Academia Judicial

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Revista da
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Revista da
Academia Judicial
Ano II – Nº 2 – Dez/2011
ISSN 2179-3751
Editora CONCEITO EDITORIAL
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Catalogação na Publicação: Bibliotecária Cristina G. de Amorim CRB-14/898
Revista da Academia Judicial. Ano II, n. 2 (2011) – São Paulo: Conceito Editorial, 2011; 17 cm
Semestral
Organizador: Academia Judicial
ISSN 2179-3751
274 páginas
1. Jurídica 2. Revista 3. Tribunal
Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo.
A violação dos direitos autorais é punível como crime, previsto no Código Penal e
na Lei de direitos autorais (Lei nº 9.610, de 19.02.1998).
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Editorial
É com redobrada alegria que a Academia Judicial do Poder Judiciário de Santa Catarina lança a terceira edição de sua Revista Científica. O sucesso dos números anteriores
e o lançamento da presente edição consolidam a Revista e demonstram a capacidade intelectual de magistrados e servidores do Poder Judiciário de Santa Catarina. A pesquisa e a
consequente produção científica já são uma prática comum no Judiciário Catarinense.
A Academia Judicial vem cumprindo seu papel institucional. Além de realizar todos os cursos legalmente previstos, promove outros, inclusive em nível de pós-graduação,
qualificando servidores e magistrados. A qualidade de ensino é excelente. Além disso, a
Academia viabiliza pesquisas, pois os Núcleos de Estudos e/ou Pesquisas (NEPs) também
já estão consolidados. Dois dos pilares de um centro universitário já são cumpridos pela
Academia Judicial, com excelência, frise-se.
Nossa Revista Científica está se consubstanciando em uma publicação periódica
referencial, capaz de influenciar a prática jurídica em nosso Estado e em todo o País, pois
sua distribuição é nacional. Enfim, nossa Revista Científica já é um orgulho da Academia
Judicial e do próprio Poder Judiciário de Santa Catarina, instituição que insiste na busca
de melhorias na sua prestação jurisdicional, na permanente procura de realizar Justiça
Social.
Des. Lédio Rosa de Andrade
Presidente do Conselho Editorial do CEJUR
Sumário
A Aplicação dos Direitos pelas Empresas
José A. Estévez Araújo............................................................................................................... 15
Psicologia Jurídica
Abuso Sexual e o Drama Familiar
Hildemar Meneguzzi de Carvalho - Luiz Arthur Rangel Cyrino........................................ 43
Direito Ambiental
Direito Ambiental - Responsabilidade Civil pelos Danos, Inclusive Moral, ao
Meio Ambiente
Marcelo Camargo da Silva........................................................................................................ 55
Direito Civil e Direito Processual Civil
A Diferenciação entre Pequenas Causas e Causas de Menor Complexidade
Felipe Rapallo Musco................................................................................................................. 95
Os Acordos entre as Partes no Decorrer dos Processos de Família: Uma Análise
dos Mutirões da Conciliação na Comarca de Pomerode
Anderson Luz dos Santos........................................................................................................ 107
As Inovações Trazidas no Processo de Execução para a Satisfação do Crédito
Através do Bacen Jud 2.0
Nair Hardt................................................................................................................................. 119
Alimentos Gravídicos: Aspectos Materiais e Processuais da Lei N° 11.804/08
Leci Henn Fernandes............................................................................................................... 149
Direito Penal e Direito Processual Penal
Apontamentos Sobre a Responsabilidade Civil e Criminal pela Prática de Cyberbullying no Brasil
Rafael Pellenz Scandolara........................................................................................................ 183
Reconhecimento e Autorreconhecimento num Mundo de Violências e Conflitualidades: Um Recorte do Sistema Penitenciário Brasileiro Frente ao Debate dos
Direitos Humanos
Claudio Augusto Lima da Costa - Cristina Cordeiro Alves............................................... 209
A Substituição das Penas Privativas de Liberdade por Restritivas de Direito em
Casos de Crimes de Tráfico de Entorpecentes: Os Divergentes Entendimentos
Sob o Enfoque das Finalidades da Pena e do Direito Penal
Ana Paula da Silva Johannsen................................................................................................. 221
Direito Administrativo
Os Cartorários Devem ser Equiparados aos Servidores Públicos?
Joice Dutra . .............................................................................................................................. 253
*A Revista Científica da Academia Judicial – Cejur não se responsabiliza pelas opiniões emitidas pelos autores, nem as
endossa, pois elas não representam, necessariamente, o pensamento do Poder Judiciário de Santa Catarina.
A APLICAÇÃO DOS DIREITOS PELAS EMPRESAS
José A. Estévez Araújo1
Introdução
Este trabalho tem como tema o controle das empresas sobre o conteúdo dos direitos das pessoas. Os direitos são colocados nas mãos das empresas por meio de uma série
de mecanismos. Aqui serão analisados alguns deles e as consequências que têm para os
direitos.
Para introduzir o tema é necessário fazer uma breve referência aos processos de positivização e definição dos direitos (uma perspectiva que recolhe também a gênese social
e a metabolização política dos direitos pode encontrar-se em Capella, 2011, p. 13-19). As
aspirações sociais se convertem em direitos positivos, ao ser recolhidas como tais direitos
no texto de uma norma jurídica. Nos sistemas jurídicos estatais os direitos mais importantes aparecem incluídos nas constituições. As constituições (inclusive algumas das que
se apresentam como tais em regimes autoritários) contêm um catálogo de direitos. Isto
é, têm uma série de artigos do tipo “Todos têm direito a...” ou “Todos os nacionais (espanhóis, franceses, etc.) têm direito a...”.
As formulações constitucionais dos direitos são muito genéricas. Devem ditar-se
leis desenvolvendo e definindo o conteúdo dos mesmos. A doutrina jurídica considera
que alguns direitos constitucionais são “diretamente aplicáveis”, isto é, podem exigir-se
ainda sem desenvolvimento legislativo. Mas sustenta também que outros direitos constitucionais só poderão ser reclamados depois de ser ditada a lei regulatória dos mesmos.
Em realidade, a estrutura dos direitos não exige realizar esta distinção. Mas, geralmente
realiza-se. Por isso, se o legislador não dita a lei, os direitos constitucionais do segundo
tipo carecerão de conteúdo.
O conteúdo dos direitos conforma-no uma série de deveres (CAPELLA, 2011, p.
11-12). Trata-se de deveres de outras pessoas ou dos órgãos estatais em relação ao titular
do direito. Assim, o conteúdo do direito à integridade física de uma pessoa o constitui um
conjunto de deveres de não lhe causar lesões. Estes deveres podem ser impostos a outras
1 Professor de Filosofia do Direito. Faculdade de Direito / Universidade de Barcelona
Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 2 • Dez/2011
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– A APLICAÇÃO DOS DIREITOS PELAS EMPRESAS –
pessoas. No Código Penal, por exemplo, proíbem-se muitos tipos de ações lesivas da integridade corporal com caráter geral. Os deveres podem corresponder também aos órgãos
do estado. A proibição da tortura seria um destes deveres: a polícia não deve causar danos
aos detentos para obter informação ou para qualquer outro fim. Quando este dever desaparece, como no caso dos prisioneiros de Guantánamo, o seu direito à integridade física
se “esvazia” de conteúdo na mesma medida (CAPELLA, 2011, p. 11).
O discurso dominante nas faculdades de direito espanholas distingue entre “criar” e
“aplicar” o direito. O legislador “cria” direito ao ditar normas de caráter geral como as leis.
O juiz “aplica” o direito “criado” pelo legislador ao resolver os casos conflitivos concretos
submetidos à sua consideração. A aplicação do direito seria um passo mais na determinação do conteúdo dos direitos. O legislador dita leis que definem o significado dos direitos
formulados de maneira aberta nas constituições. Os juízes especificam o conteúdo desses
direitos em casos concretos: assinalam os deveres específicos que lhes correspondem e as
pessoas obrigadas a cumpri-los. Também fixam as sanções que devem ser impostas pelo
não cumprimento de tais deveres.
Para o discurso formal dominante, parece que o processo de determinação do conteúdo dos direitos acaba aí. A isso se acrescenta a consideração da atividade dos juízes
como algo de caráter exclusivamente técnico. Os juízes “aplicam” o direito utilizando critérios estritamente “jurídicos”. O mesmo afirma-se com respeito à aplicação judicial das
normas regulatórias do conteúdo dos direitos.
Uma perspectiva mais sociológica do processo de definição dos direitos mostra as
insuficiências do discurso formal. Nesse processo intervêm muitos mais agentes, como
teremos ocasião de comprovar ao longo do presente trabalho. Influem nele, ademais, muitos fatores de caráter extrajurídico.
Mas, pelo momento, o que interessa assinalar são duas coisas. Primeira: as empresas também “aplicam” o direito. Segunda: produziu-se um processo de privatização da
produção jurídica; este processo transferiu às empresas privadas uma parte do poder de
“criar” direito.
Quanto à aplicação do direito, as empresas não estão na mesma posição que os
indivíduos com respeito às normas jurídicas. A relação da empresa com o direito não é
como a de um particular. O indivíduo cumpre ou não cumpre as normas. A empresa tem
um poder sobre outras pessoas: entre elas os consumidores e os trabalhadores. O cumprimento das normas pelos consumidores ou trabalhadores é feito pela empresa desde uma
posição de poder. A empresa decide o significado e a forma de cumprir essas normas. Tem
um poder de aplicar o direito, derivado do seu próprio caráter de organização.
O direito aplicado pelas empresas pode afetar os direitos dos trabalhadores ou dos
consumidores. As empresas têm, então, um poder de determinar o conteúdo dos seus
direitos. Por exemplo, o direito dos trabalhadores a não ser discriminados, ou o direito
dos consumidores ao bom funcionamento do produto adquirido. As empresas podem
determinar o conteúdo do direito à não discriminação ou do direito de garantia. Esta
16
Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 2 • Dez/2011
– José A. Estévez Araújo –
determinação do conteúdo dos direitos por organizações privadas denomina-se aqui “privatização dos direitos”.
Por outro lado, com a globalização neoliberal, transformou-se profundamente a
forma de produzir direito. O neoliberalismo, primeiro, desregulava. Depois, implantou
novas formas de regular. Todas essas novas formas têm uma característica comum: transferem poder de criação do direito às empresas. São formas de privatização da produção
jurídica.
Já há alguns trabalhos panorâmicos sobre as novas formas de regulação jurídica.
Começaram a aparecer na primeira década do século XXI (p. ex. LOBEL, 2004, ou SCHNEIBERG; BARTLEY, 2008). O caso analisado na segunda parte deste trabalho refere-se
a uma dessas novas formas de produção do direito. Alguns a chamam “procedimentalização do direito”, outros, “regulação negociada”. Consiste no seguinte: o legislador público
não determina o conteúdo material do direito (os deveres exigidos pelas normas); limitase a estabelecer um procedimento de negociação; as diferentes partes afetadas pelas normas são as que fixam o conteúdo das suas obrigações respectivas mediante esse processo
negociador.
Os casos analisados neste artigo referem-se a direitos dos trabalhadores. Os da primeira parte referem-se ao direito dos trabalhadores a não ser discriminados pelas empresas. Os da segunda parte referem-se aos direitos de informação e consulta dos trabalhadores com respeito às decisões das empresas relevantes para eles. A primeira parte centra-se
em supostos ocorridos nos Estados Unidos. A segunda refere-se à criação e implantação
de um regulamento da União Europeia.
A privatização dos direitos costuma referir aos deveres relativos às empresas mesmas. Por meio da privatização dos direitos, fica em mãos das empresas a determinação
dos seus deveres com respeito aos titulares de tais direitos. É uma história que, de entrada,
já se adivinha que acabará mal para os direitos. O próprio sujeito obrigado tem o poder de
determinar o conteúdo dos seus deveres. Isso implicará, na imensa maioria dos casos, um
esvaziamento maior ou menor do conteúdo dos correspondentes direitos. Os supostos
analisados neste trabalho o evidenciarão claramente.
PRIMEIRA PARTE: A APLICAÇÃO DO DIREITO PELAS EMPRESAS E O
SEU EFEITO SOBRE OS DIREITOS
A ideia desta pesquisa surgiu da leitura de uma série de artigos nos quais se fala
da influência da ideologia dos “managers” na construção do significado do direito. Em
um dos artigos se descreve este fato como “managerialização do direito” (EDELMAN et
al., 2001). Segundo Edelman e os seus colaboradores, a “managerialização” do direito é a
transformação que sofre este quando é adaptado aos valores e objetivos dos “managers” ou
executivos das empresas. Este processo supõe um distanciamento mais ou menos grande
dos objetivos e do “espírito” original das normas afetadas pelo mesmo. Na medida em que
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– A APLICAÇÃO DOS DIREITOS PELAS EMPRESAS –
essas normas são aplicadas pelos próprios “managers”, a managerialização constrói um
significado específico do que representa o cumprimento de tais normas. “Um processo
em virtude do qual os ideais legais são reconfigurados pelo modo de pensar próprio dos
executivos” (EDELMAN et al., 2001, p. 1589).
O marco teórico institucionalista
A professora Lauren Edelman, da Universidade de Berkeley, é uma das autoras de
referência no âmbito do que poderíamos chamar a “construção empresarial do direito”. A
sua obra inscreve-se dentro das pesquisas dirigidas a analisar as respostas das organizações (especialmente as empresas) frente ao direito. Na medida em que o papel das empresas na criação e aplicação do direito se incrementou enormemente com a globalização, o
marco teórico elaborado por Edelman pode ser útil para analisar os efeitos da privatização do direito (entre eles, os que se referem à privatização do conteúdo dos direitos).
Na literatura que analisa como respondem as organizações ao direito, há dois tipos
de enfoques. Uns são as propostas centradas no mercado e os outros são os enfoques
institucionais ou institucionalistas. Nos enfoques centrados no mercado, as organizações
(e designadamente as empresas) aparecem como sujeitos racionais (dentro do marco de
uma concepção estratégica da racionalidade), que pretendem atuar eficazmente. A eficácia considera-se como algo “objetivo” que é suscetível de ser comprovado e, inclusive, medido. O direito aparece como uma constrição externa em relação à qual a empresa atua e
deve atuar estrategicamente (p. ex. desobedecendo às normas se isso resulta mais “barato”
que cumpri-las).As propostas institucionalistas são decididamente mais “construtivistas”.
Nem a “racionalidade” nem a “eficácia” são objetivas, senão que se trata de construções
sociais. O que realmente importa é que, o que se tem por eficiente, seja amplamente compartilhado e que chegue a atingir o grau de algo óbvio ou dado por evidente. Como assinala Edelman em um dos seus trabalhos, “uma das características dos mitos racionais
é que parecem tão óbvios que ninguém questiona a sua veracidade” (EDELMAN et al.,
1999, p. 416).
Em relação a isso, Capella designa com o nome “instituições conceituais” aquelas
entidades mentais que não se referem a entes sensíveis nem objetos formais, senão que
designam invenções humanas como a moral ou os deuses. Estas instituições conceituais
podem ser interiorizadas pelas pessoas e converter-se em práticas, transformando estas
pessoas (ao menos, em parte) em encarnações de instituições materiais (em pais, juízes,
sacerdotes, etc.) (CAPELLA, 2011, p. 4).
A proposta institucionalista que utiliza Edelman pode ser útil para analisar como
são geradas algumas dessas instituições conceituais, como se difundem (se for o caso
entre determinados grupos especializados de população), como se transformam em “sentido comum” e como geram práticas institucionalizadas que participam na construção
do significado do direito. Fixar a atenção em como se gera a “obviedade” das crenças so18
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– José A. Estévez Araújo –
cialmente construídas e partilhadas (embora não se correspondam com os “fatos”) é algo
que, no caso de Edelman, provém da obra de Berger e Luckmann, “A construção social da
realidade”, uma das fontes de referência do construtivismo norte-americano (BERGER;
LUCKMANN, 1993).
Outra das características do ponto de vista institucionalista é que as organizações
não só atuam de acordo com o que acham que é mais eficaz, senão também por critérios
de “legitimidade”. Isto é, respondem aos sinais normativos que o seu meio emite.
Um dos autores que constituem um ponto de referência deste tipo de propostas
é DiMaggio, que, em 1983, escreveu junto de Walter Powell um artigo titulado “A jaula
de ferro revisitada”. Neste texto, denomina-se “isomorfismo” a tendência ou força que
leva a que as organizações de um determinado campo acabem sendo parecidas umas às
outras (DIMAGGIO; POWELL, 1983, p. 149). Segundo os seus autores, há dois tipos de
isomorfismo: o competitivo e o institucional. O isomorfismo competitivo é o que recebeu
maior atenção, pelo menos desde Weber e os seus trabalhos sobre a burocratização. O
que interessa a DiMaggio e Powell é o institucional, pois acham que o isomorfismo competitivo é incapaz de explicar todas as dinâmicas que têm local no moderno mundo das
organizações. Os autores identificam três mecanismos que podem dar lugar ao isomorfismo institucional: o primeiro é o “isomorfismo coercitivo”; o segundo são os “processos
miméticos”; o terceiro mecanismo isomórfico é a profissionalização (DIMAGGIO; POWELL, 1983, p. 150-52).
A forma como influi a profissionalização na conduta das empresas pode servir para
nos dar uma ideia do tipo de propostas que sustentam os institucionalistas. Segundo DiMaggio e Powell, a profissionalização atua como mecanismo isomórfico especialmente
por duas razões: pelo tipo de educação homogênea que recebem os profissionais e pela
existência de associações que agrupam os membros da cada ocupação. Essa homogeneidade (que pode ser ainda maior se, p. ex., há um número limitado de universidades entre
as que se escolhem os membros dessa ocupação) faz com que os profissionais de organizações diferentes tenham mais em comum entre eles que com o resto de membros da própria organização. Ter recebido a mesma formação em instituições similares, fazer parte
das mesmas associações profissionais, etc. “socializa” os membros da profissão. Não só faz
com que compartilhem determinados valores ou modelos, senão também determinados
esquemas por meio dos quais observar a realidade, enfrentar os problemas e determinar
que soluções são válidas e quais não.
A tese institucionalista de que as empresas atuam (também) por critérios de “legitimidade” não significa que as empresas atuem “eticamente”. O que quer dizer é que nelas
influi o que Capella denomina “moralidade positiva” (CAPELLA, 2008, p. 58-63), que se
gera no seu meio organizacional. Mas o conteúdo desta “moralidade positiva” pode ser
radicalmente contrário aos ideais éticos, como teremos ocasião de comprovar em alguns
dos casos que se analisam neste trabalho.
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19
– A APLICAÇÃO DOS DIREITOS PELAS EMPRESAS –
Por último, a proposta de Edelman é tributária também de uma concepção do direito como “law in action”. Isso significa que o direito não é (só) o que está escrito nas
leis, senão que múltiplas vozes contribuem para construir o que significa atuar conforme
a lei. Como diz a autora norte-americana: “O direito é uma instituição social que inclui
não só as normas codificadas, senão também o contexto social que lhe dá sentido e os
comportamentos sociais que influem na mobilização e no fazer vigorar a lei” (EDELMAN
et al., 2010, p. 661). Por isso, “o direito deve ser considerado, ao menos em parte, como
uma variável endógena, construído em e através dos campos organizacionais que têm por
objeto regular” (EDELMAN et al., 2010, p. 656).
Deste modo, aqueles aos quais a lei vai dirigida e têm que a observar participam
na determinação do seu conteúdo e do que constitui o seu cumprimento ou não cumprimento. Este papel ativo na construção do significado do direito é especialmente intenso
em organizações como as empresas. Edelman assinala, ademais, que a normativa regulatória da atividade das empresas costuma ser mais vaga que a média devido à pressão dos
lobbies corporativos (EDELMAN et al., 1999, p. 407). A maior abertura e ambiguidade da
norma escrita, maior margem de manobra para construir o seu significado e determinar
em que consiste o seu cumprimento.
Os procedimentos internos de solução de conflitos
Em um texto de 1999, Edelman e os seus colaboradores analisam o processo em
virtude do qual o estabelecimento de procedimentos internos de solução de conflitos se
configura como uma forma de cumprir com os deveres de não discriminação derivados
da legislação de direitos civis e, em especial, da chamada “Igualdade Laboral de Oportunidades” (EEO, nas suas siglas inglesas), embora o texto da lei não diga nada a este respeito.
Trata-se de um processo no qual intervêm os profissionais da organização, as empresas e,
finalmente, o aparelho judicial.
Os autores insistem já desde o título (“The Endogeneity of Legal Regulation: Grievance Procedures as Rational Myth”) em que a ideia de que essa era uma forma de cumprir
com os deveres da EEO se tratava de um “mito”. Isto quer dizer que as razões que se ofereciam para justificar a adoção de procedimentos internos de resolução de disputas não se
correspondiam com a realidade. Foi a literatura profissional dirigida aos “managers” que
criou o mito e este foi se arraigando entre os responsáveis por organização e de recursos
humanos das empresas e difundindo-se através das suas organizações até converter-se em
uma convicção dotada da força da obviedade. A progressiva adoção por parte das empresas destes procedimentos (orientados pelos “managers” que haviam criado a história ou a
tinham difundido) reforçou a convicção do mito.
Os argumentos que se ofereceram para fundamentar a necessidade de implantar
procedimentos internos de solução de conflitos nas empresas foram basicamente dois: a)
que a adoção destes procedimentos diminuía a probabilidade de que a empresa se visse
20
Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 2 • Dez/2011
– José A. Estévez Araújo –
envolvida em um litígio por discriminação e b) que no caso de que o litígio ante os tribunais chegasse a se produzir, teriam mais possibilidades de obter uma sentença favorável se
contassem com este tipo de procedimentos internos (EDELMAN et al., 1999, p. 409).
Estas crenças estavam firmemente estabelecidas e tidas como certas em meados
dos oitenta. No entanto, até o ano 1986, os juízes norte-americanos mantiveram a teoria
da responsabilidade subsidiária objetiva do empregador (vicarious liability) nos casos de
discriminação social ou racial. Isto é, que o empresário era responsável, embora não tivesse conhecimento de que os seus empregados eram objeto de discriminação (por exemplo,
por parte de capatazes ou encarregados) (EDELMAN et al., 1999, p. 432). E no marco de
uma teoria da responsabilidade objetiva do empregador, a existência ou não de mecanismos internos de resolução de disputas resultava irrelevante à hora de eximi-lo de culpa. O
empregador era culpado tanto se soubesse como se não o soubesse, com independência
dos mecanismos internos de defesa contra a discriminação que pudesse ter estabelecido.
Os autores utilizaram um banco de dados informatizado (Westlaw), que é a que
costumam usar os juristas norte-americanos para procurar precedentes. Encontraram 129
casos relevantes no período de 1974-1997. Mas, antes da sentença do caso Meritor (1986),
só houve 13 casos nos quais se utilizou a defesa do procedimento interno. Portanto, essa
sentença, na qual se modifica a doutrina da responsabilidade objetiva do empregador,
supõe uma meta importante em relação à utilização e admissibilidade desta defesa.
Agora bem, o caso Meritor não determinou automaticamente a sorte posterior da
defesa do procedimento interno. Em primeiro lugar, porque a mudança na doutrina da
responsabilidade objetiva só se aplica nessa sentença a uns tipos específicos de condutas
discriminatórias, e não a todas. Em segundo lugar, porque a abolição da doutrina da responsabilidade objetiva não implica necessariamente que se tenha que reconhecer que a
existência de procedimentos internos de resolução de conflitos é uma prova concludente
que exime o empregador de responsabilidade. Como dizem os autores, “não há nada nos
princípios da responsabilidade subjetiva que exija que os tribunais deleguem nos procedimentos internos de resolução de conflitos” (EDELMAN et al., 1999, p. 444).
E, no entanto, esta delegação começa efetivamente a produzir-se após 1986 e atinge
especial intensidade nos noventa. A progressiva institucionalização da “defesa do procedimento interno” e da delegação dos juízes nesses procedimentos faz com que os casos
resolvidos favoravelmente aumentem de forma considerável nos anos noventa.
Os autores atribuem esta institucionalização (ao menos em parte) à adoção por
parte das empresas desses procedimentos de resolução de conflitos e à ideologia dos managers que apresentavam esses mecanismos como prova da postura antidiscriminatória
da empresa.
Deu-se, deste modo, neste caso, uma situação paradoxal: os managers convenceram
as empresas de que adotassem procedimentos internos de solução de conflitos para obter
um trato favorável dos juízes, quando isto não respondia à realidade da atuação judicial.
Mas a institucionalização desses mecanismos e a ideologia difundida pelos managers aca
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baram influindo na atitude dos juízes, que terminaram fazendo o que a ideologia afirmava
que faziam. Assim o sistema judicial acabou internalizando e aceitando a construção empresarial do que significava cumprir com os deveres da EEO.
A “retórica da diversidade” e a alteração do sentido da legislação
antidiscriminatória
Em um artigo de 2001, Edelman, junto a outros autores, analisa o processo de managerialização do direito em relação ao surgimento e a difusão entre os executivos da
“retórica da diversidade” (EDELMAN et al., 2001). A promoção da “diversidade” (entre
os empregados) converteu-se em uma “moda” ou um “estilo” de gestão empresarial que se
consolidou nos anos noventa. O ideal da “diversidade” deslocou e modificou o sentido do
ideal da “não discriminação” no local de trabalho contido na legislação norte-americana
de direitos civis. A managerialização do direito teve duas manifestações principais: por
um lado aumentaram as categorias relevantes para determinar diferenças entre as pessoas; por outro lado o fomento da diversidade perdeu o relacionamento com a justiça que
tinha a não discriminação.
O detonante que fez com que se popularizasse a retórica da diversidade nas revistas
profissionais dirigidas aos managers foi um livro publicado em 1987, intitulado “Workforce 2000”. Neste livro faziam-se umas predições dramáticas sobre a mudança demográfica
da força de trabalho. Segundo os seus autores, no ano 2000 só 15% das pessoas que se
incorporassem ao mercado de trabalho seriam homens brancos anglo-saxões. Este dado
foi profusamente utilizado para justificar a necessidade de um novo estilo de management
que permitisse gerir a diversidade (EDELMAN et al., 2001, p. 1612-1614).
O curioso do caso é que as predições de Workforce 2000 resultaram ser errôneas. Os
dados do Instituto de Estatísticas Laborais norte-americano contradiziam as conclusões
do livro. E poucos anos depois se publicou um trabalho que demonstrava que os autores
de “Workforce 2000” tinham incorrido em um erro conceitual garrafal ao confundir as
pessoas que se incorporam pela primeira vez ao mercado de trabalho com o incremento
neto da força laboral. Não obstante, apesar de conter dados errôneos, “Workforce 2000”
foi uma das bases da retórica da diversidade. Um fato que reforça as propostas construtivistas dos autores ao evidenciar que uma crença pode estender-se e converter-se em
uma “verdade indiscutida” num determinado âmbito institucional, embora resulte não se
ajustar em absoluto aos fatos.
Na lei de direitos civis de 1964, estabeleciam-se as seguintes categorias em relação
à discriminação: a raça, a cor, o sexo, a religião e a origem nacional. Fazer distinções com
base nestas categorias resultava imediatamente suspeito. E essa enumeração de características não era uma lista aleatória. Referia-se a grupos de pessoas que eram objeto de
discriminação e inclusive de privação de voto no passado (como as mulheres e os negros).
À lei subjazia um “ideal moral” de oferecer a estes grupos historicamente desfavorecidos
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uma especial proteção e um tratamento que assegurasse a igualdade de oportunidades,
especialmente no âmbito laboral (EDELMAN et al., 2001, p. 1616).
A proposta da retórica da diversidade é, no entanto, muito diferente ao que subjaz
à lei. A retórica da diversidade expande o número de categorias relevantes, incluindo
muitos mais tipos de diferenças que os que a lei considera. O fundamental não é tanto o
aumento quantitativo, mas sim que a razão para incluir uma determinada categoria de
pessoas ou características na “diversidade” não tem que ver com a justiça ou a compensação por uma discriminação histórica. O leitmotiv que percorre a retórica da diversidade é
o benefício que supõe para a empresa o contar com um modelo “diverso”. Isso aumenta a
produtividade e a eficácia. Estimula a criatividade e ajuda a encontrar soluções inovadoras
aos problemas. A diversidade é um recurso precioso em um mundo multicultural e cambiante. “Desde esta perspectiva, a discriminação e a exclusão resultam problemáticas não
porque sejam injustas ou ilegais, senão porque inibem a capacidade da empresa de obter
benefícios em um mundo global e mais diverso” (EDELMAN et al., 2001, p. 1619).
As consequências que têm a substituição dos direitos civis pela retórica da diversidade ficam claramente evidenciadas nesta consideração: “Se o jovem agricultor de Idaho
é considerado tão importante para a diversidade da empresa como o garoto negro de um
gueto de Los Angeles (…) então a diversidade pode ser utilizada facilmente para justificar
uma força de trabalho que seja primordialmente masculina ou branca (mas diversa em
outros aspectos)” (EDELMAN et al., 2001, p. 1632).
A construção empresarial do sentido da “diversidade” mudou, pois, de modo substancial o sentido do direito à não discriminação no âmbito laboral e o esvaziou de boa
parte do seu conteúdo.
Há bastantes trabalhos que utilizam o mesmo método que Edelman para analisar
os efeitos da aplicação do direito pelas empresas. Erin L. Kelly usa-o no caso das obrigações empresariais com respeito ao cuidado dos filhos dos empregados (KELLY, 2003).
Este mesmo autor e Frank Dobbin aplicam-no no caso do assédio sexual no interior das
companhias (DOBBIN; KELLY, 2007). Shaunin A. Talesh estuda um caso de direito dos
consumidores relativo às garantias dos automóveis defeituosos (TALESH, 2009). Catherine Albiston analisa a construção empresarial das permissões médicas e parentais em
um livro recente (ALBISTON, 2010). Em todos os casos, a aplicação do direito por parte
das empresas tem efeitos negativos sobre o conteúdo dos direitos de trabalhadores ou
consumidores.
SEGUNDA PARTE: A CRIAÇÃO DO DIREITO PELAS EMPRESAS E O
SEU EFEITO SOBRE OS DIREITOS.
Os casos analisados por Edelman nos Estados Unidos correspondiam, sobretudo,
aos anos oitenta e princípios dos noventa. Esses supostos moviam-se dentro do chamado
paradigma “material” do direito. Nesse paradigma, o Estado dita as obrigações que têm
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que cumprir as empresas. Estas modificam o sentido do regulamento no processo da sua
aplicação e cumprimento. São casos nos que não se aprecia uma mudança estrutural na
maneira de produzir o direito. O único que ocorre é que a produção e aplicação do direito
se analisam desde uma perspectiva mais sociológica. Essa perspectiva desvela fenômenos
ocultos para as aproximações mais formais.
Nesta segunda parte examinaremos o caso dos direitos de informação e consulta
dos trabalhadores nas multinacionais europeias. É um processo que se desenvolve, sobretudo, desde finais dos noventa até a atualidade. Trata-se de um caso muito diferente. Aqui
sim se aprecia uma mutação profunda na maneira de produzir o direito. Estamos diante
de uma autêntica mudança paradigmática. Mais especificamente, trata-se de um caso que
serve de modelo de procedimentalização do direito: o legislador público (neste caso a
UE) deixa à negociação entre os interessados a determinação do conteúdo das suas obrigações e direitos. Não estabelece nem sequer um conteúdo mínimo destes. O resultado é
a imposição da lei do mais forte, isto é, da lei das empresas multinacionais europeias. O
direito de informação fica meio vazio e o de consulta totalmente carente de conteúdo. Os
trabalhadores não têm nenhuma possibilidade de formular sugestões. As empresas não
assumem nenhuma obrigação de criar as condições para a formulação das mesmas. Um
exemplo basta para evidenciá-lo: a informação sobre a estratégia da empresa só se facilita
após a adoção das decisões. Os trabalhadores não podem formular recomendações porque recebem a informação a posteriori.
O direito de consulta é “reconhecido” na Carta de Direitos Fundamentais da UE,
nas diretivas de 1994 e 2009 sobre os Comitês de Empresa Europeus (CEEUs) e nos mais
de novecentos acordos de criação dos mesmos. No entanto, o direito dos trabalhadores a
ser consultados é um direito vazio de conteúdo (CAPELLA, 2011, p. 11). O processo de
construção (ou de des-construção) de tal direito por parte das empresas significou o não
comprometimento por parte destas em nenhuma obrigação correlativa ao mesmo. As
empresas multinacionais europeias não têm, em definitivo, nenhum dever que dote de
conteúdo o direito de consulta dos seus trabalhadores com respeito às decisões estratégicas adotadas nos quartéis generais das mesmas.
A cidadania industrial
O significado dos direitos de informação e consulta dos trabalhadores pode ser
entendido se os inserimos dentro da chamada “cidadania industrial”, conceito cunhado
por Marshall em 1950. A cidadania industrial combina elementos dos direitos civis, políticos e sociais e o seu primeiro conteúdo foi o direito de negociação coletiva. Em muitos
países europeus, a cidadania industrial inclui o direito de participação dos trabalhadores
na empresa. Este pode definir-se como direito de informação, de consulta e, inclusive, de
codecisão.
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Entre os direitos de participação há que distinguir dois tipos: os que se referem aos
poderes dos proprietários da empresa e os relativos aos poderes dos managers e diretores
da mesma. Os primeiros se canalizam mediante a participação dos representantes dos
trabalhadores no conselho de administração da companhia. Aparecem incluídos dentro
das normas de direito mercantil que regulam o governo da empresa (a Corporate Law que
regula a Corporate Governance).
A participação que se refere ao poder dos managers (diretor-geral, executivos, comandos intermédios, etc.) aparece regulada no direito laboral e se concretiza nos direitos
que se concedem aos órgãos de representação dos trabalhadores na empresa, como o comitê de empresa. Os Comitês de Empresa Europeus se enquadrariam dentro deste âmbito
de direitos de participação referidos aos poderes de gestão da empresa e regulados pelo
direito laboral (STREECK, 1997, p. 643-44).
Os efeitos da internacionalização da produção sobre os direitos de
cidadania industrial.
A cidadania industrial tem estado regulada historicamente em nível nacional. Os
sindicatos também estão organizados a esse nível. A negociação coletiva tem local no âmbito interno dos estados. Os mecanismos de resistência dos trabalhadores também operam fundamentalmente nesse âmbito. Tudo isso propõe problemas quando a produção se
internacionaliza. Os problemas sofrem-nos especialmente os trabalhadores de empresas
multinacionais. A possibilidade de transladar a produção de um país a outro permite debilitar os direitos de cidadania industrial. Torna possível, também, que a empresa enfrente
entre si aos trabalhadores de diferentes países. A tomada de decisões empresariais estratégicas em outros estados também acarreta problemas. Assim, os trabalhadores espanhóis
de uma empresa alemã carecem de direitos de cidadania industrial na Alemanha. No
entanto, é ali onde se tomam as decisões mais importantes.
Em um artigo publicado em 1997, Wolfgang Streeck mostrava-se muito preocupado pela concorrência entre regimes de cidadania industrial (STREECK, 1997). Como as
empresas estão em condições de eleger onde instalar as suas plantas, podem fazê-lo onde
a força dos direitos de participação dos trabalhadores seja menor. Isso se chama agora
“shopping do direito”. Os estados podem responder mudando a sua legislação para atrair
empresas debilitando os direitos de participação dos trabalhadores para conseguir esse
objetivo. As empresas podem também chantagear os estados, obrigando-lhes a modificar
“para baixo” a sua legislação, ameaçando investir em outro local, ou com a transferência
da produção a outro país em caso que não o façam. Os regimes de cidadania industrial
estão assim submetidos à concorrência. É um fator da competitividade das empresas e um
elemento determinante das suas decisões de investimento. O resultado desta situação é
uma espiral para baixo. Os direitos de participação reduzem-se para atrair investimentos
ou evitar que se vão.
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Outro problema que implica a existência de um sistema de cidadania industrial
nacional e um sistema de produção internacionalizado é a possibilidade que as empresas
multinacionais têm de utilizar a estratégia do whipsaw (GREER; HAUPTMEIER, 2008).
O whipsaw consiste na ameaça de translado de parte ou toda a produção de uma fábrica
à outra com o objetivo de confrontar aos trabalhadores de diferentes fábricas de uma
empresa multinacional. A Volkswagen utilizou esta estratégia na Espanha, ameaçando
transferir a produção do Seat Ibiza a um país do Leste. A finalidade do whipsaw é obter
concessões dos trabalhadores. Os empregados de uma fábrica podem estar dispostos a
trabalhar mais horas ou ganhar menos para conservar o posto de trabalho. Esta dinâmica
estende-se a todas as fábricas em concorrência. É como uma licitação pelo preço mais
baixo. A fábrica que mais faça concessões leva a produção.
O whipsaw é utilizado especialmente em processos de reestruturação. As empresas
realizam autênticos leilões para a atribuição da produção às plantas. Abrem o “leilão”. Esperam para ver quem oferece mais, quem renuncia a mais direitos. O whipsaw é utilizado
também nas negociações coletivas. É um elemento de pressão da empresa.
O whipsaw exige, no entanto, certas condições técnicas. As empresas devem poder transferir a produção de uma fábrica à outra. Uma fábrica que produz o câmbio das
marchas não pode assumir a produção de uma fábrica de pneus. Para poder utilizar esta
tática, a reconversão da GM Europa baseou-se nas plataformas flexíveis. Uma mesma
plataforma podia fabricar diversos modelos de veículos. As plataformas polivalentes podiam inclusive fabricar veículos de diferentes marcas: um Opel, um Saab ou um Vauxhall.
A produção de Opel de uma fábrica alemã podia, então, transferir-se para a Suécia ou ao
contrário. A Mercedes, no entanto, tem uns sistemas de fabricação mais rígidos. As fábricas estão especializadas em produzir um modelo. Uma fábrica produz os Mercedes classe
C, outra o classe A, outra o classe C com volante à direita… Nesse caso, uma fábrica não
pode assumir a produção de outra. O whipsaw é mais difícil de praticar. Só poderia dar-se
no caso de novos modelos e novos investimentos (PULIGNANO, 2006).
Em qualquer caso, para evitar a deterioração dos direitos dos trabalhadores, é
preciso subtrair a cidadania industrial à concorrência. Os direitos de participação dos
trabalhadores não devem poder ser negociados em troca de investimentos ou postos de
trabalho. Uma solução seria estabelecer um sistema de cidadania industrial internacional.
Isto é o que tentou fazer a CEE estabelecendo um sistema único de cidadania industrial
em todos os países membros. Como veremos, essa tentativa fracassou.
As soluções propostas pela CEE durante os anos setenta e oitenta
O tema da europeização da cidadania industrial começou a propor-se a princípios dos anos setenta. A Europa sentia ainda os efeitos de maio de 1968. A Comunidade
Econômica Europeia continuava o seu processo de integração. Havia companhias multinacionais norte-americanas operando na Europa e algumas companhias europeias tinham
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se transnacionalizado (como Mercedes ou Volkswagen). Surgia, então, o problema de
como salvaguardar os direitos dos trabalhadores de países diferentes daqueles onde a
empresa tinha os seus quartéis generais e onde se adotavam as decisões estratégicas
mais importantes.
A Comissão Europeia abordou a questão inicialmente mediante a estratégia da homogeneização. Tratava-se de criar um sistema único de relacionamentos industriais em
nível europeu mediante normas obrigatórias que assumiriam a forma de diretrizes. Esta
homogeneização pretendia implantar em nível europeu o modelo alemão, no qual os trabalhadores têm direitos de participação tanto em relação aos administradores quanto em
relação aos proprietários da empresa. No entanto, as diversas tentativas de ditar normas
europeias neste sentido (como a Quinta Diretriz, por exemplo) fracassaram. As propostas
de aplicar o sistema alemão à escala europeia (tanto em nível de centro de trabalho como
em nível de empresa) foram recusadas pela patronal, que considerou o modelo “inflexível” e uma ameaça de morte para a “variedade” de formas de participação existentes que
haviam se desenvolvido adaptando-as às particulares circunstâncias das empresas existentes (STREECK, 1997, p. 648).
É interessante assinalar que também os empresários alemães estavam na contramão da europeização do seu sistema de cidadania industrial. Achavam que a existência de
regimes mais fracos em outros países lhes permitiria exercer pressões competitivas que
debilitassem a posição dos representantes dos trabalhadores autóctones. A proposta da
homogeneização também não contava com o beneplácito dos sindicatos, que temiam os
custos que lhes produziria o adaptar-se a um novo sistema de relacionamentos industriais
e as perdas de poder que poderiam derivar-se disso. Os sindicatos adotaram, em palavras
de Streeck, uma postura de “nacionalismo institucional” (STREECK, 1997, p. 648) frente
às propostas de harmonização.
A estratégia que se utilizou foi a de “incorporação”. A Comissão oferecia uma variedade de opções que considerava funcionalmente equivalentes. As empresas podiam
eleger, pois, entre diversos modelos de participação dos trabalhadores. Este sistema foi
seguido em um novo projeto da Quinta Diretriz que oferecia quatro modelos de participação dos trabalhadores. A diretriz, apresentada em 1983, não foi aprovada.
A diretriz de 1994 sobre os Comitês de Empresa Europeus
Finalmente, a Diretriz 94/45/CE abordou a questão dos direitos de informação e
consulta dos trabalhadores nas empresas e grupos transnacionais que operam na UE (ou
empresas e grupos de “dimensão comunitária” na terminologia legal). As empresas afetadas pela diretriz eram as multinacionais instaladas na Europa que tivessem mais de 1.000
empregados dentro da UE, operassem em ao menos dois estados e tivessem um mínimo
de 150 trabalhadores empregados em cada estado.
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Um objetivo que teoricamente se pretendia conseguir era que os trabalhadores fossem devidamente informados e consultados em relação às decisões que lhes afetassem e
que fossem adotadas em outro estado membro. Para isso se previa o estabelecimento de
um “Comitê de Empresa Europeu” no qual estivessem representados os trabalhadores dos
diferentes países da UE em que operasse a multinacional e que pudesse exercer os direitos
de informação e consulta no mesmo nível transnacional ao que se adaptam as decisões
estratégicas da empresa.
A diretriz sobre os Comitês de Empresa Europeus (CEEU) corresponderia a uma
terceira fase de abordagem do problema por parte da CEE, que Streeck denomina “fase
de coordenação” (STREECK, 1997, p. 651). Esta fase caracteriza-se pela adoção de técnicas de governança por parte da Comissão. A Comissão adota novas formas de legislar,
favorece a voluntariedade, incentiva a negociação entre os afetados, fomenta os códigos
de conduta, etc. Streeck descreve a nova moda com uma verdadeira ironia: “A Diretriz
mostra-se como um modelo das novas virtudes europeias da descentralização, a subsidiariedade, o respeito das diferenças nacionais e culturais, e um uso inteligente da técnica
de legislar “por partes” para a criação de uma ordem social diversa, plural, não estatal, e
inclusive pós-hobbesiana” (STREECK, 1997, p. 651).
Dentre as formas “pós-modernas” de produzir normas jurídicas, a Diretriz do ano
94 é um exemplo paradigmático da chamada “procedimentalização” do direito. O legislador (neste caso a CEE) não estabelece o conteúdo das obrigações das empresas sujeitas
à norma. O único que faz é fixar um procedimento para que os representantes dos trabalhadores e a empresa negociem a criação e as faculdades dos Comitês de Empresa Europeus. A diretriz nem sequer assinala uns conteúdos mínimos dos direitos de informação
e consulta (que são os que pretende materializar), senão que deixa a determinação deste
aspecto substancial ao que estabeleça o acordo a que cheguem as partes.
Por outro lado, a Diretriz é obrigatória só aparentemente. Em princípio, o fracasso
nas negociações levaria à implantação de um regime suplementar, previsto na própria diretriz. Mas existem muitas maneiras de evitá-lo: a comissão negociadora pode decidir não
implantar o comitê de empresa europeu; os sistemas de participação instaurados anteriormente à entrada em vigor da diretriz ficam convalidados e estes sistemas podem conter
direitos menores que os do regime suplementar; as legislações nacionais podem modificar
“pelo coeficiente mínimo” o regime suplementar na transposição da diretriz…
De fato, mais da metade das multinacionais europeias obrigadas pela diretriz não
têm um Comitê de Empresa Europeu. Segundo o European Trade Union Institute, no ano
2009 havia 938 CEEUs ativos (ETUC: EWC Database, 2009). Não obstante este número,
as empresas obrigadas a tê-los são mais de 2000. Essa é a melhor prova da existência de
formas relativamente fáceis de evadir a obrigação.
Nas circunstâncias em que nasce a diretriz de 1994, a opção pela procedimentalização sem limites da regulação dos direitos de informação e consulta em nível transnacional deixou a materialização destes praticamente em mãos dos empresários. Isto foi
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assim porque o grau de articulação sindical em nível europeu era muito menor que o grau
de coordenação empresarial. As empresas tinham se transnacionalizado e os sindicatos
não. Portanto, a capacidade daquelas de impor os seus pontos de vista nos acordos que se
adotassem era muito maior que a dos representantes dos trabalhadores. Esta desigualdade
de poder negociador fica claramente evidenciada no conteúdo dos acordos que materializaram os direitos de informação e consulta em nível europeu como poderá ver-se no
seguinte capítulo.
Após 1994 ditaram-se outras diretrizes europeias relativas aos direitos de participação dos trabalhadores. Uma é a diretriz sobre a sociedade anônima europeia (Diretriz
do Conselho 2001/86/CE, de 8 de outubro de 2001, pela qual se completa o estatuto da
Sociedade Anônima Europeia relativo ao envolvimento dos trabalhadores). Esta diretriz
estabelece mecanismos de representação dos trabalhadores para exercer os direitos de
informação nas empresas europeias. Aplica-se só às empresas que adotem a estrutura
jurídica de Sociedade Anônima Europeia. As atribuições dos representantes dos trabalhadores são mais amplas (prevê-se a possibilidade de reconhecer direitos de codecisão no
art. 2k). A diretriz estabelece explicitamente a obrigação de proporcionar a informação
antes de tomar as decisões (artigo 2i). Mas o número de Comitês de Empresa Europeus de
sociedades anônimas europeias é estatisticamente muito pouco relevante (só 3% do total
segundo o ETUC: EWC Database, 2009).
Outra das diretrizes estabelece um marco geral para os direitos de informação e
consulta. É a diretriz 2002/14/CE. Essa norma refere-se ao exercício dos direitos de informação e consulta em nível nacional. Serve para diminuir a concorrência pelo mínimo
entre regulamentações nacionais. Mas não é um remédio contra o whipsaw. Também não
se refere à representação dos trabalhadores em nível europeu.
Aqui nos referiremos unicamente à regulação dos direitos de informação e consulta a escala europeia derivados da diretriz de 94. Trata-se dos mecanismos de participação
dos trabalhadores de todos os países com presença da empresa (ou grupo de empresas)
frente aos escritórios centrais da mesma. A razão de focar neste caso específico é a seguinte: aqui estamos diante de um novo direito; ou ao menos estamos diante da tentativa de
dotar a um direito existente uma dimensão nova, internacional; é um caso idôneo para
comprovar a influência da privatização regulatória sobre o conteúdo dos direitos.
Os acordos decorrentes da aplicação da diretriz de 1994: as
limitações do direito de informação e o esvaziamento do direito de
consulta
Qualquer otimismo que se pudesse albergar com respeito à europeização dos direitos de informação e consulta por meio da diretriz de 1994 desaparece quando se analisa o
conteúdo dos acordos que os regulam.
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Assim, quanto à periodicidade, a maioria dos acordos estabelece uma única reunião
anual do CEE da empresa. Fica claro que essa periodicidade é insuficiente para que se possam exercer os direitos de informação e consulta (GÓMEZ GORDILLO, 2010, p. 3).
Quanto às matérias sobre as que se podem exercer os direitos de informação e
consulta “surpreende que feições tão importantes como as fusões, deslocalizações, demissões coletivas, condições de trabalho ou segurança e saúde laboral, fiquem à margem
do conteúdo da informação em um número elevado de acordos” (GÓMEZ GORDILLO,
2010, p. 4).
Mais importante ainda: dos mais de 600 acordos celebrados em 2002 (mais de 900
na atualidade), só um mencionava a possibilidade de que o comitê de empresa europeu
formule recomendações a partir da informação recebida pela companhia (GÓMEZ GORDILLO, 2010, p. 4). Portanto, embora o direito de “consulta” seja reconhecido formalmente em todos os acordos, fica totalmente vazio de conteúdo porque não se permite aos
trabalhadores propor sequer opções alternativas às que propõe a empresa.
Gómez Gordillo conclui que, nos acordos adotados, o conteúdo dos direitos de
informação e consulta em nível comunitário ficou reduzido à obrigação da empresa de
apresentar “os resultados econômicos e as previsões de mercado” e os seus efeitos sobre o
emprego (GÓMEZ GORDILLO, 2010, p. 4).
Por outro lado, em um documento de 2008 intitulado “Os Comitês de Empresa
Europeus na prática”, a European Fundation for the Improvement of Living and Working
Conditions (EUROFUND) sintetiza os resultados dos diversos estudos realizados sobre
o tema.
As investigações levadas a cabo indicam a existência de uma grande variedade de
situações. Há CEEUs que são meramente “simbólicos” (EUROFUND, 2008, p. 4): reúnem-se formalmente uma vez ao ano para receber informação sobre a situação das empresas. Outros CEEUs são mais “pró-ativos” (EUROFUND, 2008, p. 4). Mantêm reuniões
periódicas com os administradores. Levam a cabo inclusive negociações gerando acordos
formais em nível europeu. O documento não indica a proporção relativa de CEEUs simbólicos e pró-ativos. No entanto, outras fontes parecem indicar uma proporção muitíssimo maior de CEEUs simbólicos que pró-ativos (p. ex. GOMEZ GORDILLO, 2010).
O documento também informa sobre o momento de facilitar a informação aos
CEEUs. Em alguns casos a informação se facilita retrospectivamente. Em outros se refere
a decisões e planos presentes e futuros. O documento não indica a proporção de casos de
um e outro tipo. Mas sim assinala que “nos poucos casos em que os representantes dos
trabalhadores exercem influência” esta se refere à implementação das decisões e não à sua
adoção (EUROFUND, 2008, p. 5). Isto é, o direito de consulta se reconheceria na prática
em muito poucos casos. E a possibilidade de formular sugestões se reduziria à aplicação
das decisões tomadas pela direção e não à adoção das mesmas.
Em alguns casos, os CEEUs contam com uma comissão executiva de poucos membros.
Esta comissão pode reunir-se com rapidez. Muitas vezes é esta comissão a que desenvolve
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os contatos cotidianos com os administradores. E o plenário reserva-se para as reuniões
solenes. O documento também não informa sobre proporções.
Parece que a influência real dos CEEUs vem determinada pelas características dos
relacionamentos industriais do país da empresa mãe (EUROFUND, 2008, p. 5). Isso confirma uma das teses mais polêmicas de Streeck: os CEEUs não são órgãos europeus; são
prolongamentos dos sistemas de representação nacionais (STREECK, 1997b). Também
contradiz o que se afirma textualmente na introdução do documento: “[Os CEEUs] representam a primeira instituição genuinamente europeia de representação dos interesses dos
trabalhadores a nível de empresa” (EUROFUND, 2008, p. 1, grifo nosso).
Uma pedra de toque: a atuação dos Comitês de Empresa Europeus
nos processos de reestruturação
O teste crucial para determinar se os CEEUs estão cumprindo seus objetivos são os
processos de reestruturação. Estas transformações empresariais são a pedra de toque para
determinar o conteúdo real dos direitos de informação e consulta. As reestruturações
compreendem processos como fusões, deslocalizações, fechamentos de fábricas, terceirizações (subcontratação de atividades), etc. e afetam a toda a empresa.
As decisões sobre reestruturação são o tipo de decisões paradigmáticas que se tomam nos escritórios centrais da companhia. Potencialmente, estas decisões têm consequências para todas as fábricas e todos os trabalhadores. Ademais, nas reestruturações
podem produzir-se ou provocar-se conflitos de interesses entre as fábricas e os trabalhadores de diferentes países. Estes podem confrontar-se para evitar o fechamento de uma
fábrica, para atrair os novos investimentos, para receber a produção de outra fábrica…
Como vimos, estes conflitos são frequentemente utilizados pela empresa para conseguir
concessões por parte dos trabalhadores em uma espécie de “leilão pela menor oferta”
(whipsaw).
Por todas estas características, as reestruturações são processos especialmente aptos para calibrar a capacidade de ação dos CEEUs. Para isso, é necessário determinar a sua
capacidade de influir nas decisões da empresa em matéria de reestruturação. A autoridade
do CEEU para evitar o confronto entre os trabalhadores das diferentes fábricas e países é
também um dado muito importante. Essa capacidade é um indicador do nível de europeização da consciência dos trabalhadores e da articulação das suas lutas.
O panorama descrito pelo relatório do EUROFUND é, no entanto, bastante desolador. Os CEEUs não puderam influir nas decisões de reestruturação das multinacionais
por meio dos direitos de informação e consulta: “Não há nenhum caso conhecido em que
um CEEU influa em uma decisão empresarial estratégica de reestruturação”, diz textualmente o estudo em sua página 11.
Uma razão fundamental desta falta de influência é o momento em que se proporciona a informação ao CEEU por parte da empresa. Na imensa maioria dos casos,
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a informação sobre a reestruturação facilita-se após ter sido adotada a decisão. O CEEU
não dispõe da informação antes da adoção do plano de reestruturação. Não pode, portanto, tomar posição nem formular recomendações. Trata-se de uma nova prova de que o
direito de consulta está vazio de conteúdo (EUROFUND, 2008, p. 10).
Os trabalhadores só encontraram um pretexto para reivindicar judicialmente seu
direito de ser consultados em casos de reestruturação empresarial. Trata-se da doutrina
do “efeito útil” das normas comunitárias (ROJO TORRECILLA, 2001, p. 48). Esta doutrina descarta as interpretações das normas comunitárias que eliminam o seu “efeito útil”.
Assim, por exemplo, uma norma comunitária que reconheça o direito de consulta pode
não estabelecer um prazo para proporcionar a informação aos trabalhadores. A efetividade do direito de consulta exige, no entanto, um tempo para estudar a proposta e formular
as recomendações alternativas. Em caso contrário, a norma europeia careceria de efeito
útil.
Esta doutrina foi formulada pelo Tribunal de Justiça Europeu em diversas sentenças. A doutrina aplicou-se a um caso relativo aos direitos de informação e consulta dos
trabalhadores de uma multinacional pela primeira vez na França. A empresa Renault
decidiu o fechamento de uma das suas fábricas em 1997. Proporcionou a informação
aos representantes dos trabalhadores só 10 minutos antes de entregar o comunicado à
imprensa. O Comitê de Empresa Europeu da Renault recorreu aos tribunais e estes lhe
deram a razão aplicando a doutrina do efeito útil. A empresa foi obrigada a abrir um período de informação e consulta. Ao final, a fábrica foi fechada igualmente. Isto evidencia
claramente que o direito de consulta não questiona as faculdades de decisão da direção
da empresa. O direito de consulta não é um direito de codecisão nem muito menos um
direito de veto. É simplesmente um direito a ser escutado. Apesar disso, as empresas se
resistem ferreamente a dotá-lo de conteúdo.
No entanto, os Comitês de Empresa Europeus não recorreram praticamente aos
tribunais. Além do caso Renault, houve muito poucos casos importantes. Três ocorreram
na França. Em alguns supostos, os tribunais não reconheceram legitimidade processual
ao representante do comitê de empresa para interpor a ação (Panasonic, Alstom). Em
outros, a solução foi similar à do caso Renault: obrigar a empresa a posteriori a abrir um
período de informação e consulta (Otis). Em nenhum caso modificou-se a decisão adotada inicialmente pela companhia.
A necessidade de recorrer à doutrina do efeito útil para dotar de conteúdo um
direito “constitucional” europeu resulta bastante patética. Essa necessidade evidencia a
ausência de reconhecimento de um conteúdo mínimo do direito de consulta a qualquer
nível normativo. É como agarrar-se a um apoio em brasas. O direito de consulta está tão
vazio que é necessário recorrer à seguinte argumentação: dar a informação com tempo
aos trabalhadores é uma obrigação da empresa; a diretriz que reconhece o direito de consulta dos trabalhadores seria, em caso contrário, totalmente inútil.
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– José A. Estévez Araújo –
Em termos gerais, a influência exercida pelos CEEUs nos processos de reestruturação limita-se, quando muito, à implementação das decisões adotadas. Em alguns casos
conseguiu-se uma partilha mais equitativa dos custos da reestruturação entre os trabalhadores das diversas fábricas (como na GM Europa). Em outros se conseguiu reposicionar
os trabalhadores nas fábricas terceirizadas ou proporcionar aos trabalhadores subsídios
ou ajudas extras para fazer frente ao desemprego (Ford).
Este tipo de influência costuma ocorrer de modo informal. Não obstante, em 19
casos, foram redigidos e assinados acordos escritos sobre implementação das medidas
de reestruturação (EUROFUND, 2008, p. 11). Estes acordos podem ter caráter abstrato
e indicar como gerir os processos de reestruturação de maneira geral. Mas podem ser
também concretos. Isto é, podem referir-se às medidas a serem adotadas em um processo específico de reestruturação. Axa, Danone, Deutsche Bank ou Total são exemplos de
empresas nas quais se adotaram acordos de caráter geral. Ford, GM e Unilever assinaram
acordos específicos para processos de reestruturação concretos.
Uma questão que se propõe após tudo o que se expôs é a do papel dos CEEUs na
europeização das estratégias dos trabalhadores, especialmente nos casos de reestruturação. Foi o CEEU o motor dessa europeização? Ou foram fatores externos à existência e
incumbências formais dos CEEUs? A europeização deve-se à influência do CEEU? Ou a
influência do CEEU explica-se por causas diferentes da sua mera existência?
Uma coisa parece clara: o grau de europeização sindical nos diferentes ramos da
indústria é um fator determinante da influência dos CEEUs. Isto resulta evidente no setor
metalúrgico. Segundo o European Trade Union Institute, no ano 2009, dos 938 CEEUs
ativos, mais de 350 correspondiam a esse setor, o ramo da indústria no qual há mais
CEEUs ativos (ETUC: EWC Database, 2009). Os CEEUs das empresas automobilísticas
(como o caso emblemático de GM Europa) estão entre os mais influentes. Como já comentado, conseguiram inclusive incidir na implementação das reestruturações.
Outro fator importante é a organização da produção. A possibilidade de transferir
a produção de uma fábrica à outra propicia um maior confronto entre os trabalhadores.
Isso deveria ajudar a tentar encontrar vias para evitá-lo. Os ramos industriais com mais
possibilidade de transferir a produção entre fábricas são a automobilística, a financeira e a de alimentação. A capacidade de atuar em nível europeu das indústrias automobilísticas deve-se, em boa parte, como se assinalou, à europeização dos sindicatos metalúrgicos. Danone e Unilever também conseguiram desenvolver estratégias europeias
(EUROFUND, 2008, p. 14). Mas isso parece dever-se mais ao estabelecimento e cultivo
de vínculos transnacionais entre os representantes dos trabalhadores que ao trabalho do
CEEU em sentido estrito.
A hipótese mais verossímil é, pois, a seguinte: o grau de internacionalização das
relações sindicais e a existência de relações transnacionais entre os representantes dos
trabalhadores determinam a força dos CEEUs. Não está clara a proposição inversa. Não
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– A APLICAÇÃO DOS DIREITOS PELAS EMPRESAS –
parece haver evidências da capacidade dos CEEUs para fomentar a europeização dos relacionamentos sindicais e os vínculos entre trabalhadores.
A nova diretriz de 2009: mais do mesmo
No ano de 2008 o Comissário Spidla assinalou as prioridades da Comissão no campo dos direitos de informação e consulta dos trabalhadores. A sua perspectiva era a reforma da diretriz de 1994. Um dos objetivos era o seguinte: proporcionar melhor informação
e com maior prazo para examiná-la e formular sugestões nos casos de reestruturação.
(EUROFUND, 2008, p. 3). Isso reforça a tese do caráter parcial ou totalmente vazio dos
direitos de informação e consulta “reconhecidos” aos trabalhadores nos acordos regulatórios dos CEEUs.
A diretriz sobre os Comitês de Empresa Europeus foi finalmente modificada em
2009. A nova norma regulatória é a diretriz 2009/38/CE do Parlamento e do Conselho,
de 6 maio de 2009. Esta nova disposição não melhora as perspectivas dos direitos de
informação e consulta dos trabalhadores das multinacionais europeias. Estes direitos de
“cidadania industrial” não vão “encher-se” de conteúdo, ao menos nos próximos anos.
Por um lado, a nova diretriz mantém o mecanismo da procedimentalização absoluta. O conteúdo dos direitos de informação e consulta seguirá sendo determinado em
virtude dos acordos entre empresas e representantes dos trabalhadores. Segue sem estabelecer-se um conteúdo mínimo que deva ser respeitado (art. 5).
Em segundo lugar, a nova diretriz não estabelece um catálogo de matérias sobre
as que seja obrigatório informar. Também não assinala os procedimentos a seguir para
concretizar o direito de informação através dos comitês de empresa. Não se estabelece um
prazo para proporcionar a informação (art. 6). Embora nos considerandos assinala-se a
necessidade de fornecer a informação em um momento “apropriado” (considerando 22).
Em terceiro lugar, existem contradições na Diretriz. O articulado exige a implementação dos direitos de informação e consulta assegurando “a sua efetividade” (art. 1.2). Mas
o considerando 22, antes citado, assinala um critério contraposto: esses direitos devem
exercer-se “sem que isso atrase o processo de tomada de decisões nas empresas”. Como
devem ponderar-se essas duas exigências que sempre entrarão em conflito? Proporcionar
informação ao comitê de empresa europeu e estabelecer um prazo de consulta irá supor
sempre uma dilação da decisão. Quanto de retardo no prazo é aceitável? É o mesmo em
todos os casos? A demora pela consulta ao Comitê De Empresa Europeu pode fazer fracassar a operação em determinados casos? São perguntas sem resposta na diretriz. Essa
lacuna pode contribuir ainda mais ao esvaziamento do direito de consulta.
Por último, a aplicação da nova diretriz pode ser facilmente elidida. O regulamento
atual não exige a renegociação dos antigos acordos para adaptá-los ao novo marco jurídico. As empresas podem deixá-los como estão. Inclusive podem renovar no futuro os
acordos assinados à luz da antiga diretriz, com o consentimento dos trabalhadores.
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A nova diretriz parece, pois, uma norma perfeitamente inútil: não muda nada substancial da regulamentação anterior; o conteúdo dos direitos de informação e consulta
deixa-se aos acordos entre trabalhadores e empresários; a aplicação da nova normativa
pode ser facilmente elidida pelas empresas... É difícil encontrar um exemplo mais claro de
reforma jurídica frustrada.
Uma das causas do decepcionante conteúdo da diretriz de 2009 pode ser o peculiar
procedimento utilizado para aprová-la. A Comissão cumpriu com o estabelecido no artigo 138 do Tratado Constitutivo da Comunidade Europeia (atual artigo 154 do Tratado de
Funcionamento da União Europeia) para as ações da União em matéria de política social.
O regulamento comunitário exige uma consulta aos agentes sociais. Estes podem decidir
negociar entre eles e emitir um ditame. Podem decidir também seguir o procedimento do
artigo 139 (atual artigo 155). O tema neste caso se regularia mediante um acordo entre
tais agentes sociais. Estes podem, ademais, solicitar a conversão desse acordo em uma decisão do Conselho. Em qualquer caso, ETUC recusou a oferta de negociar. Abriu-se assim
a via para a elaboração da diretriz pelo procedimento legislativo ordinário (denominado
então processo de “codecisão”) com a participação do Conselho e o Parlamento Europeu. Mas a presidência francesa da UE convidou os agentes sociais a participar no novo
processo. Os agentes sociais convieram um texto emendando a proposta da Comissão.
O procedimento finalmente adotado foi um híbrido não previsto legalmente (sobre este
tema v. LAULOM, 2010).
Trata-se de um caso curioso de procedimentalização da procedimentalização. A
procedimentalização significa o não estabelecimento de obrigações diretamente pelo legislador. Este se limita a fixar um procedimento. Os afetados pela normativa devem seguir este procedimento para estabelecer o conteúdo essencial da regulamentação. Esse
era o caso da diretriz de 1994. No caso da de 2009 a procedimentalização se reduplicou:
o legislador público estabeleceu um procedimento para que os afetados determinassem o
conteúdo da diretriz. Os afetados, por sua vez, não estabeleceram um conteúdo material
para a diretriz, senão procedimental.
Estabeleceram uns procedimentos para as negociações que fixarão o conteúdo material das obrigações e direitos de trabalhadores e empresas. É a procedimentalização ao
quadrado: um procedimento para estabelecer um procedimento. Os teóricos da autopoiese (autocriação) o chamariam “procedimentalização reflexiva”: a procedimentalização aplica-se à própria procedimentalização.
A vacuidade do texto deve ter sido, em boa parte, resultado da adoção deste procedimento híbrido. A patronal e os sindicatos têm visões contrapostas em relação aos
Comitês de Empresa Europeus. Um texto acordado entre ambos não podia solucionar as
questões essenciais. Daí a opção pela procedimentalização. Daí também as antiguidades
do texto e as contradições do mesmo.
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– A APLICAÇÃO DOS DIREITOS PELAS EMPRESAS –
Conclusão
Nos casos estudados evidenciou-se que deixar os direitos em mãos das empresas,
isto é, privatizá-los, conduz ao seu esvaziamento. Tais casos não são experimentos de laboratório, nem supostos fora do comum. Trata-se de algo relativamente comum.
Em especial, as novas formas de regulação levam consigo a perda de conteúdo dos
direitos. Isso foi visto no caso da procedimentalização da regulamentação dos direitos de
informação e consulta dos trabalhadores. Mas a procedimentalização não se usou só para
regular esse tipo de direitos. Utilizou-se em muitos outros campos. Usou-se, por exemplo, no âmbito da proteção meio-ambiental, tanto na União Europeia como nos Estados
Unidos. O resultado foi transferir uma quota importante de poder de decisão às empresas
poluentes. As associações de consumidores ou os grupos ecologistas não têm capacidade
de fazer contrapeso ao poder das empresas. Estas têm uma grande capacidade de influência nas decisões. A capacidade de influência dos movimentos sociais é, no entanto,
puramente nominal.
