e árvores à borda da Costa, ou de rios que desemboquem imediatamente no mar, e por onde jangadas se possam conduzir as madeiras cortadas até o mar”. Através da Lei nº 1.507, de 26.06.1867, foi instituída a servidão sobre terrenos marginais aos rios navegáveis. 8 9 Pouco antes da vigência da lei anteriormente colacionada, havia sido editada a Lei 601 de 18.09.1850, conhecida como Lei das Terras, que tinha como um dos objetivos conter a destruição de terras públicas, conforme menciona Ruy Cirne Lima, citado por Américo Luís Martins da Silva10, que “dispunha que a aquisição de terras somente poderia ser feita por compra e venda, ao tempo em que proibia expressamente a aquisição prescritiva (usucapião) de tais terras e declarava ser crime a sua posse desautorizada.”. Ainda no século XIX, o Brasil passou por duas Constituições. A de 1824, do Brasil Império e a de 1891, que veio logo após a proclamação da República. Nenhuma delas trouxe qualquer disposição da proteção ou da exploração da flora no Brasil. Somente com a edição do CÓDIGO CIVIL de 1916 é que iniciamos a edição de leis próprias desta natureza, mas com uma clara omissão do legislador no que se refere à proteção da flora no Brasil. Os anos que se sucederam à instalação da “Nova República” foram importantíssimos para a inauguração da legislação ambiental. Conforme lembra Ozório Vieira Dutra11 o Código Florestal de 1934 é fruto de idéia nascida em 1920 do presidente Epitácio Pessoa, que criou naquele ano uma subcomissão para elaborar o anteprojeto do que seria o primeiro Código Florestal do Brasil, que trouxe o mais polêmico artigo instituindo a chamada “quarta parte”, que consistia na reserva obrigatória de vinte e cinco por cento de vegetação nativa existente em cada propriedade rural. Constitui ele o ponto principal para o estudo do instituto da reserva legal, pois que antes da sua vigência, não havida qualquer regulamentação ou restrição quanto à utilização do solo e à preservação da flora no Brasil. O “golpe militar de 1964” inaugurou uma nova ordem política, e porque não dizer, também econômica e social. É sob esta nova ordem política que, no ano seguinte (1965), surge um novo Código Florestal, que ingressou no ordenamento jurídico através da Lei n° 4771 de 15/09/1965. Basicamente, seus objetivos seguiam a mesma linha do seu antecessor, mas trouxe algumas inovações e acabou por trazer novas restrições e limitações ambientais quanto à ocupação e exploração do solo, bem como no que se refere à proteção da flora. Extinguiu as quatro tipologias de áreas protegidas anteriormente, conforme previa o Código de 1934, substituindo-as por quatro outras novas: Parque Nacional e Floresta Nacional (anteriormente categorias específicas), as Áreas de Preservação Permanente (APP) e a Reserva Legal (RL). Se na versão de 1934 a polêmica maior se resumia na quarta parte, que proibia o desmatamento total da área pelo proprietário, no novo Código de 1965 ficou claro o objetivo do legislador de transferir para o particular o ônus da proteção da flora no Brasil, cujos termos serão melhores DUTRA, Ozório Vieira. Reserva Legal. P. 15. SILVA, Américo Luiz Martins. Direito do Maio Ambiente e dos Recursos Naturais. P. 81. SILVA, Américo Luiz Martins. Direito do Maio Ambiente e dos Recursos Naturais. P. 82 10 57 analisados oportunamente, até mesmo porque, a versão original e que teve vigência por algum tempo, não trouxe as restrições hoje existentes. A edição da Lei 6.938/1981 (Política Nacional do Meio Ambiente) e de outras posteriores acabaram por mudar de forma drástica o Código Florestal de 1965, bem como para produzir, de fato, uma legislação ambiental eficaz e com fortes traços de intervenção do domínio do particular em face do bem comum. Sobreveio a promulgação da Constituição Brasileira de 1988, com abordagem direta da questão ambiental, fixando e estabelecendo a nível constitucional as diretrizes do direito ambiental e a função social da propriedade. A Lei 7.803/1989 alterou o Código Florestal para introduzir nele a exigência de averbação da reserva legal junto à matrícula do imóvel, obrigação até então inexistente, e fez outras alterações no Código Florestal de 1965. A Medida Provisória 2.166-67/2001, introduziu inúmeras alterações no Código Florestal e impôs ao particular ônus de toda a ordem, sendo ela, ao lado dos Códigos Florestais de 1934 e de 1965, as fontes legais mais importantes a serem analisadas neste trabalho. O Novo Código Civil (2002) estabelece de maneira minuciosa as características da função social da propriedade, acentuando as restrições, limitações e a função social da propriedade. Da reserva legal florestal no Código de 1934 e anteriormente a ele Esta foi a redação dada pelo legislador de 1934 ao então polêmico artigo 23 do Decreto Federal nº 23.793/1934 (Código Florestal), sendo, também interessante a transcrição do disposto no seu artigo 24: Art. 23. Nenhum proprietário de terras cobertas de matas poderá abater mais de três quartas partes da vegetação existente, salvo o disposto nos arts. 24, 31 e 52.” (Grifei) § 1º O dispositivo do artigo não se aplica, a juízo das autoridades florestas competentes, às pequenas propriedades isoladas que estejam próximas de florestas ou situadas em zona urbana. (Grifei) § 2º Antes de iniciar a derrubada, com a antecedência mínima de 30 dias, o proprietário dará ciência de sua intenção à autoridade competente, afim de que esta determine a parte das matas que será conservada. Art. 24. As proibições dos arts. 22 e 23 só se referem à vegetação espontânea, ou resultante do trabalho feito por conta da administração pública, ou de associações protetoras da natureza. Das resultantes de sua própria iniciativa, sem a compensação conferida pelos poderes públicos, poderá dispor o proprietário das terras, ressalvados os demais dispositivos deste código, e desapropriação na forma da lei. (Grifei) 11 12 Observa-se, desde já, que a norma se refere a terras cobertas (“terras cobertas de matas”), ou seja, a proibição alcançou apenas o desmate e a exploração de terras cobertas com matas ou cobertura florestal existentes no momento da vigência da norma, vale dizer, não eram objeto do citado artigo as terras já exploradas, mas somente aquelas com cobertura, e desde que as matas não fossem resultantes da iniciativa do proprietário. Sob outro aspecto, a par da inexistência de qualquer disciplina quanto às terras já abertas, leia-se desmatadas, além do novo limite de 75% (3/4), e da não imposição de qualquer penalidade ao proprietário que desmatou além daquele limite, existia até mesmo a previsão de indenização quando se tratava de florestas particulares (art. 24). Da reserva legal florestal no Código Florestal de 1965 e alterações posteriores Se o Código Florestal de 1934 não trouxe grandes mudanças, a não ser a instituição da chamada quarta-parte, o Código de 1965, que lhe sucedeu, já não teve esta mesma timidez, trazendo inúmeros artigos disciplinando com maior abrangência a questão ambiental no Brasil, inclusive com a introdução da área de preservação permanente (APP), conforme menciona Luis Carlos da Silva de Moraes12. Embora mais amplo, é possível dizer que no seu artigo 1º, o novo Código também tem a mesma sinalização daquele que substituiu, ou seja, disciplinar a proteção das florestas existentes. De forma quase que invariável, as disposições deste novo Código sempre trabalham no sentido de proibição de exploração ou de supressão de florestas existentes. O artigo 18, por sua vez, é ainda mais claro ao indicar que o objeto das normas do novo Código eram as florestas e matas existentes. Tanto assim é verdade que prevê, na hipótese de florestamento ou reflorestamento de preservação permanente, o próprio poder público poderia tomar esta providência, mediante, entretanto, o pagamento de indenização se estas áreas já estiveram sendo exploradas pelo proprietário. Eis o teor na íntegra desta norma: Art. 18. Nas terras de propriedade privada, onde seja necessário o florestamento ou reflorestamento de preservação permanente, o Poder Público Federal poderá fazê-lo, se não o fizer o proprietário. § 1º Se tais áreas estiverem sendo utilizadas com culturas, de seu valor deverá ser indenizado o proprietário. É possível, portanto, concluir, que embora o novo código tenha imposto uma restrição ainda maior ao proprietário na exploração do solo, a questão das terras já exploradas e que não constavam com coberturas florestais nos parâmetros estabelecidos no novo Código, tal como ocorreu com a legislação anterior, não foi objeto de DUTRA, Ozório Vieira. Reserva Legal. P. 16 MORAES, Luis Carlos Silva de. Código Florestal Comentado. P. 32. 58 Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. disciplina na nova legislação, ou seja, o novo código tinha como objetivo tão somente a normatização da abertura de novas áreas, leia-se novos desmatamentos, não se preocupando coma situações já consolidadas. Importante observar que o novo código, ao estabelecer os diversos percentuais previstos no artigo 16, menciona limite mínimo para reserva legal (20% aliena “a”) e limite máximo para a derrubada de florestas (30% alínea “b”). Este detalhe é importante porque não foi estabelecido um percentual fixo para a reserva legal, mas sim um parâmetro mínimo. Se o Código Florestal de 1934 foi um marca no estabelecimento de limitação ao desmatamento na exploração de futuras áreas, a MP 2.080/2000, posteriormente convertida na MP 2.167/200113, a partir desta conversão e dos termos de sua nova redação, se traduz no ponto central de toda a celeuma jurídica que se instaurou acerca da reserva legal florestal. A obrigação do proprietário particular de ter a reserva legal florestal em seu imóvel, de acordo com os parâmetros legais (art. 16), nasce com a edição da MP 2.167 de 13/06/2001, portanto, na vigência da atual Constituição Federal e somente 67 (sessenta e sete) anos após a vigência da primeira lei que instituiu a reserva legal florestal no Brasil (Código de 34). Reserva legal Florestal extra propriedade Uma das diferenças da reserva legal florestal do instituto das APP’s é que enquanto esta tem localização definida na própria lei que a criou, aquela pode ser definida pelo proprietário em qualquer área dentro do imóvel (sujeita a aprovação pelo órgão ambiental), por exclusão, por óbvio, nas áreas de APP’s. Embora tanto o Código de 1934 quanto a versão original do Código de 1965 não tenha trazido a hipótese de reserva legal florestal extra propriedade, ou seja, em outro imóvel, o artigo 44 deste último, com a redação que lhe deu a MP 2.166/01, trouxe esta possibilidade. Portanto, para os imóveis com área de reserva inferior ao fixado legalmente, a partir daquela MP tornou-se possível a formação da reserva florestal em outro imóvel. Este permissivo é para a regularização do imóvel rural e não para abertura de novas áreas. Da exploração econômica da reserva legal florestal É proibido o corte raso das árvores que compõem a reserva legal florestal. Corte raso é o termo técnico que significa cortar na base todas as árvores de uma determinada área, mas existe a possibilidade da sua exploração econômica (art. 2º do artigo 16 do Código 13 14 15 Florestal)14, possibilitando ao proprietário que obtenha proveito econômico da área de reserva, mediante o corte seletivo da madeira. Contudo, este proveito econômico é muito pequeno. A pesquisadora Maria do Carmo Ramos Fasiaben da Unicamp, em sua tese de doutorado sobre o “Impacto econômico da reserva legal florestal sobre diferentes tipos de unidade de produção agropecuária”, orientada pelo professor Ademar Romeiro, do Instituto de Economia da Unicamp, fazendo um mapeamento dos remanescentes de vegetação nativa nas unidades de produção agropecuárias, conforme matéria veiculada no Jornal da Unicamp15, edição de 30/08/2010 a 12/09/2010, chegou à conclusão que, dependendo da opção ou não pela exploração, bem como da cultura e das diferentes técnicas empregadas, existe uma sensível redução na renda total propiciada pelo imóvel, que varia de acordo com a cultura explorada e as técnicas empregadas entre 13% e 17%, sem contar o longo período de aplicação de recursos, até que haja o início do corte das primeiras árvores. Estas informações confirmam uma constatação que salta aos olhos mesmo do leigo, qual seja, a de que a recomposição da reserva legal florestal para aqueles que já haviam promovido a exploração da terra antes da vigência de qualquer proibição, impõe ao proprietário particular não apenas um ônus altíssimo, mas também prejuízos que se perpetuam pela perda do rendimento do imóvel. Da situação jurídica das áreas já exploradas antes dos Códigos Florestais de 1934 e 1965. Dever de recompor e averbar a reserva legal florestal Tratando-se de normas que impõem restrições aos direitos dos particulares em prol do interesse comum, considerando a evolução legislativa das normas que regulam a reserva legal florestal, e, considerando, ainda, os aspectos históricos que envolvem a exploração das terras no Brasil, é preciso que se faça a todo o momento uma consideração da situação da terra do particular nos momentos das sucessivas alterações que sofreram o instituto. Esta ilicitude ou licitude do ato de explorar o solo com cobertura florestal, somente é possível verificar a partir da consideração de duas premissas básicas. Normas ambientais vigentes nos diferentes períodos da história do Brasil e o momento no qual houve a abertura das áreas, para que se possa, a partir da consideração da legislação vigente naquele momento, estabelecer se a conduta do proprietário particular foi lícita ou ilícita. A primeira dificuldade com que nos deparamos é a revelação de quando foi aberta a terra, que é imprescindível para a formulação do raciocínio ao qual nos propomos. O Ainda não votada até hoje. Técnicas de condução, exploração e reposição praticadas de forma sustentável visando manter a proteção e o uso sustentável da vegetação nativa e obter benefícios econômicos http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/agosto2010/ju473pdf/Pag03.pdf 59 proprietário particular, certamente, não contará com prova documental, já que o instituto da prescrição acaba por desobrigar o arquivo de documentos de tantos anos atrás. A princípio poderíamos imaginar que voltamos ao início, pois se não houver prova de que a terra foi aberta antes do Código Florestal de 1934, ou até mesmo do Código Florestal de 1965, se o imóvel não era coberto por matas, a ilicitude seria presumida. Contudo, a história nos fornece subsídios que ajudam a resolver esta questão sem maiores dificuldades, além da existência de norma jurídica que resolve a questão. Primeiro porque, historicamente, à exceção de alguns estados cujo desenvolvimento se deu de maneira mais tardia, na maioria dos estados brasileiros a exploração da terra já havia se consumado antes mesmo do início do século XX, portanto, milita em favor do proprietário destas regiões a PRESUNÇÃO de que a terra foi aberta antes da vigência do primeiro Código Florestal. Ademais, o estado de direito consagra o princípio da inocência e da licitude dos atos, salvo se houver reconhecimento em sentido diverso em processo legal. Contudo, é na própria lei ambiental que encontramos elementos que demonstram a licitude ou ilicitude da abertura das terras no Brasil. Reportamos-nos à norma esculpida no artigo 37 do Código Florestal de 1965 (versão original), que normalmente passa despercebida por aqueles que analisam o instituto da reserva legal. Eis o teor daquela norma: Art. 37. Não serão transcritos ou averbados no Registro Geral de Imóveis os atos de transmissão “inter vivos” ou “causa mortis”, bem como a constituição de ônus reais, sobre imóveis da zona rural, sem a apresentação da certidão negativa de dívidas referentes a multas previstas nesta Lei ou nas leis estaduais supletivas, por decisão transitada em julgado. Embora o Código Florestal de 1965 tenha sofrido inúmeras alterações, esta norma mantém-se com a mesma redação até os dias atuais. Portanto, a partir desta norma, e considerando que todas as terras registram inúmeras alienações e onerações de toda ordem desde o período de vigência do primeiro Código Florestal, bastando para esta constatação uma análise da cadeia dominial a partir dos arquivos do registro público, é possível concluir que, se houve o registro de títulos translativos ou até mesmo qualquer outro ônus real, é porque o imóvel não foi objeto de nenhum auto de infração ambiental, notadamente no que se refere à regularidade da reserva florestal, pois que do contrário, teriam sido tomadas as medidas competentes pelo Estado visando a recomposição da reserva legal 16 17 florestal da área autuada. Quanto à aplicação da nova lei a situações já consolidadas, Fábio de O. Luchési defende que os proprietários de imóveis “tinham o direito de praticar o desmatamento na forma então regrada pela lei, e, se o fizeram, esse fato passou a constituir uma situação correspondente a direito adquirido. Como já referido, nenhuma regra de direito há que permita que a lei nova retroaja para impor aos particulares obrigação em contrário a direito que exerceram, ou que pudesse apagar os efeitos da lei que incidiu sobre fato verificado sob o seu império”. (RT-800 - junho de 2002 - 91º Ano - pág. 132). Neste sentido também é o posicionamento do Ministro Marco Aurélio de Mello do STF (Revista Dinheiro Rural, edição de nº 61, de novembro de 200916). Em sentido diverso é a doutrina de Paulo de Bessa Antunes, citado por Édis Milaré17, que comunga do mesmo entendimento, para quem a nova obrigação imposta aos proprietários particulares alcança também aqueles que promoveram a abertura da terra anteriormente, ainda que em conformidade com a legislação vigente à época. Embora com sensível inclinação para a confirmação da aplicação imediata da lei a todas as situações, e ao que nos parece em caráter irreversível, ainda é possível encontrar na jurisprudência recentes decisões em sentido contrário (TJMG Ap. Cível 1.0694.08.0464217/001 – in Boletim AASP 2698, p. 1897). O STJ, por sua vez, confirma o seu entendimento pela aplicabilidade imediata, ainda que se trate de terras abertas antes das restrições (RMS 18.301/MG - REsp 821.083/MG). De nossa parte, não poderíamos nos furtar à obrigação de dar o nosso entendimento e a contribuição sobre a matéria. Contudo, preferimos levar ao leitor uma visão inicial sobre a posição da doutrina e da jurisprudência. Outro não poderia ser o nosso entendimento senão a de que a aplicabilidade é imediata e alcança qualquer situação, inclusive as terras já abertas em conformidade com a legislação vigente quando da abertura. Isto decorre da própria natureza da norma ambiental, que dada a supremacia do interesse coletivo, não se coaduna com a manutenção do direito do particular em detrimento de toda a coletividade. Do direito de indenização das áreas já exploradas e do ônus da recomposição da reserva legal florestal Embora sujeito à nova legislação, isto não significa que o particular deva arcar com o ônus da recomposição da reserva legal quando promoveu a abertura da terra de forma lícita e em conformidade com a legislação vigente à época da exploração da terra. Outra questão diferente, http://www.terra.com.br/revistadinheirorural/edicoes/61/artigo156948-1.htm Milaré, Édis. P. 753. 60 Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. também, é o direito de indenização deste particular pela diminuição do proveito econômico do imóvel decorrente da transformação de área agricultável em área de mata. A remoção da cobertura florestal de determinada área deve ser tida como lícita quando naquele momento inexistia norma que impedia o desmatamento, enquanto que ilícito será aquele feito em desconformidade com a lei da época. Considerando que as limitações nos desmatamentos somente vieram com os Códigos Florestais de 1934 e 1965, podemos afirmar, sem margem de dúvida, que todos os desmatamentos ou supressões de vegetações nativas ou naturais ocorridas antes da vigência do primeiro ou do segundo Código Florestal (1934 e 1965), dependendo do tipo de vegetação suprimida, devem ser tidas como lícitas. A questão, como já dito, é que vivemos numa sociedade caracterizada pela observância dos direitos individuais, entre eles o direito de propriedade e a justa indenização àquele que foi privado de um bem particular ou que sofreu restrição ou limitação nos seus direitos em prol de toda a comunidade. Não cabe a este particular arcar com ônus sozinho, mas tão somente na medida certa e juntamente com todos os membros da sociedade. O Professor Rui Carvalho Piva18, que tem uma excelente definição de bem ambiental, identificou o principal ponto de divergência existente no direito de indenização do particular, que varia de acordo com o grau de intervenção da atividade estatal no seu direito. Se o direito é integralmente suprimido, como no caso de desapropriação, ou quando há perda do objeto do direito, é pacífico o entendimento do direito de indenização do particular. Entretanto, quando o particular conserva o direito ou o bem, mas sofre restrição no seu exercício em alguns de seus aspectos em prol de interesses difusos e coletivos é que surge o problema, pois que, regra geral, as restrições e as limitações acompanham o próprio direito. A reserva legal florestal não se traduz em desapropriação, nem mesmo indireta, porquanto que o proprietário não apenas conserva a posse e a propriedade do bem, mas também lhe é permitido a exploração econômica da área. Por outro lado, não se traduz na limitação de ordem geral que não gera indenização, na medida em que seus efeitos ultrapassam aqueles tidos como normais e suportáveis pelo proprietário, tirando-lhe, de forma substancial, o exercício de um ou mais dos atributos de seu direito. De forma geral, o argumento de que o proprietário conserva a posse e o domínio do bem não se presta para negar-lhe o direito à indenização em caso de limitação imposta pelo estado. Tanto a doutrina quanto a jurisprudência não enfrentaram de forma satisfatória e objetiva a questão relativa ao direito de indenização do proprietário particular que, tendo aberto a terra quando lhe era lícito, se vê obrigado a suportar o ônus da recomposição da reserva legal e ver diminuído seu proveito econômico na área. Esta falta de abordagem direta deste assunto deve-se muito mais à maneira que este tema foi abordado até o momento do que à omissão do judiciário. Desta forma, de nossa parte entendemos que as ações dos particulares devam ser no sentido de não apenas buscar a indenização pela redução do proveito econômico, mas também para que o Poder Público arque com o ônus da implantação da reserva legal nos imóveis cujo desmatamento tenha sido lícito. Esta indenização deve ser prévia e justa, tal como prevista na Constituição, ou seja, primeiro o particular deve ser indenizado, para depois ser implementada a restrição ambiental. A jurisprudência dos tribunais é no sentido que, se o direito de propriedade é posterior à própria legislação que impôs a limitação, não há que se falar em direito a indenização19. José Rodrigues Arimatéa20, abordando as implicações jurídicas das restrições ambientais no direito do particular e partir de decisões do Supremo Tribunal Federal, traz uma importante colaboração para análise do tema, a saber: Releva notar, ainda as implicações jurídicas, pois o proprietário estará diante do esvaziamento econômico da propriedade, o que lhe ensejaria o direito de indenização. Aliás, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 134.297.8-SP, em 13.6.95, relatado pelo Ministro José Celso de Mello Filho, disse que: “Incumbe ao Poder Público o dever constitucional de proteger a flora e de adotar as necessárias medidas que visem a coibir práticas lesivas ao equilíbrio ambiental. Esse encargo, contudo, não exonera o Estado da obrigação de indenizar os proprietários cujos imóveis venham a ser afetados, em sua potencialidade econômica, pelas limitações impostas pela Administração Pública”. A decisão foi tomada em um caso de criação de reserva florestal, mas o argumento é aplicável também aos casos de reserva legal. Por fim, para aqueles que ainda não se convenceram do direito de indenização do proprietário particular que agiu licitamente, é possível encontrarmos nos próprios Códigos Florestais (1934 e 1965), normas que garantiam o direito de indenização daquele que havia promovido a abertura das terras em épocas passadas. PIVA, Rui Carvalho. Bem Ambiental. P 123. STJ – 2º T. - AgRg no AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 1.103.185 - SC (2008/0217310-5) 09/06/2009. ARIMATÉA, José Rodrigues. O Direito de Propriedade. Limitações e Restrições Públicas. P. 160. 21 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/D23793.htm 18 19 20 61 O Código de 1934 classificou no seu artigo 3º as florestas existentes em protetoras, remanescentes, modelo e de rendimento. No artigo 4º definiu as áreas florestais consideradas protetoras, o que hoje mais se assemelha a áreas de APP’s. As remanescentes foram definidas no artigo 5º, como sendo os parques públicos ou as de espécies de interesse biológico. Expostas estas premissas, é possível analisar o disposto nos artigo 11, 12 e 13 (texto original), os quais, já naquela época asseguravam ao proprietário particular atingido pela limitação, o direito de indenização. Estas foram as redações originais21 destes artigos (sic): Art. 11. As florestas de propriedade privada, nos casos do art. 4º, poderão ser, no todo ou em parte, declaradas protectoras, por decreto do governo federal, em virtude de representação da repartição competente, ou do conselho florestal, ficando, desde logo, sujeitas ao regime deste código e à observância das determinações das autoridades competentes, especialmente quanto ao replantio, à extensão, à oportunidade e à intensidade da exploração. Paragrafo único. Caberá ao proprietário, em tais casos, a indenização das perdas e damnos comprovados, decorrentes do regimen especial a que ficar subordinado. Art. 12. Desde que reconheça a necessidade ou conveniencia, de considerar floresta remanescente, nos termos deste codigo, qualquer floresta de propriedade privada, procederá o governo federal ou local, à sua desapropriação, saIvo se o proprietario respectivo se obrigar, por si, seus herdeiros e successores, a mantel-a sob o regimen legal correspondente. Art. 13. As terras de propriedade privada, cujo florestamento, total ou parcial, attendendo à sua situação topographica, for julgado necessario pela autoridade florestal, ouvido o conselho respectivo, poderão ser desapropriadas para esse fim, se o proprietario não consentir que tal serviço se execute por conta da fazenda publica, ou se o não realizar elle proprio, de accôrdo com as instrucções da mesma autoridade. § 1º Caso o proprietario faça o florestamento, terá direito às compensações autorizadas pelas leis vigentes. A leitura do artigo 4º, como já falamos, nos remete ao que hoje conceituamos como área de preservação permanente (APP), pois que se refere à conservação do regime de águas, a evitar erosão, a fixar dunas, etc. Com a entrada do primeiro Código Florestal elas passaram a ser consideradas florestas protetoras e, se localizadas em propriedade particular, através dos artigos 11, 12 e 13, foram assegurados aos proprietários particulares o direito de indenização. 62 No Código Florestal de 1965 (vigente), a norma correspondente encontra-se esculpida no artigo 18, que também garante não apenas o direito de indenização do particular, mas também que o Poder Público deverá fazer o reflorestamento, se acaso assim não optar o particular. O texto legal, que não sofreu nenhuma alteração, é claro neste sentido: Art. 18. Nas terras de propriedade privada, onde seja necessário o florestamento ou o reflorestamento de preservação permanente, o Poder Público Federal poderá fazê-lo sem desapropriá-las, se não o fizer o proprietário. § 1° Se tais áreas estiverem sendo utilizadas com culturas, de seu valor deverá ser indenizado o proprietário. § 2º As áreas assim utilizadas pelo Poder Público Federal ficam isentas de tributação. (Grifei) Com a exposição contida neste tópico, concluímos e esperamos ter demonstrado que o proprietário que promoveu a abertura lícita das terras tem direito de indenização referente à diminuição do proveito econômico do bem decorrente da limitação ou restrição ambiental que passou a sofrer o imóvel com o advento de novas leis, e que o poder público deve arcar com todos os custos relativos à recomposição da reserva legal. Do projeto de alteração do Código Florestal Embora este breve estudo tenha como objeto as normas vigentes, com estudo subsidiário das normas já revogadas, não poderíamos deixar de abordar neste trabalho a existência do projeto de lei em trâmite no Congresso Nacional e que tem como objeto proposta de alteração do Código Florestal, porquanto que estas alterações provocam sensíveis e importantes alterações neste diploma legal. As alterações mais importantes e relacionadas ao tema em estudo dizem respeito à manutenção da exploração das terras já abertas, tratamento diferenciado para a pequena propriedade, o cômputo das Áreas de Preservação Permanente no cálculo do percentual da Reserva Legal, a instituição dos Programas de Regularização Ambiental – PRA que deverão dispor sobre a adequação dos imóveis rurais ao Código Florestal. Os Estados também passarão a legislar quanto às APP’s já exploradas. Importante observar que, diferentemente do que tem sido divulgado pela imprensa, o fato da área estar sendo explorada e aberta antes de 22/07/2008 não dispensará o proprietário da regularização e da recomposição nos percentuais estabelecidos no Código Florestal, mas apenas lhe garante a manutenção da exploração até que seja promulgado o PRA e haja adesão do produtor a ele Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. para, através de uma das formas previstas, regularização a reserva florestal. O artigo 15 restabelece uma norma do Código Florestal que teve vigência até a edição da MP 2.166/2001, possibilitando ao proprietário, apenas para efeito de regularização e não de abertura de novas áreas, o cômputo das áreas de APP’s na reserva legal florestal. O artigo 49 valida o que se convencionou chamar neste trabalho de desmatamento lícito, dispensando da regularização da reserva legal o proprietário rural que provar que promoveu a abertura em consonância com a legislação vigente à época da abertura da terra. Embora pareça resolver o problema, a verdade é que, ao atribuir o ônus da prova ao particular, cria um novo, porquanto que esta prova, a nosso ver dispensável se inexistir auto de infração lavrado contra o produtor (princípio da inocência), trará inúmeras discussões. Abstract: This paper aims to study the controversial aspects of the institution of the legal reserved forest, notably regarding what we call in this paper as lawful and unlawful deforestation, which are very important issues related to the development of its consequences in the legal field for the rights of an individual. Key words: Reserved forest. Legal reserved forest. Environmental laws and regulations. Administrative laws and regulations. Lawful deforestation. Unlawful deforestation. Forestry Code. Bibliografia ARIMATÉA, José Rodrigues. O direito de propriedade: limitações e restrições públicas. Franca: Lemos e Cruz Livraria e Editora, 2003. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas. 22. Ed. São Paulo, Saraiva, 2007. DUTRA, Ozório Vieira. Reserva Legal. São Borja: Editora Conceito, 2009. GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da (org.). Função social no direito civil. São Paulo: Editora Atlas. 2007. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 36. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2010. MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente: a gestão ambiental em foco. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. MORAES, Luíz Carlos Silva da. Código florestal comentado. 4. ed. São Paulo: editora Atlas, 2009. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1990. Vol IV. PIVA, Rui Carvalho. Bem Ambiental. São Paulo: Editora Max Limonad, 2000. ROLIM, Luiz Antônio. Instituições de direito romano. São Paulo: RT, 2000. SILVA, Américo Luís Martins. Direito do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais. São Paulo; Ed. Revista dos Tribunais, 2005. v. 2. 63 Mudanças climáticas e florestas: histórico das negociações, impasses e perspectivas em relação à implementação de mecanismos de REDD LÍVIA MENEZES PAGOTTO Pesquisadora do Centro de Estudos em Sustentabilidade (GVces) da Fundação Getulio Vargas. Mestranda em Environmental Governance pela Universidade de Freiburg (Alemanha). Bolsista do DAAD pelo programa Postgraduate course with special relevance to developing countries. Especialista em Meio Ambiente, Desenvolvimento Sustentável e Questões Globais pela FAAP. Graduada em Ciências Sociais pela PUC-SP. Resumo: Este artigo pretende debater os desafios que se colocam na discussão contemporânea sobre a adoção dos mecanismos de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (REDD), por meio de uma análise do contexto de seu surgimento e das perspectivas reais de sua adoção. Os mecanismos de REDD surgiram como um dos instrumentos de mitigação das conseqüências danosas causadas pelas mudanças climáticas em todo o planeta. A bibliografia utilizada foi reunida essencialmente a partir de documentos online, extraídos de sites oficiais e fontes primárias. Concluiu-se que as iniciativas de REDD podem resultar em um duplo benefício, que contribui de forma significativa para o desenvolvimento sustentável: a mitigação dos efeitos das emissões de Gases de Efeito Estufa na atmosfera e a conservação e uso sustentável dos recursos florestais, por meio da contenção do desmatamento e da degradação florestal. Palavras-Chave: Meio Ambiente, Desenvolvimento Sustentável e Questões Globais. Mudança do Clima. Emissões por desmatamento. Florestas. Desmatamento. Degradação ambiental. Conservação Florestal. Introdução As alterações climáticas são a questão central do desenvolvimento humano para a nossa geração. Com desenvolvimento pretende-se, em última análise, expandir o potencial humano e fomentar a liberdade humana. As pessoas procuram desenvolver capacidades que as possibilitem fazer escolhas e ter uma vida que valorizem. As alterações climáticas ameaçam corroer a liberdade humana e limitar o poder de escolha. (PNUD, Relatório de Desenvolvimento Humano 2007-2008) Este artigo1 pretende apresentar ao leitor uma visão geral dos desafios, impasses, oportunidades e perspectivas relacionados à construção de um consenso sobre a definição, as formas de implementação e o futuro das iniciativas de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (REDD). Os mecanismos de REDD foram propostos em meio a discussões sobre o regime climático internacional em sua relação com o acelerado processo de desmatamento e degradação florestal, fenômenos responsáveis por um grande volume de emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE). Hoje, as iniciativas de REDD não têm importância somente na mitigação das emissões de GEE – que provocam o aquecimento global –, mas podem também contribuir para o desenvolvimento sustentável2, propiciando a conservação da biodiversidade, dos recursos hídricos e de solo, e o respeito ao patrimônio histórico e cultural dos povos da floresta. Ao longo da década dos 1990, as emissões provenientes do desmatamento chegaram a 5,8 bilhões de toneladas de carbono ao ano, respondendo assim por 18% do total das emissões globais do período (IPCC, 2007, p. 36). A agenda internacional do meio ambiente e a questão florestal O Direito Internacional do Meio Ambiente rege as questões relacionadas às florestas desde a década de 1990. O assunto foi abordado de forma mais significativa na agenda de negociações da Conferência das Nações Unidas sobre Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD)3 realizada em 1992, na cidade do Rio de Janeiro. Nesta ocasião, não foi aprovada uma convenção sobre florestas, mas foi aprovada Este artigo é derivado da monografia apresentada pela autora no curso de pós-graduação lato sensu “Meio Ambiente, Desenvolvimento Sustentável e Questões Globais”, da FAAP, em fevereiro de 2011. O conceito de desenvolvimento sustentável adotado tem referência no Relatório Brundtland, documento intitulado “Nosso futuro comum” e finalizado em 1987 pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. De acordo com o relatório, desenvolvimento sustentável é “o desenvolvimento que procura satisfazer as necessidades da geração atual, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazerem as suas próprias necessidades”. Disponível em <http://www.un-documents.net/ocf-02.htm>. Acesso em 12dez. 2010. 3 Durante a Conferência (também conhecida por Rio 92, Eco 92 e Cúpula da Terra), foram aprovados os seguintes acordos: i) Agenda 21 (um programa para ação global para todas as áreas do desenvolvimento sustentável), disponível em < http://www.un.org/esa/dsd/agenda21/>; ii) A Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento e; iii) a Declaração de Princípios sobre as Florestas (um documento com princípios sobre gestão, conservação e desenvolvimento sustentável das florestas, disponível em <http://www.un.org/documents/ga/conf151/aconf15126-3annex3.htm>). Além disso, foram assinadas duas Convenções legalmente vinculantes: i) a Convenção-Quadro sobre Mudanças Climáticas e ii) a Convenção sobre a Diversidade Biológica, disponível em <http://www. cbd.int/convention/convention.shtml>. Acesso em 07ago. 2010. 