As outras novas formas de produção do direito também podem afetar negativamente os direitos. Isto está claro no caso da chamada “autorregulação”: a autorregulação
põe em mãos dos códigos de conduta das empresas multinacionais os direitos dos trabalhadores das empresas subcontratistas do Sul; as normas técnicas ditadas por associações
de empresas põem em mãos destas o direito à saúde dos cidadãos; e a autorregulação da
publicidade na Espanha permite grande quantidade de propaganda proibida por ser considerada enganosa em outros países...
As formas privadas de resolução de conflitos também afetaram os direitos. Os consumidores ficam muitas vezes obrigados a aceitar a arbitragem como mecanismo de resolução de conflitos. Esta obrigação lhes é imposta contratualmente pelas empresas. Nos
Estados Unidos, uma porcentagem muito alta dos contratos de serviços ou venda a varejo
contém esta cláusula. A arbitragem pode inclusive substituir a via judicial quando as empresas obrigam os consumidores a ir a este e a renunciar a ir aos tribunais. Isso é legal nos
Estados Unidos e supõe uma clara diminuição das garantias dos direitos dos consumidores. Na UE essa renúncia à via judicial está proibida, felizmente. As resoluções arbitrais
sempre podem “recorrer-se” ante os juízes.
As novas formas de produção e aplicação do direito não são as únicas que aumentam o poder das empresas para determinar o conteúdo dos direitos. A desregulamentação
também pode ter essa consequência, pois aumenta a chamada “autonomia da vontade”.
Isso significa um incremento das coisas suscetíveis de ser reguladas contratualmente. A
lei retira-se e deixa passo livre ao contrato. Mas os contratos muitas vezes não se celebram
entre partes com igual poder negociador. O contrato entre uma empresa multinacional e
um subcontratista do Sul seria um exemplo. Os contratos entre as empresas e os trabalhadores ou os consumidores seriam um caso mais geral.
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– José A. Estévez Araújo –
O incremento da liberdade de contratação vai a favor da parte com maior poder de
negociação. Esta está em melhor posição de impor as suas condições. O aumento da liberdade de contratação pode afetar os direitos dos trabalhadores. Os seus direitos podem
deixar de estar regulados pela lei e/ou negociação coletiva e passar a estar regulados por
contratos individuais. A negociação coletiva pode ver diminuída a sua escala. Os acordos
setoriais podem ver-se substituídos por negociações coletivas em nível de empresa ou de
fábrica. Tudo isso diminui o poder negociador dos trabalhadores.
A “autonomia da vontade” também pode deteriorar direitos mais gerais. O direito
à morada é um deles. A desregulamentação financeira nos Estados Unidos deixou milhões de pessoas sem casa. Uma das causas foi o aumento da liberdade de contratação no
âmbito dos créditos hipotecários. Isso permitiu às agências creditícias transferir todos os
riscos aos prestatários. As comissões usurárias e as taxas de juro variáveis transferiam aos
“hipotecados” o risco da perda de valor dos ativos imobiliários ou do aumento das taxas
de juro. Ao estourar a bolha imobiliária, muitos milhões de hipotecados viram-se, então,
despejados.
A privatização dos serviços públicos aumenta também o poder das empresas para
determinar o conteúdo dos direitos. O caso da água é paradigmático. Na Bolívia, a privatização da água implicou a proibição de utilizar os poços ou, inclusive, de recolher a água da
chuva. Isso é ilustrado em um excelente filme de Icíar Bollain. Os abusos levaram a ONU
a declarar a água como um direito humano fundamental em agosto de 2010.
Os direitos à saúde ou à educação também se veem prejudicados com as privatizações. Nos Estados Unidos, havia 40 milhões de pessoas sem seguro médico ao chegar
Obama ao poder. A privatização dos hospitais (ou a sua gestão com critérios empresariais)
dificulta o acesso aos seus serviços. Também piora o atendimento. Isso é especialmente
verdadeiro no caso dos doentes crônicos, pois estes não são “rentáveis”.
A privatização dos direitos não é, pois, um fenômeno extraordinário ou limitado ao
âmbito dos trabalhadores. A privatização dos direitos estendeu-se como uma mancha de
óleo com a globalização neoliberal. E a mancha segue ainda aumentando.
A privatização dos direitos esvaziou em maior ou menor medida o conteúdo destes.
Em alguns casos converteu-os em direitos só sobre o papel. A privatização é uma arma de
destruição em massa dos direitos. É necessário evitar a sua proliferação. Isso exigirá fortes
mobilizações populares. O caso do movimento italiano contra a privatização da água seria
um bom exemplo disso.
A mobilização também deve ter como objetivo diminuir a mancha de óleo. É necessário reverter o processo de privatização dos direitos. Mas não é suficiente conformarse em entregar a sua custódia ao estado. Isto torna os direitos frágeis e vulneráveis. Os direitos devem estar custodiados pelos cidadãos. Devem criar-se formas de democratização
da proteção das aspirações sociais contidas nos direitos. A mobilização social não deve
desativar depois do reconhecimento legal de um direito. Deve manter-se uma vigilância
ativa. Em caso contrário, tudo o que se consiga poderá perder-se de novo.
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– A APLICAÇÃO DOS DIREITOS PELAS EMPRESAS –
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39
Psicologia Jurídica
ABUSO SEXUAL E O DRAMA FAMILIAR1
SEXUAL ABUSE AND THE FAMILY DRAMA
Hildemar Meneguzzi de Carvalho2
- Luiz Arthur Rangel Cyrino3
Resumo: O presente artigo tem o propósito de tratar do tema: abuso sexual e o
drama familiar, discorrendo sobre as definições atuais a respeito de abuso sexual, o
comportamento e consequências das crianças e adolescentes abusados, sob a ótica
da psicologia, do direito brasileiro e da saúde. A violência é uma grande preocupação que afeta a sociedade como um todo e traz consequências graves para suas vítimas. De todas as modalidades de violência existentes, o abuso sexual entra em cena,
desestruturando famílias e deixando feridas que nunca cicatrizam. Ele se encontra
inserido em um contexto histórico-social com profundas raízes culturais e atinge
todas as faixas etárias, classes sociais e pessoas de ambos os sexos. A alienação parental também é um tema que desperta a atenção, pois é uma prática que vem sendo
denunciada de forma recorrente, em que se utilizam as crianças e os adolescentes
como instrumentos de agressividade. Infelizmente, ainda é crescente o número de
acusações e denúncias de abuso sexual contra crianças e adolescentes no Brasil e no
mundo.
Palavras-Chave: Abuso sexual. Abusador. Drama familiar. Violência.
ABSTRACT: This article has the purpose of discussing the following subjects: sexual
abuse and the family drama, going over the current settings about sexual abuse,
the behavior and the consequences in the abused children and adolescents, from
the perspective of psychology, the Brazilian law and health care. Violence is a major
concern that affects society as a whole and brings serious consequences for its victims.
Of all existing forms of violence, sexual abuse appears, destabilizes families and leaves
wounds that never heal. It is embedded in a socio-historical context with deep cultural
roots and affects all ages, classes and genders. Parental alienation is also an issue that
1 Artigo elaborado para a disciplina de Fisiologia com ênfase em Neurofisiologia, do 3º ano matutino do curso de Psicologia
da Faculdade Guilherme Guimbala – ACE/FGG.
2 Juíza de Direito da 2ª Vara da Família da Comarca de Joinville e discente do Curso do 3º ano do curso de Psicologia da
Faculdade Guilherme Guimbala – ACE/FGG
3 Médico clínico geral e docente da disciplina de Fisiologia com ênfase em Neurofisiologia.
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– ABUSO SEXUAL E O DRAMA FAMILIAR –
comes to attention because it is a practice that has been reported on a recurring basis
in wich children and adolescents are used as instruments of aggression. Unfortunately,
it is still growing the number of accusations and allegations of sexual abuse against
children and adolescents in Brazil and in the world.
Keywords: Sexual abuse. Abuser. Family drama. Violence.
Introdução
A proposta deste artigo é apresentar uma revisão sobre alguns aspectos do abuso
sexual na infância e adolescência, que marca meninas e meninos de forma trágica e que
na vida adulta será reeditado. Será abordado o papel e a angústia da família perante tal
drama; as denúncias, que se tornam um elemento essencial para averiguação de crianças
em situação de risco; o caso de alienação parental, que inclui falsas acusações de abuso
sexual geralmente efetuadas por mães para afastar seu filho do ex-cônjuge, denegrindo a
imagem do outro genitor.
E, por fim, tratar-se-á do abuso sexual e a justiça, como identificar um abusador,
como contê-lo e o tempo previsto para reclusão.
Para a elaboração deste artigo, foram pesquisados livros, artigos científicos e também foram utilizados dados referentes a duas palestras, nas quais participaram profissionais com ampla experiência neste assunto, sendo duas Psicólogas Forenses, um Juiz da
Vara da Infância e Juventude, um Juiz Criminal, um Médico Legista e uma Delegada de
Polícia.
O Abuso Sexual
A Constituição Federal Brasileira de 1988 (BRASIL, 1988) garante às crianças e
adolescentes, em seu art. 227, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao
lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência
familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Conforme o parágrafo 4º do mesmo artigo, há a garantia de que a lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente.
O direito à convivência familiar deve ser saudável. Assim, para os casos em que há
necessidade de as crianças serem afastadas provisoriamente de seu meio, qualquer que
seja a forma de acolhimento possível, deve ser priorizada a reintegração ou reinserção
familiar – mesmo que esse acolhimento tenha que ser institucional (RIZZINI et al., 2006,
p. 22).
As principais causas que levam ao afastamento da família são situações classificadas como violações de direitos da criança, mencionadas no Estatuto da Criança e do
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– Hildemar Meneguzzi de Carvalho - Luiz Arthur Rangel Cyrino –
Adolescente. É o caso da violência intrafamiliar, como abuso físico, negligência, abuso
sexual, exploração pelo trabalho infantil, entre outros (RIZZINI et al., 2006, p. 23).
A criança e o adolescente abusados sofrem, no cotidiano, a violação de seus direitos
humanos mais fundamentais, como a vida, saúde, dignidade e respeito.
Abuso sexual para Faimann (2004, p. 27) “é todo relacionamento interpessoal no
qual a sexualidade é veiculada sem o consentimento válido de uma das pessoas envolvidas”. Para Farinatti, Biazus e Leite (1993, p. 75), abuso sexual é o “envolvimento de uma
criança imatura em seu desenvolvimento em atividades sexuais que ela não compreende
verdadeiramente, para as quais não está capaz de dar o seu consentimento informado; ou
que violam os tabus sociais e familiares”.
Nas palavras de Tostes (2010), “qualquer tipo de violência, que contenha algum
comportamento repetitivo e intencional onde force a pessoa a praticar atos que não concorde, resume-se em abuso sexual” (sic). Conforme Habigzang (2005) “a interação sexual
pode incluir toques, carícias, sexo oral ou relações com penetração (digital, genital ou
anal) [...]. Estas interações sexuais são impostas às crianças ou aos adolescentes pela violência física, ameaças ou indução de sua vontade”.
Para Volnovich (2005, p. 29), “o abuso sexual infantil, uma vez revelado, confronta
todos ao seu redor com uma situação de perda: perda da sensação de normalidade, do lar
e da família como lugares seguros, e, ainda, perda da privacidade, quando técnicos e profissionais passam a se envolver no caso. Globalmente, experimenta-se a intensa sensação
de que toda uma visão de mundo está ameaçada, que os suportes de opinião compartilhados, a confiança e a previsibilidade de que dependem a vida e as interações cotidianas
foram transtornados”.
Ainda, de acordo com Tostes (2010), “não há meio fácil para caracterizar um abuso
sexual, entender o motivo pelo qual ocorreu, entender como um ser humano se torna um
abusador ou molestador, identificar quando uma criança ou adolescente está sendo abusado, lidar com as consequências no desenvolvimento emocional do abusado e ajudá-lo
na sua recuperação” (sic). Segundo Farinatti, Biazus e Leite (1993, p. 127), “toda a criança
sexualmente abusada apresenta distúrbios emocionais, mais ou menos severos, alguns
dependentes do abuso em si, outros anteriores a ele, atribuíveis à disfuncionalidade da
família. Quando não devidamente reconhecidas e tratadas, essas consequências imediatas
reverterão em danos tardios na idade adulta. Além disso, também devem ser avaliados o
estado de desenvolvimento da criança e como se processam as relações dentro da família,
particularmente se há outras crianças abusadas dentro de casa”.
Para Souza (2010), “infelizmente acontecem casos em que a mãe se associa a alguém e assedia a própria filha” (sic). Boehm (2011) presenciou um caso em que “pai biológico estuprou suas duas filhas e em seguida a mãe fugiu com o pai. Após um mês a mãe
brigou com o marido e foi a polícia denunciá-lo” (sic). De acordo com Volnovich (2005,
p. 28), “muitas crianças têm raiva e se sentem traídas pela mãe por ela não as ter protegido
do abuso. Por vezes, ficam mais ressentidas com a mãe do que com o pai abusador”.
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Na maioria dos casos de abuso sexual, a agressão física é acompanhada por agressão psicológica, principalmente nos casos incestuosos, em que a figura paterna que representaria segurança e cuidados torna-se o abusador. Assim, para Volnovich (2005, p.
28), “a reação das mães, em geral, é de maior proteção ao filho quando o abusador é o
padrasto ou outro membro da família, e menor quando se trata do pai biológico. O novo
companheiro é visto como alguém ‘de fora’, enquanto o pai biológico, ao contrário, deixaas mais inseguras quanto aos seus direitos de defesa, pois a paternidade compartilhada
pode reduzir a influência materna, numa relação desigual”. Boehm (2011) enfatiza que
“a violência sexual é uma das piores violências. Pode ser amenizada, mas dificilmente se
cicatriza” (sic).
Para Serafim et al. (2009, p.109), “a dificuldade no controle da compulsão se apresenta como o fator de maior vulnerabilidade para a ocorrência de condutas criminosas
com implicação médico-legal. Altos níveis de testosterona, incapacidade em manter
relação conjugal estável, traumatismo cranioencefálico, retardo mental, psicoses, abuso
de álcool e substâncias psicoativas, reincidência de crimes sexuais e transtornos da personalidade são outros fatores conhecidos de vulnerabilidade para as condutas sexuais
criminosas”.
Nos dados estatísticos de Habigzang et al. (2005), as crianças e adolescentes vítimas
de abuso sexual eram, na maioria dos casos, do sexo feminino, 80,9%, enquanto que apenas 19,1% das vítimas eram do sexo masculino. A idade de início dos abusos concentrouse em três faixas etárias, sendo que 10,6% das crianças apresentavam idade entre 2 e 5
anos, 36,2% destas tinham entre 5 e 10 anos e 19,1% tinham entre 10 e 12 anos.
De acordo com pesquisa de Ribeiro e Ferriani (2004, p. 461), a respeito da posição
do filho como vítima, observou-se que a preferência recai sobre as primogênitas, 16,8%,
seguidas das crianças na mesma condição, 13,3%. Quanto ao vínculo da vítima com o
abusador, observou-se também que são os pais responsáveis pelo maior número de vitimizações sexuais, 34,2%, e agressões de crianças, 19,7%; enquanto os padrastos agrediram
mais as suas enteadas adolescentes, 17,1%.
Consequências do Abuso Sexual
Para Sanderson (2008, p. 169), que o abuso sexual tem um impacto nas crianças
é algo inquestionável. O que também está claro é que o impacto não é apenas sexual, mas
também emocional e psicológico. De acordo com Gauer e Machado (2005, p. 35), “o abuso sexual na infância e adolescência representa um trauma de grande impacto. Desequilibram o desenvolvimento normal da personalidade, comprometendo as funções do ego ao
nível afetivo, comportamental e nas interrelações”.
O sentimento de culpa, o sentimento de autodesvalorização e depressão são aspectos afetivos encontrados na criança abusada sexualmente, pois se deve ao complô de
silêncio e pressões para que a criança, sob pena de sofrer retaliações, não revele o abuso.
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No caso de incesto, há uma ambivalência de sentimentos, pois está ligado às figuras de
amor, pai e mãe (ob. cit., p. 39).
As crianças que experimentam um evento traumático como o abuso sexual se
fecham e, de acordo com Sanderson (2008, p. 177), “quanto maior a frequência que o
trauma é experimentado, mais prática a criança adquire em dissociação e esquecimento,
o que pode, então, se tornar uma resposta habitual na presença de sentimentos e experiências devastadoras”. Hutz (2000, p. 163) afirma que, entre as várias consequências negativas na infância, destaca-se a delinquência juvenil. Também refere que existem algumas
evidências de que o abuso crônico, bem como os abusos múltiplos, aumenta o risco para
a delinquência.
Em muitos casos, o abusador também foi vítima de abuso sexual. Para Gauer e Machado (2005, p. 37), “a vítima, ao se identificar com seu agressor e se converter em molestador, torna o abuso sexual um legado passado à próxima geração de vítimas”. Conforme
Junkes (2010), “ele (o abusador) acaba repetindo a história porque já foi abusado antes.
São feridas difíceis de curar”.
A Denúncia
Ocorrendo casos de violação de direito contra criança e adolescente, os procedimentos seguem o seguinte roteiro: denúncia; notificação aos órgãos de garantia de direitos disponíveis no nível local (Conselhos Tutelares, Varas da Infância e da Juventude,
Delegacias de Proteção à Criança e ao Adolescente, Serviços de Triagem Municipais e Estaduais); procedimentos padronizados (formulários, estudos de caso, pesquisa de dados
sobre os atendidos etc.); recebimento da criança ou adolescente vitimizado, com atendimento direcionado à demanda apresentada (casos de violência física, sexual, negligência,
situação de rua etc.); trabalho específico com as famílias (busca da família, encaminhamentos, reuniões e tentativa de reintegração na família de origem ou extensa); estímulo à
independência ou autonomia nos casos de adolescentes em que a reinserção familiar não
é possível ou a medida mais indicada (inserção em programas de geração de renda, cursos
profissionalizantes entre outros). Em alguns casos, são jovens mães que desejam ter suas
próprias residências ou adolescentes em via de completar 18 anos que não possuem mais
vínculos familiares (RIZZINI et al., 2006, p. 98).
Segundo Rosa e Carvalho (2011, p. 4), “diante de um comportamento desviante,
em desconformidade com o que é tutelado, cabem respostas estatais, desde aplicação de
restrições e sanções administrativas até penas privativas de liberdade”.
Rosa e Carvalho (apud Muller, 2011, p. 108) enfatizam que “violentar é fazer sofrer
e o sofrimento pode ser mais temível que a morte”. Muitas vezes o sofrimento da vítima
é causado pelo silêncio, sendo proporcional ao laço afetivo que o abusado possui com o
agressor. A síndrome do segredo é um “acordo” entre o abusador e o abusado, de que
o abuso deve permanecer oculto. Mantém o segredo, por medo das consequências da
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revelação. “A criança teme a punição ou a incapacidade do adulto de protegê-la da violência do seu agressor, [...] sente que sua palavra é desvalorizada, que corre o risco de não
ser acreditada no que diz, e, por isso, mantém-se em silêncio sobre o abuso” (RANGEL,
2001, p. 45).
De acordo com Fernandes (2011), ao examinar um caso sobre abuso sexual, “o especialista tem que ter uma posição técnica para dar espaço à avaliação” e estas devem considerar: “a) contexto que levou à suspeição; b) interação entre parentes – criança durante
a entrevista; c) reação dos parentes em relação a fatos suspeitos – sequela para a criança,
repercussões familiares, médico legista, judiciário; d) sinais clínicos da criança, tal como
são transmitidos pelos parentes” (sic).
Fernandes (2011) enfatiza que “na avaliação psicológica deve ser priorizada a
criança acima dos interesses dos pais e que o profissional deve ter capacidade e trabalhar
com a dúvida, pois quando se acredita e interpreta ao pé da letra os fatos, corre-se o risco
de sacralizar a escuta e destruir os vínculos entre os familiares” (sic). Gauer e Machado
(2005, p. 39) afirmam que “primeiramente é oportuno esclarecer que por mais estudos e
descobertas que se tenham realizado acerca das consequências do abuso sexual, é indispensável a noção de que as consequências para quem sofre esse ato depende dos recursos
psíquicos próprios de cada indivíduo”.
A revelação do abuso traz perdas afetivas e afastamentos sociais que são extremamente difíceis de serem suportados. Conforme Tostes (2010), “é movida uma ação contra
o parente para retirada da casa, chamado de destituição de poder familiar, onde o abusador é retirado de dentro de casa seja pai, mãe, avô ou parentes próximos como é em 80%
dos casos que se vê em pesquisas porque existem mães abusadoras também” (sic). Segundo Volnovich (2005, p.29), “a ajuda especializada ganha aqui um papel de relevância. Está
confirmado estatisticamente que a criança abusada e a mãe buscam, em primeiro lugar, a
ajuda de médicos ou de pessoas próximas diferenciadas na escola”.
Tostes (2010) ainda afirma que “é importante afastar e propiciar a essa criança, um
local onde ela possa ser constituída psiquicamente, fisicamente de uma forma saudável”
(sic).
Falsas Denúncias e Alienação Parental
O termo síndrome da alienação parental foi criado pelo psiquiatra norte-americano Richard Gardner. O referido autor observou um aumento significativo das situações
em que um dos genitores programa o filho para alienar-se do outro, na esperança de que
isso o favoreça na disputa judicial. A partir daí, Gardner (2002) constatou não apenas que
o genitor alienador incutia no filho ideias negativas em relação ao ex-cônjuge, mas que
havia também uma contribuição dos filhos para essa desmoralização (LAGO; BANDEIRA, 2009, p. 294, apud GARDNER, 2002).
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“A família, como lugar de proteção e cuidados, é, em muitos casos um mito. Muitas
crianças e adolescentes sofrem ali suas primeiras experiências de violência” (BOCK, 2008,
p. 255).
Uma das consequências de manifestação mais grave da síndrome de alienação parental consiste na denúncia de abuso sexual. Para Costa (2010), tal denúncia possui aspecto dúplice, pois, de um lado, há o dever de tomar imediatamente uma atitude e, de outro,
o receio de que, se a denúncia não for verdadeira, traumática será a situação em que a
criança estará envolvida, pois ficará privada do convívio com o genitor que eventualmente
não lhe causou qualquer mal e com quem mantinha excelente convívio.
Debruce-se maior acuidade sobre a falsa acusação do abuso sexual, a qual pode ser
efetuada com o intuito de obter afastamento imediato e radical entre o ente alienado e o
acusado injustamente desse ato abusivo. A dificuldade de se provar um fato negativo faz
com que este genitor, na maioria das vezes, o pai, seja afastado por longo tempo de seu
filho até que se consiga acreditar na inexistência do ocorrido (COSTA, 2010).
Segundo Araújo Filho (2011), a palavra da vítima, em caso de abuso sexual, é de
suma importância, no entanto, “é preciso prestar muita atenção para verificar se a informação obtida tem credibilidade ou se é fruto de imaginação ou mesmo de alienação
parental”.
Ressalta-se que inócuos serão as entrevistas, testes, estudos sociais e sessões de terapia, além da submissão das partes vitimadas no processo – criança e acusado – à repetição de procedimentos e questionamentos sobre o fato (às vezes não ocorrido), quando
a acusação é feita com base em impressões da mãe, sensações e “achismos”, não havendo
como se comprovar a absoluta inocência do acusado (COSTA, 2010).
O Abuso Sexual e a Justiça
Nas cidades pequenas, a assistência é rara e a probabilidade de delitos de abuso sexual permanecerem impunes é mais alta que nos grandes centros. Segundo Junkes (2010),
“a vara da Família trabalha em duas frentes: punição ao abusador, que é a responsabilização e também de proteção a vítima” (sic). Diante da instrução judicial, a norma vigente é
muito clara quanto ao compromisso do Estado de prover a proteção das vítimas, em geral,
e das vítimas infantis em especial. Com a denúncia, o Juiz pode requerer um relatório
psicossocial, que irá negar ou confirmar o abuso sexual.
O relatório psicossocial objetiva deixar o cenário do abuso sexual mais claro e auxilia o Juiz em sua decisão, no entanto, este poderá dispensá-lo, de acordo com a lei processual vigente no Brasil (GRANJEIRO; COSTA, 2008).
Para Negrão (2008), o Juiz irá apreciar a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias
constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes, mas deverá informar na sentença os motivos que lhe levaram ao convencimento e, ainda, o Juiz não está adstrito ao
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laudo pericial, podendo formar a sua convicção com outros elementos ou fatos provados
nos autos.
Segundo Junkes (2010), “se o abusador for maior de 18 anos estará sujeito a competência criminal; instaura-se então, o procedimento criminal, em que poderá ser condenado à pena de reclusão que varia de 6 a 10 anos ou até mais, dependendo das circunstâncias. Se o abusador for um adolescente responderá o processo de acordo com o Estatuto
da Criança e do Adolescente e em caso de condenação, poderá permanecer internado
pelo prazo de até três anos” (sic).
De acordo com Araújo Filho (2011), além das consequências criminais, “o abusador também sofre as consequências civis, tais como perda da guarda, suspensão do poder
familiar ou, na pior das hipóteses, a própria perda do poder familiar”.
Apesar de a Constituição Federal ter inserido, no art. 227, o princípio da prioridade absoluta aos interesses da criança e do adolescente, é sabido que as políticas públicas
ainda são deficitárias de um modo geral.
conclusão
Ao longo do trabalho foi verificada a necessidade que profissionais médicos, psicólogos, juízes, entre outros, dentro do seu papel, desenvolvam ferramentas capazes de
reduzir a violência do abuso sexual.
Segundo D’Agostini (2006, p. 16), “é necessário pensar a não violência. Ao dizer
não à violência – aquela que dominou a história da humanidade –, o ser humano criou o
conceito da não violência. Esta noção está mais do que nunca no centro dos debates. Marcada pela coragem, o amor à liberdade e o domínio de si mesmo, a não violência acaba por
ser o oposto de uma atitude absorta e passiva. Criadora, atuante, pode acelerar a dinâmica
social, favorecer a justiça e a democracia”.
É preciso que se faça uma reflexão transdisciplinar, que se discuta a necessidade
de mudanças, pois as crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual prolongado usualmente desenvolvem uma perda violenta da autoestima, têm a sensação de que não valem
nada, adquirem uma representação anormal da sexualidade, tonam-se retraídas, perdem
a confiança em todos os adultos e podem até chegar ao suicídio.
Por isso, conforme Reis (2009, p. 271), “é preciso ainda levar em consideração a
capacidade que as pessoas atendidas têm de aceitar e assumir uma forma alternativa de
negociação e de elaboração de um consenso ético. Bem se vê que a situação é complexa
para os dois polos do poder, tanto para os que estão em posição de dizer ou conduzir
“verdades”, jurídicas ou psicológicas, como para os que se supõe estariam ali para ouvi-la,
ou para participar do jogo. É preciso sempre levar em consideração as possibilidades de
resistência por parte dos sujeitos e a sua recusa tenaz em abandonar o exercício de um
poder sobre o filho, ou sobre a situação de conflito como um todo”.
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Espera-se que todas as pessoas que têm por dever funcional, ético, educacional, ou
social, sejam capazes de atuar na prevenção do abuso sexual, para que se possa garantir
a integridade física e emocional da criança ou adolescente, pois, como afirma Meurer
(2003, p. 29), “como resultado, corre-se o risco de sofrer agressões físicas ou morais a
qualquer momento e, comumente, perder a vida”.
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Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 2 • Dez/2011
Direito Ambiental
DIREITO AMBIENTAL - RESPONSABILIDADE CIVIL
PELOS DANOS, INCLUSIVE MORAL, AO MEIO
AMBIENTE
ENVIRONMENTAL LAW - LIABILITY FOR DAMAGES,
INCLUDING MORAL, TO THE ENVIRONMENT
Marcelo Camargo da Silva1
Resumo: O presente trabalho científico analisa a responsabilidade civil no contexto da esfera ambiental. Conceitua-se o meio ambiente, o direito ambiental, situando-o no sistema jurídico brasileiro, e seus princípios. Estuda-se a responsabilidade
civil e seus requisitos, além de diferenciar-se a responsabilidade civil subjetiva da
responsabilidade civil objetiva. Caracteriza-se o dano ambiental e, por consequência, a responsabilização do causador. Diante da divergência, tanto doutrinária
quanto jurisprudencial, há um tópico no trabalho sobre a responsabilidade pelos
danos ambientais na órbita extrapatrimonial, ou seja, pelo dano extrapatrimonial
(moral) ambiental. Para demonstrar a aplicação prática da matéria, colacionam-se
alguns entendimentos jurisprudenciais proferidos pelo Superior Tribunal de Justiça
e pelo Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Dessa forma, este trabalho
tem como objetivo tratar da responsabilidade civil como reparação do dano causado
(patrimonial ou extrapatrimonial) e a responsabilização do agente causador do dano
ambiental. A responsabilidade por danos ao meio ambiente decorre da lesão causada a bens pertencentes à coletividade, uma vez que a Constituição Federal considera
o meio ambiente um bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de
vida, conforme disposto no artigo 225, caput.
Palavras-chave: Meio ambiente. Princípios do direito ambiental. Responsabilidade civil pelo dano ambiental.
Abstract: This paper reviews the scientific context of civil liability in the
environmental sphere. Conceptualized the environment, environmental law, placing
it in the Brazilian legal system, and its principles. It studies the liability and also its
1 Titulação: Pós-graduação em Direito e Gestão Judiciária - Turma 8; instituição: Academia Judicial do Poder Judiciário
de Santa Catarina. Técnico Judiciário Auxiliar/Assessor de Gabinete; e-mail: [email protected].
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– DIREITO AMBIENTAL - RESPONSABILIDADE CIVIL PELOS DANOS, INCLUSIVE MORAL, AO MEIO AMBIENTE –
requirement to differentiate the subjective liability of strict liability. We characterize
the environmental damage and, consequently, the accountability of the perpetrator.
Given the divergence in both doctrine and jurisprudence, there is a topic of discussion
in the papper about the liability for environmental damage in the emolument orbit, it
means by the moral environment damage. To demonstrate the field application of the
subject, we collect a few jurisprudential opinions handed down by the Superior Court
and the Court of the State of Santa Catarina. Thus, this study aims to address the
liability and compensation for damage caused (material or not) and also de liability
of the causing agent in the environment. The responsibility for environmental damage
due to an injury caused to property belonging to the community, since the Constitution
considers the environment an asset of common use and essential to a healthy quality of
life, as stipulated in Article 225 caput.
Keywords: Environment. Principles of environment law. Responsability for
environmental damage.
Introdução
O meio ambiente, como direito fundamental de todo cidadão brasileiro, deve ser
preservado tanto para as presentes como para as futuras gerações, visto tratar-se de um
bem comum necessário à sadia qualidade de vida, importando especial atenção não só
dos órgãos públicos mas de toda a sociedade.
No que se refere à sua proteção, requer o meio ambiente seja ela não só repressiva,
mas especialmente preventiva. Além da necessária recuperação do ambiente degradado,
fica também determinado ao poluidor a indenização pelos danos causados, sejam eles de
ordem patrimonial ou extrapatrimonial. O presente estudo tem como objeto o exame da
responsabilidade civil pelos danos causados ao meio ambiente, inclusive o dano extrapatrimonial (moral) coletivo, decorrentes da degradação ambiental.
O tema é atual e relevante, pois a discussão em âmbito mundial quanto à necessidade de preservação do meio ambiente é constante e urgente, especialmente pelos eventos
naturais de grandes proporções que atingem todas as comunidades, direta ou indiretamente, comprovadamente advindos da degradação da Terra.
Cumpre esclarecer que o objetivo institucional deste é produzir uma monografia
para obtenção de título de especialista em Direito e Gestão Judiciária, curso oferecido
para magistrados e servidores de diversas categorias do Tribunal de Justiça de Santa Catarina pela Academia Judicial do Poder Judiciário de Santa Catarina.
Por meio do método de pesquisa bibliográfica, procurar-se-á situar o tema no direito brasileiro e examinar os conceitos e princípios básicos do direito ambiental e da
responsabilidade civil para, especificamente, estudar-se a responsabilização pelos danos
causados ao meio ambiente. Algumas noções também serão postas referentes ao dano
extrapatrimonial (moral) coletivo advindo do dano ambiental, objeto de discussão na
doutrina e jurisprudência.
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– Marcelo Camargo da Silva –
Para realizar a pesquisa, o trabalho foi dividido em três capítulos. No primeiro e introdutório, caracterizar-se-á o meio ambiente, objeto do direito ambiental, apontar-se-á a
proteção que é dada pela legislação brasileira e, ainda, os princípios do direito ambiental.
A responsabilidade civil será abordada no segundo capítulo, com seu conceito e
requisitos que a caracterizam. Distinguir-se-á, também, responsabilidade civil subjetiva
da responsabilidade civil objetiva, esclarecendo-se aquela prevalente em matéria de danos
ambientais.
Por fim, caracterizar-se-á o dano ambiental e sua consequente responsabilidade, com
tópico exclusivo a respeito do dano extrapatrimonial (moral) coletivo com origem no dano
ambiental. Para encerrar, serão colacionados importantes julgados sobre o tema, prolatados
pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina.
1. O Meio Ambiente
A consciência humana plena e completa da necessidade de preservação do meio
ambiente só há pouco tempo tem-se aflorado, não só pelas ameaças que vem sofrendo
nosso planeta, mas também pela necessidade de preservar os recursos naturais tanto para
as presentes como para as futuras gerações.
Para encetar o estudo proposto, convém conceituar o meio ambiente, direcionando
tal conceito ao mundo jurídico.
Na definição de De Plácido e Silva (2002, p. 527), meio ambiente é o “conjunto
de condições naturais em determinada região, ou, globalmente, em todo o planeta, e da
influência delas decorrentes que, atuando sobre os organismos vivos e os seres humanos,
condicionam sua preservação, saúde e bem-estar”.
José Afonso da Silva (2010, p. 18), por sua vez, aduz que “o meio ambiente é, assim,
a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas”.
Segue este último doutrinador, complementando o conceito de meio ambiente, expondo os três aspectos deste:
I – meio ambiente artificial, constituído pelo espaço urbano construído, consubstanciando no
conjunto de edificações (espaço urbano fechado) e dos equipamentos públicos (ruas, praças, áreas
verdes, espaços livres em geral: espaço urbano aberto);
II – meio ambiente cultural, integrado pelo patrimônio histórico, artístico, arqueológico, paisagístico,
turístico, que, embora artificial, em regra, como obra do Homem, difere do anterior (que também é
cultural) pelo sentido de valor especial que adquiriu ou de que se impregnou;
III – meio ambiente natural, ou físico, constituído pelo solo, a água, o ar atmosférico, a flora; enfim,
pela interação dos seres vivos e seu meio, onde se dá a correlação recíproca entre as espécies e as
relações destas com o ambiente físico que ocupam. (SILVA, 2010, p. 19)
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– DIREITO AMBIENTAL - RESPONSABILIDADE CIVIL PELOS DANOS, INCLUSIVE MORAL, AO MEIO AMBIENTE –
Revela-se dos conceitos esposados, portanto, que o meio ambiente é a base, o necessário à preservação ou desenvolvimento da vida do homem, dos animais, vegetais, ou
seja, da vida em todas as suas formas.
Daí surgir a preocupação ou conscientização da necessidade da sua preservação,
para as presentes e futuras gerações, conforme posto pela própria lei fundamental quando
prevê a proteção do meio ambiente (art. 225 da Constituição Federal).
À preservação do meio ambiente sob o aspecto natural ou físico que aqui se dará
ênfase. Aliás, é nesse aspecto que a Lei nº 6.938, de 31/8/1981, define em seu art. 3º,
quando diz que, para os fins nela previstos, “entende-se por meio ambiente o conjunto de
condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite,
abriga e rege a vida em todas as suas formas”.
A proteção legal do meio ambiente (sob todos seus aspectos), ademais, é objeto do
chamado direito ambiental, considerado um dos mais recentes “ramos” do direito.
Direito ambiental, segundo Paulo de Bessa Antunes (2010, p. 5), é “a norma que,
baseada no fato ambiental e no valor ético ambiental, estabelece os mecanismos normativos capazes de disciplinar as atividades humanas em relação ao meio ambiente”.
Édis Milaré (2007, p. 759), que denomina a matéria como direito do ambiente, considera-o como “o complexo de princípios e normas coercitivas reguladoras das atividades
humanas que, direta ou indiretamente, possam afetar a sanidade do ambiente em sua
dimensão global, visando à sua sustentabilidade para as presentes e futuras gerações”.
Para uma melhor visão do direito ambiental, necessário se faz avaliar-se, então, as
normas e princípios que o regem.
1.1 A proteção ambiental no direito brasileiro
A principal norma do direito brasileiro protetora do meio ambiente está contida na
Constituição Federal, concentrada especialmente no Capítulo VI do Título VIII, dirigido
à Ordem Social, que define o meio ambiente equilibrado como direito de todos e lhe dá a
natureza de bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo
corresponsabilidade do cidadão e do Poder Público pela sua defesa e preservação (art.
225, caput).
Ali, ao erigir o meio ambiente a um valor ideal da ordem social, definitivamente institucionalizou direito ao meio ambiente sadio com um direito fundamental do indivíduo.
Nesse contexto, meio ambiente como direito fundamental, José Afonso da Silva
(2010, p. 70) afirma que é importante
que se tenha a consciência de que o direito à vida, como matriz de todos os demais direito fundamentais
do Homem, é que há de orientar todas as formas de atuação no campo da tutela do meio ambiente.
Cumpre compreender que ele é um fator preponderante, que há de estar acima de quaisquer outras
considerações como as de desenvolvimento, como as de respeito ao direito de propriedade, com as
da iniciativa privada. Também estes são garantidos no texto constitucional, mas, a toda evidência,
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não podem primar sobre o direito fundamental à vida, que está em jogo quando se discute a tutela da
qualidade do meio ambiente. É que a tutela da qualidade do meio ambiente é instrumental no sentido
de que, através dela, o que se protege é um valor maior: a qualidade de vida.
Portanto, considera-se o direito ao ambiente ecologicamente equilibrado como
direito indisponível, perspectiva acentuada pela previsão de que a preservação do meio
ambiente deve ser feita no interesse não só das presentes, como igualmente das futuras
gerações. Estabeleceu-se, dessa maneira, um dever não apenas moral, como também jurídico e de natureza constitucional, paras as gerações atuais de transmitir esse patrimônio
ambiental às gerações que nos sucederem e nas melhores condições do ponto de vista do
equilíbrio ecológico.
Outros dispositivos da lei fundamental, entretanto, também fazem referência expressa à proteção do meio ambiente, por exemplo, art. 5º, LXXIII, art. 20, II, art. 23, art.
24, VI, VII e VIII, art. 91, § 1º, III, art. 129, III, art. 170, VI, 174, § 3º, art. 186, II, art. 200,
VIII, art. 216, V, art. 220, § 3º, II, e art. 231, § 1º. Além desses existem ainda, por todo o texto
constitucional, diversas outras referências implícitas de proteção ao meio ambiente.
são:
Quanto à legislação infraconstitucional, as principais leis de proteção ambiental
- Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965 – Institui o Código Florestal;
- Lei nº 5.197, de 3 de janeiro de 1967 – Dispõe sobre a proteção à fauna;
- Lei nº 6.902, de 27 de abril de 1981 – Dispõe sobre a criação de Estações Ecológicas, Áreas de Proteção Ambiental;
- Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981 – Dispõe sobre a Política Nacional do Meio
Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação;
- Lei nº 7.797, de 10 de julho de 1989 – Cria o Fundo Nacional de Meio Ambiente;
- Lei nº 8.171, de 17 de janeiro de 1991 – Dispõe sobre a política agrícola;
- Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 – Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente;
- Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000 – Regulamenta o art. 225, § 1º, incisos I, II, III
e VII, da Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação
da Natureza;
- Lei nº 10.831, de 23 de dezembro de 2003 – Dispõe sobre a agricultura orgânica;
- Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005 – Regulamenta os incisos II, IV e V do § 1º
do art. 225 da Constituição Federal;
- Lei nº 11.284, de 2 de março de 2006 – Dispõe sobre a gestão de florestas públicas
para a produção sustentável;
- Lei nº 11.428, de 22 de dezembro de 2006 – Dispõe sobre a utilização e proteção
de vegetação nativa do Bioma Mata Atlântica;
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– DIREITO AMBIENTAL - RESPONSABILIDADE CIVIL PELOS DANOS, INCLUSIVE MORAL, AO MEIO AMBIENTE –
- Lei nº 11.794, de 8 de outubro de 2008 – Regulamenta o inciso VII do § 1º do
art. 225 da Constituição Federal, estabelecendo procedimentos para o uso científico de
animais; e,
- Lei nº 12.305, de 2 de agosto de 2010 – Institui a Política Nacional de Resíduos
Sólidos.
De maneira breve, deve-se salientar que, em matéria ambiental, a competência legislativa no Brasil, segundo o art. 24 da Constituição Federal, é concorrente entre União,
Estados e Distrito Federal, a quem cabe legislar, entre outras matérias:
I – direito (...) urbanístico;
(...)
VI – florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais,
proteção do meio ambiente e controle da poluição;
VII – proteção do patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico;
VIII – responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico,
estético, histórico, turístico e paisagístico;
(...).
Na competência concorrente (ou suplementar) estabelecida pela Constituição, a
legislação emanada da União está adstrita ao estabelecimento de normas gerais, não podendo excluir a competência suplementar dos Estados, devendo estes e o Distrito Federal
especificá-las, através de suas leis (art. 24, parágrafos 1º e 2º, da CF).
A competência suplementar dos Estados-membros e do Distrito Federal, segundo
Alexandre de Moraes (2007, p. 289), pode ser dividida em competência complementar e
competência supletiva:
A primeira dependerá de prévia existência de lei federal a ser especificada pelos Estados-membros
e o Distrito Federal. Por sua vez, a segunda aparecerá em virtude da inércia da União em editar a
lei federal, quando então os Estados e o Distrito Federal, temporariamente, adquirirão competência
plena tanto para edição das normas de caráter geral, quanto para normas específicas.
Conquanto não explícita a competência dos municípios no artigo 24 da CF, não há
razão plausível para que, em vista do interesse local, estes não possam legislar, respeitando
as normas federais e estaduais.
Segundo Édis Milaré (2007, p. 182), “se a Constituição conferiu-lhe poder para
‘proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas’ (art. 23,
VI) – competência administrativa –, é óbvio que, para cumprir tal missão, há que poder
legislar sobre a matéria”.
Essa permissão, ademais, estaria prevista no art. 30, I e II, da CF, podendo suplementar o Município, no que couber, as legislações federal e estadual dentro do seu próprio
interesse.
Vista a legislação regente do direito ambiental, assim como a competência protetiva, necessário compreender os princípios que regem a matéria.
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1.2 Princípios do direito ambiental
Princípio é o alicerce ou o fundamento do direito, presta-se para balizar o procedimento do legislador, do magistrado e do operador do direito.
Os princípios, de acordo com Humberto Ávila (2005, p. 70),
são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de
complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação
entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária
à sua promoção.
São os princípios, portanto, normas finalísticas. Eles estabelecem um fim a ser atingido. Instituem, segundo o autor mencionado, o dever de adotar comportamentos necessários
à realização de um estado de coisas ou, inversamente, instituem o dever de efetivação de um
estado de coisas pela adoção de comportamentos a ele necessários (idem, p. 72).
Servem os princípios como “padrões” interpretativos da lei, suplementando-a ou
orientando sua aplicação. Exercem função integradora, porque preenchem lacunas do
direito; interpretativa, pois orientam o intérprete na aplicação da norma; delimitadora,
porque limitam a atuação legislativa, judicial e negocial; e fundante, porque fundamentam o ordenamento jurídico.
Os princípios do direito ambiental têm por escopo proteger toda espécie de vida
no planeta, propiciando uma qualidade de vida satisfatória ao ser humano das presentes
e futuras gerações.
São apontados pela doutrina, em sua maioria, os seguintes princípios que regem o
direito ambiental:
1.2.1 Princípio do ambiente ecologicamente equilibrado
Frente à constante e massiva degradação em todo o mundo, a proteção do meio
ambiente ascendeu ao posto de valor elevado nas sociedades atuais, passando a constituirse um direito fundamental da sociedade.
O ser humano é a preocupação primordial do direito ambiental, que existe em função daquele e que objetiva melhores condições de vida.
Paulo de Bessa Antunes (2010, p. 22) afirma que “o direito estabelecido pelo art.
225 da Constituição é fundado no princípio da dignidade da pessoa humana e somente
nele encontra a sua justificativa final”.
Dessa forma, a par dos direitos e deveres individuais e coletivos elencados no art.
5º, o art. 225, ambos da Constituição Federal, também pode ser considerado direito fundamental da pessoa humana, que dita o desfrute de adequadas condições de vida em um
ambiente saudável, ou, como na Constituição, “ecologicamente equilibrado”.
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– DIREITO AMBIENTAL - RESPONSABILIDADE CIVIL PELOS DANOS, INCLUSIVE MORAL, AO MEIO AMBIENTE –
1.2.2 Princípio da solidariedade intergeracional
Ao expor a Constituição Federal, no caput do artigo 225, o dever de defesa e preservação do meio ambiente “para as presentes e futuras gerações”, buscou esta assegurar a
solidariedade intergeracional, para que também as gerações futuras possam usufruir, de
forma sustentável, dos recursos naturais.
Este princípio reconhece que os recursos ambientais existentes não são inesgotáveis e necessitam de proteção para o futuro, traduzindo-se em verdadeiro princípio ético
entre gerações.
Édis Milaré (2007, p. 763) ressalta que
A declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano (1972), preocupada com a finitude dos
recursos naturais, estabeleceu em seu Princípio 2 que estes devem ser preservados em benefício das
gerações atuais e futuras, mediante cuidadoso planejamento. Por igual, a Declaração do Rio de Janeiro
sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992) ressaltou essa dimensão temporal, averbando,
no Princípio 3, que o direito ao desenvolvimento ‘deve ser exercido de modo a permitir que sejam
atendidas equitativamente as necessidades (...) das gerações atuais e futuras’.
Conforme acima exposto, no país, o art. 225 da Constituição Federal refere-se expressamente à solidariedade intergeracional.
1.2.3 Princípio do desenvolvimento sustentável
A Constituição Federal busca a coexistência harmônica entre economia e meio ambiente ao reconhecer sua importância para o desenvolvimento nacional, especialmente no
aspecto econômico, quando firmou como princípio da ordem econômica a necessidade
de defesa e preservação do meio ambiente. Reza o art. 170, da carta constitucional:
A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim
assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes
princípios:
(...)
VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto
ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;
(...).
Ao permitir o desenvolvimento, requer a carta constitucional seja este de forma
sustentável, planejada, de defesa ao meio ambiente, para que os recursos de hoje não se
esgotem ou tornem-se inócuos, impondo ao Poder Público e à coletividade o “dever de
defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações” (art. 225, caput).
O princípio do desenvolvimento sustentável, portanto, não objetiva impedir o desenvolvimento econômico, por contrário, procura conciliar a proteção do meio ambiente
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– Marcelo Camargo da Silva –
com o desenvolvimento sócio-econômico para a melhoria da qualidade de vida do homem (presente e futura).
1.2.4 Princípios da prevenção e da precaução
Conquanto a Constituição brasileira não faça uma distinção propriamente dita entre a expressão prevenção e precaução, e as utilize quase como sinônimas, os doutrinadores, em sua maioria, entendem necessário fazer-se distinção entre ambos.
Édis Milaré (2007, p. 766) afirma que,
de maneira sintética, podemos dizer que a prevenção trata dos riscos ou impactos conhecidos pela
ciência, ao passo que a precaução se destina a gerir riscos ou impactos desconhecidos. Em outros
termos, enquanto a prevenção trabalha como o risco certo, a precaução vai além e se preocupa com
o risco incerto. Ou ainda, a prevenção se dá em relação ao perigo concreto, ao passo que a precaução
envolve o perigo abstrato.
Ambos os princípios são considerados como basilares do direito ambiental, ante
as peculiaridades do meio ambiente, que impõe a necessidade de medidas que evitem o
nascimento de agressões, reduza ou elimine as causas de ações suscetíveis de alterar sua
qualidade.
1.2.4.1 Princípio da prevenção
O princípio da prevenção aplica-se, como visto, aos impactos ambientais já conhecidos ou que se possa, de antemão, estabelecer nexo de causalidade suficiente para
identificação de impactos futuros.
Segundo Paulo Machado (2004, p. 74),
sem informação organizada e sem pesquisa não há prevenção. Por isso, ‘divido em cinco itens a
aplicação do princípio da prevenção: 1º) identificação e inventário das espécies animais e vegetais
de um território, quanto à conservação da natureza e identificação das fontes contaminantes das
águas e do mar, quanto ao controle da poluição; 2º) identificação e inventário dos ecossistemas,
com a elaboração de um mapa ecológico; 3º) planejamento ambiental e econômico integrados; 4º)
ordenamento territorial ambiental para a valorização das áreas de acordo com a sua aptidão; e 5º)
Estudo de Impacto Ambiental’.
Com base no princípio da prevenção, o Poder Público está autorizado a exigir o
licenciamento ambiental, pela exigência do estudo prévio de impacto ambiental (EIA/
RIMA), o manejo ecológico, o tombamento, as liminares, as sanções administrativas, pois
embasados em conhecimentos acumulados sobre o meio ambiente. Esses instrumentos,
aptos a prevenir danos ambientais, agem de forma a evitar ou minimizar os danos que
uma determinada atividade causaria ao meio ambiente.
Como bem apontado por Édis Milaré (2007, p. 767),
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diante da pouca valia da simples reparação, sempre incerta e, quando possível, excessivamente
onerosa, a prevenção é a melhor, quando não a única, solução. De fato, como averba Fábio Feldmann,
‘não podem a humanidade e o próprio Direito contentar-se em reparar e reprimir o dano ambiental.
A degradação ambiental, como regra, é irreparável. Como reparar o desaparecimento de uma espécie?
Como trazer de volta uma floresta de séculos que sucumbiu sob a violência do corte raso? Como
purificar um lençol freático contaminado por agrotóxicos?’. Com efeito, muitos danos ambientais são
compensáveis, mas, sob a ótica da ciência e da técnica, irreparáveis.
Visa, portanto, o princípio da prevenção, através da imposição de medidas acautelatórias, impedir a ocorrência de danos ambientais já conhecidos pela ciência/sociedade.
1.2.4.2 Princípio da precaução
O princípio da precaução, a contrário do princípio da prevenção, é invocado quando o dano ambiental é incerto, ou seja, não há informação científica suficiente ou certa
quanto à potencialidade lesiva sobre o ambiente, saúde das pessoas ou dos animais.
A incerteza científica milita em favor do meio ambiente. O princípio 15 da Declaração do Rio (Eco 92), documento da Organização das Nações Unidas, acordado pelo
Brasil, contempla o princípio da precaução.
Princípio 15: Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente
observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves e
irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento
de medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental (BRASIL.
Ministério do Meio Ambiente. Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento.
Disponível em: <http://www.mma.gov.br>. Acesso em 18 abr. 2011).
O doutrinador Édis Milaré, citando Álvaro Luiz Valery Mirra (2007, p. 768), afirma que
o motivo para a adoção de um posicionamento dessa natureza é simples: em muitas situações, torna-se
verdadeiramente imperativa a cessação de atividades potencialmente degradadoras do meio ambiente,
mesmo diante de controvérsias científicas em relação ao seus efeitos nocivos. Isso porque, segundo
se entende, nessas hipóteses, o dia em que se puder ter certeza absoluta dos efeitos prejudiciais das
atividades questionadas, os danos por elas provocados no meio ambiente e na saúde e segurança da
população terão atingido tamanha amplitude e dimensão que não poderão mais ser revertidos ou
reparados – serão já nessa ocasião irreversíveis.
A premissa adotada pelo princípio da precaução, portanto, é a prevenção de prejuízo ambiental sério e irreversível nas situações de incerteza, que dispensa a toda sociedade
o agir cauteloso, exigindo uma avaliação de custo e benefício que leve em conta a comparação entre realizar e não realizar uma atividade tanto nos aspectos ambientais, como nos
econômicos e sociais.
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1.2.5 Princípios do usuário-pagador e do poluidor-pagador
A utilização dos recursos naturais, comprovadamente finitos, pode exigir uma contribuição pelo usuário, assim como ao poluidor a obrigação de recuperar ou indenizar é
exigível.
A Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, no art. 4º, inciso VII, prevê tanto o princípio do poluidor-pagador quanto do usuário-pagador ao dispor que a Política Nacional do
Meio Ambiente visará “à imposição, ao poluidor e ao predador, da obrigação de recuperar
e/ou indenizar os danos causados, e ao usuário, da contribuição pela utilização de recursos ambientais com fins econômicos”.
O princípio do usuário-pagador é bem colocado por Paulo Machado, ao citar Henri Smets (2004, p. 53), quando diz que
em matéria de proteção do meio ambiente, o princípio do usuário-pagador significa que o utilizador
do recurso deve suportar o conjunto dos custos destinados a tornar possível a utilização do recurso
e os custos advindos de sua própria utilização. Este princípio tem por objetivo fazer com que estes
custos não sejam suportados nem pelos Poderes Públicos, nem por terceiros, mas pelo utilizador. De
outro lado, o princípio não justifica a imposição de taxas que tenham por efeito aumentar o preço
do recurso ao ponto de ultrapassar seu custo real, após levarem-se em conta as externalidades e a
raridade.
O princípio do usuário-pagador é estreitamente ligado ao do poluidor-pagador,
que também ao utilizar os recursos naturais é obrigado a pagar a poluição que pode ser
causada ou que já foi causada por sua atividade, ou seja, paga pela prática econômica desenvolvida em detrimento da qualidade ambiental.
O princípio do poluidor-pagador funda-se no fato de que os bens ambientais são
patrimônio da coletividade e de que seus usos na produção e no consumo acarretam a sua
redução ou degradação, razão pela qual devem ser preservados tanto para as presentes
como para as futuras gerações.
Entretanto, assevera Édis Milaré (2007, p. 771) que
o princípio não objetiva, por certo, tolerar a poluição mediante um preço, nem se limita apenas a
compensar os danos causados, mas sim, precisamente, evitar o dano ao ambiente. Nesta linha, o
pagamento pelo lançamento de efluentes, por exemplo, não alforria condutas inconsequentes, de
modo a ensejar o descarte de resíduos fora dos padrões e das normas ambientais. A cobrança só
pode ser efetuada sobre o que tenha respaldo na lei, pena de se admitir o direito de poluir. Trata-se
do princípio do poluidor-pagador (polui, paga os danos), e não pagador-poluidor (pagou, então pode
poluir). Esta colocação gramatical não deixa margem a equívocos ou ambiguidades na interpretação
do princípio.
Ou seja, ao poluidor necessariamente resulta o dever de recuperar ou, quando não
possível, indenizar os danos causados ao meio ambiente.
Como se pôde depreender da breve exposição dos princípios ambientais, estes são
extremamente importantes, visto que capazes, embora ausente legislação específica, de
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prover soluções, ainda que parciais, para as situações concretas. Não se pode esquecer,
entretanto, que devem ser interpretados em harmonia com os demais princípios da Lei
Fundamental.
2. RESPONSABILIDADE CIVIL – CONCEITOS GERAIS
O termo responsabilidade revela tanto diligência e cuidado como obrigação pelos
atos praticados. A responsabilidade civil é a que impõe ao infrator a obrigação de ressarcir
o prejuízo causado por sua conduta ou atividade.
Maria Helena Diniz (2009, p. 34) define a responsabilidade civil
como a aplicação de medidas que obriguem alguém a reparar dano moral ou patrimonial causado a
terceiros em razão de ato do próprio imputado, de pessoa por quem ele responde, ou de fato de coisa
ou animal sob sua guarda ou, ainda, de simples imposição legal. Definição esta que guarda, em sua
estrutura, a ideia de culpa quando se cogita da existência de ilícito (responsabilidade subjetiva), e a do
risco, ou seja, da responsabilidade sem culpa (responsabilidade objetiva).
A responsabilidade civil, portanto, traduz-se no dever jurídico de reparação de
qualquer dano causado, por ato ilícito ou pelo risco, àquele ou àqueles que arcaram com
os prejuízos.
É importante expor o conceito jurídico dado por Sergio Cavalieri Filho (2008, p. 2)
à responsabilidade civil, quando diz que o vocábulo
designa o dever que alguém tem de reparar o prejuízo decorrente da violação de um outro dever
jurídico. Em apertada síntese, responsabilidade civil é um dever jurídico sucessivo que surge para
recompor o dano decorrente da violação de um dever jurídico originário. Só se cogita, destarte,
de responsabilidade civil onde houver violação de um dever jurídico e dano. Em outras palavras,
responsável é a pessoa que deve ressarcir o prejuízo decorrente da violação de um precedente
dever jurídico. E assim é porque a responsabilidade pressupõe um dever jurídico preexistente, uma
obrigação descumprida.
No direito brasileiro, o Código Civil é o texto legal que trata da responsabilidade
civil entre os arts. 927 e 954. Nestes artigos encontram-se a base do tema.
O art. 927 dispõe que “aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a
outrem, fica obrigado a repará-lo”.
A definição de ato ilícito vem disposta no mencionado art. 186, que dita que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. Este artigo vem
complementado pelo art. 187: “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao
exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social,
pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
A ilicitude da conduta é considerada em dois aspectos, objetivo e subjetivo, bem
expostos por Cavalieri Filho (2008, p. 9-10):
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No aspecto objetivo, leva-se em conta para a configuração da ilicitude apenas a conduta ou fato em
si mesmo, sua materialidade ou exterioridade, e verifica-se a desconformidade dela com a que o
Direito queria. A conduta contrária à norma jurídica, só por si, merece qualificação de ilícita ainda
que não tenha origem numa vontade consciente e livre. (...) No seu aspecto subjetivo, a qualificação
de uma conduta como ilícita implica fazer um juízo de valor a seu respeito – o que só é possível se tal
conduta resultar de ato humano consciente e livre. Por esse enfoque subjetivista, a ilicitude só atinge
sua plenitude quando a conduta contrária ao valor que a norma visa a atingir (ilicitude objetiva)
decorre da vontade do agente; ou, em outras palavras, quando o comportamento objetivamente ilícito
for também culposo.
Portanto, em matéria de responsabilidade civil, avalia-se geralmente a conduta do
agente, qual seja, um encadeamento ou série de atos ou fatos, o que não impede que um
único ato gere por si só o dever de indenizar, impulsionados ou não pela vontade consciente do agente.
Ver-se-á neste trabalho voltado ao direito ambiental a responsabilidade civil fora
do contrato, ou mais propriamente fora do negócio jurídico e em seus dois principais aspectos apontados, responsabilidade civil subjetiva e responsabilidade civil objetiva.
2.1 Requisitos da responsabilidade civil
Convém analisarem-se, para melhor compreensão, os pressupostos da responsabilidade civil, ou seja, os requisitos para a configuração do dever de indenizar: ação ou
omissão voluntária (conduta), relação de causalidade ou nexo causal, dano.
2.1.1 Ação ou omissão (conduta)
Não há dano, ou resultado lesivo, a ser ressarcido sem determinado comportamento humano contrário à ordem jurídica.
A ação, conforme Maria Helena Diniz (2009, p. 40), é o “elemento constitutivo da
responsabilidade, vem a ser o ato humano, comissivo ou omissivo, ilícito ou lícito, voluntário e objetivamente imputável, do próprio agente ou de terceiro, ou o fato de animal ou
coisa inanimada, que cause dano a outrem, gerando o dever de satisfazer ou direitos do
lesado”.
Ou seja, a ação (conduta) é o comportamento humano voluntário que se exterioriza através de uma ação ou omissão, produzindo consequências jurídicas.
A voluntariedade é o “coeficiente essencial da ação” segundo Rui Stoco que, ao citar
Caio Mario da Silva Pereira (2007, p. 130), afirma que
cumpre, todavia, assinalar que se não insere, no contexto de ‘voluntariedade’ o propósito ou a
consciência do resultado danoso, ou seja, a deliberação ou a consciência de causar prejuízo. Esse é um
elemento definidor do dolo. A voluntariedade pressuposta na culpa é a da ação em si mesma. Quando
o agente procede voluntariamente, e sua conduta voluntária implica ofensa ao direito alheio, advém o
que se classifica como procedimento culposo. Atílio Anibal Alterini esclarece-o muito bem: ‘A culpa
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provém de um ato voluntário, isto é, realizado com os necessários elementos internos: discernimento,
intenção e liberdade. Mas a vontade do sujeito, no ato culposo, vai endereçada à sua realização, mas
não à consequência nociva’.
Assim, vê-se que a voluntariedade do agente dirige-se à ação, independentemente
das consequências desta. Como na ação, a omissão também adquire relevância jurídica
quando há um dever jurídico de agir, praticar um ato para impedir o resultado. A voluntariedade aqui dirige-se ao não agir, criando o risco da ocorrência do resultado.
Importante ainda destacar a colocação de Carlos Roberto Gonçalves (2005, p. 36)
sobre a voluntariedade, quando afirma que
a exigência de um fato voluntário na base do dano exclui do âmbito da responsabilidade civil os
danos causados por forças da natureza, bem como os praticados em estado de inconsciência, mas não
os praticados por uma criança ou um demente. Essencial é que a ação ou omissão seja, em abstrato,
controlável ou dominável pela vontade do homem. Fato voluntário equivale a fato controlável ou
dominável pela vontade do homem.
Pelo exposto, conclui-se que o ilícito capaz de configurar a responsabilidade civil
pressupõe uma conduta (ação ou omissão) voluntária do agente violadora da lei (ou de
ato negocial) e causadora de lesão ao direito alheio.
2.1.2 Relação de causalidade (nexo causal)
O nexo causal é o vínculo entre a conduta e o resultado. Segundo Cavalieri Filho
(2008, p. 46),
não basta, portanto, que o agente tenha praticado uma conduta ilícita; tampouco que a vítima tenha
sofrido um dano. É preciso que esse dano tenha sido causado pela conduta ilícita do agente, que
exista entre ambos uma necessária relação de causa e efeito. Em síntese, é necessário que o ato
ilícito seja a causa do dano, que o prejuízo sofrido pela vítima seja resultado desse ato, sem o que a
responsabilidade não ocorrerá a cargo do autor material do fato. Daí a relevância do chamado nexo
causal. (...) O conceito de nexo causal não é jurídico; decorre das leis naturais. É o vínculo, a ligação
ou relação de causa e efeito entre a conduta e o resultado.
A relação de causalidade (nexo causal), portanto, é o liame que se estabelece entre
a injuridicidade da ação e o mal causado. Ausente o nexo causal, o dano não teria sido
causado pela conduta do agente.
No direito penal, quanto ao nexo causal, predomina a teoria da equivalência das
condições, expressa no art. 13 do Código Penal, quando dispõe que “o resultado, de que
depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se
causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido”.
Em sede de responsabilidade civil, entretanto, prevalece a teoria da causalidade
adequada, afirmando Sergio Cavalieri Filho (2008, p. 49) que
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– Marcelo Camargo da Silva –
nem todas as condições que concorrem para o resultado são equivalentes (como no caso da
responsabilidade penal), mas somente aquela que foi a mais adequada a produzir concretamente o
resultado. Além de se indagar se uma determinada condição concorreu concretamente para o evento,
é ainda preciso apurar se, em abstrato, ela era adequada a produzir aquele efeito. Entre duas ou mais
circunstâncias que concretamente concorreram para a produção do resultado, causa adequada será
aquela que teve interferência decisiva.
A respeito do nexo de causalidade, o Ministro Herman Benjamin, citado no julgamento do REsp 1090968/SP pelo relator Ministro Luiz Fux, assevera que
para o fim de apuração do nexo de causalidade no dano ambiental, equiparam-se quem faz, quem
não faz quando deveria fazer, quem deixa fazer, quem não se importa que façam, quem financia
para que façam, e quem se beneficia quando outros fazem. 14. Constatado o nexo causal entre a
ação e a omissão das recorrentes com o dano ambiental em questão, surge, objetivamente, o dever de
promover a recuperação da área afetada e indenizar eventuais danos remanescentes, na forma do art.
14, § 1º, da Lei 6.938/81.(...) (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Primeira Turma. REsp 1090968/
SP. Relator Ministro Luiz Fux. Data do julgamento: 15/06/2010, Data da publicação DJe: 03/08/2010.
Disponível em: <http://www.stj.jus.br>. Acesso em: 18 abr. 2011).
Desse modo, o nexo entre causa e efeito deve estar inequívoco para caracterizar a
responsabilidade civil. Por contrário, ausente o nexo de causalidade, expõe o Tribunal de
Justiça de Santa Catarina:
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. NEXO CAUSAL.
NÃO DEMONSTRAÇÃO. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. RECURSO DESPROVIDO. Para a
caracterização da responsabilidade objetiva do agente público, ensejadora da indenização por dano
patrimonial, é obrigatória a ocorrência de três fatores: o dano, a ação do agente e o nexo causal.
Hipótese em que se afigura inequívoca a ausência de relação de causalidade entre o ato atribuído ao
Município – aquisição de imóvel contíguo ao do autor para a construção de um conjunto habitacional
– e os apregoados danos que ele teria sofrido, em decorrência da paralisação das atividades de
suinocultura em seu imóvel, a qual foi imposta em ação civil pública (BRASIL. Tribunal de Justiça de
Santa Catarina. Apelação Cível nº 2011.002772-5, de Descanso. Primeira Câmara de Direito Público.
Relator: Vanderlei Romer. Data: 19/04/2011. Disponível em: <http://www.tjsc.jus.br>. Acesso em: 18
abr. 2011).
Assim, o nexo causal representa uma relação necessária entre o evento danoso e a
ação que o produziu, de tal sorte que esta é considerada sua causa. Para aferir-se o nexo
causal, portanto, basta que se verifique que o dano não ocorreria se o fato não tivesse
acontecido. Trata-se de uma quaestio facti, e não quaestio iuris, pendente de apreciação
pelo julgador.
2.1.3 Dano
Para haver o direito à indenização ou ressarcimento, necessário existir um dano.
Pode haver responsabilidade sem culpa, mas não pode haver responsabilidade sem dano.