1 2 64 Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. a Agenda 21 - um dos principais resultados produzidos pela Conferência - com um capítulo específico sobre desmatamento4 (Capítulo 11, Seção II – “Combatendo o desmatamento”). Também durante a CNUMAD, foi aprovada a Declaração de Princípios sobre Florestas. Este documento é genérico e não legalmente vinculante, mas representa um “primeiro consenso global sobre florestas” (UNITED NATIONS, 1992d). No texto, a questão florestal é “relacionada a um amplo espectro de questões e oportunidades ambientais e de desenvolvimento, incluindo o direito ao desenvolvimento com bases sustentáveis”. A CNUMAD resultou ainda em outro compromisso internacional de extrema relevância: a Convenção sobre Diversidade Biológica. Esse documento trata da biodiversidade global de forma abrangente, incluindo entre as suas preocupações a questão dos recursos florestais e de seu uso sustentável. Em 2000, a Organização das Nações Unidas (ONU) estabeleceu os conhecidos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), a serem atingidos até 2015. Para alcançar suas metas, o ODM de nº 7 (“Garantir a sustentabilidade ambiental”) sugere o uso de um indicador específico sobre florestas, desmatamento e sua relação com o aquecimento global (“Reduzir o desmatamento para diminuir as emissões de gases de efeito estufa”). A segunda meta do mesmo ODM trata do problema nos seguintes termos: “reduzir a perda de diversidade biológica e alcançar, até 2010, uma redução significativa na taxa de perda”5 (UNITED NATIONS, 2010). Por fim, em sua reunião de 2007, a Assembléia Geral da ONU, por meio de sua Resolução 62/986, estabeleceu quatro objetivos relativos às florestas, a serem alcançados também até 2015. Esses objetivos são: (i) reverter a perda da cobertura florestal no mundo por meio de manejo florestal sustentável, incluindo proteção, restauração, florestamento e reflorestamento7, e aumentar os esforços para prevenir a degradação florestal; (ii) fortalecer benefícios econômicos, sociais e ambientais baseados nas florestas, incluindo a melhoria nos meios de vida das populações delas dependentes; (iii) aumentar significativamente a área de proteção florestal no mundo e as áreas de manejo florestal sustentável, assim como a proporção de produtos provenientes de manejo florestal sustentável8 (UNITED NATIONS, 2008). No ano de 2010, 31% da área total da cobertura terrestre era ocupada por florestas. Do total da cobertura, 36% eram caracterizados como florestas primárias (florestas com espécies nativas sem sinais de atividade antrópica e/ou sistemas ecológicos significativamente alterados), 57% como florestas naturalmente regeneradas e 7% como florestas plantadas (FAO, 2010, p. 5). As razões propulsoras do desmatamento são diversas. Atualmente, o principal motivo para a conversão de florestas em áreas desmatadas é a abertura de novas áreas para culturas agrícolas, devido à demanda por comida, ao interesse por determinadas terras férteis e também aos conflitos ligados a direitos de propriedades rurais. Além disso, a ocupação antrópica com finalidades de assentamento humano, construção de infraestrutura e mineração também provoca o desmatamento (FAO, 2010, p. 3). A degradação florestal também pode ser provocada por diferentes razões e, dependendo de sua gravidade, pode induzir um processo de desmatamento. Mais uma vez, a ação antrópica é a principal dessas causas, incluindo (i) a exploração exarcebada das florestas por meio, por exemplo, do corte de madeira erroneamente praticado e; (ii) incêndios reincidentes. Causas naturais, como pestes e doenças, também podem causar a degradação florestal. A redução de áreas florestais por desmatamento e degradação florestal provoca conseqüências graves, como (i) a diminuição de diversidade biológica; (ii) a perda de recursos (madeireiros e não-madeireiros); (iii) a desestabilização dos serviços ambientais (conservação do solo e dos recursos hídricos, por exemplo) e; (iv) o aumento das emissões de carbono na atmosfera, provocado pela perda da capacidade de armazenar e seqüestrar carbono, e também porque há a soltura de GEE na atmosfera devido à queima das florestas (FAO, 2010, p. 4)9. Admite-se que as funções florestais sejam, principalmente (i) conservação da biodiversidade; (ii) regulação dos ciclos hidrológicos; (iii) abrigo para a fauna; (iv) proteção dos solos e dos recursos hídricos; (v) produtos madeireiros e não-madeireiros e; (vi) conservação dos modos de vida das populações indígenas e tradicionais e do patrimônio e dos valores histórico e cultural (FAO, 2010). Além disso, entre os serviços ambientais prestados pelas florestas, há aqueles que estão relacionados ao ciclo do carbono e à capacidade da “floresta em pé” de contribuir para a estabilização do clima e a desaceleração de sua mudança. O incentivo econômico para promover a conservação das florestas e a redução das emissões de carbono está cada vez mais relacionado, uma vez que hoje O texto ressalta a importância dos recursos florestais “tanto para o desenvolvimento como para preservação do meio ambiente global”, por sua potencialidade de geração de empregos, amenização da pobreza e fornecimento de produtos valiosos. 5 Para informações sobre os ODM, acessar < http://www.un.org/millenniumgoals/>. Acesso em 02maio 2010. 6 Disponível em <www.fao.org/forestry/14717-1-0.pdf>. Acesso em 01nov. 2010. 7 Florestamento: é a conversão diretamente induzida pelo homem de terreno que não foi floresta por um período de pelo menos pelo menos 50 anos para floresta, através da plantação, semeadura, ou promoção induzida pelo homem de fontes naturais de sementes. Reflorestamento: é a conversão diretamente induzida pelo homem de terreno não florestal para terreno florestal da plantação, semeadura, ou promoção induzida pelo homem de fontes naturais de sementes, em terreno que foi floresta, mas que foi convertido para não floresta. 8 Tradução da autora. Original disponível em <http://www.un.org/esa/forests/pdf/session_documents/unff7/UNFF7_NLBI_draft.pdf>. Acesso em 03fev. 2010. 9 A título de exemplo do impacto dos efeitos do desmatamento na biodiversidade, a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), um dos documentos resultantes da Rio-92, estima que a aceleração do desmatamento e a conversão das florestas para outros usos tem forte impacto na biodiversidade mundial e contribui para a redução do número de espécies em cerca de 30% ou mais, retalhando, por exemplo os corredores ecológicos utilizados por diversas espécies para migração e deslocamento (UNITED NATIONS, 1992b). 4 65 é reconhecido que o desmatamento é uma das principais causas para o aquecimento global. O Banco Mundial aponta que 1,6 bilhões de pessoas no mundo dependem, em algum nível, das florestas para a sua sobrevivência (UNEP; FAO; UNFF apud WORLD BANK, 2009, p. 14). Mudanças climáticas e o setor florestal Entre as suas várias funções, as florestas desempenham papel fundamental no contexto climático mundial. Se mantidas em pé e conservadas, elas preservam sua capacidade de capturar e armazenar carbono; se sofrem desmatamento e degradação florestal, há emissão de gás carbônico provocada pela queima ou por sua debilidade em capturar este gás, contribuindo para o aumento de GEE na atmosfera. Sabe-se que atualmente 18% das emissões globais de GEE são provenientes do desmatamento e da mudança do uso do solo (IPCC, 2007, p. 36). A principal iniciativa da ONU, que disciplina a questão climática, é a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (CQNUMC10). Assinada em 1992, durante a Rio 92, entrou em vigor em 1994. Desde 1995 são realizadas anualmente as Conferências das Partes (COP) para discutir os progressos e entraves dos objetivos da Convenção. A CQNUMC dividiu as suas Partes signatárias em dois grupos: países do Anexo I e países não pertencentes ao Anexo I. Segundo o texto (UNITED NATIONS, 1992c, Artigo 4.2), os países listados no Anexo I, isto é, nações desenvolvidas e em transição para uma economia mercado, comprometem-se a, entre outras atividades, a adotar políticas nacionais e medidas de mitigação da mudança do clima por meio do estabelecimento de limites para a emissão de GEE, individualmente ou em cooperação com outras Partes. Para os países não Anexo I – em desenvolvimento – ficou definido que devem implantar programas nacionais de mitigação e elaborar seus respectivos inventários nacionais de emissões de carbono. O Protocolo de Quioto11 é o mais importante instrumento da CQNUMC. Formulado em 1997 durante a COP-3, entrou em vigor em julho de 2001 e estabelece para os países desenvolvidos (Anexo I) metas e compromissos relativos à redução das emissões de GEE (UNFCCC, 1997, Artigo 25.1) em pelo menos 5% no primeiro período de compromisso – 2008 e 2012–, em comparação com níveis verificados no ano de 1990 (UNFCCC, 1997, Artigo 3.1). Para que as Partes da Convenção atinjam suas metas de redução de emissões de GEE até 2012, o Protocolo de Quioto estabeleceu os chamados mecanismos de flexibilização, permitindo aos países alcançarem parcela de suas metas por meio de transações de créditos de carbono relacionadas a ações realizadas fora de seu território12. Um deles, o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), foi pensado para estimular a redução de emissões de uma forma economicamente viável para os países do Anexo I que não conseguem alcançar domesticamente sua meta de redução de emissões de GEE. Eles passam a poder recorrer à compra de créditos de carbono derivadas de projetos locais realizados em países em desenvolvimento, desde que seus projetos contribuam para redução ou captura de emissões de GEE nestes locais e assim também impulsionem um desenvolvimento sustentável. Um dos tipos de projetos aceitos são as ações de florestamento e reflorestamento em áreas degradadas (incluído nas iniciativas de MDL durante a COP-7, realizada em 2001, por meio do Acordo de Marraquesh) (UNFCCC), de forma restrita ao mercado obrigatório de carbono13 (LAMY; MERTENS; MOUTINHO, S/d, p. 6). As emissões evitadas de desmatamento foram excluídas da regulamentação do MDL (mecanismo baseado em projetos) principalmente por que haveria “risco de vazamento ou leakage (emissões evitadas em um determinado lugar acabam ocorrendo em outro)” Além disso, poderia haver a “super oferta de créditos, o que jogaria o preço do crédito de carbono para baixo” (MONZONI, 2009). Paralelamente ao mercado obrigatório de carbono, existe um mercado voluntário. Este é aplicado nas negociações de créditos de carbono realizadas por (i) empresas que não possuem metas atreladas ao Protocolo de Quioto e, por isso, são consideradas ações voluntárias e; (ii) governos locais que, por iniciativa própria, resolveram reduzir suas emissões. O mercado voluntário possui participação de 3% no cenário global de carbono. A redução de emissões de carbono causadas pelo desmatamento e pela degradação florestal em países em desenvolvimento (REDD) foi criada como iniciativa nãooficial e paralela às negociações no âmbito do Protocolo de Quioto, colocando-se em alguns mercados voluntários de crédito de carbono, como o Chicago Exchange e o Voluntary Carbon. United Nations Framework Convention on Climate Change (UNFCCC, sigla em inglês). Informações disponíveis no site <http://unfccc.int>. Versão em português disponível em <http://www.mct.gov. br/index.php/content/view/4069.html>. Acesso em 23jul. 2010. 11 O Protocolo de Quioto pode ser lido na íntegra nos seguintes sites: <http://www.onu-brasil.org.br/doc_quioto.php>, para o texto em português, e <http://unfccc.int/resource/docs/convkp/kpeng.pdf>, para o texto em inglês. Acesso em 04jun. 2010. 12 São três os principais mecanismos de flexibilização: Emission trading, Joint implementation e Clean Development Mechanism (CDM, sigla em inglês, ou Mecanismo de Desenvolvimento Limpo – MDL), definido no Artigo 12 do Protocolo. Para as negociações entre países do Anexo I, podem ser aplicados o ET ou o JI. 13 Decisão 11/CP.7, elaborada na COP-7 em 2001 na cidade de Marraquesh. Disponível em <http://unfccc.int/methods_and_science/lulucf/items/3063.php>. Acesso em 13set. 2010. 10 66 Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. Histórico das negociações dos mecanismos de REDD A criação de um mecanismo de incentivo à redução de emissões provenientes de desmatamento em países em desenvolvimento foi discutida, pela primeira vez, em 2005, durante a COP-11 realizada em Montreal, no Canadá. Encabeçada pelos países Papua Nova Guiné e Costa Rica14 e motivada pelo aumento do desmatamento mundial, a proposta foi apoiada por um grupo de países, entre eles o Brasil. À época, o mecanismo restringiu-se à redução de emissões provenientes somente do desmatamento, sendo chamada assim de REDD. Para dar andamento à proposta resultante da COP11, os países interessados na iniciativa comprometeramse a elaborar contribuições nacionais relativas ao funcionamento do REDD e apresentá-las nos próximos dois anos. Desde então, o Órgão Subsidiário de Assessoramento Científico e Tecnológico da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (SBSTA, sigla em inglês15) encarregou-se pela compilação dos documentos apresentados neste período. Na COP-12, realizada em 2006 no Quênia, o aspecto da degradação florestal foi incorporado à questão de RED, principalmente para contemplar a realidade dos países africanos, que usualmente realizam mais corte raso de árvores do que a retirada total da vegetação original16. Assim um novo “D” foi incorporado à sigla, tornando-se esta “REDD”. No ano seguinte, foi estabelecido o Plano de Ação de Bali17. Por meio deste documento, foi estabelecido que medidas nacionais e internacionais deveriam ser tomadas visando, entre outras ações, a Criação de políticas e incentivos positivos com relação a questões referentes à redução de emissões provenientes do desflorestamento e da degradação florestal nos países em desenvolvimento; e o papel da conservação, do manejo sustentável das florestas e do aumento dos estoques de carbono das florestas nos países em desenvolvimento18 (UNFCCC, 2007a). [Tradução da autora] Com o intuito de especificar a questão relativa à REDD, foi desenvolvido um outro documento – a Decisão 2/CP.1319 – que reuniu as resoluções a respeito do tema. Denominada “Reducing emissions from deforestation in developing countries: approaches to stimulate action”, esta Decisão reconhece (i) a contribuição das emissões provenientes do desmatamento e da degradação florestal para as emissões antrópicas de Gases de Efeito Estufa; (ii) a degradação florestal como fator gerador de emissões; (iii) a realização de ações já em andamento que objetivam a redução do desmatamento e a promoção da manutenção e conservação de estoques de carbono florestais em países em desenvolvimento; (iv) a necessidade da disponibilidade de recursos previsíveis e constantes para financiar as ações de combate ao desmatamento e à degradação florestal; (v) que as necessidades das comunidades locais e indígenas devem ser consideradas no desenvolvimento de projetos REDD; entre outros. Com base nestes reconhecimentos, a Conferência convidou, por meio da mesma decisão, as Partes da Convenção a (i) intensificarem os esforços para reduzir as emissões provenientes do desmatamento e da degradação florestal de forma voluntária; (ii) apoiarem – se assim o puderem – a capacitação e assistência técnica, facilitarem a transferência de tecnologia especialmente nos campos do monitoramento e reporting das emissões derivadas do desmatamento e da degradação florestal; (iii) analisarem possibilidades de ações e empreenderem esforços para lidar com os vetores do desmatamento em âmbito nacional; (iv) mobilizarem recursos para apoiar os esforços de redução das emissões derivadas do desmatamento e da degradação florestal; utilizarem as diretrizes de relato mais recentes; (vi) solicitarem ao SBSTA um programa de trabalho sobre questões metodológicas; entre outros (UNFCCC, 2007b). É importante notar que os aspectos de conservação, manejo sustentável e aumento dos estoques de carbono das florestas são incluídos nestas decisões, o que significa mais um avanço em relação à amplitude que os projetos de REDD podem potencialmente atingir. Desta forma, a sigla REDD tornou-se REDDplus, ou REDD+20. Depois desta série de resoluções firmadas desde a COP-13, as partes da CQNUMC desenvolveram intenso trabalho de reflexão e elaboração de propostas e encaminhamentos até a COP-1521. Estes dois países fazem parte e tiveram o apoio da Coalizão das Nações com Florestas Tropicais, organização intergovernamental que reúne diversos países em desenvolvimento com florestas tropicais. Informações disponíveis em < http://www.rainforestcoalition.org/eng/>. Acesso em 11out. 2010. 15 Além do Subsidiary Body for Scientific and Technological Advice, órgão dedicado aos assuntos científicos e tecnológicos da CQNUMC, existe o Subsidiary Body for Implementation (SBI, criado para auxiliar na avaliação e cumprimento das decisões da Convenção. 16 Informação disponível em <http://planetasustentavel.abril.com.br/noticia/ambiente/redd-desmatamento-degradacao-preservacao-floresta-531760.shtml>. Acesso em 02out. 2010. Existe uma diferença entre a perda de estoque de carbono ocorrida por desmatamento em uma floresta intacta e uma floresta já ambientalmente degradada. Esta última floresta, por sua degradação, possui menos carbono armazenado. 17 O Plano de Ação ou Mapa do Caminho de Bali foi a principal decisão da COP-13 (2007). O documento objetivou intensificar o ritmo de implementação da CQNUMC, principalmente por causa dos resultados apresentados pelo IPCC em seu Quarto Relatório de Avaliação (disponível em <http://www.ipcc.ch/publications_and_data/ar4/syr/en/contents.html>). O documento definiu temas que deveriam ser discutidos e acordadas até a COP-15. O Mapa do Caminho de Bali na íntegra está disponível em <http://unfccc.int/resource/docs/2007/cop13/eng/06a01.pdf>. Acesso em 12jul. 2010. 18 Disponível em disponível em <unfccc.int/resource/docs/2007/cop13/eng/06a01.pdf>. Acesso em 12jul.2010. 19 Disponível em <http://unfccc.int/resource/docs/2007/cop13/eng/06a01.pdf>. Acesso em 10out. 2010. 20 Hoje, algumas instituições já discutem a “versão REDD++”, que pressupõe a inclusão de atividades de florestamento e reflorestamento. Entretanto, como a discussão é bastante preliminar, esse ponto não será abordado neste trabalho. 21 Informações completas sobre as reuniões e decisões da COP-15 estão disponíveis no endereço eletrônico <http://unfccc.int/meetings/cop_15/items/5257.php>. Acesso em 09out. 2010. 14 67 As resoluções pactuadas entre as Partes durante a COP-15 no que diz respeito especificamente a REDD+ (Sessão 6) foram apresentadas no Acordo de Copenhague22. Nele, há o reconhecimento do papel crucial das reduções de emissões derivadas do desmatamento e da degradação florestal, e ainda a necessidade de reforçar as remoções de GEE pelas florestas. Além disso, o texto afirma a necessidade de incentivos positivos para as ações de redução de desmatamento e degradação florestal e a inclusão imediata de ações de conservação e manejo de florestas (REDD+), de forma a mobilizar capital financeiro nos países desenvolvidos (UNFCCC, 2009a). O financiamento para que países em desenvolvimento realizem ações de REDD+ também está previsto no Acordo de Copenhague (Sessão 8, junto com ações de mitigação, adaptação, desenvolvimento e transferência de tecnologia e construção de capacidades). Para tanto, os países desenvolvidos devem reforçar seus compromissos de prover novos e adicionais recursos – o Copenhagen Green Climate Fund, alcançando a somatória de US$ 30 bilhões para o período entre 2010 e 2012, e a mobilização de US$ 100 bilhões até 2020 para encaminhar projetos, programas, políticas e outras atividades em países em desenvolvimento. Assim, apesar de não ter sido estabelecido um acordo legalmente vinculante ao final da COP-15, as discussões sobre REDD+ avançaram de forma expressiva no que diz respeito à inclusão no mecanismo de ações de conservação e manejo florestal. Em documento não consensuado, produzido ao final da conferência23, iniciativas de REDD+ foram contempladas (as resoluções foram negociadas por todos os países, mas não houve acordo por consenso, sendo finalizado, assim, uma “draft decision”). O texto diz que os países em desenvolvimento devem contribuir por meio de ações de mitigação no setor florestal que envolve as seguintes atividades: (i) redução de emissões oriundas de desmatamento; (ii) redução de emissões oriundas de degradação florestal; (iii) conservação de estoques de carbono florestal; (iv) manejo sustentável de florestas e; (v) intensificação dos estoques de carbono florestal (UNFCCC, 2009c). É importante ressaltar que as iniciativas de REDD+, de acordo com a decisão, são voluntárias, devem ser implementadas conforme as capacidades de cada país e ser consistentes com as metas de desenvolvimento sustentável nacionais e com as respectivas necessidades de adaptação, promover o manejo sustentável das florestas e ser integradas às Ações de Mitigação Nacionalmente Apropriadas (NAMAS)24. Além disso, é pressuposto na implementação de ações de REDD+ a sua complementaridade em relação aos programas florestais nacionais, a governança florestal transparente e efetiva, o respeito pelos conhecimentos e direitos dos povos indígenas e tradicionais, a participação ampla das partes interessadas e a consistência das ações em relação à conservação da biodiversidade. Outro importante documento relacionado aos resultados da COP-15 diz respeito à questões metodológicas para atividades relacionadas à iniciativas de REDD+25. A decisão requisita junto aos países em desenvolvimento e que são Partes da CQNUMC a (i) identificar vetores do desmatamento e da degradação florestal e que resultam em emissões de GEE e os meios para encaminhá-los; (ii) identificar atividades nacionais que promoveram a redução de emissões e o aumento de remoções e estabilização de estoques de carbono florestal; (iii) utilizar os guias e diretrizes mais recentes do IPCC para estimar as emissões florestais antrópicas de GEE e; (iv) estabelecer, de acordo com a capacidade e circunstâncias nacionais, sistemas robustos e transparentes de monitoramento das áreas florestais nacionais. Impasses, perspectivas e desafios implementação de mecanismos de REDD para a As vantagens e oportunidades derivadas de ações de REDD vêm sendo apontadas de forma recorrente, e elas se resumem principalmente a: (i) combater o aquecimento global a um menor custo; (ii) promover incentivos à conservação da biodiversidade; (iii) garantir a proteção aos direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais que vivem e dependem das florestas, melhorando suas condições socioeconômicas e valorizando seu papel de agentes históricos que tem contribuído para a conservação da floresta em pé (IPAM). Entretanto, tão importante quanto os pontos positivos é a consideração dos principais desafios para a implementação de iniciativas de REDD. Eles são vinculados a dois aspectos principais: metodológicos e políticos (FARIA, 2010, p. 105, apud ALVARADO & WERTZ-KANOUNNIKOFF, 2007, p. 10). As questões metodológicas envolvem os seguintes pontos: adicionalidade, abrangência territorial, vazamento, linha de base, monitoramento e financiamento. O aspecto político está relacionado ao caráter complementar que O principal resultado da COP-15 foi o Acordo de Copenhague, documento não legalmente vinculante, cujas determinações incluíram, entre outros pontos, um acordo entre as partes a respeito da necessidade de realização de ações a fim de limitar o aumento da temperatura até em 2oC. Disponível em <http://unfccc.int/resource/docs/2009/cop15/eng/11a01.pdf#page=4>. Acesso em 05out. 2010. 23 Draft decision -/CP.15: Policy approaches and positive incentives on issues relating to reducing emissions from deforestation and forest degradation in developing countries; and the role of conservation, sustainable management of forests and enhancement of forest carbon stocks in developing countries. Disponível em <http://unfccc.int/resource/docs/2009/awglca8/eng/l07a06.pdf>. Acesso em 10out. 2010. 24 As NAMAS (da sigla em inglês Nationally Appropriate Mitigation Actions) são iniciativas direcionadas aos países em desenvolvimento, com o objetivo de intensificar as ações nacionais de mitigação e adaptação no contexto das mudanças climáticas. As NAMAS incluem iniciativas de REDD, e esta ação pode ser aplicada no Brasil, por exemplo, já que este país é florestal e a maior parte de suas emissões é derivada do desmatamento e mudança no uso do solo. Assim, se o Brasil adotar iniciativas de REDD, estará assumindo compromissos com a alteração do perfil de suas emissões de GEE “atacando” justamente a sua maior fonte doméstica emissora de GEE. 25 Recomendações do SBSTA – Draft decision [-/CP.15]: Methodological guidance for activities relating to reducing emissions from deforestation and forest degradation and the role of conservation, sustainable management of forests and enhancement of forest carbon stocks in developing countries. Disponível em <unfccc.int/resource/docs/2009/cop15/eng/l07.pdf>. Acesso em 03jan. 2011. 22 68 Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. as ações de REDD devem ter em relação aos esforços domésticos de redução de emissões no âmbito dos países em desenvolvimento, visando ao investimento em tecnologias limpas. Além destes dois pontos, é preciso destacar os aspectos sociais e de desenvolvimento que as iniciativas de REDD precisam considerar, principalmente no que diz respeito à participação dos atores locais na governança e na construção de políticas e projetos de REDD. No contexto dos projetos de REDD, a efetividade das ações e a remuneração a elas atreladas têm fundamento na diminuição dos fluxos de CO2 das florestas para a atmosfera, de forma a reduzir as emissões derivadas do desmatamento (FATHEUER, S/d apud UNION OF CONCERNED SCIENTISTS). Este ponto dialoga com a questão da adicionalidade que deve ser comprovada na elaboração, implementação e monitoramento das iniciativas de REDD, ou seja, “referese à necessidade de assegurar que projetos resultarão em reduções de emissões incrementais, que não teriam sido alcançadas na ausência do projeto” (FARIA, 2010, p. 112). Assim, se não há benefício adicional e relacionado à mitigação do aquecimento global no que diz respeito ao fluxo de carbono das florestas, não há razão para que esta medida seja incluída nas negociações de REDD (FATHEUER, S/d apud UNION OF CONCERNED SCIENTISTS). Outra questão está relacionada à abrangência territorial das ações de REDD. Isto significa questionar se somente ações nacionais serão validadas ou se iniciativas subnacionais também poderão fazer parte dos projetos. Um dos riscos relacionados a este fator diz respeito à “falta de articulação e sinergia entre projetos que sejam implementados de forma isolada e de políticas nacionais e internacionais para aplicar o mecanismo REDD+ com critérios padronizados” (IPAM). A eventual desarticulação pode acarretar principalmente um impacto com conseqüências diversas: o vazamento (ou “transferência do desmatamento”, ou leakage, em inglês) das emissões de carbono de uma região de um projeto de REDD para outra região sem projeto, dentro do território nacional ou o vazamento das emissões do país de um programa de REDD para outro país vizinho sem programa. Neste cenário, “o problema em questão é realocado, tanto no espaço quanto no tempo, não sendo resolvido” (FARIA, 2010, p. 114). A necessidade de estabelecimento de linhas de base com metodologia bem definida, que “podem ser baseadas em uma extrapolação estática de tendências de desmatamento passadas, ou em um modelo de projeções futuras de desmatamento”, são igualmente importantes. Também conhecidas como business as usual (BAU), as linhas de base “mostram as tendências de emissões que ocorreriam se nenhuma ação fosse tomada” (FARIA, 2010, 26 p. 111). Mais um desafio é o estabelecimento e a implementação de um sistema de monitoramento, relato e verificação (MRV) das emissões evitadas por meio de projetos de REDD. São três os pontos críticos para monitorar as reduções de emissões de carbono no setor florestal: (i) “as estimativas de mitigação variam significativamente de acordo com as características específicas do ecossistema natural”; (ii) “há incerteza sobre a absorção de carbono em florestas maduras e como esta pode ser alterada pelas mudanças climáticas” e; (iii) “o desmatamento e a degradação podem ocorrer a qualquer momento no tempo (devido a fenômenos naturais ou à atividade humana), revertendo a redução das emissões de carbono através da liberação para a atmosfera dos GEE que foram removidos e estocados anteriormente” (FARIA, 2010, p. 113). Este terceiro fenômeno é conhecido como o risco de não-permanência”. Outra questão pendente para que a negociação sobre REDD avance é a definição do financiamento. Estão na pauta de negociações atuais duas alternativas: financiamento baseado em mercado ou financiamento baseado em fundos (VIANA, 2009). Se os mecanismos de REDD puderem, futuramente, gerar créditos de carbono no âmbito dos compromissos do Protocolo de Quioto, limites para a compra dos mesmos por parte dos Países Anexo I deveriam ser criados, a fim de que estes sejam forçados a implementar medidas nacionais de redução de emissão de GEE. O financiamento formatado com base no modelo de fundos pode impulsionar, por parte dos Países Anexo I, suporte financeiro aos países em desenvolvimento para que estes possam executar suas Ações Nacionalmente Apropriadas (NAMAS), transformando o seu modelo de desenvolvimento. Por outro lado, mercados obrigatórios são preferidos porque garantiriam fluxos de financiamento de longo prazo, contínuos e previsíveis, em contraste com o financiamento voluntário. No âmbito do aspecto político, muitos acreditam que o apoio às iniciativas de REDD como mecanismo global de mercado deve ocorrer de acordo com duas cláusulas principais: “limites na proporção de offset26 para os países desenvolvidos e limite de absorção individual de créditos para os grandes países florestais, como o Brasil” (GOLDEMBERG, 2010, p. 23). Estas medidas visam estimular o desenvolvimento e a implementação de tecnologias limpas nos países em desenvolvimento. As questões sociais e de desenvolvimento atreladas à implementação de ações de REDD podem implicar em impactos positivos e negativos, dependendo do modo como são implementados (um dos impactos negativos pode se dar no âmbito da governança florestal, com ações de corrupção, por exemplo). De qualquer maneira, os maiores desafios dizem respeito às seguintes questões: Quais são as Créditos comprados para atingir a reduções de emissões que não puderam ser alcançadas internamente. 69 questões sociais e de desenvolvimento a serem incluídas? Quais grupos incluir? Como incluir os direitos mais substantivos dos atores envolvidos, tais como direito a terra e direitos de acesso a recursos florestais? Como o processo de verificação pode ser estruturado? Quais instituições estão aptas a implementar sistemas de MRV para questões sociais e de desenvolvimento (REDD-net, 2010)? Complementarmente às questões supracitadas, existe a “falta de garantia da participação dos povos indígenas e comunidades tradicionais na construção de política e projetos de REDD+”. Este ponto está intrinsecamente atrelado à questão da governança de implementação e gestão de projetos de REDD. As florestas são vulneráveis às ações ilegais (comércio ilegal, crimes, corrupção e conflitos) e ao desmatamento, uma vez que possuem fraca governança e políticas ineficazes de planejamento, de uso e de conservação. O destino das florestas mundiais e dos direitos de quem nelas vive depende de efetiva governança e de processos participativos, o que inclui negociar com atores públicos e privados e reforçar instituições, leis e políticas florestais (UNEP; FAO; UNFF apud Rametsteiner, 2009, p. 58). Conforme visto, a implementação de mecanismos de REDD é política e tecnicamente complexa. São várias as questões ainda pendentes de resolução e que seguem sob debate no âmbito dos encontros da CQNUMC e das iniciativas paralelas para alcançar um acordo que determinará a incorporação ou não das iniciativas no segundo período de compromisso do Protocolo de Quioto27. Contribuição das iniciativas de REDD para o desenvolvimento sustentável As alterações climáticas serão um dos fatores que irão definir as perspectivas de desenvolvimento humano28 durante o século XXI. Através do seu impacto na ecologia, precipitação, temperatura e sistemas climáticos, o aquecimento global afetará diretamente todos os países (PNUD, 2007, p. 24 e 31). A implementação de projetos de REDD pode significar, potencialmente, múltiplos impactos e benefícios. Os pontos de impasse e desafios que estiveram em discussão até o presente, principalmente durante a COP-15, indicam que as partes envolvidas nas negociações dos mecanismos de REDD estão buscando uma configuração que contemple três principais dimensões: a sustentabilidade ambiental, social e econômica. No que diz respeito à dimensão ambiental, as resoluções caminham para mecanismos que façam parte, em primeiro lugar, dos esforços globais de redução das emissões de GEE, mitigando os efeitos do aquecimento global, mas que também sejam instrumentos voltados para a proteção da biodiversidade e a melhoria da governança florestal. A dimensão social é igualmente importante na medida em que viabiliza a permanência das comunidades dependentes das florestas em seus territórios, garantindo direitos a terra e aos recursos locais. Ao mesmo tempo, esta dimensão proporciona a preservação das características culturais e de organização social das populações locais, contribuindo para a preservação do patrimônio histórico e cultural da humanidade. Por fim, a dimensão econômica pode implicar na geração de renda para as comunidades envolvidas na conservação florestal, viabilizada por meio de projetos de REDD, uma vez que, com os direitos à terra e aos recursos naturais locais garantidos, as populações conseguem desempenhar suas atividades econômicas, tais como o extrativismo e o manejo sustentável. Adicionalmente, a eventual repartição dos valores oriundos dos créditos de carbono gerados via projetos de REDD pode significar uma renda adicional aos habitantes das áreas em questão. Assim, a geração de renda contribui para a redução da pobreza, um dos outros “co-benefícios” decorrentes da implementação de mecanismos de REDD (CIFOR, S/d., p. 7). Tendo em vista essas dimensões, mostra-se evidente a intrínseca relação entre os múltiplos benefícios decorrentes das iniciativas de REDD e o desenvolvimento sustentável. A conservação e a redução do desmatamento e da degradação florestal contribuem diretamente para o cumprimento de dois compromissos, e suas respectivas metas, assumidos por grande parte dos países do mundo: a Convenção sobre Diversidade Biológica e a ConvençãoQuadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. Da mesma forma, as medidas de REDD constituem-se como uma das estratégias de implementação e viabilização de um dos pontos abordados pela Agenda 21, voltado ao combate ao desmatamento. À época da elaboração da Agenda, “o papel das florestas como sorvedouros e reservatórios nacionais de gás carbônico” (UNITED NATIONS, 1992a, cap. 11) já era reconhecido, ao lado de seus múltiplos papéis, funções e recursos. Estes são apontados como essenciais ao desenvolvimento – pois implicam na geração de empregos e na diminuição da pobreza - e à preservação do meio ambiente global (UNITED NATIONS, 1992a, cap. 11). Conclusão A definição da estrutura de funcionamento de mecanismos de REDD e as conseqüentes iniciativas de implementação são consideradas ações de alta relevância no contexto global, principalmente sob a perspectiva de determinados aspectos. 27 Uma referência para aprofundamento nos desafios da implementação do mecanismo de REDD+ é a seguinte: Realising REDD+: national strategy and policy options. CIFOR. Edited by Arild Angelsen. 2009. Disponível em < http://www.cifor.cgiar.org/>. Acesso em 13out. 2010. 28 De acordo com RDH 2007-2008, “O desenvolvimento humano diz respeito às pessoas. Diz respeito ao alargamento do seu leque de escolhas e das suas liberdades essenciais – o seu potencial humano – de modo que lhes seja permitido viver uma vida que valorizem. Para o desenvolvimento humano, o poder de escolha e a liberdade significam mais do que uma mera ausência de restrições“ (PNUD, 2007, p. 24). 70 Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. O primeiro deles está relacionado diretamente aos propósitos iniciais da elaboração dos projetos de REDD, ou seja, a busca por mecanismos e ferramentas para mitigar os efeitos das mudanças climáticas e reduzir as emissões de Gases de Efeito Estufa na atmosfera. No que tange ao setor florestal, uma série de pesquisas vem alertando para a importância da conservação e uso sustentável das florestas e ressaltam o papel do ciclo de carbono (do qual as florestas fazem parte) para o equilíbrio climático global. Conforme apresentado, as florestas em pé possuem a propriedade de captura e o armazenamento de CO2, o que mitiga a emissão deste gás para a atmosfera e contribui para a redução do fenômeno de aquecimento global. O segundo aspecto remete ao desmatamento e à degradação florestal e dialoga diretamente com a propriedade das florestas mencionada acima. O desmatamento e a degradação florestal provocam emissões de GEE na atmosfera, contribuindo intensamente para a totalidade de gases que provocam a mudança do clima. Além disso, as duas atividades possuem implicações no que diz respeito à conservação da biodiversidade, das diversas propriedades e serviços ambientais intrínsecos às florestas e das populações que nelas vivem e que delas dependem. Assim, verifica-se um duplo benefício obtido por meio da implementação de iniciativas de REDD – a contribuição para a redução de emissões de GEE na atmosfera e a conservação da biodiversidade, por meio da contenção do desmatamento e da degradação florestal – e múltiplos benefícios adjacentes que, em seu conjunto, contribuem de forma significativa para o desenvolvimento sustentável. As decisões acordadas durante a COP-13, realizada em 2007, impulsionaram a inclusão dos mecanismos de REDD nas futuras negociações no âmbito da ConvençãoQuadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. De fato, os principais avanços vieram nos anos seguintes, especialmente em 2009, no período que antecedeu à COP15 e ao longo da própria Conferência. Entretanto, alguns entraves sobre funcionamento dos mecanismos ainda precisam ser resolvidos. Eles estão ligados a questões como financiamento, verificação e monitoramento dos créditos de carbono gerados, governança, comprovação de adicionalidade, abrangência territorial, entre outros. Há uma tendência de que esses entraves sejam resolvidos nos próximos anos, uma vez que a definição de instrumentos de mitigação das emissões de GEE vinculados ao setor florestal - a exemplo das iniciativas de REDD – é considerada fundamental, inclusive nos cenários mais otimistas de efeitos das mudanças climáticas globais. Abstract: This article intends to discuss the challenges facing the contemporary discussion on the adoption of mechanisms for Reducing Emissions from Deforestation and Forest Degradation (REDD), through an analysis of the context of its appearance and the real prospect of its adoption. REDD mechanisms have emerged as a key instrument for mitigating the harmful consequences caused by climate change across the planet. The bibliography was gathered mainly from online documents, taken from official websites and primary sources. We conclude that REDD initiatives can result in a double benefit, which contributes significantly to sustainable development, mitigating the effects of emissions of greenhouse gases in the atmosphere and the conservation and sustainable use of forest resources through the containment of deforestation and forest degradation. Key words: Environment, Sustainable Development and Global Questions. Climate. Change. Deforestation emissions. Forests. Deforestation. Forest Degradation. Forest Conservation. Bibliografia ALVARADO, L. X. R.; Wertz-Kanounnikoff, S. Why are we seeing “REDD”? An analysis of the international debate on reducing emissions from deforestation and degradation in developing countries. Analyses N° 02/2007 - Natural Resources. Disponível em <www.iddri.org.br>. Acesso em 03jan. 2011. CIFOR. Simplesmente REDD: Guia do CIFOR sobre Florestas, Mudanças Climáticas e REDD. S/d. Disponível em <http://www.cifor.cgiar.org>. Acesso em 07jan. 2011. FARIA, C. O. As florestas nas negociações internacionais sobre mudanças climáticas: estado da arte e perspectivas. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Planejamento Energético, COPPE, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. 2010. Disponível em <www.ppe.ufrj.br/ppe/production/tesis/faria_oliveira.pdf>. Acesso em 03jan. 2011. FATHEUER, T. REDD: algumas questões conceituais. S/d. Disponível em <www.boell-latinoamerica.org/downloads/ Texto_REDD_Th-Fatheuer.doc>. 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Resumo: Estimativas recentes revelam que a biodiversidade da Amazônia pode corresponder a metade da existente no planeta, riqueza que salvaguarda uma série de serviços ambientais e processos biológicos vitais. A síntese das determinações enunciadas na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) apresenta a ampliação do debate sobre florestas e a perspectiva de geração de um instrumento de Redução de Emissões por Desflorestamento e Degradação Florestal (REDD), dentro da UNFCCC, que recompense economicamente os países com grandes áreas de florestas preservadas. Enquanto as negociações sobre REDD são discutidas entre as partes, várias iniciativas de implantação de projetos voluntários sub-nacionais estão se difundindo pelo mundo, gerando benefícios climáticos, ambientais e sociais, bem como servindo de aprendizado para outros potenciais projetos decorrente de um futuro acordo internacional. Este artigo teve como objetivo trazer a temática das florestas dentro e fora do espaço das negociações internacionais sobre mudanças climáticas e seus potenciais benefícios para a biodiversidade e para as comunidades da Floresta Amazônica à luz do Projeto da RDS do Juma, localizado no município de Aripuanã, Amazonas. O trabalho conclui que a implementação de projetos voluntários de REDD pode ser uma ferramenta eficaz para a preservação da biodiversidade e da dignidade dos povos da Amazônia. Não obstante, deve-se buscar um acordo internacional que suceda o Protocolo de Quioto, o qual viabilize a operacionalização de um esquema de REDD em escala nacional de forma equitativa e que favoreça a integralidade dos benefícios proporcionados pela proteção das florestas. Palavras-Chaves: Meio Ambiente. REDD. Desflorestamento. Degradação florestal. Projeto Juma. Biodiversidade. Comunidades locais. Introdução Neste último século, a humanidade experimentou um crescimento exponencial da população global, acompanhado de um boom econômico decorrente da exploração exaustiva dos recursos naturais do planeta. Hoje, os impactos resultantes de décadas de exploração energética baseada na queima de combustíveis fósseis estão colocando em risco o futuro da do homem, já que tais atividades antrópicas emissoras de Gases de Efeito Estufa (GEEs) ampliam a capacidade de absorção de energia da atmosfera e acentuam o fenômeno do Efeito Estufa, mecanismo responsável pelo aquecimento global que se evidencia atualmente. Estudos mostram que apesar da queima de combustíveis fósseis ser a principal causa da intensificação do Efeito Estufa, as emissões decorrentes de desflorestamento, degradação florestal e outras mudanças no uso da terra contribuem aproximadamente com 17% das emissões globais anuais de GEEs e 28% das emissões globais de dióxido de carbono (CO2) (IPCC, 2000, 2007; UNFCCC, 2009, 2011). O histórico das decisões proferidas no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) assinala que o debate sobre as florestas vem se ampliando, focando-se cada vez mais no combate ao desmatamento dos países em desenvolvimento. Fundamentada no conceito de Pagamentos por Serviços Ambientais, há a tendência de elaboração de um mecanismo de Redução de Emissões por Desflorestamento e Degradação Florestal (REDD), em comum acordo entre as Nações, que recompense economicamente os países com grandes áreas de florestas preservadas. Enquanto as negociações sobre REDD com o fim de estabelecer um protocolo dentro da UNFCCC são discutidas entre as partes, várias iniciativas de implantação de projetos voluntários sub-nacionais - como 73 o da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Juma – difundem-se pelo mundo e geram benefícios sócio-climático-ambiental diretos, bem como servem de aprendizado para potenciais projetos sobrevindos de um futuro acordo internacional. O valor intrínseco das florestas As florestas desempenham uma insubstituível função na regulação do clima da Terra, fato esse que se deve por elas serem responsáveis por cerca de metade do reservatório de carbono terrestre. Somente a Floresta Amazônica - representando 21% da área de florestas tropicais - corresponde a 11% do estoque terrestre de carbono do mundo. Este quadro aponta para a importância da abordagem de combate ao desflorestamento e à degradação florestal para a mitigação das alterações climáticas (UNFCCC, 2009). O Food and Agriculture Organization (FAO) define o desflorestamento como: “A conversão de floresta para outro uso da terra ou a redução a longo prazo da copa/ cobertura abaixo do limiar mínimo de 10%”(FAO, 2007, p. 8). Se o teto arbóreo é reduzido abaixo deste limiar, o desmatamento é caracterizado. Visando uma harmonização conceitual e sintetizando definições controversas podese caracterizar a degradação florestal como a redução da cobertura do dossel e/ou estocagem de floresta - através da exploração madeireira, fogo, extração de lenha para uso combustível, além de outros eventos – até o limite de 90% (limite de caracterização de uma floresta). Entendese, assim, que até 90% de uma floresta pode ser desmatada antes dela ser considerada desmatada (FAO, 2009) Fonte: INPE, 2010. Figura 11 (foto) Padrões de degradação florestal por extração de madeira observados em imagens realçadas. A) Degradação de intensidade moderada, área em regeneração após exploração madeireira, pátios ainda evidentes; B) Degradação de intensidade alta, exploração madeireira ativa, grande proporção de solo exposto; C) Degradação de intensidade leve, evidência de abertura de estradas de acesso. A degradação das florestas e dos solos são problemas graves, particularmente nos países em desenvolvimento. Em 2000, a área total de florestas degradadas e terras florestais em 77 países tropicais foi estimada em cerca de 800 milhões de hectares. A deterioração da floresta é uma das principais fontes de GEEs, apesar de sua importância não ter sido estimada em escala global. Em algumas regiões as emissões provenientes deste processo são tão, ou mais, importantes do que as de desmatamento (FAO, 2009 p.7). Não somente em sua inestimável função climática, 74 contudo, reside a importância das florestas. Além de prestarem diversos serviços ecológicos as florestas tropicais também abrigam a maior riqueza em espécies do planeta e sua manutenção propicia o benefício adicional de preservar o habitat de diversas comunidades biológicas do planeta. Cobrindo apenas 7% da área de solo da Terra elas abrigam incríveis 70% das espécies terrestres e, igualmente, grandes proporções de espécies endêmicas. A maior parte dos desmatamentos ocorre em florestas tropicais de alta biodiversidade, como as que existem no Brasil, e a redução Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. daqueles vai além do combate às mudanças climáticas, mas redundam em menor perda de habitat para centenas de milhares de espécies (UNFCCC, 2006). Por fim, os recursos florestais, alem de prover serviços ambientais e produtos valiosos para o homem, sustentam diretamente os meios de vida de 90% da 1,2 bilhões de pessoas que vivem em extrema pobreza. As comunidades locais dependem das florestas como fonte de combustível, alimento, medicamento e abrigo. A pobreza e a pressão populacional podem levar à perda inexorável da cobertura florestal, mantendo as pessoas presas em um ciclo perpétuo de miséria, comprometendo seu combate (GCP, 2009, p. 12). A evolução do REDD no âmbito da UNFCCC Apesar da incontestável importância dentro da vigente crise ambiental, as atividades relacionadas ao uso da terra ou a mudança em seu uso (Land Use, Land Use Change and Forestry – LULUCF) - nas quais as ações florestais estão inseridas - passam por um difícil processo de discussão e consenso no âmbito internacional das negociações climáticas. A crescente preocupação acerca dos problemas provenientes do aquecimento global gerou um processo de negociação internacional, objetivando estabilizar as concentrações de GEEs na atmosfera em nível que reduziria o risco da influência antrópica no sistema climático. As negociações, a princípio, direcionaram-se ao estabelecimento de metas diferenciadas entre as nações que historicamente mais contribuíram para a questão metas que foram consolidadas no Protocolo de Quioto em 1997. Este, apesar de firmar que determinadas atividades florestais devessem atender ao compromisso de redução de emissões de GEEs, não fez nenhuma referência explícita às atividades de LULUCF, no que diz respeito ao Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) - um dos três mecanismos oferecidos pelo Protocolo como opção de mitigação. Em 2001 o Acordo de Marrakesch estabeleceu que, no âmbito do MDL, os créditos de carbono poderiam ser adquiridos via projetos de remoção de GEEs por sumidouros, limitados, entretanto, a projetos de aflorestamento e reflorestamento. Conforme definido no próprio acordo, aflorestamento refere-se à conversão direta - induzida pelo homem - de terra que não foi florestada por um período de pelo menos 50 anos em terra florestada. Reflorestamento, por sua vez, relaciona-se à conversão diretamente induzida pelo homem de terra não-florestada, mas que em momento anterior já fora florestada, em terra florestada. Posteriormente, em 2003, foram definidas as regras para a inclusão destas atividades no MDL (UNFCCC, 2010). Somente em 2005, na COP-11 em Montreal, a partir de uma proposta elaborada pela Papua Nova Guiné, as florestas passaram a receber maior atenção nas deliberações sobre alterações climáticas devido ao seu papel estratégico fundamental de mitigação. A idéia básica apresentada por trás do conceito de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação (REDD) é a de que os países que estão dispostos e possuem condições de reduzir as emissões por desmatamento deveriam ser recompensados financeiramente (KAROUSAKIS, K., 2009, p. 10). A maior decisão para estimular ações de redução de emissões por desflorestamento e degradação florestal em países em desenvolvimento, no entanto, foi adotada pelas Partes durante a COP-13 em Bali, Indonésia (2008), ocasião em que avanços significativos foram obtidos para a inclusão de florestas no Regime Internacional do Clima. A Conferência em questão culminou com a adoção do Roteiro de Bali (Bali Road Map), um conjunto de futuras decisões que representariam as várias direções essenciais a serem seguidas na busca de alcançar a estabilização climática. O Roteiro de Bali inclui o Plano de Ação de Bali (Bali Action Plan) que objetiva direcionar as Partes a negociar um instrumento legal pós-2012 que considere possíveis incentivos financeiros para ações de mitigação focadas em florestas nos países em desenvolvimento (TNC-IDESAM, 2009, p. 13; UNFCCC, 2010). O tema REDD foi um dos assuntos mais discutidos no período de dois anos entre Bali e Copenhagen (COP 15, 2009). O âmbito do REDD foi, a partir de então, ampliado e seu conceito expandido para incluir também a conservação, o manejo florestal sustentável e o aumento dos estoques de carbono, coletivamente designado por “REDD-plus”. (KAROUSAKIS, K., 2009, p. 10). Com relação a “Aumento das Reservas Florestais de Carbono” entende-se atividades de aflorestamento e reflorestamento. Sobre o tema “Gestão Sustentável das Florestas” o foco da discussão centrou-se na distinção das ações consideradas como mantenedoras dos estoques de carbono, como forma de garantir a inexistência de degradação florestal a longo prazo e de assegurar a manutenção dos estoques de carbono. A abrangência das atividades que devem ser consideradas em um futuro esquema de REDD dentro da UNFCCC (desflorestamento, degradação, conservação e valorização do estoque) é referido como “escopo do mecanismo” e até hoje é um aspecto metodológico controverso (TNCIDESAM, 2009 p. 16, 17). Em 2009, pelo Acordo de Copenhague - documento de caráter não vinculativo - finalmente os países reconheceram a importância da redução das emissões geradas pelo desmatamento e pela degradação das florestas, bem como a necessidade de promover “incentivos” para financiar ações pertinentes com a utilização de recursos de países desenvolvidos (UNFCCC, 2009, p. 1). 75 O histórico das negociações mostra, pelo exposto, uma tendência de estabelecimento de um mecanismo de Redução de Emissões por Desflorestamento e Degradação Florestal (REDD) que recompense economicamente os países com grandes áreas de florestas preservadas. Até o momento, contudo, dúvidas quanto à permanência do carbono estocado nas florestas, quanto à quantificação dos estoques de carbono nas diferentes formações florestais e quanto a outros diversos aspectos metodológicos são os principais entraves científicos para se incluir integralmente a questão florestal em um mecanismo dentro da Convenção. Projetos voluntários de REDD Com o amadurecimento da discussão sobre o REDD outras considerações, fora a questão do carbono, vêm sendo incorporadas. A tendência do debate sinaliza para uma abordagem mais integrada, que foque o problema das emissões de GEE em um cenário mais amplo, já que a conversão e a degradação dos ecossistemas florestais além de acarretarem alterações climáticas originam, também, perdas sociais, de biodiversidade e de funções ecossistêmicas fundamentais. Esse contexto gera oportunidade ímpar aos países detentores dessas reservas florestais, como o Brasil, que podem obter grande ganho para a sua biodiversidade através da redução da perda de carbono, uma vez que muitos ecossistemas que são grandes em estoque de carbono são também em biodiversidade, particularmente nas regiões tropicais. A complexidade dos procedimentos e metodologias do registro de projetos florestais no contexto de Quioto somada a falta de concretização de um esquema REDD dentro da Convenção-Quadro das Nações Unidas para Mudanças Climáticas, no entanto, tem forçado a ida do Setor Florestal para o Mercado Voluntário de Carbono. Enquanto as negociações sobre REDD são discutidas entre as partes, várias iniciativas bilaterais e multilaterais, tanto pública quanto privada, de implantação de projetos País Brasil Ecuador Guatemala Paraguai Peru TOTAL voluntários sub-nacionais estão se difundindo pelo mundo, antecipando-se a qualquer decisão de âmbito internacional. Projetos voluntários de REDD, embora marginais ao âmbito dos mercados oficiais de carbono, promovem benefícios sócio-ambiental originados da preservação florestal e redução de emissões e têm fornecido valiosos subsídios ao enfrentar aspectos metodológicos centrais relacionados à quantificação de carbono, monitoramento, adicionalidade (ou seja, se as reduções de emissões obtidas como resultado de um projeto são adicionais ao que teria ocorrido no business-as-usual contrafactual), permanência e deslocamento de emissões. Esses problemas são basicamente semelhantes aos defrontados pelos projetos florestais do MDL, o que ressalta o valor desses programas para a dinâmica de inclusão de outras modalidades relacionadas ao setor de LULUCF em um acordo pós-2012. Adicionalmente, além de aprendizado técnicometodológico, estimulam a criação de uma capacitação institucional em países com frágil estrutura políticogovernamental e que aspiram estabelecer um esquema REDD em escala nacional. Por terem abrangência local e sub-nacional, esses projetos pilotos podem ser instituídos de forma muito mais rápida, evitando inúmeros e complexos trâmites institucionais, jurídicos, administrativos e financeiros necessários à construção de um projeto de magnitude nacional dentro de um mecanismo da UNFCCC. Na América do Sul 17 projetos REDD já estão em estágio avançado de implantação e estão distribuídos em seis países: Bolívia (01), Brasil (07), Equador (01), Guatemala (03), Paraguai (01) e Peru (04). Juntos somam, aproximadamente, 14,8 milhões de hectares de floresta tropical - área equivalente a 3,5 vezes o território da Dinamarca – e visam evitar a emissão de cerca de 522.7 milhões de toneladas de CO2: equivalente a mais da metade das emissões totais anuais do setor de transporte na União Européia (TNC-IDESAM, 2009, p. 75, 76). Tabela 2 Características dos principais projetos de REDD na America Latina Custo de implementação Custo de geração Projeto Duração (US$) (US$/tCO2) Juma 44 24,000,000 0,13 Ecomapuá 20 23,597,968 3,93 Acre 15 25,000,000 4,00 Transamazonia 10 15,427,499 4,92 SocioBosque 7 560,000,000 2,95 Biosfera Maia 20 80,000,000 4,00 Mbaracaiu 35 22,750,000 1,75 Madre de Dieus 20 47,000,000 6,31 1,022,775,467 Fonte: TNC – IDESAM, 2009 76 Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. Quanto ao perfil das instituições proponentes de projetos REDD destaca-se a expressiva participação dos governos - presentes em 61% deles – fato decorrente de grande parte dos referidos projetos ser realizada em terras públicas ou áreas protegidas e legalmente geridas pelos governos. A média de vida dos projetos é de 21 anos, variando de 07 anos para o Programa SocioBosque no Ecuador a 44 anos para o Projeto Juma. O custo total de implantação dos oito projetos listados é de US$1.022,775.467, com custo médio por tCO2 de US$3.49/tCO2e (± 2.21). Verificouse grande variação de custo na geração de tais projetos, tanto entre países quanto entre projetos num mesmo país, oscilando entre o valor mínimo de US$0.13/tCO2 e o máximo de US$6.27/tCO2. Esta alta variância é explicada por ampla gama de fatores que são determinantes para definir o custo de implementação de cada projeto, como: contexto da pressão de desflorestamento, posse da terra (pública, privada, comunitária, território indígena, áreas de proteção etc..), escopo da atividade, localização, acesso e instituições participantes. A combinação destes fatores é determinante para definir os custos de cada projeto REDD (TNC-IDESAM, 2009, p. 75, 76). Cerca de 5 bilhões de dólares já foram oferecidos por governos de todo o mundo para projetos de REDD entre os anos 2010-2012. Para dar credibilidade às reduções de emissões oferecidas por tais mercados, alianças ambientalistas, participantes financeiros e organizações de apoio criaram padrões de acreditação com o fito de garantir benefícios climáticos e ambientais tanto para a biodiversidade quanto para os povos locais. Segundo estudo realizado por Nepstad, D. (2008), um programa plausível de REDD que reduza próximo a zero o desmatamento na totalidade da Amazônia brasileira, em um período de dez anos, teria um custo anual inicial de US$72 milhões atingido US$531 milhões no décimo ano. Um projeto desta dimensão evitaria a emissão de 1,4 bilhões de toneladas de carbono durante uma década a um custo total de US$3.4 bilhões (US$0,7/Tonelada de CO2). A ONG The Nature Conservacy (2009) identificou e classificou sete projetos REDD em fase avançada de implantação no Brasil. Dentre eles o Projeto de RED da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Juma foi o primeiro do Brasil - segundo no mundo - a ser validado pelo CCB, na modalidade de Redução de Emissões do Desmatamento (RED). Dado seu caráter pioneiro, sua avançada fase de implantação, sua considerável área e seu potencial tanto para redução de emissões quanto para a conservação da biodiversidade de uma área da Floresta Amazônica rica em vida selvagem, acredita-se que possa ser um modelo representativo para futuros projetos REDD na referida floresta. O projeto de REED da RDS do Juma A Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Juma foi criada pelo Governo do Amazonas, através do Decreto 26.009 de julho de 2006, em uma área de 589.612,8 hectares no município de Novo Aripuanã, que representa 14,3% do montante territorial deste município. Encontra-se a 227,8 km ao sul da cidade de Manaus, próxima à zona urbana de Novo Aripuanã. Seu objetivo é conter o desmatamento de cerca de 329.483 hectares de floresta tropical e suas respectivas emissões - cerca de 189.767.027,9 toneladas de CO2 -protegendo, ao mesmo tempo, suas espécies do risco de extinção e a qualidade de vida de centenas de famílias. Espera-se alcançar tais objetivos através da criação e implantação de uma Unidade de Conservação em uma região do Estado do Amazonas de grande tensão pelo uso da terra e passível de ser quase totalmente desmatada se prevalecer as práticas correntes. (AMAZONAS, 2006; IDESAM, 2009 p. 8, 10). Reserva, na margem direita da foz do Rio Aripuanã (Figura 17) 77 . Fonte: IDESAM, 2009. Figura 17 (mapa) Localização da área de creditação do Projeto de RED da RDS do Juma, mostrando também a BR-319, AM-174 e BR-230 e o município de Novo Aripuanã, Manicoré e Apuí. O governo do Estado do Amazonas estabeleceu a RDS do Juma em 2006 e sua concretização é parte de uma ampla estratégia iniciada em 2003 pelo Estado, objetivando a contenção do desmatamento e promoção do desenvolvimento sustentável através da valorização dos serviços ambientais prestados pelas florestas. Estudos baseados em modelos que projetam um ambiente mais quente e seco para a Amazônia prevêm alterações climáticas 78 que prenunciam um futuro sombrio para a região – no qual tanto a biodiversidade quanto os povos muito podem perder. Esta previsão somada à de perda de grandes áreas de floresta até 2050 - em um cenário business as usual – devido, dentre outras pressões, a anunciada pavimentação das estradas BR-319 e AM-174 pelo Governo Federal, influenciou fortemente o governo do Amazonas na criação da Reserva. Estradas na Amazônia representam fortes Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. ameaças tanto à fauna quanto à integridade ecossistêmica em geral, fatos estes já bem documentados. A reconstrução da abandonada rodovia BR-319 será critica e favorecerá a migração do “arco do desmatamento” para dentro de áreas da floresta ainda intocadas (IDESAM, 2009 p.7-8, 40-41). Fonte: IDESAM, 2009. (baseado em dados do modelo SimAmazônia I). Figura 24 (mapa) Desmatamento Projetado no Estado do Amazonas para o ano de 2050 considerando o cenário convencional (BAU). A perda da cobertura florestal implica não só na perda de biodiversidade e de habitat da fauna como também dos serviços ambientais fornecidos pela floresta. A comparação das perspectivas “sem projeto” e “com projeto” mostra um grande ganho deste segundo cenário, o qual ao propiciar recursos necessários para garantir a manutenção e o desenvolvimento sustentável, poderá evitar a perda de 62% da área florestada da RDS do Juma até o ano de 2050, assim como favorecer concretamente a conservação da quase totalidade dessa área, além de outros benefícios diretos à biodiversidade e às comunidades locais. A RDS do Juma foi a primeira reserva a ser implantada após a criação e aprovação da Lei da Política Estadual de Mudanças Climáticas (PEMC-AM) e do Sistema Estadual de Unidades de Conservação (SEUCAM), que forneceram o arcabouço legal necessário para a realização de projetos desse gênero no Amazonas. Sua criação e implementação efetiva, no entanto, só foi possível graças à efetivação de um mecanismo financeiro de geração de créditos de carbono oriundos da Redução de Emissões do Desmatamento – RED planejado pelo governo deste Estado. A rede de hotéis Marriott International está financiando o projeto com investimentos anuais de US$500 mil durante os quatro primeiros anos; receitas provindas de seus hóspedes, que são convidados a neutralizar as emissões de carbono decorrentes da sua hospedagem através da contribuição de US$1 por noite. Assim, os recursos financeiros oriundos dos créditos deverão ser dirigidos a promoção tanto da manutenção dos benefícios climáticos de redução de emissões de GEEs pelo desmatamento quanto de melhorias sócio-ambientais e iniciativas voltadas para a pesquisa científica e inventários da riquíssima biodiversidade da Reserva. A obtenção de créditos de carbono, oriundos da redução de emissões do desmatamento, criará condições para atrair investidores e trazer ao estado os recursos financeiros necessários à geração de políticas fortes e permanentes de controle e monitoramento de desmatamento, estabelecendo um caráter financeiro auto-sustentável para a conservação, melhoria nas condições de vida das comunidades locais, além de reforçar o cumprimento das leis (IDESAM, 2009 p.7-8, 40-41). Conclusão Apesar da recente implantação do Projeto de RED da RDS do Juma, há a expectativa de que a preservação da área e os cuidados e atenção dados à biodiversidade e às comunidades locais quando da concepção do mesmo, contribuirão significativamente para a preservação da sua 79 fauna e flora respeitando os povos quem vive na região. Fora os ganhos diretos para a biodiversidade e para a população local, o Projeto ainda poderá cooperar na geração de conhecimento e experiência em diversos aspectos técnicos, servindo, assim, de embasamento tanto a outros programas voluntários de REDD quanto para auxiliar na consolidação de um futuro esquema de REDD dentro das negociações climáticas internacionais. Seu efeito emblemático, igualmente, poderá repercutir positivamente na sociedade e nas decisões políticas nacionais e internacionais. As características físicas da área do projeto somada às condições político-econômico-social em comum com outras regiões do estado do Amazonas poderão desenhar um valioso panorama das dificuldades e potencialidades de um programa de REDD na Amazônia. Entender, igualmente, como está sendo tratada a biodiversidade dentro do projeto trará sinalizações sobre a validade do mecanismo como ferramenta para a proteção da biodiversidade da Floresta Amazônica. Adicionalmente, apesar de seu caráter exclusivamente voluntário - já que as reduções de emissões dele decorrentes não podem ser usadas para compensar emissões, nem contabilizadas como parte de metas obrigatórias governamentais ou daquelas firmadas em tratados internacionais - o Projeto Juma ainda poderá contribuir para a concretização de outras metas e programas tanto nacionais quanto internacionais. Suas emissões evitadas vêm ao encontro das metas de redução previstas no Programa Nacional de Mudanças Climáticas, assim como a preservação de sua área poderá concorrer para os objetivos de Tratados, como o da Convenção da Diversidade Biológica, o da Convenção para Combate à Desertificação e outros programas de conservação de espécies. Contrapondo-se aos potenciais benefícios do Projeto, citados acima, os mesmos podem ter seus efeitos minimizados ou até anulados se não buscar sua integração a um contexto mais amplo de compromissos nacionais e internacionais de preservação ambiental. Os projetos de REDD voluntários, por não se alinharem a nenhuma política nacional de contabilização de emissões, permitem o efeito de vazamento nacional e internacional, ou seja, o desmatamento evitado por um projeto específico pode ser deslocados para outros locais (dentro ou até mesmo fora do país) e suas conseqüentes reduções de emissões seriam, assim, anuladas. Esse efeito o comprometeria quer na redução nacional de emissões de CO2, quer na garantia de beneficio da biodiversidade. O Projeto de REDD da RDS do Juma, a exemplo de outros projetos dessa natureza, possui um grande potencial de geração de benefícios, porém, é imprescindível a busca de um acordo internacional que suceda o Protocolo de Quioto que viabilize a operacionalização de um esquema de REDD em escala nacional e minimize, ou até elimine, 80 as chances do efeito de vazamento, assim como previna o aumento global da temperatura a níveis que venham comprometer a permanência da floresta Amazônica. Tal situação favoreceria a integridade dos benefícios proporcionados por este e outros futuros projetos de REDD. Abstract: Recent estimates show that the biodiversity of the Amazon can match the existing half of the planet, safeguarding a rich variety of environmental services and biological processes vital to the Earth. The summary of the determinations set out in the Framework Convention of the United Nations on Climate Change (UNFCCC) presents a strengthening of debates on forests and the prospect of creating an instrument of Reducing Emissions from Deforestation and Forest Degradation (REDD) within the UNFCCC that economically reward countries with large forest areas preserved. While negotiations on REDD are discussed between the parties, several initiatives to implement sub-national volunteer projects are spreading throughout the world, generating direct climate, environmental and social benefits as well as serving as a lesson for other potential projects arising from a future international agreement. This article aims to bring the issue of forests within and outside the area of international negotiations on climate change and its potential benefits for biodiversity and the communities of the Amazon rainforest in the light of the Juma Project, located in the municipality of Aripuanã Amazonas. The paper concludes that the implementation of REDD volunteer projects can indeed be an effective tool for preserving biodiversity and the dignity of the peoples of the Amazon. Nevertheless, an international agreement to succeed the Quioto protocol should be sought, making the operation of a reed scheme possible on a national scale in a fair way that promotes the full benefits provided by forest protection. Key-words: Environment. REDD. Deforestation. Forest Degradation. Juma Project. Biodiversity. Local communities. Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. Bibliografia DUPRAT, Luís. O Projeto de REDD da RDS do Juma: Abordando seus efeitos para a biodiversidade amazônica. São Paulo, 2010. 200p. Monografia (Especialização em Meio Ambiente, desenvolvimento Sustentável e Questões Globais). Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP) FAO. Forests and Climate Change Working Paper 5 - Definitional issues related to reducing emissions from deforestation in developing countries. Rome: Food and Agriculture Organization of the United Nations, 2007. Disponível em: <http:// www.fao.org/docrep/009/j9345e/j9345e00.htm>. Acesso em: 01/08/2010. GLOBAL CANOPY PROGRAMME. The Little REDD+ Book. 3º ed., Oxford, Reino Unido: Global Canopy Programme, 2009. Disponível em: <http://unfccc.int/files/methods_science/redd/application/pdf/the_little_redd_book_dec_08.pdf> Acesso em: 10/08, 20:40. IDESAM. Projeto de redução de emissões de GEE provenientes do desmatamento da Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Juma. Amazônia, Brasil: Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável do Amazonas, jan. 2009. Versão 5.1. Documento de Concepção do Projeto (DCP). Disponível em: <http://www.idesam.org.br/documentos/ pdf/PDD_Projeto%20Juma_portugues.pdf>. Acesso em 27/08/2010. IPCC. Summary for Policymakers. In: Climate Change 2007: The Physical Science Basis. Contribution of Working Group I to the Fourth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change. Cambridge University Press: Cambridge, United Kingdom and New York, NY, USA, 2007. Disponível em: <http://www.ipcc.ch/pdf/assessmentreport/ar4/wg1/ar4-wg1-spm.pdf>. 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Resumo: Atualmente, em razão das inúmeras crianças e adolescentes que se encontram em instituições para menores e o número de pleitos de adoção por casais homoafetivos, tem-se realizado uma interpretação integrada das legislações concernentes à adoção, do art. 226 da Constituição Federal, bem como dos arts. 4º e 5º da LICC. Isso para justificar que, diante da intenção implícita das normas, que visam à tutela de qualquer família, independentemente de sua constituição, bem como do interesse social, há a possibilidade de um casal formado por pessoas do mesmo sexo atender os princípios da proteção integral à criança e ao adolescente e do melhor interesse da criança ao receber em seu seio familiar um filho. Palavras-chaves: Adoção. Casais homoafetivos. Constituição Federal. LICC. Tutela. Interesse social. Princípios. 1. Introdução Na sociedade atual, em que existe uma mudança de valores com relação ao conceito de família, não podemos considerar correto negar aos casais homoafetivos o exercício ao direito a parentalidade. Também não se pode deixar de atender uma necessidade social, que é a adoção de crianças e adolescentes que se encontram em situação de abandono, justificada na lacuna presente no ordenamento jurídico pátrio que não contempla expressamente as uniões homoafetivas. Faz-se, então, necessária a utilização de uma interpretação mais moderna com base nos valores atuais da sociedade, nos princípios consagrados em nossa Carta Maior, na legislação vigente e no atendimento aos bons costumes, justificando sua titularidade ao direito à adoção. 2. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana Kant considerou que a “lei universal é a lei moral”. Assim, ética e direito se aproximam, conduzindo a normatização do princípio da dignidade humana, que no sistema jurídico brasileiro vem se colocando como o primeiro dos princípios e matriz da Constituição. Desde 1988, está instituído, entre outros, o princípio do respeito à dignidade da pessoa humana, fazendo da pessoa o fundamento e o fim da sociedade e do Estado. Dessa forma, todas as normas constitucionais assim como o restante da ordem jurídica deverão ser interpretadas à luz deste princípio. 1 2 3 A procura pelo exercício da parentalidade por pares homossexuais demonstra a existência de fato social que, agregado ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao princípio da igualdade, no atual Estado Democrático de Direito, aponta para a necessidade de dar força normativa aos princípios da Constituição Federal e aos direitos fundamentais. Nota-se que, em razão do direito à homoparentalidade estar vinculado à formação da identidade do ser humano em sua busca pela realização pessoal e felicidade, este deverá ser analisado de acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana. Sendo assim, a dignidade humana é princípio que unifica e centraliza todo o sistema normativo, assumindo especial prioridade,1 principalmente quando se está diante de questões que suscitem respostas, por envolver, de um lado, o exercício da maternidade/paternidade e, de outro, a possibilidade de crianças e adolescentes possuírem um ambiente de afeto e respeito, que assegurem a primazia de pessoas em desenvolvimento.2 3. O princípio da igualdade e a orientação sexual “Um dos princípios estruturantes do regime geral dos direitos fundamentais é o princípio da igualdade.” 3 A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, em seu artigo 1º, consagrou a idéia de igualdade entre os homens. Após esta idéia ser consagrada universalmente pela referida Declaração, as constituições pátrias trouxeram o princípio da igualdade para seus textos. PIOVESAN, Flávia apud MOSCHETTA, Sílvia Ozelame Rigo. Homoparentalidade: direito à adoção e reprodução humana assistida por casais homoafetivos. Curitiba: Juruá, 2009, p. 118. MOSCHETTA, Sílvia Ozelame Rigo. Homoparentalidade: direito à adoção e reprodução humana assistida por casais homoafetivos. Curitiba: Juruá, 2009, p. 118. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 424. 82 Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. Para a igualdade formal, a norma jurídica deverá ser aplicada em cada caso concreto como está expressa, sem levar em conta as qualidades ou situações de seus destinatários. Essa face do princípio da igualdade, como traz Roger Raupp Rios, busca a igualdade entre as pessoas “mediante a universalização das normas jurídicas em face de todos os sujeitos de direito” 4. Dessa forma, quanto à orientação sexual, as normas deverão ser aplicadas sem qualquer distinção entre homossexuais e heterossexuais. Em razão das várias formas de discriminação e preconceito, foram positivados no texto constitucional, em seu art. 3º, IV, como um dos objetivos da República Federativa do Brasil, critérios proibitivos de diferenciação, tais como a vedação de preconceitos em razão de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Apesar da Constituição não trazer de forma expressa o critério proibitivo de discriminação por orientação sexual, a vedação de discriminação ainda é possível, uma vez que pode ser encaixada na parte final do art. 3º, IV da Constituição Federal, garantindo tanto a igualdade entre os heterossexuais e homossexuais como a possibilidade de adotarem livremente sua orientação sexual. É possível ainda considerar que esse tipo proibitivo está englobado na proibição de discriminação por sexo, visto que é “uma hipótese de diferenciação fundada no sexo da pessoa para quem alguém dirige seu envolvimento sexual [...]”