Carlos Roberto Gonçalves, citando Agostinho Alvim (2005, p. 545), assevera que
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– DIREITO AMBIENTAL - RESPONSABILIDADE CIVIL PELOS DANOS, INCLUSIVE MORAL, AO MEIO AMBIENTE –
dano, em sentido amplo, vem a ser a lesão de qualquer bem jurídico, e aí se inclui o dano moral. Mas,
em sentido estrito, dano é, para nós, a lesão do patrimônio; e patrimônio é o conjunto das relações
jurídicas de uma pessoa, apreciáveis em dinheiro. Aprecia-se o dano tendo em vista a diminuição
sofrida no patrimônio. Logo, a matéria do dano prende-se à da indenização, de modo que só interessa
o estudo do dano indenizável.
Em seu sentido amplo, o dano abrange não só o patrimônio, mas a honra, a saúde,
a vida, a imagem, a liberdade, suscetíveis de proteção.
Para que haja dano indenizável, de acordo com Maria Helena Diniz (2009, p. 6567), será imprescindível a ocorrência dos seguintes requisitos:
a) Diminuição ou destruição de um bem jurídico, patrimonial ou moral, pertencente a uma pessoa,
pois a noção de dano pressupõe a do lesado (...).
b) Efetividade ou certeza dos danos, pois a lesão não poderá ser hipotética ou conjetural (...).
c) Causalidade, já que deverá haver uma relação entre a falta e o prejuízo causado, ou seja, o dano
deverá estar encadeado com a causa produzida pelo lesante (...).
d) Subsistência do dano no momento da reclamação do lesado (...).
e) Legitimidade, pois a vítima, para que possa pleitear a reparação, precisará ser titular do direito
atingido (...).
f) Ausência de causas excludentes de responsabilidade, (...) como os causados por caso fortuito, força
maior, ou culpa exclusiva da vítima etc.
O dano, portanto, é uma lesão de um bem jurídico, qualquer que seja a sua natureza, tanto patrimonial como moral.
O dano patrimonial, ou material, vem a ser lesão concreta, atinge os bens integrantes do patrimônio da vítima, apreciáveis economicamente. O dano material subdivide-se
em dano emergente e lucro cessante, previstos nos arts. 402 e 403 do Código Civil, que
assim dispõem:
Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor
abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar.
Art. 403. Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os
prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na
lei processual.
Assim, o dano material, em toda a sua extensão, há de abranger aquilo que efetivamente se perdeu e aquilo que deixou de lucrar, ou seja, o dano emergente e o lucro
cessante.
Dano emergente importa efetiva e imediata diminuição no patrimônio da vítima
em razão do ato ilícito. Tais prejuízos se traduzem num empobrecimento do patrimônio
atual do lesado pela destruição, deterioração, privação do uso e gozo de seus bens existentes no momento do evento danoso e pelos gastos que, em razão da lesão, teve de realizar.
Lucro cessante consiste na perda do ganho esperável, na frustração da expectativa
de lucro, na diminuição do patrimônio da vítima.
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Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 2 • Dez/2011
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Pelo Superior Tribunal de Justiça,
Correspondem os lucros cessantes a tudo aquilo que o lesado razoavelmente deixou de lucrar, ficando
condicionado, portanto, a uma probabilidade objetiva resultante do desenvolvimento normal dos
acontecimentos. A condenação a esse título pressupõe a existência de previsão objetiva de ganhos
na data do inadimplemento da obrigação pelo devedor. No caso, os lucros alegados decorrem de
previsões baseadas em suposta rentabilidade de uma atividade empresarial que nem mesmo se
iniciou. Assim sendo, não se pode deferir reparação por lucros cessantes se estes, em casos como o
dos autos, configuram-se como dano hipotético, sem suporte na realidade em exame, da qual não
se pode ter a previsão razoável e objetiva de lucro, aferível a partir de parâmetro anterior e concreto
capaz de configurar a potencialidade de lucro (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 8464/MS.
Terceira Turma. Relator Ministro Castro Filho e Sidnei Beneti. Data do julgamento: 10/03/2009. Data
da publicação: 22/04/2009. Disponível em: <http://www.stj.jus.br>. Acesso em: 18 abr. 2011).
É esclarecedor o ensinamento esposado em julgamento pelo Tribunal de Justiça de
Santa Catarina:
Para conceder indenização de perdas e danos, o magistrado deverá considerar se houve: dano positivo
ou emergente, que consiste num déficit real e efetivo no patrimônio do credor, isto é, uma concreta
diminuição em sua fortuna, seja porque se depreciou o ativo, seja porque aumentou o passivo, sendo,
pois, imprescindível que o credor tenha, efetivamente, experimentado um real prejuízo, visto que
não são passíveis de indenização danos eventuais ou potenciais. Na condenação relativa a dano
emergente, a indenização poderá processar-se de duas formas: o autor do dano será condenado a
proceder à restauração do bem danificado ou a pagar o valor das obras necessárias a essa reparação. A
indenização relativa ao dano emergente pretende restaurar o patrimônio do lesado no estado em que
anteriormente se encontrava (...) ‘dano negativo ou lucro cessante ou frustrado, alusivo à privação de
um ganho pelo credor, ou seja, ao lucro que ele deixou de auferir, em razão do descumprimento da
obrigação pelo devedor. Para se computar o lucro cessante, a mera possibilidade é insuficiente, embora
não se exija uma certeza absoluta, de forma que o critério mais acertado estaria em condicioná-lo a
uma probabilidade objetiva, resultante do desenvolvimento normal dos acontecimentos conjugado às
circunstâncias peculiares ao caso concreto’ (Maria Helena Diniz. Curso de Direito Civil Brasileiro. 2.
v., p. 378) (BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação Cível n. 2000.019718, de Tubarão.
Primeira Câmara de Direito Civil. Relator: Maria do Rocio Luz Santa Ritta. Data: 04/10/2005.
Disponível em: <http://www.tjsc.jus.br>. Acesso em: 18 abr. 2011).
O dano moral, por sua vez, vem a ser a lesão de interesses não patrimoniais de pessoa física ou jurídica provocada pelo fato lesivo.
A Constituição Federal de 1988, ao apontar “a dignidade da pessoa humana” como
um dos fundamentos da República Federativa (art. 1º, inciso III), optou por uma filosofia
humanista e, ao assegurar o direito à reparação pelo dano moral, tornou prática e eficaz a
proteção à pessoa humana. Eis o teor do art. 5º, inciso X, da Lei Maior: “X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à
indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
Carlos Roberto Gonçalves, citando Zannoni (2005, p. 566), assevera que
o dano moral direto consiste na lesão a um interesse que visa a satisfação ou gozo de um bem
jurídico extrapatrimonial contido nos direitos da personalidade (como a vida, a integridade corporal,
a liberdade, a honra, o decoro, a intimidade, os sentimentos afetivos, a própria imagem) ou nos
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– DIREITO AMBIENTAL - RESPONSABILIDADE CIVIL PELOS DANOS, INCLUSIVE MORAL, AO MEIO AMBIENTE –
atributos da pessoa (como o nome, a capacidade, o estado de família). O dano moral indireto consiste
na lesão a um interesse tendente à satisfação ou gozo de bens jurídicos patrimoniais, que produz
um menoscabo a um bem extrapatrimonial, ou melhor, é aquele que provoca prejuízo a qualquer
interesse não patrimonial, devido a uma lesão a um bem patrimonial da vítima. Deriva, portanto, do
fato lesivo a um interesse patrimonial (El daño, cit. p. 239 e 240). É a hipótese, por exemplo, da perda
de objeto de valor afetivo.
Dano moral, portanto, é a dor, vexame, sofrimento ou humilhação que, fugindo
da normalidade, interfira de forma intensa no comportamento psicológico do indivíduo,
causando-lhe aflições, angústia e desequilíbrio em seu bem-estar.
Questões relevantes acerca do dano moral são a sua prova e sua fixação, vista a dificuldade para se apurar o valor correspondente, ou seja, quantificá-lo.
Silvio de Salvo Venosa (2007, p. 41), no entanto, aponta questões primordiais para
tanto, ao manifestar que
a prova do dano moral, por se tratar de aspecto imaterial, deve lastrear-se em pressupostos diversos
do dano material. Não há, como regra geral, avaliar por testemunhas ou mensurar em perícia a dor
pela morte, pela agressão moral, pelo desconforto anormal ou pelo desprestígio social. Valer-se-á o
juiz, sem dúvida, de máximas da experiência. Por vezes, todavia situações particulares exigirão exame
probatório das circunstâncias em torno da conduta do ofensor e da personalidade da vítima. A razão
da indenização do dano moral reside no próprio ato ilícito. Deverá ser levada em conta também, para
estabelecer o montante da indenização, a condição social e econômica dos envolvidos. O sentido
indenizatório será mais amplamente alcançado à medida que economicamente fizer algum sentido
tanto para o causador do dano como para a vítima. O montante da indenização não pode nem ser
caracterizado como esmola ou donativo, nem como premiação. Ressalte-se que uma das objeções
que se fazia no passado contra a reparação dos danos morais era justamente a dificuldade de sua
mensuração. O fato de ser complexo o arbitramento do dano, porém, em qualquer campo, não é razão
para repeli-lo.
Conquanto tormentosa sua quantificação, o dano moral, como ato ilícito e prejudicial, não pode deixar de ser indenizado.
Analisados os requisitos essenciais da responsabilidade civil, vejamos suas duas
principais espécies, responsabilidade civil subjetiva e responsabilidade civil objetiva.
2.2 Responsabilidade civil subjetiva
Na responsabilidade civil subjetiva, regra geral no ordenamento jurídico brasileiro
(art. 186, do Código Civil), além dos requisitos supramencionados, o dever de reparação
pressupõe uma conduta culposa do agente, caracterizada tanto pelo dolo como pela culpa.
O dolo é a vontade consciente de violar o direito, dirigida à consecução do fim
ilícito, e a culpa abrange a imperícia, a negligência e a imprudência. A imperícia é falta de
habilidade ou inaptidão para praticar certo ato; a negligência é a inobservância de normas
que nos ordenam agir com atenção, capacidade, solicitude e discernimento; e a imprudência é precipitação ou ato de proceder sem cautela.
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De acordo com Maria Helena Diniz (2009, p. 42),
a culpa em sentido amplo, como violação de um dever jurídico, imputável a alguém, em decorrência
de fato intencional ou de omissão de diligência ou cautela, compreende: o dolo, que é a violação
intencional do dever jurídico, e a culpa em sentido estrito, caracterizada pela imperícia, imprudência
ou negligência, sem qualquer deliberação de violar um dever. Portanto, não se reclama que o ato
danoso tenha sido, realmente, querido pelo agente, pois ele não deixará de ser responsável pelo fato
de não se ter apercebido do seu ato nem medido as suas consequências.
Portanto, no campo da responsabilidade civil subjetiva, tanto o dolo como a culpa,
independentemente de seu grau, caracterizam a obrigação de indenizar.
A jurisprudência do TJSC assevera que
Os elementos constitutivos da teoria subjetiva são o dano (elemento ou requisito essencial na
etiologia da responsabilidade civil, pois onde não há prejuízo, não há responsabilidade civil), a culpa
ou o dolo (elemento fundamental da teoria subjetiva, sendo a culpa considerada a infração de uma
obrigação preexistente, de que a lei ordena a reparação quando causou um dano a outrem, e o dolo a
vontade consciente de violar o direito, dirigindo à consecução do fim ilícito) e o nexo de causalidade
(relação necessária entre o evento danoso e ação que o produziu) (BRASIL. Tribunal de Justiça de
Santa Catarina. Apelação Cível n. 2007.009027-5, de Urussanga. Segunda Câmara de Direito Público.
Relator: Ricardo Roesler. Data: 03/02/2009. Disponível em: <http://www.tjsc.jus.br>. Acesso em: 18
abr. 2011).
A responsabilidade civil subjetiva, então, possui como elementos basilares à sua caracterização a ação ou omissão do sujeito ativo, a vítima como sujeito passivo, a existência
de um dano sofrido por essa vítima, bem como o nexo de causalidade entre o causador do
dano e a vítima, desde que verificado culpa ou dolo do agente.
2.3 Responsabilidade civil objetiva
A responsabilidade civil objetiva, também chamada de responsabilidade pelo risco,
requer igualmente estejam presentes os requisitos expostos anteriormente, ou seja, uma
conduta ilícita, o dano e o nexo causal.
Entretanto, desnecessário o elemento culpa (ou dolo), por isso responsabilidade
independentemente de culpa.
Conquanto textos legislativos anteriores prevejam a responsabilidade objetiva, esta
foi consagrada pelo novo Código Civil, que no parágrafo único do art. 927 dispôs: “Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em
lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por
sua natureza, risco para os direitos de outrem”.
Buscando os fundamentos da responsabilidade objetiva, os doutrinadores expõem
a teoria do risco. A respeito, Carlos Roberto Gonçalves (2005, p. 22) expõe:
uma das teorias que procuram justificar a responsabilidade objetiva é a teoria do risco. Para esta
teoria, toda pessoa que exerce alguma atividade cria um risco de dano para terceiros. E deve ser
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– DIREITO AMBIENTAL - RESPONSABILIDADE CIVIL PELOS DANOS, INCLUSIVE MORAL, AO MEIO AMBIENTE –
obrigada a repará-lo, ainda que sua conduta seja isenta de culpa. A responsabilidade civil desloca-se
da noção de culpa para a ideia de risco, ora encarada como ‘risco-proveito’, que se funda no princípio
segundo o qual é reparável o dano causado a outrem em consequência de uma atividade realizada em
benefício do responsável (ubi emolumentum, ibi onus); ora mais genericamente como ‘risco-criado’, a
que se subordina todo aquele que, sem indagação de culpa, expuser alguém a suportá-lo.
Resumidamente, a teoria do risco dispensa qualquer juízo de valor sobre a culpa do
responsável, que é aquele que materialmente causou o dano, bastando evidenciar-se que
entre o fato e o dano esteja presente o nexo de causalidade.
Rebatendo as críticas doutrinárias à teoria do risco, Cavalieri Filho (2008, p. 139)
assevera que
as críticas não procedem. Se risco é perigo, é mera probabilidade de dano, não basta o risco para
gerar a obrigação de indenizar. Ninguém responde por coisa alguma só porque exerce atividade de
risco, muitas vezes até socialmente necessária. Também aqui será necessário violar dever jurídico.
A responsabilidade surge quando a atividade perigosa causa dano a outrem, o que evidencia que
também em sede de responsabilidade objetiva o dever de indenizar tem por fundamento a violação
de um dever jurídico, qual seja, o dever de segurança, que se contrapõe ao risco.
E, para arrematar, segue o ilustre doutrinador
com efeito, quem se dispõe a exercer alguma atividade perigosa terá que fazê-lo com segurança, de
modo a não causar dano a ninguém, sob pena de ter que por ele responder independentemente de
culpa. Aí está, em nosso entender, a síntese da responsabilidade objetiva. Se, de um lado, a ordem
jurídica garante a liberdade de ação, a livre iniciativa etc., de outro, garante também a plena e absoluta
proteção do ser humano. Há um direito subjetivo à segurança cuja violação justifica a obrigação de
reparar o dano sem nenhum exame psíquico ou mental da conduta do seu autor. Na responsabilidade
objetiva, portanto, a obrigação de indenizar parte da ideia de violação do direito de segurança da
vítima.
No direito ambiental, ou melhor, pelos danos causados ao meio ambiente, adiantase, o dever de indenizá-los é regido pela responsabilidade civil objetiva.
3. REPARAÇÃO CIVIL PELO DANO AMBIENTAL
A fim de melhor compreensão do tema, necessário inicialmente especificar o dano
ambiental.
3.1 Dano ambiental
Dano, como visto anteriormente, é toda ofensa a bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica, patrimonial ou extrapatrimonial. Dano ambiental é dano ao
meio ambiente.
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Conquanto não haja definição legal específica de dano ambiental, a Lei nº 6.938, de
31/8/1981, elucidou suas características básicas no art. 3º, incisos II e III, dispondo o que
se entende por degradação e poluição ao meio ambiente:
II – degradação da qualidade ambiental, a alteração adversa das características do
meio ambiente;
III – poluição, a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que
direta ou indiretamente:
a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população;
b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas;
c) afetem desfavoravelmente a biota;
d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente;
e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos.
A degradação da qualidade ambiental e a poluição, como se vê, formam de maneira
conjunta a ideia de dano ambiental.
José Rubens Morato Leite (2003, p. 104) conclui que
o dano ambiental deve ser compreendido como toda lesão intolerável causada por qualquer ação
humana (culposa ou não) ao meio ambiente, diretamente, como macrobem de interesse da
coletividade, em uma concepção totalizante, e indiretamente, a terceiros, tendo em vista interesses
próprios e individualizáveis e que refletem no macrobem.
Por sua vez, José Afonso da Silva (2010, p. 302) assevera que “dano ecológico é
qualquer lesão ao meio ambiente causada por condutas ou atividades de pessoa física
ou jurídica de Direito Público ou de Direito Privado”. Esse conceito, segundo o autor,
harmoniza-se com a Constituição Federal, que prevê no art. 225, § 3º, que “as condutas e
atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas
ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”.
A proteção ao meio ambiente dada pela Constituição da República (art. 225), em
verdade, significa a proteção da própria vida, que exige a natureza saudável, apta a fornecer à geração atual e às futuras os recursos necessários à sobrevivência e desenvolvimento.
Para tanto, necessária a prevenção e/ou repressão à causação do dano ambiental, resultante de atividade que direta ou indiretamente prejudique a saúde, a segurança e o bem-estar
da população, ou crie condições adversas às atividades sociais e econômicas, ou afete as
condições vitais, estéticas ou sanitárias do meio ambiente; ou, finalmente, lance matérias
ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos.
Conforme entendimento jurisprudencial catarinense,
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– DIREITO AMBIENTAL - RESPONSABILIDADE CIVIL PELOS DANOS, INCLUSIVE MORAL, AO MEIO AMBIENTE –
O dano ambiental, propriamente dito, específico e autônomo, pelo seu caráter difuso, não se
confundindo com o dano patrimonial individual, identifica-se com o grau de malignidade social
que emerge do uso, manipulação e fruição inadequados dos bens da vida de que se vale o homem
para satisfação de suas conveniências (BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação Cível
n. 1996.002013-6, de Biguaçu. Segunda Câmara de Direito Comercial. Relator: Cesar Abreu. Data:
10/09/1998. Disponível em: <http://www.tjsc.jus.br>. Acesso em: 18 abr. 2011).
O dano ao meio ambiente, assim, pode ser considerado como qualquer forma de
degradação/poluição àquele, que coloque em perigo as condições para a vida humana,
tanto para as presentes como para as futuras gerações.
Em vista disso, a supressão ou o prejuízo ambiental comporta a devida reparação.
3.2 Responsabilidade civil pelo dano ambiental
A responsabilidade civil pressupõe prejuízo a terceiro, ensejando pedido de reparação do dano, consistente na recomposição do status que ante (obrigação de fazer) ou
numa importância em dinheiro (indenização = obrigação de dar).
O fundamento básico que impõe a responsabilidade no âmbito ambiental está no
art. 225, § 3º, da Carta Federal, que dispõe: “§ 3º. As condutas e atividades consideradas
lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções
penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.”
A Lei nº 6.938, de 31/8/1981, mais abrangente, prevê a responsabilização objetiva
pelos danos ambientais, cujo art. 14 correspondente transcreve-se:
Art. 14 - Sem prejuízo das penalidades definidas pela legislação federal, estadual e municipal, o
não cumprimento das medidas necessárias à preservação ou correção dos inconvenientes e danos
causados pela degradação da qualidade ambiental sujeitará os transgressores:
I - à multa simples ou diária, nos valores correspondentes, no mínimo, a 10 (dez) e, no máximo,
a 1.000 (mil) Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional – ORTNs, agravada em casos de
reincidência específica, conforme dispuser o regulamento, vedada a sua cobrança pela União se já
tiver sido aplicada pelo Estado, Distrito Federal, Territórios ou pelos Municípios;
II - à perda ou restrição de incentivos e benefícios fiscais concedidos pelo Poder Público;
III - à perda ou suspensão de participação em linhas de financiamento em estabelecimentos oficiais
de crédito;
IV - à suspensão de sua atividade.
§ 1º Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado,
independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio
ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá
legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio
ambiente.
§ 2º No caso de omissão da autoridade estadual ou municipal, caberá ao Secretário do Meio Ambiente
a aplicação das penalidades pecuniárias prevista neste artigo.
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§ 3º Nos casos previstos nos incisos II e III deste artigo, o ato declaratório da perda, restrição ou
suspensão será atribuição da autoridade administrativa ou financeira que concedeu os benefícios,
incentivos ou financiamento, cumprindo resolução do CONAMA.
§ 4º (Revogado pela Lei nº 9.966, de 2000).
§ 5º A execução das garantias exigidas do poluidor não impede a aplicação das obrigações de
indenização e reparação de danos previstas no § 1º deste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.284, de
2006).
No parágrafo primeiro, conforme transcrito, incide a responsabilidade do poluidor
em indenizar e/ou reparar os danos causados ao meio ambiente e aos terceiros afetados
por sua atividade, independentemente da existência da culpa. Não se aprecia, dessa forma, subjetivamente a conduta do poluidor, mas a ocorrência do resultado prejudicial ao
homem e seu ambiente.
Paulo Affonso Leme Machado (2004, p. 326-327) afirma que
a responsabilidade objetiva ambiental significa que quem danificar o ambiente tem o dever jurídico de
repará-lo. Presente, pois, o binômio dano/reparação. Não se pergunta a razão da degradação para que
haja o dever de indenizar e/ou reparar. A responsabilidade sem culpa tem incidência na indenização
ou na reparação dos ‘danos causados ao meio ambiente e aos terceiros afetados por sua atividade’ (art.
14, § 1º, da Lei 6.938). Não interessa que tipo de obra ou atividade seja exercida pelo que degrada, pois
não há necessidade de que ela apresente risco ou seja perigosa. Procura-se quem foi atingido e, se for o
meio ambiente e o homem, inicia-se o processo lógico-jurídico da imputação civil objetiva ambiental.
Só depois é que se entrará na fase do estabelecimento do nexo de causalidade entre a ação ou omissão
e o dano. É contra o Direito enriquecer-se ou ter lucro à custa da degradação do meio ambiente.
A responsabilidade civil ambiental independe, pois, da existência de culpa e se funda na ideia de que a pessoa que cria o risco deve reparar os danos advindos de seu empreendimento. Funda-se a responsabilidade pelo dano ambiental na teoria do risco da atividade,
na qual, para que se possa pleitear a reparação do dano, basta a demonstração do evento
danoso e do nexo de causalidade. A ação, da qual a teoria da culpa faz depender a responsabilidade pelo resultado, é substituída, aqui, pela assunção do risco em provocá-lo.
Paulo Machado (2004, p. 327), acerca da adoção da responsabilidade objetiva pelo
dano ambiental, arremata:
repara-se por força do Direito Positivo e, também, por um princípio de Direito Natural, pois
não é justo prejudicar nem os outros e nem a sim mesmo. Facilita-se a obtenção da prova da
responsabilidade, sem se exigir a intenção, a imprudência e a negligência para serem protegidos bens
de alto interesse de todos e cuja lesão ou destruição terá consequências não só para a geração presente,
como para a geração futura. Nenhum dos poderes da República, ninguém, está autorizado, moral ou
constitucionalmente, a concordar ou a praticar uma transação que acarrete a perda de chance de vida
e de saúde das gerações.
À responsabilização pelo dano ambiental é irrelevante, inclusive, a demonstração
da legalidade do ato praticado. Carlos Roberto Gonçalves, ao citar Nelson Nery Junior
(2005, p. 88-89), expõe que
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– DIREITO AMBIENTAL - RESPONSABILIDADE CIVIL PELOS DANOS, INCLUSIVE MORAL, AO MEIO AMBIENTE –
ainda que haja autorização da autoridade competente, ainda que a emissão esteja dentro dos padrões
estabelecidos pelas normas de segurança, ainda que a indústria tenha tomado todos os cuidados para
evitar o dano, se ele ocorreu em virtude da atividade do poluidor, há o nexo causal que faz nascer o
dever de indenizar.
A licença ambiental, por exemplo, não libera o empreendedor licenciado de seu
dever de reparar o dano ambiental. Essa licença, se integralmente regular, retira o caráter
de ilicitude administrativa do ato, mas não afasta a responsabilidade civil de reparar. A
ausência de ilicitude administrativa irá impedir a própria Administração Pública de sancionar o prejuízo ambiental, mas nem por isso haverá irresponsabilidade civil.
A responsabilidade civil no direito ambiental não estabelece apenas a obrigação de
indenizar os danos provocados, obriga também, até de forma primordial, a recuperação
ou restauração do meio ambiente danificado.
O art. 225, § 1º, inciso I, da Constituição Federal incumbe ao devastador, nele incluído o Poder Público, o dever de “restaurar os processos ecológicos essenciais e prover
o manejo ecológico das espécies e ecossistemas”. No § 3º do mesmo preceito, é aduzida a
imposição de “reparar os danos causados”, que se aplica independentemente da aplicação
de sanções penais ou administrativas.
O art. 4º, inciso VII, da Lei nº 6.938, já citada, estabelece ao poluidor a obrigação
de recuperar e/ou indenizar os danos ao meio ambiente, ao impor “ao poluidor e ao predador, da obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados (...)”.
Édis Milaré (2007, p. 817), acerca da importância da restauração do meio ambiente
antes da simples indenização em dinheiro, afirma que
a modalidade ideal – e a primeira que deve ser tentada, mesmo que mais onerosa – é a restauração
natural do bem agredido, cessando-se a atividade lesiva e repondo-se a situação ao status anterior ao
dano, ou adotando-se medida compensatória equivalente. É, pois, imperioso que o aplicador da lei
atente para essa constatação, já que não são poucas as hipóteses em que ‘não basta indenizar, mas
fazer cessar a causa do mal, pois um carrinho de dinheiro não substitui o sono recuperador, a saúde
dos brônquios ou a boa formação do feto’. Esta opção, verdadeira execução específica, vem claramente
defendida no Direito brasileiro, inclusive no campo constitucional.
Aponta o autor duas formas de restauração natural do meio ambiente, restauração ecológica e a compensação ecológica. “No primeiro caso, visa-se à reintegração ou
recuperação, in situ, dos bens afetados. No segundo, o objetivo é a substituição dos bens
lesados por outros funcionalmente equivalentes” (idem, p. 818). Não sendo viável a recuperação in natura, aí sim é que se admite a indenização pecuniária.
O direito ambiental, portanto, engloba as duas funções da responsabilidade civil
objetiva: a função preventiva – procurando, por meios eficazes, evitar o dano – e a função
reparadora – tentando reconstruir e/ou indenizar os prejuízos ocorridos.
Diante das diversas realidades ambientais e da própria diversidade das situações
concretas, necessário que se estabeleça um critério aberto para a apuração dos danos am78
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– Marcelo Camargo da Silva –
bientais, pois, desta forma, é possível que sejam criados mecanismos, caso a caso, capazes
de estabelecer uma reparação adequada ao meio ambiente degradado.
Dessa maneira, configurado o dano ambiental e a existência de relação de causalidade entre sua ocorrência e a fonte poluidora, independentemente da existência de culpa,
o dano ecológico deve ser inteiramente recuperado ou mesmo indenizado.
3.2.1 Dano moral ambiental
O dano moral, como exposto no capítulo anterior, é o dano imaterial ou não patrimonial (extrapatrimonial). A princípio, é insusceptível de avaliação pecuniária, podendo
apenas ser compensado com a obrigação pecuniária imposta ao causador do dano, sendo
esta mais uma satisfação do que uma indenização.
O dano ambiental, por sua vez, pode ser compreendido como sendo o prejuízo
causado a todos os recursos ambientais indispensáveis para a garantia de um meio ecologicamente equilibrado, provocando a degradação e, consequentemente, o desequilíbrio
ecológico. O dano ambiental, assim como o dano, tanto pode ser patrimonial como moral. É considerado dano ambiental patrimonial quando há a obrigação de uma reparação
a um bem ambiental lesado, que pertence a toda a sociedade. O dano moral ambiental,
por sua vez, tem ligação com todo prejuízo que não seja econômico, causado à coletividade, em razão da lesão ao meio ambiente.
A Constituição Federal, ao asseverar que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”, impõe, tanto ao Poder Público quanto para a coletividade, o
dever de defendê-lo e preservá-lo.
Conquanto haja divergência doutrinária e jurisprudencial quanto à possibilidade
de dano moral em razão de danos ambientais, inviável não reconhecê-lo sob a ótica dos
princípios do direito ambiental e da própria Constituição Federal. Estes princípios determinam o dever efetivo de defesa e preservação do meio ambiente, seja pelo Poder Público
como toda a coletividade, razão por que qualquer ofensa àquele bem, portanto, deve ser
indenizada, inclusive o dano moral ou extrapatrimonial.
Sobre a importância do reconhecimento do dano extrapatrimonial ambiental, José
Rubens Morato Leite (2003, p. 267) afirma que
não seria justo supor-se que uma lesão à honra de determinado grupo fique sem reparação, ao passo
que, se a honra de cada um dos indivíduos deste grupo for afetada isoladamente, os danos serão
passíveis de indenização. Redundaria em contrassenso inadmissível. Constata-se que a necessidade
da imposição do dano extrapatrimonial é imperiosa, pois, em muitos casos, será impossível o
ressarcimento patrimonial, e a imposição do dano extrapatrimonial ambiental funcionará como
alternativa válida da certeza da sanção civil do agente, em face da lesão ao patrimônio ambiental
coletivo.
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– DIREITO AMBIENTAL - RESPONSABILIDADE CIVIL PELOS DANOS, INCLUSIVE MORAL, AO MEIO AMBIENTE –
Nosso ordenamento, ademais, prevê expressamente a possibilidade de responsabilidade por danos morais ao meio ambiente no art. 1º da Lei nº 7.347, de 24/7/1985 (Ação
Civil Pública), ao dispor que
Art. 1º. Regem-se pelas disposições desta lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade
por danos morais e patrimoniais causados:
I – ao meio ambiente;
(...)
O dano moral/extrapatrimonial ambiental difere, no entanto, do dano moral individual sofrido pelas pessoas, visto que aquele é de toda uma coletividade. O dano moral
coletivo, aliás, é definido em julgado do STJ, relatado pela ministra Eliana Calmon, que
dispõe:
1. O dano moral coletivo, assim entendido o que é transindividual e atinge uma classe específica ou
não de pessoas, é passível de comprovação pela presença de prejuízo à imagem e à moral coletiva
dos indivíduos enquanto síntese das individualidades percebidas como segmento, derivado de uma
mesma relação jurídica-base. 2. O dano extrapatrimonial coletivo prescinde da comprovação de dor,
de sofrimento e de abalo psicológico, suscetíveis de apreciação na esfera do indivíduo, mas inaplicável
aos interesses difusos e coletivos. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1057274/RS. Segunda
Turma. Relator(a) Ministra ELIANA CALMON. Data do Julgamento 01/12/2009. Data da Publicação/
Fonte DJe 26/02/2010. Disponível em: <http://www.stj.jus.br>. Acesso em: 18 abr. 2011).
O dano moral ambiental tem ligação com todo o prejuízo que não seja econômico,
causado à coletividade, em razão da lesão ao meio ambiente. Américo Luis Martins da
Silva (2004, p. 720-721) pondera que
os danos morais ambientais difusos ou coletivos são aqueles que, independentemente da repercussão
física no patrimônio ambiental, decorrem da ofensa ao sentimento difuso ou coletivo, ou seja,
quando a agressão ao meio ambiente constituir dor, sofrimento ou desgosto de uma comunidade
e não apenas de um único indivíduo. Podemos citar como exemplo de danos morais ambientais
difusos ou coletivos, o fato de o dano a uma determinada paisagem causar impacto no sentimento
da comunidade (sentimento difuso) da região onde ele ocorreu; o fato de haver supressão de certas
árvores na zona urbana, ou de mata próxima ao perímetro urbano, quando tais áreas forem objeto de
especial apreço pela coletividade etc.
Entretanto, o autor coloca que
o requisito da existência do dano moral ambiental difuso ou coletivo é, justamente, haver comoção
popular localizada ou identificável, bem como ofensa ao sentimento coletivo causada pela agressão
ao meio ambiente. Outrossim, a unanimidade da comunidade ou do grupo social não é condição sine
que non para caracterização do dano moral ambiental difuso ou coletivo; basta, pois, que a agressão
ambiental provoque sentimento negativo disperso em considerável número de pessoas.
Para arrematar, José Leite (2003, p. 293-294) assevera que o dano ao meio ambiente
é também um dano à personalidade num caráter difuso, ao afirma que
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– Marcelo Camargo da Silva –
este direito de personalidade de caráter difuso tem como traço marcante a união indeterminada
dos sujeitos, trazendo uma certa comunhão de interesses, pois quando há dano, esse atinge toda a
coletividade, de forma indiscriminada. Ademais, não há como dissociar o meio ambiente equilibrado
da qualidade de vida, posto que meio ambiente deteriorado, ou não preservado, redunda em
diminuição de um valor referente a uma expectativa de vida sadia, causando sensação negativa e
perda em seu sentido coletivo da personalidade, consistente em um dano extrapatrimonial.
Nesse contexto, havendo previsão expressa que possibilite a busca da responsabilidade pelos danos morais ao meio ambiente (Lei nº 7.347, art. 1º, inciso I) e especialmente
observando-se os princípios do direito ambiental e constitucionais aplicáveis, o dano moral ambiental não pode deixar de ser reconhecido pelos magistrados e tribunais do país.
O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um dos novos direitos
do homem que faz com que surja uma figura social, menos pessoa singular e mais coletiva. Dessa forma, inevitável que se deverá analisar a repercussão do dano na coletividade
diretamente afetada e, por consequência, determinar-se quanto possível à recuperação ao
meio ambiente degradado e a indenizar os prejuízos tanto patrimoniais como extrapatrimoniais.
3.3 Entendimento jurisprudencial acerca do dano ambiental e sua
responsabilização civil
Exposta a teoria referente ao tema proposto, importante demonstrar-se sua aplicação nos casos concretos que se apresentam à sociedade.
Os Tribunais pátrios vêm reconhecendo e manifestando-se sobre a responsabilidade civil pelo dano ambiental e observar a jurisprudência é da maior relevância ao aplicador do direito.
Destacam-se aqui importantes e esclarecedores julgados sobre o tema proferidos
pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina.
Pelo Superior Tribunal de Justiça:
a) A primeira Turma do STJ, no julgamento do REsp 1090968/SP, cujo relator foi o
Ministro LUIZ FUX, julgado em 15/6/2010, manifestou-se sobre a espécie de responsabilidade no direito ambiental (objetiva), nos seguintes termos:
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. DANOS AMBIENTAIS. AÇÃO CIVIL PÚBLICA.
RESPONSABILIDADE DO ADQUIRENTE. TERRAS RURAIS. RECOMPOSIÇÃO. MATAS.
TEMPUS REGIT ACTUM. AVERBAÇÃO PERCENTUAL DE 20%. SÚMULA 07 STJ. 1. A
responsabilidade pelo dano ambiental é objetiva, ante a ratio essendi da Lei 6.938/81, que em seu art.
14, § 1º, determina que o poluidor seja obrigado a indenizar ou reparar os danos ao meio-ambiente
e, quanto ao terceiro, preceitua que a obrigação persiste, mesmo sem culpa. Precedentes do STJ:RESP
826976/PR, Relator Ministro Castro Meira, DJ de 01.09.2006; AgRg no Resp 504626/PR, Relator
Ministro Francisco Falcão, DJ de 17.05.2004; RESP 263383/PR, Relator Ministro João Otávio de
Noronha, DJ de 22.08.2005 e EDcl no AgRg no RESP 255170/SP, desta relatoria, DJ de 22.04.2003. 2.
A obrigação de reparação dos danos ambientais é propter rem, por isso que a Lei 8.171/91 vigora para
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– DIREITO AMBIENTAL - RESPONSABILIDADE CIVIL PELOS DANOS, INCLUSIVE MORAL, AO MEIO AMBIENTE –
todos os proprietários rurais, ainda que não sejam eles os responsáveis por eventuais desmatamentos
anteriores, máxime porque a referida norma referendou o próprio Código Florestal (Lei 4.771/65)
que estabelecia uma limitação administrativa às propriedades rurais, obrigando os seus proprietários
a instituírem áreas de reservas legais, de no mínimo 20% de cada propriedade, em prol do interesse
coletivo. Precedente do STJ: RESP 343.741/PR, Relator Ministro Franciulli Netto, DJ de 07.10.2002.
3. Consoante bem pontuado pelo Ministro Herman Benjamin, no REsp nº 650728/SC, 2ª Turma,
unânime: ‘(...) 11. É incompatível com o Direito brasileiro a chamada desafetação ou desclassificação
jurídica tácita em razão do fato consumado. 12. As obrigações ambientais derivadas do depósito ilegal
de lixo ou resíduos no solo são de natureza propter rem, o que significa dizer que aderem ao título e se
transferem ao futuro proprietário, prescindindo-se de debate sobre a boa ou má-fé do adquirente, pois
não se está no âmbito da responsabilidade subjetiva, baseada em culpa. 13. Para o fim de apuração
do nexo de causalidade no dano ambiental, equiparam-se quem faz, quem não faz quando deveria
fazer, quem deixa fazer, quem não se importa que façam, quem financia para que façam, e quem se
beneficia quando outros fazem. 14. Constatado o nexo causal entre a ação e a omissão das recorrentes
com o dano ambiental em questão, surge, objetivamente, o dever de promover a recuperação da
área afetada e indenizar eventuais danos remanescentes, na forma do art. 14, § 1°, da Lei 6.938/81.
(...)’. DJ 02/12/2009. 4. Paulo Affonso Leme Machado, em sua obra Direito Ambiental Brasileiro,
ressalta que ‘(...)A responsabilidade objetiva ambiental significa que quem danificar o ambiente tem
o dever jurídico de repará-lo. Presente, pois, o binômio dano/reparação. Não se pergunta a razão
da degradação para que haja o dever de indenizar e/ou reparar. A responsabilidade sem culpa tem
incidência na indenização ou na reparação dos ‘danos causados ao meio ambiente e aos terceiros
afetados por sua atividade’ (art. 14, § III, da Lei 6.938/81). Não interessa que tipo de obra ou atividade
seja exercida pelo que degrada, pois não há necessidade de que ela apresente risco ou seja perigosa.
Procura-se quem foi atingido e, se for o meio ambiente e o homem, inicia-se o processo lógicojurídico da imputação civil objetiva ambienta!. Só depois é que se entrará na fase do estabelecimento
do nexo de causalidade entre a ação ou omissão e o dano. É contra o Direito enriquecer-se ou ter
lucro à custa da degradação do meio ambiente. O art. 927, parágrafo único, do CC de 2002, dispõe:
‘Haverá obrigarão de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou
quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco
para os direitos de outrem’. Quanto à primeira parte, em matéria ambiental, já temos a Lei 6.938/81,
que instituiu a responsabilidade sem culpa. Quanto à segunda parte, quando nos defrontarmos com
atividades de risco, cujo regime de responsabilidade não tenha sido especificado em lei, o juiz analisará,
caso a caso, ou o Poder Público fará a classificação dessas atividades. ‘É a responsabilidade pelo risco
da atividade’. Na conceituação do risco aplicam-se os princípios da precaução, da prevenção e da
reparação. Repara-se por força do Direito Positivo e, também, por um princípio de Direito Natural,
pois não é justo prejudicar nem os outros e nem a si mesmo. Facilita-se a obtenção da prova da
responsabilidade, sem se exigir a intenção, a imprudência e a negligência para serem protegidos bens
de alto interesse de todos e cuja lesão ou destruição terá consequências não só para a geração presente,
como para a geração futura. Nenhum dos poderes da República, ninguém, está autorizado, moral
e constitucionalmente, a concordar ou a praticar uma transação que acarrete a perda de chance de
vida e de saúde das gerações(...)’ in Direito Ambiental Brasileiro, Malheiros Editores, 12ª ed., 2004, p.
326-327. 5. A Constituição Federal consagra em seu art. 186 que a função social da propriedade rural
é cumprida quando atende, seguindo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, a requisitos
certos, entre os quais o de ‘utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do
meio ambiente’ 6. A adoção do princípio tempus regit actum, impõe obediência à lei em vigor quando
da ocorrência do fato. 7. In casu, os fatos apurados como infração ambiental ocorreram no ano de
1997, momento em que já se encontrava em vigor o Código Florestal Lei nº 4.771/65, não havendo
que se perquirir quanto à aplicação do Decreto nº 23.793/94, que inclusive foi revogado por aquela lei.
8. O Recurso Especial não é servil ao exame de questões que demandam o revolvimento do contexto
fático-probatório dos autos, em face do óbice contido na Súmula 07/STJ. 9. In casu, a verificação
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Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 2 • Dez/2011
– Marcelo Camargo da Silva –
da comprovação de que a propriedade não atinge o mínimo de 20% de área coberta por reserva
legal, bem como a exploração de florestas por parte do proprietário, implicaria o revolvimento de
matéria fática-probatória, o que é interditado a esta Corte Superior. 10. Deveras, o Tribunal a quo à
luz de ampla cognição acerca de aspectos fático-probatórios concluiu que: A escusa dos requeridos
de que não se pode impor a obrigação de reparar dano ambiental a particular que adquiriu a terra já
desmatada ou que a averbação não pode ultrapassar o remanescente de mata nativa existente na área
não convence; como bem exposto pelo Procurador de Justiça a fls. 313/314: ‘não se pretende que a
averbação seja feita anteriormente à entrada em vigor da Lei 7.803/89 que alterou disposições da Lei
4.771/65. Ocorre que, a partir da vigência daquela primeira lei em nosso ordenamento jurídico, os
antigos proprietários (Sr. Renato Junqueira de Andrade e Sra. Yolanda Junqueira de Andrade - fls.
77) tinham desde então a obrigação de ter averbado a reserva legal, sendo que a Ré, ao comprar uma
propriedade sem observar os preceitos da lei, assumiu a obrigação dos proprietários anteriores ficando
ressalvada, todavia, eventual ação regressiva. (fls. 335) 11. Os embargos de declaração que enfrentam
explicitamente a questão embargada não ensejam recurso especial pela violação do artigo 535, II, do
CPC, tanto mais que, o magistrado não está obrigado a rebater, um a um, os argumentos trazidos
pela parte, desde que os fundamentos utilizados tenham sido suficientes para embasar a decisão. 12.
Recurso parcialmente conhecido e, nesta parte, desprovido. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça.
REsp 1090968/SP. Primeira Turma. Relator Ministro Luiz Fux. Data do Julgamento 15/06/2010. Data
da Publicação/Fonte DJe 03/08/2010. Disponível em: <http://www.stj.jus.br>. Acesso em: 1º maio
2011).
b) Em outro julgado, agora pela segunda Turma do STJ, cujo relatório é da Ministra
Eliana Calmon, foi exposta a obrigação do poluidor em tanto recuperar como indenizar
os danos causados ao meio ambiente, conforme segue a respectiva ementa:
PROCESSUAL CIVIL E AMBIENTAL - VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC NÃO CARACTERIZADA
- DANO AMBIENTAL - RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA - RECUPERAÇÃO DA
ÁREA DEGRADADA - REPOSIÇÃO NATURAL: OBRIGAÇÃO DE FAZER E INDENIZAÇÃO
- CABIMENTO. 1. Não ocorre ofensa ao art. 535, II, do CPC, se o Tribunal de origem decide,
fundamentadamente, as questões essenciais ao julgamento da lide. 2. Tratando-se de direito difuso,
a reparação civil ambiental assume grande amplitude, com profundas implicações na espécie de
responsabilidade do degradador que é objetiva, fundada no simples risco ou no simples fato da atividade
danosa, independentemente da culpa do agente causador do dano. 3. A condenação do poluidor em
obrigação de fazer, com o intuito de recuperar a área degradada pode não ser suficiente para eximilo de também pagar uma indenização, se não for suficiente a reposição natural para compor o dano
ambiental. 4. Sem descartar a possibilidade de haver concomitantemente na recomposição do dano
ambiental a imposição de uma obrigação de fazer e também a complementação com uma obrigação
de pagar uma indenização, descarta-se a tese de que a reposição natural exige sempre e sempre uma
complementação. 5. As instâncias ordinárias pautaram-se no laudo pericial que considerou suficiente
a reposição mediante o reflorestamento, obrigação de fazer. 6. Recurso especial improvido. (BRASIL.
Superior Tribunal de Justiça. REsp 1165281/MG. Segunda Turma. Relator(a) Ministra Eliana Calmon.
Data do Julgamento 06/05/2010. Data da Publicação/Fonte DJe 17/05/2010. Disponível em: <http://
www.stj.jus.br>. Acesso em: 1º maio 2011).
c) Sobre os requisitos para reconhecimento da responsabilidade do poluidor, segue
julgado:
PROCESSUAL CIVIL E AMBIENTAL - VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC NÃO CARACTERIZADA
- MANUTENÇÃO DE AVES SILVESTRES EM CATIVEIRO - RESPONSABILIDADE
OBJETIVA DO AGENTE POLUIDOR - AUSÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO ADMINISTRATIVA -
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– DIREITO AMBIENTAL - RESPONSABILIDADE CIVIL PELOS DANOS, INCLUSIVE MORAL, AO MEIO AMBIENTE –
RESPONSABILIDADE CIVIL - DANO AMBIENTAL NÃO COMPROVADO. 1. Não ocorre ofensa
ao art. 535, II, do CPC, se o Tribunal de origem decide, fundamentadamente, as questões essenciais ao
julgamento da lide. 2. A responsabilidade civil objetiva por dano ambiental não exclui a comprovação
da efetiva ocorrência de dano e do nexo de causalidade com a conduta do agente, pois estes são
elementos essenciais ao reconhecimento do direito de reparação. 3. Em regra, o descumprimento
de norma administrativa não configura dano ambiental presumido. 4. Ressalva-se a possibilidade de
se manejar ação própria para condenar o particular nas sanções por desatendimento de exigências
administrativas, ou eventual cometimento de infração penal ambiental. 5. Recurso especial não
provido. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1140549/MG. Segunda Turma. Relator(a)
Ministra Eliana Calmon. Data do Julgamento 06/04/2010. Data da Publicação/Fonte DJe 14/04/2010.
Disponível em: <http://www.stj.jus.br>. Acesso em: 1 maio, 2011).
d) No REsp 1049822/RS, relatado pelo Ministro Francisco Falcão, julgado em
23/4/2009, este reconheceu a inversão do ônus da prova, conferindo ao poluidor o dever
de provar a não lesividade de sua conduta, conforme se infere:
AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DANO AMBIENTAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROVA
PERICIAL. INVERSÃO DO ÔNUS. ADIANTAMENTO PELO DEMANDADO. DESCABIMENTO.
PRECEDENTES. I - Em autos de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Estadual visando
apurar dano ambiental, foram deferidos, a perícia e o pedido de inversão do ônus e das custas
respectivas, tendo a parte interposto agravo de instrumento contra tal decisão. II - Aquele que cria
ou assume o risco de danos ambientais tem o dever de reparar os danos causados e, em tal contexto,
transfere-se a ele todo o encargo de provar que sua conduta não foi lesiva. III - Cabível, na hipótese,
a inversão do ônus da prova que, em verdade, se dá em prol da sociedade, que detém o direito de ver
reparada ou compensada a eventual prática lesiva ao meio ambiente - artigo 6º, VIII, do CDC c/c o
artigo 18, da lei nº 7.347/85. IV - Recurso improvido. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp
1049822/RS. Primeira Turma. Relator(a) Ministro Francisco Falcão. Data do Julgamento 23/04/2009.
Data da Publicação/Fonte DJe 18/05/2009. Disponível em: <http://www.stj.jus.br>. Acesso em: 1º
maio 2011).
e) O STJ menciona os princípios do direito ambiental nos dois julgados a seguir
colacionados:
ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. DANO AMBIENTAL. CONDENAÇÃO. ART. 3º DA
LEI 7.347/85. CUMULATIVIDADE. POSSIBILIDADE. OBRIGAÇÃO DE FAZER OU NÃO FAZER
COM INDENIZAÇÃO. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. 1. Não há falar em vícios no
acórdão nem em negativa de prestação jurisdicional quando todas as questões necessárias ao deslinde
da controvérsia foram analisadas e decididas. 2. O magistrado não está obrigado a responder a todos os
argumentos das partes, quando já tenha encontrado fundamentos suficientes para proferir o decisum.
Nesse sentido: HC 27.347/RJ, Rel. Min. HAMILTON CARVALHIDO, Sexta Turma, DJ 1º/8/05. 2.
O meio ambiente equilibrado - elemento essencial à dignidade da pessoa humana -, como ‘bem de
uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida’ (art. 225 da CF), integra o rol dos direitos
fundamentais. 3. Tem o meio ambiente tutela jurídica respaldada por princípios específicos que lhe
asseguram especial proteção. 4. O direito ambiental atua de forma a considerar, em primeiro plano, a
prevenção, seguida da recuperação e, por fim, o ressarcimento. 5. Os instrumentos de tutela ambiental
– extrajudicial e judicial – são orientados por seus princípios basilares, quais sejam, Princípio da
Solidariedade Intergeracional, da Prevenção, da Precaução, do Poluidor-Pagador, da Informação, da
Participação Comunitária, dentre outros, tendo aplicação em todas as ordens de trabalho (prevenção,
reparação e ressarcimento). 6. ‘É firme o entendimento de que é cabível a cumulação de pedido
de condenação em dinheiro e obrigação de fazer em sede de ação civil pública’ (AgRg no REsp
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– Marcelo Camargo da Silva –
1.170.532/MG). 7. Recurso especial parcialmente provido para, firmando o entendimento acerca da
cumulatividade da condenação prevista no art. 3º da Lei 7.347/85, determinar o retorno dos autos
ao Tribunal de origem para que fixe o quantum necessário e suficiente à espécie. (BRASIL. Superior
Tribunal de Justiça. REsp 1115555/MG. Primeira Turma. Relator(a) Ministro Arnaldo Esteves Lima.
Data do Julgamento 15/02/2011. Data da Publicação/Fonte DJe 23/02/2011. Disponível em: <http://
www.stj.jus.br>. Acesso em 1º maio 2011).
PROCESSO CIVIL E AMBIENTAL. CONCLUSÕES DO TRIBUNAL DE ORIGEM. REVISÃO.
IMPOSSIBILIDADE. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N. 7 DO STJ. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TUTELA
DO MEIO AMBIENTE. OBRIGAÇÕES DE FAZER, DE NÃO FAZER E DE PAGAR QUANTIA.
1. O suposto antagonismo entre a prova técnica dos autos e a decisão determinando a realização
de obras é questão que não merece ser conhecida na estreita via do recurso especial, porquanto
sua eventual reforma importaria em reexame do conjunto fático-probatório, o que é vedado para
este magistrado pela Súmula n. 7 deste Tribunal. 2. Rever a premissa de fato fixada pelo Tribunal
de origem – a relação entre as causas do acidente e as obrigações de fazer e não fazer fixadas na
sentença – demanda a avaliação do conjunto fático-probatório constante dos autos, o que é vedado
aos membros do Superior Tribunal de Justiça por sua Súmula n. 7. 3. A recorrente é responsável pela
preservação do meio ambiente e pelos danos provocados em razão do acidente, como também pela
segurança e saúde dos seus funcionários que exercem sua função no forno em questão e pelo bem
estar da população local. Tal responsabilidade decorre exatamente do sistema jurídico de proteção
ao meio ambiente, no qual se inserem normas constitucionais (notadamente o art. 225, inc. V, da
CR/88), infraconstitucionais (Leis n. 6.938/81 e 9.605/98, entre outras) e infralegais, o qual se guia
pelos princípios da prevenção, da precaução, do poluidor-pagador, bem como da reparação integral.
4. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte, não provido. (BRASIL. Superior Tribunal
de Justiça. REsp 880172/SP. Segunda Turma. Relator(a) Ministro Mauro Campbell Marques. Data do
Julgamento 09/11/2010. Data da Publicação/Fonte DJe 19/11/2010. Disponível em: <http://www.stj.
jus.br>. Acesso em: 1º maio 2011).
f) No REsp 1056540/GO, como Relatora a Ministra Eliana Calmon, julgado em
25/8/2009, determinou-se a responsabilidade solidária entre os causadores dos danos:
PROCESSUAL CIVIL E AMBIENTAL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – DANO AMBIENTAL –
CONSTRUÇÃO DE HIDRELÉTRICA – RESPONSABILIDADE OBJETIVA E SOLIDÁRIA
– ARTS. 3º, INC. IV, E 14, § 1º, DA LEI 6.398/1981 – IRRETROATIVIDADE DA LEI –
PREQUESTIONAMENTO AUSENTE: SÚMULA 282/STF – PRESCRIÇÃO – DEFICIÊNCIA NA
FUNDAMENTAÇÃO: SÚMULA 284/STF – INADMISSIBILIDADE. 1. A responsabilidade por
danos ambientais é objetiva e, como tal, não exige a comprovação de culpa, bastando a constatação do
dano e do nexo de causalidade. 2. Excetuam-se à regra, dispensando a prova do nexo de causalidade,
a responsabilidade de adquirente de imóvel já danificado porque, independentemente de ter sido ele
ou o dono anterior o real causador dos estragos, imputa-se ao novo proprietário a responsabilidade
pelos danos. Precedentes do STJ. 3. A solidariedade nessa hipótese decorre da dicção dos arts. 3º,
inc. IV, e 14, § 1º, da Lei 6.398/1981 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente). 4. Se possível
identificar o real causador do desastre ambiental, a ele cabe a responsabilidade de reparar o dano,
ainda que solidariamente com o atual proprietário do imóvel danificado. 5. Comprovado que a
empresa Furnas foi responsável pelo ato lesivo ao meio ambiente a ela cabe a reparação, apesar de o
imóvel já ser de propriedade de outra pessoa jurídica. 6. É inadmissível discutir em recurso especial
questão não decidida pelo Tribunal de origem, pela ausência de prequestionamento. 7. É deficiente
a fundamentação do especial que não demonstra contrariedade ou negativa de vigência a tratado ou
lei federal. 8. Recurso especial parcialmente conhecido e não provido. (BRASIL. Superior Tribunal de
Justiça. REsp 1056540/GO. Segunda Turma. Relator(a) Ministra Eliana Calmon. Data do Julgamento
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– DIREITO AMBIENTAL - RESPONSABILIDADE CIVIL PELOS DANOS, INCLUSIVE MORAL, AO MEIO AMBIENTE –
25/08/2009. Data da Publicação/Fonte DJe 14/09/2009. Disponível em: <http://www.stj.jus.br>.
Acesso em: 1º maio 2011).
O Tribunal de Justiça de Santa Catarina também tem-se manifestado sobre a responsabilidade civil pelo dano ambiental, cujos recentes e importantes julgados colacionam-se:
a) Na Apelação Cível nº 2008.007817-9, o Tribunal Catarinense assim decidiu:
APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA - DANOS CAUSADOS AO MEIO AMBIENTE
- ATIVIDADE DE AGROPECUÁRIA - LANÇAMENTO DE DEJETOS DE ANIMAIS NO RIO
XAXIM - PROVA FARTA - DANO CONFIGURADO - RESPONSABILIDADE OBJETIVA - NEXO
CAUSAL DEMONSTRADO - DEVER DE REPARAR - INTELIGÊNCIA DO ART. 14, § 1º, DA LEI
N. 6.938/81 - SENTENÇA MANTIDA - RECURSO DESPROVIDO. ‘Demonstrado o dano ambiental
e dispondo a Lei n. 6.938/81 sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, o seu art. 4º, inciso VII,
impõe ao predador a obrigação de repará-lo. A responsabilidade civil é objetiva, fundada no risco,
que prescinde por completo da culpabilidade do agente e exige apenas a ocorrência do dano e a prova
do vínculo causal com a atividade’. (TJSC – AC 2007.028748-3 – Rel. Des. Francisco Oliveira Filho).
Comprovada a existência do dano ambiental ocasionado em virtude do despejo de dejetos de animais
no Rio Xaxim, os requisitos da responsabilidade objetiva encontram-se devidamente demonstrados,
subsistindo aos recorrentes, proprietários do imóvel e responsáveis pela criação dos animais, o dever
de reparar os danos causados ao meio ambiente mediante pagamento de indenização, consoante
estabelece o art. 14, § 1º, da Lei n. 6.938/81 (BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação
Cível n. 2008.007817-9, de Coronel Freitas. Segunda Câmara de Direito Público. Relator: Cid Goulart.
Data: 10/06/2008. Disponível em: <http://www.tjsc.jus.br>. Acesso em: 1º maio 2011).
b) Sobre a importância da preservação do meio ambiente, assim manifestou-se o TJSC:
Ação civil pública. Direito de construir. Construção clandestina. Choque entre direitos fundamentais.
Direito à moradia e ao meio ambiente. Prevalência deste último, quando em jogo os interesses maiores
da coletividade. Demolição para proteção ambiental. Edificação em área de preservação permanente.
Desnecessidade de dano efetivo. Princípio da igualdade que não justifica o ilícito. Recurso provido.
‘Presta-se a ação civil pública para defesa do meio-ambiente e para obrigar o proprietário a demolir
construção erguida em área não edificável, destinada por lei federal e municipal à preservação
permanente, não sendo exigível para a sua propositura a prova de dano efetivo, mas apenas sua
probabilidade; suficiente a ameaça de dano para justificar a via processual. Inadmissível a invocação
do princípio da igualdade pela existência de outras obras edificadas clandestinamente, pois, o ilícito
não gera direito adquirido e o descumprimento da lei por terceiros não pode ser invocado como
causa de isenção para o infrator quando chamado à responsabilidade pelos atos perpetrados. Todos
são iguais perante a lei para cumpri-la e por ela serem protegidos, nunca porém, para descumpri-la’
(TJSC, Ap. Cív. N. 1999.013600-0, rel. Des. Luiz Cézar Medeiros, j. 30.11.2000) (BRASIL. Tribunal de
Justiça de Santa Catarina. Apelação Cível n. 2008.0670560-5, da Capital. Terceira Câmara de Direito
Público. Relator: Pedro Manoel Abreu. Data: 18/03/2010. Disponível em: <http://www.tjsc.jus.br>.
Acesso em: 1º maio 2011).
c) Igualmente, sobre o dever de preservação do meio ambiente, decidiu-se:
Administrativo e ambiental. Ação civil pública demolitória com obrigação de fazer. Procedência no
primeiro grau. Obra clandestina, desprovida de alvará de licença para construir. Projeto de construção
aprovado pelo ente público. Irrelevância. Dano ambiental e paisagístico demonstrado em perícia
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– Marcelo Camargo da Silva –
judicial. Ferimento às disposições expressas da Lei n. 2.193/95 em diversos aspectos, tais como número
de pavimentos permitidos, destinação do imóvel e recuos. Inadmissibilidade. Apelo adesivo. Dano
moral Ambiental. Não configuração. Sentença mantida. Recursos desprovidos. Como a construção
é atividade sujeita a licenciamento pelo Poder Público, a ausência de licença para construir faz
presumir um dano potencial à Administração e à coletividade, consistente na privação do exame do
projeto e na possibilidade de insegurança e inadequação da obra às exigências técnicas e urbanísticas’
(Hely Lopes Meirelles). Inadmissível a invocação do princípio da igualdade pela existência de outras
obras edificadas clandestinamente, pois, o ilícito não gera direito adquirido e o descumprimento da
lei por terceiros não pode ser invocado como causa de isenção para o infrator quando chamado
à responsabilidade pelos atos perpetrados. Todos são iguais perante a lei para cumpri-la e por ela
serem protegidos, nunca porém, para descumpri-la (TJSC, Ap. Cív. N. 2003.028527-0, rel. Des.
Luiz Cézar Medeiros, j. 15.8.2006). É possível verificar danos extrapatrimoniais ambientais quando,
além de atingir o meio ambiente e seus recursos, a ação danosa recai sobre a esfera patrimonial ou
extrapatrimonial de determinada pessoa ou grupo de pessoas, hipótese em que se verifica o chamado
dano ambiental individual, também conhecido como dano ricochete ou reflexo (MILARÉ, Édis.
Direito do Ambiente: a gestão ambiental em foco. 5 ed. São Paulo: RT, 2007, p. 814). Não comprovada,
porém, sua ocorrência ou faltantes os seus elementos caracterizadores, a improcedência do pedido é
medida que se impõe (BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação Cível n. 2008.0431261, da Capital. Terceira Câmara de Direito Público. Relator: Pedro Manoel Abreu. Data: 09/11/2009.
Disponível em: <http://www.tjsc.jus.br>. Acesso em: 1º maio 2011).
d) Sobre o dano moral ambiental, a Quarta Câmara de Direito Público do TJSC, no
julgamento da Apelação Cível nº 2008.004084-0, em 10/10/2008, a qual teve como relator
o Des. Jânio Machado, assim decidiu:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE.
CERCEAMENTO DE DEFESA AFASTADO. DILAÇÃO PROBATÓRIA QUE SE APRESENTAVA
DESNECESSÁRIA. DEVER DO JUIZ DE VELAR PELA RÁPIDA SOLUÇÃO DO LITÍGIO,
INDEFERINDO AS PROVAS INÚTEIS E MERAMENTE PROTELATÓRIAS, DE MODO A
ASSEGURAR A RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO. ARTS. 125, INCISO II, E 130 DO
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. ART. 5º, INCISO LXXVIII, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
LEGITIMIDADE PASSIVA BEM CONFIGURADA, ASSIM COMO O INTERESSE PROCESSUAL.
PRODUÇÃO DE SUÍNOS NA REGIÃO OESTE DO ESTADO. CONTRATO DE INTEGRAÇÃO.
PARCERIA ENTRE CRIADOR E COOPERATIVA REGIONAL. ENTREGA DOS SUÍNOS PARA
COOPERATIVA CENTRALIZADORA DA INDUSTRIALIZAÇÃO. DEJETOS LANÇADOS E QUE
ATINGIRAM CURSO D’ÁGUA. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DE TODOS OS ENVOLVIDOS
NA CADEIA DE PRODUÇÃO E QUE CULMINOU EM PRÁTICA CAPITULADA COMO CRIME
AMBIENTAL. DANO AMBIENTAL DEMONSTRADO. DEVER DE INDENIZAR DECORRENTE
DA PRÁTICA DE ILÍCITO CIVIL. DANO MORAL QUE É DEVIDO EM FAVOR DO FUNDO
DE RECUPERAÇÃO DE BENS LESADOS DO ESTADO DE SANTA CATARINA. VALOR
ARBITRADO QUE É RAZOÁVEL. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS AFASTADOS. 1. É dever do
juiz velar pela rápida solução do litígio, indeferindo as provas inúteis ou meramente protelatórias e
assegurando aos litigantes a razoável duração do processo. 2. Todos os envolvidos na cadeia produtora
são responsáveis solidários pela reparação do dano provocado ao meio ambiente, assim considerados
o produtor proprietário da pocilga, a cooperativa regional que forneceu o lote de leitões e obrigou-se
a dar assistência técnica, bem ainda a cooperativa centralizadora da industrialização dos suínos. 3.
Afasta-se a aventada ausência de interesse processual se o Termo de Compromisso de Ajustamento de
Condutas celebrado não versa matéria idêntica à tratada na ação civil pública. 4. A agressão ao meio
ambiente autoriza o arbitramento de valor a título de dano moral. 5. São indevidos os honorários
advocatícios na ação civil pública promovida pelo Ministério Público.
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– DIREITO AMBIENTAL - RESPONSABILIDADE CIVIL PELOS DANOS, INCLUSIVE MORAL, AO MEIO AMBIENTE –
Da fundamentação do referido acórdão, vale ressaltar:
Concernente ao pleito de danos extrapatrimoniais, a título de compensação ambiental decorrente da
conduta poluidora das Cooperativas Rés, tenho que merece guarida.
Tocante à prova desses danos, tenho que, in casu, esta faz-se despicienda, pois sua existência decorre da
simples ocorrência do fato, presumindo-se, então, o dano sofrido.
Pertinente é a lição de Rui Stoco:
‘A causação do dano moral independe de prova, ou melhor, comprovada a ofensa moral o direito à
indenização desta decorre, sendo dela presumido. (...) Significa, em resumo, que o dever de reparar
é corolário da verificação do evento danoso, dispensável, ou mesmo incogitável, a prova do prejuízo.’
(Responsabilidade civil e sua interpretação jurisprudencial. 4ª ed., RT, São Paulo: 1999, p. 722).
E o entendimento jurisprudencial:
‘A concepção atual da doutrina orienta-se no sentido de que a responsabilização do agente causador
do dano moral opera-se por força do simples fato da violação (danum in re ipsa). Verificado o evento
danoso, surge a necessidade da reparação, não havendo que se cogitar da prova do prejuízo, se
presentes os pressupostos legais para que haja a responsabilidade civil’ (STJ - 4a T - REsp. 23.575-DF Rel. Cesar Asfor Rocha - j. 9.6.97 - DJU 1.9.97 - Repert. IOB de Jurisp. 20/97, Cad. 3, p. 395, n. 13.678,
e RSTJ 98/270; in: Ap. Cív. n. 1999.020955-5, rel. Des. Cesar Abreu, j. em 31/10/2002).
Quanto à possibilidade de condenação ao pagamento de indenização por danos extrapatrimoniais
em matéria ambiental, valho-me da lição de Paulo Affonso Leme Machado, citando Francisco José
Marques Sampaio:
‘Não é apenas a agressão à natureza que deve ser objeto de reparação, mas a privação, imposta à
coletividade, do equilíbrio ecológico, do bem-estar e da qualidade de vida que aquele recurso
ambiental proporciona, em conjunto com os demais. Desse modo, a reparação do dano ambiental
deve compreender, também, o período em que a coletividade ficará privada daquele bem e dos
efeitos benéficos que ele produzia, por si mesmo e em decorrência de sua interação (art. 3º, I, da Lei
6.938/81). Se a recomposição integral do equilíbrio ecológico, com a reposição da situação anterior
ao dano, depender, pelas leis da natureza, de lapso de tempo prolongado, a coletividade tem direito
subjetivo a ser indenizada pelo período que mediar entre a ocorrência do dano e a integral reposição
da situação anterior’ (Direito Ambiental Brasileiro. 11ª ed., Malheiros, São Paulo: 2003, p. 341).