.5 Devido à interface material do princípio da igualdade, um tratamento desigual será aplicado somente às situações que possuam uma justificativa racional para tanto. Esta regra também é aplicada para situações que envolvam a orientação sexual do sujeito, justificando apenas a desigualdade de tratamento quando houver uma razão lógica. Do contrário, prevalecerá o tratamento igualitário. Nesse diapasão, qualquer desigualdade de tratamento despendido daquele aplicado aos heterossexuais que decorram exclusivamente da orientação sexual e fundamentada seja na discriminação ou na utilização do preconceito a homossexuais ofenderá o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, tornandose inconstitucional por ferir a ordem constitucional e democrática. Dessa forma: A questão não pode ser vista por outro prisma, senão o isonômico, quando pares homoafetivos que desejam o exercício da parentalidade, atendido o melhor interesse da criança ou adolescente, buscam o estabelecimento de vínculos paternomaternofiliais na maternidade/paternidade que, no caso, se concretiza por meio da adoção ou reprodução humana assistida. 6 4. Família Constitucionalizada: Pluralidade das Formas de Família Além de se fundar nos princípios da dignidade da pessoa humana e igualdade, a possibilidade de adoção pelos casais homoafetivos se baseia fundamentalmente na transformação sofrida pela família. As transformações operadas na sociedade brasileira durante o século XX repercutiram enormemente nas relações jurídicas de Direito de família e apresentam, neste início de século XXI, inovações fundamentais nas famílias jurídicas.7 Diante dessas transformações, nota-se que no mundo contemporâneo o modelo tradicional de família, constituído pelo matrimônio entre um homem e uma mulher, foi deixado para trás, dando vez ao surgimento das famílias plurais. As constituições brasileiras sempre retrataram as etapas históricas do País, inclusive no que diz respeito ao direito de família. A Constituição Federal de 1988, com base no consagrado princípio da dignidade humana e considerando como supremos objetivos a liberdade, justiça e solidariedade, atribui à família uma função social, constituindo-se como uma comunidade de afeto e mútua ajuda, buscando a tutela da pessoa humana, em suas dimensões existenciais e socioafetivas, eliminando discriminações e diferenciações. Uma marcante transformação foi instituída com a expansão da proteção do Estado à família, tais como: a) a proteção do Estado alcança qualquer entidade familiar, sem restrições; b) a família, entendida como entidade, assume claramente a posição de sujeito de direitos de obrigações; c) os interesses das pessoas humanas, integrantes da família, recebem primazia sobre os interesses patrimonializantes; d) a natureza socioafetiva da filiação torna-se gênero,abrangente das espécies biológica e não biológica; e) consuma-se a igualdade entre os gêneros e entre os filhos; f) reafirma-se a liberdade de constituir, manter e extinguir entidade familiar e a liberdade de planejamento familiar, sem imposição estatal; g) a família configura-se no espaço de realização pessoal e da dignidade humana de seus membros.8 RIOS, Roger Raupp. O princípio da igualdade e a discriminação por orientação sexual: a homossexualidade no direito brasileiro e norte-americano. São Paulo: R. dos Tribunais, 2002, p. 129. Ibidem, p.133. MOSCHETTA, Sílvia Ozelame Rigo. Homoparentalidade: direito à adoção e reprodução humana assistida por casais homoafetivos. Curitiba: Juruá, 2009, p. 121. 7 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Princípios constitucionais de direito de família: guarda compartilhada à luz da Lei n. 11.698/08: família, criança, adolescente e idoso. São Paulo: Atlas, 2008, p. 20. 8 LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 35. 4 5 6 83 A Constituição Federal vigente passa a reconhecer o status de família às outras formas de entidade familiar e não só àquelas constituídas pelo instituto do matrimônio. Assim, deu também especial proteção à união estável, em seu art. 226, parágrafo 3º, que compreende a existência da união entre homem e mulher, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento e a comunidade formada por qualquer um dos pais e seus descendentes, também chamada de família monoparental, em seu art. 226, parágrafo 4º. Apesar de essas entidades familiares estarem previstas de forma expressa no texto constitucional, por serem as mais comuns, devem ser encaradas como exemplificativas, uma vez que existe a presença de família em situações diversas. A família, como previsto no art. 226 da CF, é a base da sociedade, merecedora de proteção estatal. No entanto, apesar de trazer de forma expressa três tipos de entidade familiar, não trouxe nenhuma norma de exclusão a outros possíveis modelos de constituição, uma vez que o destinatário da proteção do Estado é a instituição família e não suas espécies. Como exposto, várias são as possibilidades de formação familiar, o que evidencia a crise da tradicional família patriarcal e o surgimento de novos núcleos familiares ainda ignorados pelo Estado, mas cada vez mais frequentes e aceitos pela sociedade neste início de século XXI. 9 5. Adoção por Casais Homoafetivos: Possibilidade Jurídica Atualmente, o instituto da adoção é regido tanto pelo Código Civil de 2002 como pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. O atual Código Civil determina pela aplicação subsidiária do ECA às adoções dos maiores de 18 anos. Assim, os principais requisitos para adoção tanto de menores como para de maiores de 18 anos são comuns. A seguir serão analisados os requisitos da adoção à luz de sua possibilidade por casais homoafetivos. 5.1 Da colocação em família substituta homoafetiva O Estatuto da Criança e do Adolescente, ao dispor em seu art. 29 sobre a colocação em família substituta, determina que “não se deferirá colocação em família substituta a pessoa que revele, por qualquer modo, incompatibilidade com a natureza da medida ou não ofereça ambiente familiar adequado”. Sobre esse requisito para o exercício da colocação em família substituta, ressalta Luiz Carlos de Barros Figueiredo10 que cada pleito seja de guarda, tutela ou adoção, partindo do princípio de que o legislador se utilizou de uma fórmula ampla e impositiva de análise, deverá o caso ser acompanhado e estudado por uma equipe técnica conjuntamente com o promotor de Justiça e o juiz, levando-se em conta suas peculiaridades para análise de cada caso concreto, a fim de verificar seu enquadramento ou não na vedação legal. Com a aplicação dessa metodologia em que vários olhares fazem a análise do mesmo caso, torna-se impossível a generalização ou mesmo a instituição de um rol taxativo, definindo o que é ou não um ambiente familiar adequado. Mesmo assim, podem-se exemplificar algumas situações que se encaixam nessa vedação, dando uma direção àquele que for interpretar a norma, servindo de base para a análise do caso concreto. Como exemplo, temos o art. 19 do próprio ECA, ao dispor sobre o direito da criança e do adolescente à convivência familiar e comunitária, in verbis: Art. 19. Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes. Torna-se, portanto, inaceitável diante de manifestação expressa do legislador que criança ou adolescente seja colocada em família substituta em que haja presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes, como, por exemplo, viciada em drogas ou alcoolista. O referido autor ainda traz outros exemplos, como: Pessoas com antecedentes criminais, especialmente se tiveram como vítimas crianças/adolescentes ou se foram abusadores sexuais, não são indicadas para serem adotantes [...]. Agressores de parentes próximos (esposa, filhos, pais etc.) [...] também devem ter seus pleitos indeferidos.11 Nessa linha de raciocínio, o artigo 6º estabelece a hermenêutica básica do Estatuto da Criança e do Adolescente, ao determinar que “levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento”. Dessa forma, a sistemática adotada pelo ECA foi o da proteção integral à criança e ao adolescente, vistos como pessoas em desenvolvimento com direito à proteção integral. 9 DINIZ, Maria Aparecida Silva Matias. Adoção por pares homoafetivos: uma tendência da nova família brasileira. Disponível em <http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=472>. Acesso em 20 fev. 2011. 10 FIGUEIRÊDO, Luiz Carlos de Barros. Adoção para homossexuais. 1ª ed., 9ª reimpr. Curitiba: Juruá, 2010, p. 78. 11 FIGUEIRÊDO, Luiz Carlos de Barros. Adoção para homossexuais. 1ª ed., 9ª reimpr. Curitiba: Juruá, 2010, p. 80. 84 Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. Com base no art. 29, já apresentado, pode-se concluir que tanto a criança como o adolescente não devem ser colocados em família substituta, caso esta não lhes ofereça ambiente propício e adequado ao seu crescimento e desenvolvimento físico, psíquico e social. É possível que qualquer pessoa queira e possa pleitear a adoção, uma vez que não existe total vedação a quem quer que seja, inclusive em razão de sua orientação sexual. 5.2 Documentação necessária: o art. 197-A e o casal homoafetivo Para que o candidato à adoção se habilite, deverá apresentar uma série de documentos que estão elencados no art. 197-A do ECA, com redação dada pela Lei nº 12.010/09. Será analisado igualmente o pedido formulado, seja por um casal homoafetivo, seja por um casal heterossexual. Em primeiro lugar será verificada a competência do juízo e o atendimento às exigências referentes à documentação e peças instrutórias. Em seguida, será feita a observação e a análise do ambiente familiar quanto a sua adequação ao caso, conforme previsto no art. 29 do ECA. De uma forma geral, todos os incisos do referido artigo podem ser atendidos por qualquer casal homoafetivo, inclusive o inciso III que dispõe: “cópias autenticadas de certidão de nascimento ou casamento, ou declaração relativa ao período de união estável”. Isso porque, como entende Enézio de Deus Silva Júnior12, o período da união homoafetiva estável poderá ser atestado, por exemplo, por escritura pública declaratória de união estável, expedida em favor de casais homoafetivos em todo o País pelos cartórios. 5.3 Arts. 42 e 43 do ECA e a possibilidade da adoção biparental homoafetiva Nenhuma vedação é apresentada em relação à adoção biparental homossexual, seja no ECA ou no atual Código Civil, com redação dada pela Lei de Adoção, seguindo, dessa forma, o norte trilhado pela nossa Constituição Federal, que veda a discriminação de qualquer natureza, inclusive em razão de sexo que inclui o preconceito com base na orientação sexual. No entanto, é sustentada por muitos a ideia da inviabilidade da adoção por pares do mesmo sexo em decorrência do parágrafo 2º do art. 42 do ECA, com redação dada pela Lei nº 12.010/2009. Neste é previsto ser indispensável para adoção conjunta que os adotantes sejam casados ou mantenham união estável, definida pelo art. 1.723 do Código Civil como a entidade familiar formada por homem e mulher configurada na convivência pública, contínua e duradoura, e estabelecida com o objetivo de constituição de família. Reforçando esse pensamento, observa o juiz Titular da 2ª Vara da Infância e da Juventude do Recife, Luiz Carlos de Barros Figueirêdo, que se manifesta pela impossibilidade absoluta da concessão de adoção a favor de casais homossexuais, sob o argumento de que: A Constituição Federal em seu art. 226, parágrafo 3º reconhece como Entidade Familiar a união estável entre homem e mulher, o que já representa enorme avanço social se comparado com a legislação anterior que apenas valorizava o casamento civil e só dele emanavam direitos a respeito de filiação, patrimoniais etc., o que levava a que basicamente todas as inovações neste campo fossem fruto de construções jurisprudenciais, que paulatina e lentamente eram incorporadas à normativa interna. De toda sorte, por mais estável que seja, a união entre dois homens ou duas mulheres não encontra amparo no atual ordenamento jurídico brasileiro.13 Defendendo essa mesma posição, está Márcia Lopes de Carvalho, que, ao responder sobre a possibilidade de adoção por um casal homossexual, alegou que “nossa legislação ainda não permite casamentos homossexuais, então a adoção teria de ser feita por um membro do par, como solteiro.” 14 Contrariamente, os que defendem a possibilidade de adoção biparental homoafetiva, valem-se de uma interpretação sistemática da matéria, uma vez que, o art. 226 da Constituição Federal deve ser compreendido de forma exemplificativa, aplicando uma interpretação ampliada das entidades familiares existentes e protegidas pela norma fundamental, “o que permite reconhecer a união homoafetiva como espécie de entidade familiar”.15 Sobre essa sistemática o MM. Juiz Sérgio Luiz Kreuz, da Vara da Infância e Juventude de Cascavel no Estado do Paraná, em decisão16 que julgou procedente a adoção por casais homoafetivos, salientou que o novo modelo de família se estrutura nas relações de afeto, amor e igualdade, e que o texto constitucional não exclui outras formações familiares existentes, além daquelas expressas, destinando ao gênero família a titularidade da proteção estatal e não às suas espécies de constituição. O que acarreta a identificação da união homoafetiva do caso em tela como uma verdadeira família, merecedora de proteção estatal. Assim, ao se reconhecer a união homoafetiva como entidade familiar, Enézio de Deus Silva Júnior17, entende SILVA JÚNIOR, Enézio de Deus. A possibilidade jurídica de adoção por casais homossexuais. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2010, p. 115. FIGUEIRÊDO, Luiz Carlos de Barros. Adoção para homossexuais. 1ª ed., 9ª reimpr. Curitiba: Juruá, 2010, p. 94. CARVALHO, Márcia Lopes de apud FIGUEIRÊDO, Luiz Carlos de Barros. Adoção para homossexuais. 1ª ed., 9ª reimpr. Curitiba: Juruá, 2010, p. 95. 15 TORRES, Aimbere Francisco. Adoção nas relações homoparentais. São Paulo: Atlas, 2009, p. 114. 16 BRASIL. Vara da Infância e da Juventude. Proc. 0016380-68.2010.8.16.0021, j. 26.07.2010. Disponível em <http://www.direitohomoafetivo.com.br/uploads_jurisprudencia/705.pdf>. Acesso em 15 mar. 2011. 17 SILVA JÚNIOR, Enézio de Deus. A possibilidade jurídica de adoção por casais homossexuais. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2010, p. 114. 12 13 14 85 ser perfeitamente cabível o uso expresso da analogia disposto no art. 4º da LICC como instrumento de integração legislativa. Sustenta que, perante a omissão de norma expressa sobre as uniões homoafetivas e pela similitude com a união estável, é possível a aplicação da legislação concernente a esta entidade familiar “aos pleitos de pares do mesmo sexo, atribuindo-lhes todo o plexo de direitos familiares – inclusive, para efeito de adoção em conjunto de crianças, adolescentes e até de maiores (de 18 anos)”.18 Assim, a carência de lei não acarreta na inexistência do direito à adoção por casais homoafetivos, uma vez que o próprio ordenamento jurídico traz na LICC em seus arts. 4º e 5º formas de integração legislativa para solucionar os casos de omissão. Deve-se ressaltar que omissão não é o mesmo que vedação. Em nenhum momento há qualquer tipo de vedação á adoção biparental homoafetiva. O que existe é uma omissão. Para Paulo Lôbo19 o art. 1.622 do CC não pode limitar a adoção conjunta aos cônjuges e companheiros, uma vez que a Constituição Federal em seu art. 227, §§ 5º e 6º, ao tratar da adoção, não traz qualquer impedimento para que pares do mesmo sexo, que vivam sob uma relação afetiva, possam adotar a mesma criança. Na prática temos sentença20 proferida pela MM. Juíza Monica Labuto Fragoso Machado, da 1ª Vara Regional da Infância, da Juventude e do Idoso do Rio de Janeiro, que entende que não há em qualquer momento referência no art. 42 do ECA, que seria a união estável entre homem e mulher que asseguraria a adoção conjunta. Dessa forma, para o reconhecimento da união estável como entidade familiar, há a necessidade da presença de estabilidade, publicidade e a afetividade com o intuito de constituir família. Sustentou ainda, que a união homoafetiva somente não foi destacada pelo art. 226 da Constituição Federal como entidade familiar, mas que em nenhum momento foi excluída expressamente. Maria Berenice Dias21 se manifesta, alegando que ocorrendo a falta de qualquer impedimento, deverá prevalecer o princípio consagrado no art. 43 do ECA, que admite a adoção quando se fundar em motivos legítimos, bem como apresentar reais vantagens ao adotando. Neste sentido, é legítimo o interesse na adoção de uma família ainda que constituída por pessoas do mesmo sexo, tendo em vista a preocupação do legislador em garantir o bemestar do adotando, não havendo motivo algum para deixálo fora de um lar, constatando-se a existência de reais vantagens a quem não tem ninguém. Atendendo ao art. 43 supracitado e ao art. 227 da Constituição Federal que visam atender ao princípio da proteção integral ao adotando, possibilitando reais garantias de convivência familiar atrelado ao afeto necessário para o desenvolvimento equilibrado e saudável, reserva-se especial preocupação no atendimento ao princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, princípio este norteador da adoção. Dessa forma, na falta de qualquer impedimento ou vedação para a adoção biparental homoafetiva, deverá prevalecer sempre o princípio da proteção integral à criança e ao adolescente, o princípio do melhor interesse da criança e ainda o seu direito com prioridade à convivência familiar garantido no art. 227 da Constituição Federal. Assim, evidencia-se que o magistrado “na aplicação da lei (...), deve, antes mesmo de se apegar demasiadamente a normas formais, perscrutar os superiores interesses do menor.” 22 Para corroborar, traz Enézio de Deus Silva Júnior23 que o magistrado não é auto-suficiente para constatar a realidade fático-ambiental na qual o adotando será inserido, mas “só a leitura atenta e personalizada de cada pretensão, pela equipe técnica, Promotor de Justiça e o Juiz da Infância, é capaz de assegurar a boa aplicação da lei ao caso concreto.” 24 5.4 Estágio de convivência na adoção homoafetiva É determinado pelo ECA em seu art. 46 que “a adoção será precedida de estágio de convivência com a criança ou adolescente, pelo prazo que a autoridade judiciária fixar, observadas as peculiaridades do caso”. Isso porque, a criança ou adolescente, por se encontrar em processo de desenvolvimento, “necessita de um estágio de convivência com o(s) adotante(s), que possibilite a aproximação afetiva, a investigação do Juizado sobre aquela ambiência familiar, além da certeza da decisão pela adoção.” 25 Como ressalta Enézio de Deus Silva Júnior26, a equipe multiprofissional constituída por psicólogos e assistentes sociais elaboram laudos e pareceres em decorrência do acompanhamento do estágio de convivência, não tomando a orientação sexual dos postulantes como fator isolado que sirva para demonstrar o preparo ou despreparo para maternidade/paternidade. Esses laudos e pareceres técnicos possuem suma importância na formação do convencimento do magistrado e, contrariamente ao que se possa imaginar, tem demonstrado que a orientação sexual dos requerentes não é um elemento suficiente para inabilitar uma pessoa ou casal para as funções familiares ou para a educação de crianças e adolescentes. Idem. LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 91. BRASIL. 1ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso do Estado do Rio de Janeiro. Processo nº 2009. 202.020.729-8. j. 25/05/2010. Disponível em www.direitohomoafetivo.com.br/uploads_ jurisprudencia/671.pdf. Acesso em 15 mar. 2011. 21 DIAS, Maria Berenice. União homoafetiva: o preconceito & a justiça. 4. Ed., ver., atual. e ampl. São Paulo: R. dos Tribunais, 2009, p. 213. 22 BANDEIRA, Marcos apud SILVA JÚNIOR, Enézio de Deus. A possibilidade jurídica de adoção por casais homossexuais. 4. ed. Curitiba: Juruá Editora, 2010, p. 117. 23 SILVA JÚNIOR, Enézio de Deus. A possibilidade jurídica de adoção por casais homossexuais. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2010, p. 117. 24 FIGUEIRÊDO, Luiz Carlos de Barros apud SILVA JÚNIOR, Enézio de Deus. A possibilidade jurídica de adoção por casais homossexuais. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2010, p. 117. 25 SILVA JÚNIOR, Enézio de Deus. A possibilidade jurídica de adoção por casais homossexuais. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2010, p. 115. 26 Ibidem, 116. 18 19 20 86 Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. 5.5 A problemática da adoção por falso solteiro homoafetivo (ou monoparental) Alguns casais homoafetivos têm suas petições iniciais indeferidas, sob o argumento de impossibilidade jurídica do pedido, não sendo aceitos nos cadastros de adoção, impossibilitando a realização do estudo psicossocial. Diante dessa dificuldade para o deferimento da adoção a casais homoafetivos, eles têm se orientado pela adoção por um deles, escolhendo qual adotará formalmente como falso solteiro. No entanto, concedida a adoção, o adotado passará a conviver com o parceiro do adotante, que certamente exercerá as funções parentais. Mesmo que na prática esse filho tenha dois pais, ele somente poderá desfrutar do direito de alimentos, benefícios previdenciários ou sucessórios exclusivamente daquele que o adotou, causando enorme prejuízo. Assim, quando da separação dos parceiros, ou se ocorrer a morte do que não é legalmente o genitor, não pode o filho pleitear qualquer direito daquele que também reconhece como verdadeiramente sendo seu pai ou sua mãe. E mais: falecendo o adotante, o adotado resta órfão, não havendo qualquer vínculo com quem não é o pai ou mãe registral.27 Para corroborar com o explicado, o MM. Juiz Sérgio Luiz Kreuz, em decisão proferida no Estado do Paraná, afirma: A adoção, por ambos os requerentes,o beneficia na medida em que a situação jurídica será muito mais próxima da realidade, já que ambos exercem a paternidade, a criança os trata como seus pais e terá dois responsáveis para todos os efeitos da vida civil. Embora menos relevante, não se pode deixar de considerar que também sob a perspectiva patrimonial será beneficiado. Será herdeiro dos dois requerentes, terá direito a pensão alimentícia em caso de eventual separação, direito de receber visitas, além de se vincular, para todos os efeitos, com as famílias extensas de ambos. 28 Dessa forma, considerando que a ausência de lei reconhecendo determinado direito, não significa a impossibilidade jurídica do pedido, o juiz não deve se escusar de julgar uma causa, uma vez que a própria Lei de Introdução ao Código Civil e o Código de Processo Civil impõe ao juiz o dever de julgar mesmo quando haja lacuna na lei. Assim: não havendo proibição expressa para adoção por casais homossexuais no direito brasileiro; e sua semelhança com a união estável, o juiz, segundo Enézio de Deus Silva Júnior29, deverá ter bom senso e realizar uma interpretação extensiva e sensata sobre a possibilidade da adoção, para que pelo menos a inicial seja acolhida, para que o acesso aos resultados do estágio de convivência para análise do estudo psicossocial seja possível de ser realizado por multiprofissionais habilitados tecnicamente para realização de investigação do ambiente emocional familiar, a subjetividade e a dinâmica da vinculação homoafetiva com o adotando. 5.6 Outros contra-argumentos quanto à possibilidade de adoção biparental homoafetiva Outros argumentos são utilizados para sustentar a impossibilidade da adoção por casais homossexuais. Entre eles há quem afirme sobre a possibilidade da orientação afetivo-sexual dos pais influenciar no desenvolvimento afetivo do filho, tornando-os também homossexuais. Há ainda quem sustente sobre possíveis prejuízos causados ao adotando em razão da falta de referência paterna e materna, bem como pelo peso do preconceito consequente de sua convivência social, afetando sua estrutura psíquica. Para os que defendem a adoção por casais homoafetivos, o primeiro argumento não se sustenta, uma vez que não há nenhum estudo científico afirmando que a orientação sexual dos pais faça significativa diferença na educação de crianças e adolescentes, pontuando somente “a relevância do afeto e da sólida estrutura emocional, como elementos indispensáveis e preponderantes ao pleno ou saudável desenvolvimento da prole.” 30 Enézio de Deus Silva Junior31 observa que, se a orientação sexual dos filhos fosse uma questão de opção ou ainda resultado do exemplo dado pelos pais, todos os casais heterossexuais teriam filhos também heterossexuais como regra sexual em suas experiências afetivas. Frisa-se ainda neste sentido que: Tanto a experiência clínica dos psicólogos e demais psicoterapeutas, como a maioria dos relatos dos homossexuais, atesta que a homossexualidade é identificada, no nível do desejo, desde os primeiros anos de vida, pelas próprias crianças, quando essas começam a interagir com as demais e a se percebem diferentes.32 DIAS, Maria Berenice. União homoafetiva: o preconceito & a justiça. 4. ed., ver., atual. e ampl. São Paulo: R. dos Tribunais, 2009, p. 217. BRASIL. Vara da Infância e da Juventude. Proc. 0016380-68.2010.8.16.0021, j. 26.07.2010. Disponível em <http://www.direitohomoafetivo.com.br/uploads_jurisprudencia/705.pdf>. Acesso em 15 mar. 2011. 29 SILVA JÚNIOR, Enézio de Deus, op. cit., p. 120. 30 Ibidem, p. 122. 31 Ibidem, p. 127. 32 Ibidem, p. 126. 27 28 87 Um estudo realizado pela Academia Americana de Pediatria (American Academy of Pediatrics), coordenado por Ellen C. Perrin, concluiu: Um crescente conjunto da literatura científica demonstra que a criança que cresce com 1 ou 2 pais gays ou lésbicas se desenvolve tão bem sob os aspectos emocional, cognitivo, social e do funcionamento sexual quanto a criança cujos pais são heterossexuais. O bom desenvolvimento das crianças parece ser influenciado mais pela natureza dos relacionamentos e interações dentro da unidade familiar do que pela forma estrutural específica que esta possui.33 Quanto à impossibilidade desse tipo de adoção com base na falta de referência paterna e materna, Sílvia Ozelame Rigo Moschetta34 defende a não sustentação de tal indagação. Defendendo essa mesma posição está Enézio de Deus Silva Júnior 35 ao citar a psicanalista Acyr Maya, que defende que as funções materna e paterna são exercidas através da linguagem, não sendo impeditivo para uma bem-sucedida educação e criação de uma criança ou adolescente por dois homens ou duas mulheres. Por fim, não se justifica que a adoção seja indeferida com base somente pelo temor de que o adotando sofra reflexos em seu comportamento e transtornos psicológicos em razão da discriminação da sociedade, uma vez que “os estudos comprovam que ocorre exatamente o contrário, essas crianças terão as mesmas ou até mais chances de enfrentar as adversidades da vida, se tornando mais flexíveis, tolerantes [...].” 36 que apesar de elencar de forma expressa algumas formas de entidade familiar, coloca a família como a base da sociedade, titular da proteção do Estado. Nesse sentido, a tutela estatal é destinada à qualquer tipo de constituição familiar construída a partir de laços afetivos, incluindo-se, portanto, a união homoafetiva. Contudo, tem-se que diante da ausência normativa expressa que a ampare, deverá o juiz se socorrer da analogia como forma de integração legislativa, aplicando ao caso concreto os mesmos direitos destinados ao regime jurídico da união estável, eis que há evidente similitude entre essas duas entidades, incluindose o direito à adoção. Abstract: Currently, as a result of both the numerous children and adolescents that find themselves in institutions for minors and the number of requests for adoption by homosexual couples, there has been an integrated interpretation of the laws pertaining to adoption, specifically article 226 of the Federal Constitution, as well as articles 4 and 5 of the LICC (Introduction Law to Civil Code). This has been done to justify, given the implicit intention of the rules which aim at protecting any family, independent of its composition or of its social interest, the possibility for a same-sex couple to meet the requirements to provide full protection and to act in the best interest of the child or adolescent and upon receiving, into the heart of their home, a child. Key-words: Adoption. Homosexual couples. Federal Constitution. LICC. Protecting. Social interest. Principles. Conclusão Vislumbra-se que a possibilidade de adoção por casais homoafetivos resulta da interpretação sistemática do ordenamento jurídico. Sob a perspectiva dos princípios constitucionais, conclui-se que estes servem de alicerce para a construção jurídica voltada para a possibilidade do direito à homoparentalidade. Isso porque todo o ordenamento jurídico deverá ser interpretado à luz do princípio da dignidade humana, que coloca a pessoa como fundamento e fim da sociedade e do Estado. O princípio da igualdade também ocupa um papel fundamental nesta interpretação, visto que é garantido a todos um tratamento igualitário quando da aplicação da norma jurídica, sustentando-se a diferenciação apenas quando se fundar em motivo justo dotado de racionalidade. Importante ainda, considerar o art. 226 da Constituição Federal como uma norma de inclusão, já PERRIN, Ellen C. apud MOSCHETTA, Sílvia Ozelame Rigo. Homoparentalidade: direito à adoção e reprodução humana assistida por casais homoafetivos. Curitiba: Juruá, 2009, p. 155. MOSCHETTA, Sílvia Ozelame Rigo. Homoparentalidade: direito à adoção e reprodução humana assistida por casais homoafetivos. Curitiba: Juruá, 2009, p. 157. MAYA, Acyr apud MAZZARO, Marcos apud SILVA JÚNIOR, Enézio de Deus. A possibilidade jurídica de adoção por casais homossexuais. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2010, p. 130. 36 CORREIA, Maria do Perpetuo Socorro Lima; VIEIRA, Lara Fernandes. Adoção na relação homoafetiva. p.18. Disponível em <www.direitohomoafetivo.com.br/uploads_artigo/ adoção_na_relação_ homoafetiva.pdf>. Acesso em 20 fev. 2011. 33 34 35 88 Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. Bibliografia CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002. DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 7. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: R. dos Tribunais, 2011. DIAS, Maria Berenice. União homoafetiva: o preconceito & a justiça. 4. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: R. dos Tribunais, 2009. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito de família. 25. ed. Vol. 5. São Paulo: Saraiva, 2010. FIGUEIRÊDO, Luiz Carlos de Barros. Adoção para homossexuais. 1ª ed., 9ª reimpr. Curitiba: Juruá, 2010. GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Princípios constitucionais de direito de família: guarda compartilhada à luz da lei n. 11.698/08 : família, criança, adolescente e idoso. São Paulo: Atlas, 2008. 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Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal pela FAAP de Ribeirão Preto. Resumo: O status libertatis é um direito fundamental garantido constitucionalmente e, portanto, não pode ser privado de maneira arbitrária pelo poder estatal. Com a absoluta prevalência das liberdades públicas fundamentais, a prisão cautelar apenas pode ser decretada quando preenchidos os requisitos legais e demonstrada sua necessidade durante a persecução penal. Como se não bastasse, a nova Lei de Drogas vedou expressamente a possibilidade de liberdade provisória aos crimes de tráfico ilícito de drogas, norma essa que afronta os ditames constitucionais de um Estado Democrático de Direito. Ressalte-se que o princípio da presunção de inocência garante a qualquer cidadão o direito de permanecer em liberdade enquanto não provada sua culpabilidade (artigo 5º, LVII, Constituição Federal). Caso seja preso preventivamente, esta ordem deverá ser escrita e fundamentada, sob pena de ser decretada sua liberdade provisória (artigo 5º, LXI e LXVI). O fato de o crime de tráfico ilícito de entorpecentes ser equiparado a crime hediondo (Lei 8.072/90 e alterações da Lei 11.464/07) não pode ser óbice à concessão da medida cautelar liberatória. O presente trabalho apresenta os fundamentos da flagrante inconstitucionalidade do artigo 44 da nova Lei de Drogas. Na elaboração do artigo, utilizou-se o método bibliográfico, como método de procedimento, e o dialético crítico, como método de abordagem. Palavras-chave: liberdade; tráfico; drogas; inocência Introdução É papel de um autêntico Estado Democrático de Direito garantir a radicalização da instrumentalidade do processo como meio de efetivação das liberdades públicas fundamentais. Assim, a liberdade deve estar pautada na autonomia materialmente garantida pelo Estado por meio de prestações positivas e não apenas proclamada formalmente pela lei. Nesse sentido, o processo penal é instrumento de cidadania, de defesa da dignidade humana e não simples mecanismo de controle, repressão, estigma e exclusão social. Tanto que todo aparelho repressivo estatal, em sociedades liberais democráticas, deve estar fundamentado no garantismo penal, no qual a persecução penal é exercida dentro de um marco de legalidade e com o pleno acesso a todos os meios de defesa dessas liberdades. Uma das formas de exteriorização do garantismo penal ocorre através do princípio da presunção de inocência ou princípio liberal de inocência, o qual tem o papel fundamental de evitar qualquer espécie de rigor processual que se mostre desnecessário em relação ao acusado, cuja culpa ainda não for declarada por sentença condenatória definitiva. Ou seja, a regra é que o réu não deve ser preso antes da decisão final, exceto em caráter excepcional e absoluta necessidade, 1 através de um despacho fundamentado; nem deve ser submetido a constrangimento processual desnecessário. Porém, em diversos casos, é forçoso concluir que o discurso racional e meramente retórico dos direitos e garantias liberais, tal como a presunção de inocência, para a maioria dos acusados tem efeito apenas “encantatório”1, inoperante, sendo uma garantia constitucional meramente formal. Como consequência, a liberdade é constantemente relegada em segundo plano, a fim de facilitar a manutenção dos mecanismos de repressão e de controle da sociedade pelo Estado. É nesse contexto que se insere a nova Lei de Drogas (Lei 11.343/06), a qual veda expressamente a liberdade provisória na prática de crime de tráfico ilícito de entorpecentes, nos termos de seu artigo 44, numa nítida dissonância dos preceitos constitucionalmente garantidos no artigo 5º, incisos LIV, LVII, LXI e LXVI. Essa vedação é a nítida manifestação da “legislação do pânico”, ou seja, normas jurídicas feitas repentinamente, com o viés único de o poder público apresentar um respaldo aos anseios da sociedade. A Lei de Crimes Hediondos, cujo crime de tráfico de entorpecentes foi a eles equiparado, nasce justamente do clamor público e da necessidade de aplicar sanções mais severas a esses delitos. MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009, p.167. 90 Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. O presente artigo procurará demonstrar os elementos constitucionais da liberdade provisória, a fim de comprovar a ineficácia da citada norma jurídica prevista na Lei 11.343/06, apoiando-se nos fundamentos do princípio da presunção de não-culpabilidade. O estudo visa a analisar se a concessão indiscriminada de prisões cautelares, baseada tão somente em um artigo de lei, ou seja, sem observar as peculiaridades do caso concreto, os requisitos do artigo 312 e seguintes do Código de Processo Penal, e as demais garantias de direitos individuais, é instrumento eficiente no combate ao crime de tráfico ilícito de drogas. A essência do presente trabalho reside na preocupação com a excessiva decretação de prisões cautelares, muitas delas desmotivadas, prática usual em nosso cotidiano forense. São comuns despachos simplistas no seguinte sentido: “mantenha-se o flagrado à disposição da Justiça no presídio em que se encontra, eis que se trata e crime hediondo, insuscetível de liberdade provisória”. Tais decisões traduzem-se numa praxe judiciária distanciada dos princípios e normas constitucionais. Evidente que alguns crimes merecem o recrudescimento das tutelas penais. Todavia, qual o limite? Até que ponto poderá haver a supressão dos direitos constitucionais em benefício da repressão penal? Em uma matéria realizada pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Emanuel Cacho, presidente do Conselho Nacional de Secretários de Justiça, Direitos Humanos e Administração Penitenciária, afirmou que a Lei de Crimes Hediondos mantém na cadeia cerca de 70 mil pessoas que não deveriam estar presas. O número representa mais de 20% da população carcerária. Tal estatística é significativa, visto que não há só presos submetidos à Lei nº 8.072/90 (Lei de Crimes Hediondos)2. Percebe-se que a relação entre a prisão preventiva, cuja essência possui natureza processual e cautelar, e o princípio da presunção da inocência, que é uma das mais importantes garantias constitucionais, é muito tênue, de modo que o rigoroso equilíbrio dos dois institutos é essencial para o salutar desenvolvimento do processo penal. Por derradeiro, a problemática central do presente trabalho reside no seguinte questionamento: a vedação expressa da liberdade provisória aos crimes de tráfico ilícito de entorpecentes estaria em consonância com os princípios constitucionais e garantias individuais? Liberdade. Conceito. No seu conceito geral, liberdade, do latim libertates, significa o não estar preso de maneira nenhuma, o estar isento de travas, de qualquer espécie de determinação proveniente de fora, contanto que esta isenção esteja unida 2 3 4 a uma faculdade de autodeterminar-se espontaneamente.3 A palavra liberdade exprime múltiplos conceitos, podendo ter significados diferentes conforme o contexto em que é empregada. Os gregos a dividiam em três significados: liberdade natural, que consistia em uma determinação superior, cósmica que comandaria o destino do indivíduo; liberdade política, que exigia a ação do indivíduo de acordo com as próprias leis; e a liberdade pessoal, que pressupunha uma realidade fora do campo social, ou seja, se situaria na esfera estritamente pessoal do indivíduo. Os três conceitos fundamentais de liberdade se entrelaçam, impondo condicionamentos recíprocos. Conforme José Afonso da Silva4, liberdade da pessoa física é a possibilidade jurídica que se reconhece a todas as pessoas de serem senhoras de sua própria vontade e de locomoverem-se desembaraçadamente dentro do território nacional. 