No mesmo sentido, é a ensinança de Rodolfo de Camargo Mancuso:
‘Também nos parece ser de natureza objetiva a responsabilidade pelos danos morais (=extrapatrimoniais)
infligidos ao meio ambiente, no sentido de que esse dever de reparar decorre da configuração, no caso
concreto, do binômio dano-nexo causal.(...)
José Rubens Morato Leite dá exemplos de dano extrapatrimonial ambiental: ‘a) destruição de sambaqui,
através de retirada da barreira do terreno limítrofe, afetando tanto um patrimônio cultural como um
valor ambiental, ecológico, da população; b) publicidade antiambiental, afetando de forma indivisível
interesses extrapatrimoniais da coletividade; c) aterro de lagoa, ferindo a paisagem, ocasionando dano
ao valor paisagístico e ambiental da comunidade’ (Ação Civil Pública. Em defesa do meio ambiente,
do patrimônio cultural e dos consumidores. 10ª ed. rev. e atual., RT, São Paulo: 2006, p. 332).
Cristalina a obrigação de indenizar, passo à análise do quantum.
Conquanto o legislador não forneça parâmetros para a fixação do dano extrapatrimonial, doutrina e
jurisprudência auxiliam o juiz nesta tarefa.
Assim leciona José Raffaelli Santini:
‘Na verdade, inexistindo critérios previstos por lei a indenização deve ser entregue ao livre arbítrio do
julgador que, evidentemente, ao apreciar o caso concreto submetido a exame fará a entrega da prestação
jurisdicional de forma livre e consciente, à luz das provas que forem produzidas. Verificará as condições
das partes, o nível social, o grau de escolaridade, o prejuízo sofrido pela vítima, a intensidade da culpa
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– Marcelo Camargo da Silva –
e os demais fatores concorrentes para a fixação do dano haja vista que costumeiramente a regra do
direito pode se revestir de flexibilidade para dar a cada um o que é seu. [...]O que prepondera, tanto
na doutrina, como na jurisprudência, é o entendimento de que a fixação do dano moral deve ficar ao
prudente arbítrio do juiz.’ (Dano Moral: doutrina, jurisprudência e prática, Agá Júris, 2000, p. 45).
Em complementação, colaciono a regra inserta no art. 942, in fine, da lei material civil:
‘Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do
dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação’
(sublinhei).
Assim, atenta às peculiaridades do caso em comento, em especial o fato de que a poluição em questão
atingiu curso d’água de importância considerável, já que utilizado por inúmeros proprietários de
imóveis rurais da região não só para criação de animais, mas também para uso próprio nas residências,
sem olvidar para a poluição do ar (mau cheiro), inerente ao fato em apreço, fixo os danos morais
em R$ 30.000,00 (trinta mil reais), a serem pagos solidariamente pelas Cooperativas Rés. (BRASIL.
Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação Cível n. 2008.004084-0, de Modelo. Quarta Câmara
de Direito Público. Relator: Jânio Machado. Data: 10/10/2008. Disponível em: <http://www.tjsc.jus.
br>. Acesso em: 1º maio 2011).
e) Como visto, os danos morais pelo dano ambiental são reconhecidos e aplicados
pelo e. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Para corroborar o entendimento, segue uma
última decisão sobre o tema:
APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – DANO AMBIENTAL – EXTRAÇÃO
DESMENSURADA DE SAIBRO – NÃO-CUMPRIMENTO DAS EXIGÊNCIAS CONTIDAS
NA LICENÇA CONCEDIDA PARA EXPLORAÇÃO DA ÁREA – DEFEITO NO SISTEMA
DE DRENAGEM PLUVIAL E REVEGETAÇÃO – CASO FORTUITO (FORTES CHUVAS) –
IRRELEVÂNCIA – RESPONSABILIDADE DA EMPRESA EXTRATIVISTA PELA RECUPERAÇÃO
DA ÁREA DEGRADADA – TERMO DE COMPROMISSO FIRMADO COM A FUNDAÇÃO
MUNICIPAL DO MEIO AMBIENTE (FLORAM) – PROJETO ELABORADO E APROVADO
COM RESSALVAS – OBRIGAÇÃO DE FAZER MANTIDA – DANO MORAL AMBIENTAL
CARACTERIZADO - LIGAÇÃO CLANDESTINA – ATERRAMENTO E CONTAMINAÇÃO
VIRÓTICA DA LAGOA DE PONTA DAS CANAS – INDENIZAÇÃO DEVIDA – RECURSO DOS
RÉUS DESPROVIDO – RECURSO MINISTERIAL PROVIDO. Não há falar em caso fortuito quando
verificado que o dano ambiental foi provocado por chuvas torrenciais, sobretudo quando constatado
que as intempéries não teriam provocado o referido dano se a empresa voltada à atividade de extração
mineral (saibro) tivesse efetivamente cumprido com as exigências de drenagem pluvial e revegetação
da área explorada. Assim, não há eximi-la da responsabilidade de elaborar e executar projeto de
recuperação do local degradado. O art. 14, §1º, da Lei n. 6.938/1981 (Lei da Política Nacional do
Meio Ambiente), prevê a possibilidade de responsabilização objetiva do causador de eventual dano
ambiental, independentemente da aferição de culpa ou casos de força maior. ‘[...] É admissível
a indenização por dano moral ambiental nos casos em que a ofensa ao meio ambiente acarreta
sentimentos difusos ou coletivos de dor, perda, sofrimento ou desgosto [...]’ (AC n. 2000.025366-9, da
Capital) (BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação Cível n. 2005.014245-1, da Capital.
Terceira Câmara de Direito Público. Relator: Rui Fortes. Data: 12/05/2008. Disponível em: <http://
www.tjsc.jus.br>. Acesso em: 1º maio 2011).
Pelos julgados colacionados, restou clara a aplicação prática pelo Superior Tribunal
de Justiça e pelo Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina dos princípios do direito
ambiental, especialmente quanto à responsabilidade civil dos causadores do dano am
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– DIREITO AMBIENTAL - RESPONSABILIDADE CIVIL PELOS DANOS, INCLUSIVE MORAL, AO MEIO AMBIENTE –
biental, objetivamente, de forma primordial a recuperação e a consequente indenização
integral tanto dos danos patrimoniais como extrapatrimoniais ao meio ambiente.
CONCLUSÃO
O direito ambiental tem como objetivo primordial a proteção ao meio ambiente,
“bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida” (art. 225, da CF).
O meio ambiente é um direito fundamental assegurado pela Constituição Federal,
pois sua defesa e preservação são essenciais à vida do homem.
Impõe a Carta Fundamental do país o dever de preservação e conservação do meio
ambiente pelo Poder Público e pela coletividade em geral, consagrando, ao infrator poluidor, o princípio da reparabilidade do dano ambiental, independentemente da existência
de culpa (CF, art. 225, § 3º, c/c art. 22, XXIII, “c”).
Os princípios específicos do direito ambiental contribuem para uma solução mais
efetiva e eficiente na resolução dos conflitos que envolvem a responsabilidade civil ambiental, tanto para prevenir eventuais e futuros danos como para responsabilizar o poluidor ou ainda para determinar e estabelecer as medidas que visem à reparação do dano
causado ao meio ambiente.
O dano ambiental, ademais, possui características próprias que o diferenciam do
dano tutelado no direito civil clássico. Distingue-se o dano ao meio ambiente pela pulverização das vítimas, a responsabilidade do agente independentemente de culpa e a dificuldade em determinar o valor do prejuízo sofrido.
A responsabilidade civil pelo dano ambiental, entretanto, deve ser integral (patrimonial ou extrapatrimonial), com a recuperação efetiva do meio ambiente e, quando não
possível, com a devida indenização dos prejuízos causados, patrimoniais ou extrapatrimoniais, que atingem toda a coletividade.
Embora na maioria das vezes os danos sejam irremediáveis e, quando remediáveis,
a recuperação, a correção, a reposição ou a restauração dos recursos ambientais e culturais
degradados somente sejam possíveis a longo prazo, mediante mecanismos ou processos
complexos de elevadíssimos custos, notadamente socioambientais, a reparação pelos danos ao meio ambiente é imprescindível.
A responsabilidade civil pelo dano ambiental, indubitavelmente, objetiva além de
tudo a garantia da dignidade da pessoa humana e da valorização da cidadania.
Nesse contexto, com o presente trabalho, procurou-se destacar na legislação brasileira qual a espécie de responsabilidade civil adotada em relação aos danos ambientais
(responsabilidade civil objetiva), bem como caracterizar o dano ambiental e a consequente responsabilização, inclusive pelo dano extrapatrimonial (moral), reparações estas com
fim de atender o dispositivo constitucional de uma sadia qualidade de vida a todos os
cidadãos, tanto para as presentes como para as futuras gerações.
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– Marcelo Camargo da Silva –
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Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 2 • Dez/2011
91
Direito Civil e
Direito Processual Civil
A DIFERENCIAÇÃO ENTRE PEQUENAS CAUSAS E
CAUSAS DE MENOR COMPLEXIDADE
DIFFERENTIATION BETWEEN SMALL CLAIMS AND CAUSES
OF LESS COMPLEXITY
Felipe Rapallo Musco1
Resumo: Este artigo se propõe a analisar a mudança de posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, que incluiu sob a égide dos Juizados Especiais Cíveis a
possibilidade de análise, processamento e execução de demandas – quando próprias
– cujo valor ultrapasse a alçada prevista para os mesmos, ou seja, quarenta salários
mínimos, no âmbito estadual; e sessenta salários mínimos, no âmbito federal, expondo, assim, uma falha inerente aos Juizados advinda de sua condução errônea.
Busca, desta forma, restabelecer a diferenciação entre pequenas causas e causas de
menor complexidade, o que explicaria e justificaria o novo posicionamento.
Palavras-Chave: Juizados Especiais Cíveis. Causas. Complexidade. Pequenas.
Valor. Lei n. 9.099/95. Lei n. 10.259/01.
Abstract: The following article intends to analyze the Superior Court of Justice’s
decision to include, under the Small Claims Courts, the possibility of claims with a
larger value than the usual, that is, forty times the minimum wage in State Courts; and
sixty times the minimum wage in Federal Courts, which exposes a fundamental flaw of
the Small Claims Courts, due to how they’re being conduced. It seeks to reestablish the
difference between small claims and less complex claims, which would in turn explain
and justify this paradigm change.
Keywords: Small Claims Courts. Claims. Complexity. Small. Value. Federal Law n.
9.099/95. Federal Law n. 10.259/01.
1 Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Pós-Graduado em Direito Público, com habilitação
em magistério superior, pela FURB. Técnico Judiciário Auxiliar do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Assessor de
Gabinete. 1ª Vara Criminal da Comarca de Palhoça. [email protected].
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95
– A DIFERENCIAÇÃO ENTRE PEQUENAS CAUSAS E CAUSAS DE MENOR COMPLEXIDADE –
1. INTRODUÇÃO
O Superior Tribunal de Justiça, em decisão proferida no julgamento da medida
cautelar n. 15.465 – SC (2009/0065324-3), “chocou” o mundo jurídico ao derrubar um
conceito que se tinha por pacífico em todas as instâncias, relativo aos Juizados Especiais
Cíveis.
Desde seu advento, com a promulgação da Lei n. 9.099/95, sempre se entendeu
que os requisitos para submissão da demanda ao rito sumariíssimo eram cumulativos, ou
seja, a causa devia ser considerada de menor complexidade, e seu valor máximo não poderia ultrapassar os 40 (quarenta) salários mínimos – em se tratando do âmbito estadual
–, e embora houvesse algumas dissidências jurisprudenciais nas quais os órgãos julgadores classificassem as demandas em pequenas causas e causas de menor complexidade,
separadamente, geralmente estas eram oriundas de Colégios e Turmas Recursais de menor expressão, razão pela qual eram tidas como minoritárias, sendo certo que prevalecia
como “correto” o entendimento pela cumulação dos requisitos.
O STJ, porém, por meio do processo supramencionado, sob relatoria da Ministra
Nancy Andrighi, julgado pela Terceira Turma, acabou por se posicionar de forma diversa,
reconhecendo, de fato, a diversidade entre as causas ditas pequenas, e aquelas ditas de
menor complexidade, entendendo, portanto, que os requisitos do art. 3º da Lei n. 9.099/95
seriam alternativos, e não cumulativos.
Basicamente, seria dizer que uma demanda de valor superior ao teto legalmente
imposto poderia ser proposta perante os Juizados Especiais Cíveis, submetida, portanto,
ao rito sumariíssimo.
Como toda mudança de paradigma, porém, a ideia não foi muito bem recebida,
gerando manifestações desde uma “corrente” de e-mails de acadêmicos e operadores do
direito, alguns “indignados” e outros “perplexos” com o “absurdo” que o posicionamento
tomado representava; até artigos sobre o assunto, que voltaram a emergir na época, “explicando” como a mudança não tinha embasamento.
Entretanto, cabe questionar se, realmente, tamanha indignação tem fundamento
ou razão que lhe assista, ou se é mero reflexo da infundada resistência a mudanças, inerente à condição humana.
2. DESENVOLVIMENTO
Inicialmente, cabe aqui explicar pormenorizadamente a criação dos Juizados Especiais Cíveis, que se originou da “evolução” do conceito dos Juizados de Pequenas Causas.
Instituídos pela Lei n. 7.244/84, os primeiros Juizados foram criados com a competência para o julgamento das ditas pequenas causas, identificadas como tais pela própria
Lei através de uma série de critérios objetivos, elencados por Ricardo Cunha Chimenti
em sua obra:
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– Felipe Rapallo Musco –
A Lei n. 7.244/84, ao identificar as chamadas pequenas causas, exigia que elas: a) versassem sobre
direito patrimonial; b) fossem de valor inferior a vinte salários mínimos à data do ajuizamento; c)
tivessem por objeto alguma das hipóteses taxativamente previstas em seu texto (condenação em
dinheiro, à entrega de coisa certa móvel, ao cumprimento de obrigação de fazer – a cargo de fabricante
ou fornecedor de bens e serviços); ou d) visassem à desconstituição ou à declaração de nulidade de
contrato relativo a coisas móveis e semoventes (CHIMENTI, 2005, p. 28-29).
Enquanto tentativa louvável de desafogamento do Poder Judiciário da época, a Lei
n. 7.244/84 falhou em sua origem, em virtude do teor de seu art. 1º, qual seja:
Art. 1º. Os Juizados Especiais de Pequenas Causas, órgãos da Justiça ordinária, poderão ser criados
nos Estados, no Distrito Federal e nos Territórios, para processo e julgamento, por opção do autor, das
causas de deduzido valor econômico. (destacou-se).
Em virtude da utilização da expressão poderão, diversas Comarcas acabaram por
abster-se de, de fato, criarem e instalarem os Juizados de Pequenas Causas em seus territórios, o que por sua vez acabou por inviabilizar a experiência, tornando-a, rapidamente,
ineficaz ao ponto de se fazer necessária a reforma quase por inteiro de uma lei que mal
tivera oportunidade para vigorar de forma adequada – ainda que vigente por um longo
período de tempo.
Nas palavras de Fernando da Costa Tourinho Neto e Joel Dias Figueira Júnior, em
obra conjunta:
Verificava-se de maneira muito mais acentuada, até o advento da Lei 9.099/1995, uma sensação
generalizada de que, se providências emergenciais não fossem tomadas – e aqui se enquadrava a
rápida implementação dos Juizados Especiais em todos os Estados da Federação [...] –, poderíamos
terminar com uma crise institucional ou judicial, ocasionada por múltiplos fatores endógenos e
exógenos (2005, p. 46).
Com a promulgação da Constituição de 1988, quando se buscou, entre outras coisas, remediar diversos problemas antes encontrados no ordenamento jurídico, o legislador abordou a celeuma então existente através texto do art. 98, I, com o seguinte teor:
Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão:
I - juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação,
o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor
potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumariíssimo, permitidos, nas hipóteses
previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau.
Desta forma, a criação dos Juizados Especiais pelas Comarcas passou a ser obrigatória, embora não houvesse, ainda, qualquer previsão relativa a sanções aos Estados que
não cumprissem a determinação constitucional, tampouco havendo prazo assinalado, o
que acabou por resultar, em um primeiro momento, na configuração de uma situação
similar à anteriormente constatada, porém com os Estados apresentando, como principal
justificativa para o descumprimento, a falta de previsão legal referente à forma pretendida
para que fosse promovida a criação dos Juizados Especiais, por entenderem que estes
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– A DIFERENCIAÇÃO ENTRE PEQUENAS CAUSAS E CAUSAS DE MENOR COMPLEXIDADE –
não iriam seguir os moldes da Lei n. 7.244/84, em virtude da nova nomenclatura a eles
atribuída.
Com efeito, em 26 de setembro de 1995, como forma de tentar dirimir o novo problema instaurado, foi editada e publicada a Lei n. 9.099, criando efetivamente os Juizados
Especiais Cíveis e Criminais, em nível estadual, sendo então assinalado um prazo de seis
meses para que os Estados da Federação promovessem a sua criação e instalação.
Os Juizados Especiais Cíveis passaram, então, a substituir os Juizados de Pequenas
Causas existentes na época, que somente tratavam das demandas patrimoniais cujo valor
não ultrapassava o limite da alçada de 20 (vinte) salários mínimos, tendo sua competência
ampliada em relação aos predecessores, a eles cabendo a análise das ditas causas de menor
complexidade, aumentando-se a alçada valorativa então existente até o limite de 40 (quarenta) vezes o salário mínimo vigente.
Restava pendente, no entanto, a questão sobre como regular a matéria no âmbito
da Justiça Federal – se esta seguiria ou não as previsões referentes à Justiça Comum – até
que, em 13 de julho de 2001, foi promulgada a Lei n. 10.259, dispondo sobre a criação,
instalação e regulamentação dos Juizados Especiais Federais.
Dentre as principais diferenças existentes entre as duas leis, a mais importante diz
respeito justamente à definição da competência. O valor de alçada foi alterado, sendo da
competência dos Juizados Especiais Cíveis Federais o processamento das demandas cujo
valor não ultrapasse o limite de 60 (sessenta) salários mínimos, ao contrário dos 40 (quarenta) previstos nos Juizados Especiais Cíveis Estaduais.
Assim, duas causas cíveis análogas com valor superior a quarenta salários mínimos
e inferior a sessenta salários mínimos, sendo uma de competência da Justiça Federal e
uma de competência da Justiça Estadual, seriam não somente processadas em juízos diversos, mas submetidas a tratamento diverso, sendo a primeira submetida ao rito sumariíssimo dos Juizados Especiais Cíveis, e a segunda ao rito ordinário das Varas Cíveis, salvo
na hipótese de o autor da segunda causa optar por renunciar ao seu crédito no tocante
ao valor que exceder o teto de 40 salários mínimos, para que esta pudesse ser processada
perante o Juizado Especial.
Bem se sabe que os Juizados Especiais Cíveis, criados pela Lei n. 9.099/95, acabaram por substituir os Juizados de Pequenas Causas, englobando sob sua égide todas as
causas pertinentes aos anteriores, bem como outras novas, estas sendo as elencadas no art.
3º do texto legislativo. Estando a expressão causas com valor inferior a quarenta salários
mínimos expressa dentre as ali presentes, surge então a dúvida: os termos causas de menor
complexidade e pequenas causas seriam, de fato, sinônimos?
Alexandre Câmara defende veementemente que os termos são distintos e que Juizados de Pequenas Causas e Juizados Especiais Cíveis deveriam coexistir paralelamente,
porém não foi o que entendeu o legislador. Nas palavras do autor:
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[...] serão os Juizados Especiais Cíveis e os Juizados de Pequenas Causas dois nomes para o mesmo
órgão jurisdicional? Entendo que não. [...] Parece-me evidente que a menor complexidade de uma
causa não tem qualquer ligação com seu valor. Um processo em que se busque, por exemplo, reparação
de danos decorrentes de acidente de trânsito tem a mesma complexidade, quer o acidente envolva um
Fusca 1966 e um Corcel 1972 ou tenha se dado entre uma Ferrari e uma Maserati. Os dois acidentes,
embora envolvam valores evidentemente diferentes, um pequeno e outro altíssimo, são causas que
têm a mesma complexidade jurídica, podendo ser, ambas, deduzidas perante os Juizados Especiais
Cíveis (ainda que possivelmente só a primeira possa ser levada a um Juizado de Pequenas Causas).
Tudo se recomendava, pois, que tivessem sido mantidos os Juizados de Pequenas Causas [...] (talvez
com um aumento de sua competência [...]) [...] e, ao lado deles, tivessem sido criados os Juizados
Especiais Cíveis, com competência para causas cíveis de qualquer valor que tivessem pequena
complexidade jurídica (CÂMARA, 2006, p. 31-32).
Com base nesse raciocínio, analisando-se o texto da Lei n. 9.099/95, é possível dividir a atual atribuição de competência do Juizado Especial Cível em duas, quais sejam,
a competência para causas de menor valor, e a competência para causas de menor complexidade, não se confundindo os termos. Porém, tal distinção teria cunho meramente
doutrinário, visto que, na prática, houve a revogação tácita da Lei n. 7.244/84, motivo pelo
qual a maioria dos doutrinadores optou por deixar de lado uma discussão perdida, pela
eventual recriação dos Juizados de Pequenas Causas, optando por aceitar a unificação dos
termos, considerando, portanto, pequenas causas e causas de menor complexidade como
sinônimos e focando-se em outros pontos.
Se, conforme se deduz da doutrina, o fator primordial para definição da competência dos Juizados Especiais Cíveis é o valor da causa, necessário se faz observar o processamento do feito em relação a este fator, a fim de restar claramente demonstrada a ineficácia
do mesmo enquanto critério objetivo de definição de competência.
Dentre os critérios adotados para a fixação do valor exato da causa, destaca-se o
Enunciado 39 do FONAJE – Fórum Nacional dos Juizados Especiais –, que define que:
“Em observância ao art. 2º da Lei n. 9.099/95, o valor da causa corresponderá à pretensão
econômica do objeto do pedido”, o que acarreta novo problema, visto que a pretensão do
autor, muitas vezes, pode ser arbitrada livremente pelo mesmo na inicial, embora o juiz da
causa não fique adstrito, no momento de proferir a sentença, a considerar o valor pedido
pelo autor como absoluto, podendo, portanto, também livremente arbitrar valor muito
inferior ao pretendido, se assim entender correto.
Uma vez que o autor pleiteie indenização de valor superior ao teto de 40 salários
mínimos, o processamento do feito foge à competência dos Juizados Especiais, devendo
ser analisado em uma Vara Cível comum, pelo rito ordinário. Entretanto, estando o juiz
livre para arbitrar valor inferior, pode o magistrado entender ser o autor merecedor de
indenização de valor inferior a 40 salários mínimos – hipótese na qual o feito poderia
claramente ser processado no Juizado Especial Cível, embora não o tenha sido – o que
acaba por representar óbice ao princípio da celeridade, tão importante e discutido hoje
em nosso ordenamento – como se pode ver através das metas nacionais estabelecidas pelo
CNJ, que sempre contemplam o princípio.
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– A DIFERENCIAÇÃO ENTRE PEQUENAS CAUSAS E CAUSAS DE MENOR COMPLEXIDADE –
Em suma, o raciocínio vigente era de que os Juizados Especiais Cíveis teriam competência para o processamento e julgamento das causas cíveis cujo valor não ultrapassasse
o teto de quarenta salários mínimos. Assim, tem-se que o principal fator utilizado para
fixar a competência dos Juizados Especiais Cíveis ou afastá-la seria, em última análise, o
valor da causa.
Entretanto, conforme consta da própria Lei n. 9.099/95, a competência dos Juizados Especiais Cíveis não é para o processamento e julgamento das causas com valor
inferior a 40 salários mínimos, mas sim das causas cíveis de menor complexidade, sendo
o critério do valor uma das formas para se aferir tal complexidade, mas definitivamente
não a única, ou a redação do artigo não seria esta – destaca-se, ainda hoje vigente, sem
qualquer alteração.
Além disso, ao se definir o conceito de complexidade como sendo igual a um valor,
e especialmente, a um valor que se altera com frequência, como é o caso do salário mínimo nacional, podem surgir situações controversas que colocam em dúvida se, de fato, a
complexidade da matéria teria alguma relação direta com o valor atribuído à causa.
A título de exemplo, um autor poderia ingressar com uma causa em determinada data junto a uma das Varas Cíveis da Comarca, para descobrir, no dia seguinte, que
sua demanda agora é considerada “menos complexa”, podendo ser proposta junto a um
Juizado Especial Cível, gozando do benefício de ser processada por um rito mais célere
e simples. Entretanto, ainda que o autor possa livremente desistir do pleito para, então,
reingressar perante o Juizado local, novamente se vê uma grande ofensa aos princípios da
celeridade e da economia processual – norteadores do rito sumariíssimo – pois as custas
iniciais pagas se perderiam nesta hipótese.
Constatação clara de que a complexidade da matéria não deve ser diretamente relacionada com o valor da causa existe dentro da própria Lei n. 9.099/95, conforme leciona
Chimenti (2005,p. 35):
As ações de despejo para uso próprio do imóvel eram as que em maior número chegavam à apreciação
do Poder Judiciário. A fim de agilizar a solução de tais demandas, estabeleceu o legislador que tais
causas poderiam ser processadas perante os Juizados Especiais, observado o rito sumariíssimo deste.
Marisa Ferreira dos Santos leciona de forma semelhante, relacionando a complexidade da matéria não ao valor da causa ou ao objeto da matéria, mas à questão probatória:
Sob a luz do art. 98, I, da CF, há que se concluir que as questões de direito, por mais intrincadas e
difíceis que sejam, podem ser resolvidas dentro do Sistema dos Juizados Especiais [...].
Por outro lado, quando a solução do litígio envolve questões de fato que realmente exijam a realização
de intrincada prova, após tentativa de conciliação o processo [...] deve ser extinto e as partes
encaminhadas para a Justiça ordinária [...]. É a real complexidade probatória que afasta a competência
dos Juizados Especiais (SANTOS, 2006, p. 1).
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– Felipe Rapallo Musco –
Entendimento no mesmo sentido pode ser encontrado na obra de Joel Dias Figueira Júnior:
[...] não há que se confundir pequeno valor com reduzida complexidade do litígio, seja em termos
fáticos ou jurídicos. Nada obsta que estejamos diante de uma ação que não ultrapasse quarenta salários
mínimos mas que, em contrapartida, apresente questões jurídicas de alta indagação [...] (FIGUEIRA
JUNIOR, 2005, p. 60).
O Enunciado 15 do I Encontro de Juízes de Juizados Especiais Cíveis da Capital e
da Grande São Paulo reforça este entendimento, afirmando que “causas de menor complexidade são aquelas previstas no artigo 3º da Lei 9.099/95, e que não exijam prova técnica
de intensa investigação. A alta complexidade jurídica da questão, por si só, não afasta a
competência dos Juizados Especiais”, em momento algum fazendo referência ao valor da
causa.
No mesmo sentido, o Enunciado 54 do FONAJE, que estatui que “a menor complexidade da causa para a fixação da competência é aferida pelo objeto da prova e não em
face do direito material”, novamente afastando o valor da causa como critério principal.
Outro fator que reforça o ponto ora suscitado surge do Direito Comparado, visto
que os Juizados Especiais foram criados tendo em vista a experiência realizada por outros
países, conforme explica Joel Dias Figueira Júnior:
[...] nos sistemas alienígenas dos povos cultos, [...] a limitação gira em torno de, no máximo, US$
5.000,00. Vejamos alguns exemplos: o sistema norte-americano, no qual nosso legislador espelhouse nas Small Claims Courts, sendo que em alguns Estados a competência atinge a cifra mencionada;
no Japão, as Sumary Courts são competentes para as demandas com valor até 300.000 yens, ou seja,
inferior a US$ 3.000,00; por sua vez, no México, os Jueces Menores solucionam demandas cujos valores
não ultrapassam 3.000 pesos, ou seja, inferiores a US$ 1.000,00 (TOURINHO NETO; FIGUEIRA
JUNIOR, 2005, p. 106).
Quando da criação dos Juizados Especiais Cíveis, em 1995, o salário mínimo vigente era de apenas R$ 70,00 (setenta reais), o que, multiplicado pelo valor de alçada proposto, atingia o limite de R$ 2.800,00 (dois mil e oitocentos reais), equivalente na época
a aproximadamente US$ 2,500.00 (dois mil e quinhentos dólares americanos), estando,
como se vê, dentro da faixa de valor utilizada em diversos outros países.
Entretanto, em face do aumento do salário mínimo brasileiro, o valor atual já perdeu sua identidade com as causas ditas pequenas inicialmente idealizadas, visto que, atualmente, a alçada dos Juizados Especiais Cíveis atinge causas com valor de até R$21.800,00,
aproximadamente US$ 12,800.00 (doze mil e oitocentos dólares americanos), estando,
portanto, o próprio limite máximo norte-americano – o mais alto dentre os analisados, e
inspiração maior do legislador brasileiro ao tentar repetir a experiência – superado, em
muito. Além disso, demandas de valor razoavelmente alto – equivalente a R$ 10.900,00,
quando foram idealizadas para girar em torno de R$ 1.500,00 – são passíveis, no cenário
jurídico nacional, da postulação pela própria parte, sem que seja necessário o auxílio de
advogado.
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– A DIFERENCIAÇÃO ENTRE PEQUENAS CAUSAS E CAUSAS DE MENOR COMPLEXIDADE –
Mesmo o referido autor entende não ser o valor da causa o critério o mais adequado à definição prática da complexidade:
Optou o legislador por estabelecer os critérios quantitativo (valor até quarenta salários mínimos)
e da matéria com o escopo de circunscrever as demandas que, em princípio, apresentariam menor
complexidade [...].
Contudo, não há que se confundir pequeno valor com reduzida complexidade do litígio, seja em
termos fáticos ou jurídicos. Nada obsta que estejamos diante de uma ação que não ultrapasse quarenta
salários mínimos, mas que, em contrapartida, apresente questões jurídicas de alta indagação, não raras
vezes acrescida da necessidade de intrincada produção de prova (TOURINHO NETO; FIGUEIRA
JUNIOR, 2005, p. 115).
No mesmo sentido, cabe citar o entendimento de Horácio Wanderlei Rodrigues,
doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina:
[...] a menor complexidade não está ligada ao valor da causa, mas sim ao seu conteúdo (matéria).
Ao estabelecer que são de menor complexidade as ações de valor até quarenta salários mínimos o
legislador misturou duas realidades absolutamente diversas (RODRIGUES, 1996, p. 22-42).
Ocorre, ainda, que a própria legislação brasileira cria exceções ao critério do valor
da causa, através da enumeração específica de matérias, como no caso das ações de despejo, reguladas pelo art. 80 da Lei n. 8.425/91, que relaciona as mesmas como podendo
ser consideradas causas cíveis de menor complexidade, muito embora o Enunciado 4 do
FONAJE estatua de maneira diversa, limitando a competência dos Juizados somente ao
processamento do despejo para uso próprio, o que se traduz em uma demonstração prática da incerteza quanto ao critério que se deveria utilizar para decidir quão complexas são
as demandas propostas: “Nos Juizados Especiais só se admite a ação de despejo prevista
no art. 47, III, da Lei 8.245/1991”.
Prova inequívoca, ainda, da ausência de relação direta entre o valor da causa e a
complexidade da matéria advém da exclusão sumária da alçada de competência dos Juizados Especiais, através de um rol taxativo, das causas que seriam consideradas complexas
por natureza – ou estariam afastadas por conflito de competência –, conforme lecionam
Tourinho Neto e Figueira Júnior:
[...] estão previamente excluídas da competência dos Juizados Especiais as demandas de natureza
alimentar, fiscal ou tributária e todas aquelas de interesse da Fazenda Pública (seja estadual, federal
ou municipal), bem como as relativas a acidentes de trabalho, a resíduos e ao estado e capacidade das
pessoas, ainda que de cunho patrimonial.
A expressão “Fazenda Pública” [...] está empregada no sentido amplo, abrangendo os entes públicos
em geral. Tanto é que o art. 8º, caput, obsta a que sejam partes nos Juizados Especiais não apenas
as pessoas jurídicas de direito público, mas também as empresas públicas (TOURINHO NETO;
FIGUEIRA JUNIOR, 2005, p. 143).
Embora a indexação da alçada ao valor vigente do salário mínimo possa parecer
uma boa alternativa à necessidade de se realizar constantes alterações legislativas, visto
que não é necessário emendar a Lei para atualizar o valor, pois ela se “atualiza” sozinha
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– Felipe Rapallo Musco –
conforme progride o salário mínimo nacional, essa medida traz consigo grande carga de
incoerências práticas.
Inicialmente, de acordo com o art. 7º, IV, parte final, da Constituição Federal, é
vedada a vinculação do salário mínimo para qualquer fim. Desta forma, a indexação da
alçada de competência ao valor do salário mínimo é diretamente inconstitucional, eis que
a Constituição determinou a criação dos Juizados Especiais em seu texto, mas não a regulamentação envolvendo a sua alçada, o que foi feito através de Lei Federal.
Soma-se a isso o fato de a Lei n. 10.259/01 ter estabelecido valor diverso, em se
tratando dos Juizados Especiais Cíveis Federais, e que este novo valor não foi utilizado
subsidiariamente para os Juizados Especiais Cíveis Estaduais, e o número de situações que
suscitam questionamentos quanto à relação entre o valor da demanda e a sua complexidade se amplia.
Embora a magistratura estadual e a federal sejam carreiras análogas, somente divergindo na competência, a não aplicação do valor proposto pela Lei n. 10.259/01, subsidiariamente, à Lei n. 9.099/95 acaba por estabelecer uma diferenciação de ordem prática entre magistrados estaduais e federais. Aparentemente, uma mesma causa pode ser
considerada excessivamente complexa para ser analisada por um juiz estadual, mas ser
considerada simples se analisada por um juiz federal, uma situação absurda.
Mais do que isso, em se tratando, por exemplo, de um acidente de trânsito envolvendo dois veículos comuns, e de um acidente de trânsito envolvendo um veículo a
serviço da União, sendo os valores de ambas as causas superiores a 40 e inferiores a 60 salários mínimos, esta última será a menos complexa. A causa que envolve responsabilidade
civil do Estado, bem como danos a um bem público, é a causa de menor complexidade,
enquanto a que envolve somente relação entre particulares é tida como a mais complexa
dentre estas.
Mesmo saindo do âmbito de comparação entre a Justiça Estadual e a Federal, quando se relaciona diretamente complexidade com valor, ainda outras situações peculiares
surgem. Assim, tome-se por base somente o âmbito da Justiça Estadual e a sua alçada para
as situações seguintes.
Um acidente automobilístico entre duas pessoas que não se encontram a trabalho,
do qual advenham danos a ambos os veículos, não parece ser uma causa juridicamente
complexa, já que basta se apurar a responsabilidade do acidente para se averiguar quem
tem o dever de indenizar. De fato, um acidente desta natureza que envolva um Fusca
e uma Brasília será analisado no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis. Entretanto, se o
mesmo acidente ocorrer entre um Porsche e uma Ferrari, a causa se torna “por demais
complexa” para ser analisada nos Juizados Especiais, devendo ser processada e julgada
perante uma Vara Cível – a menos que o autor esteja disposto a renunciar ao crédito
excedente, o que definitivamente não seria um bom negócio. Assim, pode-se dizer que,
em virtude da indexação a um valor, a complexidade da matéria, em alguns casos, estaria
diretamente relacionada à condição econômica das partes envolvidas, já que a primeira de
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– DIREITO AMBIENTAL - RESPONSABILIDADE CIVIL PELOS DANOS, INCLUSIVE MORAL, AO MEIO AMBIENTE –
manda é considerada simples e a segunda é considerada complexa, ainda que levando-se
em consideração a análise por um mesmo magistrado.
Seguindo adiante, considerando que um autor entre com uma ação de execução
de título extrajudicial de valor superior a 40 salários mínimos perante o Juizado Especial Cível da Comarca, em tese, a demanda não poderá ser processada e julgada naquele
órgão, salvo se este renunciar ao crédito excedente. Considerando que o autor o faça, a
causa seguirá os trâmites normais do rito sumariíssimo, processada e julgada no Juizado
Especial Cível sem quaisquer problemas. Entretanto, não é fácil ver a relação entre as duas
coisas, afinal, se não houve alteração na necessidade ou na forma da produção das provas,
nem tampouco no trâmite legal do processo, ou seja, se a única mudança na demanda foi
o valor a ser cobrado do requerido, não há fundamento para se dizer que a causa era complexa, mas tornou-se simples. Então, pode-se dizer que a regra dita “correta” relacionaria,
em alguns casos, a complexidade da matéria com a pretensão do autor. Se ela for alta, a
causa é complexa, ainda que seja de processamento idêntico ao de uma causa igual de valor menor. Mais que isso, se o autor estiver disposto a renunciar, em parte, à sua pretensão
inicial, a causa torna-se simples instantaneamente.
Ainda no campo das especulações, o salário mínimo vigente foi alterado, em
1º/3/2011, passando de R$ 510,00 para R$ 545,00. Desta forma, a competência dos Juizados Especiais Cíveis Estaduais teve seu teto alterado, na mesma data, de R$ 20.400,00
para R$ 21.800,00. Assim, uma demanda de valor igual a R$ 21.000,00, proposta até o dia
28/2/2011, era tida como complexa e deveria ser processada perante uma das Varas Cíveis
da Comarca adequada, exceto havendo renúncia ao crédito excedente por parte do autor.
Entretanto, se este decidisse propor a mesma demanda no dia seguinte, 1º/3/2011, ela seria menos complexa e poderia ser processada perante o Juizado Especial Cível da Comarca em questão. Isso prova o quanto a indexação da alçada dos Juizados ao salário mínimo
é imprópria, em especial considerando-se o fato de que aqueles autores que renunciaram
ao seu crédito excedente e receberam a quantia de R$ 20.400,00, quando teriam direito a
ter recebido R$ 21.800,00, não podem ingressar novamente em juízo para receber o valor
excedente perdido. Além disso, não é razoável afirmar que a mesma demanda, da noite
para o dia, sem que nada se altere no cenário nacional em relação ao direito material
ou processual envolvido, torne-se “mais simples”. Desta forma, pela “posição dominante”,
poder-se-ia dizer que, em determinados casos, a complexidade da matéria estaria relacionada com a data de propositura da ação, o que não tem o menor fundamento jurídico.
Conforme explicado anteriormente, a ideia da limitação do valor da causa nos
Juizados Especiais Cíveis foi baseada em experiências estrangeiras, muito embora nos
países utilizados como modelo os valores de alçada das ditas Small Claims Courts – nome
do equivalente norte-americano dos Juizados Especiais Cíveis, utilizado genericamente
como expressão internacional – sejam fixos e não indexados ao salário mínimo vigente
neles, visando justamente evitar as deturpações demonstradas acima.
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Além disso, analogamente, as Small Claims Courts se aproximam mais dos antigos
Juizados de Pequenas Causas, propostos pela Lei n. 7.244/84, visto que, de acordo com
Chimenti, pequenas causas têm relação direta com seu valor, diferentemente de causas de
menor complexidade. Por fim, na época de criação dos Juizados Especiais Cíveis, o valor
máximo da alçada se aproximava com as experiências estrangeiras, mas, com a progressão do salário mínimo, este valor já se perdeu completamente, estando hoje bem acima do
utilizado pelos países tidos como modelo na época.
3. CONCLUSÃO
O posicionamento do Superior Tribunal de Justiça não é discrepante ou infundado.
De fato, segue uma linha extremamente lógica de raciocínio hermenêutico-jurídico, sendo espelho de anos de pesquisa de diversos juristas, ainda que descreditados e tomados
como minorias.
Embora, durante anos, tenha-se relegado o termo pequenas causas ao posto de
“sinônimo adormecido” das atuais causas de menor complexidade, vê-se que existe uma
palpável diferença entre os termos, sendo esta acentuada quando da análise crítica das
situações fáticas, como demonstrado.
Os legisladores brasileiros, pela própria maneira que se dão os provimentos dos
cargos, não possuem, em regra, conhecimento jurídico suficiente para adequar o direito à
realidade, sendo seu trabalho feito, frequentemente, de forma precária, cabendo ao Judiciário, muitas vezes, a reinterpretação e a adequação das normas para torná-las eficazes.
Não pode, portanto, o operador do Direito ficar adstrito ao corpo do texto legal,
devendo sempre buscar nas experiências anteriores as justificativas que ensejaram as normas atuais, de forma que sua aplicabilidade seja plena, eficiente e adequada à evolução
sócio-econômica da sociedade, buscando-se sempre atingir de forma plena os anseios da
sociedade, não tendo medo de efetuar mudanças quando elas forem visivelmente necessárias.
Os Juizados Especiais Cíveis, conforme visto, são exemplo disso, devendo passar
por uma reestruturação, tanto organizacional quanto dos operadores por eles responsáveis, sob pena de perderem o foco na motivação principal que justificou seu surgimento:
a simplificação do sistema jurídico, para obtenção de celeridade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
I ENCONTRO DE JUÍZES DE JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS DA CAPITAL E DA
GRANDE SÃO PAULO, Enunciado 2.
______. Enunciado 8.
______. Enunciado 15.
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– A DIFERENCIAÇÃO ENTRE PEQUENAS CAUSAS E CAUSAS DE MENOR COMPLEXIDADE –
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
______. Dispõe sobre a criação e o funcionamento do Juizado Especial de Pequenas Causas.
Lei n. 7.244 publicada em 7 de novembro de 1984.
______. Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências. Lei
n. 9.099 publicada em 26 de setembro de 1995.
______. Dispõe sobre a instituição dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da
Justiça Federal. Lei n. 10.259 publicada em 12 de julho de 2001.
CÂMARA, Alexandre Freitas. Juizados especiais cíveis estaduais e federais: uma abordagem
crítica. 3. ed. atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
CHIMENTI, Ricardo Cunha. Juizados especiais cíveis e criminais federais e estaduais. 3.
ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005.
FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Manual dos juizados especiais cíveis estaduais e federais.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
FÓRUM NACIONAL DE JUIZADOS ESPECIAIS, Enunciado 4.
______. Enunciado 15.
______. Enunciado 39.
______. Enunciado 54.
______. Enunciado 58.
______. Enunciado 69.
RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Juizados Especiais Cíveis: inconstitucionalidades,
impropriedades e outras questões pertinentes. Gênesis - Revista de Direito Processual Civil,
Curitiba, v. 1, p. 22-42, 1996.
SANTOS, Marisa Ferreira dos. Juizados especiais cíveis e criminais: federais e estaduais,
tomo II. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006.
TOURINHO NETO, Fernando da Costa; FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Juizados
especiais estaduais cíveis e criminais: comentários à Lei 9.099. 4. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2005.
<http://www.adreferendum.net/2009/05/stj-libera-juizados-especiais-para.html>. Acesso
em: ago. 2009.
106
Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 2 • Dez/2011
OS ACORDOS ENTRE AS PARTES NO DECORRER
DOS PROCESSOS DE FAMÍLIA: UMA ANÁLISE DOS
MUTIRÕES DA CONCILIAÇÃO NA COMARCA DE
POMERODE
AGREEMENTS BETWEEN THE PARTIES DURING THE
PROCEEDINGS OF THE FAMILY: AN ANALYSIS OF THE
CONCILIATION JOINT EFFORTS IN THE REGION OF
POMERODE
Anderson Luz dos Santos1
Resumo: Descobrir os meandros dos acordos judiciais dentro de crises existentes
no instituto social mais antigo e consolidado da humanidade, a família. Buscar o
surgimento dos institutos da família e da conciliação. Conhecer as possibilidades
de realização de acordos dentro da legislação brasileira. Pesquisar a origem dos Mutirões da Conciliação. Verificar se os mutirões da conciliação têm efetivo resultado
quando da realização das audiências em processo de família na Comarca de Pomerode.
Palavras-Chave: Conciliação. Paz Social. Justiça. Mutirão. Separação. Divórcio.
Abstract: Find out the intricacies of court settlements within existing crisis in the
institute and consolidated social oldest of mankind, the family. Search the appearance of
the Institutes of family and conciliation. To know realization possibilities of agreements
within Brazilian legislation; finding the origin of Joint conciliation efforts. To check joint
conciliation efforts has effective results when conducting hearings in family proceedings
in the County of Pomerode.
Keywords: Conciliation. Social Peace. Justice. Effort. Separation. Divorce.
1 Especialista em Direito Processo Civil pelo ICPG. Secretário do Juizado Especial em Pomerode - SC. E-mail:
[email protected]
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– OS ACORDOS ENTRE AS PARTES NO DECORRER DOS PROCESSOS DE FAMÍLIA: UMA ANÁLISE DOS MUTIRÕES DA CONCILIAÇÃO NA COMARCA DE POMERODE –
1. INTRODUÇÃO
Mesmo nos tempos mais remotos da existência humana, a família esteve presente
como instituição basilar das sociedades humanas. E a família, assim como a sociedade,
passa, de tempos em tempos, por crises institucionais. Desde que o homem passou a conviver em sociedade, existem os problemas de relacionamento, dentro e fora da família.
O Poder Judiciário, personificando o sentimento de guardião da justiça e com a
missão de promover a paz social, vem ao longo da história intermediando os conflitos sociais e familiares. Contudo, apenas mais recentemente tem conseguido alcançar tal fim.
É justamente pela existência tão antiga e tão conturbada da família que pretendemos analisar a influência dos mutirões da conciliação na realização de acordos entre as
partes nos processos judiciais de separação, dissolução de sociedade de fato e divórcio (na
Comarca de Pomerode - SC), que, para fins deste trabalho, chamaremos simplesmente de
processos de família.
Tentaremos entender por que as partes não fazem acordo antes e no decorrer dos
processos de família, sem a oportunidade de uma audiência conciliação.
2. CONCEITO DE CONCILIAÇÃO E FAMÍLIA
Uma das razões pelas quais o ser humano dominou o planeta Terra foi a percepção
de que a força do grupo é maior que a individual. A primeira demonstração disso foi a
formação da família como instituição. Depois as famílias juntaram-se para formar clãs, os
clãs formaram vilas, e assim por diante até o surgimento dos estados modernos complexos. Essa convivência em grupo, além de gerar certa estabilidade, cria também as intrigas
e discussões entre as pessoas.
O Código Civil de 1916 conceituava família como sendo a união de duas pessoas
pelo casamento e os filhos advindos dessa união. Com o advento da Constituição de 1998
e do novo Código Civil de 2002, o conceito de família passou a ser mais abrangente, ou
seja, entidade familiar seriam os pais, casados ou não, e os filhos havidos pelos dois por
um dos cônjuges/companheiros com outra pessoa, mas que conviva com o casal (CURY,
2002, p. 102).
A pessoa relaciona-se a uma família de três formas. Pelo vínculo do parentesco, pelo vínculo conjugal
e pelo vínculo de afinidade. Parentesco é a relação das pessoas vinculadas pelo sangue a um mesmo
tronco ancestral. Vínculo conjugal é o elo entre marido e mulher. Afinidade é a relação que liga uma
pessoa aos parentes de seu cônjuge (FÜHRER, 2003, p. 101, grifo do autor).
Conciliar é uma palavra originária do latim conciliare, que no rigor da tradução
significa atrair, ajuntar, harmonizar. Hoje, compreende-se conciliar como o ato pelo qual
duas ou várias pessoas que possuam uma desavença advinda de um negócio resolvam o
litígio de forma amigável, por meio de um acordo. O acordo pode ser extrajudicial, ou
seja, sem que uma das partes tenha ingressado em juízo, ou judicial, quando já exista um
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Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 2 • Dez/2011
– Anderson Luz dos Santos –
processo. Advinda a conciliação, no caso de processo já instaurado, o mesmo será extinto
ou suspenso, nos termos dos artigos 269 ou 267 do CPC (LIMA, 2002, p. 17).
Conciliador é a pessoa destinada a tentar resolver os conflitos existentes entre as
pessoas, que tanto pode ser um funcionário público (juiz – promotor – serventuário da
justiça), alguém credenciado pelo poder público para atuar como conciliador, quanto
uma pessoa propensa a ajudar duas ou mais pessoas a resolver seus problemas de forma
amistosa.
Em muitas situações de conflito, é útil contar com a participação de uma terceira pessoa para
auxiliar no encaminhamento da solução. Essa terceira parte que vem a se envolver na negociação deve
ser de alguém que não esteja diretamente envolvido na situação, mas que possa ser útil para resolvê-la.
Ela deve ser imparcial, podendo ser um amigo comum, nos casos de negociação mais simples, ou uma
pessoa absolutamente neutra, que ambas as partes conheçam, e que venha auxiliar no processo, ou
pode ser ainda um profissional, habilitado para exercer esse tipo de atividade, e que esteja habituado
a essas situações e que as tenha como sua atividade profissional (MARTINELI; ALMEIDA, 1998,
p.71).
3. A CONCILIAÇÃO E A FAMÍLIA AO LONGO DOS TEMPOS
Juntamente com essas novas situações sociais (famílias – clãs – vilas), surge a figura
do líder ou chefe, cuja responsabilidade é manter a sociedade organizada e apaziguar os
conflitos eminentes e constantes que surgem da convivência.
Deste modo, o conflito não necessariamente acontece entre duas pessoas, podendo existir entre dois
grupos, um grupo e uma pessoa, uma organização e um grupo, e assim por diante. E diante desta visão,
percebe-se que o conflito está ligado à frustração, fato que o desencadeia. Reconhecido esse processo,
o fenômeno do conflito pode ter um efeito construtivo ou destrutivo, dependendo da maneira como
é administrado. (MARTINELI; ALMEIDA, 1998, p.46).
Foi também na família, a primeira instituição humana, que surgiu o instituto da
conciliação, função assumida pelo pater familias, ou seja, o chefe da família. Conforme a
sociedade, esse chefe podia ser homem ou mulher, dependendo da cultura de cada civilização.
O primeiro registro escrito da oficialização da conciliação aparece em cerca de 1780
a.C. no Código de Hamurabi. Na Suméria, Hamurabi impôs um código de leis no qual
havia previsão da existência de um conciliador público para tentar resolver as questões
amigavelmente. Desta forma apenas os casos mais graves e sérios chegariam para julgamento do grande imperador (LIMA, 2002, p. 18).
Entre os gregos, havia previsão para que um funcionário atuasse como mediador,
na tentativa de convencer os litigantes a comporem. Já no Império Romano, até que Calígula (imperador de 37-41) transformasse o acordo em fraude ao fisco, permaneceu em
vigor o previsto na Lei das XII Tábuas, que colocava fim ao processo caso as partes fizessem um acordo (LIMA, 2002, p. 18).
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– OS ACORDOS ENTRE AS PARTES NO DECORRER DOS PROCESSOS DE FAMÍLIA: UMA ANÁLISE DOS MUTIRÕES DA CONCILIAÇÃO NA COMARCA DE POMERODE –
No cristianismo, durante séculos os imperadores cristãos delegaram aos bispos o
papel de árbitros e conciliadores para tentar solucionar as divergências havidas entre os
fiéis. A conciliação era referendada na audiência episcopal. Tudo com base na bíblia sagrada (LIMA, 2002, p. 19, grifo nosso).
21 Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás; mas qualquer que matar será réu de juízo. 22 Eu,
porém, vos digo que qualquer que, sem motivo, se encolerizar contra seu irmão, será réu de juízo; e
qualquer que disser a seu irmão: Raca, será réu do sinédrio; e qualquer que lhe disser: Louco, será réu
do fogo do inferno. 23 Portanto, se trouxeres a tua oferta ao altar, e aí te lembrares de que teu irmão
tem alguma coisa contra ti, 24 Deixa ali diante do altar a tua oferta, e vai reconciliar-te primeiro com
teu irmão e, depois, vem e apresenta a tua oferta. 25 Concilia-te depressa com o teu adversário,
enquanto estás no caminho com ele, para que não aconteça que o adversário te entregue ao juiz,
e o juiz te entregue ao oficial, e te encerrem na prisão. 26 Em verdade te digo que de maneira
nenhuma sairás dali enquanto não pagares o último ceitil. (BÍBLIA, 1989, p.1065)
Depois das invasões bárbaras, o direito romano sofreu diversas modificações e influências, além de influenciar e modificar a legislação de diversos povos. Assim, o instituto da conciliação acaba tornando-se basilar no processo em vários países da Europa.
Primeiro no direito holandês, depois no francês, espanhol e português, do qual herdamos
nosso ordenamento jurídico (LIMA, 2002, p. 19).
Mesmo reconhecendo, ao longo da história, a existência da conciliação, temos que
revelar a predominância da autotutela durante toda a história da humanidade. Os acordos
não eram tão frequentes. Até porque o direito não era consolidado como hoje. As partes,
na maioria das vezes, tinham que resolver os problemas por si mesmos (LIMA, 2002, p.
19-20).
Apenas mais recentemente (século XVIII), considerando o surgimento do homo
sapiens há 200 mil anos, conseguiu-se que o Estado assumisse seu papel efetivo de pacificador social, interferindo diretamente nos litígios (SCHMIDT, 2005).
4. finalidade da justiça
Justiça é dar ou deixar de dar a cada cidadão o que lhe é de direito quando há conflito de interesses. Para muitos, é o sentimento do que é certo ou errado de acordo com a
moral de cada sociedade, materializado por meio das leis.
Em nossa sociedade moderna, quem personifica a função de distribuir a justiça
para as pessoas, de forma que ninguém faça justiça com as próprias mãos, é o Poder Judiciário.
Distribuir a Justiça é nossa missão maior. Facilitá-la de maneira criativa é o compromisso que
assumimos desde o início desta gestão. A conciliação é uma dessas maneiras e já comprovamos, pelos
Mutirões realizados, que quando oferecemos às partes a ocasião para resolverem seus conflitos de
forma simples e rápida, estamos não apenas contribuindo para a eficiência na prestação jurisdicional,
mas também proporcionando à sociedade a oportunidade de restaurar o entendimento e a harmonia
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Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 2 • Dez/2011
– Anderson Luz dos Santos –
nas suas relações individuais ou coletivas, pressuposto da própria paz social, que é, afinal, nossa
função primordial e propósito de nossa existência (MUSSI, 2007).
As brigas de família, que culminam nos processos de família, deixam mágoas e
sentimentos indescritíveis e inenarráveis nas pessoas, ocasionando certa aversão entre
as partes envolvidas. Apesar de se gostarem, muitas vezes por orgulho e egoísmo não
voltam a se falar sem um intermediário, que na sua quase totalidade acaba sendo o Poder
Judiciário.
A tarefa de conceber conjuntamente uma solução aceitável tende a se transformar numa batalha.
Cada um dos lados tenta, através de mera força de vontade, forçar o outro a alterar sua posição.
“Não vou ceder. Se você quiser ir ao cinema comigo, é pra ver O Falcão Maltês ou nada”. A raiva e
o ressentimento são um resultado frequente quando um dos lados se percebe curvando-se à rígida
vontade do outro, enquanto seus próprios interesses legítimos são colocados de lado (FISHER; URY;
PATTON, 1994, p. 24, grifo dos autores).
Recentemente o judiciário tem se aperfeiçoado nas questões de planejamento estratégico com ênfase na gestão para resultados. Dentro desta filosofia estão os mutirões da
conciliação (FONTES, 2010).
E para facilitar e agilizar a distribuição da justiça foram criados os mutirões da
conciliação, como opção de minimizar os conflitos e solucionar a animosidades existentes
entre as partes.
5. A CONCILIAÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO
Não é de hoje que o direito brasileiro disciplina a conciliação como forma legal
de extinguir ou suspender o curso dos processos. Entretanto a resolução que institui o
mutirão da conciliação surge num momento em que os acordos não são tão frequentes,
e a demora na resposta processual por parte do Estado (para dizer a que parte cabe qual
direito) vem crescendo a passos largos.
Após a promulgação da Constituição de 1988, o Judiciário foi chamado ao primeiro plano do cenário
político nacional, quer pela outorga de novos direitos, quer pela consciência de cidadania, quer pela
ineficiência dos serviços prestados. A aproximação do Judiciário da sociedade vem se ampliando na
exata medida em que aumenta o grau de conhecimento dos direitos. O resultado é que, se até 1988, cerca
de 350 mil processos novos chegavam por ano aos Tribunais, hoje, esse número chega a 24 milhões.
O número de juízes e a estrutura funcional nem de longe sofreram alteração na proporção necessária
para atender a tão espantoso aumento dos litígios. Para enfrentar a crescente demanda gerada pela
excessiva jurisdicionalização dos conflitos, é que começou a se desenhar uma nova proposta surgida
do próprio Judiciário: a composição dos litígios pela conciliação. Não era mais possível a persistência
na prática do modelo existente de delegar a um terceiro a capacidade de resolver conflitos. Para tanto,
bastava uma estrutura simples: um ambiente adequado e pessoas treinadas para intermediar a solução
melhor às partes. Sem grandes gastos, sem complicação, sem necessidade de construção de prédios
nem contratação de pessoal. Sem mais do mesmo (PACHÁ, 2008).
Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 2 • Dez/2011
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– OS ACORDOS ENTRE AS PARTES NO DECORRER DOS PROCESSOS DE FAMÍLIA: UMA ANÁLISE DOS MUTIRÕES DA CONCILIAÇÃO NA COMARCA DE POMERODE –
Esse grande acúmulo de processos nas linhas de frente do Judiciário tem causado
descontentamento por parte dos jurisdicionados e dos advogados. E para tentar solucionar essa dificuldade é que surgem, juntamente com a informatização da justiça e dos
processos, os mutirões da conciliação. Tudo com base em nosso ordenamento jurídico
vigente e com algumas adequações e determinações internas do Poder Judiciário (por
meio de resoluções do Tribunal de Justiça de Santa Catarina e recomendações do Conselho Nacional de Justiça).
Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão:
I - juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação,
o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor
potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas
em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau; (BRASIL, 1988,
p. 80).
Nosso Códex Processual já há muito previa a solução rápida e a possibilidade de
conciliação, bastado para tal apenas ser colocado em prática pelos agentes do direito, em
especial os juízes, por serem os condutores do processo.
Dos Poderes, dos Deveres e da responsabilidade do Juiz
Art. 125. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, competindo-lhe:
I - assegurar às partes igualdade de tratamento;
II - velar pela rápida solução do litígio;
III - prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da Justiça;
IV - tentar, a qualquer tempo, conciliar as partes. (Incluído pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994) [...]
(CPC, 1999, p.43).
Conforme já mencionado, o Código de Processo Civil autoriza o juiz a utilizar o
mecanismo da conciliação, mas nem todos o faziam da mesma forma, ou simplesmente
não faziam. Foi por isso que surgiu a uniformização, pelos institutos superiores.
Da Conciliação
Art. 447. Quando o litígio versar sobre direitos patrimoniais de caráter privado, o juiz, de ofício,
determinará o comparecimento das partes ao início da audiência de instrução e julgamento.
Parágrafo único. Em causas relativas à família, terá lugar igualmente a conciliação, nos casos e para os
fins em que a lei consente a transação.
Art. 448. Antes de iniciar a instrução, o juiz tentará conciliar as partes. Chegando a acordo, o juiz
mandará tomá-lo por termo.
Art. 449. O termo de conciliação, assinado pelas partes e homologado pelo juiz, terá valor de sentença
[...] (CPC, 1999, p.87).
112
Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 2 • Dez/2011
– Anderson Luz dos Santos –
O Tribunal de Justiça de Santa Catarina foi pioneiro na implantação dos mutirões
da conciliação no ano de 2005, tendo seu modelo copiado posteriormente pelo CNJ, e sua
prática disseminada por todo país.
RESOLUÇÃO N. 04/05-GP
Institui a SEMANA DO MUTIRÃO DA CONCILIAÇÃO no Poder Judiciário de Santa Catarina. O
Presidente do Tribunal de Justiça de Santa Catarina,
CONSIDERANDO:
A necessidade de criar mecanismos para prestação jurisdicional mais eficaz e eficiente; Os resultados
altamente positivos decorrentes da realização de Mutirões da Conciliação e da Cidadania nas Comarcas
de São João Batista, Blumenau, Guaramirim e Jaraguá do Sul, assim como daqueles realizados, em
outras Comarcas e Varas, pelos próprios titulares e servidores,
R E S O L V E:
Art. 1º. Fica instituída, no Poder Judiciário de Santa Catarina, a Semana do Mutirão da Conciliação,
durante a qual, em todas as Comarcas e Varas do Estado, serão realizadas audiências simultâneas com
vistas à conciliação entre as partes.
Parágrafo único. Nas Varas em que, pela natureza dos processos, não há possibilidade de conciliação,
os titulares e servidores deverão cooperar nos procedimentos decorrentes da Semana.
Art. 2º. Compete ao Presidente do Tribunal estabelecer o período da Semana do Mutirão da
Conciliação.
Parágrafo único. No corrente ano, serão promovidas duas Semanas do Mutirão da Conciliação, de 13
a 17 de junho e de 7 a 11 de novembro.
Art. 3º. Durante a Semana do Mutirão da Conciliação não serão designadas outras audiências, salvo
as de caráter urgente, ficando suspensos os prazos processuais cíveis.
§ 1º. As audiências do cível em geral designadas para esses períodos, que não forem exclusivamente
de conciliação, deverão ser antecipadas ou transferidas – neste caso, para data mais próxima possível,
intimando-se, desde logo, as partes, advogados e testemunhas, se já tiverem sido intimados.
§ 2º. Nos juízos criminais, onde não houver possibilidade de conciliação, de transação penal e de
suspensão condicional do processo, não deverão ser realizadas audiências, salvo aquelas de réus presos,
que reclamem urgência, a fim de que se disponibilize estrutura para as audiências conciliatórias.
§ 3º. Não deverão ser agendados julgamentos pelo Tribunal do Júri, exceto os de caráter urgente.
Art. 4º. Ato do Presidente do Tribunal de Justiça regulamentará esta Resolução.
Art. 5º. Esta Resolução entrará em vigor na data de sua publicação.
Florianópolis,
16
de
fevereiro
de
2005.
DES.
JORGE
MUSSI
PRESIDENTE (TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2005).
6. MUTIRÃO DA CONCILIAÇÃO
Mutirão da Conciliação é o evento realizado no âmbito do Poder Judiciário, durante a Semana Nacional e Estadual de Conciliação, onde a justiça realiza sua força-tarefa
para agilizar o andamento dos processos: aumentar o número de conciliação e diminuir o
tempo de espera pelo fim do processo.
Tal medida foi implantada com a convicção de que um acordo é sempre uma boa
opção e com certeza a mais rápida e eficaz forma de encerrar um processo, isso no intui
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– OS ACORDOS ENTRE AS PARTES NO DECORRER DOS PROCESSOS DE FAMÍLIA: UMA ANÁLISE DOS MUTIRÕES DA CONCILIAÇÃO NA COMARCA DE POMERODE –
to de demonstrar respeito pelos milhões de brasileiros que não veem a hora de ter seus
direitos reconhecidos. Somente nos últimos três anos, mais de 300 mil acordos foram
realizados.
Conciliar é legal. E é, também, necessário. Ao implantar o Movimento pela Conciliação em agosto de
2006, o Conselho Nacional de Justiça teve por objetivo alterar a cultura da litigiosidade e promover
a busca de soluções para os conflitos mediante a construção de acordos. Hoje, já decorrido um ano,
mais do que comemorar uma data-marco, podemos demonstrar a consolidação do movimento como
projeto permanente que conta com a participação de todos os tribunais do país (GRECIE, 2007, grifo
do autor).
O mutirão foi um mecanismo encontrado para agilizar o andamento e pôr fim aos
processos de forma rápida e pacífica.
No caso concreto, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ou Tribunal de Justiça estadual marcam uma semana específica para a realização das audiências de conciliação. As
Varas competentes selecionam os processos e intimam as partes e advogados para comparecerem na audiência de conciliação. Durante essa semana grande parte dos trabalhos na
vara giram em torno desse evento (Magistrados, Promotores e Servidores).
A audiência é conduzida pelo Juiz ou Conciliador (designado por portaria pelo
Magistrado Diretor do Foro). Ambos estão capacitados para tentar esclarecer às partes
que o acordo é a melhor solução para o conflito, principalmente nos casos de família.
Após o sucesso ocorrido no Estado de Santa Catarina, o CNJ adotou o sistema de
mutirões para todo o país, sempre na semana em que cai o Dia da Justiça (8 de dezembro).
O Movimento pela Conciliação teve início no dia 23 de agosto de 2006. Naquele ano, o dia 8 de
dezembro foi dedicado à mobilização do Dia Nacional pela Conciliação. A primeira Semana Nacional
pela Conciliação ocorreu no ano seguinte, em 2007, de 03 a 08 de dezembro. Mais de três mil
magistrados e 20 mil servidores e colaboradores se empenharam e mais de 300 mil pessoas foram
atendidas. Para consolidar o Movimento pela Conciliação, o CNJ e seus parceiros realizam uma
série de medidas. Uma delas foi a edição da Recomendação número 8, do Conselho, que sugere aos
tribunais o planejamento e a viabilização das atividades conciliatórias (CNJ, 2009, grifo do autor).
7. MUTIRÃO DA CONCILIAÇÃO NOS PROCESSOS DE FAMÍLIA EM
POMERODE
Desde a criação dos mutirões da conciliação, a Vara Única da Comarca de Pomerode – SC vem participando de todos, tanto aqueles organizados pelo Tribunal de Justiça de
Santa Catarina (TJ – SC) quanto aqueles organizados pelo Conselho Nacional de Justiça
(CNJ).
Os Mutirões designados pelo TJ – SC foram nas seguintes datas e pelas respectivas
resoluções: de 13 a 17 de junho de 2005, Res. 04/05–GP; de 7 a 11 de novembro de 2005,
Res. 04/05–GP; de 21 a 25 de agosto de 2006, Res. 01/06–TJ; de 21 a 25 de maio de 2007,
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Res. 03/07–TJ; de 26 a 30 de maio de 2008 e 25 a 29 de maio de 2009, Res. 03/07–TJ. E pelo
CNJ sempre na semana do Dia da Justiça através da Recomendação nº 8 de 2007.
Durante esses eventos, várias salas são designadas para realização de audiências em
vários processos nos mais variados ritos, e uma em especial para realização de audiências
nos processos de família.
A especialização por rito processual auxilia e facilita a condução dos trabalhos por
parte do conciliador, agilizando a produção judicial e garantindo uma resposta mais dinâmica aos jurisdicionados. Assim afirma Fontes (2010, p.13): “Embora a esta altura já seja
impossível negar a – ou mesmo tergiversar a respeito da – proporcionalidade direta que
enlaça especialização de competências e produtividade judicante [...].”
Cumpre ressaltar que cada sala possui um conciliador devidamente capacitado, principalmente para os processos de família, o qual deve possuir a seguinte característica:
Estabelecer sua credibilidade como uma terceira pessoa imparcial e explicar o processo e as etapas
da mediação. Acompanhar os pais na busca de um entendimento satisfatório a ambos, visando aos
interesses comuns e de seus filhos. Favorecer uma atitude de cooperação, inibindo a confrontação
frequentemente utilizada pelo sistema tradicional. Encorajar a manutenção de contato entre pais
e filhos. Equilibrar o poder entre os cônjuges favorecendo a troca de informações. Facilitar as
negociações (ÁVILA, 2004, p. 26-27).
Em geral as audiências são pautadas de meia em meia hora, mas com o intuito de
dar mais atenção aos processos de família, as audiências são realizadas a cada 45 minutos.
Tal atenção acontece para tentar minimizar ao máximos os efeitos emocionais que as separações acarretam nos casais e suas famílias.
Hoje em dia, como mostram as estatísticas, a separação e o divórcio são acontecimentos frequentes
da vida ocidental. O lugar da família na sociedade sofreu transformações ligadas à industrialização, à
evolução dos costumes e ao desenvolvimento do trabalho feminino. Essa evolução gerou profundas
mudanças no papel do homem e da mulher e, consequentemente, no relacionamento do casal. Esse
novo contexto social suscitou mudanças concernentes à fecundidade, à queda de popularidade do
casamento, ao aumento da instabilidade conjugal, à monoparentalidade e à recomposição familiar.
Dessa forma, percebe-se que, legais ou não, as uniões tornaram-se mais instáveis. Divórcios e
separações são cada vez mais numerosos e as uniões duram cada vez menos. Diante desse novo
contexto social, a mediação familiar vem para proporcionar aos indivíduos uma separação menos
traumática e mais humana, tendo em vista que as formas tradicionais para acabar com um casamento
ou união não correspondem à realidade dos indivíduos e de seus filhos (ÁVILA, 2004, p. 4).
Pela tabela a seguir, podemos ver os resultados alcançados nos processos de família
durante os mutirões da conciliação realizados na Comarca de Pomerode.
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– OS ACORDOS ENTRE AS PARTES NO DECORRER DOS PROCESSOS DE FAMÍLIA: UMA ANÁLISE DOS MUTIRÕES DA CONCILIAÇÃO NA COMARCA DE POMERODE –
Tabela 1 - Resultado dos Mutirões na Comarca de Pomerode
Data do Evento
13 a 17/06/2005 – TJ – SC
7 a 11/11/2005 – TJ – SC
21 a 25/08/2006 – TJ – SC
21 a 25/05/2007 – TJ – SC
26 a 30/05/2008 – TJ – SC
25 a 29/05/2009 – TJ – SC
3 a 7/12/2007 – CNJ
1 a 5/12/2008 – CNJ
7 a 11/12/2009 – CNJ
Quantidade de
Processos
29
24
28
08
16
16
17
17
35
Comparecimento
23
24
26
08
11
11
11
14
27
Acordos
realizados
15
11
20
04
10
08
11
8
20
Fonte: do autor (2009)
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que se pretende com a implantação do instituto dos mutirões da conciliação
em Santa Catarina e Brasil afora é tentar incutir na cultura popular que um acordo bem
feito é muito mais benéfico para os envolvidos no conflito do que um embate judicial
desgastante (emocional e financeiramente) e, não raras as vezes, demorado. Sem contar
a velha máxima que afirma: de urna (antes das pesquisas), barriga de mulher (antes do
ultrassom) e cabeça de juiz só se sabe o resultado depois que sai.
A não negociação nos processos em geral e principalmente nos de família leva ao
desgaste emocional do casal, dos pais e principalmente dos filhos. Em casos mais extremos pode acabar em violência entre as partes, com homicídios e até suicídios.
Por meio de um bom acordo, todos são beneficiados: as partes, os advogados, a justiça e, no caso das separações, divórcios e dissolução de sociedade de fato, toda a família.
Assim o retorno do convívio cortês e a distribuição do direito a cada parte somente dependerão dos interessados (partes e seus advogados) e do poder de persuasão do
condutor da audiência (juiz ou conciliador) para termos alcançado a finalidade maior da
justiça.
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Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 2 • Dez/2011
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AS INOVAÇÕES TRAZIDAS NO PROCESSO DE
EXECUÇÃO PARA A SATISFAÇÃO DO CRÉDITO ATRAVÉS
DO BACEN JUD 2.0
THE INOVATION BROUGHT FROM THE EXECUTION
PROCESS TO THE SATISFACTION OF THE CREDIT THROUGH
THE BACEN JUD 2.0
Nair Hardt1
Resumo: O presente estudo visa analisar as principais mudanças do processo executivo na expectativa de um propósito de consecução de uma demanda mais rápida
e efetiva. Eliminou os formalismos exacerbados, especialmente com a possibilidade
de o credor indicar bens à penhora, a alteração na ordem de preferência da penhora,
que passou a priorizar o dinheiro e aplicações financeiras e a utilização do BACEN,
através de um convênio firmado entre o Banco Central e o Poder Judiciário, que
permitiu a constrição em dinheiro e aplicações financeiras diretamente na contacorrente dos executados, viabilizando maior efetividade na satisfação dos credores.
Palavras-Chave: Execução. Ordem de preferência legal. BACEN. Efetividade.
Procedimento e operacionalização do sistema Bacen Jud 2.0. Contas especiais para
constrição.
Abstract: The present research has as subject analyze the main changes of executive
legal proceeding, with expectation about a legal proceeding more quickly and effective.
It eliminated the exacerbated formalism, especially with a possibility of the creditor
indicate goods to be pledged, the changes on the order of pledged, that prioritize the
money and financial applications and to used the BACEN method, a agreement signed
between the central bank and the judiciary, that allows the constriction of money and
financial applications inside the defendant’s checking account, what make possible
more effectiveness on the plaintiff ’s satisfactions.
1 Pós-Graduada pela UNISUL-Rede LFG em Processo Civil. Técnica Judiciária Auxiliar de Blumenau/SC.
Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 2 • Dez/2011
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– AS INOVAÇÕES TRAZIDAS NO PROCESSO DE EXECUÇÃO PARA A SATISFAÇÃO DO CRÉDITO ATRAVÉS DO BACEN JUD 2.0 –
Keywords: Execution. Legal order of preference. BACEN. Effectiveness. Procedure
anoperation of Bacen Jud 2.0 system. Special checking accounts for constriction.
1. DO REQUERIMENTO INICIAL DAS MEDIDAS EXECUTIVAS
Esta novidade, voltada ao cumprimento da sentença (Lei n. 11.232/05), é aquela
em que, na petição inicial, o credor pode requerer a penhora de bens suficientes do devedor e sua pronta avaliação, havendo a possibilidade do requerimento da penhora on-line
com pronto atendimento pelo Magistrado (art. 475-J, caput). Entretanto, na fase inicial
do processo de execução por quantia certa (Lei n. 11.382/06), embora haja possibilidade
de indicação de bens à penhora e, dentre elas, o requerimento para a aplicação da penhora on-line, este só poderá ser atendido após a efetivação da citação do devedor, a fim de
oportunizar-lhe o pagamento voluntário da obrigação.
Conforme esclarece Bueno:
Importante para o sucesso destas inovações que este requerimento do credor seja devida e
suficientemente instruído (na medida do possível, evidentemente) com dados do patrimônio do
devedor para que não se perca tempo com a localização de bens do devedor. É esta a diretriz expressa
do § 3° do art. 475-J (2006, p. 107).
O requerimento para a execução forçada possui os mesmos aspectos de uma petição inicial, porém, não é mais assim identificada pelo fato de não se tratar de citação do
devedor e, ainda, ante a inexistência de um processo autônomo de execução na fase do
cumprimento de sentença.
O requerimento executivo inicial é revestido de caráter sucinto, devendo conter
apenas os elementos essenciais, tais como: as partes da relação jurídica com suas devidas
qualificações, a indicação do juízo competente conforme regras do art. 475-P, a memória
discriminada do débito atualizado e a afirmação de que o devedor/executado não efetuou
o pagamento.
Caracterizada como ato específico da execução por quantia certa contra devedor
solvente, a penhora nada mais é do que um ato executório, uma vez que produz modificações jurídicas sobre os bens do devedor aos quais incide, destinado aos fins da execução.
Os bens do devedor respondem por suas dívidas e, pela penhora, são separados e apreendidos do patrimônio do devedor tantos quantos bastem à satisfação do crédito.2 Segundo
Moacyr Amaral Santos:
Penhora, na definição de FREDERICO MARQUES, ‘é o ato inicial de expropriação do processo de
execução, para individualizar a responsabilidade executória, mediante a apreensão material, direta ou
indireta, de bens do patrimônio do devedor’. Ou, conforme definição mais ou menos generalizada,
‘é o ato pelo qual são apreendidos e depositados tantos bens do executado quantos bastem para a
segurança da execução (GABRIEL DE REZENDE FILHO). É o primeiro ato executório da execução
2 Penhora on-line. Disponível em: <www.fiesp.com.br>. Acesso em 10 out. 2009.
120
Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 2 • Dez/2011
– Nair Hardt –
por quantia certa contra devedor solvente. É o ato de apreensão e depósito de bens do devedor
destinados à segurança da execução, isto é, destinados à satisfação do credor’.3
Deve-se lembrar que, em ambas as execuções, ao exequente é outorgada a faculdade de indicar os bens do executado que estarão sujeitos à penhora, possuindo o ônus
de fazer tal indicação. A nova disciplina trazida pela Lei 11.232/2005, nesta perspectiva,
força o devedor a pagar voluntariamente seu débito, estando sujeito aos atos de execução
forçada, iniciando-se pela penhora de bens pelo oficial de justiça. Exclui-se a faculdade do
devedor de indicação de bens para penhora em caso de não pagamento no prazo legal.
1.1 Da indicação dos bens
A penhora de dinheiro é a melhor forma de viabilizar a realização do direito de
crédito, já que dispensa todo o procedimento destinado a permitir a justa e adequada
transformação de bem penhorado (como o imóvel) em dinheiro, eliminando a demora e
o custo de atos como a avaliação e a alienação do bem a terceiro. Esta espécie de penhora
dá ao exequente a oportunidade de penhorar a quantia necessária ao seu pagamento, o
que é difícil em se tratando de bens imóveis ou móveis, os quais possuem valores relativos.
Todavia, o que realmente impedia a penhora de dinheiro era a interpretação equivocada
do art. 655, I, do CPC, que dizia apenas que incumbia “ao devedor, ao fazer a nomeação
de bens, observar a seguinte ordem: I- dinheiro...”.
Supunha-se que o devedor era obrigado a indicar à penhora apenas dinheiro em espécie, e não dinheiro que estivesse depositado em banco. Esta interpretação inviabilizava
a penhora de dinheiro, deixando o devedor livre para indicar outro bem. Isto feria não só
o princípio do meio idôneo, como dava oportunidade para o devedor retardar a satisfação
do direito do credor.
Entretanto, agora a possibilidade de o exequente indicar bens à penhora passou a
ter real efetividade quando se constatou que a nova redação do inciso I do art. 655, instituída pela Lei 11.382/06, esclareceu que o primeiro bem da ordem legal, ou seja, o dinheiro,
também pode ser objeto de penhora quando em depósito ou aplicação em instituição
financeira.
O problema do exequente seria saber se o executado tem dinheiro depositado e o
local, entretanto, com esta nova Lei, este problema foi eliminado ao instituir o art. 655-A,
pois se o credor, para penhorar dinheiro, precisa saber se o executado possui dinheiro
depositado em instituição financeira, e em que local, ele deve ter ao seu dispor uma forma que lhe garanta esta verificação. Por conta disso os Tribunais Superiores firmaram
convênio com o Banco Central, criando o sistema do Bacen Jud 2.0, pois o credor tem o
direito de saber se o executado possui dinheiro depositado em bancos pela mesma razão
que possui direito de saber se o devedor é proprietário de bens imóveis ou móveis, ou seja,
3 SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, São Paulo: Ed. Saraiva, 2008, vol. 3, p. 305.
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– AS INOVAÇÕES TRAZIDAS NO PROCESSO DE EXECUÇÃO PARA A SATISFAÇÃO DO CRÉDITO ATRAVÉS DO BACEN JUD 2.0 –
tal direito é consequência do direito à penhora, que é corolário do direito de crédito e do
direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva (art. 5º, XXXV, da CF/88) (MARINONI;
ARENHART, 2007, p. 271).
Assim, na petição inicial da ação de execução, poderão ser indicados pelo credor
os bens a serem penhorados. Inexistindo esta indicação e esgotado o prazo legal para satisfação do débito, poderá o juiz, de ofício, ao despachar a petição inicial, determinar ao
executado a indicação de bens. Os bens passíveis de indicação à penhora estão descritos
no artigo 655 do Código de Processo Civil, seguindo a ordem de gradação, com preferência ao dinheiro, em espécie ou em depósito ou aplicação em instituição financeira, a
qualquer outro bem.4
Portanto, a iniciativa para indicação de bens para penhora parte agora do próprio
juízo (oficial de Justiça) ou do credor, conforme prelecionam os artigos 475-J, § 3º, e 652,
§ 2º, do Código de Processo Civil. Caso o credor não possua conhecimento de bens em
nome do devedor, poderá o juiz, de ofício, determinar que o executado exiba os bens que
compõem o seu patrimônio, ou, ainda, caberá ao oficial de justiça penhorar o que encontrar. Inexitosas tais tentativas, poderá o exequente requerer o envio de ofícios à Receita
Federal, ou até mesmo através da penhora on-line, o que tem sido comum através do
convênio do Banco Central com o Poder Judiciário.
Tudo a que se refere à localização, apreensão e depósito dos bens penhorados, bem
como o conteúdo do auto de penhora, aplicam-se as regras contidas nos arts. 659 e ss., do
CPC (JORGE; DIDIER JÚNIOR; RODRIGUES, 2006, p. 139).
Perceba-se que, para ser deflagrada a execução, o credor já deverá ter efetuado pesquisas e buscas sobre a existência de bens de propriedade do executado, podendo até mesmo indicar àqueles sobre os quais já incidem outras constrições ou que se encontrem em
poder de terceiros, tendo em vista que, no curso do processo de conhecimento, o devedor
não pode alienar nenhum bem de sua propriedade que o leve à insolvência.
Faculta-se ao credor apresentar a relação dos bens que pretende sejam penhorados,
devendo o credor descrevê-los, estimar o seu valor e informar sua localização, embora a
lei se refira apenas à primeira exigência, a fim de contribuir para a adequação e agilização
da penhora.
Nota-se, ainda, que a possibilidade de nomear bens à penhora não tem sentido em
um sistema executivo que confere ao exequente o direito de indicar os bens penhoráveis
na própria petição inicial e, ainda, permite o processamento da execução por quantia
certa na pendência dos embargos à execução, vez que o credor tem o direito de exigir o
pagamento (a entrega de dinheiro devido) desde logo, requerendo, em caso de não pagamento no prazo de três dias (CPC, art. 652), a penhora on-line sobre o valor depositado
4 Penhora on line. Disponível em: <www.fiesp.com.br>. Acesso em: 10 out. 2009.
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pelo executado em conta-corrente ou em aplicação financeira (CPC, arts. 655, I e 655-A)
(MARINONI; ARENHART, 2007, p. 443).
Por fim, no sistema da Lei n. 11.232/05, o exequente também passou a ter o direito
de indicar os bens à penhora, o qual anteriormente era do executado. Apregoa o art. 475J, 3º, do CPC, que o exequente poderá, em seu requerimento, desde logo indicar bens a
serem penhorados, porém, não sabendo onde estes estão localizados, não obstante possa
requerer ao juiz que requisite informações à Receita Federal ou ao Banco Central, inclusive para realizar penhora on-line sobre dinheiro depositado em instituição financeira,
podendo pedir que o juiz mande o executado indicar os bens sujeitos à execução, sob
pena de cometer ato atentatório à dignidade da justiça e ter que pagar multa nos termos
do art. 601 do CPC (MARINONI; ARENHART, 2007, p. 263).
2. DA NOVA ORDEM DE GRADAÇÃO LEGAL (CPC, ART. 655)
O legislador arrolou propositadamente o dinheiro como o primeiro bem a ser objeto de penhora do patrimônio do executado (art. 655). Em seguida os veículos terrestres,
os móveis em geral e depois os imóveis. Ao colocar o dinheiro no topo preferencial da
lista, o legislador levou em consideração o fato de que, se houver penhora de dinheiro, há
um encurtamento natural do itinerário executivo, porque, se dinheiro é o que pretende
o exequente, e, se é o dinheiro que está apreendido, então bastará ao exequente pedir o
levantamento da quantia depositada, sendo desnecessária qualquer atividade expropriatória do art. 647 do CPC, indo diretamente a execução para a fase do art. 708, I, do CPC.
De fato, não há razões para não se permitir a penhora de dinheiro do executado, quando este estiver depositado em conta bancária, porque, afinal de contas, ninguém
guarda dinheiro em outro lugar senão em contas bancárias e, além disso, este é o bem
preferencial na ordem legal prevista pelo legislador e é absolutamente legal e legítima a
sua constrição. Não faria sentido imaginar a penhora de dinheiro do executado em outro
lugar que não fosse nas instituições bancárias. Claro que há de se ter cautelas, como em
qualquer tipo de penhora, e não se apreender verba correspondente a salários, soldos,
subsídios, nos termos do art. 649, IV, salvo se destinada a pagamento de prestação alimentícia (CPC, 2º do art. 649). Também não se deve extrapolar quantia além daquela
prevista no título e, obviamente, não se pode apreender dinheiro que pertença a terceiro
(por exemplo, dinheiro em conta-corrente do cônjuge que não está sendo executado)
(RODRIGUES, p. 2-3).
A eleição dos bens penhoráveis não é arbitrária, nem para o oficial de justiça, nem
para as partes da execução, porém a preferência legal não é absoluta. Assim, poderá o juiz
deixar de aplicar a ordem prevista no art. 655 do CPC ao verificar que outra é a situação
do mercado ou que os princípios do resultado e do menor sacrifício impõem outra condição de preferência. A regra do art. 655 é um parâmetro indicativo, e não uma cláusula
rígida e inafastável, e deve ser visto como uma regra que deve guiar a atividade judicial,
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– AS INOVAÇÕES TRAZIDAS NO PROCESSO DE EXECUÇÃO PARA A SATISFAÇÃO DO CRÉDITO ATRAVÉS DO BACEN JUD 2.0 –
mas cuja ordem de preferência pode ser alterada mediante a devida e adequada justificativa, diante de outra realidade social e de mercado e das particularidades presentes no caso
concreto (MARINONI; ARENHART, 2007, p. 265).
2.1 A operacionalização da penhora on-line (CPC, art. 655-A)
Ante o disposto no artigo 655-A do Código de Processo Civil, poderá o juiz, a
requerimento do credor, requisitar à autoridade supervisora do Sistema Financeiro, por
meio eletrônico, informações acerca dos ativos, depósitos ou aplicações em nome do executado até o montante devido. Assim, o Banco Central repassará automaticamente as ordens judiciais às instituições financeiras, com garantia de segurança máxima. Por ocasião
da requisição, poderá o juiz ordenar a imediata indisponibilidade do valor indicado na
execução em havendo saldo ou aguardar as informações para posterior penhora.
O Cadastro de Clientes do Sistema Financeiro Nacional (CCS) é um sistema informatizado, que permite indicar os clientes de instituições financeiras que mantêm contas
de depósitos à vista, depósitos de poupança, depósitos a prazo e outros bens, direitos
e valores, diretamente ou por intermédio de seus representantes legais e procuradores.
Entretanto, este cadastro não conterá dados de valor, de movimentação financeira ou de
saldos de contas/aplicações, visando, assim, dar cumprimento ao art. 3º da Lei 10.701/03,
que incluiu dispositivo na Lei de Lavagem de Dinheiro (art. 10º, Lei nº 9.613/98). O principal objetivo do CCS é auxiliar nas investigações financeiras conduzidas por autoridades
competentes, mediante requisição de informações pelo Poder Judiciário ou outras devidamente legitimadas.
Este Sistema, no entanto, não importou na alteração das regras processuais preexistentes, tendo o condão de simplesmente informatizar o procedimento antes utilizado por
meio de papel, desenvolvendo-se em duas fases, a implementada em 2005 (Bacen Jud 1.0)
e a segunda fase, desenvolvida em 2008, pelo qual o aplicativo foi desenvolvido em duas
séries de funcionalidade: as “prioritárias”, que objetivam facilitar a requisição de dados
bancários de clientes do Sistema Financeiro Nacional pelo magistrado, inserir os bancos
de investimentos e bancos múltiplos sem carteira comercial no rol das instituições que recebem os arquivos do Bacen Jud 2.0 e, fornecer cadastro atualizado das Varas/Juízos e de
nomes dos representantes das instituições financeiras, automatizando, assim, o processo
de transferências dos valores bloqueados para a conta de depósito judicial; as “complementares”, que passaram a ser desenvolvidas para contemplar novas funcionalidades a
serem especificadas pelo Banco Central.5
5 Penhora on line. Disponível em: <www.fiesp.com.br>. Acesso em: 10 out. 2009.
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Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 2 • Dez/2011
– Nair Hardt –
2.2 Da quebra do sigilo bancário
Questão comumente questionada nos meios forenses pelos profissionais do Direito
refere-se à possibilidade de violação do sigilo bancário perpetrada pela sistemática da
penhora on-line. Entretanto, tal penhora não impacta a quebra do sigilo bancário das pessoas físicas e jurídicas, haja vista ser permitido aos juízes, por força de lei, obter informações necessárias à instrução do processo junto às instituições financeiras, como também
determinar o bloqueio de ativos financeiros.
Este sistema, na realidade, substituiu o antigo sistema de encaminhamento de ofícios (papel) às instituições financeiras pelo envio de formulário eletrônico, através da internet, racionalizando os serviços no âmbito do Banco Central e do Poder Judiciário,
contribuindo para agilizar o cumprimento das ordens judiciais e, consequentemente, o
andamento processual.6
Portanto, a utilização desse expediente não viola, em absoluto, a garantia do sigilo
bancário, porque, além de o objetivo desta penhora não ser a verificação de saldos ou a
origem dos ativos financeiros pertencentes ao devedor, os dados disponíveis através do
Bacen Jud são remetidos diretamente ao Juízo, não sendo permitido o acesso dessas informações ao exequente ou a terceiros.
Ademais, a medida do art. 655-A do CPC não pode ser vista como excepcional,
sob o argumento do risco de violação do sigilo das informações. Primeiro, porque aquele
que, mesmo após intimado, deixa de indicar bens à penhora, obstrui a possibilidade de
realização da justiça e, por isto, comete ato atentatório à sua dignidade (CPC, art. 600, IV),
estando sujeito inclusive à multa (CPC, art. 601). Logo, a penhora on-line não é problema
exclusivo do credor, mas concernente à própria administração da justiça, podendo a Lei
11.382/2006, em prol da efetividade do processo de execução, suprimir a exigência de a
constrição depender do “requerimento da parte exequente” (CPC, art. 655-A, caput).
Segundo, porque o fato de alguém ter dinheiro em aplicações financeiras não é,
por si só, algo que mereça o manto impenetrável do sigilo, pois tais informações não são
alheias à efetivação da decisão judicial (como seriam situações familiares, amorosas, etc.,
completamente irrelevantes para fins processuais), a qual decorre de um processo inspirado por princípios de direito público, em que está presente a justiça na realização da
penhora, ato que permite a execução forçada.
Terceiro, porque, conforme o gerente de negócios do Bacen Jud, Marcos Oliveira,
não se deve temer a violação do sigilo, pois o sistema é utilizado unicamente para a solicitação das informações, as quais são fornecidas pelas instituições financeiras apenas em
relação aos réus envolvidos nos processos judiciais. Aliás, o caráter sigiloso das informações não decorre só do sistema do Bacen Jud, mas, especialmente, das regras que regem
o sigilo bancário.
6 Idem.
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– AS INOVAÇÕES TRAZIDAS NO PROCESSO DE EXECUÇÃO PARA A SATISFAÇÃO DO CRÉDITO ATRAVÉS DO BACEN JUD 2.0 –
Ademais, tais informações devem ser utilizadas, tão somente, na medida necessária para a realização do crédito (por exemplo, na hipótese de requisição da declaração
de imposto de renda, em vez de extrair cópia da declaração de rendimentos, bastaria a
declaração de bens), podendo a intimidade do devedor ser resguardada por normas já
consagradas no Código de Processo Civil, tais como o art. 363, parágrafo único, pelo qual
as informações que desbordam o escopo da execução devem ser extraídas dos autos e
devolvidas ao órgão que as encaminhou, bem como o art. 155, I, que permite que o juiz
decrete segredo de justiça, se o interesse público exigir.
Por fim, a utilização indevida das informações pode ensejar a responsabilidade,
inclusive, criminal do agente (art. 10 da LC 105/2001). Portanto, a penhora on-line aliada
à multa do art. 600, IV, do CPC, são medidas que visam compelir o devedor – que possui
patrimônio – a cumprir a obrigação, inibindo as fraudes e os mecanismos protelatórios
ao pagamento. De qualquer modo, da decisão que determinar ou não a penhora on-line,
caberá agravo de instrumento (CAMBI, 2007, p. 18-20).
Neste sentido, lê-se:
Processual civil. Recurso especial. Execução. Quebra de sigilo bancário indeferida. Agravo de
instrumento. Conversão em retido. Art. 527, II, do CPC. Impossibilidade.
1. Não é possível converter em retido o agravo de instrumento interposto contra decisão interlocutória
que, em processo de execução, indefere o pedido de quebra de sigilo bancário. Ao exequente que
não consegue, após realizar as diligências cabíveis, localizar bens da devedora capazes de adimplir o
débito, resta, tão só, pleitear a quebra do sigilo com o propósito de buscar ativos e, assim, prosseguir
com a execução do crédito. Precedentes.
2. Recurso especial provido. 7
A propósito, a norma inclusive se preocupa em preservar o sigilo bancário do executado, tanto que, no parágrafo 1º do art. 655-A do CPC, o enunciado diz que “as informações limitar-se-ão à existência ou não de depósito ou aplicação até o valor indicado
na execução”. Tal limitação se mostra acertada, já que sabidamente não há necessidade
de se obter informações além do estritamente necessário à satisfação integral do crédito
exequendo.
Por fim, ainda que se entenda que o sigilo bancário das informações esteja quebrado, essa quebra não ofende a lei ou a Constituição, visto que realizada sob o manto e
a autorização do Poder Judiciário, órgão que sabidamente detém legitimidade para sua
efetivação, quando necessário (GIANNICO; MONTEIRO, 2008, p. 121-122).
7 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 800.208/PR, 2ª Turma, rel. Min. Castro Meira, j. 02.02.2006,
DJ 20.02.2006, p. 328.
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2.3 Da penhora de conta salário e conta poupança
Não são todos os bens do executado que respondem pela execução, existem os que
são acobertados pela impenhorabilidade. Existem os bens que não podem ser penhorados
em nenhuma hipótese, que é a impenhorabilidade absoluta, como, por exemplo, o seguro
de vida, e os de impenhorabilidade relativa, que podem ser penhorados na execução de
certos créditos, como, por exemplo, o dinheiro nos de natureza alimentar.
A impenhorabilidade de certos bens é uma restrição ao direito fundamental à tutela executiva. É técnica processual que limita a atividade executiva e que se justifica como
meio de proteção de alguns bens jurídicos relevantes, como a dignidade do executado,
o direito ao patrimônio mínimo e a função social da empresa, estas são regras que compõem o devido processo legal, servindo como limitações políticas à execução forçada.
O órgão jurisdicional deve fazer o controle de constitucionalidade in concreto da
aplicação das regras de impenhorabilidade, por tratar-se de matéria de ordem pública, e,
se a sua aplicação revelar-se inconstitucional, porque não razoável ou desproporcional,
deve afastá-la, construindo a solução devida (DIDIER JUNIOR, 2009, p. 542-543).
É como afirma Marcelo Lima Guerra:
O primeiro dado que se impõe ao intérprete é que a impenhorabilidade de bens do devedor imposta
pela lei consiste em uma restrição ao direito fundamental do credor aos meio executivos (...) as
restrições aos direitos fundamentais não são, em princípio, ilegítimas. Devem, no entanto, estar
voltadas à realização de outros direitos fundamentais e podem, por isso mesmo, estar sujeitas a uma
revisão judicial que verifique, no caso concreto, se a limitação ainda que inspirada em outro direito
fundamental, traz uma excessiva compreensão ao direito fundamental restringido.8
O principal fundamento da impenhorabilidade é a proteção da dignidade do executado. Busca-se garantir um patrimônio mínimo ao executado, que lhe permita sobreviver com dignidade, daí a impossibilidade de penhora on-line do bem de família e do
salário. O inciso IV do art. 649 do CPC consagra a impenhorabilidade relativa das verbas,
a de natureza alimentar. Esta regra possui o claro propósito de proteger o executado a fim
de garantir-lhe o recebimento de valores que servem ao pagamento das despesas relacionadas à sua sobrevivência e a de sua família.
Fredie Didier, em sua obra Curso de Direito Processual Civil Execução, faz algumas
anotações a essa regra, senão vejamos:
a) Trata-se de regra de impenhorabilidade relativa. O 2º do art. 649 determina que a regra não se
aplique à execução de alimentos (decorrentes de vínculo de família ou de ato ilícito). Se o fundamento
da impenhorabilidade é a natureza alimentar da remuneração, diante de um crédito também de
natureza alimentar, a restrição há, realmente, de soçobrar. Atente-se, porém, que não será permitida
8 GUERRA, Marcelo Lima. Direitos fundamentais e a proteção do credor na execução civil, São Paulo: RT, 2003, p. 165168.
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– AS INOVAÇÕES TRAZIDAS NO PROCESSO DE EXECUÇÃO PARA A SATISFAÇÃO DO CRÉDITO ATRAVÉS DO BACEN JUD 2.0 –
a penhora de parcela do salário que comprometa a sobrevivência digna do executado. É preciso, mais
uma vez, fazer a ponderação entre o direito do credor e a proteção do executado.
b) De acordo com as premissas teóricas desenvolvidas acima, é possível mitigar essa regra de
impenhorabilidade, se, no caso concreto, o valor recebido a título de verba alimentar (salário,
rendimento de profissional liberal, etc.) exceder consideravelmente o que se impõe para a proteção
do executado. É possível penhorar parcela desse rendimento. Restringir a penhorabilidade de toda
a ‘verba salarial’, mesmo quando a penhora de uma parcela desse montante não comprometa a
manutenção do executado, é interpretação inconstitucional da regra, pois prestigia apenas o direito
fundamental do executado, em detrimento do direito fundamental do exequente.
c) A impenhorabilidade dos rendimentos de natureza alimentar é precária: remanesce apenas
durante o período de remuneração do executado. Se a renda for mensal, a impenhorabilidade dura
um mês: vencido o mês e recebido novo salário, a ‘sobra’ do mês anterior perde a natureza alimentar,
transformando-se em investimento. [...] (DIDIER JUNIOR, 2009, p. 553-556).
O Tribunal de Justiça do Distrito Federal vem entendendo que 30% do salário
pode ser penhorado, exatamente porque se permite que esse percentual possa ser utilizado como garantia em contrato de empréstimo bancário consignado em folha de salarial. O raciocínio é bem simples: se o sujeito pode dispor de uma parcela de seu salário
para contrair uma dívida, essa parcela salarial não pode ser considerada impenhorável
(ibidem, p. 555).
A regra de impenhorabilidade deve se sujeitar a um limite temporal, sem o qual
ela constituirá instrumento abusivo de um iníquo privilégio em favor do devedor, para
considerar que a impenhorabilidade de toda a remuneração, somente perdura no mês
da percepção, podendo ser penhorada a parcela que não for utilizada em cada mês, por
exceder as necessidades de sustento sua e de sua família, como qualquer outro bem de seu
patrimônio (GRECO, 2001, p. 21).
Assim, perde a natureza de verba alimentar e, conseguintemente, o atributo de impenhorabilidade, pois, se assim não fosse, todo o saldo da conta-corrente de uma pessoa
física assalariada nunca poderia ser penhorado, mesmo que de grande monta, correspondente ao acúmulo dos rendimentos.
No momento em que a penhora on-line é realizada, é impossível saber se o valor está
gravado por alguma impenhorabilidade. Em razão disso, a lei impôs ao devedor o ônus de
alegar e provar a existência de razão que inviabilize a penhora do valor indisponibilizado,
conforme disposto no artigo 655-A, 2º do CPC: “Compete ao executado comprovar que
as quantias depositadas em conta-corrente referem-se à hipótese do inciso IV do caput
do art. 649 desta Lei ou que estão revertidas de outra forma de impenhorabilidade”. São
absolutamente impenhoráveis:
[...] IV – os vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria,
pensões, pecúlios e montepios; as quantias recebidas por liberalidade de terceiros e destinadas ao
sustento do devedor e sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional
liberal (CPC, art. 649, caput, inciso IV).
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– Nair Hardt –
Efetivada a penhora on-line, a execução fica à espera de alegação do executado, que
passa a ter o ônus de demonstrar que o valor é marcado por impenhorabilidade absoluta
ou que está revestido de “outra forma de impenhorabilidade” (MARINONI; ARENHART,
2007, p. 273), devidamente comprovada por prova documental, tais como folha de pagamento e extrato bancário, comprovando tratar-se de conta salário ou conta poupança e o
seu respectivo bloqueio.
Sobre a impenhorabilidade e liberação de bens indevidamente penhorados e o ônus
do devedor (CPC, art. 655-A, 2º), comenta Maurício Giannico que:
Feita a penhora on line, o 2º do art. 655-A atribui ao executado o ônus processual de demonstrar
eventual impenhorabilidade do dinheiro que venha a ser arrecadado (cfr. Art. 649, IV e X, do CPC).
Não há necessidade de o executado utilizar-se da via dos embargos à execução (ou da impugnação)
para arguir tal impenhorabilidade, podendo assim o fazer por meio de simples petição.
Em muitos casos, aliás, sequer será possível arguir eventuais nulidades da penhora pela via dos
embargos à execução. Isto porque, como já asseverado anteriormente nesta obra, com o advento da
lei 11.382/06 o prazo para a oposição de embargos às execuções fundadas em títulos extrajudiciais
não mais está condicionado à prévia efetivação de penhora, de modo que, não raro, tal ato sequer
terá ainda sido praticado no momento em que esgotado o prazo para embargar. [...] (GIANNICO;
MONTEIRO, 2008, p. 125).
Importante salientar que a circunstância de se encontrar dinheiro em depósito ou
aplicação financeira, bem como a existência de outros bens no patrimônio do executado,
com a consequente decretação da indisponibilidade destes ativos, não redunda na sua
transferência imediata ao exequente. O devedor deve ser intimado da penhora, seja para
arguir a sua impenhorabilidade (por exemplo, que o dinheiro é produto de salário ou se
destina ao seu sustento e de sua família, art. 649, IV, do CPC; ou que a quantia depositada,
em caderneta de poupança ou qualquer outra aplicação financeira, é inferior a quarenta
salários mínimos, art. 649, I, do CPC), seja para buscar a substituição do bem penhorado
(CPC, art. 656), seja para substituir a penhora por fiança bancária ou seguro garantia judicial, no valor do débito constante da inicial, mais 30% (CPC, 656, 2º) ou, ainda, tratandose de penhora sobre o faturamento de empresa, para fazer cumprir as regras dos arts.
655-A, 3º, e 677-678, todos do CPC (CAMBI, 2007, p. 20-21). Neste sentido temos :
Instrumento. Execução de título judicial. Insurgimento ao indeferimento do pleito para penhora on
line, sobre valores que sejam encontrados em contas bancárias da executada. Princípio da efetividade
a prevalecer em favor do vencedor. Novos mecanismos de celeridade processual introduzidos pela
Lei 11.232/2005, atendendo ao princípio contido no inc. LXXVII, do art. 5º da CF (EC 45/2004).
Convênio celebrado entre o Banco Central do Brasil e o STJ, ao qual aderiu o Tribunal de Justiça do
Estado do Paraná. Decisão reformada. Agravo provido. A penhora on line em verdade não transfere
ao credor o valor bloqueado; tal possibilidade deverá ser avaliada pelo magistrado que ouvindo o
devedor e suas arguições poderá fazer a ponderação necessária para a oportuna e efetiva liberação
dos valores.9
9 PARANÁ. Tribunal de Justiça. 6ª Câm. Civ. Ac. 16.597, rel. Dês. Sérgio Arenhart, j. 05.09.2006, DJ 7209.
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– AS INOVAÇÕES TRAZIDAS NO PROCESSO DE EXECUÇÃO PARA A SATISFAÇÃO DO CRÉDITO ATRAVÉS DO BACEN JUD 2.0 –
Portanto, recaindo a penhora sobre importâncias revestidas de impenhorabilidade,
caberá ao executado comprovar esta situação em sua defesa – os embargos à execução –
ou, se decorrido o prazo para tanto, por meio de simples petição, por tratar-se de vício de
penhora e matéria de ordem pública, que poderá ser apreciada em qualquer fase e tempo
do processo.
2.4 Controvérsias quanto à utilização da constrição on-line e a posição
majoritária adotada pelo Tribunal de Santa Catarina e STJ
Posições sociais não interessadas na penhora on-line já alardeiam a tese de que esta
constrição viola o direito à intimidade do executado. Este argumento, entretanto, sequer
merece análise, não fosse o estrago que pode provocar no sistema executivo de tutela de
direitos.
Outra tese levantada é quanto ao momento para o cumprimento voluntário da sentença, no caso do art. 475-J do CPC, eis que há entendimentos no sentido de que, no caso
concreto, não é permitido ao juiz a quo promover o bloqueio, via Bacen Jud, de valores
unilateralmente apresentados pelo credor sem a observância do devido processo legal.
Neste entendimento, a decretação desta medida pressupõe a comprovação do esgotamento, pelo credor, de todos os meios de obtenção de informações acerca de possível
patrimônio do devedor. Estabelece o Código de Processo Civil, em seu art. 620: “quando
por vários meios o credor puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo
modo menos gravoso para o devedor”.
Citando a Jurisprudência Catarinense neste sentido, temos:
AGRAVO DE INSTRUMENTO – EXECUÇÃO DE SENTENÇA – PENHORA ON LINE –
BLOQUEIO ELETRÔNICO DE VALORES EM CONTA CORRENTE DO EXECUTADO – MEDIDA
EXCEPCIONAL – CONJUGAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DO RESULTADO (CPC, ART. 612) E DA
MENOR ONEROSIDADE AO DEVEDOR (CPC, ART. 620) – ESGOTAMENTO DOS MEIOS DE
PESQUISA DE BENS PASSÍVEIS DE CONSTRIÇÃO – COMPROVAÇÃO PELOS CREDORES
– PENHORA SOBRE PROVENTOS DO DEVEDOR – IMPOSSIBILIDADE – CONTROVÉRSIA
QUANTO A NATUREZA ALIMENTAR DE PARTE DO DÉBITO – INDISPONIBILIZAÇÃO
VIRTUAL DE NUMERÁRIO – INVIABILIDADE.
A penhora on line constituiu importante inovação no âmbito dos instrumentos de constrição judicial,
consistindo em providência que reflete a propensão do processo civil contemporâneo de estabelecer a
satisfação do crédito como princípio mais relevante da execução de títulos executivos, respondendo,
com isso, ao anseio da sociedade por uma justiça célere e eficaz, o que vem ao encontro do disposto no
inciso LXXVIII, art. 5º da Constituição Federal, que incluiu no rol dos direitos e garantias individuais
a prerrogativa atinente à ‘razoável duração do processo’. Não obstante a execução se preste a atender
aos interesses do credor (CPC, art. 612), o desenvolvimento do procedimento expropriatório
deve observar os limites estabelecidos pelo basilar princípio favor debitoris (CPC, art. 620), o qual
determina a realização da execução, sempre que viável, do modo menos gravoso ao devedor, seja este
pessoa física ou jurídica.
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– Nair Hardt –
Nessa linha de princípio, a realização de penhora on line, como medida extrema nos processos de
execução, deve ser empregada diante de situações excepcionais, identificadas mediante uma criteriosa
análise acerca das consequências que a indisponibilidade de valores pode implicar, cabendo ao
credor, interessado em beneficiar-se com a providência, demonstrar ter exaurido a busca por outros
bens passíveis de constrição, atendidos os pressupostos específicos. A constrição judicial incidente
sobre remuneração do executado constitui medida rigorosa, sendo excepcionalmente autorizada
quando, existindo débito de natureza alimentar (CPC, art. 649, 2º), a indisponibilização de proventos
depositados em conta corrente não privar o devedor de um mínimo patrimonial indispensável para
a existência humana condigna. 10
Ainda no mesmo sentido:
AGRAVO DE INSTRUMENTO, CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. PENHORA ‘ON LINE’.
DEFERIMENTO DE PLANO. ABERTURA DE PRAZO PARA CUMPRIMENTO ESPONTÂNEO.
INDISPENSABILIDADE. CPC, ART. 475, LETRA ‘J’. NÃO ATENDIMENTO. DECISÃO
INSUBSISTENTE. RECLAMO AGASALHADO.
Pena de se postergar ao plano do inexistente o princípio do devido processo legal e do pleno
contraditório e, ainda, as normas processuais incidentes, não deve o magistrado, sem propiciar à
parte devedora, precedentemente, o cumprimento voluntário da obrigação, determinar a penhora ‘on
line’ de valores, via Bacen Jud. É que tal forma de constrição, ainda que tenha justificativa jurídica, é
medida de extremo rigor, somente se viabilizando quando inexistentes outros meios de realização do
crédito ou quando não acarrete a indisponibilização do numerário em conta corrente a interrupção
das atividades normais da pessoa jurídica obrigada. 11
Desta forma, à primeira vista, o Tribunal entende que não está autorizada a autuação judicial para a quebra do sigilo bancário, uma vez que o desenvolvimento do procedimento expropriatório deve observar os limites estabelecidos pelo basilar princípio de
que a realização da execução, sempre que viável, deve ser procedida pelo modo menos
gravoso ao devedor (CPC, 620).
Entretanto, apesar de num primeiro momento encontrar divergência, a matéria
encontra-se pacificada no Tribunal de Justiça Catarinense, conforme recente julgamento
em Agravo Inominado n167 2008.081634-2/001, segundo o qual a Câmara Civil Especial
decidiu, unanimemente, a decisão prolatada pelo Des. Carlos Alberto Civinski, nos autos
de Agravo de Instrumento:
Por guardar com a situação em comento, pertinente à transcrição em comento, pertinente à transcrição
do seguinte excerto:
[...] ‘com a alteração promovida pela Lei n. 11.382/2006, o artigo em comento passou a ter a seguinte
ordem: (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006). I – dinheiro, em espécie ou em depósito ou
aplicação em instituição financeira;
10 SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento n° 2006.044499-4, da Capital. Desª. Relª. Salete Silva
Sommariva. Data da decisão: 20.03.2007. Disponível em: <http://tj.sc.gov.br>. Acesso em: 10 out. 2009.
11 SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento n° 2007.062534-6, de Balneário Camboriú, Rel. Des.
Trindade dos Santos. Data da decisão: 06.06.2008. Disponível em <http://www.tj.sc.gov.br>. Acesso em: 10 out. 2009.
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– AS INOVAÇÕES TRAZIDAS NO PROCESSO DE EXECUÇÃO PARA A SATISFAÇÃO DO CRÉDITO ATRAVÉS DO BACEN JUD 2.0 –
Importante destacar que a situação discutida no caso em tela se deu em data posterior a edição da Lei
n. 11.382/2006, estando sujeita, portanto, a nova regra estabelecida no art. 655 do Código de Processo
Civil.
Pois bem, por força da alteração legislativa, a jurisprudência até então consolidada passou a interpretar
esse dispositivo de modo a assegurar a máxima eficácia e eficiência ao processo de execução, para
tanto, o que apenas poderia ser determinado excepcionalmente, agora pode ser determinado sempre
que necessário para alcançar o escopo de jurisdição e, consequentemente, a satisfação do credor.
[...]
Nessa linha de entendimento, a jurisprudência do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, está
consolidada no sentido de que a pretensão de bloqueio de dinheiro ou aplicação em instituição
financeira deduzida após a entrada em vigor da Lei n. 11.382/2006 não se condiciona ao prévio
esgotamento dos meios disponíveis para localização dos bens do devedor. Ao instituto da penhora, é
aplicável a lei vigente ao tempo de sua realização.
Nesse sentido, cito os seguintes precedentes das duas Turmas que compõem a 1ª Seção:
PROCESSUAL CIVIL – RECURSO ESPECIAL – EXECUÇÃO FISCAL – CRÉDITO TRIBUTÁRIO
– BLOQUEIO DE ATIVOS FINANCEIROS POR MEIO DO SISTEMA BACEN JUD – APLICAÇÃO
CONJUGADA DO ART. 185 DO CTN, ART. 11, DA LEI N. 6.830/80, ART. 655 E ART. 655-A, DO
CPC. PROPORCIONALIDADE NA EXECUÇÃO. LIMITES DOS ARTS. 649, IV E 620 DO CPC.
1.Não incide em violação do art. 535 do CPC o acórdão que decide fazendo uso de argumentos
suficiente para sustentar a sua tese. O julgador não é obrigado a se manifestar sobre todos os
dispositivos legais levados à discussão pelas partes.
A interpretação das alterações efetuadas no CPC não pode resultar no absurdo lógico de colocar
o credor privado em situação melhor que o credor público, principalmente no que diz respeito à
cobrança do crédito tributário, que deriva do dever fundamental de pagar tributos (artigos 145 e
seguintes da Constituição \Federal de 1988).
Em interpretação sistemática do ordenamento jurídico, na busca de uma maior eficácia material
do provimento jurisdicional, deve-se conjugar o art. 185-A, do CTN, com o art. 11 da Lei n.
6.830/80 e artigos 655 e 655-A do CPC, para possibilitar a penhora de dinheiro em depósito ou
aplicação financeira, independentemente do esgotamento de diligências para encontrar outros bens
penhoráveis. Em suma, para as decisões proferidas a partir de 20.1.2007 (data de entrada em vigor
da Lei n. 11.038/2006), em execução fiscal por crédito tributário ou não, aplica-se o disposto no art.
655-A do Código de Processo Civil, posto que compatível com art. 185-A do CTN.
(AI 2007.045928-0, 2ª Câmara de Direito Civil, Rel. Dês. Newton Janke, j. 06-3-08, v.u).
AGRAVO DE INSTRUMENTO – EXECUÇÃO-DECISÃO QUE DEFERIU PEDIDO DE
BLOQUEIO DE VALORES EXISTENTES EM CONTA BANCÁRIA DA EXECUTADA (SISTEMA
BACEN JUD) – POSSIBILIDADE DIANTE DAS PARTICULARIDADES DO CASO – AUSÊNCIA
DE EXECUTORIEDADE DOS TÍTULOS QUE INSTRUEM A INICIAL – MATÉRIA AINDA NÃO
APRECIADA EM PRIMEIRO GRAU – SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA – ANÁLISE VEDADA –
RECURSO DESPROVIDO.
Possível o bloqueio de valores disponíveis em conta bancária da executada (Sistema Bacen Jud)
quando esta não se prontifica a nomear bens à penhora ou a efetuar o pagamento da dívida, bem
como não demonstra que a constrição pode comprometer sua atividade empresarial.
Em sede de agravo de instrumento, sob pena de supressão de um grau de jurisdição, é vedada a
análise de questões ainda não apreciadas pelo juízo a quo. (AI 2006.040798-9, 3ª Câmara de Direito
Comercial, Rel. Des. Alcides Aguiar, j. em 14-6-07, v.u).
[...]
Portanto, não há como negar que as novas normas processuais, associadas as novas ferramentas
tecnológicas, prestigiam as diretrizes constitucionais insculpidas nos artigos 5º, LXXVIII (razoável
132
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– Nair Hardt –
duração do processo e meios que garantam a celeridade de sua tramitação) e 37 (princípio da
eficiência), da Constituição Federal, além do supramencionado princípio do resultado (CPC, art.
612).
Por óbvio que a implementação de nova sistemática não visa corromper o preceito, previsto no artigo
620 do CPC, de que a penhora deva ser realizada pelo modo menos gravoso para o devedor. Todavia,
o cumprimento deste estatuto (CPC, art. 620) não pode comprometer a efetividade de prestação
jurisdicional, mormente em prejuízo do credor.
Com efeito, a implementação deste novo mecanismo tem por escopo servir ao bem da justiça, como
também à efetividade dos seus provimentos. Por essa razão, não se justifica tamanha resistência à sua
utilização. Afinal, toda evolução pressupõe mudanças e as mudanças exigem, principalmente dos
operadores do direito, uma sensibilidade menos engessada.
[...]
Desde que esta importante ferramenta foi disponibilizada, notou-se uma significativa evolução no
processamento das demandas executivas, sendo raros os prejuízos infligidos aos devedores, uma
vez que não se procede ao bloqueio da própria conta corrente, mas apenas do valor efetivamente
executado.
A possibilidade de bloqueio simultâneo, do mesmo modo, encontra solução na celeridade de
cumprimento das ordens de desbloqueio, o que glorifica o instituto como meio célere de se garantir
eficiência à atividade jurisdicional.
Tanto assim, que novas ferramentas eletrônicas vêm sendo disponibilizadas aos magistrados como
forma de evolução da atividade jurisdicional.
Ao se negar vigência, ou condicionar a aplicação desta importante ferramenta a pré-requisitos de
ordem instrumental ou material – como v.g. o esgotamento de diligências destinadas a apurar o
patrimônio do devedor – se corre o indesejável risco de minar a garantia constitucional de razoável
duração do processo.
[...]
No mesmo rumo, colhe-se da Jurisprudência Catarinense que:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. DESPACHO QUE DEFERIU PEDIDO DE PENHORA ON LINE,
PELO ‘SISTEMA BACEN JUD’. MEDIDA TENDENTE A DAR EFETIVIDADE À EXECUÇÃO.
VIABILIDADE DA CONSTRIÇÃO. DESNECESSIDADE DE PRÉVIA INTIMAÇÃO DO DEVEDOR.
RECURSO DESPROVIDO. A penhora on line, pelo ‘Sistema Bacen Jud’, incidente sobre numerário
depositado em conta bancária do executado, é medida factível, por força do estatuído no art. 655-A
do CPC, observado o Conveio de Cooperação Técnico-institucional a que este a que este Tribunal
aderiu, nos termos do Provimento n. 005/06, da Corregedoria Geral da Justiça e, por óbvio, dada sua
natureza, prescinde de prévia intimação do devedor. (AI n° 2007.024847-4 de Criciúma, Rel. João
Henrique Blasi).
Destarte, se é certo que a execução deve ser, na medida do possível, menos onerosa ao devedor, não
menos correto é conferir ao credor meios eficientes de garantir o recebimento de seu crédito.
[...]
Assim sendo, por compreender que o procedimento de penhora via convênio Bacen Jud não deve
estar condicionado ao esgotamento das diligências no sentido de apurar o patrimônio do devedor,
observando que a decisão objurgada, neste sentido, encontra guarida em jurisprudência consolidada
tanto nesta Câmara Civil Especial, quanto no STJ, com fundamento nos arts. 527, inc. I, e 557, do
CPC, conheço o presente reclamo, mas nego-lhe seguimento. 12
12 SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento n° 2009.017489-0, de Blumenau, Rel. Des. Luiz
Fernando Boller. Data da decisão: 23.04.09. Disponível em <http://tj.sc.gov.br>. Acesso em: 10 out. 2009.
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– AS INOVAÇÕES TRAZIDAS NO PROCESSO DE EXECUÇÃO PARA A SATISFAÇÃO DO CRÉDITO ATRAVÉS DO BACEN JUD 2.0 –
Portanto, por todo o exposto, demonstrado está o entendimento do Tribunal de
Justiça Catarinense no sentido de que o procedimento da penhora on-line, através da
utilização do Sistema Bacen Jud, veio para revolucionar e agilizar o procedimento executório, devendo ser adotados por todos os profissionais do Direito, sem reservas e receios.
Por fim, há de se dizer que não existe qualquer pecha de inconstitucionalidade na
utilização da penhora de ativos financeiros do executado nos limites estabelecidos pelo
legislador e com as cautelas já previstas. De um lado, há a regra de efetividade do direito
do exequente, constitucionalmente assegurada pelo direito de acesso a ordem jurídica
justa (art. 5°, XXXV da CF/88), e por isso não poderá ser olvidado jamais.
Não se pode perder de vista que o dinheiro é o bem primeiro no rol de bens penhoráveis, logo, a penhora via eletrônica é apenas uma forma de se permitir a concretização
da responsabilidade patrimonial, não havendo nisso nada que fira a regra constitucional
de que ninguém será privado dos seus bens sem o devido processo legal.
Igualmente, não fere o juiz natural, porque a ordem de realização do bloqueio e
indisponibilização do bem é do próprio juízo da execução, e o fato de em alguns casos as
informações passarem pelo auxílio e supervisão da autoridade bancária em nada fere o
direito constitucional do executado, senão o contrário, porque preocupa-se em preservar
ao máximo a sua intimidade e vida privada (RODRIGUES, p. 5).
3.SISTEMA BACEN JUD
Com a edição da Lei 11.382, de 6/12/2006, que alterou o Código de Processo Civil
– CPC, foi atribuído à Autoridade Supervisora do sistema bancário o fornecimento de
informações sobre a existência de ativos em nome do executado, na forma em que dispõe
o art. 655-A, que possibilita a penhora em dinheiro ou aplicação financeira, pela ordem
do juiz e a requerimento da parte, até o valor indicado na execução.
O Bacen Jud, sistema de solicitação de informações via internet, tornou mais célere, seguro e econômico o envio de ordens judiciais ao Sistema Financeiro Nacional. A
sistematização, por parte do Banco Central, do fornecimento dos dados dos clientes de
instituições do Sistema Financeiro Nacional teve importante reflexo no andamento dos
processos judiciais, uma vez que tais informações permitiram fundamentar as decisões
exaradas pelos juízes com significativos ganhos de agilidade e tempestividade na satisfação do credor, aumentando consideravelmente o número de ofícios e requisições em
papel oriundos do Judiciário.
Com o crescimento da demanda e com o objetivo de prestar as informações de
forma eficaz, esta autarquia implementou, no ano de 2001, a primeira versão de um sistema denominado Bacen Jud 1.0. Esse sistema informatizou um procedimento já existente
e utilizado pelos magistrados por meio de ofício papel, mas, agora, via internet. Em seguida, o sistema foi aperfeiçoado de acordo com as atuais necessidades do Poder Judiciário,
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– Nair Hardt –
desenvolvendo-se, assim, o Bacen Jud 2.0, com um novo aplicativo, criando novas funcionalidades requeridas pelo Judiciário.13
3.1 Introdução
Para atender com maior rapidez as demandas do Judiciário, o Banco Central, juntamente com representantes dos Tribunais Superiores e entidades de classe do Sistema
Financeiro Nacional, definiu que o desenvolvimento do sistema Bacen Jud 2.0 se daria em
duas fases. A primeira fase, que foi implementada em dezembro de 2005, contemplou as
funcionalidades de bloqueio, desbloqueio, transferência de valores para conta de depósito
judicial e controle de respostas das instituições financeiras pelo magistrado. As grandes
inovações desse aplicativo foram o retorno de respostas das instituições financeiras para
os magistrados pelo próprio sistema e o respectivo controle de transferência de valores
bloqueados para a conta de depósito judicial, funcionalidades estas inexistentes no Bacen
Jud 1.0.
As funcionalidades de bloqueio e desbloqueio foram retiradas do sistema Bacen
Jud 1.0 e incorporadas no sistema Bacen Jud 2.0, em 19/12/2005, sendo aquele desativado
em 29/2/2008. Nessa segunda fase, os arquivos contendo as ordens judiciais são encaminhados para o Banco do Brasil, bancos comerciais, bancos comerciais cooperativos,
Caixa Econômica Federal, bancos múltiplos cooperativos, bancos comerciais estrangeiros
– filiais, bancos múltiplos com carteira comercial, enfim, todas as instituições bancárias
existentes no País. Implementada a primeira fase, foram firmados convênios com os Tribunais Superiores, o Conselho da Justiça Nacional e termos de adesão com todos os 24
Tribunais Regionais do Trabalho, os 5 Tribunais Regionais Federais e 26 Tribunais de
Justiça Estaduais.
A partir de 29/2/2008, O Banco Central colocou a nova versão do Bacen Jud 2.0,
acrescido de melhorias ao sistema e novas funcionalidades, tais como: a requisição de
informações na qual o magistrado pode obter dados bancários de clientes do Sistema Financeiro Nacional, como a existência de contas, saldos, extratos e endereços; a automação
do processo de transferência de valor bloqueado para conta de depósito judicial e outras
melhorias para facilitar o uso do sistema; a inserção dos bancos de investimento e bancos
múltiplos sem carteira comercial no rol das instituições que recebem os arquivos do sistema contendo as ordens judiciais e o cadastro atualizado de varas/juízes e de nomes dos
representantes das instituições financeiras.14
13 BRASIL. Banco Central do Brasil. Sistema Financeiro Nacional – Sistema Bacen Jud. Disponível em: <www.bcb.gov.br>.
Acesso em: 3 jul. 2009.
14 BRASIL. Banco Central do Brasil. Disponível em: <http://www.bcb.gov.br/BACENJUD2>. Acesso em: 3 jul. 2009.
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– AS INOVAÇÕES TRAZIDAS NO PROCESSO DE EXECUÇÃO PARA A SATISFAÇÃO DO CRÉDITO ATRAVÉS DO BACEN JUD 2.0 –
3.2 Convênio CNJ e Banco Central - Bacen Jud (adesão/cadastro)
A cooperação técnico-institucional entre o Banco Central do Brasil e o Poder Judiciário está consubstanciada em convênios firmados entre a Autarquia e os Tribunais
Superiores, sendo que, pelas cláusulas que regem o convênio, cabe ao Banco Central tornar disponíveis o sistema e demais aplicativos necessários à sua operacionalização e à
manutenção da segurança e do sigilo das informações, cabendo ao Bacen a transmissão
dos arquivos consolidados das ordens judiciais aos bancos e o encaminhamento ao Poder
Judiciário das respostas enviadas pelas instituições financeiras. A estas compete o cumprimento das ordens e solicitações nos prazos definidos no regulamento, responsabilizandose pelo conteúdo e pela exatidão das respostas.15
O convênio de cooperação institucional firmado entre o Banco Central do Brasil
e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tem por objeto conjugar esforços com a finalidade de ratificar, incentivar a utilização e participar do aperfeiçoamento do sistema de
atendimento ao Poder Judiciário (Bacen Jud 2.0). Cada um dos partícipes assumiu certos
compromissos em relação ao outro, tais como designar servidores para atuarem como
agentes de integração na execução das atividades objeto do convênio e de eventuais ações
complementares, para prestar informações ou dirimir dúvidas a elas relativas, cientificar
imediatamente eventuais fatos ou ocorrências que verificar no curso das atividades e as
ações pertinentes ao objeto deste convênio que interfiram na sua regular execução, para
efeito de adoção das medidas julgadas cabíveis, acompanhar e fiscalizar, por intermédio
de representante para tanto designado, as ações relativas ao seu objeto e notificar, por escrito, as imperfeições, falhas ou irregularidades na execução do convênio, para eventuais
correções que julgarem necessárias.
Este convênio foi firmado com duração por tempo indeterminado, facultada a rescisão a qualquer tempo, por mútuo consentimento ou por meio de denúncia, mediante
notificação escrita, sendo que a administração deste ficou a cargo do departamento gestor
do Bacen Jud 2.0 e a fiscalização, exercida por servidores designados pelo BCB e CNJ, não
envolvendo, ainda, nenhuma transferência de recursos orçamentários por qualquer dos
partícipes.16
O credenciamento das Varas/Juízos no sistema Bacen Jud 2.0 é efetuado pelos servidores com a designação de máster, indicados pelos respectivos Presidentes dos Tribunais. Eles também credenciam os usuários dos ofícios judiciais com os perfis de juiz ou
de assessor, estes que serão designados pelos magistrados, para fins de acesso ao sistema,
via internet, mediante a utilização de senha individual e intransferível, para emitirem as
15 Idem.
16 BRASIL. Banco Central do Brasil – Convênio de cooperação institucional entre BCB e CNJ – BACEN JUD 2.0. Disponível
em: <http:/www.bcb.gov.br>. Acesso em 10 out. 2009.
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ordens judiciais, preencher e incluir minutas, que, após protocolizadas, convertem-se em
ordens judiciais a serem enviadas pelo sistema.
3.3 Resolução nº 61/2008 - Cadastro de conta especial para penhora
on-line
O bloqueio múltiplo se dá quando uma conta/agência/instituição não é especificada na ordem judicial encaminhada a todas as instituições financeiras, que, ao cumprirem-na, ultrapassarão o valor determinado pelo magistrado. O sistema Bacen Jud 2.0, ao
avançar nas suas funcionalidades, permitiu ao juiz direcionar a sua ordem à determinada
instituição financeira e ainda especificar a conta. Assim, as ordens de bloqueio de valor
objetivam, agora, bloquear até o limite das importâncias especificadas, incidindo sobre o
saldo credor inicial, livre e disponível, apurado no dia útil seguinte ao que à disponibilidade do arquivo às instituições financeiras.
A fim de resolver o problema dos bloqueios múltiplos, recentemente o Conselho
Nacional de Justiça editou a Resolução nº 61, de 7 de outubro de 2008, na qual disciplinou
o procedimento de cadastramento em conta única para efeito de constrição de valores em
dinheiro por intermédio do convênio Bacen Jud (Sistema Nacional de Cadastramento
de Contas Únicas do Bacen Jud), possibilitando a qualquer pessoa física ou jurídica a
solicitação do cadastramento de conta única apta a acolher bloqueios realizados por estes
sistemas.17
A edição desta Resolução teve como fonte de debates dois Pedidos de Providências
do CNJ. No primeiro, de nº 2007.10.00.001478-4, discutiu-se a penhora de contas bancárias múltiplas através do Bacen Jud 2.0, sugerindo-se o cadastramento facultativo de conta única. Questionava-se sobre a penhora de valores em múltiplas contas bancárias das
empresas, em especial, mesmo quando havia determinação de uma única conta-corrente,
o que lhes trazia diversos prejuízos financeiros diários e, ainda, a ausência de previsão de
um pré-cadastramento das contas em contrato assinado entre o STJ e o Bacen.
Em seu voto, o Conselheiro Antonio Umberto de Souza Júnior mencionou que:
O cadastramento de conta única está regulado na Justiça do Trabalho pelos arts. 58 a 60 da
Consolidação dos Provimentos da Corregedoria da Justiça do Trabalho, e que, no âmbito da Justiça
Federal, a retenção judicial de ativos financeiros por meio eletrônico está regulamentada pela
Resolução nº 524/2006 do Conselho da Justiça Federal, mas que, ‘tal ato normativo é omisso quanto
à hipótese de cadastramento de uma só conta como alvo de tais constrições. Em pesquisa nos sítios
das corregedorias estaduais não se encontrou ato disciplinando tal faculdade do executado’. O Relator
sugeriu que fosse editada uma Resolução do Conselho Nacional de Justiça para a normatização do
sistema de Penhora On-Line. O Conselho, por unanimidade, julgou procedente o pedido, indicando
a edição de uma resolução, nos termos do voto do Relator (PONTIERI, 2009).
17 Penhora on line. Disponível em: <www.fiesp.com.br>. Acesso em: 10 out. 2009
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No segundo Pedido de Providências, discutiu-se sobre a existência ou não da obrigatoriedade do cadastramento do magistrado que atua em processo de execução de quantia certa contra devedor solvente no sistema Bacen Jud 2.0 ou de penhora on-line, em
face do vocábulo “preferencialmente”, contido na norma legal, principalmente em razão
do art. 655-A do Código de Processo Civil. Em seu voto, o Conselheiro Relator Felipe
Locke Cavalcanti teceu comentários sobre o sistema Bacen Jud e, no aspecto da celeridade da prestação jurisdicional, citou a Emenda Constitucional 45/04, entendendo que
‘cadastramento no sistema não retira do Magistrado o dever de aferir as circunstâncias de
cada caso concreto e sopesar a utilidade do recurso eletrônico’, citando jurisprudência do
extinto Segundo Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo:
Na efetivação incumbe ao magistrado aferir as circunstâncias de cada caso concreto, e decidir com
cautela e reflexão, mormente por que as normas instrumentais não possuem caráter absoluto, a ponto
de afetarem a sobrevivência de uma firma ou norma de desenvolvimento produtivo do patrimônio
do devedor. 18
Por fim, o Conselho, por unanimidade, respondeu afirmativamente ao pedido de
providências mencionado, concedendo o prazo de 60 (sessenta) dias para que os Tribunais informem aos magistrados sobre a obrigação de cadastramento no sistema Bacen Jud
(PONTIERI, 2009).
A ementa do julgado recebeu o seguinte texto:
JUIZ DE DIREITO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS. PEDIDO
DE PROVIDÊNCIAS. Obrigatoriedade do cadastramento do Magistrado que atue em processo de
execução por quantia certa contra devedor solvente no sistema Bacen Jud, também conhecido como
‘penhora on-line’.
I – A ‘penhora on line’ é um instrumento que não pode ser desconsiderado pelo Magistrado e decorre
do inegável avanço tecnológico que traz maior celeridade e efetividade ao processo de execução,
aumentando o prestígio e confiabilidade das decisões judiciais.
II – A obrigatoriedade do cadastramento no sistema não retira do Julgador a possibilidade de avaliação
e utilização do método em conformidade com as características singulares do processo e a legislação
em vigor.19
Agora, qualquer pessoa, física ou jurídica, poderá preencher o formulário que se
encontra disponível nos sítios do STJ, TST e do STM na internet. O deferimento do cadastramento valerá a todos os órgãos da Justiça Comum dos Estados e Distrito Federal, Justiça Federal, Justiça Militar da União e Justiça do Trabalho. Em caso de grupo econômico,
empresa com filiais e situações análogas, faculta-se o cadastramento de uma única conta
para mais de uma pessoa jurídica ou física, atendidas as condições desta Resolução.