1.1. As liberdades públicas fundamentais e o processo penal A consagração do direito à liberdade foi resultado de conquistas sucessivas ao longo da evolução histórica. O marco decisivo para que o direito constitucional de liberdade fosse erigido à categoria de direito fundamental, bem como para que houvesse o reconhecimento de sua proteção legal, surgiu com as cartas e estatutos assecuratórios de direitos fundamentais, como a Magna Carta, em 1215, quando barões ingleses obrigaram João-Sem-Terra a firmá-la; a Petition of Rights, em 1628; o Habeas Corpus Amendment em 1679 e o Bill of Rights em 1688. Assim, o direito de liberdade passou a constar de todos os documentos internacionais de direitos humanos, fazendo repousar a sua legitimidade na retórica do jusnaturalismo. Ou seja, concebida como um direito humano fundamental, a liberdade passou a exibir características da universalidade, da inerência, da indivisibilidade da transnacionalidade e da inalienabilidade. As várias formas de liberdade, enquanto direitos humanos de primeira geração, guardam uma enorme interlocução com o direito processual penal na medida em que este último está em permanente e problemática interação com o sistema de liberdades públicas fundamentais. Isso porque, sempre que houver uma persecução penal é fato que também haverá As diversas formas de liberdade são também denominadas liberdades públicas, de um lado, porque estão definidas em normas de caráter público, as normas constitucionais e de processo, representando o próprio fundamento jurídico dos Estados que se estruturam com base nos valores e objetivos do liberalismo; de outro, porque tais liberdades configuram direitos de interesse geral no espaço público e até mesmo exercitáveis contra Pesquisa realizada pela OAB, disponível em: www.oab.br/noticiaprint.asp?id=2580. Acesso em: 09 julho de 2006. HENTZ, Luiz Antonio Soares. Indenização da prisão indevida. São Paulo: Leud, 1995, p.20-21. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 236-237. 91 o Estado. E são fundamentais, uma vez que integram a Carta de Direitos das constituições e compõem a base axiológica do Estado liberal, conferindo-lhe sustentáculo e fundamento ético-político. Com efeito, no campo processual penal é sempre muito tensa a relação estabelecida entre a necessidade da persecutio criminis, por exigências de defesa social, e os direitos e garantias fundamentais do indivíduo. Nesse confronto, a teoria do garantismo penal de Luigi Ferrajoli, alçou o processo penal à categoria de verdadeiro instrumento de proteção das liberdades públicas fundamentais, como verdadeiro mecanismo de efetivação dos direitos e garantias individuais. Sobre o assunto pondera Ada Grinover5: É dentro do processo penal, entendido como instrumento da persecução, que a liberdade do indivíduo avulta e se torna mais nítida a necessidade de se colocarem limites à atividade jurisdicional. A dicotomia defesa social/direitos de liberdade assume frequentemente conotações dramáticas no juízo penal; e a obrigação do Estado de sacrificar na medida menor possível os direitos da personalidade do acusado se transforma na pedra de toque de um sistema de liberdades públicas. Garantido o direito constitucional de liberdade, apresenta-se então o problema de estabelecer o equilíbrio entre a liberdade individual e a autoridade estatal. Ressaltese que a existência de um sistema de liberdades e dos respectivos instrumentos de garantia é condição sine qua non para a manutenção do Estado Democrático de Direito; e o processo penal próprio desse tipo de Estado se inscreve entre aqueles instrumentos de garantia da liberdade, cuja função primordial outra não é senão a de assegurar o respeito ao regime de liberdades públicas, sem as quais nem o Estado liberal nem a democracia liberal burguesa conseguirão sobreviver. É importante não perder de vista que a defesa de um regime de liberdades públicas, por meio da instrumentalidade do processo penal, não se confunde jamais com a defesa da impunidade de acusados ou criminosos. A sustentação de tal regime corresponde à defesa da própria democracia e do Estado Democrático de Direito. 1.2. Liberdade provisória A liberdade provisória é o instituto processual que permite ao acusado como direito subjetivo seu aguardar em liberdade o decorrer do processo até final julgamento. Esse benefício pode ser conferido, de forma a vincular ou não o acusado a determinadas obrigações no processo. Sua concessão se justifica em nome da precariedade do inquérito, como também da não definitividade do processo. Exige-se que em alguns casos o beneficiado submeta-se ao cumprimento de certas obrigações legais, 5 sob pena de sua revogação. As obrigações, conforme artigos 327 e 328 do CPP. A liberdade provisória se ampara no artigo 310 e seu parágrafo único do Código de Processo Penal e se apresenta sob duas modalidades, a saber: liberdade provisória com fiança e sem fiança. A custódia provisória sem fiança pode ser concedida em atenção à qualidade da pena, nas hipóteses que não for cominada pena privativa de liberdade, quando o máximo da pena privativa de liberdade não exceder a três meses (artigo 321 e seguintes, do CPP); liberdade provisória em função das circunstâncias do fato, quando o agente pratica o crime acobertado por uma das excludentes de antijuridicidade (artigo 310, parágrafo único do CPP); liberdade provisória relacionada com a condição econômica do acusado (artigo 350 do CPP); infração a que é imposta somente a pena de multa (artigo 321, inciso I, do CPP). A concessão da liberdade provisória mediante fiança é possível quando o ilícito for apenado com detenção ou prisão simples e a pena máxima cominada exceder a três meses, cuja fiança poderá ser concedida inclusive pela autoridade policial (artigo 322 do CPP); nos casos de delitos apenados com reclusão quando a pena mínima cominada não for superior a dois anos, cuja fiança somente será concedida pela autoridade judiciária competente (artigo 322, parágrafo único, c/c artigo 323, inciso I, do CPP); nos crimes contra a economia popular e de sonegação fiscal definidos em lei, quando houver prisão em flagrante (artigo 325, parágrafo 2°, incisos I, II e III, do CPP). A liberdade provisória não poderá ser concedida nos casos que seguem: quando a infração penal for punida com reclusão e a pena mínima cominada for superior a dois anos; quando se tratar de contravenções de vadiagem e mendicância; no caso de crime doloso punido com pena privativa de liberdade, se o réu for reincidente específico, ou seja, caso já tenha sido condenado por outro crime doloso em sentença definitiva (transitada em julgado); quando houver nos autos provas que demonstre ser o réu vadio; quando a infração penal for punida com reclusão e provoque clamor público ou tenha sido cometida com violência contra a pessoa ou com grave ameaça; nos casos de quebra de fiança anteriormente concedida no mesmo processo, ou ainda quando houver descumprimento, sem razão justificada, das obrigações relacionadas pelo artigo 350 do CPP; nos casos de prisão disciplinar, administrativa ou militar; quando o réu estiver em gozo de suspensão condicional da pena ou de livramento condicional, salvo se processado por crime culposo ou contravenção que admita fiança; quando presentes os motivos que determinam a decretação da prisão preventiva; quando se tratar de crimes hediondos e conexos elencados pela Lei n° 8.072/90 (artigo 1° e 2°). GRINOVER, Ada Pellegrini. Liberdades públicas e processo penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982, p.20. 92 Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. 2. Aspectos fundamentais do princípio da presunção de inocência O princípio da presunção liberal de inocência aparece, pela primeira vez em Constituições Brasileiras, na Constituição de 1988, no artigo 5º, inciso LVIII: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. A grande crítica feita a este princípio constitucional incide nas restrições que ele comporta, pois a própria Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 já afirmava que todo homem é presumido inocente, ao passo que, em seguida, estabelecia implicitamente a possibilidade de prisão sem culpa formada, ao determinar que esta deveria ser cumprida sem excesso. Logo, a presunção de inocência pareceria conduzir a uma noção de proibição de aplicação de efeitos da condenação, antes de um processo e antes de uma condenação. Entretanto, a ideia não vingou. Era necessária a preservação da “ordem pública” na sua extensão maior, o que viabilizava a permissão para restringir a liberdade, antes mesmo de submeter alguém a um processo e antes mesmo de ser confirmada a condenação num processo. Nesse sentido, leciona Batisti6: A presunção de inocência é uma garantia, abstrata e indeterminada, impeditiva, que assim redireciona o Estado para um não agir. É, então, um princípio de ação negativa. Exige um não fazer. A exceção – qual seja, a possibilidade de prisão – antes de condenação e antes mesmo do processo, passou a ser fundamentada como uma garantia inversa, ou seja, garantia de agir, de fazer em nome da prevalência do interesse social em face do interesse pessoal. Assim, a exceção que permite agir fundamenta-se no poder de cautela, em nome do acautelamento do interesse público e da segurança jurídica. Disto parte a separação entre privação de liberdade em face da condenação em processo e privação de liberdade cautelar. Note-se que as Constituições Brasileiras em nenhum momento previram expressamente a possibilidade de prisão obrigatória em face da gravidade de crimes. É firme o entendimento da Suprema Corte7 no sentido de que a gravidade objetiva do crime não é suficiente para determinar a prisão, mas tão somente a necessidade cautelar, preenchidos os requisitos legais previstos no artigo 312 e seguintes do estatuto processual penal. Portanto, uma prisão cautelar deve estar fundamentada na necessidade, ter caráter de subsidiariedade, excepcionalidade e imprescindibilidade, em razão da imagem de culpado gerada à pessoa detida aos olhos do público. A eficácia da medida cinge-se ao resultado útil a ser obtido, ou seja, não há cautelaridade a ser resguardada, se não houver risco durante a fase investigatória e instrutória e na consecução dos resultados. Ademais, o caráter de necessidade constrói-se vinculadamente à subsidiariedade. A cautelar em questão somente deve ser prevista e imposta como necessidade última. Portanto, deve ceder a outras cautelas que sejam adequadas para garantir o resultado processual. A excepcionalidade da presunção de inocência vigora através da marcação de o acusado responder solto a qualquer processo. A prisão processual cautelar é situação fática de exceção, a depender da completa análise do caso concreto. Outra garantia que se depreende do texto constitucional, é que a cautelar deve ser determinada por órgão judicial competente, com decisão fundamentada que justifiquem os pressupostos exigíveis da medida. 2.1. Questões terminológicas. Axiologia tridimensional da presunção de inocência. Alguns juristas discutem sobre a distinção prática das expressões “presunção de inocência” e “presunção de não culpabilidade”. Illuminati8 rejeita o debate semântico a fim de se evitar o risco de reduzir o princípio a uma inconcludente enunciação retórica em que o acusado de presumível inocente passa a ser considerado não culpado, situação esta que prejudica uma noção extremamente clara e historicamente consolidada. Nesse sentido é a lição de Alexandra Vilela9: Fazer a distinção entre presunção de inocência e presunção de não culpabilidade revela-se contraproducente, pois retira-se um significado determinado, favorecendo, assim, soluções arbitrárias no plano aplicativo. Apesar de a redação do texto constitucional se enveredar pela utilização da expressão “presunção de não culpabilidade”, a doutrina e a jurisprudência têm adotado, salvo raríssimas exceções, a designação original. A interpretação literal desse direito-garantia é equivocada, pois conduz ao paradoxo frente às medidas cautelares de restrição de liberdades e direitos, tais como: busca e apreensão, interceptação de comunicações e dados, etc. e até mesmo diante das formas de prisão provisória adotadas pela generalidade dos sistemas processuais. Portanto, ao longo do presente trabalho, a expressão “presunção de inocência” ou “presunção de não culpabilidade” será utilizada sem um rigor linguístico técnico, visto que as discussões sobre o assunto são inconclusivas e discrepantes. Ademais, o princípio da presunção de inocência apresenta três dimensões jurídicas no teor de sua análise, ou seja, atua como regra probatória, regra de tratamento e regra de garantia. BATISTI, Leonir. Presunção de inocência: apreciação dogmática e nos instrumentos internacionais e Constituições do Brasil e Portugal. Curitiba: Juruá, 2009, p.158. HC 90.063/SP, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, DJ 27.03.2007. ILLUMINATI, Giulio. La presuncione d´innocenza dell´imputato. Bolonha: Zanichelli, 1979, p.21. 9 VILELA, Alexandra. Considerações acerca da Presunção de Inocência em Direito Processual Penal. Reimpressão. Coimbra: Coimbra, 2005, p.53. 6 7 8 93 Primeiramente, atua como regra de tratamento, ou seja, embora recaiam sobre o imputado suspeitas de prática criminosa, o mesmo deve ser tratado no curso do processo como inocente, sem diminuí-lo social, moral ou fisicamente diante de outros cidadãos não sujeitos a um processo acusatório. Esta dimensão atua sobre a exposição pública do imputado, acerca de sua liberdade individual, mais precisamente, como limite às restrições de liberdade do acusado antes do trânsito em julgado a fim de se evitar a antecipação de pena. Sobre esse aspecto, o princípio funciona como limitação teleológica à aplicação da prisão preventiva10 Outra dimensão verifica-se no campo probatório; nesse sentido, o princípio atua como regra de distribuição do ônus da prova e regra de julgamento, em seu desdobramento in dubio pro reo. O ônus da prova incide sob dois aspectos: formal e material. O primeiro liga-se à distribuição entre as partes da incumbência de provar certos tipos de fatos. O segundo refere-se a quem sofre o prejuízo em função da dúvida sobre um fato no momento da sentença. No processo penal, para parte da doutrina, a questão da distribuição (iniciativa) entre as partes resta prejudicada, em razão da aplicação do princípio da verdade real, o qual permite que o próprio magistrado determine diligências e complemente a atividade probatória das partes. Entretanto, a visão massificada abordada nos manuais de processo penal é a de que cabe ao acusador a prova do fato e da autoria, bem como as circunstâncias que causam o aumento de pena; ao acusado cabe a prova dos fatos impeditivos ou extintivos, tais como as causas excludentes de antijuridicidade, da culpabilidade e da punibilidade, bem como das circunstâncias que impliquem diminuição de pena.11 A terceira dimensão incide na análise da presunção de inocência como regra de garantia. Assim, toda pessoa acusada de delito tem como garantia que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa; logo, o referido princípio impõe ao Ministério Público o dever de apresentar, em juízo, todas as provas de que disponha, sejam as desfavoráveis, sejam as favoráveis ao imputado. Além disso, viola-se a presunção de inocência como regra de garantia quando, na atividade acusatória ou probatória, não se observa estritamente o ordenamento jurídico. 3. Liberdade provisória e o crime de tráfico ilícito de entorpecentes: ponderações sobre a constitucionalidade do artigo 44, da Lei 11.343/06 A proibição da liberdade provisória para o crime de tráfico não é novidade, pois este era o espírito que direcionava a jurisprudência majoritária na vigência da Lei 6.368/76. 10 11 12 Pesquisas apontam que as apreensões de drogas ilícitas pela Polícia Federal, de 2001 a 2005, atingiram 1.112,45 toneladas. O indiciamento de traficantes pelo citado órgão vem numa crescente (2.756 em 2001, 3.543 em 2002, 3.150 em 2003, 3.265 em 2004 e 4.181 em 2005). Os dados do censo penitenciário realizado pelo Departamento Penitenciário Nacional do ministério da Justiça, relativo ao ano de 2007, aponta que existem 54.585 pessoas presas em razão da prática de crime de tráfico de drogas12. Nesse sentido, a aprovação da Lei 11.343/06 revogou expressamente as Leis 6.368/76 e 10.409/02, bem como modificou o panorama do tratamento do acusado ou condenado por determinados tipos penais relacionados às drogas. Dentre eles está o artigo 44, o qual dispôs que os crimes previstos nos artigos 33, caput e parágrafo 1º, e 34 a 37 são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos. Acrescentou o parágrafo único que, nos crimes previstos no caput do referido artigo, dar-se-á o livramento condicional após o cumprimento de dois terços da pena, vedada sua concessão ao reincidente específico. Portanto, esse era o quadro no qual se inseria a legislação no combate às drogas, com a evidente finalidade de recrudescer o ordenamento jurídico penal e promover uma falsa sensação de segurança ao cidadão brasileiro. 3.1. A alteração na Lei 8.072/90 e os seus reflexos na Lei de Drogas A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso XLIII, inovou ao estabelecer um mandado ao legislador para que, através de lei, passasse a considerar como inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os crimes definidos como hediondos, responsabilizando penalmente os mandantes, executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem. A justificante do constituinte é de que se tratava de crimes repugnantes, sórdidos, e, portanto, deveriam ter um tratamento mais rígido. Baseado no ordenamento constitucional, já em 1990, época de crescente alarde nacional em razão de suposto incremento da criminalidade, o Congresso Nacional aprovou a Lei de Crimes Hediondos, Lei 8.072 de 26 de julho de 1990. Apesar de não definir o que poderia ser considerado como “crime hediondo”, o texto legal estabeleceu, em seu artigo 1º, um rol de delitos que deveriam ser considerados como tal. NICOLITTI, André Luiz. As subversões da presunção de inocência: violência, cidade e processo penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006, p.63. NICOLITTI André Luiz, op. cit, p.80-83. NAÇÕES UNIDAS. Escritório contra Drogas e Crime. Perfil do País: Brasil, 2005. Disponível em <www.unodc.org/pdf/brazil/portugues_final2.pdf. Acesso em 05.03.2008. 94 Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. Ao mesmo passo, o diploma legislativo equiparou aos crimes hediondos a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo. Dessa maneira, tanto os delitos hediondos quanto os equiparados seriam insuscetíveis de anistia, graça, indulto, fiança e liberdade provisória, consoante artigo 2º. Como não bastasse, o prazo de prisão temporária aumentou de 5 para 30 dias (prorrogáveis por outros 30 dias). Portanto, a lógica das prisões decorrentes de sentenças penais condenatórias recorríveis fora invertida, ao fixar como regra a fundamentação para a liberdade e não para a prisão, e o regime para cumprimento da pena fora fixado como o integral fechado. Por cerca de 16 anos, o crime de tráfico de drogas (assim entendido pelo Supremo Tribunal Federal como aquele previsto nos artigos 12 e 13 da antiga Lei 6.368/76, já que inexistente um tipo penal com tal “nomen juris”) na condição de equiparado a hediondo, sofreu as consequências penais e processuais da Lei dos Crimes Hediondos. Ocorre que, com a previsão do artigo 44 da Lei 11.343/06, a proibição da liberdade provisória passou a ser expressa. O desfecho histórico-legislativo de toda essa sucessão de leis penais no tempo ocorreu com a publicação, em 29 de março de 2007, da Lei 11.464, a qual alterou a Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072/90) e, teoricamente, passou a permitir liberdade provisória em crimes hediondos e equiparados. A mencionada lei nada dispôs sobre eventual vedação à concessão de sursis e à conversão da pena privativa de liberdade em restritiva de direitos. A Lei 11.464/07 previu que o cumprimento da pena deveria ser inicialmente em regime fechado e a progressão de regime após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o condenado fosse primário, e 3/5 (três quintos), se fosse reincidente, para os crimes nela elencados. Entretanto, surge uma controvérsia ao analisar o disposto no artigo 2º da Lei 8.072/90 com o disposto no artigo 44 da Nova Lei de Drogas, visto que este último dispositivo legal veta a concessão de liberdade provisória para o crime de tráfico de entorpecentes. A maioria dos doutrinadores entende que o crime de tráfico de drogas comporta a liberdade provisória sem fiança. Guilherme de Souza Nucci13 assevera ser possível a concessão de liberdade provisória para o crime de tráfico de entorpecentes, visto que a Lei 8.072/90, alterada pela Lei 11.464/07, e a Lei 11.343/06 são especiais e da mesma categoria hierárquica. Logo, prevalece a lei editada mais recentemente. No mesmo sentido, Fernando Capez14 salienta a necessidade de o magistrado justificar o periculum in mora, ao negar o pedido de liberdade provisória ao acusado pela prática do crime de tráfico de drogas, em razão da prevalência do princípio da não-culpabilidade. Na contramão, Vicente Greco Filho15 sustenta que o crime de tráfico de drogas não comporta liberdade provisória sem fiança. Argumenta que a Lei nº 11.464/07, ao ser promulgada, modificou o artigo 2º, inciso II da Lei nº 8.072/90, e permitiu a concessão de liberdade provisória para os crimes hediondos e equiparados; contudo, diz tratar-se de uma modificação genérica, que não abarca o crime de tráfico de drogas, visto que a Lei de Drogas veta expressamente a concessão de liberdade provisória para os crimes de tráfico ilícito. Assevera, ainda, que a Lei nº 8.072/90 aplicar-se-á somente aos crimes de tráfico de drogas, quando suas disposições não contrariarem o disposto na Lei de Drogas. Na visão de Francis Rafael Beck16, equivocada a argumentação acima. Cotejando os dois diplomas legais, percebe-se que a nova Lei de Drogas, assim como a Lei de Crimes Hediondos, manteve a vedação à fiança. Entretanto, no caso concreto, a vedação não oferece maiores consequências ao acusado: A fiança, enquanto forma de assegurar ao preso em flagrante o direito de liberdade provisória, perdeu atualmente sua importância no sistema processual penal, o qual permite a concessão da liberdade “com” ou mesmo “sem” o pagamento de fiança, desde que ausente os requisitos para a decretação da prisão preventiva presentes no artigo 310, parágrafo único. Ou seja, ainda que incabível a fiança, a liberdade provisória não será afetada. Portanto, parece um pouco desarrazoado e contraditório o entendimento restritivo da Liberdade provisória na Lei 11.343/06 e suscetível na Lei de Crimes Hediondos. Beck17 critica o recrudescimento exacerbado do sistema penal e cria uma nova categoria ao delito de tráfico de drogas, chamado de crimes “supra-hediondos”: Dessa forma, certo é que os crimes relacionados pelo artigo 44 da Lei 11.343/06 têm restrições penais mais severas do que os próprios crimes referidos na Lei 8.072/90. Isso porque àqueles, como visto, não é permitida a liberdade provisória, sursis e conversão de penas. O que resta evidente é que a Lei de Drogas criou uma categoria de crimes “supra-hediondos”, já que com limitações penais mais graves do que os próprios crimes hediondos, previstos pela Constituição Federal como os de mais alto grau de reprovação jurídico-penal. NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Comentadas. 3ª ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p.348. CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: Legislação Penal Especial. v. 4. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, 143-148. GRECO FILHO, Vicente; RASSI, João Daniel. Lei de Drogas Anotada: Lei nº 11.343/2006. 2ª ed. ver. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p.155-157. 16 BECK, Francis Rafael. A lei de drogas e o surgimento de crimes “supra-hediondos”: uma necessária análise acerca da aplicabilidade do artigo 44 da Lei 11.343/06. In: CALLEGARI, A.L.; EDY, M.T. (Org.). Lei de Drogas: aspectos polêmicos à luz da dogmática penal e da política criminal. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p.159. 17 BECK, Francis Rafael, op. cit, p.161. 13 14 15 95 Ainda que haja vedação expressa para concessão de liberdade provisória, imprescindível a análise dos requisitos que autorizam a decretação da prisão preventiva. Ausentes estes, a liberdade deve ser decretada, independentemente da gravidade do delito. Portanto, a gravidade do fato e a presumível periculosidade do agente não são elidentes do princípio da presunção de inocência. Caso inexistam os requisitos autorizadores da custódia preventiva, deve ser concedida a liberdade provisória18. Ressalte-se que, para a regularidade processual da decretação da prisão preventiva, não basta a identificação da presença dos requisitos autorizadores. É imprescindível que o despacho de decretação da custódia cautelar seja suficientemente fundamentado, com indicação precisa da presença de cada um dos requisitos. 3.2 A discutível constitucionalidade do artigo 44 da Lei de Drogas e o princípio da presunção de inocência É comum observar no cotidiano forense decisões mecanicistas com teor distanciado dos princípios e normas constitucionais, iniciando-se ai um confronto direto com as liberdades públicas fundamentais. É a tradução de manifestações nulas por absoluta ausência de fundamentação, bem como por instituir a prisão preventiva compulsória, automática. Essa excessiva visão legalista fere a garantia constitucional da presunção do estado de inocência, a qual tem como corolário lógico a proibição de que se adote contra o réu qualquer medida de caráter punitivo antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. A lei ordinária pode admitir ou não a liberdade provisória, conforme circunstâncias concretas; porém, não pode sempre vedá-la em caráter genérico e absoluto para certa tipologia de crimes. O principal fundamento para a inconstitucionalidade do artigo 44 da Lei 11.343/06 é a inversão dos valores jurídicos constitucionais desta norma: a lei ordinária tornou regra o que era exceção no ordenamento constitucional brasileiro, ou seja, a prisão cautelar tornou-se norma cogente para os crimes hediondos e equiparados e a liberdade pessoal, a exceção. Assim, o cenário construído pela nova Lei 11.343/06 é o da prisão preventiva obrigatória. Além disso, o legislador ordinário disse mais do que o legislador constituinte, uma vez que o artigo 5º, inciso XLII, da Carta Política proíbe aos crimes considerados hediondos e aos por ele assemelhados a anistia ou graça, tornando-os inafiançáveis, sem mencionar, no entanto, a vedação expressa à liberdade provisória. 18 19 Sobre o assunto, César Faria Júnior19 apoia-se na hermenêutica jurídica e faz suas ponderações acerca do citado inciso constitucional: Trata-se de exceção que a constituição faz a si mesma e, por conseguinte, não é dado ao legislador ordinário ampliar e estender uma exceção constitucional, sabido que, pela mais elementar regra de hermenêutica, as exceções devem ser interpretadas restritivamente. Portanto, não pode o legislador proibir a concessão da liberdade provisória, naqueles crimes, por falta de previsão e, consequente, autorização constitucional. A segregação provisória deve ser utilizada somente para a proteção rápida e emergencial de interesses envolvidos na persecução penal. Dois requisitos são fundamentais para a restrição da liberdade provisória, quais seja, a probabilidade do fumus comissi delicti e do periculum libertatis. Não basta dizer que o direito é concretude se, na cotidianidade das práticas jurídicas, tais afirmações não encontram comprovação, nem de longe, na medida em que os juristas sacrificam a singularidade do caso concreto em favor de “pautas gerais”, fenômeno que não é percebido no imaginário jurídico. No contexto da dogmática jurídica, os fenômenos sociais que chegam ao Judiciário são analisados como meras abstrações jurídicas, nas quais os protagonistas do processo (autor e réu) estabelecem uma espécie de coisificação, objetificação da relação jurídica. Frise-se que o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.112-1/DF, relativamente ao estatuto do desarmamento, decidiu que o artigo 21 da Lei nº 10.826/03 afronta a constituição. Referido artigo guarda idêntica redação à do artigo 44 da Lei antitóxicos, uma vez que proíbe genericamente a concessão de liberdade provisória sem apreciar os dados objetivos e concretos de cada caso específico, bem como as circunstâncias pessoais do acusado. Pelos motivos expostos, a recente decisão serve de parâmetro e fundamento para o reconhecimento da inconstitucionalidade, difusa ou em concreto, da vedação à liberdade provisória pelo artigo 44 da Lei 11.343/06. 3.3 Casuística 3.3.1 Superior Tribunal de Justiça Cumpre salientar que a Corte Superior apresenta duas posições distintas sobre o assunto. A quinta Turma defende a legalidade do texto da Lei 11.343/06 e a sexta Turma justifica a necessidade de idônea motivação para decretação da prisão cautelar. A orientação da quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça é o da prevalência do disposto no artigo 44 da MARCÃO, Renato. Tóxicos: Lei n.11.343 de 23 de agosto de 2006 – nova lei de drogas. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 370. FARIA JÚNIOR, Cesar de. A motivação das decisões como garantia constitucional e seus reflexos práticos. Fascículo de Ciências Penais, v. 4, nº1, p.15. 96 Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. Lei 11.343/06. Os Ministros Napoleão Nunes Maia Filho, Laurita Vaz e Felix Fischer, principais relatores da Turma acerca do assunto, proferiram decisão no sentido de que a norma contida na Nova Lei de Drogas traz vedação expressa do benefício da liberdade provisória, a qual, por si só, é motivo suficiente para impedir a concessão da benesse ao réu preso em flagrante por crime de tráfico ilícito de drogas20. Outro argumento utilizado para negar os pedidos de liberdade provisória é o de que a proibição da liberdade provisória aos presos em flagrante de delito pela prática de crime hediondo deriva da inafiançabilidade preconizada pelo artigo 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal21. Entretanto, a sexta Turma tem entendimento diametralmente oposto ao ora exarado. Baseada sua fundamentação no garantismo constitucional da presunção de inocência, argumenta a Ministra Maria Thereza de Assis Moura22 que para a decretação da prisão cautelar é indispensável a comprovação concreta do periculum libertatis: A garantia constitucional da presunção de inocência exige que o magistrado demonstre concretamente a utilidade e a necessidade da medida extrema a partir de um juízo de ponderação e de proporcionalidade, este alicerçado na análise simétrica entre a idéia da proteção da coletividade, sentida pela óptica da segurança social, e o respeito à liberdade do cidadão. No caso vertente, não se encontra presente o periculum libertatis por meio do que se assentou a proteção da ordem pública. Ordem concedida para permitir que a Paciente responda em liberdade o processo penal, sob o compromisso de comparecimento a todos os atos do processo. Em seu voto no Habeas Corpus 139.412/SC, a Ministra alerta que o indeferimento da liberdade provisória pautado somente na vedação legal do artigo 44 é inidôneo para justificar a imprescindibilidade da medida cautelar. Alega que a decisão de prisão deve fundar-se em fatos concretos e não na gravidade abstrata do delito. Neste acórdão, a Ministra Maria Thereza posiciona-se favorável à tutela das garantias fundamentais, visto ser esse o princípio que lastreia o Estado Democrático de Direito. Ressalta a vigência absoluta das liberdades públicas no ordenamento jurídico brasileiro: Dúvida não há, portanto, de que a liberdade, antes do trânsito em julgado, é a regra, não se compactuando com a automática determinação/manutenção de encarceramento. Pensar-se diferentemente seria como estabelecer uma gradação no estado de inocência presumida. Ora, é-se inocente, numa primeira abordagem, independentemente da imputação. Tal decorre da raiz da idéia-força da presunção de inocência e deflui dos limites da condição humana, a qual se ressente de imanente falibilidade. A necessidade de motivação das decisões judiciais – dentre as quais se insere aquela relativa ao status libertatis do imputado antes do trânsito em julgado – não pode significar, a meu ver e com todo o respeito dos votos contrários, a adoção da tese de que, nos casos de crimes graves, há uma presunção relativa da necessidade da custódia cautelar em se tratando de flagrante. E isso porque a Constituição da República não distinguiu, ao estabelecer que ninguém poderá ser considerado culpado antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória, entre crimes graves ou não, tampouco estabeleceu graus em tal presunção. A necessidade de fundamentação decorre do fato de que, em se tratando de restringir uma garantia constitucional, é preciso que se conheça dos motivos que a justificam. É nesse contexto que se afirma que a prisão cautelar não pode existir ex legis, mas deve resultar de ato motivado do juiz. Trata-se de verdadeira afronta à garantia da motivação das decisões judiciais o decisum que justifica a prisão da forma supracitada. Como medida extrema, dotada de absoluta excepcionalidade, deve ser a prisão provisória justificada em motivos concretos, e, ainda, que indiquem a necessidade cautelar da prisão, sob pena de violação à garantia da presunção de inocência. E ratifica os argumentos contrários à aplicabilidade da nova redação do artigo 2º da Lei 8.072/90 ao crime de tráfico de entorpecente: A propósito da discussão, nesta Corte tem havido divergência quanto à necessidade de justificar a prisão quando o agente é preso em flagrante pela suposta prática de alguns dos crimes previstos no inciso XLIII, do art. 5º, da Constituição Federal. Desconsiderar o teor da Lei n.º 11.464/07, ou entender que tal comando normativo não se aplica à Lei n.º 11.343/06 - sendo que ambas são comandos normativos de mesma hierarquia - é realizar, a meu ver, uma distinção judicial que nem mesmo foi empreendida pelo Texto Maior. Com efeito, não é dado ao Poder Judiciário, sob pena de se incorrer em vedado arbítrio, promover a diferenciação, criando-se, de modo sinuoso, uma nova categoria, ao arrepio da lei e da Constituição. Desprezando-se a nova redação do art. 2.º da Lei n.º 8.072/90, haverá, também, a violação do princípio da proporcionalidade. Tal decorre do fato de se empreender uma disciplina mais rígida para o crime de tráfico, o qual é equiparado a hediondo pela Constituição Federal. Sobreleve-se o fato de que, dentre os hediondos, há crimes punidos mais intensamente do que o delito de tráfico de BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 143.038/RJ. Relatora: Ministra Laurita Vaz. 27 de maio de 2010. Disponível em <www.stj.gov.br> Acesso em: 06 de julho de 2010. No mesmo sentido: HC 144.303. Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho. 06 de maior de 2010; HC 123629/SP. Relatora: Ministra Laurita Vaz, 20 de abril de 2009. 21 BRASIL. Superior Tribunal. HC 78.237/RS. Relator: Ministro Felix Fischer. 07 de agosto de 2007. Disponível em <www.stj.gov.br> Acesso em: 18 de março de 2010. 22 BRASIL.Superior Tribunal de Justiça. HC 68.397/MG. Relatora: Ministra Maria Thereza de Assis Moura. 19 de maio de 2009. Disponível em <www.stj.gov.br> Acesso em: 02 de abril de 2010. 