18 SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento n° 438.283, 1ª Câmara, Rel. Juiz Renato Sartorelli, jul. 18.09.95,
in JUIS - Saraiva, 7.
19 Idem.
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A pessoa física ou jurídica que solicitar referido cadastramento obriga-se a manter
valores imediatamente disponíveis em montante suficiente para o atendimento das ordens judiciais, sob pena de redirecionamento imediato da ordem de bloqueio às demais
contas e instituições financeiras onde a pessoa possua valores disponíveis. Este cadastro
poderá ser cancelado, a requerimento do titular da conta única a uma das autoridades. A
inatividade da instituição financeira mantenedora da conta única cadastrada implicará o
seu cancelamento automático.
Ao Poder Judiciário caberá adotar as medidas necessárias ao efetivo e pronto cumprimento das ordens judiciais pelas instituições financeiras.20 O Superior Tribunal de Justiça, usando de sua atribuição conferida pelo Regimento Interno, disciplinou o procedimento de cadastramento de conta única para efeito de constrição de valores em dinheiro
através do Convênio Bacen Jud no âmbito do STJ, instituído pela Instrução Normativa nº
04, de 14 de novembro de 2008, que entrou em vigor na data de sua publicação.21
3.4 Procedimento e utilização do Bacen Jud 2.0
Através do sistema Bacen Jud 2.0, ocorre a comunicação eletrônica entre o Poder
Judiciário e instituições financeiras bancárias, com intermediação, gestão técnica e serviço de suporte a cargo do Banco Central. Com a sua utilização, os juízes protocolizam
ordens judiciais de requisição de informações, bloqueio, desbloqueio e transferência de
valores bloqueados para a conta única vinculada ao processo de execução.
Com a padronização e a automação dos procedimentos envolvidos, reduz-se significativamente o intervalo entre a emissão das ordens e o seu cumprimento, se comparados
à tradicional prática de envio de ofícios em papel ao Banco Central.
Destaca-se ainda a segurança das operações e informações do sistema, uma vez que
os dados das ordens judiciais são transmitidos com a utilização de sofisticada técnica de
criptografia, em consonância com os padrões de qualidade do Banco Central.
3.4.1 Arquivos
Segundo o regulamento do Bacen Jud 2.0, aplicam-se as seguintes definições aos
participantes do sistema: agrupamento: conjunto de instituições participantes do Cadastro de Clientes do Sistema Financeiro Nacional (CCS), integrantes de um mesmo conglomerado financeiro, constituído com vistas à permuta de informações via sistema CCS;
instituição responsável: aquela que recebe o arquivo de remessa e o envio do arquivo que
contém as respostas das instituições participantes que fazem parte de seu agrupamento; a
20 Penhora on line. Disponível em: <www.fiesp.com.br>. Acesso em 10 out. 2009.
21 Diário da Justiça Eletrônico do Superior Tribunal de Justiça, publicado em 17 de novembro de 2008. Disponível em
<www.stj.gov.com.br>. Acesso em 10 out. 2009.
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– AS INOVAÇÕES TRAZIDAS NO PROCESSO DE EXECUÇÃO PARA A SATISFAÇÃO DO CRÉDITO ATRAVÉS DO BACEN JUD 2.0 –
instituição participante: responsável pelo cumprimento da ordem, quais sejam: o Banco
do Brasil, os bancos comerciais, os bancos comerciais cooperativos, a Caixa Econômica
Federal, os bancos múltiplos cooperativos, os bancos múltiplos com carteira comercial,
os bancos comerciais estrangeiros – filiais no País, os bancos de investimentos, os bancos
múltiplos sem carteira e outras instituições que vierem a ser incorporadas ao Bacen Jud
2.0, com a expansão do alcance do CCS – Cadastro de Clientes do Sistema Financeiro
Nacional; relacionamento: é a unidade nuclear de informações do CCS, constituída pelo
conjunto de dados composto pelo CNPJ de uma instituição participante e pelo CPF ou
CNPJ de um de seus correntistas e/ou clientes, assim como dos respectivos representantes; e, finalmente, atingido: aquele que sofrerá os efeitos da ordem judicial no sistema
Bacen Jud22 (destaquei).
Todas as ordens judiciais protocolizadas no Bacen Jud 2.0 constituem arquivos eletrônicos transmitidos pelas Varas ou juízos emissores e recebem a confirmação da transmissão com um número de protocolo. Sempre após as 19 horas do dia, o Banco Central
consolida as ordens de todo o país, gerando arquivos de remessa, transmitindo-os às instituições financeiras até as 23 horas e 30 minutos.
Estas recebem os arquivos no mesmo dia com as ordens judiciais para cumprimento, sendo cumpridas até o primeiro dia útil seguinte, salvo as transferências. Em seguida,
as instituições geram arquivos de resposta e os enviam ao Bacen até as 23 horas e 59 minutos, quando, então, são submetidos a processo de validação.
Validados os arquivos de resposta, estes são consolidados e transmitidos para visualização do juízo emissor até as 8 horas da manhã do dia útil bancário seguinte. Com
as respostas na tela, possibilita-se ao magistrado ou assessor protocolizar as ordens subsequentes, tais quais, bloqueio, desbloqueio, reiteração, cancelamento e transferência. No
caso das transferências, as respostas diferem por não haver prazo regulamentar para sua
efetivação. 23
3.4.2 Usuários
O credenciamento de magistrados e assessores é feito pelo máster do Tribunal Regional ao qual pertence a serventia judicial, sendo que o usuário do perfil de assessor é
a pessoa designada pelo magistrado e que tem permissão de incluir minutas de ordens
e requisições, estas que serão convertidas em ordens e requisições. Os usuários do sistema são definidos em categorias, quais sejam: magistrado, assessor, máster, gerenciador,
22 BRASIL. Banco Central do Brasil – Regulamento BACEN JUD 2.0. Disponível em: <http:/www.bcb.gov.br>. Acesso em
20 set. 2009.
23 BACEN JUD 2.0 – SISTEMA DE ATENDIMENTO AO PODER JUDICIÁRIO – Manual Básico, p. 1-2. CorregedoriaGeral da Justiça. Disponível em: <http://www.cgj.tj.sc.gov.br/bacen/normas.htm>. Sistema Financeiro Nacional,
Sistema Bacen Jud. Acesso em: 20 out. 2009.
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mantenedor de contas únicas para bloqueio, mantenedor do cadastro de Varas e Juízos e
mantenedor do cadastro de hierarquia dos Tribunais, sucessivamente.24
3.5 Operações do Sistema
As operações do sistema Bacen Jud 2.0 encontram-se divididas em operações, etapas operacionais, ordem judicial de requisição de informações, que se encontra subdividido em inclusões da minuta, protocolamento e consulta às respostas à ordem judicial de
requisição de informações. A seguir explanarei sobre as operações mais importantes.
3.5.1 Operações
O sistema Bacen Jud 2.0 possibilita a emissão, transmissão e visualização das seguintes ordens judiciais, respectivamente: a requisição de informações, o bloqueio de valores, o desbloqueio, a transferência de valores bloqueados, a reiteração e o cancelamento,
esta aplicada somente para os casos de “não resposta” do sistema.
Estas ações podem ser alteradas no sistema ou canceladas até as 19 horas. Decorrido esse prazo, visando anular os efeitos de determinação judiciais já protocolizadas,
caberão apenas ordens subsequentes e de efeito contrário à ordem vestibular, tais como
desbloqueio e transferência do dinheiro.
Após esse prazo, já com as determinações mencionadas, os valores somente poderão ser liberados através de ordem judicial para expedição de alvará para o levantamento
e transferência dos valores para a conta do exequente/executado ou seus procuradores.25
3.5.2 Etapas operacionais
O procedimento compõe-se de três etapas básicas:
a) a inclusão da minuta: esta é um rascunho da ordem ou requisição, sendo preparada como um formulário impresso, contendo campos que devem ser preenchidos com
os dados do processo, necessários à formalização da determinação judicial;
b) o protocolamento: é a chancela da autoridade judiciária aos dados da minuta
devidamente preenchida, recebendo um número composto de 14 dígitos, que serão utilizados para futura consulta ao resultado das respostas do sistema; e
24 Idem.
25 BACEN JUD 2.0 – SISTEMA DE ATENDIMENTO AO PODER JUDICIÁRIO – Manual Básico, p. 1-2. CorregedoriaGeral da Justiça. Disponível em: <http://www.cgj.tj.sc.gov.br/bacen/normas.htm>. Sistema Financeiro Nacional,
Sistema Bacen Jud. Acesso em 20 set. 2009.
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– AS INOVAÇÕES TRAZIDAS NO PROCESSO DE EXECUÇÃO PARA A SATISFAÇÃO DO CRÉDITO ATRAVÉS DO BACEN JUD 2.0 –
c) a consulta à resposta à ordem judicial: esta permite a visualização das respostas
das instituições e as “não respostas”. Nestes quadros detalhados, formula-se o preenchimento das ordens subsequentes, das quais trataremos na sequência.26
3.5.3 Ordem Judicial de Requisição de Informações
O sistema Bacen Jud 2.0 permite ao Poder Judiciário requisitar endereços e relação
de agências/contas, limitados aos 3 (três) endereços mais recentes e a 20 (vinte) pares de
agências/contas por instituição participante, bem como as seguintes informações sobre os
ativos do atingido que estão sob administração e/ou custódia da instituição: I – saldo bloqueável até o valor indicado na ordem de requisição; II – saldo bloqueável consolidado; e
III – extratos, consolidados ou específicos, de contas-correntes/contas de investimentos,
de contas de poupança e/ou de investimentos e outros ativos.
As respostas a estas requisições têm caráter exclusivamente informativo, sendo
respondidas via sistema. Entretanto, as requisições de extrato serão atendidas pelas instituições participantes por outro meio que não o Bacen Jud 2.0, sendo os extratos encaminhados de forma segura e confidencial, com observância ao sigilo bancário, porém,
não contemplando período anterior a 1º/1/2001, ficando, a partir de 2011, limitadas aos
últimos 10 (dez) anos.27
Estas requisições de informações são destinadas à obtenção das relações de agências bancárias e contas em nome de envolvidos em processos judiciais, de extratos e dados
de saldos ou endereços. 28
3.5.4 Ordem Judicial de Bloqueio
As ordens judiciais de bloqueio de valor têm como objetivo bloquear até o limite
das importâncias especificadas e são cumpridas com observância dos saldos existentes
em contas de depósitos à vista (contas-correntes), de investimento e de poupança, depósitos a prazo, aplicações financeiras e demais ativos sob a administração e/ou custódia da
instituição participante. Essas ordens judiciais atingem o saldo credor inicial, livre e disponível, apurado no dia útil seguinte ao que o arquivo de remessa for disponibilizado às
instituições responsáveis, sem considerar créditos posteriores ao cumprimento da ordem
e, nos depósitos à vista, quaisquer limites de crédito (cheque especial, crédito rotativo,
26 Idem.
27 BRASIL. Banco Central do Brasil – Regulamento BACEN JUD 2.0. Disponível em: <http:/www.bcb.gov.br>. Acesso em:
20 set. 2009.
28 BACEN JUD 2.0 – SISTEMA DE ATENDIMENTO AO PODER JUDICIÁRIO – Manual Básico, p. 1-2. CorregedoriaGeral da Justiça. Disponível em: <http://www.cgj.tj.sc.gov.br/bacen/normas.htm, http://www.bcb.gov.br>, Sistema
Financeiro Nacional, Sistema Bacen Jud. Acesso em: 20 set. 2009.
142
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conta garantida, etc.). Cumprida a ordem de bloqueio e não atingido o limite da ordem
inicial, caso necessário complementar o valor, o magistrado deverá expedir nova ordem
de bloqueio. 29
Ao consultar as respostas das instituições financeiras, usa-se o menu Ordens Judiciais, na qual o sistema abrirá uma tela de detalhamento de ordem judicial de requisição
de informações, em que serão efetuadas as consultas às minutas protocoladas, através do
número de processo ou do número do protocolo recebido anteriormente, por ocasião da
confecção da minuta. Este é o momento mais importante para o juiz ou assessor responsável pelo sistema, uma vez que nesta ocasião é constatada a existência ou não de dinheiro
nas contas e aplicações do devedor e, consequentemente, qual o rumo a ser seguido, ou
seja, a ordem judicial de bloqueio e transferência até o limite da importância especificada
(valor da execução), para o caso de ser positiva a consulta.
Havendo conta única para bloqueio cadastrada junto a Tribunais Superiores, o sistema alertará ao usuário da importância de a ordem se restringir apenas a essa conta,
conforme já tratado, por ocasião da explanação acerca da Resolução 61/2008, a fim de se
evitar múltiplos bloqueios. 30
3.5.5 Ordem Judicial de Desbloqueio
Se o devedor não possuir conta única cadastrada e ocorrerem múltiplos bloqueios
em diversas contas que ele possua em várias agências bancárias, incidirá o excesso da
constrição. Portanto, deverá o juiz ou assessor, nesta oportunidade, selecionar somente
uma das agências bancárias para o bloqueio dos valores devidos e determinar o desbloqueio do excedente, a fim de evitar prejuízos maiores ao executado. Também é nessa ocasião que poderá ser efetuada a liberação do valor bloqueado (se peticionar antes que seja
determinada a transferência do numerário para a conta única de cada Vara, em cada comarca), tratando-se de conta-salário ou conta-poupança, devidamente comprovada pelo
devedor.
Caso já tenha ocorrido o bloqueio e a transferência, ele só poderá reaver seu dinheiro mediante determinação judicial de expedição de alvará para transferência/devolução desta quantia para uma conta bancária que o executado indicar ao juiz.31 Enquanto
29 BRASIL. Banco Central do Brasil – Regulamento BACEN JUD 2.0. Disponível em: <http:/www.bcb.gov.br>. Acesso em:
20 set. 2009.8
30 BACEN JUD 2.0 – SISTEMA DE ATENDIMENTO AO PODER JUDICIÁRIO – Manual Básico, p. 1-2. CorregedoriaGeral da Justiça. Disponível em: <http://www.cgj.tj.sc.gov.br/bacen/normas.htm>, Sistema Financeiro Nacional,
Sistema Bacen Jud. Acesso em: 20 set. 2009.
31 BACEN JUD 2.0 – SISTEMA DE ATENDIMENTO AO PODER JUDICIÁRIO – Manual Básico, p. 1-2. CorregedoriaGeral da Justiça. Disponível em: <http://www.cgj.tj.sc.gov.br/bacen/normas.htm>, Sistema Financeiro Nacional,
Sistema Bacen Jud. Acesso em: 20 set. 2009.
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o magistrado não determinar o desbloqueio ou transferência, os valores permanecerão
bloqueados nas contas ou aplicações financeiras atingidas, ressalvada a hipótese de vencimento de contrato de aplicação financeira sem reaplicação automática. Nesse caso, os
valores passam à condição de depósito à vista em conta-corrente e/ou conta de investimento, permanecendo bloqueados.32
3.5.6 Ordem Judicial de Transferência
Na ordem judicial de transferência do valor, o magistrado deve informar os dados
necessários ao seu cumprimento, dentre os quais a quantia a ser transferida, a instituição participante destinatária e a respectiva agência, e se mantém ou desbloqueia o saldo
remanescente, se houver. As transferências dos valores bloqueados devem ser efetivadas
utilizando-se do Identificador de Depósito (ID) fornecido pelo sistema Bacen Jud 2.0 ou,
excepcionalmente, por outro meio de efetivação de depósito judicial, não se aguardando,
para efeito de cumprimento da ordem de transferência, o prazo de vencimento dos contratos de aplicação financeira e nem o “aniversário” das contas de poupança.
As instituições participantes destinatárias dos valores transferidos para depósitos
judiciais devem comunicar ao juízo, por outros meios que não o sistema Bacen Jud 2.0, no
prazo de até dois dias, o recebimento dessas quantias, normalmente oficiam ao juiz que
determinou a ordem. Enquanto bloqueados, os valores não são remunerados em favor do
Poder Judiciário pela instituição participante.
Após transferidos, tais valores observarão o regime estabelecido para o respectivo
depósito judicial, que apenas aplica a correção monetária ao montante transferido. Os
valores bloqueados em aplicações financeiras sujeitas às oscilações de mercado podem
sofrer reduções entre as datas do bloqueio e da transferência. 33
O magistrado determinará a transferência do valor bloqueado, ou parte deste, para
uma agência de um banco depositário, normalmente indicado pelo Tribunal de Justiça,
vinculado a este e a cada Vara, em cada comarca, podendo também ser transferido para
uma conta aberta em nome do autor/credor da ação, movimentada sob autorização judicial.
Pode-se, também, nesta oportunidade, determinar uma transferência e desbloqueio de saldo remanescente, sendo a instituição financeira depositária escolhida na lista
oferecida pelo combo. Finalmente, as ordens de reiteração ou cancelamento de uma determinação judicial do Bacen Jud 2.0 apenas são permitidas nos casos de “não respostas”.
Essas ordens serão direcionadas apenas às instituições financeiras inadimplentes compre-
32 BRASIL. Banco Central do Brasil – Regulamento BACEN JUD 2.0. Disponível em: <http:/www.bcb.gov.br>. Acesso em:
20 set. 2009.
33 Idem.
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endidas entre aquelas que não encaminharam os arquivos de respostas ou o fizeram fora
do prazo regulamentar.34
4.CONCLUSÃO
O presente trabalho visa, especialmente, demonstrar os “bastidores” da funcionalidade do Sistema do Bacen Jud 2.0, bem como as vantagens de sua utilização, tais como
a viabilização de acordos extrajudiciais. Também as agências bancárias, quando no polo
passivo da execucional, ao terem seus valores constritados, via de regra, vêm em juízo
depositar o mesmo montante para fins de desbloqueio e liberação do saldo bloqueado em
suas contas, resultando na satisfação da obrigação, sendo esta prática comumente adotada
pelas sociedades de economia mista e outras instituições bancárias de grande porte, quando devedoras, resultando assim na rápida satisfação da obrigação.
Outra vantagem do sistema é a possibilidade do cadastramento da conta única,
pelas empresas e instituições financeiras interessadas, para o procedimento da penhora
on-line, liberando assim demais contas bancárias desta espécie de constrição, evitando a
geração de diversos problemas de ordem financeira, uma vez que o procedimento de desbloqueio dos múltiplos bloqueios geralmente demora uma semana, o que pode acarretar
situações desconfortáveis na saúde financeira delas.
Entretanto, a principal vantagem está na possibilidade de já na exordial execucional, seja judicial ou extrajudicial, requerer de plano a utilização da penhora on-line, antes
mesmo da expedição do mandado de penhora e avaliação (no caso de execução judicial
– CPC, art. 475-J), gerando assim menos ônus ao credor e maior chance de satisfação
rápida do seu crédito.
Neste estudo foram tecidos alguns comentários acerca da penhora on-line, fruto
de uma parceria entre o Banco Central do Brasil e o Poder Judiciário, que revolucionou o
sistema de penhora no Brasil, dando maior presteza e segurança às execuções e ao sigilo
das informações bancárias, sendo imprescindível seu constante aprimoramento para sua
adequada e regular operacionalização.
As Leis nº 11.232/05 e 11.382/06 vieram para o mundo jurídico para revolucionar
positivamente todo o procedimento executório, a começar pela possibilidade de o credor
indicar os bens que pretende ter penhorados (CPC, art. 659), a inserção do artigo 655A, do CPC (penhora on-line) e a alteração na ordem de preferência legal das constrições
(CPC, art. 655), tudo com o objetivo de atingir a eficácia das execucionais na satisfação do
crédito, facilitando a atuação dos profissionais por conta da utilização do sistema Bacen
Jud 2.0.
34 BACEN JUD 2.0 – SISTEMA DE ATENDIMENTO AO PODER JUDICIÁRIO – Manual Básico, p. 1-2. CorregedoriaGeral da Justiça. Disponível em: <http://www.cgj.tj.sc.gov.br/bacen/normas.htm>, Sistema Financeiro Nacional,
Sistema Bacen Jud. Acesso em: 20 set. 2009.
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Portanto, é preciso deixar claro que o direito à penhora on-line é corolário do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, pois o direito de ação ou o direito ao meio
executivo adequado tem como corolário o direito ao meio executivo adequado à tutela do
direito material.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BACEN JUD 2.0 – SISTEMA DE ATENDIMENTO AO PODER JUDICIÁRIO – Manual
Básico, p. 1-2. Corregedoria-Geral da Justiça. Disponível em: <http://www.cgj.tj.sc.gov.
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ALIMENTOS GRAVÍDICOS: ASPECTOS MATERIAIS E
PROCESSUAIS DA LEI N° 11.804/08
MATERNITY SUPPORT: MATERIALS AND PROCEDURAL
ASPECTS OF LAW Nº 11.804/08
Leci Henn Fernandes1
Resumo: Este trabalho pretende analisar os principais impactos materiais e processuais que a Lei n. 11.804/08, de 5 de novembro de 2008, trouxe para o Direito de
Família brasileiro. Iniciou-se com uma análise sobre o instituto “alimentos”, destacando seus principais aspectos como: extensão objetiva e subjetiva da obrigação e
suas características. Em seguida, se destacou as diversas questões práticas da nova
lei que disciplinou o direito a alimentos gravídicos e a forma como ele será exercido buscando responder ao questionamento acerca do que se define como “indícios
de paternidade” que é o requisito trazido pela norma para a fixação dos alimentos
superando o óbice contido na Lei de Alimentos (n. 5.478/68) que exigia vínculo de
parentesco ou da obrigação alimentar.
Palavras-Chave: Alimentos no Direito de Família brasileiro. Alimentos gravídicos. Nascituro. Indícios de paternidade.
ABSTRACT: This study analyzes the principal material and procedural impacts that
Law no. 11.804/08, of Nov. 5, 2008, brought to Brazilian Family Law. It begins with
an analysis of “child support”, highlighting principal factors such as: objective and
subjective extension of the requirement and its characteristics. It then highlights the
various practical questions of the new law that governs the right to maternity support
and the manner it will be implemented. The paper responds to questioning about what
it defines as “paternity indicators”, which is the requirement established by the norm to
order child support, overcoming the impediment contained in the Child Support Law
(n. 5.478/68), which required a blood relationship or a requirement for child support.
1 Pós-graduada em Direito Processual pela Universidade da Amazônia - Unama (Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes) e
em Direito Civil pela Universidade Anhanguera - Uniperp (Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes). Assessora de Gabinete
de Juiz. Tribunal de Justiça. E-mail: [email protected] ou [email protected].
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– ALIMENTOS GRAVÍDICOS: ASPECTOS MATERIAIS E PROCESSUAIS DA LEI N° 11.804/08 –
Keywords: Child support in Brazilian family law. Maternity support. Unborn.
Paternity indicators.
INTRODUÇÃO
Os alimentos se revestem de relevante interesse social e contribuem para a integridade da pessoa, sua formação, sobrevivência e conservação, como direitos assecuratórios à personalidade, à dignidade e à cidadania, direitos estes fundamentais, assegurados
na Carta Magna.
O direito aos alimentos tem por finalidade assegurar ao credor sua própria subsistência, no que se refere aos alimentos propriamente ditos, à saúde, à educação, ao lazer,
dentre outras necessidades básicas.
Foi sancionada no dia 6 de novembro de 2008 pelo Presidente da República a Lei n.
11.804, que disciplina “o direito a alimentos gravídicos e a forma como ele será exercido e
dá outras providências”. A nova lei confere direito à mulher gestante de receber alimentos,
desde a concepção até o parto, objetivando garantir uma gestação mais digna e com os
elementos necessários ao sadio desenvolvimento do feto.
Toda vez que há uma inovação legislativa, a comunidade jurídica se movimenta
para discutir sobre os acertos e defeitos. Buscou-se, neste trabalho, apresentar um apanhado acerca dos alimentos no direito de família brasileiro, analisando seus aspectos mais
importantes e, em seguida, passou-se para a novel legislação.
A metodologia aplicada foi pesquisa em diversas obras e julgados de diferentes
Tribunais trazendo à baila os posicionamentos de doutrinadores e da jurisprudência, bem
como nossa humilde opinião acerca dos temas.
1.ALIMENTOS NO DIREITO DE FAMÍLIA
1.1 CONCEITO
Os alimentos, no seu aspecto técnico e jurídico, têm conotação ampla. Significam
os auxílios de ordem material que uma pessoa presta a outra para prover suas necessidades vitais.
O Código Civil de 2002, no seu capítulo destinado aos alimentos (arts. 1.694 a
1.710), não definiu o referido instituto. No entanto, no art. 1.920 é possível detectar o conceito legal dos alimentos quando a lei refere-se ao legado: “O legado de alimentos abrange
o sustento, a cura, o vestuário e a casa, enquanto o legatário viver, além da educação, se
ele for menor”.
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Logo, o conceito de alimentos, dentro da norma cogente, salvo melhor juízo, encontra-se não no Direito de Família, mas sim expresso no capítulo destinado ao Direito
Sucessório.
Cahali (2002, p. 15), em seu notável estudo sobre alimentos, esclarece:
O ser humano, por natureza, é carente desde sua concepção; como tal, segue o seu fadário até o
momento que lhe foi reservado como derradeiro; nessa dilação temporal – mais ou menos prolongada
–, a sua dependência dos alimentos é uma constante, posta como condição de vida.
Registra Oliveira e Cruz (1956, p. 15):
A palavra ‘alimentos’, na terminologia jurídica, tem significação própria, compreendendo todo o
necessário para o sustento, habitação, vestuário, tratamento por ocasião de moléstia e, se o alimentário
for menor, as despesas com a sua educação e instrução.
Por sua vez Gomes (2002, p. 427) define alimentos como sendo:
As prestações para satisfação das necessidades vitais de quem não pode provê-las por si. A expressão
designa medidas diversas. Ora significa o que é estritamente necessário à vida de uma pessoa,
compreendendo, tão somente, a alimentação, a cura, o vestuário e a habitação, ora abrange outras
necessidades, compreendidas as intelectuais e morais, variando conforme a posição social da pessoa
necessitada. Na primeira dimensão, os alimentos limitam-se ao necessarium vitae; na segunda,
compreendem o necessarium personae. Os primeiros chamam-se alimentos naturais, os outros civis
ou côngruos.
1.2 EXTENSÃO OBJETIVA DA OBRIGAÇÃO
O art. 1.694, caput, do Código Civil, deixa claro que os alimentos devem permitir
que seu credor viva de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender
às necessidades de sua educação.
A regra geral é complementada pelo § 1º do mesmo dispositivo, segundo o qual devem os alimentos ser fixados na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos
da pessoa obrigada.
Importante ressaltar que o valor fixado a título de alimentos é, a todo tempo, passível de revisão. Deveras, como bem posto no art. 1.699, caso haja mudança na situação
financeira de quem os supre, ou na de quem os recebe, poderá o interessado reclamar ao
juiz, conforme as circunstâncias, exoneração, redução ou majoração do encargo.
1.3 EXTENSÃO SUBJETIVA DA OBRIGAÇÃO
A legitimidade para prestar alimentos encontra-se no Código Civil de 2002, em
seus arts. 1.696, 1.697 e 1.698. A relação legal é taxativa, assim, somente os sujeitos enumerados na lei têm legitimidade para prestar ou requerer a obrigação alimentar.
Acerca do tema Gomes (2002) discorre:
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Não são todas as pessoas ligadas por laços familiares que estão sujeitas, porém, às disposições legais
atinentes aos alimentos, mas somente os ascendentes, os descendentes, os irmãos, assim germanos
como unilaterais, e os cônjuges. Limita-se aos colaterais de segundo grau de obrigação proveniente
de parentesco. Quanto aos cônjuges, a obrigação pressupõe a dissolução da sociedade conjugal pela
separação judicial, visto que, na constância do matrimônio, o dever do marido de sustentar a mulher
e o desta de concorrer para as despesas do casal são efeitos jurídicos imediatamente decorrentes do
casamento. Do mesmo modo, a obrigação dos pais diz respeito aos filhos adultos, pois, enquanto
menores, devem-lhes sustento.
É de se observar que a lei cria preferências ao estabelecer o devedor de alimentos.
Antes, os pais; após, os ascendentes, os descendentes e os irmãos.
A regra da preferência, porém, convive de forma harmônica com a regra da complementaridade ou concorrência (CC, art. 1.698). Contudo, importante destacar que somente em caso de inexistência de condições dos pais em suportar os alimentos que os
avós poderão ser chamados a complementá-los.
Devem-se pedir alimentos ao pai ou à mãe; na falta destes, aos avós maternos e paternos; na ausência destes, aos bisavós maternos e paternos e assim por diante. À falta de
parentes em grau mais próximo é equiparada à ausência de possibilidades. Assim, somente após a demonstração da inexistência ou da impossibilidade de um dos parentes de determinada classe em prestar alimentos é que se pode exigir pensão alimentícia de parentes
pertencentes às classes mais remotas. O alimentando não pode, sob pena de subverter
toda a sistemática do direito-dever dos alimentos, eleger, discricionariamente, os ascendentes que devem socorrê-lo. A prova da impossibilidade, neste caso, deve ser robusta,
clara, pois enquanto “o obrigado mais próximo tiver condições de prestar alimentos, ele é
o devedor e não se convoca o mais afastado” (SILVA, 2003, p. 1505).
Destarte, surge aquilo que se convencionou chamar de alimentos avoengos. É que,
de acordo com os arts. 1.696 e 1.698 do Código Civil, o avô pode ser convocado a suplementar os alimentos devidos aos netos quando o encargo não é integralmente satisfeito
pelo parente diretamente obrigado (normalmente, os próprios pais).
Tenha-se atenção ao fato de que, à exceção dos ascendentes de primeiro grau, são
os avós aqueles parentes mais próximos a quem a lei impõe a obrigação de prestar alimentos.
1.4 ALIMENTOS E A SITUAÇÃO ESPECÍFICA DO NASCITURO
De longa data nossa legislação civil prevê que a personalidade civil da pessoa começa com o nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos
do nascituro. Diniz (2009, p. 34), comentando o artigo 2º do Código Civil/2002, destaca
que:
Conquanto comece do nascimento com vida a personalidade civil do homem, a lei põe a salvo, desde
a concepção, os direitos do nascituro (CC, arts. 22, 1.609, 1.779 e parágrafo único e 1.798), como o
direito à vida (CF, art. 5º, CP, arts. 124 a 128, 1 e II), à filiação (CC, arts. 1.596 e 1.597), à integridade
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física, a alimentos (RT 650/220; RJTJSP 150/906), a uma adequada assistência pré-natal, a um curador
que zele pelos seus interesses em caso de incapacidade de seus genitores (CC, arts. 1.630, 1.633, 1.779;
CPC, art. 878, parágrafo único), de receber herança (CC, arts. 1.798 e 1.800, § 3º), de ser contemplado
por doação (CC, art. 542), de ser reconhecido como filho (...).
O nascituro tem direitos em estado potencial, sob condição suspensiva (direito
condicional ou eventual), pois aguardam a verificação de evento futuro e incerto (nascimento com vida) para ter eficácia. Contudo ele sempre teve – por meio de seu representante legal – o direito de praticar os atos destinados a conservar seu direito eventual nos
termos do disposto no art. 130 do Código Civil. E, entre os atos de conservação, está o
direito aos alimentos, sem os quais o desenvolvimento do feto pode ficar comprometido,
assim como podem se comprometer todos os seus direitos que aguardam o nascimento
com vida para ter eficácia. Rizzardo (2004, p. 758) leciona que:
Durante a gravidez, inúmeras as situações que comportam a assistência econômica do pai. Assim, o
tratamento ou acompanhamento médico; a conduta de repouso absoluto imposto à mãe em muitos
casos de gravidez de risco; os constantes exames médicos e medicamentos; o tipo de alimentação que
deve seguir a gestante; a sua própria subsistência se for obrigada a se afastar do trabalho remunerado
que exercia. O fundamento está na proteção da personalidade desde a concepção do ser humano.
Nesta ótica, seria até mesmo desnecessária a edição da Lei 11.804/2008, que prevê
os alimentos gravídicos, uma vez que o direito do nascituro aos alimentos é uma “velha
novidade”, embora a referida lei contenha outros aspectos que se revelam convenientes.
1.5 PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DA OBRIGAÇÃO ALIMENTAR
A obrigação alimentar é dotada de características próprias que a torna peculiar e
distinta das demais dívidas civis. As mais destacadas são: direito personalíssimo, indisponibilidade e irrenunciabilidade, transmissibilidade, incompensabilidade, irrestituibilidade ou irrepetibilidade, irretroatividade, imprescritibilidade e revisão das decisões que
fixam alimentos.
1.5.1 Direito personalíssimo
É a característica basilar do direito a alimentos, é a partir dela que decorrem todas
as demais características. Como ensina Cahali (2002, p. 49), “a característica fundamental
do direito de alimentos é representada pelo fato de tratar-se de direito personalíssimo”.
Rizzardo (2007, p. 724) destaca a obrigação pessoal dos alimentos:
Embora a natureza publicista que lhe é própria, a obrigação alimentar é inerente à pessoa. Ter-se-á em
conta, na fixação, a pessoa do necessitado, ao mesmo tempo em que a obrigação, em princípio, não é
transferível de uma pessoa para outra. Unicamente permite-se chamar o seguinte obrigado, na mesma
ordem da vocação hereditária, se o primeiro não revelar mais capacidade econômica.
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É direito personalíssimo, pois visa assegurar a subsistência do ser humano, não
podendo ser transferido a outrem. Ele tem esse caráter de pessoalidade e é estabelecido
intuitu personae, em que se tem em vista a própria pessoa que é titular.
1.5.2 Indisponibilidade e irrenunciabilidade
Sendo os alimentos o indispensável para a subsistência do alimentado, ele é irrenunciável quando decorrente de parentesco (jus sanguinis). De acordo como o Código
Civil no seu art. 1.707, “Pode o credor não exercer, porém lhe é vedado renunciar o direito
a alimentos, sendo o respectivo crédito insuscetível de cessão, compensação ou penhora”.
O Conselho da Justiça Federal editou o Enunciado nº 263, segundo o qual o art.
1.707 do Código Civil não impede seja reconhecida válida e eficaz a renúncia manifestada
por ocasião do divórcio (direto ou indireto) ou da dissolução da “união estável”. Contudo,
a irrenunciabilidade do direito a alimentos somente é admitida enquanto subsista vínculo
de Direito de Família.
No mesmo sentido a Súmula nº 379 do Supremo Tribunal Federal, que enumera:
“no acordo de desquite não se admite renúncia aos alimentos, que poderão ser pleiteados
ulteriormente, verificados os pressupostos legais”.
Cabe ressaltar que o direito aos alimentos sempre foi irrenunciável entre os parentes, com fulcro no art. 404 do Código Civil de 1916.
O cerne da questão é que o encargo alimentar é de ordem pública, ou seja, o interesse público predomina sobre o particular com o escopo de preservar a vida.
Logo, não há a possibilidade de renunciar o direito a alimentos. E mesmo que sejam
renunciados, os credores poderão pleiteá-los em outro momento, se houver necessidades
deles para a sua subsistência.
1.5.3 Transmissibilidade
A transmissibilidade da obrigação alimentar apresenta-se como uma das inovações
do Código Civil de 2002, uma vez que passa a ser a regra geral. O seu art. 1.700 prevê:
“a obrigação de prestar alimentos transmite-se aos herdeiros do devedor, na forma do
art.1.694”.
É certo que o mencionado dispositivo não faz qualquer referência a que a transmissibilidade deva ocorrer nos limites das forças da herança, o que tem gerado diversos
entendimentos na doutrina e na jurisprudência. Alguns defendem que os herdeiros e o espólio só respondem pelos alimentos já existentes, ou seja, os vencidos e atrasados; outros
entendem que só o espólio responde e até a partilha dos bens; e ainda outros entendem
que os herdeiros respondem pelas pensões vincendas.
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Sobre o artigo 1.700, esclarecem Nery e Nery (2003, p. 752) que “os herdeiros respondem cada qual na proporção da parte que na herança lhes cabe. O credor de alimentos
deve atentar para as prescrições contidas no CC 1997 e seus §§”.
Dentre aqueles que defendem que a transmissibilidade é nos limites das forças da
herança, pode-se citar, ainda, Silva (2003, p. 1509):
A obrigação de prestar alimentos que se transmite aos herdeiros do devedor sempre deve ficar limitada
aos frutos da herança, não fazendo sentido que os herdeiros do falecido passem a ter obrigação de
prestar alimentos ao credor do falecido segundo suas próprias possibilidades.
Há aqueles que defendem que a regra do art. 1.700 refere-se ao débito alimentar já
existente por ocasião da morte. Neste sentido Pereira (2003, p. 13):
A norma do art. 1.700, do novo estatuto civil, a despeito dos termos aparentemente peremptórios
de sua redação, há de ser interpretada cum grano salis, que será possível transmitir aos herdeiros do
alimentante, é o débito que tenha sido por ele deixado sem quitação, antes de seu falecimento, não
propriamente o encargo alimentar que como obrigação personalíssima deve ser visto, portanto, como
intransmissível.
Em sentido contrário, no entanto, é a opinião de Cahali (2002, p. 94-95):
A transmissibilidade da obrigação alimentar, estatuída no art. 1.700, transforma-se em regra geral e
exclusiva, na extensão do seu enunciado e nos limites da remissão do art. 1.694.
(...)
Desde que o sucessor do falecido devedor, pela sua simples condição de herdeiro legítimo ou
testamentário, passa a ter, por morte daquele, ‘a obrigação de prestar alimentos’, que é transmitida
pelo art. 1.700 do Novo Código aos ‘parentes ou cônjuges’ do de cujus, recomenda-se que os textos
legais, na deficiência de seus enunciados, sejam interpretados e aplicados com certa racionalidade, de
modo a se evitarem situações verdadeiramente teratológicas.
(...) Parece-nos inadmissível a ampliação do art. 1.700 no elastério do art. 1.696, para entender-se
como transmitido o ‘dever legal’ de alimentos, na sua potencialidade (e não na sua atualidade), para
abrir ensanchas à pretensão alimentar deduzida posteriormente contra os herdeiros do falecido
parente ou cônjuge.
(...) embora diferentemente do que consta no art. 23, in fine, da Lei do Divórcio (remissão ao art.
1.796 do Código Civil em vigor), é certo que o disposto no art. 1.587 do Código em vigor, segundo o
qual ‘o herdeiro não responde por encargos superiores às forças da herança’, ainda que incumbindolhe a prova do excesso, foi literalmente reproduzido no art. 1.792 do Novo Código, de tal modo que
a obrigação de pagamento da pensão alimentícia devida aos parentes ou cônjuges do falecido não se
dimensiona ‘na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada’ (art.
1.694, § 1º, a que fez remissão o art. 1.700), mas encontra seu limite natural na força da herança e do
quinhão hereditário que coube ao sucessor.
Pereira (2005, p. 508-509), por sua vez, opina que:
Há que se interpretar o art. 1.700 nos limites do art. 1997, ou seja, as dívidas provenientes de alimentos
se transmitem aos herdeiros do devedor, sempre limitadas à força da herança. Não faz sentido que
o espólio e, finalmente, os herdeiros passem a ter a obrigação de prestar alimentos ao credor do
falecido. Deve ser também atendido o princípio do § 1º do art. 1.694, relativo ao binômio necessidade/
possibilidade.
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Em relação às pensões vencidas e devidas pelo alimentante, Cahali (2002, pág. 95)
ressalta: que “qualquer que seja o entendimento que se empreste ao art. 1.700 do Novo
Código Civil, resta incólume de qualquer dúvida que as pensões devidas pelo alimentante
até a data do seu falecimento representam dívida de direito comum, que deve ser deduzida no monte partilhável (...)”.
O direito ao recebimento das pensões vencidas é inconteste, como não deveria deixar de ser. Responde o espólio por tais valores. Já com relação ao pensionamento a vencer,
a doutrina, como explicitado, diverge.
A mesma divergência encontrada na doutrina está presente também nos Tribunais.
Há julgados que entenderam que o espólio deve continuar o pagamento da pensão até o
final do inventário, há julgados que entendem que o espólio e os herdeiros só se responsabilizam pelas pensões devidas e atrasadas até a morte do alimentante.
Todavia, em que pese toda a divergência doutrinária e jurisprudencial acerca do
tema, entendemos que é o espólio quem deve suportar o pagamento dos alimentos que
forem vencendo durante o inventário. Após seu término, se o alimentado herdar bens
suficientes para sua sobrevivência, os seus irmãos não devem responder pelos alimentos.
Se não herdar bens suficientes, pode acionar seus irmãos para que, dentro do binômio
necessidade-possibilidade, eles sejam responsabilizados pelas prestações alimentares.
Com relação aos alimentos vencidos, como não poderia deixar de ser, o espólio
responde por eles.
1.5.4 Incompensabilidade
Sendo a compensação uma forma de extinção de duas obrigações cujos credores
são, ao mesmo tempo, devedores um do outro, não pode ser aplicada aos alimentos, ou
seja, o débito alimentar não pode ser compensado com débito de outra natureza (CC, art.
1.707).
Nestes termos têm decidido nossos Tribunais e, para exemplificar, colaciono aresto
do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
APELAÇÃO CÍVEL. EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. PAGAMENTOS A MAIOR.
IMPOSSIBILIDADE DE COMPENSAÇÃO. INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 373, II, E 1707 DO CCB.
Os alimentos são incompensáveis, sendo descabida a pretensão do executado em compensar os
valores depositados a maior para a filha. Inviabilidade de restaurar execução extinta pela satisfação
do crédito, a fim de ‘inverter’ posições, passando o devedor a ser o credor exequente, até porque não
teria, neste feito, título a executar. Perdendo objeto a execução, sua extinção se impunha. Eventual
crédito do devedor, somente poderá ser cobrado em ação própria, uma vez que não são passíveis de
repetição, ou compensação, em ação de execução de alimentos. Apelação desprovida. (Segredo de
Justiça) (Apelação Cível nº 70024835506, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator:
André Luiz Planella Villarinho, Julgado em 19/11/2008).
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1.5.5 Irrestituibilidade ou irrepetibilidade
A obrigação alimentar é irrepetível, isto é, uma vez prestados, os alimentos são
irrepetíveis, quer sejam alimentos provisionais ou os definitivos. Assim, se os alimentos
provisórios são superiores aos definitivos, a diferença não volta para o bolso do credor, e
nem é abatida das prestações futuras. A natureza do instituto justifica a inteira impossibilidade de restituição.
Dias, em seu artigo “Dois pesos e duas medidas para preservar a ética: irrepetibilidade e retroatividade do encargo alimentar”, discorre acerca desta característica nos
termos seguintes:
Em sede de alimentos há dogmas que ninguém questiona. Talvez um dos mais salientes seja o princípio
da irrepetibilidade. Como os alimentos servem para garantir a vida e se destinam à aquisição de
bens de consumo para assegurar a sobrevivência é inimaginável pretender que sejam devolvidos. Esta
verdade é tão evidente que até é difícil sustentá-la. Não há como argumentar o óbvio. Provavelmente
por esta lógica ser inquestionável é que o legislador sequer preocupou-se em inseri-la na lei. Daí que
o princípio da irrepetibilidade é por todos aceito mesmo não constando do ordenamento jurídico.
Por outro lado, buscando dar efetividade a esta característica, a apelação em ação
revisional de alimentos deve ser recebida somente no efeito devolutivo. Nesta linha já se
posicionou o STJ:
Recurso especial. Processo civil. Revisional de alimentos. Redução e exoneração da prestação
alimentícia. Efeitos da apelação. - Deve ser recebido apenas no efeito devolutivo o recurso de apelação
interposto contra sentença que decida pedido revisional de alimentos, seja para majorar, diminuir
ou exonerar o alimentante do encargo. - Valoriza-se, dessa forma, a convicção do juiz que, mais
próximo das provas produzidas, pode avaliar com maior precisão as necessidades do alimentando
conjugadas às possibilidades do alimentante, para uma adequada fixação ou até mesmo exoneração
do encargo. - Com a atribuição do duplo efeito, há potencial probabilidade de duplo dano ao
alimentante quando a sentença diminuir o encargo alimentar: (i) dano patrimonial, por continuar
pagando a pensão alimentícia que a sentença reconhece indevida e por não ter direito à devolução da
quantia despendida, caso a sentença de redução do valor do pensionamento seja mantida, em razão
do postulado da irrepetibilidade dos alimentos; (ii) dano pessoal, pois o provável inadimplemento
ditado pela ausência de condições financeiras poderá levar o alimentante à prisão. Recurso especial
parcialmente conhecido e, nesta parte, improvido. (REsp. nº 595.209–MG, Rel. Ministra Nancy
Andrighi, DJ 2/4/2007, p. 263).
Excepcionando a característica da irrepetibilidade, Wald (2002, p. 47) entende ser
cabível a restituição dos alimentos no seguinte caso:
Admite-se a restituição dos alimentos quando quem os prestou não os devia, mas somente quando
se fizer a prova de que cabia a terceiro a obrigação alimentar, pois o alimentando, utilizando-se dos
alimentos, não teve nenhum enriquecimento ilícito. A norma adotada pelo nosso direito é destarte a
seguinte: quem forneceu os alimentos, pensando erradamente que os devia, pode exigir a restituição
do valor dos mesmos do terceiro que realmente deveria fornecê-los.
Todavia, Cahali (2002, p. 128) entende ser irrepetível também no caso referido:
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– ALIMENTOS GRAVÍDICOS: ASPECTOS MATERIAIS E PROCESSUAIS DA LEI N° 11.804/08 –
Mesmo recebidos por erro na forma assim pretendida, não caberia a restituição pelo alimentário, eis
que faltou o pressuposto do enriquecimento sem causa; e quanto à pretendida sub-rogação do terceiro
prestante em erro, no direito do alimentário contra o obrigado, a tese apresenta-se discutível.
Na jurisprudência havia o entendimento pacificado de que a verba alimentar, em
nenhum caso, poderia ser restituída. Entretanto, em decisões recentes, analisando a questão sob o enfoque do Código Civil/2002, o princípio da irrepetibilidade dos alimentos
está sendo redimensionado conforme critérios ético-jurídicos visando à concretização da
justiça, através da eticidade e da boa-fé objetiva.
O novo CC, ao adotar um sistema centrado em conceitos como a ética e a boa-fé,
impõe padrões de conduta sob os quais devem reger-se todas as relações humanas. Em
consequência, reprime o abuso de quaisquer direitos e veda atitudes que contrariam tais
premissas.
Transpondo tal entendimento para o Direito de Família, mais precisamente para a
seara do dever alimentar, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina entendeu que as partes
também devem agir segundo os parâmetros éticos e de boa-fé objetiva, e nesse contexto
repensou a irrepetibilidade dos alimentos, mormente quando ocorre causa exoneratória
do dever alimentar – art. 1.708 do CC –, como, por exemplo, um segundo casamento,
uma união estável posterior ao casamento ou união estável desfeita ou simplesmente concubinato. Uma vez que o princípio da irrepetibilidade alimentar, aplicado como valor
absoluto, deve ser mitigado, sua incidência, em hipóteses de pagamento indevido, implica
violação da ética e da boa-fé objetiva e revela-se contrária ao ideário de justiça concreta
que se pretende buscar2.
1.5.6 Irretroatividade
A obrigação alimentar deve ser atual, porque o direito aos alimentos visa satisfazer
necessidades atuais ou futuras, e não as passadas do alimentando; logo, este jamais poderá requerer que se lhe conceda pensão alimentícia relativa às dificuldades que teve no
passado.
Por esta razão a decisão que fixa alimentos, especialmente os provisionais que são
fixados sem o exaurimento da fase cognitiva, são devidos desde a data da sua fixação, sendo descabida a sua retroatividade. A cobrança dos alimentos pretéritos – desde a citação
– somente poderá ocorrer quando forem fixados os alimentos definitivos na sentença, por
força do disposto no § 2º, do art. 13, da Lei n. 5.478/68.
Da mesma forma, a decisão de revisional de alimentos, quer seja modificando, majorando ou exonerando, não retroage a partir da citação, pois terá seus efeitos a partir
dela, sob pena de premiar o inadimplente. Exemplifico no arresto abaixo:
2 TJSC, Apelação Cível n. 2004.034220-9, Rel. Des. Monteiro Rocha, julgado em 17/7/2008.
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– Leci Henn Fernandes –
EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. REDUÇÃO DECORRENTE DE AÇÃO REVISIONAL NO CURSO
DA EXECUÇÃO. IRRETROATIVIDADE. 1. Na ação de redução de alimentos julgada procedente,
o novo valor da obrigação alimentária não retroage à data da citação, sob pena de ser estimulada
a inadimplência do encargo durante a ação revisional, eis que os alimentos são irrepetíveis e
incompensáveis. 2. Somente com o trânsito em julgado da sentença é que o novo valor passa a vigorar,
eis que o recurso interposto contra a sentença é recebido no duplo efeito. Recurso desprovido. (AI
nº 70005672860, 7ª CC do TJRGS, Rel. Des. Sérgio Fernando de Vasconcelos Chaves, julgado em
12/3/2003).
Acerca desta característica, Wald (1981, p. 32) diz que “se os alimentos se destinam
a assegurar a vida, é evidente que não se dá alimentos correspondentes ao passado; se o
alimentando já viveu, perde a prestação a sua razão de ser”.
1.5.7 Imprescritibilidade
O direito aos alimentos é imprescritível, isto é, estando configuradas as condições,
o credor terá legitimidade para pleitear os alimentos a qualquer tempo. No entanto, se
já houver obrigação estabelecida anteriormente e com prestações vencidas, estas serão
suscetíveis de prescrição.
Ou seja, de acordo com o art. 23 da Lei de Alimentos (n. 5.478/68), a prescrição
só alcança as prestações mensais, e não o direito a alimentos, que, embora irrenunciável,
pode ser provisoriamente dispensado. O prazo de prescrição que era quinquenal passou a
dois anos de acordo com o § 2º, do art. 206, do Código Civil de 2002.
Nesse contexto, necessário se faz definir a extensão da referida imprescritibilidade,
o que fica bem claro na lição de Gomes (2002, p. 432):
Há que distinguir três situações: 1ª) aquela em que ainda não se conjuminaram os pressupostos
objetivos, como, por exemplo, se a pessoa obrigada a prestar alimentos não está em condições de
ministrá-los; 2ª) aquela em que tais pressupostos existem, mas o direito não é exercido pela pessoa
que faz jus aos alimentos; 3ª) aquela em que o alimentando interrompe o recebimento das prestações,
deixando de exigir do obrigado a dívida a cujo pagamento está este adstrito. Na primeira situação, não
há cogitar de prescrição, porque o direito ainda não existe. Na segunda, sim. Consubstanciado pela
existência de todos os seus pressupostos, seu exercício não se tranca pelo decurso do tempo. Diz-se,
por isso, que é imprescritível. Na terceira, admite-se a prescrição, mas não do direito em si, e sim das
prestações vencidas. É compreensível e desejável que o prazo prescricional seja curto pela presunção
de que se o alimentando deixa de receber por algum tempo as prestações alimentares é porque não
estava realmente necessitado.
Em suma, o direito a alimentos é imprescritível, pois o alimentando poderá necessitar do seu recebimento em qualquer momento de sua vida. Mas, uma vez fixados
judicialmente, terá início o lapso prescricional.
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– ALIMENTOS GRAVÍDICOS: ASPECTOS MATERIAIS E PROCESSUAIS DA LEI N° 11.804/08 –
1.5.8 Revisão das decisões que fixam alimentos.
A ação de alimentos é atípica e especial. Suas decisões não são definitivas quanto
aos valores, pois a própria legislação – art. 15, Lei n. 5.478/68 – já prevê expressamente a
possibilidade de revisão, desde que, obviamente, haja comprovada alteração na condição
financeira das partes.
Tanto pode ser o empobrecimento como o enriquecimento de qualquer das partes.
É que o espírito da norma tem fundamento no entendimento de que o padrão de vida do
alimentado deve guardar sintonia com o padrão de vida do alimentante.
Contudo, sem que o autor da revisional – seja o alimentante ou o alimentado – faça
prova da alteração na situação fática que alterou o binômio possibilidade e necessidade, a
decisão não poderá ser alterada. Este é o entendimento pacífico de nossa jurisprudência.
1.6 QUANTUM DEVIDO
O valor devido a título de alimentos deve seguir o disposto no § 1º do art. 1.694 do
Código Civil, que consagra que “os alimentos devem ser fixados na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada”.
Oliveira (2003, p. 97-112) diz que:
A referência à condição social do alimentando significa variação do valor para o atendimento das
peculiaridades de cada pessoa, mas sem distanciar-se de suas necessidades, o que significa exclusão
dos dispêndios tidos como excessivos ou meramente voluptuários.
Isto significa dizer que na fixação do quantum devido a título de alimentos o juiz
deverá fazer uma análise equitativa acerca do famoso binômio necessidade do reclamante e
possibilidade do devedor. Assim, segundo Carvalho Filho (2008, p. 1803), “a utilização do
critério da proporcionalidade entre essas duas variáveis permitirá o juiz estabelecer uma
prestação alimentícia de forma racional e equilibrada, sem excessos nem deficiências”.
2.ALIMENTOS GRAVÍDICOS
2.1 CONCEITO
Pela dicção do caput do art. 2º, da Lei n. 11.804/08, os alimentos gravídicos são
aqueles que compreendem “os valores suficientes para cobrir as despesas adicionais do
período de gravidez e que sejam dela decorrentes, da concepção ao parto, inclusive as
referentes a alimentação especial, assistência médica e psicológica, exames complementares, internações, parto, medicamentos e demais prescrições preventivas e terapêuticas
indispensáveis, a juízo do médico, além de outras que o juiz considere pertinentes”.
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– Leci Henn Fernandes –
2.2 LEI N. 11.804/08 E PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
A nova legislação consagra diversos princípios constitucionais, tais como: princípio da dignidade da pessoa humana, princípio da liberdade, princípio da igualdade,
princípio da solidariedade familiar, princípio da paternidade responsável, princípio da
proporcionalidade, princípio da proteção integral. Além de trazer princípios processuais
constitucionais, como: princípio da ampla defesa e princípio do contraditório.
2.2.1 Princípio da dignidade da pessoa humana
O princípio da dignidade da pessoa humana foi previsto no artigo 1º da Declaração
Universal dos Direitos do Homem, da Organização das Nações Unidas. No Brasil, o legislador constituinte originário o elencou como fundamento do Estado Democrático, sendo
previsto no inciso III do artigo 1º da Constituição vigente.
Ele é o norteador de todos os demais princípios; sua importância no Estado Democrático de Direito é fundamental, formando o alicerce, a estrutura na qual o Estado
brasileiro se apoia.
Segundo Sarmento (2002, p. 60), representa o epicentro axiológico da ordem constitucional, irradiando efeitos sobre todo o ordenamento jurídico e balizando não apenas
os atos estatais, mas toda a miríade de relações privadas que se desenvolvem no seio da
sociedade. Dele derivam todos os demais princípios, como: liberdade, igualdade, cidadania, solidariedade, etc.
Sarlet (2001, p. 60) propôs uma conceituação jurídica para a dignidade da pessoa
humana como sendo:
Uma qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito
e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de
direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho
degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existentes mínimas para uma
vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da
própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.
Nos artigos 1º e 2º da Lei 11.804/08, o direito de alimentos da mulher gestante
atende ao princípio da dignidade da pessoa humana, sendo respeitada, tendo através dos
alimentos condições dignas de pessoa humana, a qual traz em seu ventre outro ser humano, também digno de ser respeitado em todos os seus direitos.
2.2.2 Princípio da liberdade e princípio da igualdade
Prevê o art. 1.513 do Código Civil em vigor que “É defeso a qualquer pessoa de
direito público ou direito privado interferir na comunhão de vida instituída pela família”.
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– ALIMENTOS GRAVÍDICOS: ASPECTOS MATERIAIS E PROCESSUAIS DA LEI N° 11.804/08 –
Trata-se da consagração do princípio da liberdade ou da não intervenção na ótica do
Direito de Família.
Por certo que o princípio em questão mantém relação direta com o princípio da autonomia privada, que também deve existir no âmbito do Direito de Família. A autonomia
privada é muito bem conceituada por Daniel Sarmento3 como o poder que a pessoa tem
de autorregulamentar os próprios interesses.
Retornando ao art. 1.513 do Código Civil, é importante frisar que se deve ter muito
cuidado na sua leitura. Isso porque o real sentido do texto legal é que o Estado ou mesmo
um ente privado não pode intervir coativamente nas relações de família. Entretanto, o
Estado poderá incentivar o controle da natalidade e o planejamento familiar por meio de
políticas públicas.4
A igualdade e o respeito às diferenças constituem um dos princípios-chave para as
organizações jurídicas e especialmente para o Direito de Família, sem os quais não há dignidade do sujeito de direito, consequentemente não há justiça. O discurso da igualdade
está intrinsecamente vinculado à cidadania, uma outra categoria da contemporaneidade,
que pressupõe o respeito às diferenças. Se todos são iguais perante a lei, todos estão incluídos no laço social (Cunha Pereira, 2006, p. 140-141).
Acerca deste princípio, Fontes (2009) discorre que a mulher gestante necessita de
cuidados especiais, tem despesas extras decorrentes da gravidez, pois precisa de uma
alimentação especial, roupas diferenciadas, assistência médica adequada, isto ainda
quando em condições normais, sem falar nos casos em que há complicações decorrentes da gravidez.
Não seria justo que a mulher assumisse sozinha todas estas despesas, pois não gerou o filho sozinha; aí entra a figura do pai e o princípio da isonomia e o da liberdade.
Ambos, homens e mulheres, são iguais perante a lei. Ambos têm liberdade para
escolher o seu par, independentemente do sexo, bem como a liberdade do planejamento
familiar, cabendo a cada um a sua escolha, sendo que a cada dia novos métodos anticoncepcionais são criados e colocados à disposição de todos que não desejam uma gestação.
O homem tem a liberdade de reproduzir, o que não pode acarretar o abandono, o sofrimento e a morte de seu próprio filho. Pais irresponsáveis são culpados pelo número crescente de jovens que se enredam para o mundo do crime, da marginalização, das drogas.
3 Ensina o autor fluminense que “esse princípio tem como matriz a concepção do ser humano como agente moral, dotado
de razão, capaz de decidir o que é bom ou ruim para si, e que deve ter a liberdade para guiar-se de acordo com estas
escolhas, desde que elas não perturbem os direitos de terceiros nem violem outros valores relevantes para a comunidade”
(2005, p. 188).
4 O mesmo sentido consta do art. 1.565, § 2º, do Código Civil.
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2.2.3 Princípio da solidariedade familiar
Tartuce (2006) discorre que a solidariedade social é reconhecida como objetivo
fundamental da República Federativa do Brasil pelo art. 3º, inciso I, da Constituição Federal de 1988, no sentido de buscar a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Por razões óbvias, esse princípio acaba repercutindo nas relações familiares, já que a
solidariedade deve existir nesses relacionamentos pessoais. Isso justifica, entre outros, o
pagamento dos alimentos no caso de sua necessidade, nos termos do art. 1.694 do atual
Código Civil.
Contudo, vale lembrar que a solidariedade não é só patrimonial é, também, afetiva
e psicológica. Neste contexto, observa-se que independentemente da vontade, a partir do
momento que ocorreu a concepção, ambos, pai e mãe, são responsáveis solidariamente
pela vida deste novo ser humano, com dever de cuidado e assistência. A mulher como
pessoa que gera em seu ventre outro ser deve respeitá-lo e garantir-lhe o direito à vida. O
homem precisa ter consciência de que tem o dever de cuidar e dar-lhe assistência devida
para que venha ao mundo com dignidade, pois se trata de um ser humano que merece
ser respeitado.
2.2.4 Princípio da paternidade responsável
De forma explícita, o princípio da paternidade responsável foi incluído no artigo
27, da Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), ao dispor que “o reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado
o segredo de justiça”.
A consciência do dever de pai em relação a este filho tem que estar sedimentada em
cada ser, pois temos a escolha do planejamento familiar, temos à nossa disposição muitos
métodos para evitar uma gravidez indesejada, mas não temos o direito de desprezar, ignorar uma nova vida, a qual queira ou não fomos responsáveis por sua futura vinda.
2.2.5 Princípio da proporcionalidade
A mulher gestante também deverá contribuir na proporção de seus recursos (art.
2º, da Lei 11.804/08), dando ensejo ao princípio da proporcionalidade. Tratando-se de
alimentos gravídicos, deve-se respeitar o binômio necessidade/possibilidade, sendo que o
pai deve colaborar pagando os alimentos à mulher gestante dentro de suas possibilidades,
quando haja necessidade, pois ambos são responsáveis pelo nascituro, devendo garantirlhe uma vida intrauterina digna e um nascimento seguro.
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– ALIMENTOS GRAVÍDICOS: ASPECTOS MATERIAIS E PROCESSUAIS DA LEI N° 11.804/08 –
2.2.6 Princípio da proteção integral
O princípio da proteção integral está consagrado pela Constituição Federal (art.
227), garantindo à criança e ao adolescente o direito à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade
e à convivência familiar e comunitária. O Estatuto da Criança e do Adolescente rege-se
pelos princípios do melhor interesse do menor, da paternidade responsável e da proteção integral, vedando a discriminação entre os filhos. Sendo resguardado o direito do
nascituro, tais como: direito à vida, direito de nascer com vida; respeito como ser em
desenvolvimento.
Na ótica civil, essa proteção integral pode ser percebida pelo princípio do melhor
interesse da criança, ou best interest of the child, conforme reconhecido pela Convenção
Internacional de Haia, que trata da proteção dos interesses das crianças.
Devemos, ainda, citar a Convenção Interamericana dos Direitos Humanos – Pacto
de São José da Costa Rica, promulgada em 1969 e já ratificada pelo Brasil. Ela declara em
seu art. 1º, parágrafo 2º: “Para efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano”, e em
seu art. 4º preceitua: “Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito
deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode
ser privado da vida arbitrariamente”.
Este artigo deixa claro que o nascituro certamente deve ter os seus direitos resguardados, principalmente o direito à vida, de nascer dignamente. Não há qualquer dúvida de
que ele é um ser humano, principalmente por ter sido gerado por seres humanos, portanto é pessoa e merece ter todos os direitos inerentes a essa sua condição.
À luz do Pacto de São José da Costa Rica, os estados-membros promulgaram o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, sem qualquer distinção, e se obrigam
a observar todas as garantias previstas na Convenção.
A nova legislação visa ampliar o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, dando à gestante os alimentos gravídicos para o melhor desenvolvimento do nascituro, garantindo-lhe melhores condições de vida como pessoa humana.
2.2.7 Princípio da ampla defesa e do contraditório
Para Nery (2002, p. 135):
O princípio do contraditório, além de fundamentalmente constituir-se em manifestação do princípio
do estado de direito, tem íntima ligação com o da igualdade das partes e o do direito de ação, pois
o texto constitucional, ao garantir aos litigantes o contraditório e a ampla defesa, quer significar que
tanto o direito de ação quanto o direito de defesa são manifestações do princípio do contraditório.
Prossegue o processualista paulista (p. 137) dizendo:
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Por contraditório deve entender-se, de um lado, a necessidade de dar conhecimento da existência da
ação e de todos os atos do processo às partes, e, de outro, a possibilidade de as partes reagirem aos
atos que lhe sejam desfavoráveis. Os contendores têm direito de deduzir suas pretensões e defesas, de
realizar as provas que requereram para demonstrar a existência de seu direito, em suma, direito de
serem ouvidos paritariamente no processo em todos os seus termos.
Como a norma dos alimentos gravídicos exige somente “indícios” de paternidade
para fixação da verba alimentar, já despontam doutrinadores entendendo que a nova lei
viola o princípio da ampla defesa e do contraditório, alegando o cerceamento de defesa.
Há um distanciamento do princípio da presunção de inocência e a restrição à ampla defesa, uma vez que a dúvida militará em favor da autora (gestante), e não do réu
(suposto pai).
Assim, em certos casos, a espontaneidade da lei será contrastada com mulheres
desprovidas de boas condutas, que viveram relacionamentos sucessivos e engravidaram,
ou, como dito pelo Direito clássico, a mulher frequentada por vários homens (plurium
concubentium) e a consequente dificuldade de apontar com segurança o pai da criança.
Fontes (2009) defende que, se houver má-fé por parte da autora (mãe), o requerido
ficará prejudicado, sendo injustiçado; mas a legislação não foi feita às pessoas de má-fé, e
sim às pessoas dignas, com a finalidade de proteger o nascituro, dar-lhe uma vida melhor,
bem como para o pai dividir com a mãe as despesas surgidas com a gestação, fazendo
Justiça.
2.3 TITULARIDADE E LEGITIMAÇÃO ATIVA
A lei de alimentos e o Código Civil levam em conta a relação de parentesco ou de
afinidade existente entre credor e devedor para a fixação dos alimentos. Contudo, em se
tratando de alimentos gravídicos, surge dúvida acerca da legitimidade ativa ad causam:
seria da gestante ou do nascituro?
O art. 1º da Lei n. 11.804/08 parece deixar claro que a titularidade é da mulher gestante, uma vez que a ela se refere quando dispõe “Esta Lei disciplina o direito de alimentos
da mulher gestante e a forma como será exercido” (sem destaque no original).
Donoso destaca que:
É preciso ter atenção, no entanto, ao que prevê o art. 6º e seu parágrafo único, da LAG, pelo qual
os alimentos gravídicos perdurarão até o nascimento da criança, após o que ficam convertidos em
pensão alimentícia em favor do menor até que uma das partes solicite a sua revisão.
Ainda assim, ao que me parece, inicialmente a titularidade – e, portanto, a legitimidade ativa – seria
da própria gestante. Após o nascimento com vida, porém, haveria uma conversão de titularidade, de
modo que os alimentos gravídicos passariam à qualidade de pensão alimentícia em favor do menor.
A lei, aparentemente sem querer, teria criado uma restrição ao acesso do nascituro ao pleito judicial
de alimentos. A ele só seria dada legitimidade de pleitear sua revisão, após seu nascimento com vida.
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Neste tópico, porém, entendo que a titularidade ativa é do nascituro, e não da mulher gestante. E para chegar a esta conclusão destaco as razões de Gaburri (2009, p. 56-71)
que, fazendo um apanhado da legislação, discorre:
Primeiramente, porque se tratam de alimentos necessários à própria manutenção do saudável estado
de gravidez da mulher, sem o qual o feto estaria inviabilizado de se tornar pessoa.
Nesse diapasão, o ECA contempla, em seus arts. 3º e 4º, norma protetiva dos direitos fundamentais
da criança e do adolescente, complementando o preceito do caput do art. 227 da CF, o qual dispõe
ser dever da família, da sociedade e do Estado, entre outros ali expressamente elencados, assegurar à
criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à dignidade,
e ao respeito, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão.
Por conta disso, tem aplicação o art. 2º do CC, que assegura ao nascituro desde a concepção, os
direitos da personalidade. Além do que, segundo o Pacto de São José da Costa Rica, incorporado
ao ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto nº 678, de 06.11.1992, o direito à vida deverá ser
protegido por lei e, em geral, a partir da concepção. E é sabido que o direito a alimentos, além de seu
aspecto patrimonial, tem nítido caráter de direito da personalidade do credor, pois tem por razão
de ser a manutenção de sua incolumidade física e psíquica, como meios de garantir a efetividade do
princípio e valor fundamental da dignidade da pessoa humana.
Em seguida o autor discorre acerca dos direitos da personalidade mencionando os
previstos no Código Civil de 2002, os quais não são taxativos, uma vez que outros direitos
poderão ser reconhecidos como de personalidade, mediante nova previsão legal, construção jurisprudencial ou interpretação doutrinária. Finalizando, o tópico traz outra razão
importante em favor da legitimidade ativa do nascituro:
Em segundo lugar, porque, com o nascimento em vida, os alimentos gravídicos automaticamente
convertem-se em pensão alimentícia, agora diretamente direcionada ao neonato, na forma do
parágrafo único do art. 6º. Nesse caso, caberá ao interessado requerer revisão da prestação, seja pelo
neonato, representando por sua mãe ou por quem de direito, no intuito de majorá-la, ou pelo genitor,
com finalidade de minorá-la.
Antes da vigência da lei em estudo, ao tratarem do contrato de doação, Gagliano
e Pamplona Filho (2008, p. 131) acabaram por discorrer sobre o tema, nos seguintes
termos:
Defendemos ainda que o entendimento no sentido de que o nascituro tem direito a alimentos, por
não ser justo que a genitora suporte todos os encargos da gestação sem a colaboração econômica
do seu companheiro reconhecido. Tal matéria, embora não seja objeto ainda de legislação expressa,
pode ser reconhecida judicialmente em função da necessidade de proteção do feto para seu regular
desenvolvimento.
Vê-se que cada vez mais há decisões no sentido de se concederem direitos ao nascituro, dos mais variados matizes, não obstante ainda não sejam reconhecidos como pessoas para efeitos civis, na medida em que não detêm personalidade jurídica, que somente
se adquire com o nascimento com vida.
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Neste sentido, Almeida (2000, p. 81) entende que somente os direitos patrimoniais
serão condicionados ao nascimento com vida; os demais são exercitáveis de plano:
A personalidade do nascituro não é condicional; apenas certos efeitos de certos direitos dependem
do nascimento com vida, notadamente os direitos patrimoniais, como a doação e a herança. Nesses
casos, o nascimento com vida é elemento do negócio jurídico que diz respeito a sua eficácia total,
aperfeiçoando-a.
Assim, buscando analisar a lei numa interpretação sistemática do tema, a conclusão é que objetiva-se dar ao nascituro uma gestação com condições dignas de desenvolvimento, sendo, desta forma, ele o titular ativo do direito aos alimentos gravídicos, e não
a mulher gestante.
2.4 DO QUANTUM
Segundo o art. 2º da Lei em estudo, o valor dos alimentos gravídicos compreenderão:
Os valores suficientes para cobrir as despesas adicionais do período de gravidez e que sejam dela
decorrentes, da concepção ao parto, inclusive as referentes a alimentação especial, assistência médica
e psicológica, exames complementares, internações, parto, medicamentos e demais prescrições
preventivas e terapêuticas indispensáveis, a juízo do médico, além de outras que o juiz considere
pertinentes.
A redação final do dispositivo deixa claro que o rol de despesas adicionais mencionadas não é taxativo, podendo existir outros gastos não enumerados, contudo, deverão
ser recomendados por médico ou avalizados pelo juiz.
Por óbvio, não estão incluídas despesas que não sejam indispensáveis, por exemplo,
exames de ultrassom, destinados somente à vaidade da mãe em ver o filho intrauterino,
já que hoje existem exames (ultrassonografia 3D/4D) capazes de definir com precisão a
aparência do feto.
Não se pode olvidar, porém, o disposto no seu parágrafo único que, de forma
expressa, prevê a contribuição da genitora nas despesas, na proporção dos recursos de
ambos.
Freitas (2009, p. 18-23) destaca que “no tocante à possibilidade de despesas, ‘outras
que o juiz’ considerar pertinentes, deverão ser discriminadas para que não haja julgamento extra ou ultra petita”. O autor mencionado adverte em seu artigo que:
Ainda, na fixação do pensionamento mensal, deverão ser levados em conta os elementos trazidos na
referida norma; porém, no tocante às despesas de internação e parto, por exemplo, salvo ajuste das
partes, é temerário impor ao suposto pai, principalmente de forma liminar, tais custos quando já são
arcados pelo SUS ou convênio médico que a genitora talvez possua.
Embora os critérios norteadores para fixação do quantum sejam diferentes dos alimentos previstos
nos arts. 1.694 e seguintes do Código Civil de 2002, quando determinados, o raciocínio é o mesmo,
ou seja, são levados em consideração todas as despesas relativas à gravidez (necessidade) e o poder de
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– ALIMENTOS GRAVÍDICOS: ASPECTOS MATERIAIS E PROCESSUAIS DA LEI N° 11.804/08 –
contribuição do pai e da mãe (disponibilidade), resultando na fixação proporcional dos rendimentos
de ambos, já que a contribuição não é somente de um ou de outro.
Diante do texto legal nota-se, realmente, que os critérios para a fixação do valor
dos alimentos gravídicos são os mesmos hoje previstos para a concessão dos alimentos
estabelecidos no art. 1.694 do Código Civil: a necessidade da gestante, a possibilidade do
réu – suposto pai – e a proporcionalidade como eixo de equilíbrio entre tais critérios.
Tendo em vista que, após o nascimento com vida, os alimentos gravídicos ficam
convertidos em pensão alimentícia em favor do menor até que uma das partes solicite a
sua revisão, de acordo com o parágrafo único do art. 6º, da Lei 11.804/08, nada impede
que o juiz estabeleça um valor para a gestante, até o nascimento e atendendo ao critério
da proporcionalidade, fixe alimentos para o filho, a partir do seu nascimento em valor
diverso, pois a convergência dos alimentos em pensão alimentícia é em razão da natureza
da obrigação, e não em função dos valores.
2.5 ASPECTOS MATERIAIS E PROCESSUAIS
2.5.1 Natureza jurídica dos alimentos gravídicos
Os alimentos gravídicos possuem natureza jurídica sui generis, agregando simultaneamente elementos de Direito de Família típicos nas pensões alimentícias e, ainda,
elementos de responsabilidade civil.
Segundo Freitas (2009, p. 18-23), “da primeira, se apropria da primazia de tutela em
relação a outras obrigações, enquanto da segunda, a novel lei se vale das regras de integral
reparação patrimonial”.
2.5.2 Competência
O art. 3º da LAG, que acabou por ser vetado, indicava a aplicação da regra geral do
art. 94 da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil –, como foro
competente para o processamento e julgamento das ações de alimentos gravídicos, ou
seja, o domicílio do devedor.
As razões do veto esclarecem que:
O dispositivo está dissociado da sistemática prevista no Código de Processo Civil, que estabelece
como foro competente para a propositura da ação de alimentos o do domicílio do alimentando. O
artigo em questão desconsiderou a especial condição da gestante e atribuiu a ela o ônus de ajuizar a
ação de alimentos gravídicos na sede do domicílio do réu, que nenhuma condição especial vivencia, o
que contraria diversos diplomas normativos que dispõem sobre a fixação da competência.
Assim, adotando as razões do veto, tem-se que o foro competente certo é o do domicílio do alimentado, neste caso a gestante.
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– Leci Henn Fernandes –
2.5.3 Citação do réu e termo inicial da obrigação
O termo inicial da obrigação de prestar alimentos gravídicos causou muitas controvérsias, pois no projeto de lei (art. 9º) havia a previsão de que “os alimentos serão devidos
desde a data da citação do réu”. Todavia, a disposição foi vetada numa brilhante interpretação constitucional de proteção à vida do nascituro e a busca da efetividade da lei, pelas
razões que seguem:
O art. 9º prevê que os alimentos serão devidos desde a data da citação do réu. Ocorre que a prática
judiciária revela que o ato citatório nem sempre pode ser realizado com a velocidade que se espera
e nem mesmo com a urgência que o pedido de alimentos requer. Determinar que os alimentos
gravídicos sejam devidos a partir da citação do réu é condená-lo, desde já, à não existência, uma vez
que a demora pode ser causada pelo próprio réu, por meio de manobras que visam impedir o ato
citatório. Dessa forma, o auxílio financeiro devido à gestante teria início no final da gravidez, ou até
mesmo após o nascimento da criança, o que tornaria o dispositivo carente de efetividade.
Dias, em seu artigo “Alimentos Gravídicos?”, analisou o Projeto de Lei que deu
origem à atual Lei de Alimentos Gravídicos e escreveu:
Mesmo explicitado que os alimentos compreendem as despesas desde a concepção até o parto, de
modo contraditório é estabelecido como termo inicial dos alimentos a data da citação. Ninguém
duvida que isso vai gerar toda a sorte de manobras do réu para esquivar-se do oficial de justiça.
Ao depois, o dispositivo afronta jurisprudência já consolidada dos tribunais e se choca com a Lei
de Alimentos, que de modo expresso diz: ao despachar a inicial o juiz fixa, desde logo, alimentos
provisórios
(...) Apesar das imprecisões, dúvidas e equívocos, os alimentos gravídicos vêm referendar a moderna
concepção das relações parentais que, cada vez com um colorido mais intenso, busca resgatar a
responsabilidade paterna.
Com o veto ao artigo 9º, não há na lei definição do termo inicial dos alimentos fixados, contudo, o que se tem defendido é a aplicação da Lei de Alimentos que determina ao
juiz despachar a inicial e fixar, desde logo, os alimentos provisórios, evitando, desta forma,
manobras no sentido de evitar a concretização do ato citatório.
Em outro artigo intitulado “Alimentos desde a concepção”, a autora defende que:
Os alimentos são devidos desde a data em que são fixados, ou seja, mesmo antes de ser o réu citado para
a ação. Não há como sujeitar o pagamento ao ato citatório. Mantendo o devedor vínculo empregatício,
ao fixar os alimentos, o juiz oficia ao empregador para que ele, desde logo, dê início ao desconto da
pensão no salário do alimentante. Os descontos passam a acontecer mesmo antes da citação do réu.
Não mantendo o devedor vínculo laboral, não há como admitir que a obrigação só se constitua depois
de ser ele citado, pois é descabido tratamento diferenciado. Além de deixar o credor desassistido,
estar-se-ia incentivando o devedor a esquivar-se da citação, a esconder-se do Oficial de Justiça.
Na hipótese de não terem sido fixados alimentos provisórios ou de serem os alimentos estipulados
na sentença em valor superior ao montante estabelecido em sede liminar, a decisão dispõe de efeito
retroativo. A partir do trânsito em julgado da sentença, quando os alimentos se tornam definitivos,
são devidos desde a data da citação (LA, art. 13, § 2º). O réu deve pagar o montante das diferenças
acumuladas durante este período.
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Atualmente há quem defenda que os alimentos seriam devidos não da fixação pelo
juiz, muito menos da citação, e sim desde a concepção, pois quem é pai, o é a partir do
momento conceptivo do filho. Exemplo disso é o artigo citado acima que, em outro trecho, diz:
Assim nada justifica livrar o genitor das obrigações decorrentes do poder familiar, que surgem desde a
concepção do filho. Como a ação investigatória de paternidade tem carga eficacial declaratória, todos
os efeitos retroagem à data da concepção, até mesmo a obrigação alimentar. Esta é a orientação que já
vem insinuando-se na doutrina brasileira e despontando na jurisprudência.
Freitas (2009, p. 18-23) também discorre acerca do marco inicial dos alimentos
gravídicos:
Controvérsia, porém, instala-se no termo inicial dos alimentos gravídicos. No projeto que deu origem
a lei, era previsto que seu termo inicial era a citação, mesmo como o veto presidencial, teoricamente a
regra é a mesma, pois assim determina o Código de Processo Civil. Numa interpretação sistemática,
entretanto, por tratar-se de norma específica, mais recente, que na sua estrutura já determina que os
alimentos gravídicos são as despesas adicionais que compreendem ‘da concepção ao parto’, é possível
requerer que o termo inicial se dê na concepção, mesmo antes do ajuizamento da ação.
É claro que tal posicionamento será contraposto pelos processualistas, porém, no escopo da nova
norma que apregoa integral proteção a mãe e ao menor estas regras devem ser relativizadas, pois,
por analogia (e por híbrida origem alimentícia e indenizatória), pode-se aplicar, por exemplo, a regra
do pensionamento ou mesmo da indenização da responsabilidade civil onde o marco inicial é o do
sinistro, ou seja, do fato originador da responsabilidade civil, conforme art. 398 do Código Civil de
2002.
De qualquer forma uma coisa parece certa, se o artigo que previa como termo inicial dos alimentos a partir da citação foi vetado, era intenção do legislador que sua regra
não fosse aplicável. Inicialmente defendi que não me parecia que a intenção fosse fixar a
partir do despacho do juiz – como ocorre na lei de alimentos –, pensava que, se a lei visa
cobrir as despesas adicionais do período de gravidez “da concepção ao parto”, este seria o
marco inicial e final dos alimentos gravídicos, respectivamente. Após o parto ocorrerá sua
conversão em pensão alimentícia.
Todavia, melhor analisando as consequências fáticas, atualmente defendo que o
termo inicial dos alimentos gravídicos deve ser, efetivamente, a partir do despacho do
juiz, pois se a genitora do nascituro pretender cobertura integral do período da gravidez,
situação garantida pela novel legislação, deverá intentar a demanda logo após a concepção, contudo, se ela ajuizar o processo decorrido algum tempo, por vezes meses, o suposto
pai que deverá suportar os alimentos gravídicos acerca do período retroativo (entre a
concepção e o despacho do juiz) seria prejudicado, pois não deu causa a esse acúmulo de
valores, situação que se reforça quando se verifica a consequência jurídica do não pagamento dos alimentos, uma vez que sujeita seu devedor à prisão civil.
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2.5.4 Provas
Todos os meios de prova devem ser admitidos, nos termos do art. 332 do Código de
Processo Civil, contudo, para provar a paternidade em relação ao nascituro, há problemas
de ordem prática.
Acerca da prova na ação de alimentos, Dias, em seu artigo “Alimentos desde a concepção”, destaca que:
Cabe lembrar que, na ação de alimentos, há inversão dos encargos probatórios. Ao autor cabe tão
só comprovar o vínculo de parentesco ou a obrigação alimentar do réu. Não há como lhe impor
que comprove os ganhos do demandado, pois são informações sigilosas que integram o direito à
privacidade. É do réu o ônus de provar seus ganhos para que o juiz possa fixar os alimentos atendendo
ao critério da proporcionalidade. Também quanto à cessação do convívio e ao não pagamento dos
alimentos, compete ao autor indicar as circunstâncias em que ocorreu a mora, sendo do réu o encargo
de demonstrar que continuou exercendo os deveres inerentes do poder familiar.
Mas pai é pai desde a concepção do filho. A partir daí, nascem todos os ônus, encargos e deveres
decorrentes do poder familiar. O simples fato de não assumir a responsabilidade parental não o
desonera. No entanto, é isso que se vê acontecer todos os dias. Ao saber que a namorada ou companheira
está grávida, o homem tenta induzi-la ao aborto, nega ser o pai, a abandona. Ameaça comprometer
sua reputação arguindo a malsinada exceptio plurium concubentium e que levará vários amigos
como testemunhas para afirmarem que mantiveram contato sexual com ela. A genitora fragilizada,
normalmente abandonada pela família, acaba tendo o filho sozinha. Tem enorme dificuldade de
procurar um advogado, de amealhar provas de um relacionamento íntimo que lhe causou tanto
sofrimento e que, muitas vezes, por imposição do varão, se manteve na clandestinidade.
Mas como provar a filiação do nascituro? A primeira ideia de resposta que vem à
mente é a realização do exame pericial por meio da coleta de líquido amniótico, porém
sua realização não é aconselhável, pois pode trazer algum risco a ele. Além do mais, o art.
8º da lei dos alimentos gravídicos, que condiciona a procedência do pedido do autor à realização de exame pericial pertinente em caso de oposição à paternidade, restou vetado.
O ônus da prova, por outro lado, é da genitora (art. 333, I, CPC), que deverá buscar meios possíveis e demonstrar o alegado. Poderá se valer do disposto no art. 1.597 do
Código Civil se presente alguma daquelas presunções legais de paternidade. Por outro
lado, não se enquadrando em nenhuma daquelas situações, o art. 6º da Lei n. 11.804/08
traz como requisito necessário para que o Poder Judiciário possa reconhecer o direito da
gestante em receber os alimentos gravídicos a existência de “indícios de paternidade”.
A questão é: o que seriam indícios de paternidade? Poder-se-ia trazer inúmeras respostas como, por exemplo, relação amorosa pública e notória, noivado com data de casamento agendado, fotografias, cartas contendo juras de amor, correspondência eletrônica,
testemunhas, conta-corrente conjunta, cartões de crédito, plano de saúde, ou quaisquer
outros documentos ou provas lícitas admitidas capazes de corroborar positivamente para
a presunção da paternidade.
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– ALIMENTOS GRAVÍDICOS: ASPECTOS MATERIAIS E PROCESSUAIS DA LEI N° 11.804/08 –
O indício, dizia Santos (1983, p. 83), “é o fato conhecido do qual, em virtude do
princípio da causalidade, se induz o fato desconhecido, ao qual se atribui a função de
causa ou efeito em relação ao fato conhecido”.
Ressalte-se que os indícios de paternidade deverão ser convincentes a ponto de
convencerem o juiz da sua veracidade, pois a prova não é tão sólida como na ação de
investigação de paternidade.
Fonseca (2009, p. 7-17) também destaca a necessidade de análise prudente do juiz
acerca dos indícios apresentados dizendo:
Evidentemente, os indícios devem ser apreendidos pelo juiz de forma prudente e responsável, porque,
por meios de prova indiciária (presunções) a lei possibilita até a imposição de prejuízos irreparáveis
para uma pessoa, seja sob o plano moral, seja pelo material ou econômico. Uma imputação de
paternidade indevida, v. g., poderá destruir casamentos e uniões estáveis, bem como possibilitar o
desembolso de quantia alimentar muitas vezes irrecuperável. Isso quando não pela possibilidade de
enviar o devedor de alimentos à prisão civil. Assim, a análise das alegações da parte (acerca dos
indícios) exigirá prudência do juiz, tendo em vista que este apreciará os fatos segundo as regras do livre
convencimento (art. 131, CPC) e que ‘a decisão do juiz se apoiará sempre, na verdade processual’.
O simples pedido da genitora, por maior necessidade que tenha, não galgará êxito
em gerar a devida presunção de paternidade, pois não há presunção in dubio pro actore,
no caso a gestante, no momento do juízo não exauriente da determinação da paternidade,
sustentando-se que a simples afirmação da gestante admite o reconhecimento preliminar
da autoria do filho. Até mesmo porque as provas seriam palavra (mãe) por palavra (suposto pai), tendo este cinco dias para produzir impossível prova negativa da paternidade.
Tampouco haverá inversão do ônus da prova, pois não se exige do suposto pai a elaboração de prova negativa de paternidade. Portanto, não há “presunção de veracidade” nas
afirmações da gestante como tem sido propagado, mas sim “presunção de paternidade”,
mediante comprovação suficiente para indiciar o provável pai. Assim, faltando prova dos
“indícios de paternidade”, não haverá alternativa senão o julgamento de improcedência
da demanda.
Por outro lado, não impede que o suposto pai, em contestação, prove que não pode
ser o pai, se comprovar, por exemplo, vasectomia ou que sofre de impotência generandi. E,
até mesmo a coeundi, o que impossibilitaria ter uma vida sexual ativa e completa.
Acerca do ônus probatório, Freitas (2008), em artigo publicado pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família, discorre:
Salvo a presunção de paternidade dos casos de lei, como imposto no art. 1597 e seguintes, o ônus
probatório é da mãe. Mesmo o pai não podendo exercer o pedido de Exame de DNA como matéria
de defesa, cabe a genitora apresentar os ‘indícios de paternidade’ informada na lei através de fotos,
testemunhas, cartas, e-mails, entre tantas outras provas lícitas que puder trazer aos autos, lembrando
que ao contrário do que pugnam alguns, o simples pedido da genitora, por maior necessidade que há
nesta delicada condição, não goza de presunção de veracidade ou há uma inversão do ônus probatório
ao pai, pois este teria que fazer (já que não possui o exame pericial como meio probatório) prova
negativa, o que é impossível e refutado pela jurisprudência.
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Há necessidade de aplicação da regra do art. 333, inc. I, do Código Civil de 2002 que informa que o
ônus da prova incumbe ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito. Mesmo sem o Exame de
DNA há algumas provas que podem ser produzidas pelo suposto pai, como prova de vasectomia, por
exemplo.
Por fim, mas não menos importante, cumpre lembrar que toda atividade probatória deve ser regida pelo princípio do contraditório. Significa que há a necessidade de dar
conhecimento da existência da ação e de todos os atos do processo às partes, bem como,
e, principalmente, possibilitar às partes reação aos atos que lhe sejam desfavoráveis produzindo contraprova ou interpondo recursos. Do contrário, a inconstitucionalidade salta
aos olhos.
2.5.5 Limites subjetivos da coisa julgada
O Código de Processo Civil prevê em seu art. 128 que “o juiz decidirá a lide nos
limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões, não suscitadas, a
cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte”. O que significa dizer que é o autor quem, na
petição inicial, fixa os limites da lide e, segundo Nery e Nery (2007, p. 700):
A coisa julgada se forma nos limites do pedido (CPC 128 e 460). ‘Não se pode, pois, atribuir-lhe
autoridade que vá além dos limites da lide posta e decidida, ou seja, que vá além do objeto do processo
por ela definido’ (RT 620/81).
De forma que, tendo a ação de alimentos gravídicos sido julgada procedente, este
será o limite subjetivo da coisa julgada – alimentos gravídicos –, não havendo, contudo,
coisa julgada acerca da paternidade.
Conclusão lógica que se o menor, após seu nascimento, quiser a formalização da
situação, deve ingressar com a respectiva demanda. Ao pai é dada, igualmente, a chance
de ajuizar ação negatória de paternidade.
2.5.6 Pagamento indevido – Possibilidade de repetição dos alimentos?
Indenização por parte do “pai”?
Tendo em vista que a lei dos alimentos gravídicos, como já amplamente debatido,
não exige a prova pré-constituída acerca da paternidade, apenas “indícios”, é possível que
o magistrado se convença da verossimilhança da alegação da genitora fixando os alimentos ao nascituro e, após, com o nascimento e a feitura do exame de DNA, verifica-se que o
suposto pai – que prestou alimentos até então – não os devia, uma vez que a prova pericial
apresenta resultado negativo. Diante desta situação concreta, duas são as perguntas que
logo vêm à mente: é possível a cobrança do valor pago? E o ressarcimento pelos danos
morais e materiais sofridos?
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– ALIMENTOS GRAVÍDICOS: ASPECTOS MATERIAIS E PROCESSUAIS DA LEI N° 11.804/08 –
A redação original do projeto de lei tinha, em seu art. 10, disposição prevendo o
dever de indenizar: “Art. 10. Em caso de resultado negativo do exame pericial de paternidade, o autor responderá, objetivamente, pelos danos materiais e morais causados ao réu.
Parágrafo único. A indenização será liquidada nos próprios autos.”
Mais uma vez, porém, houve veto presidencial, sob o seguinte argumento:
Trata-se de norma intimidadora, pois cria hipótese de responsabilidade objetiva pelo simples fato de
se ingressar em juízo e não obter êxito. O dispositivo pressupõe que o simples exercício do direito de
ação pode causar dano a terceiros, impondo ao autor o dever de indenizar, independentemente da
existência de culpa, medida que atenta contra o livre exercício do direito de ação.
Por óbvio, havia evidente violação ao princípio constitucional do acesso à justiça
(CF, art. 5º, XXXV) ao se permitir desarrazoada indenização por danos morais e materiais
ao réu, por ter sido erroneamente indicado como pai.
Gaburri (2009, p. 66), discorrendo acerca do pagamento indevido, defende que:
Mais uma vez, o ordenamento jurídico vê-se na situação de escolha entre dois direitos constitucionais
fundamentais, o direito de propriedade do réu e o direito do autor à vida. Nesses casos, como se
tratam de regras-princípios, e não de regras-normas, o processo de tensão entre ambas é solucionado
por meio do sistema de ponderações. Por tal sistema, em face de dois valores a serem protegidos,
não pode o Estado pura e simplesmente desconsiderar um para aplicar o outro. De outra sorte, deve
aplicar ambos concomitantemente, sendo que quanto maior for o grau de preterição de um desses
direitos, maior será o grau de aplicação do outro.
(...) Já quanto aos princípios, a preponderância de um sobre o outro não retira o episodicamente
prejudicado do ordenamento, mas, tão somente afasta sua aplicabilidade naquele caso concreto. Isso
significa que, em outro caso concreto, e mediante a análise das circunstâncias que o envolvem, a
ponderação de direitos que, por exemplo, antes tinha resultado na aplicação do direito à vida em
detrimento do direito de propriedade, agora pode resultar na predominância deste sobre aquele.
Acerca da característica da irrepetibilidade dos alimentos, já se discorreu alhures
(item 1.5.5), ocasião em que se mencionou a posição tradicional de que os alimentos uma
vez pagos são irrepetíveis, bem como o entendimento de alguns doutrinadores e Tribunais acerca da sua mitigação em caso de má-fé do seu credor, especialmente daquele que
não mais necessitava da prestação e, no entanto, continuou recebendo.
Aplicando essa característica aos alimentos gravídicos, Gaburri, no artigo antes citado, destaca:
Todavia, em que pese ter se aproveitado do pagamento indevido, o nascituro indubitavelmente não
pode ser considerado enriquecido sem justa causa ou como credor de má-fé, uma vez que não teria, até
então, adquirido capacidade de direito, senão a de fato. Como se fala aqui da má-fé como contraponto
à boa-fé em seu matiz subjetivo, somente aqueles que gozam de alguma capacidade poderiam assim
agir, nunca um recém nascido.
(...)
A única solução que entendemos plausível - aqui valendo-nos do direito das obrigações - levando-se
em conta a vedação ao enriquecimento sem causa e a presunção absoluta - iuris et te iure - de boa-fé
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do nascituro, seria, de lege ferrenda, no sentido de se condenar a gestante ou mesmo o verdadeiro pai,
em caso de reconhecida má-fé de parte daquela.
Poder-se-ia, inclusive, defender a possibilidade de aplicação analógica do art. 871
do Código Civil de 2002 que dispõe: “Quando alguém, na ausência do indivíduo obrigado
a alimentos, por ele os prestar a quem se devem, poder-lhe-á reaver do devedor a importância, ainda que este não ratifique o ato”. Assim, o suposto pai que adimpliu os alimentos
poderia reaver o montante do verdadeiro pai, este sim, devedor da ajuda alimentar ou da
gestante que demandou com má-fé.
Em outras palavras, mesmo não sendo mais responsabilizada objetivamente a gestante pela simples indicação da paternidade negativa, não pode ser afastada a responsabilidade subjetiva da mãe que maldosamente tem a intenção de prejudicar ex-companheiro,
que sabe não ser o pai, ou ao menos deveria saber que não era.
A ação dolosa ou culposa da mulher que prejudica pessoa idônea está sujeita à
responsabilidade civil subjetiva, tanto por dano moral (honra e imagem) como material
(alimentos pagos indevidamente).
2.5.7 Revisão dos alimentos gravídicos
A possibilidade de revisão dos alimentos gravídicos deve ser admitida, uma vez que
a eles se aplicam as disposições do Código Civil e da Lei de Alimentos (n. 5.478/68) no
que não for incompatível. Assim, havendo alteração na situação financeira de quem paga
os alimentos ou na necessidade de quem os recebe, é possível ajuizar ação revisional, seja
para diminuir, seja para aumentar seu valor.
Também Freitas (2009, p. 18-23) entende neste sentido:
Independentemente do reconhecimento da paternidade, por ser os critérios fundantes da fixação
do quantum da pensão de alimentos e dos alimentos gravídicos diferentes, não sendo suficientes ou
demasiados, urge a necessidade de revisá-los nos mesmos moldes do que já informa a lei civil de
2002 em seu art. 1699 ‘Se, fixados os alimentos, sobrevier mudança na situação financeira de quem os
supre, ou na de quem os recebe, poderá o interessado reclamar ao juiz, conforme as circunstâncias,
exoneração, redução ou majoração do encargo’. Esta revisão poderá ser realizada, também, durante
a gestação, embora pela morosidade processual, dificilmente se verá o fecho desta demanda antes do
nascimento do menor.
A extinção se dará automaticamente em casos de aborto e, também, após o nascimento, comprovado
que a paternidade não é daquele obrigado pelos alimentos gravídicos.
Aliás, a lei expressamente prevê a possibilidade de revisão quando, no parágrafo
único do art. 6º da Lei n. 11.804/08, prevê que, após o nascimento com vida do infante, os
alimentos gravídicos ficam convertidos em pensão alimentícia em favor do menor até que
uma das partes solicite a sua revisão.
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2.5.8 Extensão subjetiva da obrigação de pagar alimentos gravídicos
A Lei n. 11.804/08 nada refere acerca da extensão subjetiva da obrigação de pagar
os alimentos gravídicos. Em uma única passagem (parágrafo único do art. 2º) a LAG se
refere expressamente ao pai. De resto, os termos são genéricos (parte ou parte ré).
As disposições do Código Civil são aplicadas supletivamente naquilo em que não
houver regramento pela nova lei, de forma que a sucessividade de obrigados, prevista em
seu art. 1.698, deve ser aqui aplicada, respeitadas apenas as exigências processuais, dando
efetividade ao escopo da lei é a máxima proteção da mãe e da futura prole.
Todavia esta posição não é pacificada, havendo quem defenda ser impossível alimentos gravídicos avoengos como, por exemplo, Barros no artigo “Alimentos Gravídicos”,
que sustenta:
A legitimidade passiva é exclusiva do suposto pai, não se estendendo aos avôs paternos ou outros
parentes eventuais do nascituro, cuja obrigação alimentar é sustentada na comprovação do vínculo de
parentesco e não apenas em indícios. Nada obsta, porém, que o próprio nascituro, e não sua mãe, mova
ação de alimentos contra os avôs paternos e outros parentes, nos moldes do art. 1.698 do Código Civil,
mas, nesse caso, impõe-se que o vínculo de parentesco seja comprovado, de preferência por exame de
DNA, na própria ação de alimentos, mas estes alimentos não são gravídicos, pois o destinatário não é
a gestante e sim o próprio nascituro
Entendo, porém, que não restam dúvidas de que o pai é o primeiro – e preferencialmente o único – a integrar a “lista de devedores”. Mas, eventualmente, demonstrada
a incapacidade financeira do pai, outras pessoas, na forma como demonstrado no item
1.3 supra, podem ser chamadas a dar sua contribuição, custeando suplementarmente os
alimentos devidos ao nascituro, resguardando um momento primordial do ser humano
em que a eventual deficiência alimentícia pode significar o estágio limítrofe entre a vida
e a morte, julga-se pela possibilidade da vida e a extensão da obrigação alimentar aos parentes em condições de fazê-la.
CONCLUSÃO
A nova lei veio, em boa hora, suprir uma lacuna legal. Corretamente, o ordenamento jurídico passou a garantir o direito à vida antes mesmo do nascimento, garantiu-se a
dignidade do nascituro, prestigiando a liberdade e igualdade entre os pais, incentivando
a solidariedade familiar e a paternidade responsável, sem, contudo, esquecer-se da proporcionalidade entre a mãe e o suposto pai na garantia da proteção integral do nascituro.
O projeto de lei aprovado no Legislativo foi alvo de diversos vetos presidenciais,
compatibilizando a Lei n. 11.804/08 aos ditames constitucionais e se apresentando como
importante passo para a proteção integral à vida do feto em desenvolvimento.
Como não poderia deixar de ser, o diploma legislativo foi alvo de muitas críticas,
em especial ao fato de os alimentos serem fixados sem a certeza da paternidade apenas
176
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– Leci Henn Fernandes –
com base em indícios. Todavia, no choque de dois direitos constitucionais fundamentais
– direito de propriedade do suposto pai e direito do nascituro à vida –, é necessária uma
ponderação acerca dos valores jurídicos em jogo, uma vez que o feto possui necessidades
especiais que devem ser satisfeitas, devendo, assim, preponderar sobre a propriedade.
Ao Poder Judiciário caberá a missão de filtrar as causas em que mulheres aventureiras buscam alimentos em favor do nascituro de suposto pai visando unicamente àquele
com melhores condições financeiras que depois se descobre não ser o devedor. O magistrado deverá analisar de forma imparcial os “indícios de paternidade” apresentados
pela genitora, uma vez que a ela caberá o ônus da prova, não bastando simples alegação,
julgando improcedentes as demandas em que os requisitos não estarão preenchidos, por
mais necessitada que seja a gestante.
Como demonstrado, a novel legislação busca a proteção desde a concepção ao nascimento, quando os alimentos gravídicos se transformarão em pensão alimentícia. A lei
objetiva defender as mulheres dignas e sua futura prole que, para seu nascimento com
vida, tanto precisa deste suporte financeiro do pai e de outros parentes no caso de impossibilidade daquele, não se destinando àquelas mulheres de má-fé que buscam tirar
vantagem com a norma jurídica.
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Direito Penal e Direito
Processual Penal
APONTAMENTOS SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL
E CRIMINAL PELA PRÁTICA DE CYBERBULLYING NO
BRASIL
NOTES ON CIVIL LIABILITY FOR PRACTICE AND CRIME IN
BRAZIL OF CYBERBULLYING
Rafael Pellenz Scandolara1
Resumo: O cyberbullying – fenômeno comportamental derivado do bullying –
caracteriza-se pela reiteração de ofensas, ameaças ou comentários depreciativos por
meio de mensagens telefônicas, e-mails e postagens em sites e redes sociais, com o
único objetivo de humilhar a vítima e afirmar a superioridade do agressor. Na esfera
criminal, a prática dessas condutas enquadra-se em várias espécies de crimes e contravenções, além de constituir ato infracional quando realizada por menores de 18
anos. Na maioria dos casos, configuram crimes contra a honra (calúnia, difamação e
injúria). Na esfera civil, o cyberbullying pode caracterizar ato ilícito danoso, gerador
de responsabilidade civil. O ofensor, uma vez identificado, deverá ressarcir à vítima
os prejuízos causados, na medida de sua culpabilidade (responsabilidade subjetiva).
Quanto aos atos praticados pelos filhos menores, os pais têm responsabilidade objetiva pelo ressarcimento dos danos, independentemente da existência de culpa. Os
estabelecimentos de ensino também respondem objetivamente pelo cyberbullying
praticado nas suas dependências, com base no Código de Defesa do Consumidor
(quando se tratar de escolas particulares) e na Constituição Federal (no caso de instituições públicas). A responsabilidade dos provedores de internet, entretanto, ainda
é discutida na doutrina e jurisprudência pátrias, ora reconhecendo-se a obrigação
de indenizar, ora afastando-a taxativamente.
Palavras-chave: Cyberbullying. Responsabilidade civil. Responsabilidade
criminal.
1 Analista Jurídico do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Especialista em Direito Público pela Escola Superior
Verbo Jurídico. Pós-graduando em Jurisdição Federal pela ESMAFESC (Escola Superior da Magistratura Federal do
Estado de Santa Catarina).
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– APONTAMENTOS SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL E CRIMINAL PELA PRÁTICA DE CYBERBULLYING NO BRASIL –
Abstract: Cyberbullying – behavioral phenomenon derived from Bullying – is
characterized by repetition of offenses, threats or derogatory comments by means of
telephone messages, emails and postings on websites and social networks, with the
sole purpose of humiliating the victim and assert the superiority the aggressor. In the
criminal sphere, the practice of such conducts represents various kinds of crimes and
misdemeanors, beside to constitute an infraction act when performed by minors under
18 years old. In most cases, it configures crimes against honor (calumny, defamation
and injury). In the civil sphere, cyberbullying can characterize a tort, which generates
civil liability. The offender, once identified, must compensate the damage caused to
the victim, regarding to extent of his culpability (subjective liability). Concerning acts
committed by minors, their parents have strict liability for the compensation of the
damages, regardless of fault. Schools also are strictly liable by cyberbullying practiced
at its facilities, based on the Consumer Protection Code (when it regards to private
schools) and on the Federal Constitution (in the case of public institutions). Internet
service providers’ liability, however, is still debated in the homelands doctrine and
jurisprudence, sometimes recognizing the obligation to indemnify, sometimes removing
it categorically.
Keywords: Cyberbullying. Civil liability. Criminal liability.
1. Introdução
O desenvolvimento da tecnologia digital, sobretudo relativa aos meios de informação e comunicação, sofreu grande avanço nas últimas décadas. Atualmente, para integrar
o mundo globalizado, é imprescindível o uso de ferramentas como o acesso à internet ou
o telefone celular, por exemplo.
A despeito dos diversos benefícios decorrentes dessa evolução, o desenvolvimento
tecnológico serve também como instrumento para a prática de condutas antijurídicas,
tendo em vista que a facilidade de transferir dados e informações é proporcional à dificuldade em identificar os autores dos atos praticados no meio virtual.
Nesse contexto, o fenômeno bullying adquiriu nova dimensão, ultrapassando as
barreiras do mundo real. Prática cada vez mais comum entre crianças e adolescentes, o
bullying configura-se em agressões físicas ou psicológicas, praticadas reiteradamente contra determinada pessoa ou grupo, com o intuito de humilhar e comprovar a superioridade
do agressor. Tais condutas foram transportadas para o universo virtual, no que se passou
a denominar cyberbullying.
O Direito, um dos instrumentos de controle social, deve acompanhar as mudanças ocorridas na sociedade, de modo a disciplinar as novas relações sociais de maneira
satisfatória. Nesse contexto, o surgimento do cyberbullying trouxe consigo a necessidade
de discutir a atribuição de responsabilidade civil e criminal aos agressores “virtuais”. Todavia, a falta de legislação específica, associada à escassa doutrina sobre o tema, dificulta
o exame das consequências jurídicas advindas desses comportamentos.
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Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 2 • Dez/2011
– Rafael Pellenz Scandolara –
Nesse sentido, sem a pretensão de esgotar o assunto, o presente artigo destina-se
ao estudo dos efeitos do cyberbullying nas esferas civil e criminal. Por meio da análise de
apontamentos doutrinários e decisões judiciais, busca-se identificar quem pode ser responsabilizado pela prática de cyberbullying, bem como o alcance dessa responsabilidade.
2. Bullying: breves considerações
O termo cyberbullying é uma variação do vocábulo inglês bullying2, que não possui
uma tradução correspondente em português. Bullying representa a prática, por uma ou
mais pessoas, de agressões físicas ou psicológicas, propositais e reiteradas, contra determinado indivíduo ou grupo, causando-lhe(s) dor e angústia por meio da intimidação,
numa relação de desequilíbrio de poder. Trata-se de triste realidade mundial que ocorre
principalmente nas escolas, entre crianças e adolescentes.
Conforme documento publicado pelo Journal of Adolescent Health (EISENBERG,
2005, p. 88), os comportamentos que caracterizam o bullying podem ser distinguidos entre diretos e indiretos:
[...] Direct bullying includes physical and verbal attacks or aggression (kicking, pushing, namecalling) while indirect bullying involves behaviors such as ignoring and gossiping which often rely on
a third party. Indirect bullying is also referred to as relational bullying, in that it is ‘aggression directed
at damaging a social relationship’ […].
Nesse sentido, agressões físicas, ameaças, roubos, extorsões, xingamentos, imposição de apelidos e exposição ao ridículo são exemplos de condutas que caracterizam
o bullying direto. O bullying indireto, por sua vez, envolve atitudes que visam ignorar a
vítima, mantendo-a numa situação de isolamento.
As consequências do bullying vão muito além do simples mal-estar ou aborrecimento da vítima. Segundo o Promotor de Justiça Lélio Braga Calhau (2009), as agressões
físicas e psicológicas produzem os mais diversos efeitos, desde o desenvolvimento de estresse até graves psicopatologias:
O fenômeno bullying estimula a delinquência e induz a outras formas de violência explícita,
produzindo, em larga escala, cidadãos estressados, deprimidos, com baixaautoestima, capacidade de
autoaceitação e resistência à frustração, reduzida capacidade de autoafirmação e deautoexpressão,
além de propiciar o desenvolvimento de sintomatologias de estresse, de doenças psicossomáticas,
de transtornos mentais e de psicopatologias graves. Tem, como agravante, interferência drástica no
processo de aprendizagem e de socialização, que estende suas consequências para o resto da vida
podendo chegar a um desfecho trágico. Em situações de ataques mais violentos, contínuos e que
causem graves danos emocionais, a vítima pode até cometer suicídio ou praticar atos de extrema
violência.
2 D. Olweus (1999, p. 7-27), um dos primeiros pesquisadores a estudar o fenômeno bullying, definiu-o como uma específica
forma de agressão, intencional, repetida e que envolve uma disparidade de poder entre a vítima e o agressor.
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– APONTAMENTOS SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL E CRIMINAL PELA PRÁTICA DE CYBERBULLYING NO BRASIL –
De modo geral, o bullying é praticado contra pessoas que não se adéquam aos padrões estabelecidos pelo grupo social em que estão inseridas. As vítimas de bullying destacam-se por ser diferentes, segundo aspectos de aparência física, cor da pele, modo de se
vestir, comportamento, opção sexual, condição econômica, entre outros.
Os agressores, a seu turno, geralmente são os líderes da turma, detentores de maior
popularidade e que apreciam colocar apelidos e ridicularizar aqueles que são diferentes.
Quem exerce o bullying não respeita as diferenças alheias e se vale da vulnerabilidade dos
mais frágeis para praticar ações hostis.
3. O cyberbullying
Enquanto o bullying ocorre no mundo real, o cyberbullying3 é praticado por meio do
uso da tecnologia da informação e comunicação: ligações telefônicas, mensagens de texto,
e-mails, fotos e vídeos, salas de bate-papo, sites e redes sociais. A diferença reside, pois,
nos meios de intimidação utilizados pelo agressor em desfavor de um ou mais indivíduos.
Todavia, tanto o bullying quanto o cyberbullying possuem a mesma finalidade, qual seja,
proporcionar constrangimento e humilhação à vítima, rebaixando-a socialmente.
Diversos são os atos que podem ser considerados cyberbullying, destacando-se os
seguintes: inserção de ameaças ou insultos em sites ou redes sociais; acesso à conta de email de terceiros e envio de mensagens em seu nome; participação em site de pesquisa difamatório; envio de mensagens excessivamente grandes ou numerosas para alguém, a fim
de sobrecarregar o sistema; disseminação de informação confidencial via internet ou telefone celular, fingindo ser outra pessoa; postagem on-line ou transmissão de informações
confidenciais; exclusão de grupos ou comunidades on-line; envio de vírus de computador;
invasão e roubo de informações pessoais do computador de outra pessoa, entre outros.
Essas agressões “virtuais” são gravíssimas, haja vista a velocidade e o efeito multiplicador que adquirem nos meios em que são veiculadas. Como se sabe, as informações
disponibilizadas na internet e em outras mídias podem atingir grandes proporções, o que
aumenta ainda mais o sofrimento da vítima. As consequências para quem sofre cyberbullying são imprevisíveis, podendo provocar desde isolamento e depressão, até atos de
violência física, como homicídio e suicídio.
Nesse sentido, Desmond A. Butler (2007, p. 52):
Cyber bullying, unlike traditional face-toface bullying has the capacity to reach the target 24 hours
a day, 7 days a week, anywhere the target might be. Not even the home now offers a safe haven from
aggressors. Further, the Internet means that the audience of such bullying may now be anywhere in the
world. In addition, the only harm inflicted by a cyber bully will be in the nature of psychological injury,
3 Cyberbullying é uma derivação do termo inglês bullying, conforme anteriormente mencionado. No entanto, a “criação” da
expressão é atribuída a Bill Besley: “Cyberbullying involves the use of information and communication technologies to
support deliberate, repeated, and hostile behaviour by an individual or group, that is intended to harm others” (BELSEY,
B. Always on? Always aware! Disponível em <http://www.cyberbullying.ca>. Acesso em: 5 nov. 2010).
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– Rafael Pellenz Scandolara –
with no element of the physical damage often caused by face-to-face bullying. Such psychological
harm may be no less destructive. Indeed, there are instances where cyber bullying has been linked
with the suicide of the target of the behaviour.
No Brasil, os casos envolvendo bullying e cyberbullying estão se tornando cada vez
mais frequentes, merecendo a atenção da sociedade na busca por ações preventivas eficazes. No Estado de Santa Catarina, por exemplo, a Lei n. 14.651, de 12 de janeiro 2009,
instituiu o Programa de Combate ao Bullying, prevendo diversas providências interdisciplinares e a participação comunitária para a prevenção e enfrentamento do problema.
As vítimas de cyberbullying têm acionado o Poder Judiciário, seja na área civil (a
fim de buscar a reparação pelo sofrimento causado), seja na área criminal (quando se
objetiva a punição dos culpados). No entanto, o tema é tormentoso aos operadores do Direito, em razão do caráter interdisciplinar que ultrapassa a ciência jurídica, associando-se
à Filosofia, Sociologia, Psicologia e Psiquiatria.
4. Efeitos do cyberbullying na esfera criminal
Os atos de cyberbullying podem corresponder a algumas condutas típicas dispostas
no Código Penal brasileiro (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940), bem como
em leis especiais, como a Lei das Contravenções Penais (Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de
outubro de 1941) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho
de 1990).
Não há grandes dificuldades em verificar o comportamento realizado pelo “agressor virtual” e associá-lo a uma determinada conduta ilícita. Desse modo, a criação de um
novo tipo penal para qualificar o cyberbullying é medida desnecessária, uma vez que o
uso de tecnologia de informação e comunicação constitui tão somente o meio utilizado
pelo agressor, e não inviabiliza a punição de acordo com os tipos penais já existentes no
ordenamento jurídico. Para auxiliar os órgãos judiciais já existem, inclusive, Delegacias
Especializadas em Crimes Cibernéticos4, que dispõem de instrumentos técnicos para localizar e identificar os infratores.
4.1 Infrações penais
As condutas de cyberbullying podem configurar crimes contra a honra, desde que
violem atributos morais e intelectuais de uma pessoa. As hipóteses presentes no Código
Penal brasileiro são: calúnia (artigo 1385), quando o agressor atribui falsamente a alguém
4 A lista das Delegacias Especializadas em Crimes Cibernéticos presentes nos Estados pode ser visualizada no site http://
www.safernet.org.br/site/prevencao/orientacao/delegacias.
5 Código Penal. “Art. 138 - Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime: Pena - detenção, de seis
meses a dois anos, e multa”.
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– APONTAMENTOS SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL E CRIMINAL PELA PRÁTICA DE CYBERBULLYING NO BRASIL –
a prática de um ato criminoso; difamação (artigo 1396), quando se expõe a terceiros um
fato que ofende a reputação da vítima; e injúria (artigo 1407), quando se verifica ofensa à
dignidade e ao decoro da pessoa.
O enquadramento de ofensas praticadas na internet como crimes contra a honra
encontra respaldo na jurisprudência brasileira:
PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. CRIMES DE DIFAMAÇÃO,
INJÚRIA RACIAL E HUMILHAÇÃO, MENOSPREZO OU DISCRIMINAÇÃO DE PESSOA
IDOSA PRATICADOS PELA INTERNET. ARTIGO 140, §3º, DO CP. ARTIGO 96, § 1º, DA
LEI Nº 10741/03. ESTATUTO DO IDOSO. PREVISÕES EM TRATADOS OU CONVENÇÕES
INTERNACIONAIS. ITER CRIMINIS. INÍCIO DA EXECUÇÃO NO BRASIL. AUSÊNCIA DE
PROVA DE QUE A CONSUMAÇÃO DE ALGUMA DAS CONDUTAS TENHA OU DEVESSE TER
OCORRIDO NO ESTRANGEIRO. REQUISITO DA INTERNACIONALIDADE A QUE ALUDE
O ARTIGO 109, INCISO V, DA CF/88 NÃO PREENCHIDO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA
ESTADUAL. 1. Hipótese em que os denunciados - médicos residentes de hospital universitário
vinculado à instituição de ensino superior do Estado - teriam postado no site de relacionamentos
Orkut diversos comentários de cunho ofensivo e discriminatório em relação a funcionários da
Universidade. 2. Cometimento em potencial dos delitos de injúria racial (artigo 140, § 3º, do
CP) e desdém, humilhação, menosprezo ou discriminação de pessoa idosa (artigo 96, § 1º, da
Lei nº 10741/03 - Estatuto do Idoso), crimes cujo embasamento político assenta suas origens na
Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial e no
Plano Internacional para o Envelhecimento (PIAE). 3. Para fins do disposto no artigo 109, inciso
V, da CF/88, não havendo dúvidas de que o início da execução das condutas em tese perpetradas
se deu no Brasil, mister restar demonstrada que a consumação de alguma das infrações tenha ou
devesse ter ocorrido no exterior. Tal assertiva não se modifica nas hipóteses em que a Internet é
utilizada como meio para o cometimento de crimes: a prova (ou, pelo menos, indícios suficientes de
prova) da execução do delito no Brasil e da sua consumação no exterior, ou vice-versa, mantém-se
como pressuposto para que o feito seja processado e julgado pela Justiça Federal. Assim, as questões
envolvendo a competência para julgar crimes cometidos via Internet exigem exame casuístico, não se
presumindo que a simples utilização do meio virtual para a prática de delitos extrapole, por si só, os
limites do território nacional. Precedente do Supremo Tribunal Federal. 4. Nesses termos, observadas,
na espécie, as peculiaridades próprias aos momentos consumativos de cada uma das condutas, para
que a competência da Justiça Federal se firmasse mister a prova de que as palavras em tese injuriosas,
difamatórias, humilhantes e discriminatórias lançadas no site Orkut foram acessadas fora do Brasil,
seja pela ofendida (no caso da injúria), seja por qualquer outra pessoa ou por pessoas indeterminadas,
o que efetivamente não ocorreu. 5. Recurso em sentido estrito a que se nega provimento para manter
a decisão que declinou da competência para processar e julgar o feito à Justiça Estadual. (Recurso
Criminal em Sentido Estrito n. 2005.70.01.004675-6. Sétima Turma. Tribunal Regional Federal da 4ª
Região. Relator Tadaaqui Hirose. D.E. 11/06/2008, grifo nosso).
6 Código Penal. “Art. 139 - Difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação:Pena - detenção, de três meses a
um ano, e multa”.
7 Código Penal. “Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: Pena - detenção, de um a seis meses,
ou multa”.
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Ademais, o cyberbullying pode resultar na prática de outros crimes descritos no
Código Penal, tais como constrangimento ilegal (artigo 1468), ameaça (artigo 1479), violação
de correspondência (artigo 15110), divulgação de segredo (artigo 15311), dano (artigo 16312),
entre outros. A Lei de Contravenções Penais também apresenta algumas hipóteses que poderiam ser alcançadas pelo cyberbullying, como os artigos 6113 e 6514, por exemplo.
Os tipos penais acima descritos podem ou não ser cumuláveis, dependendo do
caso concreto. Logicamente, ao se constatar a prática de duas ou mais condutas típicas, a
pena deverá ser aplicada conforme as regras que disciplinam o concurso de crimes (artigos 69 a 72 e 76 do Código Penal).
Impende salientar ainda a possibilidade de aplicação de medidas de segurança ao
praticante de cyberbullying. O desvio comportamental pode ser associado a alguma doença mental ou psicológica, o que induz o magistrado a relegar a aplicação de pena privativa de liberdade, substituindo-a por ordem de internação em hospital de custódia e
tratamento psiquiátrico ou à sujeição do agressor a tratamento ambulatorial (artigo 96 do
Código Penal).
4.2 Atos infracionais
A maior incidência do cyberbullying ocorre entre menores de 18 anos, inviabilizando a aplicação das sanções penais nos moldes definidos no Código Penal. Nesses casos,
devem ser observadas as disposições do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no
que diz respeito à prática de atos infracionais15.
De acordo com o artigo 112 do ECA, verificada a prática de ato infracional por
um adolescente (entre 12 e 18 anos), a autoridade competente poderá aplicar as seguintes
medidas: advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade;
8 Código Penal. “Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido,
por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa”.
9 Código Penal. “Art. 147 - Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causarlhe mal injusto e grave: Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa”.
10 Código Penal. “Art. 151 - Devassar indevidamente o conteúdo de correspondência fechada, dirigida a outrem:Pena detenção, de um a seis meses, ou multa”.
11 Código Penal. “Art. 153 - Divulgar alguém, sem justa causa, conteúdo de documento particular ou de correspondência
confidencial, de que é destinatário ou detentor, e cuja divulgação possa produzir dano a outrem:Pena - detenção, de um
a seis meses, ou multa”.
12 Código Penal. “Art. 163 - Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia: Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa”.
13 Lei de Contravenções Penais. “Art. 61. Importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo
ao pudor:Pena – multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis”.
14 Lei de Contravenções Penais. “Art. 65. Molestar alguém ou perturbar-lhe a tranquilidade, por acinte ou por motivo
reprovável:Pena – prisão simples, de quinze dias a dois meses, ou multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis”.
15 Estatuto da Criança e do Adolescente. “Art. 103. Considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou
contravenção penal”.
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liberdade assistida; inserção em regime de semiliberdade; internação em estabelecimento
educacional; qualquer uma das previstas no artigo 101, I a VI.
Ao menor de 12 anos, o artigo 101 do ECA determina medidas mais brandas: encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade; orientação,
apoio e acompanhamento temporários; matrícula e frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; inclusão em programa comunitário ou oficial de
auxílio à família, à criança e ao adolescente; requisição de tratamento médico, psicológico
ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; inclusão em programa oficial ou
comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos; abrigo em
entidade; colocação em família substituta.
Conforme observado, a legislação criminal brasileira é perfeitamente aplicável aos
casos de cyberbullying. No entanto, a condenação e a punição dos responsáveis constituem medidas repressivas, adotadas após a ocorrência da infração, e a simples aplicação
da lei penal pode não ser eficaz para a ressocialização, em razão das peculiaridades que
cercam este comportamento.
5. Efeitos do cyberbullying na esfera civil
Além de infrações penais, o cyberbullying produz importantes consequências no
âmbito do Direito privado, tendo em vista sua caracterização como ato ilícito gerador de
responsabilidade civil. Podem ser definidos como atos intrinsecamente ilícitos, uma vez
que trazem consigo, desde o momento em que são praticados, a contrariedade ao Direito
(antijuridicidade).
O conceito de ato ilícito está disposto no artigo 186 do Código Civil brasileiro.
Corresponde à ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, capazes de violar
direito e causar dano a alguém, ainda que exclusivamente moral.
Conforme explica César Fiúza (2008, p. 716),
[...] segundo a cláusula geral do art. 186, o ato ilícito, para gerar responsabilidade, terá como elementos,
além da antijuridicidade, a culpabilidade, o dano, e o nexo de causa e efeito entre conduta culpável e
dano.
A partir da análise dos elementos do ato ilícito, conclui-se que as diversas práticas
de cyberbullying integram essa espécie de ato jurídico. São condutas antijurídicas, pois
violam normas legais e preceitos constitucionais (como a dignidade da pessoa humana,
por exemplo), praticadas com dolo ou culpa. Além disso, causam danos à vítima (danos
morais e, eventualmente, danos patrimoniais), existindo nexo de causalidade entre o ato
realizado e o prejuízo causado.
O cyberbullying, enquanto ato ilícito civil danoso, dá ensejo à devida reparação da
vítima, gerando a responsabilidade civil do autor das agressões “virtuais”. No entanto, devido às características dos atos praticados, o alcance da responsabilidade civil ainda não
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está consolidado no Direito brasileiro. A responsabilidade pelo ressarcimento da vítima
poderá variar de acordo com a teoria adotada no caso concreto (responsabilidade subjetiva ou objetiva).
5.1 Responsabilidade do efetivo autor
No Brasil, em regra, a responsabilidade civil é subjetiva, conforme resulta da interpretação dos artigos 186 e 927, caput, do Código Civil (Lei 10.406, de 10 de janeiro de
2002). A comprovação da culpa do agente é pressuposto indispensável para o surgimento
da obrigação reparatória, não bastando a mera existência de ação ou omissão, dano e
nexo causal; a responsabilidade do causador do dano somente se configura quando o agir
é doloso ou culposo.
A teoria subjetiva da responsabilidade civil é assim denominada
porque parte do elemento subjetivo, culpabilidade, para fundamentar o dever de reparar. Assim, só
seria responsável pela reparação do dano aquele cuja conduta se provasse culpável. Não havendo
culpa ou dolo, não há falar em indenização. Na ação reparatória, devem restar provados pela vítima a
autoria, a culpabilidade, o dano e o nexo causal (FIUZA, 2008, p. 726).
A teoria da responsabilidade subjetiva é aplicável ao agressor nos casos de cyberbullying. Após a identificação do autor do ato ilícito, a vítima poderá fazer uso do direito
de ação em busca da reparação pelos danos causados. Todavia, caberá à vítima o encargo
de comprovar a ocorrência de todos os elementos geradores de responsabilidade civil,
quais sejam, ação ou omissão, culpabilidade, dano e nexo de causalidade.
Nesse sentido é pacífica a jurisprudência, conforme julgados que seguem:
AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. CRIAÇÃO DE ‘COMUNIDADES’ NO
SITE ‘ORKUT’. CONTEÚDO. VIOLAÇÃO DA HONRA E DA IMAGEM. INDENIZAÇÃO POR
DANOS MORAIS DEVIDA. 1. Contendo os autos elementos probatórios suficientes para a análise
do pedido, não há de ser reaberta a instrução. Ademais, sendo o juiz o destinatário da prova, a ele
incumbe a formação de seu convencimento, cabendo-lhe a condução do feito nos termos dos artigos
130 e 131 do CPC. Preliminar de cerceamento de defesa pelo indeferimento das provas postuladas
rejeitada. 2. Restando comprovada autoria e os prejuízos advindos da criação de ‘comunidades’ no
site de relacionamento ‘Orkut’, com o objetivo de denegrir a honra e a imagem do autor, é devida
indenização por danos morais. Sentença mantida também com relação ao quantum indenizatório.
APELO E RECURSO ADESIVO DESPROVIDOS. (Apelação Cível nº 70021436977. Nona Câmara
Cível. Tribunal de Justiça do RS. Relator: Marilene Bonzanini Bernardi. Julgado em 09/04/2008).
APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. CRIAÇÃO
DE COMUNIDADE EM SITE DE RELACIONAMENTOS (ORKUT). 1. DANO MORAL.
CONFIGURAÇÃO. Evidenciada a ilicitude do ato praticado pelos réus, que procederam à veiculação
de conteúdo pejorativo à imagem e honra da autora, através do site de relacionamento orkut; causandolhe lesão à honra e reputação, caracterizado está o dano moral puro, exsurgindo, daí, o dever de
indenizar. Condenação mantida. 2. QUANTUM INDENIZATÓRIO. MANUTENÇÃO. Na fixação da
reparação por dano extrapatrimonial, incumbe ao julgador, atentando, sobretudo, para as condições do
ofensor, do ofendido e do bem jurídico lesado, e aos princípios da proporcionalidade e razoabilidade,
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arbitrar quantum que se preste à suficiente recomposição dos prejuízos, sem importar, contudo,
enriquecimento sem causa da vítima. A análise de tais critérios, aliada às demais particularidades
do caso concreto, conduz à manutenção do montante indenizatório fixado em R$ 8.000,00 (oito mil
reais), que deverá ser corrigido monetariamente e crescido de juros de mora, conforme determinado
no ato sentencial. APELAÇÃO IMPROVIDA. (Apelação Cível n. 70026679068. Décima Câmara
Cível. Tribunal de Justiça do RS. Relator: Paulo Roberto Lessa Franz. Julgado em 22/01/2009).
DANOS MORAIS - Indenização - Criação de comunidade por ex-aluno contendo ofensas e injúria a
colégio em sitio de relacionamentos
‘Orkut’ - Comprovada conduta ilícita - Reconvenção improcedente - Sanção regularmente aplicada Sentença mantida - RECURSO NÃO PROVIDO. (Apelação Cível n. 578.863-4/3-00. Sétima Câmara
de Direito Privado. Tribunal de Justiça de SP. Relator: Elcio Trujillo. Julgado em 18/02/2009).
Se o causador do dano for menor de 18 anos, a responsabilidade pela reparação dos
danos causados será dos pais, por força do que dispõe o artigo 932, inciso I, do Código
Civil. Trata-se de uma das hipóteses de responsabilidade objetiva previstas no Código
Civil brasileiro.
Indenizatória. Danos morais. Comunidade virtual. Divulgação, por menores, de mensagens
depreciativas em relação a professor. Identificação. Linguagem chula e de baixo calão. Ameaças. Ilícito
configurado. Ato infracional apurado. Cumprimento de medida sócioeducativa. Responsabilidade
dos pais. Negligência ao dever legal de vigilância. Os danos morais causados por divulgação, em
comunidade virtual (orkut) de mensagens depreciativas, denegrindo a imagem de professor
(identificado por nome), mediante linguagem chula e de baixo calão, e com ameaças de depredação a seu
patrimônio, devem ser ressarcidos. Incumbe aos pais, por dever legal de vigilância, a responsabilidade
pelos ilícitos cometidos por filhos incapazes sob sua guarda. (Apelação Cível n. 100.007.2006.0113492. Segunda Câmara Cível. Tribunal de Justiça de RO. Relator: Edenir Sebastião Albuquerque da Rosa.
Julgado em 20/08/2008).
Em que pese a indiscutível responsabilidade civil do agressor, a reparação dos danos causados pelo seu efetivo autor encontra obstáculos. O maior deles é a dificuldade
da precisa identificação do agente causador do dano. Nos casos envolvendo a internet,
recorre-se à análise do IP (Internet protocol) da máquina usada para o acesso, o que nem
sempre atinge o resultado almejado.
Em razão disso, as vítimas de cyberbullying optam por ajuizar pedidos indenizatórios contra os provedores de internet. O poderio econômico dessas empresas garante
a existência de recursos para o ressarcimento do dano causado, bem como aumenta a
expectativa da vítima quanto ao valor da indenização a ser arbitrado. Nesses casos, o fundamento do pedido indenizatório apoia-se na teoria objetiva da responsabilidade civil,
conforme se verá adiante.
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5.2 Responsabilidade dos estabelecimentos de ensino
A responsabilidade dos estabelecimentos privados de ensino pela prática de cyberbullying é objetiva, conforme prevê o artigo 1.416 do Código de Defesa do Consumidor.
Como prestadora de serviços, a escola é responsável pela incolumidade física dos alunos
que estiverem nas suas dependências, assim como pelos danos causados a terceiros nessa
mesma condição.
Desse modo, uma vez provado que o cyberbullying ocorreu durante o horário escolar, ainda que sem qualquer culpa por parte do estabelecimento de ensino, este será
civilmente responsável pelo ressarcimento dos danos gerados, fundado no critério de presunção juris tantum de culpa.
Sobre a aplicação do Diploma Consumerista às instituições de ensino, pertinente a
lição de Marga Inge Barth Tessler (2004, p. 21):
No caso da instituição privada de ensino, plenamente aplicável o CDC, pois prestação de serviços,
mas com notas de distinção. Aplica-se a responsabilidade objetiva (mitigada, em consideração às
particularidades). O fundamento é a teoria do risco-garantia e a teoria do sacrifício, juntamente com
o princípio da boa-fé objetiva. Observa-se ainda a pós-eficácia das relações contratuais ou a superação
da distinção entre responsabilidade contratual e aquiliana (trata-se de um tertius genus).
A jurisprudência acompanha esse entendimento, conforme pode ser observado no
julgado abaixo:
RESPONSABILIDADE CIVIL DE ESTABELECIMENTO DE ENSINO. Acidente ocorrido durante
atividade escolar. Aluna atingida em uma das vistas por bambolê que se partiu. Fato do serviço.
Responsabilidade objetiva do fornecedor não excluída pelo fortuito interno. O estabelecimento
de ensino, como fornecedor de serviços que é, responde independentemente de culpa, vale dizer,
objetivamente, pela reparação dos danos causados aos seus alunos por defeitos relativos à prestação dos
serviços. O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar,
quer quanto ao modo de seu fornecimento, quer quanto ao resultado e os riscos que razoavelmente
dele se esperam. O fortuito interno não desonera o dever de indenizar do fornecedor de serviços,
pelo que irrelevante se o defeito é previsível ou não. O dano estético pode ser cumulado com o dano
moral, conforme precedentes no STJ e deste Tribunal. Fixação do dano moral, observando o limite
do razoável e a justa medida da compensação pela dor e sofrimentos, alem da prevenção, esta de
caráter pedagógico. Na condenação em danos materiais e morais o arbitramento já contempla as
consequências do evento danoso, inclusive a reparação de sequelas em surgindo avanço na área da
medicina. O deposito em caderneta de poupança da indenização de vida a título de dano moral a
menor impúbere, ainda é medida aceita pelo padrão de procedimento judicial, embora possa não ser
a perfeita. Os juros são simples e correm do evento (Sumula 54 do STJ) e não compostos, estes tem
caráter de punição e só devem ser aplicados a criminosos reconhecidos em sentença judicial (Sumula
186 do STJ). Desprovimento de ambos os recursos. (Apelação Cível n. 2003.001.21834. Segunda
Câmara Cível. Tribunal de Justiça do RJ. Relator: Sergio Cavalieri Filho. Julgado em 15/10/2003).