20 97 drogas, como o homicídio qualificado, e nem por isso a nova regra da liberdade provisória deixará de ser aplicada a eles. 3.3.2 Supremo Tribunal Federal O Supremo Tribunal Federal vinha pacificando seu entendimento que a Lei 11.464/07 apenas corrigiu redundância legislativa, pois ao vedar a fiança, implicitamente vedava a liberdade provisória. Justificava que ainda que se entendesse abolida a proibição da liberdade provisória, essa permissão não se estenderia para o delito de tráfico, pois tanto a Constituição Federal como a Lei 11.343/06 impedem a aplicação do citado benefício. Assim foi o voto do Ministro Gilmar Mendes23. Compartilham o mesmo entendimento: Ricardo Lewandowski, Carlos Ayres Britto, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Marco Aurélio e Ellen Gracie. A Ministra Cármen Lúcia24 assevera ser desnecessário questionar sobre a constitucionalidade da supressão da liberdade provisória aos crimes de tráfico de entorpecentes: A proibição de liberdade provisória, nos casos de crimes hediondos e equiparados, decorre da própria inafiançabilidade imposta pela Constituição da República à legislação ordinária (constituição da República, art.5º, inc. XLIII). O art.2º, inc.II, da Lei 8.072/90 atendeu ao comando constitucional, ao considerar inafiançáveis os crimes de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos. Inconstitucional seria a legislação ordinária que dispusesse diversamente, tendo como afiançáveis delitos que a Constituição da República determina seja inafiançáveis. Desnecessidade de se reconhecer a inconstitucionalidade da Lei 11.464/07, que, ao retirar a expressão “e liberdade provisória” do art. 2º, inc. II, da Lei 8.072/90, limitouse a uma alteração textual: a proibição da liberdade provisória decorre da vedação de fiança, não da expressão suprimida, a qual, segundo a jurisprudência de Supremo Tribunal, constituía redundância. Mera alteração textual, sem modificação da norma proibitiva de concessão da liberdade provisória aos crimes hediondos e equiparados, que continua vedada aos presos em flagrante por quaisquer daqueles delitos. A Lei 11.343/06 não poderia alcançar o delito de tráfico de drogas, cuja disciplina já constava de lei especial aplicável ao caso vertente. Irrelevância da existência, ou não, de fundamentação cautelar para a prisão em flagrante por crimes hediondos ou equiparados. Parte da doutrina crítica tal argumentação. Lendo (e relendo) o art.5º, XLIII, da CF/88, não se encontra (nem implicitamente) a vedação da liberdade provisória nos crimes hediondos. No caso do tráfico de drogas, equiparado a hediondo desde 1990, a proibição da liberdade provisória foi reiterada na Nova Lei de Drogas, mais precisamente em seu artigo 44. Desde 08.10.2006, data em que entrou em vigor a nova lei, essa proibição, portanto, achava-se presente tanto na lei geral (Lei dos Crimes Hediondos) como na lei especial (Lei de Drogas). Esse cenário foi completamente alterado com o advento da Lei 11.464/07 que, vigente desde 29.03.2007, aboliu a vedação da liberdade provisória. Adverte Gomes25 que houve uma sucessão, no tempo, de leis processuais materiais, fenômeno regido pelo princípio da posterioridade, isto é, a lei posterior revoga a anterior (essa revogação, como sabemos, pode ser expressa ou tácita; no caso da Lei 11.464/2007, que é geral, derrogou expressamente parte do art.44 da Lei 11.343/2006, que é especial). Em outras palavras: desapareceu do citado art. 44 a proibição da liberdade provisória, porque a nova lei revogou (derrogou) explicitamente a antiga. Portanto, o princípio vigente é o da posterioridade, não o da especialidade, que pressupõe a vigência concomitante de duas ou mais leis, aparentemente aplicáveis ao caso concreto. Não se pode confundir o instituto da sucessão de leis penais (conflito de leis no tempo) com o conflito aparente de normas penais o primeiro há uma verdadeira sucessão de leis, ou seja, a posterior revoga ou derroga a anterior; já no segundo, pressupõe e exige duas ou mais leis em vigor e, por força do princípio “ne bis in idem” uma só norma será aplicável. Outra distinção é que o conflito aparente de leis penais é regido pelos princípios da especialidade, subsidiariedade e consunção. O que reina na sucessão de leis penais é o da posterioridade. O Congresso Nacional, consoante se depreende, ressalvou as hipóteses em que o benefício era vedado pela lei especial, a fim de impedir os efeitos da lei posterior. Portanto, observa-se que a interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal gera indisfarçável injustiça. Todavia, recentemente, a Suprema Corte vem apresentando entendimento mais ponderado para concessão da liberdade provisória aos crimes de tráfico de entorpecente. Quedamse nesse sentido os Ministros Celso de Mello, Joaquim Barbosa, Eros Grau e Cezar Peluso. Na decisão em caráter liminar do Habeas Corpus 100742/SC26, o Ministro Celso de Mello repeliu o artigo 44, da Lei de Drogas. O argumentou foi de que a vedação seria inconstitucional, pois incompatível, independentemente BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 92495/MG. Relator: Ministro Gilmar Mendes. 9 out. 2007. Disponível em <www.stf.gov.br> Acesso em: 18 de janeiro de 2010. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 93229/SP. Relatora: Ministra Cármen Lúcia. 01 abr. 2008. Disponível em <www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/listarjurisprudencia.asp> Acesso em: 05 set. 2009. 25 GOMES, Luiz Flávio (coord.); BIANCHINI, Alice; CUNHA, Rogério Sanches; OLIVEIRA, William Terra de. Lei de Drogas Comentada: artigo por artigo: Lei 11.343 de 23.08.2006. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p.235. 26 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 100742/SC. Relator: Ministro Celso de Mello. 03 nov. 2009. Disponível em <www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/listarjurisprudencia.asp> Acesso em: 05 fev. 2010. No mesmo sentido: HC 93.0565/PE. Relator: Ministro Celso de Mello. 16 dez. 2008; HC 92.880-3/GO. Relator: Ministro Joaquim Barbosa. 20 de maio de 2008; HC 101.505/SC. Relator: Ministro Eros Grau. 15 dez. 2009. 23 24 98 Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. da gravidade objetiva do delito, com a presunção de inocência e a garantia do “due process f Law”. O Ministro ainda ressalta que a mesma situação registra-se em relação ao artigo 7º da Lei 9.034/95, Lei do Crime Organizado, e no artigo 21 do Estatuto do Desarmamento, o qual fora declarado inconstitucional em via de ação direta. Conclusão A sanha do Poder Legislativo, numa demagógica tentativa de combater a criminalidade através da supressão de direitos e garantias individuais, encontra a devida resistência pelo Poder Judiciário, através do reconhecimento da manifesta inconstitucionalidade. O artigo 44 da Lei Antitóxicos, ao proibir genericamente a concessão de liberdade provisória ao acusado de tráfico, associação e financiamento ao tráfico ilícito de entorpecentes, infringe diretamente o princípio do estado de inocência e o dever de fundamentação das decisões judiciais. Contra o estado de inocência, porque permite a adoção de custódia preventiva sem observar os princípios de natureza cautelar que devem inspirar a medida e tornarse, portanto, punição antecipada. O corolário lógico desse princípio proíbe que se adotem contra o réu quaisquer medidas de caráter punitivo antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória. As prisões cautelares não podem se converter em forma antecipada de punição penal; são instrumentos excepcionais utilizados para viabilizar a investigação criminal sempre que a liberdade do acusado possa comprometer o regular desenvolvimento e eficácia da atividade processual. Admitir a prisão de uma pessoa, sem que haja uma decisão condenatória transitada em julgado, através da mera homologação da prisão em flagrante, por haver permissivo legal, constitui manifesto retrocesso. Dar guarida a norma de tal jaez é sustentar a inconstitucionalidade, de tal forma a suprimir o princípio da presunção de inocência. As alterações pertinentes a Lei de Crimes hediondos, através da Lei 11.464/07, não impedem a aplicação da liberdade provisória aos crimes de tráfico ilícito de entorpecentes. Os tribunais seguem divididos com relação ao assunto. Todavia, ganha cada vez mais espaço o argumento de inconstitucionalidade da referida norma e a possibilidade de decretação da liberdade provisória aos crimes de tráfico de drogas. Abstract: The status libertatis is a fundamental right constitutionally guaranteed and, therefore, can not be deprived arbitrarily by the state.With the absolute primacy of fundamental civil liberties, imprisonment may be imposed only protective when completed the legal requirements and demonstrated their need for a criminal prosecution. Nevertheless, the new Drug Law expressly forbade the possibility of parole for crimes of drug trafficking, because abstract gravity and danger of the crime. This standard affront to the dictates of a constitutional democratic state of law. Emphasize that the presumption of innocence is a right to every citizen to remain free until proven guilty (Article 5, LVII, Federal Constitution). If ordered his arrest, this order should be written and substantiated, otherwise of his parole be imposed (Article 5, LXI and LXVI). The fact that the crime of illicit drugs be treated as hate crime (Law 8.072/90 and amended by Law 11.464/07) can not be obstacle to the injunction of freedom. This monograph describes the principles of blatant unconstitutionality of article 44 in the new Law of Drugs and how this standard affront to guarantee individual freedom of locomotion. In preparing the article, the method literature was use as a method of procedure, and dialectical critical as method of approach. Key words: freedom; trafficking; drugs; innocence. Bibliografia Bibliografia BATISTI, Leonir. Presunção de inocência: apreciação dogmática e nos instrumentos internacionais e Constituições do Brasil e Portugal. Curitiba: Juruá, 2009. BECK, Francis Rafael. A lei de drogas e o surgimento de crimes “supra-hediondos”: uma necessária análise acerca da aplicabilidade do artigo 44 da Lei 11.343/06. In: CALLEGARI, A.L.; WEDY, M.T. (Org.). Lei de Drogas: aspectos polêmicos à luz da dogmática penal e da política criminal. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008. CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: Legislação Penal Especial. v. 4. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007. FARIA JÚNIOR, Cesar de. A motivação das decisões como garantia constitucional e seus reflexos práticos. Fascículo de Ciências Penais, v.4, nº1. Porto Alegre: Fabris, 1991. 99 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Presunção de Inocência e Prisão Cautelar. São Paulo: Saraiva, 1991. GOMES, Luiz Flávio (coord.); BIANCHINI, Alice; CUNHA, Rogério Sanches; OLIVEIRA, William Terra de. Lei de Drogas Comentada: artigo por artigo: Lei 11.343 de 23.08.2006. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. GRECO FILHO, Vicente. Tóxicos: prevenção-repressão: comentários à Lei nº 10.409/2002 e a parte vigente da Lei nº 6.368/76. 12. ed. Atual. São Paulo: Saraiva, 2006. _____________, Vicente; RASSI, João Daniel. Lei de Drogas Anotada: Lei nº 11.343/2006. 2ª ed. ver. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. GRINOVER, Ada Pellegrini. Liberdades públicas e processo penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982 HENTZ, Luiz Antônio Soares. Indenização da prisão indevida. São Paulo: Leud, 1996. ILLUMINATI, Giulio. La presuncione d´innocenza dell´imputato. Bolonha: Zanichelli, 1979. MARCÃO, Renato. Tóxicos: Lei n.11.343 de 23 de agosto de 2006 – nova lei de drogas. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. ________. Art. 44 da Lei 11.343/2006 (lei de drogas): a liberdade provisória em crime de tráfico de drogas na visão do Supremo Tribunal Federal. In Boletim IBCCRIM. São Paulo: IBCCRIM, ano 18, n. 211, p. 01-02, jul., 2010. 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Despesas com serviços prestados de agenciamento e manutenção de estagiários junto aos clubes de futebol brasileiros Pesquisa, apresentação do assunto e autoria do voto do relator confirmado pelo Colegiado: ALEXANDRE NAOKI NISHIOKA Doutor em Direito Econômico e Financeiro pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP. Professor dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação de Direito Tributário da Fundação Armando Alvares Penteado – FAAP. Conselheiro Titular do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda - CARF/MF. Redator-chefe da Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, publicada pela Editora da Revista dos Tribunais. Integrante da equipe de profissionais da Wald Associados Advogados. Ministério da Fazenda Conselho Administrativo de Recursos Fiscais Segunda Seção de Julgamento Processo nº 13808.005919/2001-35 Recurso nº 179.647 Voluntário Acórdão nº 2101-00.858 – 1º Câmara / 1ª Turma Ordinária Sessão de 21 de outubro de 2010 Matéria IRPF Recorrente NOBUO NAYA Recorrida FAZENDA NACIONAL Assunto: Imposto sobre a renda de pessoa física IRPF Exercício: 1997, 1998, 2000 OMISSÃO DE RENDIMENTOS. AUSÊNCIA DE DECLARAÇÃO DE RECURSOS DEPOSITADOS EM CONTAS SITUADAS NO EXTERIOR. FALTA DE DEMONSTRAÇÃO DE QUE PARTE DESTES RECURSOS SE DESTINAVA À PESSOA JURÍDICA. PROCEDÊNCIA DO AUTO DE INFRAÇÃO. Havendo, in casu, a comprovação de que o contribuinte detinha recursos depositados em contas situadas no exterior, posteriormente transferidos para o Brasil, e, mais ainda, não tendo o contribuinte logrado comprovar que a integralidade dos recursos se destinava à pessoa jurídica situada no Brasil, é cabível a tributação efetuada pela fiscalização no que atine à diferença entre os recursos transferidos para o Brasil, e aqueles efetivamente repassados para a referida pessoa jurídica. OMISSÃO DE RENDIMENTOS. DUPLICIDADE DE RESIDÊNCIAS NOS TERMOS DA LEGISLAÇÃO INTERNA DO BRASIL E DO JAPÃO (DUAL RESIDENCE). AUSÊNCIA DE PREVISÃO NO ACORDO DE BITRIBUTAÇÃO CELEBRADO DE CLÁUSULAS DE DESEMPATE (TIE-BREAKER RULES). CONFLITO DE RESIDÊNCIAS QUE, NOS TERMOS DO ART. 4(2), DEVERIA SER SOLUCIONADO POR PROCEDIMENTO AMIGÁVEL. IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DO ACORDO. Sendo certo que as legislações dos Estados contratantes, a saber, Brasil e Japão, aplicadas em consonância com o artigo 4º do acordo de bitributação celebrado, qualificam o contribuinte como residente, caberia a instauração de procedimento amigável para, nos termos do acordo, solucionar o impasse, permitindo a alocação dos recursos de acordo com as espécies de rendimentos previstas no tratado (conceitos-quadros). Inexistindo mútuo entendimento entre as Partes, pois, não há fundamento para a compensação do imposto recolhido no Japão. 101 AD ARGUMENTANDUM. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO, PELO CONTRIBUINTE, DE QUE OS VALORES TRANSFERIDOS PARA O BRASIL SÃO OS MESMOS OFERECIDOS À TRIBUTAÇÃO NO JAPÃO, E, IGUALMENTE, QUE REFERIDOS VALORES FORAM RECOLHIDOS NESTE PAÍS. IMPOSSIBILIDADE DE COMPENSAÇÃO COM O IRPF, IN CASU. Inexistindo, igualmente, nos autos, prova (i) de que os valores declarados ao Fisco japonês são os mesmos considerados na apuração da omissão de rendimentos no Brasil, e (ii) que referido montante foi tributado naquele país, incabível a compensação com o tributo devido no Brasil. IRPF. ACRÉSCIMO PATRIMONIAL A DESCOBERTO. CRITÉRIO DE APURAÇÃO. De acordo com a Lei 7.713/88, o acréscimo patrimonial a descoberto deve ser apurado através de demonstrativo de evolução patrimonial que indique, mensalmente, tanto as origens e recursos, como os dispêndios e aplicações. IRPF. ACRÉSCIMO PATRIMONIAL A DESCOBERTO. DEMONSTRATIVO DA EVOLUÇÃO PATRIMONIAL. A impugnação ao demonstrativo da evolução patrimonial deve ser amparada em provas, não bastando meras alegações do contribuinte no sentido de que a fiscalização não considerou determinados valores, tanto na origem dos recursos, como nos dispêndios. MULTA ISOLADA E MULTA DE OFÍCIO. CONCOMITÂNCIA. IMPOSSIBILIDADE. A multa isolada não pode ser exigida concomitantemente com a multa de ofício. Precedentes do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais e da Câmara Superior de Recursos Fiscais. Recurso voluntário parcialmente provido. Vistos, relatados e discutidos os presentes autos. Acordam os membros do Colegiado, por maioria de votos, em dar provimento parcial ao recurso para excluir os valores cobrados a título da multa isolada, nos termos do voto do Relator. Vencido o Conselheiro Caio Marcos Cândido que negava provimento ao recurso em relação à multa isolada aplicada concomitantemente. Caio Marcos Cândido - Presidente Alexandre Naoki Nishioka – Relator Participaram do presente julgamento os Conselheiros Caio Marcos Cândido, Odmir Fernandes, Gonçalo Bonet Allage, José Raimundo Tosta Santos, Alexandre Naoki Nishioka e Ana Neyle Olímpio Holanda. Relatório Trata-se de recurso voluntário interposto em 20 de outubro de 2008 (fls.549/554) contra o acórdão de 102 fls. 533/539, do qual o Recorrente teve ciência em 03 de outubro de 2008 (fl. 548), proferido pela 4ª. Turma da Delegacia da Receita Federal do Brasil de Julgamento em São Paulo II (SP), que, por unanimidade de votos, julgou procedente em parte o auto de infração de fls. 498/500, lavrado em 13 de novembro de 2001 (ciência em 22 de novembro de 2001), em virtude de omissão de rendimentos recebidos de fontes no exterior, acréscimo patrimonial a descoberto e falta de recolhimento de IRPF devido a título de carnê leão, verificados nos anos-calendário de 1996, 1997 e 1999. O acórdão teve a seguinte ementa: “ASSUNTO: IMPOSTO SOBRE A RENDA DE PESSOA FÍSICA - IRPF Ano-calendário: 1996, 1997, 1999 RENDIMENTOS OMITIDOS. Restando comprovada nos autos a percepção de rendimentos não devidamente declarados pelo interessado, a autoridade administrativa tem o poder-dever de efetuar o lançamento de ofício do imposto de renda sobre a parcela de rendimentos omitidos e excluir a parcela dos rendimentos tributáveis já declarados. ACRÉSCIMO PATRIMONIAL A DESCOBERTO. O acréscimo patrimonial, não justificado pelos rendimentos tributáveis, não tributáveis ou isentos e tributados exclusivamente na fonte só é elidido mediante a apresentação de documentação hábil que não deixe margem a dúvida. MULTA ISOLADA E MULTA DE OFÍCIO SIMULTANEIDADE. É cabível o lançamento da multa isolada sobre carnê leão não recolhido concomitante à multa de ofício sobre o imposto apurado de ofício na declaração inexata, porquanto são multas aplicáveis sobre bases de cálculo distintas e penalizam infrações diferentes. MULTA ISOLADA. PENALIDADE. APLICAÇÃO RETROATIVA DE LEGISLAÇÃO MAIS BENÉFICA. Aplica-se a penalidade menos severa estabelecida em legislação posterior à prevista na lei vigente ao tempo da autuação. Lançamento Procedente em Parte” (fl. 533). Não se conformando, o Recorrente interpôs o recurso voluntário de fls. 549/554, em que praticamente repete os argumentos contidos em sua impugnação de fls. 503/509. É o relatório. Voto Conselheiro Alexandre Naoki Nishioka, Relator O recurso preenche os requisitos de admissibilidade, motivo pelo qual dele conheço. Trata-se de auto de infração lavrado contra o ora Recorrente visando à cobrança de imposto de renda incidente sobre (i) rendimentos decorrentes de transferências recebidas de fontes no exterior, nos anoscalendário de 1996 e 1997; (ii) acréscimo patrimonial a descoberto, relativo aos anos-calendário de 1996, 1997 e Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. 1999; e, por fim, (iii) ausência de recolhimento do IRPF devido a título de carnê-leão, nos anos-calendário de 1996 e 1997. Aduz o Recorrente, no que toca à apuração de infração decorrente de rendimentos recebidos do exterior, em breve síntese, que (i) não há qualquer base legal para tributação como omissão de rendimentos das diferenças constatadas nas transferências patrimoniais do Recorrente do Japão para o Brasil; (ii) os valores considerados como rendimentos omitidos no país foram oferecidos, igualmente, à tributação no Japão à alíquota de 23,70%, em 1996, razão pela qual o Fisco brasileiro apenas poderia cobrar o restante, isto é, 1,30% do valor apurado, e à alíquota de 32,84%, em 1997, de maneira que não haveria tributo a ser cobrado no Brasil, neste período. No que atine, por sua vez, ao acréscimo patrimonial a descoberto apurado no ano-calendário de 1996, alega que (i) deveriam ser considerados, nos dispêndios decorrentes de cheques emitidos cuja destinação não foi comprovada, os gastos com (a) manutenção de bens móveis e imóveis, (b) cinco quotas no valor de R$ 5.674,48, e (c) o dinheiro em espécie declarado pelo contribuinte no ano de 1996, sob pena de cobrança dúplice de tributo; (ii) não teriam sido considerados, como origem de recursos, os valores de R$ 116.355,98, recebidos em decorrência das transferências oriundas do exterior. Quanto ao ano-calendário de 1997, por sua vez, sustenta o Recorrente que deveriam ter sido inseridos nos valores dos cheques emitidos (dispêndios) os gastos com bens móveis e imóveis, supostamente pagos com os mesmos títulos de crédito, e, igualmente, teria havido o mesmo equívoco de deixar de considerar como origem de recursos os montantes recebidos do exterior e apurados como omissão de rendimentos. No que concerne ao acréscimo patrimonial a descoberto apurado no ano calendário de 1999, limita-se o Recorrente a afirmar que já teria transferido a sua residência para o Japão, razão pela qual descabida a cobrança de tributo no País. Por derradeiro, requer o contribuinte a desconsideração da multa isolada, tendo em vista que teria sido cobrada cumulativamente com a multa de ofício, aplicada no mesmo período. Em virtude da extensão do arrazoado do Recorrente, oportuno analisar cada argumento de forma separada, a fim de que possam ser tratados, integralmente, todos os pontos suscitados. (I) Omissão de rendimentos decorrentes de transferências de recursos do Japão para o Brasil (I.1) Da alegação de ausência de fundamento para a tributação das diferenças apuradas nas transferências patrimoniais Inicialmente, no que tange à alegação de ausência de fundamento legal para a tributação, como omissão de rendimentos, dos valores transferidos de contas-correntes detidas no Japão, pelo contribuinte, para o Brasil, relativamente aos serviços prestados de agenciamento e manutenção de estagiários junto aos clubes de futebol brasileiros, entendo não assistir razão ao Recorrente. Com efeito, como se sabe, o imposto sobre a renda, no ordenamento jurídico brasileiro, obedece ao princípio da tributação em bases mundiais, também designado pela doutrina como worldwide income taxation, de tal sorte que todo e qualquer rendimento percebido por residentes nacionais, em qualquer parte do globo, deve ser considerado para a apuração da base de cálculo do referido imposto. A este respeito, pois, oportuno trazer à baila o quanto disposto pelos artigos 3º, §4º, da Lei n.º 7.713/88 e 25 da Lei n.º 9.249/95, in verbis: Lei n.º 7.713/88: “Art. 3º. (...) § 4º A tributação independe da denominação dos rendimentos, títulos ou direitos, da localização, condição jurídica ou nacionalidade da fonte, da origem dos bens produtores da renda, e da forma de percepção das rendas ou proventos, bastando, para a incidência do imposto, o benefício do contribuinte por qualquer forma e a qualquer título.” Lei n.º 9.249/95: “Art. 25. Os lucros, rendimentos e ganhos de capital auferidos no exterior serão computados na determinação do lucro real das pessoas jurídicas correspondente ao balanço levantado em 31 de dezembro de cada ano.” Nesse sentido, portanto, os residentes brasileiros, assim entendidos, igualmente, os estrangeiros portadores de visto permanente, tal como estatuído pelo art. 18 do Regulamento do Imposto de Renda (Decreto 3.000/1999), são considerados contribuintes e, destarte, têm a sua renda mundial tributada no País a partir da data de ingresso. Confira-se: “Art. 18. As pessoas físicas portadoras de visto permanente que, no curso do ano-calendário, transferirem residência para o território nacional e, nesse mesmo ano, iniciarem a percepção de rendimentos tributáveis de acordo com a legislação em vigor, estão sujeitas ao imposto, como residentes ou domiciliadas no País em relação aos fatos geradores ocorridos a partir da data de sua chegada, observado o disposto no § 2º do art. 2º (Decreto-Lei nº 5.844, de 1943, art. 61, e Lei nº 9.718, de 27 de novembro de 1998, art. 12).” No presente caso, percebe-se, dos documentos acostados aos autos, que o ora Recorrente detinha visto permanente no Brasil até o ano de 2001 (fl. 61), isto é, encontrava-se na posição de residente no país e, portanto, sujeito à tributação (“subject to tax”) no período de ocorrência dos fatos geradores, havendo apresentado, inclusive, as declarações de rendimentos relativas aos períodos em referência (fls. 153/174). Assim, tratando-se de contribuinte do imposto de renda, deveria o Recorrente, ao elaborar a sua declaração anual, ter informado a existência de saldos bancários em contas de sua titularidade no exterior, valores estes que, conquanto já integrados ao seu patrimônio, não estariam sujeitos à tributação do 103 imposto de renda, conforme se extrai da própria dicção do dispositivo colacionado. A este respeito, aliás, a Instrução Normativa n.º 73/1998, consolidando o regramento existente à época, dispôs expressamente a respeito da indicação dos valores em contas-correntes detidas no exterior, cumprindo trazer à baila o quanto estabelecido por seus artigos 7º e 8º, in verbis: “Art. 7º Na Declaração de Ajuste Anual será aplicada a tabela progressiva anual, sendo permitidas todas as deduções previstas na legislação tributária, desde que incorridas a partir da aquisição da condição de residente no Brasil, obedecidos os limites legais. Art. 8º Na Declaração de Bens e Direitos da Declaração de Ajuste Anual a que se refere o artigo anterior devem ser relacionados na coluna “Situação em 31/12 do Ano Anterior”, pormenorizadamente, os bens móveis, imóveis, direitos e obrigações que, no País e no exterior, constituíam o patrimônio da pessoa física e o de seus dependentes na data em que se caracterizou a condição de residente no Brasil. (...) § 2º A pessoa física que passar à condição de residente no País e que não tenha tido essa condição anteriormente deverá declarar os bens e direitos situados no exterior pelos seus valores de aquisição, convertidos em moeda nacional pela cotação cambial de venda da moeda em que o bem foi adquirido fixada pelo Banco Central do Brasil para a data da aquisição e atualizados até 31 de dezembro de 1995 com base na Tabela constante do Anexo I. (...) § 5º Os saldos dos depósitos mantidos em bancos no exterior, assim como as dívidas e ônus reais assumidos no exterior, deverão ser relacionados em reais, utilizandose, para a conversão do valor em moeda estrangeira, as cotações cambiais de compra fixada pelo Banco Central do Brasil para o dia em que se caracterizar a condição de residente no Brasil. § 6º O tratamento previsto no § 3º aplica-se, se for o caso, aos depósitos mantidos em bancos no exterior, bem assim às dívidas e ônus reais assumidos no exterior.” (grifou-se). Por esta razão curial, portanto, não havendo, nas declarações do Recorrente, qualquer indicação da existência de valores depositados em contas-correntes detidas no exterior, a simples comprovação, por parte do Fisco, da transferência de recursos detidos pelo contribuinte no exterior já configuraria, de per se, hipótese de omissão de rendimentos (cópias dos fechamentos de câmbio às fls. 386/394). No caso vertente, no entanto, havendo entendido a autoridade fiscalizadora, por ocasião da lavratura do auto de infração, que parte dos valores transferidos para o Brasil pelo contribuinte seriam destinados à Associação Nipo Brasileira de Intercâmbio Futebolístico de Jovens, com o 104 declarado intuito de cobrir as despesas de manutenção dos estagiários, houve por bem considerar que apenas haveria omissão de rendimentos no tocante à diferença apurada entre as transferências de recursos do exterior e o montante repassado à referida associação, razão pela qual escorreito o procedimento realizado pelo Fisco. (I.2) Da aplicação do acordo para evitar a dupla tributação celebrado pelo Brasil com o Japão No que se refere à alegação do Recorrente de que apenas seria cabível a tributação de parcela dos valores transferidos pelo contribuinte, em virtude da aplicação dos dispositivos inseridos no acordo para evitar a bitributação celebrado entre Brasil e Japão, entendo, igualmente, que não merece guarida a assertiva do Recorrente. Nesse sentido, consoante se extrai da lição de Gerd Willi Rothmann, os acordos internacionais para evitar a dupla tributação “representam um sistema de concessões fiscais, baseado na reciprocidade”, cuja finalidade precípua “consiste em eliminar ou atenuar a bitributação internacional” (ROTHMANN, Gerd Willi. Interpretação e aplicação dos acordos internacionais contra a bitributação. Tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1978, pp. 148149). Os acordos internacionais para evitar a dupla tributação, como se extrai do trecho trazido à baila, representam limitações às competências tributárias dos Estados que deles fazem parte, consistindo, pois, verdadeira delimitação, sob o prisma externo, da soberania dos países. Exatamente por isso, assim, Klaus Vogel, no âmbito do direito comparado, assevera que “os acordos de bitributação servem como uma máscara, colocada sobre o direito interno, tapando determinadas partes deste. Os dispositivos do direito interno que continuarem visíveis (por corresponderem aos buracos recortados no cartão) são aplicáveis; os demais, não” (apud SCHOUERI, Luís Eduardo. Relação entre tratados internacionais e a lei tributária interna. In: SOARES, Guido Fernando Silva (et. al.) (org.). Direito internacional, humanismo e globalidade. São Paulo: Atlas, 2008, p. 585). De acordo com este breve intróito, portanto, verifica-se que os tratados de bitributação não criam quaisquer direitos ou obrigações para os contribuintes, cingindo-se, destarte, a delinear os limites de atuação da legislação interna em situações abrangidas pelos referidos acordos internacionais. Vale frisar, por derradeiro, que a celebração das convenções internacionais em matéria de imposto de renda, tanto no que atine ao modelo elaborado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (“OCDE”), como, igualmente, no que toca àquele elaborado pela Organização das Nações Unidas (“ONU”), funda-se, conforme preleciona Paulo Roberto Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. Andrade, na “prévia identificação de quem seja a fonte e quem seja a residência”, requerendo, pois, “a identificação de, necessariamente, um único país como residência do contribuinte” (ANDRADE, Paulo Roberto. Dupla residência de empresas: repercussões e soluções no âmbito da CM-OCDE. In: COSTA, Alcides Jorge (et. al.). Direito tributário atual. São Paulo: Dialética, 2005, pp. 256-272). Nesse sentido, os tratados contra a bitributação funcionam como autênticas normas de estrutura, isto é, buscam delinear a forma de aplicação de outras normas de direito interno dos Estados de acordo com a espécie de rendimento qualificada nos referidos acordos. Em breve síntese do exposto, convém trazer à baila a lição de Rodrigo Maito da Silveira: “Considerando que os tratados contra a bitributação são normas sobre a aplicação de outras normas (as internas), eles acabam por limitar a aplicação do direito interno dos Estados contratantes, distribuindo tributação de situações internacionais, conforme espécies de rendimentos, para as quais se determina, em cada caso, qual o Estado pode tributar o rendimento em questão, até que medida pode fazê-lo e em que termos um Estado contratante deve creditar o imposto do outro Estado no cálculo de seu próprio imposto.” (SILVEIRA, Rodrigo Maito da. Aplicação de tratados internacionais contra a bitributação: qualificação de partnership joint ventures. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 158). Com fulcro em tais premissas, verifica-se que, para fins de análise do presente caso, o Brasil efetivamente celebrou acordo de bitributação com o Japão, incorporado pela legislação interna por meio do Decreto n.º 61.899/67, posteriormente modificado pelo Decreto n.º 81.194/78, que corporificou protocolo celebrado entre os mesmos países no que atine à referida convenção internacional. Visto, pois, que efetivamente existe acordo internacional abrangendo a situação em referência, cumpriria ao contribuinte qualificar, à luz do referido acordo e em consonância com as regras distributivas de competência nele previstas, os rendimentos recebidos por meio de transferências patrimoniais oriundas do Japão, com o fito de comprovar, destarte, que competiria ao Japão a tributação de tais rendimentos em consonância com o acordo internacional firmado entre ambos os Estados. Sem ingressar, propriamente, na problemática atinente aos conflitos de qualificação possíveis, isto é, nas celeumas, segundo salienta Gerd Willi Rothmann, que “nascem na interpretação e aplicação de uma convenção internacional, tendo por conseqüência novas hipóteses de bitributação” (ROTHMANN, Gerd Willi. Problema de qualificação na aplicação das convenções contra a bitributação internacional. In: Revista Dialética de Direito Tributário, n. 76. São Paulo: Dialética), não há dúvidas de que, para aplicar corretamente o acordo, segundo aduz novamente Rodrigo Maito da Silveira, faz-se mister a “caracterização de um conceito de direito interno no qual a situação da vida se subsume, em face do conceito jurídico utilizado no tratado”, tanto no que tange ao item de rendimento dos acordos a ser considerado, que irá determinar o Estado competente para tributar, como a condição de residente ou não-residente de determinado ente (SILVEIRA, Rodrigo Maito da. Op. cit. p. 160). Na hipótese dos autos, o contribuinte não se preocupou em demonstrar, de forma cabal, a origem dos rendimentos transferidos do Japão para o Brasil, de maneira a classificá-lo de acordo com os itens de rendimentos trazidos no tratado Brasil/Japão, consoante se infere dos elementos acostados aos autos, limitando-se, desta sorte, a aduzir que os valores tributados no Japão, independentemente da natureza e qualificação dos rendimentos de acordo com o tratado deveriam ser deduzidos do imposto de renda pago no País. Parece-me, no entanto, que, muito embora não haja documentos que comprovem especificamente a natureza dos rendimentos auferidos no Japão, submetidos à tributação neste País, trata-se de rendimentos decorrentes da prestação dos serviços de consultoria de futebol e intermediação entre atletas e clubes de futebol no Brasil para a celebração de contratos de estágio nestes últimos, como, inclusive, consta da declaração de rendimentos apresentada às autoridades japonesas, traduzida para o vernáculo nacional (vide fl. 377, p. ex.). Nesse sentido, pois, tratando-se de rendimento decorrente do exercício de atividade empresária, e não decorrente do exercício de profissão liberal, poderia tal rendimento ser qualificado como “lucros das empresas”, tal como previsto no art. 5º do acordo celebrado entre Brasil e Japão, equivalente ao disposto pelo art. 7º da Convenção-Modelo da OCDE, cujo teor é o seguinte: “Artigo 5. 1) Os lucros de uma empresa de um Estado Contratante são tributáveis somente nesse Estado Contratante a menos que a empresa realize negócios no outro Estado Contratante por intermédio de um estabelecimento permanente aí situado. Se a empresa realizar negócios na forma indicada, os seus lucros são tributáveis no outro Estado Contratante, mas unicamente na medida em que forem atribuíveis a esse estabelecimento permanente.” Vale lembrar, neste esteio, que o conceito de lucros de empresas, previsto no artigo em comento, não se refere ao lucro líquido das pessoas jurídicas, como um exame leigo poderia denotar. Em verdade, como lembra Gerd Willi Rothmann em artigo destinado ao tema, “o conceito de lucros do artigo 7º do acordo de bitributação do acordo Brasil-Alemanha [equivalente ao art. 5º do acordo BrasilJapão] é, pois, um conceito próprio do acordo, não se confundindo com o conceito da legislação interna brasileira relativo ao lucro da pessoa jurídica” (ROTHMANN, Gerd Willi. Problema da qualificação ... Op. cit.). Compreende referido dispositivo, portanto, à luz do acordo e com base nos Comentários da OCDE, considerados soft law na interpretação e aplicação dos acordos para evitar a bitributação que se fundamentam na referida Convenção105 Modelo, todos os rendimentos auferidos na exploração de uma empresa, isto é, de uma atividade econômica prestada, ressalvados os rendimentos expressamente previstos na Convenção-Modelo de forma expressa, tais como dividendos, juros, royalties, dentre outros, o que abarcaria, pois, os rendimentos referidos in casu. No entanto, ainda que se pudesse aplicar, in casu, o quanto disposto pelo artigo 5º do acordo Brasil-Japão, inspirado no art. 7º da Convenção-Modelo da OCDE, fato é que referido dispositivo estabelece como competente para tributar tais rendimentos, de forma exclusiva, o Estado da residência do beneficiário do acordo, apenas atribuindo ao Estado da fonte os rendimentos imputáveis a estabelecimentos permanentes situados neste último. Percebe-se, portanto, que, para a aplicação do referido dispositivo, como, aliás, de todos os demais relativos à atribuição de competência tributária, cumpre estabelecer qual é a residência do Recorrente para os fins do acordo Brasil-Japão. Nesta esteira, vale frisar que a qualificação como residente, conforme aduz Alberto Xavier, “pertence ao direito interno dos Estados interessados, a qual tem apenas por limite a natureza da conexão adotada, que deve ser o domicílio, a residência, a sede da direção ou qualquer outro critério de natureza análoga” (XAVIER, Alberto. Direito tributário internacional do Brasil. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 297). Este é o teor do artigo 3º, parágrafo primeiro do acordo Brasil-Japão (art. 4º da ConvençãoModelo da OCDE), cujo teor cumpre trazer à baila: “Artigo 3. 1) Na presente Convenção a expressão “residente num Estado Contratante” designa as pessoas que, por virtude da legislação desse Estado estão aí sujeitas a imposto, devido ao seu domicílio, à sua residência, à sede da sua direção ou a qualquer outro critério de natureza análoga”(grifou-se). Analisando-se, nesse sentido, o conceito de residência da legislação brasileira para os fins da tributação pelo imposto de renda, verifica-se que é considerado domicílio fiscal, à luz do art. 28 do RIR/99, no caso da pessoa física, a “sua residência habitual, assim entendido o lugar em que ela tiver uma habitação em condições que permitam presumir a intenção de mantê-la”. Além deste conceito basilar, indica Ana Cláudia Akie Utumi que “também são consideradas residentes no Brasil as pessoas físicas estrangeiras que: (i) ingressem no Brasil com visto permanente, a partir da data do ingresso no País; (ii) ingressem no Brasil com visto temporário de trabalho (para trabalhar com vínculo empregatício); (iii) ingressem no Brasil com outros vistos temporários, se aqui permanecerem por prazo superior a 183 (cento e oitenta e três) dias, em um período de 12 (doze) meses” (UTUMI, Ana Cláudia Akie. O não-residente na legislação do imposto de renda. In: TÔRRES, Heleno Taveira. Direito tributário internacional aplicado, v. V. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 135). 106 No presente caso, como se viu, o Recorrente amoldase ao conceito de residente brasileiro, eis que possuía, até o ano de 2001 (fl. 61), visto permanente para estadia no País, tendo, igualmente, ao longo deste período, imóveis para sua habitação e veículos, exercendo, também, atividade de cunho empresário no Brasil. Indubitavelmente, portanto, cumpria o Recorrente tanto os requisitos subjetivos, inferidos dos elementos trazidos aos autos, que consistem na intenção de permanecer no País, como, igualmente, aqueles objetivamente elencados pela legislação do imposto de renda. No que toca à legislação japonesa, por sua vez, compulsando-se o documento intitulado “2009 Income Tax Guide for Foreigners” (Vide: http://www.nta.go.jp/ tetsuzuki/shinkoku/shotoku/tebiki2009/pdf/01_44.pdf, acesso em 15/10/2010), editado pela agência nacional de tributação do Japão, órgão oficial de arrecadação do governo japonês (National Tax Agency), verifica-se que este país estabelece três distintas classificações, a saber: (i) residentes japoneses, (ii) residentes não permanentes e, por fim, (iii) não residentes, que seriam todos aqueles que não se enquadrassem nas duas definições. No que se refere aos residentes, dispõe a legislação que são aqueles indivíduos que possuam um domicílio ou residência no País por um ano ou mais, de maneira contínua, classificando-se, por sua vez, como residentes não-permanentes todos aqueles que, não possuindo nacionalidade japonesa, detenham residência no País por um período contínuo de cinco anos, ou intercalado no período de dez anos. Ora, in casu, analisando-se os documentos trazidos aos autos, em especial no que se refere às declarações de imposto apresentadas ao fisco japonês, percebe-se que o Recorrente, além de nacional do Japão, de fato possuía residência na cidade de Shizuoka nos anoscalendário de 1995 a 1999 (fls. 371/384), de maneira que, à luz da legislação japonesa, igualmente se enquadra como residente no Japão para os fins do art. 3º, parágrafo 1º do acordo Brasil-Japão. Corrobora o exposto, também, o fato de que, além de apresentar declaração do fisco japonês, o Recorrente recolheu ao governo japonês tributo designado “taxa de residência” (fl. 363), de modo que não restam dúvidas acerca da sua qualificação como residente no Japão. Ora, se o Recorrente, à luz do direito interno de cada país, em consonância com o disposto no art. 3º, parágrafo 1º do acordo de bitributação, é qualificado como residente de ambos os Estados, não há, em princípio, forma de se aplicar, ainda que cabível à espécie, o disposto pelo artigo 5º do acordo (7º da Convenção-Modelo da OCDE), tendo em vista que os dois Estados, como residentes, se outorgariam o direito de tributar de acordo com o tratado. De fato, consoante verberado linhas atrás, as convenções-modelo utilizadas para celebração dos acordos de bitributação, ao distribuir as competências entre os Estados contratantes, partem do princípio de que, para Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. os fins da convenção, apenas um dos governos poderia ser considerado como de residência das pessoas físicas e jurídicas. Neste exato sentido, pois há, nos referidos acordos, via de regra, as chamadas tie breaker rules, isto é, as regras de desempate que objetivam delimitar qual dos Estados deve ser considerado de residência para os fins do acordo. Neste sentido, cumpre trazer à baila a lição de Alberto Xavier, in verbis: “A função das convenções neste domínio é, precisamente a de – partindo do pressuposto de uma dupla residência face aos critérios do direito interno – definir qual das duas residências prevalecerá para efeitos tributários, escolhendo uma (residência escolhida) em detrimento da outra (residência preterida). O primeiro corolário desta regra consiste em que, no sistema convencional, a residência fiscal só pode ser uma (princípio da unicidade da residência), de tal modo que se em face dos critérios da Convenção, uma pessoa for considerada fiscalmente residente num Estado, passa a ser automaticamente “não residente” no outro, ainda que o estatuto de residente lhe seja atribuído pela lei interna deste último.”(XAVIER, Alberto. Op. cit. p. 298). Na esteira da lição de Xavier, portanto, verifica-se que os acordos de bitributação, via de regra, contêm regras específicas, no caso de contribuintes pessoas físicas, para delimitação do Estado de sua residência, em consonância com o estatuído no parágrafo 2º do artigo 4º da ConvençãoModelo da OCDE, que culminam com a celebração de procedimentos amigáveis entre os Estados, nas hipóteses em que não se chegue a um denominador comum. A respeito de tais regras, oportuna a lição de André Carvalho, in verbis: “No caso das pessoas físicas, a dual residence é decidida a favor de um Estado Contratante segundo as normas do parágrafo primeiro do Artigo 4º, que contém diversos critérios de conexão subsidiária ou testes de desempate (preference rules) que devem ser aplicados em ordem serial. Ou seja, persistindo o empate em um teste, recorre-se ao seguinte, até o eventual “desempate” por intermédio de procedimento amigável: 1- Habitação permanente; 2- Centro de interesses vitais (relações pessoais e econômicas mais estreitas); 3- Moradia habitual (habitual abode); 4- Nacionalidade; e 5- Procedimento amigável.” (CARVALHO, André. O escopo subjetivo de aplicação dos acordos para evitar a dupla tributação: a residência. In: TÔRRES, Heleno Taveira. Direito tributário internacional aplicado, v. V. São Paulo: Quartier Latin, 2009, pp. 173-174). Em que pese a existência, via de regra, de procedimentos prévios previstos pelos próprios tratados para definir a residência antes do recurso ao procedimento amigável, ou ao mútuo entendimento, verifica-se que o acordo celebrado entre Brasil e Japão apresenta uma inversão de critérios. Com efeito, examinando-se o texto do artigo 3º, parágrafo 2º, equivalente ao famigerado artigo 4(2) da Convenção-Modelo da OCDE, apenas há a previsão de definição da residência, em casos de duplicidade, por meio de mútuo entendimento entre as partes contratantes, é dizer, por procedimento amigável entre as autoridades de ambos os Estados. Nesse sentido, convém trazer a lume o texto do citado dispositivo legal, in verbis: “Artigo 3. 2) Quando, por força das disposições no parágrafo (1), uma pessoa for residente em ambos os Estados Contratantes, as autoridades competentes determinarão por mútuo entendimento o Estado Contratante no qual aquela pessoa será considerada como residente, para os fins desta Convenção” (grifou-se). Nesse mesmo sentido, compulsando-se os termos da “Troca de notas (23/03/1976) e memorando de entendimentos” entre os Estados, verifica-se, de fato, que optaram por inverter a regra constante da ConvençãoModelo da OCDE, e mesmo da ONU, estabelecendo a necessidade a priori de submissão da questão ao mútuo entendimento, vertendo apenas em balizas para referida solução as regras de desempate, que deveriam nortear o entendimento das autoridades competentes. Confira-se: “1. Com referência ao parágrafo 2 do Artigo 3 da Convenção: Quando um indivíduo for residente em ambos os Estados Contratantes, a questão será resolvida por mútuo entendimento, observando-se as seguintes regras: a - será considerado residente no Estado Contratante em que tenha uma habitação permanente à sua disposição. Se tiver uma habitação permanente à sua disposição em ambos os Estados Contratantes, será considerado residente no Estado Contratante com o qual mantenha mais estreitos laços pessoais e econômicos (centro de interesses vitais); b- se o Estado Contratante no qual tenha seu centro de interesses vitais não puder ser determinado, ou se não tiver uma habitação permanente a sua disposição em qualquer um dos Estados Contratantes, será considerado residente no Estado Contratante no qual habitualmente permaneça; c - se habitualmente permanecer em ambos os Estados Contratantes ou em nenhum deles, será considerado residente no Estado Contratante do qual for um nacional; d - se for nacional de ambos Estados Contratantes ou de nenhum deles, as autoridades competentes dos Estados contratantes resolverão a questão por entendimento mútuo.” Sendo certo, portanto, que eventuais conflitos acerca da existência de dupla residência devem ser submetidos, no caso específico do acordo Brasil-Japão, ao mútuo entendimento das autoridades competentes, verifica-se, desde já, que não compete a este Conselho Administrativo de Recursos Fiscais tal mister. Aliás, ainda que assim não fosse, o que se admite apenas para fins argumentativos, convém salientar que inexistem, nos autos, elementos aptos a comprovar qual seria a residência do contribuinte para os fins do referido acordo, sendo esta, pois, mais uma razão para rechaçar o argumento ventilado pelo Recorrente. 107 Por todas as razões explicitadas, portanto, afigurando-se o Recorrente residente no Brasil e no Japão, à luz das legislações brasileira e japonesa, e, igualmente, de acordo com os termos do tratado, não há mecanismos para distribuir de maneira correta as competências conforme as espécies de rendimentos previstas no acordo de bitributação, nem para viabilizar a compensação do imposto pago, na forma do art. 22 do acordo Brasil-Japão, razão pela qual rejeito a alegação do Recorrente. Por derradeiro, além de todo o exposto, cumpre verberar que não logrou o contribuinte comprovar, como acertadamente aduziu a Recorrida, (i) que os rendimentos tributados no Japão, discriminados às fls. 511/516, são exatamente os mesmos transferidos para o País e objeto de tributação no Brasil, e (ii) que os valores apresentados nas declarações ao fisco japonês efetivamente foram recolhidos àquele Estado, de modo que não merecem prosperar suas alegações. (II) Acréscimos patrimoniais a descoberto verificados nos anos calendário de 1996, 1997 e 1999 No que atine, especificamente, aos acréscimos patrimoniais a descoberto, cumpre frisar, primeiramente, que não é a autoridade fazendária quem presume a omissão de receita, mas a própria lei. Trata-se, portanto, de presunção legal instituída pelo legislador ordinário na Lei Federal n.º 7.713/88. Confira-se: “Art. 3º O imposto incidirá sobre o rendimento bruto, sem qualquer dedução, ressalvado o disposto nos arts. 9º a 14 desta Lei. § 1º Constituem rendimento bruto todo o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos, os alimentos e pensões percebidos em dinheiro, e ainda os proventos de qualquer natureza, assim também entendidos os acréscimos patrimoniais não correspondentes aos rendimentos declarados.” Em consonância com o preceito legal citado, o Regulamento do Imposto sobre a Renda, editado pelo Decreto n.º 3.000/99, assim dispõe: “Art. 55. São também tributáveis (...): XIII - as quantias correspondentes ao acréscimo patrimonial da pessoa física, apurado mensalmente, quando esse acréscimo não for justificado pelos rendimentos tributáveis, não tributáveis, tributados exclusivamente na fonte ou objeto de tributação definitiva; (...).” Com fundamento na presunção em referência, portanto, cabe ao Recorrente, uma vez demonstrado pela fiscalização um excesso de dispêndios em comparação com a origem dos recursos, a cabal demonstração da origem dos valores gastos, de tal sorte a afastar a prova erigida, pela própria legislação, em favor do Fisco. Nesse sentido, no que toca ao ano-calendário de 1996, não logrou o contribuinte provar que parte dos cheques emitidos, sem comprovação de sua destinação, efetivamente se referiam aos gastos efetuados com a 108 manutenção de bens móveis e imóveis, razão pela qual não merece guarida a assertiva de cobrança dúplice. Ainda a este respeito, igualmente, não foi acostada aos autos, pelo contribuinte, qualquer prova de que (i) os dispêndios efetuados com as quotas, no valor de R$ 5.674,48, nos meses de agosto a dezembro (fl. 473), e (ii) relativos à declaração de manutenção de dinheiro em espécie ao final do ano calendário, também seriam referentes aos cheques emitidos pelo contribuinte sem origem comprovada (fls. 464/466). Vale frisar, igualmente, que nas planilhas de fls. 464/466 não há cheques coincidentes, ao menos em valores, com os demais dispêndios apurados pelo contribuinte (fl. 473), razão pela qual não prospera a assertiva de que estariam sendo cobrados valores em duplicidade. Movendo-se para a análise do ocorrido no anocalendário de 1997, por seu turno, podem ser extraídos equívocos idênticos de interpretação pelo contribuinte, na medida em que, havendo a inversão do ônus da prova em seu desfavor, operada pelo comando do art. 3º, §1º, da Lei n.º 7.713/88, cumpriria ao Recorrente demonstrar, especificamente, a coincidência dos valores dos cheques, sem comprovação de origem, com os montantes gastos pelo mesmo contribuinte com a manutenção de bens móveis e imóveis. Quanto à alegação de que não constariam, nos demonstrativos de variação patrimonial relativos aos anoscalendário de 1996 e 1997, os lançamentos referentes aos rendimentos considerados omitidos pelo contribuinte nas transferências de recursos do Japão, nos montantes, respectivamente, de R$ 116.355,98 e R$ 11.551,13, igualmente não merece guarida a alegação. De fato, compulsando-se o demonstrativo de variação patrimonial do anocalendário de 1996, verificase que todas as transferências, consideradas como omissão de rendimentos, foram registradas no quadro de origem de recursos, especificamente na rubrica designada “rendimentos omitidos”, nos meses de março, julho, agosto, setembro e dezembro. Do mesmo modo, no que tange ao ano-calendário de 1997, também foram registrados, no cômputo da origem dos recursos do contribuinte, os valores considerados omitidos nos meses de janeiro, fevereiro, março e maio, de maneira que não assiste razão ao Recorrente. Por estas razões, pois, não logrou o Recorrente demonstrar a origem de referidos valores, não cumprindo com ônus que lhe competia. É esse, a propósito, o entendimento deste Conselho Administrativo de Recursos Fiscais em caso análogo: “ACRÉSCIMO PATRIMONIALA DESCOBERTO. Constitui-se rendimento tributável o valor correspondente ao acréscimo patrimonial não justificado pelos rendimentos tributáveis declarados, não tributáveis, isentos, tributados exclusivamente na fonte ou de tributação definitiva. ÔNUS DA PROVA. Se o ônus da prova, por presunção legal, é do contribuinte, cabe a ele a prova Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. da origem dos recursos utilizados para acobertar seus acréscimos patrimoniais. Recurso negado” (Recurso Voluntário n.º 157640, Primeiro Conselho de Contribuintes, 2ª. Câmara, Relatora Conselheira Vanessa Pereira Rodrigues Domene, j. em 29/05/2008). Por derradeiro, no que concerne ao acréscimo patrimonial a descoberto apurado ano-calendário de 1999, não assiste razão ao Recorrente quando afirma que os dispêndios apurados pela fiscalização “não têm base legal porque o recorrente já tinha transferido a sua residência, em definitivo, para o Japão” (fl. 553). De fato, consoante asseverado linhas atrás, o contribuinte ainda era residente no país, com visto permanente válido, até o ano de 2001 (fl. 61), razão pela qual, não havendo apresentado o contribuinte a declaração de saída definitiva do País, em consonância com o estatuído pelo art. 16 do RIR/99, afigura-se descabida a sua argumentação. (III) Da concomitância de multa isolada com a multa de ofício Quanto à alegação de que seria incabível a cobrança concomitante das multas de ofício e isolada, por constituir tal prática um bis in idem punitivo, entendo que assiste razão ao Recorrente. Isto porque o artigo 44 da Lei n. 9.430/96, à época da lavratura do auto de infração, instituía duas únicas multas de ofício, a de 75% (inciso I) e a qualificada de 150% (inciso II), estabelecendo o seu §1º, assim, formas excludentes de cobrança das referidas multas, “juntamente com o tributo ou a contribuição, quando não houverem sido anteriormente pagos” ou “isoladamente”, nas demais hipóteses, inclusive a do inciso III. Não permitia mencionado artigo 44, portanto, em especial compulsando-se a legislação então vigente, a cobrança de duas multas concomitantes, a de ofício e a isolada, mesmo porque, como é cediço, a ausência de declaração de determinado rendimento na declaração de ajuste pressupõe, igualmente, a falta de sua tributação de maneira antecipada, o que significa dizer, por outro giro, que a falta de antecipação do recolhimento constitui iter procedimental necessário à ausência de oferecimento do respectivo valor na declaração de ajuste. O entendimento ora esposado encontra supedâneo, inclusive, na jurisprudência da Câmara Superior de Recursos Fiscais e do Primeiro Conselho de Contribuintes: “MULTA ISOLADA E MULTA DE OFÍCIO – CONCOMITÂNCIA – MESMA BASE DE CÁLCULO – A aplicação concomitante da multa isolada (Inciso III do parágrafo 1º do art. 44 da Lei nº 9.430 de 1996) e da multa de oficio (Incisos I e II do art. 44 da Lei nº 9.430 de 1996) não é legítima quando incide sobre uma mesma base de cálculo.” (Câmara Superior de Recursos Fiscais, 1ª Turma, Recurso do Procurador nº. 106-131314, relatora Conselheira Leila Maria Scherrer Leitão, sessão de 15/06/2004) “MULTA ISOLADA E MULTA DE OFÍCIO CONCOMITÂNCIA - IMPOSSIBILIDADE - A multa isolada não pode ser exigida concomitantemente com a multa de ofício. Precedentes da 2ª Câmara e da Câmara Superior de Recursos Fiscais.” (1º Conselho de Contribuintes, 2ª Câmara, Recurso Voluntário nº. 153.562, relator Conselheiro Alexandre Naoki Nishioka, sessão de 23/04/2008) “MULTA ISOLADA - CONCOMITÂNCIA- A multa isolada não pode ser cobrada concomitantemente com a multa de oficio, evitando-se a dupla penalidade para uma mesma infração.” (1º Conselho de Contribuintes, 4ª Câmara, Recurso Voluntário nº. 134.959, relator Conselheiro José Pereira do Nascimento, sessão de 13/05/2004) “MULTA ISOLADA- MULTA DE OFÍCIO – CONCOMITÂNCIA – É inaplicável a multa isolada concomitantemente com a multa de ofício, tendo ambas a mesma base de cálculo.” (1º Conselho de Contribuintes, 6ª Câmara, Recurso Voluntário nº. 141.639, relatora Conselheira Ana Neyle Olímpio Holanda , sessão de 20/10/2004) “MULTA ISOLADA CUMULADA COM MULTA DE OFÍCIO - Pacífica a jurisprudência deste Conselho de Contribuintes no sentido de que não é cabível a aplicação concomitante da multa isolada prevista no art. 44, parágrafo 1º, inciso III da Lei nº 9.430/96, com multa de oficio, tendo em vista dupla penalização sobre a mesma base de incidência.” (1º Conselho de Contribuintes, 6ª Câmara, Recurso Voluntário nº. 137.200, relator Conselheiro José Ribamar Barros Penha, sessão de 13/05/2004) Nesse sentido, sendo certo que os valores de R$ 5.680,00 e de R$ 5.674,00, transferidos do Japão para contacorrente do Recorrente foram considerados rendimentos omitidos, por ocasião da lavratura do auto de infração ora combatido, e, destarte, tiveram sobre si imputada multa de ofício à proporção de 75% (fl. 499), afigura-se descabida a cobrança, em duplicidade, de multa isolada (fl. 500), razão pela qual entendo proceder, nesta parte, a irresignação do Recorrente. (IV) Parte Dispositiva Eis os motivos pelos quais voto no sentido de DAR PARCIAL provimento ao recurso, determinando, especificamente, a exclusão dos valores cobrados do contribuinte a título de multa isolada, eis que incabível a sua exigência em concomitância com a multa de ofício. Alexandre Naoki Nishioka 109 DIDIER JR., Fredie e ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil – Processo Coletivo. 6ª edição. Salvador: JusPodivm, 2011. FABIANO CARVALHO Doutor e mestre em Direito pela PUC/SP. Professor da Faculdade de Direito da Fundação Armando Alvares Penteado FAAP. Advogado. Não é novidade dizer que Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr. compõem a seleta classe do grupo de juristas brasileiros da atualidade que estão sempre envolvidos nas discussões dos temas jurídicos mais representativos da nossa sociedade. A obra ora resenhada corrobora de modo absoluto essa afirmação. O Curso de Direito Processual Civil – Processo Coletivo corresponde a um estudo completo sobre o direito processual coletivo. A obra não é compêndio onde se encerram lições de um programa de estudos específicos e organizados sobre processo coletivo, mas, antes, corresponde a uma verdadeira teoria geral do processo coletivo. Apesar da pluralidade de diplomas que atualmente regulam o processo coletivo, todos os capítulos da obra de Didier-Zaneti ajustam-se de forma harmônica e coesa. O texto está francamente comprometido com a idéia de sistema e com os valores de emancipação do tradicional direito processual civil individual. O Curso é composto por doze capítulos. O primeiro capítulo, que trata da introdução ao estudo do processo coletivo, tem como ponto nuclear a exploração da seguinte questão: Microssistemas e Códigos são incompatíveis entre si? Os autores respondem negativamente. Se de um lado “o valor dos Códigos nos ordenamentos jurídicos é enunciar princípios, cláusulas gerais e regras para harmonizar com os objetivos da Carta Magna e dos direitos fundamentais nela estatuídos”, de outro, “os micossistemas são caracterizados por tratarem de matéria especifica, dotada de particularidades técnicas e importância que justificam uma organização autônoma”. Mas, segundo a esclarecedora visão dos autores, “não se incompatibilizam com as cláusulas gerais ou princípios, antes trazem mesmo os seus próprios, internamente, como necessidade intrínseca de organização e ordenação dos conteúdos” (p. 68). 110 No Capítulo seguinte, os autores examinam as “espécies” de direitos coletivos (lato sensu). Este Capítulo contém uma interessantíssima exposição sobre as ações pseudo individuais, tese defendida pelo professor Kazuo Watanabe, cujo resultado da demanda individual gerasse efeitos jurídicos para o coletivo. Essa tese é corretamente refutada pelos autores, ao argumento de que ela não se enquadra no Estado Democrático de Direito, em virtude de limitar o acesso à justiça. A solução mais adequada, segundo a visão dos autores, é suspender os processos individuais até o julgamento definitivo do processo coletivo (p. 94). De outro lado, com base nos estudos de Luiz Paulo da Silva Araújo Filho, os autores estudam as ações pseudo coletivas (uma ação coletiva para a defesa de direitos individuais homogêneos não significa a soma das ações individuais). Aqui, é apresentada a proposta para aplicação do art. 10.5 do Código de Processo Civil Coletivo: um modelo para países de direito escrito, cuja redação é a seguinte: “O juiz poderá limitar o objeto da ação coletiva à parte da controvérsia que possa ser julgada na forma coletiva, deixando as questões que não são comuns ao grupo para serem decididas em ações individuais ou em uma fase posterior do próprio processo coletivo. Em decisão fundamentada, o juiz informará as questões que farão parte do processo coletivo e as que serão deixadas para ações individuais ou para a fase posterior do processo coletivo” (p. 96). O Capítulo III versa sobre os princípios da tutela coletiva. Aqui, os autores verdadeiramente inovam, uma vez que esse tema quase nunca é tratado em sede de cursos de direito processual coletivo. Didier-Zaneti destacam que os princípios da tutela coletiva distinguemse dos seus correlatos na tutela individual. Os princípios examinados nos Curso sãos os seguintes: a) princípio da adequada representação (legitimação); b) princípio da adequada certificação da ação coletiva; c) princípio da coisa julgada diferenciada e a “extensão subjetiva” da Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. coisa julgada secundum eventum litis à esfera individual; d) princípio da informação e publicidade adequadas; e) princípio da competência adequada (forum non conveniens e forum shopping); f) princípio da primazia do conhecimento do mérito do processo coletivo; g) princípio da indisponibilidade da demanda coletiva; h) Princípio do microssistema: aplicação integrada das leis para a tutela coletiva; i) reparação integral do dano; j) princípio da não-taxatividade ou da atipicidade da ação e do processo coletivo; k) processual para a tutela de direitos difusos; l) princípio do ativismo judicial. Em seguida, os autores ocupam-se, no Capítulo IV, do estudo da competência. A premissa traçada pelos autores é no sentido de que diante da natureza da tutela jurisdicional coletiva é preciso realizar uma interpretação mais flexível das regras de competência. Nesse tópico do Curso, são abordadas questões difíceis e controvertidas, como, por exemplo, a regra de delegação de competência federal ao juízo estadual e a restrição territorial da eficácia das decisões proferidas em ações coletivas. Didier-Zaneti dedicam ainda algumas páginas de intenso conteúdo sobre a competência para a ação de improbidade administrativa. Na abordagem do fenômeno processual da conexão, realizada no Capítulo V, Didier-Zaneti apresentam excelentes respostas para as seguintes questões: (i) conexão em causas coletivas pode importar modificação de uma regra de competência absoluta?; (ii) é possível falar em juízo prevento universal? No mesmo Capítulo é analisado o difícil assunto da litispendência entre ações coletivas e a relação entre ações coletivas e ações individuais. Nesse ponto, merece especial destaque a crítica que é feita à proposta legislativa que assevera haver litispendência entre demandas coletivas com causa de pedir distintas. Na correta visão dos autores, “sem identidade de causa de pedir, não há identidade de ‘problema’ submetido ao Judiciário e, portanto, não se pode falar em litispendência, apenas em conexão, se for o caso” (p. 179). Outro ponto muito interessante, muito bem discutido ainda neste Capítulo é a defesa da tese da suspensão dos processos individuais, em razão da existência de uma demanda coletiva correspondente ser determinada de ofício ou a requerimento da parte, sempre com a observância do regular contraditório (p. 191/192). O Capítulo VI cuida do árduo tema da legitimação ad causam nas ações coletivas. Talvez seja o tema mais debatido pela jurisprudência, principalmente com relação à legitimidade ativa do Ministério Público. Assunto bastante palpitante e muito bem examinado pelo Curso é o controle jurisdicional da legitimação coletiva. Na linha doutrinária de Didier-Zaneti, a análise da legitimidade para as demandas coletivas dar-se-ia em duas fases: (i) verificase se há autorização legal para que determinado ente possa substituir os titulares coletivos no direito afirmado e conduzir o processo coletivo; e, em seguida (ii) o juiz exerce o controle in concreto da adequação da legitimidade para aferir, sempre de forma motivada, se estão presentes os elementos que asseguram a representatividade adequada dos direitos em tela (p. 211/212). Mantendo-se fiéis à linha da “representação adequada” nos processos coletivos, não escapou à crítica dos autores o disposto no art. 21 da Lei n. 12.016/2009, norma essa que seria inconstitucional, por não incluir o Ministério Público e outros entes representativos da sociedade (p. ex. Defensoria Pública) no rol dos legitimados para impetrar mandado de segurança coletivo. Examina-se no Capítulo VI o inquérito civil. Nesse espaço, os autores dão relevante destaque para os princípios basilares desse importante instrumento extraprocessual. Além disso, algumas questões polêmicas são tratadas com sagacidade. Finalmente, ainda aqui, os autores encontraram fôlego para tratar de outros dois instrumentos extrajudiciais ligados à tutela coletiva, que ainda não receberam a devida atenção pelos processualistas: recomendação e audiência pública.1 No Capítulo VII, o Curso retoma o estudo dos elementos subjetivos do processo coletivo para explicar a intervenção de terceiros, que no microssistema coletivo recebe um tratamento legislativo diferenciado. Nesse tópico, são tratados temas já muito discutidos na doutrina e na jurisprudência (a denunciação da lide e o chamamento ao processo nas causas coletivas de consumo), como também temas modernos (intervenção da pessoa jurídica interessada na ação de improbidade administrativa). Na trilha da doutrina que estuda o processo como instrumento do Estado Democrático de Direito, Didier-Zaneti defendem a participação da sociedade civil no processo coletivo por intermédio do amicus curiae, pois seria “legitimar ainda mais a decisão do órgão jurisdicional, em um processo de evidente interesse público” (p. 254). Em continuação, o Capítulo IX cuida dos aspectos gerais da tutela coletiva (material e processual). Destaquemse, aqui, algumas discussões que parecem estar longe de uma definição por parte da doutrina e da jurisprudência. O primeiro assunto relevante é a limitação que é imposta pelo art. 1º, parágrafo único, da Lei n. 7.347/85, com redação dada pela Medida provisória nº 2.180-35, ao aduzir não 1 Louvem-se os trabalhos de Alexandre Amaral Gavronski, Técnicas extraprocessuais de tutela coletiva, RT, 2010; Antonio do Passo Cabral, Os efeitos processuais da audiência pública, publicado na Revista de Direito do Estado, n.2. Rio de Janeiro : Renovar , 2006. 111 ser cabível ação civil pública para veicular pretensões que envolvam tributos, contribuições previdenciárias, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS ou outros fundos de natureza institucional cujos beneficiários podem ser individualmente determinados. Depois de apresentarem serena crítica ao referido dispositivo legal, Didier-Zaneti sustentam que essa delimitação não se aplica ao mandado de segurança coletivo, porque historicamente essa ação constitucional atua como meio “para a tutela dos contribuintes contra o abuso de poder e as ilegalidades perpetradas pelo Poder Público”. Parece absolutamente correto o argumento dos autores, acrescentando que a interpretação da mencionada norma deve ser interpretada restritivamente, uma vez que limita o direito fundamental de ação, constitucionalmente garantido pela Constituição da República. Muito interessante é o posicionamento dos autores em não desprezar a conciliação nas causas coletivas, desde que haja efetivo controle do órgão judicial e do Ministério Público. O Curso avança para cuidar, no Capítulo X, de forma minuciosa, da coisa julgada, cujo assunto é, sem medo de errar, um dos mais polêmicos da tutela coletiva. Desperta especial interesse a posição dos autores sobre a coisa julgada secundum eventum probationis. Nesse ponto, sustenta-se que não basta ser a prova “nova”, mas sim a prova capaz de mudar a decisão transitada em julgado deve ser suficiente para um novo juízo de direito acerca da questão de fundo. No correto raciocínio de Didier-Zaneti, “a opção pela coisa julgada secundum eventum probationis revela o objetivo de prestigiar o valor justiça em detrimento do valor segurança, bem como preservar os processos coletivos do conluio e da fraude processual” (p. 367). O penúltimo Capítulo (XI) esmiúça a liquidação e a execução da decisão coletiva. Pelo aguçado do raciocínio dos autores, merece destaque o item 2.3, que trata do problema da legitimidade ativa na execução da decisão genérica da ação coletiva que versa sobre direitos individuais homogêneos. Mais adiante Didier-Zaneti cuidam da competência para a liquidação e execução coletiva, concluindo com a aplicação do art. 475-P do Código de Processo Civil que há três foros em tese competentes: a) foro que processou a causa originariamente, b) foro de domicílio do executado e c) foro do bem que pode ser expropriado. Finalmente, o Capítulo XII trata de um dos temas menos versados pelos doutrinadores: processo coletivo passivo. Nesse ponto, há um cuidadoso estudo para a seguinte pergunta: a coletividade pode ser ré no processo coletivo? Didier-Zaneti, depois de explicar que a resposta é positiva, oferecem interessantes exemplos. Tomamos a liberdade de transcrever um deles: “Em 2004, em razão da 112 greve nacional dos policiais federais, o Governo Federal ingressou com demanda judicial contra a Federação Nacional dos Policiais Federais e o Sindicato dos Policiais Federais no Distrito Federal, pleiteando o retorno das atividades. Trata-se, induvidosamente, de uma ação coletiva passiva, pois a categoria ‘policial federal’ encontravase como sujeito passivo da relação jurídica deduzida em juízo: afirmava-se que a categoria tinha o dever coletivo de voltar ao trabalho.” (p. 415-416). Por tudo isso, a 6ª edição do Curso de Direito Processual Civil – Processo Coletivo com que Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr. acabam de nos brindar, podese dizer que o volume já é um clássico do direito processual. Não é por outro motivo que a obra já foi diversas vezes citada pelos Tribunais Superiores. A meditação sobre os assuntos dessa obra será de grande proveito para todos quantos desejam conhecer os problemas da tutela coletiva. Problemas, na realidade, muito mais simples do que parecem, graças à agudeza de espírito dos autores. Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. Decisão judicial converte em casamento a união estável entre duas pessoas do sexo masculino Pesquisa e apresentação do assunto: RUI CARVALHO PIVA Doutor em Direito. Coordenador de Pesquisa da Faculdade de Direito da Fundação Armando Alvares Penteado – FAAP. Editor da Revista FAAP JURIS. Professor de Direito Civil dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação da Faculdade de Direito da FAAP. Professor de Direito Ambiental do Curso de Pós-Graduação em Direito do Agronegócio da FAAP em Ribeirão Preto. Professor de Gestão Ambiental do Curso de Pós-Graduação Gerente de Cidade, da FAAP em Sorocaba. Desde que a questão do reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar foi submetida à apreciação do Supremo Tribunal Federal, o assunto não mais deixou de ser repercutido na mídia e nos ambientes de estudo de questões sociais relevantes. E assim permaneceu até agora, mesmo depois do dia 5 de maio de 2011, data em que o Supremo Tribunal Federal reconheceu como sendo entidade familiar a união estável entre pessoas do mesmo sexo. Agora, no dia 27 de junho de 2011, na cidade de Jacareí, interior do Estado de São Paulo, o Juiz de Direito Fernando Henrique Pinto, titular da 2.ª Vara da Família e das Sucessões e da Corregedoria Permanente do Registro Civil das Pessoas Naturais e de Interdições e Tutelas daquela Comarca, proferiu, com parecer favorável do Promotor de Justiça que representa o Ministério Público na mencionada Vara de Família e Sucessões e de Corregedoria, uma inédita e polêmica sentença, na qual homologou o pedido de conversão da união estável dos requerentes, Luiz André de Resende Moresi e José Sérgio Santos de Sousa em casamento, pelo regime da comunhão parcial de bens, assim requerido pelos interessados, bem como autorizou a pretendida alteração dos nomes dos interessados, que passaram a se chamar Luiz André Rezende Sousa Moresi e José Sérgio Sousa Moresi. Os requerentes formularam junto ao Cartório de Registro Civil dos seus domicílios um pedido de habilitação para casamento e cumpriram todas as formalidades, inclusive a publicação de editais, não tendo havido impugnação. Cumprida essa etapa do procedimento, o Cartório submeteu o processo à apreciação do Juiz Corregedor Permanente de Jacareí, de acordo com o previsto nas normas da Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo. Foi nesse processo que o Juiz proferiu a decisão homologando o pedido de conversão da união estável dos requerentes em casamento, determinando ao Oficial do Registro Civil a lavratura do registro do casamento e as averbações do fato nos registros de nascimento dos requerentes. A Assessoria de Imprensa do Tribunal de Justiça de São Paulo repercutiu a notícia no site do Tribunal na internet e, a pedido da Coordenadoria de Pesquisa da Faculdade de Direito da FAAP, enviou o inteiro teor da sentença em arquivo PDF, o qual foi digitado e segue abaixo transcrito para que os leitores da Revista JURIS possam conhecer o assunto com todos os aspectos legais, doutrinários e jurisprudenciais contidos na inédita e polêmica decisão. PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO Comarca de Jacareí/SP 2ª Vara da Família e das Sucessões Corregedoria Permanente do Registro Civil das Pessoas Naturais e de Interdições e Tutelas Protocolo nº. 1209/2011 (Conversão de União Estável em Casamento) Vistos. LUIZ ANDRÉ DE RESENDE MORESI e JOSÉ SÉRGIO SANTOS DE SOUSA, ambos do sexo masculino, demais qualificações nos autos, protocolaram pedido de conversão de união estável em casamento. Instruíram o pedido com escritura pública lavrada em 17/05/2011, perante o 1º Tabelião de Notas e de Protestos de Letras e Títulos de Jacareí/SP (livro nº.705, fls.017), onde declararam viver em união estável há 8 (oito) anos. Foi publicado edital e cumpridas todas as formalidades legais para habilitação a casamento, não 113 havendo impugnações. O pedido foi instruído com declaração de duas testemunhas, no sentido de que os requerentes “mantém convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”. O Ministério Público ofertou parecer favorável ao pedido. É o relatório do necessário. Fundamento e decido. Preliminarmente, observa-se que, conforme pedido expresso dos autores, os mesmos pretendem a conversão de alegada união estável em casamento, como permite e prevê o art. 226, § 3º, parte final, da Constituição Federal, e o art. 1.726 do Código Civil. Regulamentando tais dispositivos constitucionais e legais, a Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo, em suas Normas de Serviço (Tomo II, Capítulo XVII, Seção V, Subseção IV, art. 135), assim disciplinou o procedimento de conversão da união estável em casamento: “87. A conversão da união estável em casamento deverá ser requerida pelos conviventes perante o Oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais de seu domicílio. (Nota 2: Prov. CGJ 25/2005). 87.1. Recebido o requerimento, será iniciado o processo de habilitação previsto nos itens 52 a 74 deste capítulo, devendo constar dos editais que se trata de conversão de união estável em casamento. (Nota 3: Prov. CGJ 25/2005). 87.2. Decorrido o prazo legal do edital, os autos serão encaminhados ao Juiz Corregedor Permanente, salvo se este houver editado portaria nos moldes previstos no item 66 supra. (Nota 4: provs. CGJ 25/2005 e 14/2006). 87.3. Estando em termos o pedido, será lavrado o assento da conversão da união estável em casamento, independentemente de qualquer solenidade, prescindindo o ato da celebração do matrimônio. (Nota 5: Provs. CGJ 25/2005 e 14/2006). 87.4. O assento da conversão da união estável em casamento será lavrado no Livro “B”, exarando-se o determinado no item 81 deste Capítulo, sem a indicação da data da celebração, do nome e assinatura do presidente do ato, dos conviventes e das testemunhas, cujos espaços próprios deverão ser inutilizados, anotando-se no respectivo termo que se trata de conversão de união estável em casamento. (Nota 5: Prov. CGJ 25/2005). BLOCO DE ATUALIZAÇÃO Nº 28 – CAP. XVII -31 87.5. A conversão da união estável dependerá da superação dos impedimentos legais para o casamento, sujeitando-se à adoção do regime matrimonial de bens, 114 na forma e segundo os preceitos da lei civil. (Nota 1: Prov. CGJ 25/2005). 87.6. Não constará do assento de casamento convertido a partir da união estável, em nenhuma hipótese, a data do início, período ou duração desta. (Nota2: Prov. CGJ 25/2005)”. Resumindo-se, verifica-se que o casamento civil tradicional difere do casamento por conversão de união estável apenas pela substituição do ato solene da celebração, presidido pelo “juiz de paz”, pela homologação, realizada pelo Juiz de Direito responsável pela Corregedoria Permanente do Registro Civil das Pessoas Naturais da comarca. No mérito, cumpridas todas as formalidades legais, a questão que se coloca para análise é a possibilidade ou não de casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, o que se passa a apreciar. O maior e mais repetido princípio da Constituição da República Federativa do Brasil é o da igualdade. A mesma constituição elegeu a “dignidade da pessoa humana” como um de seus “fundamentos” (art. 1º, inciso III), e declarou que o Brasil tem como “objetivos fundamentais” a construção de “uma sociedade livre, justa e solidária”, bem como “promover o bem de todos, SEM PRECONCEITOS de origem, raça, SEXO, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, incisos I e IV). Também determina a Constituição Federal que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” e que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição” (art. 5º, inciso I). Mais à frente, no Título “Da Ordem Social”, a Lei Maior afirma que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado” (art. 226, caput). Sobre o casamento, a Constituição Federal dispõe que o mesmo “é civil e gratuita a celebração” (art. 226, § 1º), acrescentando que “o casamento religioso tem efeito civil nos termos da lei” (art. 226, § 1º), e que o casamento “pode ser dissolvido pelo divórcio” (art. 226, § 6º, com redação dada pela Emenda Constitucional nº 66, de 13/07/2010). A Constituição Federal também declara que “para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável (...) como entidade familiar, DEVENDO A LEI FACILITAR SUA CONVERSÃO EM CASAMENTO, e que “entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes” (art. 226, §§ 3º e 4º). Em harmonia com o princípio da igualdade, nossa Lei Maior enfatiza que “os direitos e deveres referentes Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher” (art. 226, § 5º). Aqui cabe abrir parêntesis para alertar que tal dispositivo não necessariamente declara que casamento existe apenas entre homem e mulher, até porque “sociedade conjugal” não é “casamento”, sendo certo que a primeira sempre pôde ser dissolvida pela “separação” (de fato, judicial e mais recentemente também extrajudicial), e o segundo somente é dissolvido pelo “divórcio”. Contudo, aparentemente rompendo todo esse contexto de ênfase no princípio da igualdade, a Constituição da República Federativa do Brasil, ao mencionar a união estável em seu art. 226, § 3º, assim se pronunciou: “é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar” (art. 226, §§ 3º). Mais de duas décadas passadas desde 05/10/1988, quando foi promulgada a Constituição da República Federativa do Brasil, e já se ingressando na segunda década do Século XXI, é público e notório que milhares de pessoas do mesmo sexo (homens e homens; mulheres e mulheres), compartilham a vida juntos como se casados fossem. A ausência de respaldo jurídico a tal realidade social causou inúmeros prejuízos e injustiças, desde o não reconhecimento do direito à sucessão, passando pela ausência da presunção legal de esforços comum no patrimônio constituído, até a ausência de direitos sociais, como a pensão previdenciária por morte. Nesse contexto, tramitava perante o Supremo Tribunal Federal a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF nº 178 (conhecida como a Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI nº 4277), ajuizada pela Procuradoria-Geral da República, objetivando a declaração de reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. Pedia-se, também, que os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis fossem estendidos aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo. Também estava em trâmite a ADPF nº 132, onde o Estado do Rio de Janeiro alegava que o não reconhecimento da união homoafetiva contraria preceitos fundamentais como igualdade, liberdade (da qual decorre a autonomia da vontade) e o princípio da dignidade da pessoa humana, todos da Constituição Federal, e pediu que o STF aplicasse o regime jurídico das uniões estáveis, previstos no artigo 1.723 do Código Civil, às uniões homoafetivas de funcionários públicos civis do Rio de Janeiro. Foi nesse contexto que no dia 05 de maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento de tais ações, tendo como relator o Exmo. Ministro Ayres Britto, reconheceu a união estável para casais do mesmo sexo, dando interpretação conforme a Constituição Federal, para excluir qualquer significado do artigo 1.723 do Código Civil que impeça o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. Na ocasião, o Exmo. Ministro Ayres Britto foi seguido pelos Exmos. Ministros Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezar Peluso, bem como Exmas. Ministras Cármen Lúcia Antunes Rocha e Ellen Gracie – decorrendo votação unânime dos presentes. Tal julgamento, nos termos do art. 102, § 2º, da Constituição Federal, possui “eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federais, estaduais e municipais”. No caso concreto, aplica-se a conhecida fórmula jurídica romana, segundo a qual “onde há a mesma razão, aplica-se o mesmo direito” (“ubis eadem ratio, ibi eadem jus”). Desta forma, os fundamentos de tal julgamento, ainda que sem o dito efeito vinculante, certamente são aplicáveis ao instituto de direito civil denominado casamento, inclusive ao mencionado art. 226, § 5º, da Constituição Federal – o que apenas não foi declarado no mencionado precedente histórico do STF, provavelmente porque não era objeto dos pedidos das ações em análise. Os prováveis entraves a tal entendimento podem advir de discriminação e/ou de convicções religiosas. Mas o Estado Brasileiro, do qual o Judiciário é um dos Poderes, repudia constitucionalmente a discriminação e é laico, ou seja, não vinculado a qualquer religião ou organização religiosa. É bom e necessário que assim seja, pois alguns dogmas ou orientações religiosas muitas vezes se chocam com princípios e garantias da Constituição da República Federativa do Brasil. A discriminação (ou preconceito) contra homossexuais decorre normalmente de equivoco sobre a origem “psíquica” do homossexualismo, e de dogmas ou orientações religiosas. O equivoco de origem “psíquica” é a crença que o homossexualismo e suas variantes (transexualismo etc.) ou a união homoafetiva constituem simples opção sexual. Tal premissa parece equivocada, porque o fenômeno pelo qual um homem ou uma mulher se sente atraído (a) por pessoa do mesmo sexo, a ponto às vezes de repudiar contato íntimo com pessoa do sexo oposto, não se mostra como uma opção. Tudo indica tratar-se de uma característica individual de determinados seres humanos, tão independente da vontade quanto a cor do cabelo, da pele, o caráter, as aptidões etc. De fato, se no mundo ainda vige forte preconceito contra tais pessoas, e se as mesmas têm de passar 115 por sofrimentos internos, familiares e sociais para se reconhecerem para elas próprias e publicamente como homossexuais – às vezes pagando com a própria vida, parece que, se pudessem escolher, optariam pela conduta socialmente mais aceita e tida como “normal”. O dogma ou orientação religiosa que de forma mais marcante se opõe ao casamento entre pessoas do mesmo sexo é a colocação da relação sexual procriadora como principal elemento ou requisito essencial do casamento. Ocorre que o motivo maior de uma união humana é – ou deveria ser – o Amor, até porque este é pregado pela maioria das religiões, principalmente as cristãs, como o valor e a virtude máxima e fundamental. Fosse de outra forma, muitas religiões não poderiam aprovar casamentos entre pessoas de sexos opostos que não podem ter filhos. E se assim agem, parecem afrontar a Lei Cristã do Amor, e prejudicam a formação da entidade familiar ou família, que é a base da sociedade. Por outro enfoque, muitos se preocupam com o potencial envolvimento de crianças ou adolescentes na entidade familiar formada por pessoas do mesmo sexo. Mas, se esquecem que a falta de planejamento familiar, da qual decorre a geração de crianças sem condições mínimas de sustento e educação, bem como atos abomináveis, como, por exemplo, a remessa de recém nascidos em latas de lixo ou o assassinato dos próprios filhos, são diariamente protagonizados por “casais” de sexos opostos ditos “normais” e/ou por pessoas heterossexuais. O Brasil, entre outras conhecidas mazelas, é palco da falência da segurança pública, das fronteiras sem controle, da disseminação descontrolada das drogas, da endêmica corrupção, e possui a maior carga tributária, a pior distribuição dos tributos arrecadados e o trânsito que mais mata do planeta Terra. Assim, pode-se afirmar que no Brasil há situações de fato e de direito, muito mais grave para se preocupar, que com a vida de dois seres humanos desejosos de paz e felicidade ao seu modo, sem infringir direitos de ninguém. Finalmente, cabe anotar que no último dia 17 de junho de 2011, o Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou uma resolução histórica destinada a promover a igualdade dos seres humanos, sem distinção de orientação sexual. A resolução, que teve aprovação do Brasil, embora sem ações afirmativas, dispõe que “todos os seres humanos nascem livres e iguais no que diz respeito a sua dignidade e cada um pode se beneficiar do conjunto de direitos e liberdades sem nenhuma distinção”. Por todo o exposto, HOMOLOGO a disposição de vontades declarada pelos requerentes do presente procedimento, para CONVERTER em CASAMENTO, 116 pelo regime escolhido da comunhão parcial de bens, a união estável dos mesmos – os quais, por força deste casamento, passam a se chamar respectivamente ‘LUIZ ANDRÉ REZENDE SOUSA MORESI” e “JOSÉ SÉRGIO SOUSA MORESI”. Tratando-se esta sentença de ato judicial que substitui a celebração, a mesma tem efeitos imediatos. Assim, lavre-se o registro de casamento e providencie-se o necessário às averbações nos registros dos nascimentos das partes. No mais, nada sendo requerido em 30 (trinta) dias, arquivem-se os autos. P.R.I. Ciência ao Ministério Público. Jacareí/SP, 27 de junho de 2011. Fernando Henrique Pinto Juiz de Direito Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. Emenda Constitucional inconstitucional: um convite à reflexão Pesquisa e apresentação do assunto: MARCIO PESTANA Doutor e Mestre em Direito do Estado (PUC/SP). Professor de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da FAAP. Coordenador e Professor do Curso de Direito Público do Curso de Pós-Graduação da FAAP. Advogado. Sócio do escritório Pestana e Villasbôas Arruda – Advogados, com sede em São Paulo e filial no Rio de Janeiro. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas “Direito Administrativo Brasileiro”, Ed. Elsevier. No mês de maio de 2011 foi publicado acórdão do STF - Processo ADI-2356/MC/DF -, suspendendo os efeitos, por vício de inconstitucionalidade, de determinado dispositivo contido na Emenda Constitucional n. 30/2000. A decisão tomada pelo Pleno do STF possui caráter liminar, extraída de um processo de natureza cautelar, isto, decorridos, aproximadamente, 8 anos de processamento na Corte Constitucional. Conforme se poderá observar da ementa ao final transcrita, a decisão liminar apresenta particularidades que exigem reflexão e estudo aprofundado por parte de todos os estudantes, pesquisadores e profissionais do direito, notadamente aqueles que tenham maior interesse no exame de questões jurídicas de índole constitucional, administrativa e processual. Examinemos, a breve traço, mas não pela ordem de relevância, alguns dos aspectos que mais chamam a nossa atenção: Primeiro: os prejuízos sofridos pelo administrado, em razão da demora em declarar-se, de inicio, liminarmente, e, se caso for, posteriormente, em caráter definitivo, inconstitucional, determinado dispositivo da Emenda Constitucional, poderiam ensejar a responsabilização extracontratual do Estado? A prestação da atividade jurisdicional, sobretudo por parte da Alta Corte, a nosso ver possui um tempo razoável para ser proferida, especialmente ao envolver situações cuja repercussão geral revela-se marcantemente indiscutível, caso do pagamento dos chamados “precatórios”; uma vez ultrapassado, em muito, vislumbramos, sim, a possibilidade do Estado vir a ser responsabilizado, especialmente por infringir os princípios da segurança jurídica, da confiança legítima e da razoabilidade. Segundo: parte dos Ministros do STF faz referência ao entendimento de que a Constituição Federal de 1988 fora editada a partir de uma Assembléia Constituinte dotada de poderes originários. Entendemos, diferentemente, que a Assembléia em questão deteve poderes constituintes derivados, pois teve, indiscutivelmente, seus trabalhos antes perimetrados pelo regime político e jurídico que a precedera, aliás num clima de distensão e abertura, lenta e gradual, expressão reiteradamente apregoada ao longo dos anos que precederam a promulgação da CF de 1988. Terceiro: diz-se que a Emenda Constitucional não poderia contrariar a coisa julgada, vez que pretendera desconhecer as decisões e ordens provenientes do Poder Judiciário. Este aspecto é interessantíssimo, especialmente se examinado sob a dialética do direito adquirido “versus” alteração de regime jurídico, merecendo destaque bem aclarar-se até onde poderá se instalar novo regime jurídico. Quarto: a prevalecer o entendimento liminar, podese concluir que a Emenda Constitucional 62/2009 terá o mesmo fim? O ponto de identidade entre ambas as emendas é o de procrastinar, prolongadamente, a satisfação de um débito detido pelo Estado em relação ao administrado, em flagrante assimetria com o tratamento dispensado aos administrados devedores, fazendo tabula rasa em relação aos princípios, mais uma vez, da segurança jurídica, da confiança legítima, da razoabilidade e, ademais, no ponto, da moralidade e da eficiência que se alojam, expressamente, no art. 37, da CF. Quinto: o periculum in mora, um dos requisitos necessários para a concessão de decisão em caráter liminar, costumeiramente associa-se ao fator tempo. No caso de um processo cautelar iniciado em 2002, decidido, liminarmente, em 2010, com publicação do respectivo Acórdão em 2011, observam-se nuances jurídicos que exigem, no mínimo, a nossa reflexão acerca do conteúdo de tal requisito de concessão cautelar. Sexto: diz-se que o corte temporal autorizador do parcelamento, em 10 anos, tal como preconizado pela EC 30/2000, não se conformaria com o conteúdo normativo assentado no “caput” do art. 5º, da CF. Mas, pergunta-se: o parcelamento em 8 anos, assegurado pela CF na sua versão originária, de certa maneira também não contrariaria o próprio art. 5º, da CF? Não nos parece suficiente, para concordar-se com a distinção, a argumentação de que lá, diferentemente daqui, a disposição proviria de uma Assembléia Constituinte com poderes originários, enquanto aqui, derivados, especialmente se reiterarmos o nosso entendimento de que o Constituinte de 1988 possuíra competência derivada. Sétimo: o instituto constitucional da intervenção federal e estadual encontra-se, indiscutivelmente, em crise. 117 O inadimplemento das obrigações de diversos Estados e Municípios admitiria a sua decretação; contudo, na prática, o que se observa, é a não utilização dessa solução constitucional, sob os mais variados argumentos, todos eles se colocando num patamar axiológico e jurídico de proeminência em relação a aquele que diz respeito à intervenção efetiva, para que o Estado, em sentido amplo, salde as suas dívidas e, exemplarmente, estimule que o administrado também o faça em relação aos débitos que possua em face do Estado. Oitavo: qual é o real conteúdo do princípio do acesso à justiça? Não é meramente a possibilidade que se abre – e que a CF assegura - para o administrado adentrar ao portal judicial para obter uma decisão; o acesso à justiça somente estará materializado, em sentido substancial, se houver uma decisão tomada em tempo razoável e compatível para o caso concretamente considerado. Não o sendo, o acesso à justiça será meramente formal, não satisfazendo, integralmente, ao aludido principio constitucional. Nono: o exame, pelo STF, de medidas judiciais envolvendo Emendas Constitucionais não mereceria ter um tratamento mais privilegiado e célere por parte da Alta Corte? Tendo em vista que a mudança constitucional altera a cúspide do ordenamento jurídico, irradiando efeitos para a base da pirâmide, com destaque, no ponto, para a Administração Pública e para o Poder Judiciário, trazendo reflexos em praticamente toda a coletividade, cremos ser de todo apropriado atribuir-se absoluta prioridade na apreciação de processos que versem sobre modificações na CF. Décimo: as decisões tomadas em instancias judiciais inferiores, especialmente envolvendo a fixação do termo inicial e termo final de contagem de juros para o pagamento dos “precatórios”, parcelados em 10 anos, admitiriam ser reexaminadas, mesmo à vista da coisa julgada e do prazo prescricional qüinqüenal dos pleitos apresentados perante a Administração Pública? Como podemos observar, esse julgamento proferido pelo STF é riquíssimo no tocante às matérias apreciadas, convidando a que todos nós examinemos, com a devida detença, os aspectos aqui sublinhados, sem prejuízo daqueles outros que, naturalmente, persistam fluindo e gerando perplexidades a partir de cada releitura do seu conteúdo. Com isso poderemos, mais e mais, contribuir para o fortalecimento das instituições e para o aprimoramento do próprio sistema jurídico brasileiro. ______________________________________________ “EMENTA: MEDIDA CAUTELAR EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 2º DA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 30, DE 13 DE SETEMBRO DE 2000, QUE ACRESCENTOU O ART. 78 AO ATO DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS. PARCELAMENTO DA LIQUIDAÇÃO DE PRECATÓRIOS PELA FAZENDA PÚBLICA. 1. O precatório de que trata o artigo 100 da 118 Constituição consiste em prerrogativa processual do Poder Público. Possibilidade de pagar os seus débitos não à vista, mas num prazo que se estende até dezoito meses. Prerrogativa compensada, no entanto, pelo rigor dispensado aos responsáveis pelo cumprimento das ordens judiciais, cujo desrespeito constitui, primeiro, pressuposto de intervenção federal (inciso VI do art. 34 e inciso V do art. 35, da CF) e, segundo, crime de responsabilidade (inciso VII do art. 85 da CF). 2. O sistema de precatórios é garantia constitucional do cumprimento de decisão judicial contra a Fazenda Pública, que se define em regras de natureza processual conducentes à efetividade da sentença condenatória trânsita em julgado por quantia certa contra entidades de direito público. Além de homenagear o direito de propriedade (inciso XXII do art. 5º da CF), prestigia o acesso à jurisdição e a coisa julgada (incisos XXXV e XXXVI do art. 5º da CF). 3. A eficácia das regras jurídicas produzidas pelo poder constituinte (redundantemente chamado de “originário”) não está sujeita a nenhuma limitação normativa, seja de ordem material, seja formal, porque provém do exercício de um poder de fato ou supra positivo. Já as normas produzidas pelo poder reformador, essas têm sua validez e eficácia condicionadas à legitimação que recebam da ordem constitucional. Daí a necessária obediência das emendas constitucionais às chamadas cláusulas pétreas. 4. O art. 78 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, acrescentado pelo art. 2º da Emenda Constitucional nº 30/2000, ao admitir a liquidação “em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de dez anos” dos “precatórios pendentes na data de promulgação” da emenda, violou o direito adquirido do beneficiário do precatório, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Atentou ainda contra a independência do Poder Judiciário, cuja autoridade é insuscetível de ser negada, máxime no concernente ao exercício do poder de julgar os litígios que lhe são submetidos e fazer cumpridas as suas decisões, inclusive contra a Fazenda Pública, na forma prevista na Constituição e na lei. Pelo que a alteração constitucional pretendida encontra óbice nos incisos III e IV do § 4º do art. 60 da Constituição, pois afronta “a separação dos Poderes” e “os direitos e garantias individuais”.5. Quanto aos precatórios “que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999”, sua liquidação parcelada não se compatibiliza com o caput do art. 5º da Constituição Federal. Não respeita o princípio da igualdade a admissão de que um certo número de precatórios, oriundos de ações ajuizadas até 31.12.1999, fique sujeito ao regime especial do art. 78 do ADCT, com o pagamento a ser efetuado em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de dez anos, enquanto os demais créditos sejam beneficiados com o tratamento mais favorável do § 1º do art. 100 da Constituição. 6. Medida cautelar deferida para suspender a eficácia do art. 2º da Emenda Constitucional nº 30/2000, que introduziu o art. 78 no ADCT da Constituição de 1988”. Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. Deus não abandona VANDA AMORIM A comovente trajetória de um pai em busca do filho desaparecido “Vanda Amorim, que estreou muito bem na literatura com Crocodilo sonhador (Editora Globo), consegue algo raro neste novo romance: contar uma comovente história de amor, ação e suspense e manter o leitor, até o fim, atento para o desfecho da intricada trama. Aqui vamos conhecer os destinos de Norah e Ollavo, duramente separados após o rapto de seu filho, Lorenzo, aos dois anos de idade. E também poderemos refletir sobre o valor da amizade através da relação de Norah com Beatrice. Mas este romance é atual principalmente por enfrentar com destemor um dos temas mais complexos da contemporaneidade: a perversão afetiva e sexual. Seus personagens são claros, traçados com a precisão de quem conhece a alma humana em todas as suas formas, das mais rudes às mais delicadas. Pois é exatamente disso que a autora trata: a possibilidade de a delicadeza vencer a brutalidade, de a verdade e a fé sobrepujarem a inveja, a mentira e a falsidade.” Apresentando o livro, Nora Longgren Tarabini disse: “Os personagens da escritora são cativantes. Temas como valores, amor, inveja, intriga, justiça são abordados de forma que só ela sabe fazer. Nesta obra, Norah (com “h”) me prendeu sobremaneira; uma mulher nobre, que luta muito para chegar longe, mas no decorrer de sua trajetória leva diversas “bofetadas” da vida. Ollavo, seu marido, homem quase perfeito, busca provar o seu amor de vários modos, tendo por vezes de se sacrificar para chegar à implacável e cruel verdade. João, o bom menino, a duras penas, sobrevive às torturas de um pedófilo e, ainda que com o coração dilacerado, com o corpo maculado e a alma ferida, aprende a driblar o sofrimento para quem sabe ser um homem vencedor! Estes são só três personagens de uma história que irá fazer com que o leitor fique preso do começo ao fim, sem sequer ter tempo para um simples cafezinho!” pode, com sucesso artístico, ser levado ao cinema ou ao teatro. É certo que cinema e teatro exigem linguagem diversa da linguagem literária, como também é diversa a linguagem cinematográfica da teatral. Contudo, o romance da autora já parece de braços abertos à espera de outras linguagens. As linguagens cinematográfica e teatral acomodar-se-iam no romance como as luvas nas mãos. Mel na sopa.” A cena final envolvendo mãe, pai e filho, se passa diante do altar da igreja. Bem próximo de Deus. Que bom! Vanda Lúcia Cintra Amorim é advogada atuante na área de família e sucessões na capital paulista, Administradora do Instituto “A Casa” e Diretora do Instituto de Pesquisas e Estudos em Humanização e Políticas de Saúde. Publicou dois outros livros: Direito ao nome da pessoa física e o romance Crocodilo Sonhador. Deus não abandona foi lançado pela Editora Globo. São 254 páginas. Em determinado trecho do excelente prefácio, a Presidente do Conselho de Curadores da Fundação Armando Alvares Penteado, Celita Procópio de Araújo Carvalho, escreveu: “Tomo a liberdade de falar agora, em especial, aos cineastas e teatrólogos. Esta foi a razão por que iniciei este prefácio invocando Victor Hugo, na oportunidade em que o consagrado autor francês elenca os leitores da obra dramática. O romance de Vanda Amorim 119 Muito além da responsabilidade social JEFFREY HOLLENDER E BILL BREEN Como preparar a próxima geração de líderes e empresas para um mundo sustentável “Em Muito além da responsabilidade social, Jeffrey Hollender, cofundador da Seventh Generation, e Bill Breen, coautor de O futuro da administração, revelam como as organizações mais inteligentes competem em um mundo onde o mercado exige que todas as empresas construam um futuro melhor. Com um relato vigoroso e uma análise perspicaz, Hollender e Breen produzem um roteiro para a criação de empresas financeira, social e ambientalmente sustentáveis. Muito além da responsabilidade social reúne uma combinação poderosa de gigantes empresariais, grandes marcas e empresas emergentes – de pioneiros em sustentabilidade aos que estão construindo o próprio caminho – como Nike, Timberland, eBay, IBM, Marks & Spencer, Patagônia, Novo Nordisk, Organic Valley, Etsy, Linden Lab e Seventh Generation. Revelando como essas organizações redefinem o que significa, para elas, agir de forma responsável, cada capitulo apresenta novos modelos para criar o tipo de empresa que irá prosperar nesta nova era de sustentabilidade.” No prefácio, Peter Senge destaca aspectos que podem representar o grande diferencial do livro cuja leitura está sendo sugerida: “Durante muito tempo, nossa definição de comportamento empresarial ‘responsável’ foi perigosamente limitada e tímida. Muitas vezes, louvamos nossos esforços como sendo um pouco menos ruins, saudando-os como exemplos de mudanças importantes. Ocultamos nosso comportamento irresponsável com campanhas de marketing ‘relacionado a causas sociais’ e comemoramos o ‘progresso’, que geralmente é pouco mais que o cumprimento das regulamentações existentes. Publicamos milhões de relatórios de responsabilidade empresarial repletos de belas fotos, mas pobres de reveses e fracassos. A revolução da responsabilidade consiste em mais do que reduzir emissões de dióxido de carbono, reduzir o uso de energia, monitorar fábricas ou fazer doações para instituições beneficentes. Consiste em reinventar empresas de dentro para fora: inventar novas formas de trabalho, incutir uma nova lógica de concorrência, identificar novas possibilidades de liderança e redefinir o próprio propósito do negócio.” também solucioná-los. Ao tirar partido do dever de ser transparente, aproveitamos as idéias do público, bem como suas críticas – e criamos a oportunidade de transformar relacionamentos antagônicos em parcerias proveitosas. Para quem duvidar dessa necessidade, basta recordar as recentes histórias da Nike e da Gap – como cada uma delas, ao publicar relatórios com a verdade nua e crua sobre as condições de trabalho de suas fábricas terceirizadas, acabaram construindo acordos baseados em soluções com alguns de seus mais duros críticos.” Jeffrey Hollender é cofundador e chairman da Seventh Generation, marca de produtos naturais de limpeza e higiene pessoal. É diretor do Greenpeace nos Estados Unidos e, com freqüência, discursa sobre questões de responsabilidade ambiental e social em eventos nacionais e internacionais. Bill Green é diretor editorial da Seventh Generation e coautor, com o estrategista de negócios Gary Hamel, de O futuro da administração, considerado pela Amazon.com o melhor livro de negócios de 2007. Muito além da responsabilidade social foi lançado pela Elsevier. São 212 páginas. Assumindo a idéia de que “num mundo transparente, não compensa ser opaco”, os autores afirmam: “O objetivo de ser transparente não é apenas revelar problemas, mas 120 Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. Os melhores diálogos do cinema PAULO FENDLER O que você vai encontrar aqui, nesse livro? “Uma coletânea de mais de 150 histórias breves, mas de intensas emoções. Situações inusitadas, diálogos inteligentes, sacadas inesperadas que nos fazem rir e refletir, enriquecendo nossa experiência de vida. Como o cinema que habituou-nos ao encantamento. Até mesmo por alguns episódios heróicos e altruístas que podem umedecer nossos olhos, esses, já brilhantes por essa bem-humorada leitura, universalmente inédita.” Nos cinco anos anteriores a 2010, o autor assistiu centenas de filmes, muitos dos quais já vistos anteriormente, durante sua vida, com o propósito de selecionar os 150 diálogos que compõem o livro. E diz, na apresentação: “Separo esses cinco anos, pois os assisti com outros olhos e ouvidos, quer fossem romances, dramas, ficções, comédias, épicos e até mesmo desenhos animados. Assistimos a todos em busca de diálogos e citações notáveis, e os achamos, independente de qualquer julgamento, de serem bons ou maus filmes, Assim, recomendamos ao leitor não dar importância, não privilegiar escolhas por títulos, ou filmes de preferência. E, também, porque tivemos a sorte desse livro ser capaz de ocupar, de maneira agradável, os nossos momentos de lazer, qualquer que seja a sua duração, pois uma das vantagens dessa leitura é poder ser iniciada e retomada em qualquer parte e a qualquer instante, seja por alguns minutos, ou horas.” Conheça previamente esse diálogo entre Harry e Érica, personagens do filme “Alguém tem que ceder (Something’s gotta give), ocorrido após um primeiro e apaixonado beijo: pago parra vir a esse tribunal? Testemunha – Sim, exatamente como o senhor! Em uma das versões de O poderoso chefão (The godgather), Michael Corleone (Al Pacino) trava o seguinte diálogo com sua esposa Kay (Diane Keaton): Michael – Meu pai é como um homem qualquer do poder. Qualquer homem responsável por outros. Como um senador ou presidente... Kay – Você é ingênuo. Senadores e presidentes não matam outras pessoas. Michael – Quem é ingênuo, Kay? Paulo Fendler, o autor, é publicitário que integrou os quadros funcionais de importantes agências de propaganda. Na apresentação feita por seu filho, consta a criação de várias peças publicitárias e roteiros e direção de filmes de propaganda., trajetória que o manteve próximo de usa grande paixão, o cinema. Foi editor-chefe de revistas técnicas e empresário, o que lhe possibilitou uma visão privilegiada, capaz de permitir a associação do comportamento das pessoas com o comportamento dos personagens dos filmes. É paulistano e mora em São Paulo. Os melhores diálogos do cinema foi lançado pela Linear B, Gráfica e Editora. São 263 páginas. Harry – Lábios macios, o seus... Érica – Que bom que ainda funcionam. Fazia tanto tempo que não os usava para beijar. Uso mais para passar batom, assoprar, assobiar... Conheça mais esse, extraído do filme O veredito (The veredict) e ocorrido entre o advogado (James Mason) de um médico acusado de negligência profissional e a testemunha arrolada pelo advogado (Paul Newman) da parte contrária: Advogado, dirigindo-se à testemunha - O Sr. Está sendo 121 Titília e o Demonão PAULO REZZUTTI Cartas inéditas de D. Pedro I à Marquesa de Santos “Se existem mulheres ocasionalmente elevadas à categoria de “namorada do Brasil”, só uma pode ser chamada de “amante do Brasil”: Domitila de Castro Canto e Melo, a jovem divorciada cujo tórrido affair com dom Pedro I constitui o maior romance da nossa história,” “No segundo semestre de 2010, nada menos que 94 cartas inéditas do Imperador Pedro I à sua famosa amante, Domitila de Castro, escritas entre 1823 e 1827, posteriormente desaparecidas e esquecidas, foram encontradas quase por acidente em um museu nos EUA, por um pesquisador brasileiro com alma de detetive, faro de sabujo e paciência de Jô. Tais cartas, transcritas e comentadas neste livro, nos mostram o primeiro imperador do Brasil totalmente despojado de seus títulos, manto e coroa e, até mesmo, numa das cartas, de qualquer roupa, quando diz à amante que lhe perguntou algo: ‘Nu em pelo respondo (carta 52). Ontem mesmo fiz amor de matrimônio para que hoje, se você estiver melhor e com disposição, fazer o nosso amor por devoção.Talvez o mais divertido desta correspondência sejam os insistentes protestos de fidelidade do mulherengo coroado, tentando acalmar as crises de ciúme da amante, ao mesmo tempo em que também esbraveja de ciúme dela. Outras cartas, por sua vez, revelam um homem atencioso com a mulher amada, os conflitos dele, sua preocupação com os negócios brasileiros, seu interesse e carinho pelos filhos, mas todas, sem exceção, nos permitem ver o lado profundamente humano do imperador, ao mesmo tempo em que descortinam, por meio dos detalhes prosaicos, um rico painel da vida cotidiana e dos costumes do Brasil durante o Primeiro Reinado.” “Não só a transcrição das cartas, feitas por Rezzutti é impecável, como também o são os comentários com que ele as explica e lhes dá contexto, proporcionando ao leitor uma aula enriquecedora e muitíssimo agradável sobre um dos períodos – e sobre alguns dos personagens – mais fascinantes da nossa História. Além da transcrição das 94 cartas inéditas, esta edição traz mais 17 que as complementaram, algumas inéditas, outras não, todas transcritas diretamente dos originais, corrigindo inexatidões anteriores. Entre esses anexos estão algumas das poucas cartas de Domitila para D. Pedro de que temos notícia. Doravante nenhum estudo abrangente sobre o Libertador do Brasil poderá prescindir do exame destas cartas, escritas sob o calor das mais humanas emoções – o amor e a paixão – por um dos mais humanos vultos da nossa História.” Paulo Rezzutti é paulistano, arquiteto e urbanista formado pela Faculdade de Belas Artes de São Paulo. Pesquisador independente e estudioso da história de São Paulo, organizou o blog “São Paulo Passado”. Titília e o Demonão foi lançado pela Geração Editorial. São 350 páginas. Conheça, desde já, esta carta que o Imperador escreveu após Domitila ser proibida de entrar no Teatrinho Constitucional São Pedro, na segunda quinzena de setembro de 1824, comunicando o fechamento do Teatro, por ordem sua e em reação à proibição de entrada imposta à sua querida amante: “Aí vai o remédio que chegou neste momento da cidade, não me esqueço de nada seu. Já se mandou fechar o teatro, apreender papéis e proceder a devassa do que se sabe para meu esclarecimento. Vai o folheto para José aprender as manobras de cavalaria. Hoje já não trabalha o teatro, e estão todos de boca aberta.” 122 Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011. ESCLARECIMENTOS AOS SENHORES PROFESSORES SOBRE ELABORAÇÃO DOS ARTIGOS PARA PUBLICAÇÃO NA REVISTA JURIS DA FACULDADE DE DIREITO DA FAAP • O Conselho Editorial utilizará, para publicação na Revista Juris da Faculdade de Direito, entrevistas, artigos científicos, material jurisprudencial, questões polêmicas, resenhas e sugestões de leituras. • Para os artigos científicos, vigoram as seguintes regras de padronização: 1. Letra Times New Roman, tamanho 14 para títulos, 12 para textos e 10 para notas de rodapé; 2. Espaço entre linhas: 1,5; 3. Alinhamento: justificado; 4. Recuo de 2 cm. na primeira linha de cada parágrafo; 5. Margens direita e inferior: 2 cm.; 6. Margens esquerda e superior: 3 cm.; 7. Título na língua original, acompanhado de breve currículo qualificativo na área do conhecimento abordada pelo artigo; 8. Em seguida, deverá constar um resumo, contendo entre 100 e 250 palavras, cuja função é sintetizar os objetivos pretendidos, a metodologia usada, os resultados e as conclusões alcançadas no artigo. Referido resumo deverá ser composto por uma sequência correta de frases concisas e não por uma enumeração em tópicos; 9. Após o resumo, deverá constar uma relação de palavras chaves, que são termos indicativos do conteúdo do artigo, escolhidos em vocabulário adequado; 10. Em seguida, o texto do artigo; 11. Após o texto do artigo, uma tradução do resumo para a língua inglesa, denominada Abstract, e uma tradução das palavras chaves para a língua inglesa, denominada Key-words; 12. Os artigos deverão ser divididos em títulos e subtítulos, apresentando conclusão e bibliografia (incluindo todos os autores citados em notas de rodapé); 13. No texto, não deverá ser utilizado negrito, nem sublinhado, destacando-se termos somente com itálico; 14. As citações de notas de rodapé deverão ser grafadas seguindo o modelo: sobrenome do autor, título da obra (em negrito), data de publicação, página da citação; 15. As resenhas deverão conter, na abertura, a título de introdução, um breve relato da obra resenhada; 16. Os artigos serão submetidos a revisão antes da sua publicação e, a título de sugestão, deverão conter o mínimo de 10 folhas e o máximo de 15; 17. As referências bibliográficas deverão constar no final de cada artigo, organizadas segundo a ordem alfabética dos nomes dos autores mencionados e respeitar padrões da ABNT 2009, como segue no exemplo: SANTOS, Boaventura de Souza. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. ; 18. Os autores cedem os direitos autorais para a Faculdade de Direito da FAAP, que fica autorizada a publicá-los na Revista Juris. 123 124 Revista Juris da Faculdade de Direito, São Paulo, v.5, jan/junho. 2011.