16 Código de Defesa do Consumidor. “Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de
culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como
por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos”.
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As instituições públicas de ensino também respondem objetivamente pelos danos
ocorridos durante as atividades escolares. Todavia, o fundamento jurídico não é o mesmo
associado aos estabelecimentos particulares. A responsabilidade civil objetiva do Estado
é imposta pelo artigo 37, § 6º17, da Constituição Federal, de acordo com a teoria do risco administrativo. Afasta-se, portanto, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor
(TESSLER, 2004, p. 21).
Nesse sentido é pacífica a jurisprudência pátria:
RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL E MATERIAL.
ESCOLA ESTADUAL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. OMISSÃO ESPECÍFICA. AGRESSÃO
FÍSICA A ALUNA POR OUTRA ALUNA E SEUS PAIS. DEVER INDENIZATÓRIO. DANO
MORAL CONFIGURADO. QUANTUM MINORADO. 1. Conforme vem entendendo esta Corte
e o Supremo Tribunal Federal, quando há uma omissão específica do Estado, ou seja, quando a
falta de agir do ente público é causa direta e imediata de um dano, há responsabilidade objetiva,
baseada na Teoria do Risco Administrativo e no art. 37, § 6º da Constituição Federal. 2. O
contexto probatório conforta a tese da parte autora, demonstrando ter ocorrido, de fato, a agressão
relatada na inicial, dentro das dependências da escola, mais especificamente, na sala da coordenação.
Configurado o dano moral, bem como o nexo de causalidade. 3. Verificada a falha do Poder Público
consubstanciada na ausência de medidas pelo estabelecimento escolar em proteger e resguardar
a integridade física da parte autora que, após desavença com uma colega, foi posteriormente
agredida por essa e seus pais com socos, pontapés e a utilização de um relho. Trata-se de hipótese
fática caracterizada como omissão específica, diante do dever de cuidado assumido pelo Estado
em manter incólume a integridade física dos administrados confiados à sua guarda, respondendo
objetivamente pelos danos advindos de sua omissão. 4. Evidente a ocorrência dos danos morais, que
se configuram in re ipsa, dispensada a comprovação da extensão dos danos, sendo estes evidenciados
pelas circunstâncias do fato 5. O quantum da indenização por danos morais é fixado pelo juiz,
mediante a soma das circunstâncias que possa extrair dos autos. Valor da indenização minorado,
em observância a extensão dos danos e a condição econômica das partes. 6. Honorários advocatícios
mantidos no percentual determinado pelo magistrado a quo, uma vez que em concerto com os vetores
do art. 20, § 3°, do CPC. APELOS PARCIALMENTE PROVIDOS. UNÂNIME. (Apelação Cível n.
70039359500. Nona Câmara Cível. Tribunal de Justiça do RS. Relator: Iris Helena Medeiros Nogueira.
Julgado em 24/11/2010, grifo nosso).
Ante o exposto, percebe-se que, nos casos de cyberbullying praticado durante as
atividades escolares, a responsabilidade civil dos estabelecimentos de ensino é objetiva.
Contudo, altera-se o fundamento jurídico conforme se trate de instituições públicas ou
privadas: em relação àquelas, a responsabilidade objetiva decorre da teoria do risco administrativo, prevista no Texto Constitucional; em relação a estas, encontra amparo no
Código de Defesa do Consumidor.
17 Constituição Federal. “Art. 37 […] § 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de
serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito
de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.
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Por fim, cabe mencionar que a responsabilidade civil do professor dependerá da
aferição de culpa, consoante o artigo 14, § 4º18, do Código de Defesa do Consumidor.
Trata-se de responsabilidade subjetiva, a ser comprovada em ação regressiva promovida
pela instituição particular de ensino ou pelo Estado, conforme o caso.
5.3 Responsabilidade dos provedores de internet
Inicialmente, importante distinguir as quatro espécies de provedores de internet,
quais sejam, provedor de acesso, provedor de informação, provedor de conteúdo e provedor de serviços. Para tanto, recorre-se à lição de Demétrius Almeida Leão (2003, p. 134):
O provedor de acesso é atividade meio, que permite ao usuário final participar da rede, sendo
caracterizado como um contrato de serviço, onde o fornecedor provedor oferece meios do usuário
final entrar no mundo virtual, e sendo o usuário único responsável pelo divulgado; mostra o provedor
de informação como o que coleta, mantém e organiza informação on-line para acesso de assinantes.
O provedor de conteúdo como o que armazena dados para acesso público, com implicações fortes
no direito autoral (com responsabilidade pela inclusão e pelo conteúdo da informação) e o provedor
de serviços, que engloba as funções do provedor de acesso e de informação, possibilitando a difusão
e o repasse das informações, sendo responsável pela prevenção e diminuição dos danos ao usuário,
tendo responsabilidade técnica e propiciando a utilização do princípio da inversão do ônus da prova
do CDC.
Os provedores de acesso, em razão das características da atividade que oferecem,
não podem ser responsabilizados pelo cyberbullying. Uma vez que somente proporcionam
a ligação do usuário ao universo virtual, não possuem obrigação de fiscalização sobre o
conteúdo transmitido pelos usuários. Nesse caso, a responsabilidade pelos danos que o
teor de um determinado e-mail vier a causar não poderá ser atribuído aos provedores de
acesso. Já quanto às demais espécies de provedores, poderá haver obrigação de reparar os
danos causados, uma vez que, mais do que o simples acesso à internet, permitem o armazenamento e a divulgação de informações para um número irrestrito de usuários.
O cyberbullying, conforme já mencionado, é um ato ilícito causador de danos, obrigando a reparação da vítima pelo autor da ofensa. No entanto, os serviços desempenhados pelas várias espécies de provedores de internet contribuem para a proliferação das
agressões “virtuais”, podendo ensejar a responsabilidade solidária pela reparação dos danos causados, por força do artigo 942 do Código Civil19.
A responsabilidade solidária dos provedores não é unânime na doutrina e jurisprudência brasileiras. Para alguns, trata-se de responsabilidade objetiva oriunda do risco
da atividade; para outros, há responsabilidade objetiva, porém com amparo no Código de
18 Código de Defesa de Consumidor. “Art. 14 [...] § 4°. A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada
mediante a verificação de culpa”.
19 Código Civil. “Art. 942. Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação
do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação.
Parágrafo único. São solidariamente responsáveis com os autores os coautores e as pessoas designadas no art. 932”.
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Defesa do Consumidor; e, por fim, há quem entenda não existir obrigação de reparar o
dano, tendo em vista a ausência de nexo de causalidade entre a conduta dos provedores e
o prejuízo causado.
5.3.1 Responsabilidade objetiva em razão do exercício de atividade de
risco (artigo 927, parágrafo único, do Código Civil)
O parágrafo único do artigo 927 do Código Civil, inspirado nos princípios da eticidade e socialidade, consagrou a teoria da responsabilidade objetiva no ordenamento jurídico brasileiro. O dispositivo legal refere que, nos casos especificados em lei, ou quando
a atividade desenvolvida pelo causador do dano implicar riscos aos direitos de outrem,
haverá obrigação de reparar o dano independentemente da comprovação de culpa. Importante deixar claro, no entanto, que a responsabilidade civil objetiva é exceção à regra
geral esculpida no caput do artigo 927 do Código Civil (existência de culpa como um dos
pressupostos de responsabilidade civil).
À luz do dispositivo legal acima exposto, verificam-se duas situações em que a responsabilidade civil poderá ser reconhecida independentemente de culpa. Primeiramente,
nos casos especificados em lei, ou seja, quando a lei expressamente definir que a obrigação
de reparar o dano independe da constatação de culpa do agente. Em segundo lugar, quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza,
risco para os direitos de outrem. A esta última se associa a atividade desempenhada pelos
provedores de internet, nos casos envolvendo cyberbullying.
Segundo a teoria da responsabilidade civil objetiva, a reparação do dano está condicionada à existência de prejuízo e de nexo causal entre o prejuízo e a conduta lesiva praticada. Trata-se, pois, da teoria do risco criado. Não se analisa o elemento subjetivo, qual
seja, a culpabilidade do causador do dano, mas sim a potencialidade lesiva da atividade
normalmente exercida (MONTEIRO, 2003, p. 456).
Para parte da doutrina e jurisprudência, ao disponibilizar o espaço virtual, os provedores de internet exercem atividade de risco, possibilitando a qualquer pessoa o envio
de fotos, vídeos e mensagens, enquadrando-se no disposto no parágrafo único do artigo
927 do Código Civil. Dessa forma, praticado o cyberbullying, os provedores seriam solidariamente responsáveis pela reparação do dano, independentemente da aferição de culpa.
Nessa linha de raciocínio, colacionam-se os seguintes julgados:
APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO INDENIZATÓRIA - DANO MORAL - OFENSAS ATRAVÉS DE SITE
DE RELACIONAMENTO - ORKUT - PRELIMINAR - ILEGITIMIDADE PASSIVA - REJEIÇÃO
- RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA - APLICAÇÃO OBRIGATÓRIA - DEVER DE
INDENIZAR - RECONHECIMENTO. QUANTUM INDENIZATÓRIO - FIXAÇÃO - PRUDÊNCIA
E MODERAÇÃO - OBSERVÂNCIA NECESSÁRIA - MAJORAÇÃO INDEVIDA.
Restando demonstrado nos autos que a apelante (Google Brasil) atua como representante da Google
Inc., no Brasil, fazendo parte do conglomerado empresarial responsável pelo site de relacionamento
denominado ‘Orkut’, compete-lhe diligenciar no sentido de evitar que mensagens anônimas e ofensivas
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sejam disponibilizadas ao acesso público, pois, abstendo-se de fazê-lo, responderá por eventuais danos
à honra e dignidade dos usuários decorrentes da má utilização dos serviços disponibilizados.
Desinfluente, no caso, a alegação de que o perfil difamatório teria sido criado por terceiro, pois a
empresa ré, efetivamente, não conseguiu identificá-lo, informando, apenas, um endereço de e-mail,
também supostamente falso, restando inafastável a sua responsabilidade nos fatos narrados nestes
autos e o reconhecimento de sua legitimidade para figurar no polo passivo da lide.
Aplica-se à espécie o art. 927, parágrafo único, do Código Civil, que adota a teoria da
responsabilidade civil objetiva, estabelecendo que haverá obrigação de reparar o dano,
independentemente de culpa, quando a atividade normalmente desenvolvida implicar, por sua
natureza, risco para os direitos de outrem.
No arbitramento do valor da indenização por dano moral devem ser levados em consideração a
reprovabilidade da conduta ilícita e a gravidade do dano impingido, de acordo com os princípios
da razoabilidade e proporcionalidade, cuidando-se para que ele não propicie o enriquecimento
imotivado do recebedor, bem como não seja irrisório a ponto de se afastar do caráter pedagógico
inerente à medida. (Apelação Cível n. 1.0024.08.041302-4/001. Décima Sétima Câmara Cível. Tribunal
de Justiça de MG. Relator: Luciano Pinto. Julgado em 18/12/2008, grifo nosso).
APELAÇÃO CÍVEL - SITE DE RELACIONAMENTOS NA INTERNET (‘ORKUT’) - CRIAÇÃO
DE ‘PERFIL’ DE CONTEÚDO PEJORATIVO E DIFAMATÓRIO - DANOS MORAIS
CONFIGURADOS - NÃO IDENTIFICAÇÃO DO USUÁRIO - RESPONSABIILDADE DAS
EMPRESAS PROPRIETÁRIAS DO SÍTIO ELETRÔNICO - QUANTUM INDENIZATÓRIO RAZOABILIDADE - TERMO INICIAL DA ATUALIZAÇÃO MONETÁRIA - DATA DA DECISÃO
QUE FIXOU O MONTANTE INDENIZATÓRIO - JUROS DE MORA - INCIDÊNCIA A PARTIR
DO EVENTO DANOSO (SÚMULA 54, DO STJ) - HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS - VALOR
ADEQUADO - DESNECESSIDADE DE MAJORAÇÃO.
Não se dispondo as proprietárias do site de relacionamentos a desenvolver uma ferramenta de
controle verdadeiramente pronto e eficaz contra a prática de abusos, tampouco procedendo à
identificação precisa do usuário que posta mensagem de conteúdo claro e patentemente ofensivo
à honra e imagem de outrem, entendo que elas assumem, integralmente, o ônus pela máutilização dos serviços que disponibilizam. Portanto, considero que as requeridas são, efetiva
e solidariamente, responsáveis pelos prejuízos de ordem moral causados ao requerente, em
decorrência da infausta postagem de perfil difamatório por usuário do ‘Orkut’, cuja precisa e
necessária identificação não se dignaram a fazer.
A indenização por danos morais deve alcançar valor tal, que sirva de exemplo para as rés, sendo
ineficaz, para tal fim, o arbitramento de quantia excessivamente baixa ou simbólica, mas, por outro
lado, nunca deve ser fonte de enriquecimento para o autor, servindo-lhe apenas como compensação
pela dor sofrida.
A correção monetária da indenização por danos morais deverá se dar a partir da publicação da
sentença em que foi arbitrada, posto que, até então, presume-se atual.
A responsabilidade civil das requeridas tem natureza extracontratual, de forma que, nos termos da
Súmula n. 54, do STJ, os juros moratórios incidirão, sobre o valor da indenização por danos morais,
desde o evento danoso.
Malgrado o zelo e a diligência adotados pelo patrono do requerente e a média complexidade da causa,
não pode ser desconsiderado o curto período de duração do processo, já que, entre a distribuição
(14.09.2007, f. 27-v) e a prolação da sentença de primeiro grau (24.04.2008, f. 152), transcorreram
pouco mais de sete meses. Assim, tenho que a verba honorária fixada pelo douto julgador primevo,
em 15% sobre o valor da condenação, está em consonância com os critérios contidos no §3º, do artigo
20, do CPC, mostrando-se suficiente, justo e razoável para remunerar condignamente o trabalho do
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ilustre causídico. (Apelação Cível n. 1.0512.07.045727-4/001. Décima Sétima Câmara Cível. Tribunal
de Justiça de MG. Relator: Eduardo Mariné da Cunha. Julgado em 02/04/2009, grifo nosso).
O Código Civil não apresenta o conceito de “atividade de risco”, cabendo ao julgador proceder ao exame das circunstâncias que envolvem o caso submetido a julgamento,
a fim de constatar se o agente causador avaliou o risco e agiu cautelosamente para evitar
o dano. Em relação aos provedores de internet, tem-se entendido que a disponibilização
de ambiente virtual sem medidas básicas de controle constitui atividade de risco e, dessa
forma, a responsabilidade civil é objetiva.
Portanto, segundo esse primeiro entendimento, a vítima de cyberbullying pode
pleitear a reparação dos danos causados diretamente contra o provedor de internet, pois
este responde solidariamente com o efetivo autor das ofensas em razão do desempenho
de atividade de risco.
5.3.2 Responsabilidade objetiva em razão de falha na prestação de
serviços (artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor)
A responsabilização dos provedores de internet pelos danos causados à vítima de
cyberbullying também encontra amparo no Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.068,
de 11 de setembro de 1990). Isso porque, de acordo com o entendimento de alguns juristas, a relação existente entre o usuário e o provedor de internet configura uma relação
de consumo, em que o segundo presta serviços ao primeiro. Assim, tendo em vista que
os danos à vítima de cyberbullying decorrem dos serviços oferecidos pelos provedores, há
responsabilidade objetiva pela reparação, conforme artigo 14 do Diploma Consumerista.
O dispositivo legal objetiva proteger o consumidor contra os abusos dos prestadores de serviços. Sendo assim, quem presta um serviço responde independentemente de
culpa por qualquer dano causado ao consumidor, pois assume o risco de dano em razão da
atividade que realiza. A responsabilidade do prestador de serviços é, portanto, objetiva.
Sobre o tema ensina Nelson Nery Junior (2002, p. 725):
A norma estabelece a responsabilidade objetiva como sendo o sistema geral da responsabilidade
do CDC. Assim, toda indenização derivada de relação de consumo, sujeita-se ao regime da
responsabilidade objetiva, salvo quando o Código expressamente disponha em contrário. Há
responsabilidade objetiva do fornecedor pelos danos causados ao consumidor, independentemente
da investigação de culpa.
Nota-se que a intenção subjetiva do prestador de serviços não é considerada nas
questões que envolvem relações de consumo, pois a análise de culpa não constitui um dos
critérios de responsabilização civil. Na hipótese, para que se origine a obrigação de reparar os danos, basta a existência de prejuízo decorrente da atividade desempenhada.
A aplicação do Diploma Consumerista ao cyberbullying depende, primeiramente,
da análise da atividade prestada pelos provedores de internet, a fim de integrá-la ao con198
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– Rafael Pellenz Scandolara –
ceito de serviço trazido pelo artigo 3°, parágrafo 2°, do Código de Defesa do Consumidor:
“serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração,
inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes
das relações de caráter trabalhista”.
Analisando-se o texto legal, verifica-se que a caracterização da relação de consumo tem como pressuposto a remuneração do prestador de serviços. Ocorre que, em sua
grande parte, os provedores de conteúdo e de serviços não auferem renda diretamente dos
usuários de internet, mas sim por meio de contratos publicitários.
Todavia, a remuneração indireta é suficiente para que a atividade exercida pelos
provedores seja caracterizada como um serviço, sujeitando tais empresas à legislação consumerista. Conforme Cláudia Lima Marques (2003, p. 94),
A expressão utilizada pelo art. 3º do CDC para incluir todos os serviços de consumo é ‘mediante
remuneração’. [...] Parece-me que a opção pela expressão ‘remunerado’ significa uma importante
abertura para incluir os serviços de consumo remunerados indiretamente, isto é, quando não é o
consumidor individual que paga, mas a coletividade (facilidade diluída no preço de todos) ou
quando ele paga indiretamente o ‘benefício gratuito’ que está recebendo. A expressão ‘remuneração’
permite incluir todos aqueles contratos em que for possível identificar, no sinalagma escondido
(contraprestação escondida), uma remuneração indireta do serviço de consumo. [...] Remuneração
e gratuidade: Como a oferta e o marketing de atividades de consumo ‘gratuitas’ estão a aumentar
no mercado de consumo brasileiro [...], importante frisar que o art. 3º, § 2º, do CDC refere-se à
remuneração dos serviços e não a sua gratuidade. ‘Remuneração’ (direta ou indireta) significa um
ganho direto ou indireto para o fornecedor. ‘Gratuidade’ significa que o consumidor não ‘paga’, logo,
não sofre um minus em seu patrimônio [...].
De acordo com o entendimento acima, a disponibilização de espaço na internet em
caráter habitual e mediante remuneração indireta caracteriza a atividade dos provedores
como um serviço integrante de uma relação de consumo. Dessa forma, constatado o fato
do serviço, os provedores seriam responsáveis pelos prejuízos dele decorrentes, independentemente de culpa.
A aplicação do Código de Defesa do Consumidor nos casos de cyberbullying é aceita na jurisprudência brasileira:
AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. PUBLICAÇÃO DE MATERIAL OFENSIVO NA
INTERNET
SEM
IDENTIFICAÇÃO
DO
USUÁRIO.
RESPONSABILIDADE
DA
PROVEDORA
DE
CONTEÚDO.
DANO
MORAL.
ARBITRAMENTO.
À medida que a Provedora de Conteúdo disponibiliza na Internet um serviço sem dispositivos de
segurança e controle mínimos e, ainda, permite a publicação de material de conteúdo livre, sem
sequer identificar o usuário, deve responsabilizar-se pelo risco oriundo do seu empreendimento. Em
casos tais, a incidência da responsabilidade objetiva decorre da natureza da atividade, bem como
do disposto no art. 3º, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor. Não tendo o réu apresentado
prova suficiente da excludente de sua responsabilidade, exsurge o dever de indenizar pelos danos
morais ocasionados. O arbitramento do dano moral deve ser realizado com moderação, em atenção
à realidade da vida e às peculiaridades de cada caso, proporcionalmente ao grau de culpa e ao porte
econômico das partes. Ademais, não se pode olvidar, consoante parcela da jurisprudência pátria,
acolhedora da tese punitiva acerca da responsabilidade civil, da necessidade de desestimular o ofensor
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a repetir o ato. (Apelação Cível 1.0439.08.085208-0/001. Décima Terceira Câmara Cível. Tribunal de
Justiça de MG. Relator: Cláudia Maia. Julgado em 12/02/2009, grifo nosso).
APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA
DO CONSUMIDOR. ORKUT. PERFIL FALSO. IMPUTAÇÕES PEJORATIVAS. NEGLIGÊNCIA
DO PROVEDOR DE SERVIÇOS DA INTERNET. DANOS MORAIS. APLICAÇÃO DO CDC.
Para a caracterização da relação de consumo, o serviço deve ser prestado pelo fornecedor mediante
remuneração. No entanto, o conceito de ‘remuneração’ previsto na referida norma consumerista
abrange tanto a remuneração direta quanto a indireta. Precedentes do STJ. Dessarte, configurada
a relação consumerista no caso em tela. O autor logrou comprovar os fatos constitutivos do seu
direito, nos termos do inciso I, do art. 333, do CPC, enquanto a ré não trouxe nenhum elemento
capaz de afastar sua responsabilidade pelo ocorrido. RESPONSABILIDADE CIVIL. Não se olvida
que a empresa requerida é um provedor de serviços da Internet, funcionando como mera hospedeira
das informações postadas pelos usuários. Assim, dela não é razoavelmente exigível que promova
uma censura preventiva do conteúdo das páginas de Internet criadas pelos próprios internautas,
notadamente porque seria difícil definir os critérios para determinar quando uma determinada
publicação possui cunho potencialmente ofensivo. O monitoramento prévio de informações,
portanto, é inexigível. Em que pese isso, o provedor tem o dever de fazer cessar a ofensa, tão logo
seja provocado a tanto, em razão de abusos concretamente demonstrados. No caso dos autos, mesmo
tendo sido interpelada da ocorrência da fraude, a ré quedou-se inerte por mais de um mês, o que
permitiu que fossem perpetradas, a cada dia, novas ofensas à honra e à imagem do autor, agravando
ainda mais a lesão à sua personalidade. Configurada, portanto, a falha na prestação do serviço, a
ensejar a responsabilidade objetiva da demandada. Ainda que não fosse aplicável o CDC, haveria dever
de indenizar, com fundamento no art. 927, do CC, porquanto, também configurada a negligência
(culpa) da ré. DANOS MORAIS. Dano moral configurado, ante a violação do direito fundamental
à honra e à imagem (art. 5º, X, da CF), possibilitada a perpetuação dessa ofensa e o agravamento da
lesão, por ato omissivo da ré. A prova desta modalidade de dano torna-se difícil e, em certos casos,
até impossível, razão pela qual esta Câmara orienta-se no sentido de considerar o dano moral in re
ipsa, sendo dispensada a sua demonstração em Juízo. QUANTUM INDENIZATÓRIO. O quantum
indenizatório deve representar para a vítima uma satisfação capaz de amenizar de alguma forma
o sofrimento impingido. A eficácia da contrapartida pecuniária está na aptidão para proporcionar
tal satisfação em justa medida, de modo que não signifique um enriquecimento sem causa para
a vítima e produza impacto bastante no causador do mal a fim de dissuadi-lo de novo atentado.
ÔNUS SUCUMBENCIAIS invertidos. Honorários advocatícios majorados. PROVERAM O APELO.
UNÂNIME. (Apelação Cível n. 70028159622. Nona Câmara Cível. Tribunal de Justiça do RS. Relator:
Odone Sanguiné. Julgado em 15/04/2009).
Ação de indenização por danos morais cumulada com pedido de condenação em obrigação de fazer,
havendo pleito de antecipação da tutela, proposta pela 1ª. apelante em face da 2ª. apelante.
Autora participante do ‘Orkut’, alegando que terceiro teria criado um novo cadastro com suas
informações pessoais, copiando o seu ‘perfil’, fazendo-se passar pela própria autora naquela
comunidade virtual, porém, difamando-a diante dos usuários, inclusive, amigos, o que, portanto,
teria causado grave dano à sua imagem e à sua honra.
Informa ainda que notificou a ré para que providenciasse a exclusão daquele cadastro falso, mas nada
foi feito.
Sentença que, considerando que houve falha da ré por não ter diligenciado a retirada do ‘perfil’ falso
da rede quando notificada pela autora, julgou parcialmente procedente o pedido para condenar a
ré a pagar à autora a quantia de R$ 5.000,00, a título de reparação por danos morais, devidamente
acrescida de correção monetária desde a data da sentença e juros leais desde a citação.
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– Rafael Pellenz Scandolara –
Apelo de ambas as partes.
Recurso da ré, contudo, que não merece prosperar, provendo-se parcialmente o da autora.
A relação entre as partes é de consumo, sendo a segunda apelante prestadora de serviço à primeira
apelante, sendo certo que, por este, é remunerada e muito bem remunerada através da publicidade
de terceiros.
Havendo relação de consumo, rege-lhe a responsabilidade o art. 14 CDC.
Se discutida sua responsabilidade pela alteração do perfil, certo é que foi notificada para a exclusão.
E, ante sua inércia, surge a responsabilidade.
Ato ilícito caracterizado.
Dano moral configurado.
Valor indenizatório que não comporta redução e nem majoração, considerando-se o tempo decorrido
entre o evento e a comprovação da retirada do perfil.
Imputação, contudo, à ré dos ônus sucumbenciais.
Inteligência da Súmula 326 STJ.
Primeira apelação a que se dá parcial provimento, desprovendo-se a segunda. (Apelação Cível n.
2008.001.04540. Quarta Câmara Cível. Tribunal de Justiça do RJ. Relator: Horacio dos Santos Ribeiro
Neto. Julgado em 25/03/2008).
Percebe-se, portanto, que a caracterização da relação de consumo entre a vítima
de cyberbullying e o provedor de internet pode ensejar a responsabilidade civil objetiva
deste último. Desse modo, assim como se verificou no item precedente, a vítima poderá
solicitar a reparação dos danos diretamente ao provedor de internet, mas com diverso
fundamento: não mais o exercício de atividade de risco (nos termos do artigo 927, parágrafo único, do Código Civil), mas a ocorrência de um fato do serviço (conforme dispõe
o artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor).
Em termos práticos, a definição da responsabilidade dos provedores a partir de
uma relação de consumo ou do exercício de uma atividade de risco não interferirá no resultado final, pois em ambos os casos a responsabilidade será objetiva. Assim, ainda que a
vítima de cyberbullying não seja considerada consumidor, ser-lhe-ia assegurado o direito
de demonstrar apenas o prejuízo e o nexo causal, independentemente da comprovação de
culpa, para obter a reparação dos danos causados.
5.3.3 Inexistência de responsabilidade objetiva dos provedores
Por fim, há quem afirme a inexistência de responsabilidade objetiva dos provedores
de internet nos casos de cyberbullying. Para estes, a disponibilização do acesso à internet
constitui somente o meio utilizado pelo causador do dano, não se confundindo com a
conduta ilícita em si.
Nessa linha de raciocínio, pertinente a lição de Rui Stoco (2004, p. 901):
o provedor da Internet, agindo como mero fornecedor de meios físicos, que serve apenas de
intermediário, repassando mensagens e imagens transmitidas por outras pessoas e, portanto, não
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as produziu nem sobre elas exerceu fiscalização ou juízo de valor, não pode ser responsabilizado por
eventuais excessos e ofensas à moral, à intimidade e à honra de outros.
Alguns julgados acompanham esse posicionamento:
INDENIZAÇÃO. RESPONSABILIDADE CIVIL. DANOS MORAIS. OCORRÊNCIA. AFIRMAÇÕES
DE NATUREZA OFENSIVA DIVULGADAS EM PÁGINA PESSOAL DE SÍTIO ELETRÔNICO
DE RELACIONAMENTO (‘ORKUT’). AUSÊNCIA, CONTUDO, DE RESPONSABILIDADE DO
PROVEDOR DE SERVIÇOS DE INTERNET (‘GOOGLE’) PELAS INFORMAÇÕES VEICULADAS.
INEXISTÊNCIA DE DEVER LEGAL OU CONVENCIONAL DE CONTROLE OU FISCALIZAÇÃO
PRÉVIA DE CONTEÚDO. DADOS QUE FORAM PUBLICADOS EXCLUSIVAMENTE POR
TERCEIROS. NEXO DE CAUSALIDADE INEXISTENTE ENTRE A CONDUTA LÍCITA DA
REQUERIDA E OS DANOS. SENTENÇA AFASTADA. RECURSO PROVIDO. (Apelação Cível n.
629.576.4/9-00. Sexta Câmara de Direito Privado. Tribunal de Justiça de SP. Relator: Vito Guglielmi.
Julgado em 02/04/2009).
APELAÇÃO CÍVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. DANO MORAL. ORKUT. PROVEDOR DE
SERVIÇO. ARMAZENAGEM DE CONTEÚDO. CRIAÇÃO DE PÁGINA. OFENSA INSERIDA
POR TERCEIRO. AUSÊNCIA DO DEVER DE INDENIZAR. Hipótese dos autos em que usuário
do portal de relacionamentos Orkut criou uma comunidade para denegrir a imagem da autora.
Responsabilidade imputada ao servidor de hospedagem, que mesmo após ter sido notificado acerca
do conteúdo da comunidade ofensiva, não retirou a página do site de relacionamento. Destarte,
muito embora a autora tenha sustentado que notificou extrajudicialmente o provedor de serviço,
não há como se imputar nenhum fato omissivo à GOOGLE, sobre o fundamento de que esta não
teria tomado nenhum atitude frente a notificação, haja vista que o destinatário da correspondência
eletrônica não detém poderes para representar o provedor de serviço. Portanto, considerando que não
há provas de que o provedor réu foi notificado formalmente acerca das informações veiculadas na
comunidade criada para ofender a imagem da demandante, não há que se falar em responsabilização
do provedor de hospedagem, pois era imprescindível a demonstração de que houve conduta omissiva
para que surgisse o dever de indenizar. De outro modo, inexiste norma que impute ao provedor de
serviço o dever legal de monitoramento das comunicações, esse procedimento seria inviável do ponto
de vista jurídico, pois implicaria negar aplicação ao princípio constitucional da livre manifestação de
pensamento. In casu, não há como se imputar culpa ao provedor de hospedagem, pois não se verificou
a ocorrência de qualquer ato ilícito, porquanto a GOOGLE se limitou a armazenar o conteúdo da
página criada por terceiro no portal de relacionamento Orkut. DESPROVERAM O RECURSO.
(Apelação Cível n. 70024769200. Nona Câmara Cível. Tribunal de Justiça do RS. Relator: Tasso Caubi
Soares Delabary. Julgado em 11/03/2009).
Portanto, os provedores não poderiam ser responsáveis pelas ofensas e demais atos
caracterizadores de cyberbullying, pois inexiste nexo causal entre a disponibilização do
espaço virtual e os danos causados. A agressão não é praticada pelo provedor, mas por um
terceiro, sendo este o único responsável pelos danos à vítima.
Nesse sentido já decidiu o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos
Territórios:
DIREITO DO CONSUMIDOR. RESPONSABILIDADE CIVIL. SITE DE RELACIONAMENTOS.
COMPROVADA A CRIAÇÃO DE PERFIL FALSO POR TERCEIRO. EXCLUDENTE DE
RESPONSABILIDADE. INEXISTÊNCIA DO DEVER DE INDENIZAR. 1 - O CÓDIGO DE
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DEFESA DO CONSUMIDOR É APLICÁVEL NAS RELAÇÕES EXISTENTES ENTRE O
RESPONSÁVEL PELO SITE DE RELACIONAMENTO E O USUÁRIO. 2 - DESCABE O PEDIDO
INDENIZATÓRIO EM DESFAVOR DA REQUERIDA SE RESTOU COMPROVADO QUE O ATO
LESIVO, CRIAÇÃO DE PERFIL FALSO COM ADULTERAÇÃO DOS DADOS DA AUTORA, FORA
PRODUZIDO POR TERCEIRO, NOS TERMOS DO ART. 14, §3º, DO CDC. 3 - INEXISTINDO O
NEXO DE CAUSALIDADE, REQUISITO PRECÍPUO DO DANO MORAL, NÃO HÁ FALAR EM
CONCESSÃO DA INDENIZAÇÃO PLEITEADA. 4 - RECURSO NÃO PROVIDO. (Apelação Cível
n. 20050110089593. Quarta Turma Cível. Tribunal de Justiça do DFT. Relator: Cruz Macedo. Julgado
em 17/12/2008).
Conforme dispõe o artigo 14, parágrafo 3º, inciso II, do Código de Defesa do Consumidor, o fornecedor não será responsabilizado pelos danos causados se o defeito do serviço ocorrer por culpa exclusiva de terceiro. Nos casos de cyberbullying, as agressões são
praticadas por terceiros, o que afasta a responsabilidade civil objetiva dos provedores.
Ressalta-se que, mesmo afastada a responsabilidade objetiva, não pode ser descartada a possibilidade de responsabilizar os provedores por negligência (ao, exemplificativamente, não disporem de meios para identificar o verdadeiro ofensor ou não retirarem as
informações ofensivas do espaço virtual). Nessa situação, todavia, a responsabilização do
provedor tem fundamento diverso: não é o cyberbullying em si que configura a conduta
nociva, mas sim o não cumprimento de uma obrigação de fazer relacionada ao serviço
que desenvolvem.
Nessa última hipótese, a obrigação dos provedores em reparar os danos dependeria
da aferição de culpa, conforme dispõe a teoria da responsabilidade subjetiva (artigo 927,
caput, do Código Civil).
6. Considerações finais
Não obstante as diferentes formas de manifestação do cyberbullying, a internet
constitui o principal ambiente de propagação desta prática condenável. As agressões consistem desde ameaças ou ofensas inseridas em sites, redes sociais ou e-mails, até o envio de
vírus de computador com o objetivo de danificar o sistema operacional de outra pessoa.
A precisa definição das consequências jurídicas produzidas pelo cyberbullying depende da análise casuística, em razão das particularidades que cercam esse comportamento. Todavia, a partir das disposições legais existentes no ordenamento brasileiro, é
possível constatar os possíveis efeitos civis e criminais gerados pelas agressões efetuadas
no universo virtual.
Quanto aos efeitos criminais do cyberbullying, não restam dúvidas de que as condutas praticadas poderão corresponder a vários crimes e contravenções penais, sujeitando o
infrator às penalidades impostas por cada tipo penal. Da mesma forma, aos menores de
18 anos poderão ser aplicadas as medidas socioeducativas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente. Resta, ainda, a possibilidade de aplicação de medidas de segurança,
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se comprovado que o desvio comportamental do infrator está associado a alguma doença
mental ou psicológica.
Em relação aos efeitos civis, a responsabilidade do efetivo agressor pela reparação
dos danos causados também é inequívoca. O cyberbullying é um ato ilícito que causa prejuízos de ordem moral e, por vezes, de ordem material ao ofendido. Desse modo, uma vez
demonstrados conduta, dano, nexo causal e culpabilidade, estarão satisfeitos os elementos
ensejadores da responsabilidade civil subjetiva, gerando a obrigação de indenizar, conforme o disposto nos artigos 186 e 927, caput, do Código Civil.
Os estabelecimentos de ensino respondem objetivamente pelos danos decorrentes de cyberbullying praticado durante o horário escolar. A responsabilidade objetiva das
escolas particulares encontra respaldo no Código de Defesa do Consumidor (artigo 14),
enquanto que às instituições públicas aplica-se o disposto na Constituição Federal (artigo
37, § 6º). O professor responde subjetivamente, nos limites de sua culpabilidade.
A responsabilidade civil dos provedores de internet, por sua vez, ainda não está
consolidada no Direito brasileiro. Não existe consenso doutrinário e jurisprudencial acerca do assunto, ora reconhecendo-se a responsabilidade civil dessas empresas (de forma
solidária ao agressor), ora excluindo-a totalmente.
Segundo um primeiro entendimento, a obrigação de indenizar dos provedores encontra amparo no artigo 927, parágrafo único, do Código Civil, em razão da atividade de
risco oferecida por essas empresas. A disponibilização de espaço virtual sem condições
efetivas de controle caracteriza a assunção do risco pelos prejuízos aos usuários, gerando
o dever de reparar o dano, conforme a teoria da responsabilidade civil objetiva.
Num outro viés, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor depende da caracterização de uma relação de consumo entre os provedores e as vítimas de cyberbullying.
Considerando que a remuneração dos serviços prestados pelos provedores ocorre de
modo indireto, os julgadores têm entendido que as empresas são responsáveis pela reparação dos danos causados, independentemente de culpa, conforme dispõe o artigo 14 do
Diploma Consumerista.
Finalmente, existe entendimento no sentido de negar a existência de responsabilidade civil objetiva dos provedores. De acordo com alguns julgados, não há nexo causal
entre o dano e a conduta das empresas, uma vez que o ato foi praticado por terceiro. Nesse
caso, a obrigação de reparar os danos depende da aferição de culpa, conforme dispõe a
teoria da responsabilidade subjetiva (artigo 927, caput, do Código Civil), em razão da
provável negligência na prestação dos serviços.
Ao que parece, a responsabilidade civil dos provedores de internet ainda não é aplicada de modo satisfatório no ordenamento brasileiro. Obviamente, a responsabilização
pelo cyberbullying cabe, primeiramente, ao seu autor direto. Todavia, a vulnerabilidade
do sistema oferecido pelos provedores contribui para a prática de condutas antijurídicas,
o que leva ao questionamento sobre a responsabilidade dessas empresas. Talvez a melhor
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saída seja considerar que os provedores possuem responsabilidade subsidiária, respondendo pelos danos somente quando não for possível a identificação do real ofensor.
Enfim, não há como negar a imprescindibilidade do controle de atos praticados
por meio da tecnologia de informação e comunicação. Conforme mencionado ao longo
do presente artigo, a disponibilização de espaço virtual proporciona a prática de várias
condutas danosas, com efeitos civis e criminais relevantes. No entanto, relativamente ao
cyberbullying, a importância do trabalho de prevenção deve ser ressaltada, envolvendo
não apenas o setor jurídico, mas toda a sociedade. Além da responsabilização civil e penal
dos ofensores, devem ser priorizadas ações que incentivem crianças, adolescentes e adultos a conviverem pacificamente com as diferenças entre os seres humanos.
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207
RECONHECIMENTO E AUTORRECONHECIMENTO NUM
MUNDO DE VIOLÊNCIAS E CONFLITUALIDADES: UM
RECORTE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO
FRENTE AO DEBATE DOS DIREITOS HUMANOS
RECOGNITION AND SELF-RECOGNITION IN A WORLD OF
VIOLENCE AND CONFLICT: A BRAZILIAN PENITENTIARY
SYSTEM CUT THE FRONT OF THE DEBATE ON HUMAN
RIGHTS
Claudio Augusto Lima da Costa1
Cristina Cordeiro Alves2
Resumo: O presente trabalho tem como escopo a análise do sistema penitenciário
brasileiro à luz de sua realidade economicamente improdutiva, tendo em vista o
seu descumprimento legal e abandono total do apenado no que tange aos direitos
que lhes cabem, em especial a educação, elemento de fortalecimento do caráter do
apenado. Trabalhar um processo educacional que fuja do tradicional modelo pedagógico pode significar um avanço na compreensão do apenado acerca do processo
de ressocialização que (deveria) estar passando, e do reconhecimento e autorreconhecimento enquanto sujeito de direitos e deveres. Em um modelo de sociedade em
que estabelecemos parâmetros e margens para as condutas pessoais e alheias, estar
sob a tutela executória penal do Estado é estar completamente à margem do que
se compreende como “correto” no dia a dia da vida em sociedade. O artigo busca
propor um elo entre este ser ingresso no sistema penitenciário e a construção da
sua compreensão acerca dos direitos humanos, da justiça e de um novo referencial
1 Professor do Curso de Direito do Centro Universitário Catarinense (UNIVESC) - Lages/SC. Mestrando em Sociologia
no Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Especialista em Ciências Criminais - UNISUL/SC. Especialista em Direito Penal e Processo Penal - Universidade
Luterana do Brasil (ULBRA/RS). Graduado em Direito - UNISINOS/RS. Técnico Judiciário Auxiliar (TJ/SC) lotado na
Comarca de Lages/SC.
2 Mestranda em Sociologia no PPGS/UFRGS. Licenciada em Ciências Sociais pela UFRGS.
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– RECONHECIMENTO E AUTORRECONHECIMENTO NUM MUNDO DE VIOLÊNCIAS E CONFLITUALIDADES:
UM RECORTE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO FRENTE AO DEBATE DOS DIREITOS HUMANOS –
de vida em sociedade. Travaremos relações entre a Sociologia das Conflitualidades
de José Vicente Tavares dos Santos e a Teoria do Reconhecimento de Axel Honneth
com ensaios de uma compreensão pedagógica de cunho freiriano (Paulo Freire).
Palavras-Chave: Sistema penitenciário brasileiro. Execução penal. Educação
popular. Violência. Conflitualidades. Reconhecimento. Autorreconhecimento.
Abstract: This work has as scope to analyze the Brazilian penitentiary system in the
light of its reality economically unproductive in view of your breach of legal and total
abandonment of the convict with respect to the rights they fit, particularly education,
element strengthening the character of the convict. Working an educational process
to flee the traditional pedagogical model can mean a breakthrough in understanding
the convict on the process of rehabilitation that (should) be going, and the recognition
and autorreconhecimento as subjects of rights and duties. In a model of society we set
parameters and margins for others and personal conduct, to be enforceable under the
tutelage of the state criminal is to be completely outside of what is understood as “right”
day to day life in society. The article attempts to propose a link between this be entering
the prison system and the construction of their understanding of human rights, justice
and a new benchmark of life in society. Established relations between the sociology
of conflictualities José Vicente Tavares dos Santos and the Theory of Axel Honneth
recognition tests with an understanding of pedagogical nature Freirian (Paulo Freire).
Keywords: Brazilian penitentiary system. Criminal enforcement. Popular
education. Violence. Conflict. Recognition. Self-recognition.
1. Introdução
O sistema penitenciário que se funda nas prisões como alternativa de solução para
o problema da criminalidade foi criado por reformistas europeus no início do século
XIX como tentativa de humanizar o tratamento aos criminosos, tirando as pessoas do
risco do tratamento desumano, maus-tratos e torturas, transformando a prisão em uma
verdadeira experiência de ressocialização. Nossa sociedade de cunho liberal tem na liberdade um dos principais bens jurídicos tutelados pelo Estado, logo, a privação da liberdade
constitui-se em um castigo máximo, ao menos na sociedade brasileira, na qual, apesar de
a pena de morte ser vedada, têm-se verdadeiras “mortes sem pena”, tanto fora do cárcere
quanto dentro destas prisões.
Por trás disso encontra-se um sistema judiciário lento, que faz questão de manter
seus presos de forma cautelar e que tem escopo numa sociedade ideologicamente treinada
para combinar crime, pobreza e necessidade de encarceramento. Há tempos nota-se que
as prisões têm sido utilizadas como instrumentos de controle social e repressão, visando
à criação de um abismo social entre o que chamam de “pessoas de bem” e “pessoas à margem da Lei”, ou simplesmente “meliantes” ou “marginais”.
Associado a isto tudo temos um sistema econômico globalizado, opressor e que
reflete em políticas governamentais equivocadas que apenas atendem a uma apelação midiática, compensatória e procurando criminalizar a pobreza e que, muitas vezes, vê na cor
210
Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 2 • Dez/2011
– Claudio Augusto Lima da Costa – Cristina Cordeiro Alves –
da pele a objetivação da funcionalidade do Direito Penal. O recorte de classe e cor dentro
das prisões do Brasil é plenamente perceptível, constituindo-se numa forma de manter-se
conectado com os ditames do neoliberalismo e sua cartilha socioeconômica.
Esta última linha de pensamento é plenamente verificada quando analisamos que,
nos anos introdutórios do neoliberalismo no Brasil, instrumentos normativos como a Lei
dos Crimes Hediondos (criada em 1990 e reformada em 2007), de forte cunho midiático
(vide caso Daniella Perez3) e inconstitucional e que traz no seu ínterim diversos mecanismos que dificultam e/ou impossibilitam a progressão de regime por parte do apenado
preso, tiveram como desfecho um aumento considerável no número de encarcerados no
início dos anos 90, além de índices elevados de permanência nas prisões. Agregado a
isso, tivemos diversos episódios de violência institucionalizada, como foi o caso dos massacres do Carandiru, da Candelária e de Eldorado dos Carajás, além de diversos casos
de intolerância com índios, negros, homossexuais e moradores de rua, constituindo-se
verdadeiros Tribunais de Rua. Da mesma forma enxerga-se, ainda, a reforma do Código
Penal, encrudescendo a lei com novos tipos penais que formam a verdadeira colcha de
retalhos do sistema punitivo e autoritário brasileiro. Não se trata do desejo de uma maioria (antes fosse), mas é apenas o desejo de uma classe dominante e que exerce o papel de
controladora social e impulsionadora de políticas repressivas e formadoras de opiniões
deturpadas e parciais.
O neoliberalismo traz a definição de “inimigo” para os inimigos do neoliberalismo
e, dentre estes, encontra-se a população carcerária, vista pelo sistema como rivais do desenvolvimento da sociedade e da população. Todavia, tratar pessoas desta forma é tirar
delas o potencial de sentirem-se humanas. Ao certo é um abuso e uma afronta aos direitos
humanos e ao estado democrático, social e humanista de direito.
Segundo o Sistema Integrado de Informações Penitenciárias – Infopen – o Brasil
tem hoje uma população carcerária que gira em torno de 500 mil presos, constituindo-se
no terceiro maior contingente do mundo, perdendo apenas para Estados Unidos e China,
respectivamente. Aproximadamente um terço destes apenados está em situação provisória, ou seja, aguardando julgamento, e muitos destes cumprindo suas penas em presídios
sujos, superlotados e controlados pelo crime organizado, ou seja, verdadeiras escolas do
crime.
Ainda segundo o Infopen e dados do Ministério da Justiça4, entre 1995 e 2005 a
população carcerária do Brasil saltou de pouco mais de 148 mil presos para 361.402, o que
representou um crescimento de 143,91% em uma década. A taxa anual de crescimento
oscilava entre 10 e 12%. Neste período, as informações ainda eram consolidadas de forma
3 Daniella Perez, atriz, foi vítima de homicídio no ano de 1993. Filha de famosa escritora e novelista de uma rede de
televisão no Brasil, seu caso foi amplamente utilizado pela mídia.
4 Os dados podem ser acessados no portal do Ministério da Justiça do Brasil. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/
data/Pages/MJD574E9CEITEMID364AC56ADE924046B46C6B9CC447B586PTBRIE.htm>. Acesso em: 2 fev. 2011.
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– RECONHECIMENTO E AUTORRECONHECIMENTO NUM MUNDO DE VIOLÊNCIAS E CONFLITUALIDADES:
UM RECORTE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO FRENTE AO DEBATE DOS DIREITOS HUMANOS –
lenta, já que não havia um mecanismo padrão para consolidação dos dados, que eram
recebidos via fax, ofício ou telefone.
A partir de 2005, já com padrões de indicadores e informatização do processo de
coleta de informações (período pós-Infopen), a taxa de crescimento anual caiu para cerca
de 5 a 7% ao ano. Entre dezembro de 2005 e dezembro de 2009, a população carcerária
aumentou de 361.402 para 473.626, o que representou um crescimento, em quatro anos,
de 31,05%.
Segundo análise do Departamento Penitenciário Nacional – Depen –, muitos fatores podem ser atribuídos a essa redução do encarceramento. A expansão da aplicação,
por parte do Poder Judiciário, de medidas e penas alternativas; a realização de mutirões
carcerários pelo Conselho Nacional de Justiça; a melhoria no aparato preventivo das corporações policiais e a melhoria das condições sociais da população são todos fatores significativos na diminuição da taxa. Contudo, estes mesmos dados demonstram que tem
ocorrido um aumento significativo nos índices de encarceramento de um contingente
populacional constituído de pobres, analfabetos, jovens e pessoas que possuem um baixo
nível de escolaridade e de formação profissional, além de desempregados. Acrescenta-se,
ainda, o fato de que mais de 40% tem menos de trinta anos de idade, o que leva a concluir que boa parte dos presos pertence a uma população economicamente ativa que se
encontra encarcerada sem quaisquer perspectivas de melhoria ou de oportunidade na
vida quando egresso do sistema. O quadro de injustiça social reinante no Brasil tem total
correlação com os elevados índices de violências e conflitualidades.
2. A Sociologia das conflitualidades e a violência
O debate acerca da questão da segurança pública e da política penitenciária foi
praticamente nulo ao longo dos tempos. A ruptura do contrato social e dos laços sociais
provoca um fenômeno denominado de “desfiliação” e ruptura das relações de alteridade,
dilacerando o vínculo entre o eu e o outro. Tavares dos Santos (2009) explicita que “dentre
as novas questões sociais mundiais, constitui-se uma crise de sociabilidade, chegando, no
limite, às manifestações de violência, fenômenos que adquirem novos contornos e passando a disseminar-se por toda a sociedade, uma violência difusa”. O autor entende que o
grau de aceitação da sociedade em relação à violência passa a ser encarada como prática
social e política normal e coletiva. Esclarece, ainda, que “as lutas sociais contra a violência
expressam as possibilidades de uma governamentalidade, fundada na sociedade civil e na
construção social da cidadania, buscando-se a reconstrução das relações de sociabilidade
mediante outras bases de solidariedade social” (TAVARES DOS SANTOS, 2009, p. 13).
Nesse sentido, uma violência é sempre antecedida ou justificada, prévia ou posteriormente, por uma violência simbólica, que se exerce mediante uma subjetivação pelos agentes
sociais envolvidos na relação.
212
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– Claudio Augusto Lima da Costa – Cristina Cordeiro Alves –
Permanecendo na análise de Tavares dos Santos (2009), identifica-se que diversas
mudanças foram percebidas nas instituições (família, escola, processos de socialização,
fábricas, religiões) e nos sistemas de justiça criminal (polícias, tribunais, manicômios judiciários, prisões), pois vivem um processo de crise e desinstitucionalização. Sousa Santos
(apud TAVARES DOS SANTOS, 2009) menciona, por fim, que precisamos repensar as
lutas sociais, as quais contêm pistas para a discussão da segurança coletiva dos cidadãos
e cidadãs, a fim de que sejam garantidos todos os direitos não efetivados pela modernidade.
Quando tratamos do conceito de violência, percebemos que este perpassa diversas
compreensões. A extensa trajetória com diferentes acepções ganha destaque neste trabalho quando transita de forma equidistante pelo campo do Direito e da Sociologia. Ao
certo, o conceito de violência é muito mais específico que se imagina, apresentando-se
em diferentes formas de violência (gênero, doméstica, psicológica, física, moral, objetiva,
urbana, rural, etc.). No que tange à compreensão do referido conceito, Tavares dos Santos
(1996) entende que a violência é a relação social, caracterizada pelo uso real ou virtual
da coerção, que impede o reconhecimento do outro (pessoa, classe, gênero ou raça) mediante o uso da força (ou da coerção), provocando algum tipo de dano. O autor, sob ótica
sociológica, sugere que uma sociologia das conflitualidades, no tempo atual, deve ser situada no contexto dos efeitos do processo de globalização da sociedade e da economia, os
quais produzem transformações na estrutura e no espaço social das diversas regiões do
planeta, desencadeando novos conflitos sociais e novas formas de conflitualidades (TAVARES DOS SANTOS, 1999).
Tavares dos Santos (1999) afirma que o aumento dos processos estruturais de exclusão social pode vir a gerar a expansão das práticas de violência como norma social particular, vigente em vários grupos sociais enquanto estratégia de resolução de conflitos, ou
meio de aquisição de bens materiais e de obtenção de prestígio social, significados esses
presentes em múltiplas dimensões da violência social e política contemporânea. A violência configura-se, assim, como linguagem e norma social para algumas categorias sociais,
contrapondo-se àquelas denominadas de normas civilizadas, marcadas pelo autocontrole
e pelo controle social institucionalizado (TAVARES DOS SANTOS, 2009, p. 13).
Estabelecido em uma normatividade foucaultiana, Tavares dos Santos (2009) estabelece bases para uma microfísica da violência que define como uma rede de exercício de
poder marcada pela força, pela coerção e pelo dano, em relação ao outro; não deixando
de considerar as composições macrossociais de tais relações de excesso de poder, pois a
violência também alicerça uma sociedade dividida.
Exercer o jus puniendi sem uma alternativa legítima à vida à margem da lei não credencia o Estado como ente garantidor de políticas públicas na área da segurança. Propor
políticas que levem o egresso a reconhecer-se e reconhecer ao próximo enquanto sujeito
de direitos e deveres e, mais que isso, agente de uma transformação própria, deveria ser o
papel de um Estado que se preocupa em cumprir a Lei de Execuções Penais e que vê na
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213
– RECONHECIMENTO E AUTORRECONHECIMENTO NUM MUNDO DE VIOLÊNCIAS E CONFLITUALIDADES:
UM RECORTE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO FRENTE AO DEBATE DOS DIREITOS HUMANOS –
prisão um efeito retributivo e ressocializador. Certamente a educação tem um importante
papel enquanto política emancipadora em um país que esqueceu seus presos e transformou-os em estatísticas e em pura massa carcerária.
Ao certo, o que se tem visto ultimamente é o afastamento gradual das pastas da
Educação e da Administração Penitenciária, além de práticas improvisadas e voluntaristas que dependem da iniciativa ou da concordância da direção de cada estabelecimento
prisional5. É fundamental que se abra uma linha de diálogo nas esferas governamentais no
sentido de primar por um direito soberano dos apenados encarcerados, qual seja, o direito
à educação, afinal de contas, o Brasil é signatário de tratados internacionais que primam
por leis e princípios que integram o nosso aparato normativo e que constituem verdadeiros primados de direitos humanos. Fundamental esclarecer que por direitos humanos
devem-se entender aqueles direitos e liberdades que são fundamentais para a existência
humana. Não se trata de privilégios ou caprichos doados pelos governantes em geral, mas
por direitos inerentes à vida em sociedade e à paz social; direitos que não podem ser retirados e nem negados ou perdidos por qualquer pessoa ou mandatário que seja6.
Octavio Ianni (2004) esclarece que as formas e as técnicas de violência estão adquirindo características novas, insuspeitadas e crescentemente brutais. Completa o autor que
a violência é um acontecimento excepcional que transborda através das ciências sociais;
revela dimensões insuspeitadas da realidade social, ou da história, em suas implicações
político-econômicas, socioculturais, objetivas e subjetivas.
Maurício Murad afirma que
A palavra violência, etimologicamente, provém do latim violentia – raiz semântica vis=força – e
significado opressão, imposição de alguma coisa a outra pessoa ou a outras pessoas, por intermédio
do emprego da força, qualquer que seja o seu tipo, a sua substância, forma ou sentido: força dos
poderes social, econômico, jurídico ou político, força das armas, força física, força simbólica ou de
qualquer outra natureza que se queira (MURAD, 2007, p. 77).
Mcneil (1994) escreveu que a violência sempre foi uma parte importante da vida
humana. Ele estabelece a ideia de que a violência tem uma história, tanto quanto tem
uma geografia e uma sociologia, que assume formas diferentes em períodos diferentes,
peculiar a uma época ou a um determinado povo. Numa visão um pouco mais crítica,
Zaluar (1993) observa que chamar de violência qualquer forma de hegemonia ou poder,
igualando-as às novas formas de terror que observamos cada vez mais entre nós, tem o
efeito de nos deixar sem saídas, mergulhados na paralisia das ações sem eficácia social.
Numa ótica de violência simbólica, conforme visto nas afirmações de Tavares dos
Santos (2009), é necessário mencionar que tal conceito foi estabelecido por Pierre Bourdieu (1989), que o define como uma forma de coação que se apoia no reconhecimento de
5 Educando para a Liberdade: Trajetórias, Debates e Proposições de um Projeto para a Educação nas Prisões Brasileiras, p.
12. UNESCO.
6 Direitos Humanos nas Prisões: um Manual de Treinamento para Pessoal Penitenciário, p. 3.
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Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 2 • Dez/2011
– Claudio Augusto Lima da Costa – Cristina Cordeiro Alves –
uma imposição determinada, seja esta econômica, social ou simbólica. A violência simbólica se funda na fabricação contínua de crenças no processo de socialização, que induzem o indivíduo a se posicionar no espaço social seguindo critérios e padrões do discurso
dominante. Devido a este conhecimento do discurso dominante, a violência simbólica é
manifestação deste conhecimento através do reconhecimento da legitimidade deste discurso dominante. Para Bourdieu (1989), a violência simbólica é o meio de exercício do
poder simbólico que objetiva a elucidação das relações de dominação que não pressupõe
a coerção física ocorrida entre as pessoas e entre os grupos presentes no mundo social. A
raiz da violência simbólica estaria deste modo presente nos símbolos e signos culturais,
especialmente no reconhecimento tácito da autoridade exercida por certas pessoas e grupos de pessoas. A violência simbólica nem é percebida como violência, mas sim como
uma espécie de interdição desenvolvida com base em um respeito que “naturalmente”
se exerce de um para o outro. Ela pode assim ser entendida como as diversas formas de
dominação que são consideradas legítimas por uma boa parcela dos indivíduos, através
da naturalização de regras e normas, a ponto de fazer com que os dominados venham a
aderir à ordem dominante. Estes fazem isso sem perceber os mecanismos e o caráter arbitrário do discurso. Deste modo, a violência simbólica é, então, toda imposição de enunciados sobre o real que leva o indivíduo a adotá-la como referencial exclusivo para interpretar o mundo. O indivíduo adere a uma posição de dependência, tornado-se incapaz de
criar seu próprio elenco de significados, pelo menos sem levar em conta os significados
dominantes. Este tipo específico de violência acaba impondo uma coerção que se confirma por intermédio do reconhecimento que o dominado não pode deixar de conceder ao
dominante, na medida em que não dispõe para pensar, senão através de instrumentos de
conhecimento que tem em comum com ele. Em suma, a violência simbólica é uma violência que conta com certa cumplicidade tácita dos que a sofrem e dos que a exercem, por
se constituir em um processo inconsciente (BOURDIEU, 2007).
Em um modelo de sociedade em que estabelecemos parâmetros e margens para as
condutas pessoais e alheias, estar sob a tutela executória penal do Estado é estar completamente à margem do que se compreende como “correto” no dia a dia da vida em sociedade.
A educação carcerária deve ser de natureza popular e objetivar, primordialmente, a alternância de valores motivacionais aos presos com o intuito de viverem honestamente em
liberdade e não entrarem em rota de colisão com as leis penais. Uma pedagogia de cunho
transversal e de perspectiva crítica fixando a dialogicidade, fortemente encontrada na pedagogia freiriana, enquanto essência da educação como prática da liberdade e elemento
de fortalecimento do caráter do apenado (FREIRE, 1987). Busca-se propor um elo entre
este ser ingresso no sistema penitenciário e a construção da sua compreensão acerca dos
direitos humanos, da justiça e de um novo referencial de vida em sociedade.
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– RECONHECIMENTO E AUTORRECONHECIMENTO NUM MUNDO DE VIOLÊNCIAS E CONFLITUALIDADES:
UM RECORTE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO FRENTE AO DEBATE DOS DIREITOS HUMANOS –
3. O reconhecimento e o autorreconhecimento:
reflexões a partir da teoria de Axel Honneth
É fundamental que se trabalhe em um processo educacional carcerário renovador
e popular que fuja do tradicional modelo pedagógico e que venha a significar um avanço
na compreensão do apenado acerca do processo de ressocialização que (deveria) estar
passando, e do reconhecimento e autorreconhecimento enquanto sujeito de direitos e
deveres, além da tão sonhada inclusão (ou reinclusão) social. Para tanto, o presente artigo
ancora-se, também, nos estudos acerca da Teoria do Reconhecimento de Axel Honneth.
Como base de seu estudo, Honneth utiliza-se da teoria de Georg Lukács, por ser o autor
que deu ao conceito de “reificação” o sentido mais claro e expressivo. Neste ínterim, divide
seu estudo em três partes, sendo que as duas primeiras trabalham a questão conceitual do
termo reificação, e no terceiro ponto analisa os problemas específicos advindos da reificação enquanto forma de esquecimento do reconhecimento.
Em seu primeiro ponto de desenvolvimento, Honneth refaz o conceito de reificação, desfazendo um entendimento geral no qual o termo é correlacionado com instrumentalização. Explica que este último termo tem relação direta com o ato de tomar outras
pessoas como meio para fins puramente individuais, egocêntricos e sem precisar abstrair
de suas características humanas. A reificação pressupõe que nem sequer são observadas
estas características humanas, ou seja, é tratar alguém totalmente como uma coisa, isenta
de qualquer especificidade ou característica humana. A crítica à reificação reside no fato
de que podemos distinguir ontologicamente acerca dos modos apropriados e inapropriados de tratar as pessoas. O autor afirma que alguém que reifica uma pessoa não atenta
apenas contra a norma, mas também contra as condições elementares do debate e do discurso acerca da moral (HONNETH, 2008).
Para Honneth (2008), a base ontológica do termo reificação tem relação direta com
questões de ordem cultural e histórico-teórica, como definia Lukács, daí entender que
sua teoria gravita na órbita do reconhecimento enquanto elemento fundamental para mudança ou abandono do eixo de ação tanto da instrumentalização como da reificação. Com
suas pesquisas que transitam por Lukács (base ontológica, cultura e conteúdo fenomenológico), Sartre (relações de interioridade, afecção ou solidariedade ontológica) e MerleauPonty (comunicação), chegou à conclusão que o reconhecer sempre antecede o conhecer,
de tal modo que reificação é a violação contra esta ordem de precedência.
O autor analisa expressões como “participação afetiva” e “identificação precedente”
como uma tentativa de chamar a atenção para o caráter não científico desta forma de reconhecimento (HONNETH, 2008). Elenca a necessidade de um reconhecimento espontâneo como pressuposto necessário para se apropriar de valores morais e imprescindíveis
para um reconhecimento normativo e definitivo. Como dito anteriormente, aborda os
problemas do reconhecimento advindos do processo de reificação. Como o próprio autor
menciona,
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Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 2 • Dez/2011
– Claudio Augusto Lima da Costa – Cristina Cordeiro Alves –
...a luta pelo reconhecimento está voltada para a exigência da reserva de conteúdo de uma norma de
reconhecimento... Na reificação é anulado aquele reconhecimento elementar que geralmente faz com
que nós experimentemos cada pessoa existencialmente como o outro de nós mesmos (HONNETH,
2008, p. 68-79).
Avança, ainda, sobre a ótica da observação enquanto elemento de percepção de
características das especificidades humanas e na conclusão de que a rotinização e a habitualização (estas sim) podem levar a um esquecimento de todo o reconhecimento original
e voltar a tratar o outro enquanto objeto. Seria um retorno ao que o autor denomina de
“ponto zero da socialização” (HONNETH, 2008), ou seja, a total incapacidade de reconhecer ou conhecer o próximo enquanto ser dotado de características próprias, direitos,
deveres e dignidade específicos da pessoa humana.
O reconhecimento é a categoria moral fundamental. Para Honneth, reconhecer
precede o conhecer. Para tanto, há três esferas distintas de interação e cada qual implica
um tipo de reconhecimento: a do amor, a do direito e a da solidariedade, cada qual implicando autorrelações individuais, quais sejam a autoconfiança, o autorrespeito e a autoestima, respectivamente. Para o autor, as bases em que se funda o reconhecimento têm a
natureza socioafetiva, sendo assim, as infrações ou ofensas que se constituem em desrespeito podem enfraquecer estas bases e levarem, num extremo, a posturas de resistências
políticas (HONNETH, 2009). Se, para Honneth, reconhecer precede o conhecer, com este
artigo crê-se que o autorreconhecimento precede o próprio reconhecimento.
Fundamental no autor a abordagem que faz do fato de que as ofensas e injúrias
sofridas pelos indivíduos os fazem se afastar cada vez mais do processo interacional e
participativo. Contudo, tais atitudes podem levar estes indivíduos a lutarem contra a diminuição de seu valor e contribuição à sociedade. Ao mesmo tempo em que lutam por
estes direitos, encontram outros que também lutam por causas semelhantes, criando assim uma rede de lutas que pode tender, como dito acima, à ações de resistência política.
O objetivo da justiça social é possibilitar uma participação de todos os membros da sociedade no processo comunicativo da vida da sociedade.
4. Considerações finais
Incluir na vida do preso um programa educacional que possibilite o seu avanço
social dentro de sua realidade é poder fazer com que este encarcerado deixe de se sentir
como parte do problema, mas que possibilite com que se sinta parte da solução. Iniciativas
como a do Conselho Nacional de Justiça – CNJ – com campanhas educativas de valorização do egresso do sistema penitenciário tendem a modificar a cultura popular, mas ainda
é muito pouco. Autorreconhecer e reconhecer ao outro como partícipes de um processo
de reconstrução social é o grande objetivo de uma educação popular voltada para a renovação e para um novo mundo. É necessário um investimento massivo em educação para
os presos, em formação básica e profissional; deve constituir-se em uma política nacional,
estabelecendo, para tanto, regras mínimas de implementação e funcionamento, comple
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UM RECORTE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO FRENTE AO DEBATE DOS DIREITOS HUMANOS –
mentando a diversidade, tendo em vista questões de inclusão, acessibilidade, gênero, etnia, credo e opção sexual, dentre outros fatores e indicadores, evitando a estigmatização
do (re)educando, numa perspectiva crítica e construtiva. Como dito no decorrer do presente artigo, a educação do preso é uma questão premente e totalmente mergulhada nos
direitos humanos e sem uma previsão estanque, mas sempre aberta a contribuições de
refino da política educacional e prisional.
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219
A SUBSTITUIÇÃO DAS PENAS PRIVATIVAS DE
LIBERDADE POR RESTRITIVAS DE DIREITO EM CASOS
DE CRIMES DE TRÁFICO DE ENTORPECENTES: OS
DIVERGENTES ENTENDIMENTOS SOB O ENFOQUE DAS
FINALIDADES DA PENA E DO DIREITO PENAL
REPLACEMENT OF CUSTODIAL SENTENCES FOR
RESTRICTIVE OF LAW IN CASES OF CRIMES OF NARCOTICS
TRAFFICKING: UNDERSTANDING THE DIVERGENT
APPROACH UNDER THE PURPOSES OF THE PENALTY AND
CRIMINAL LAW
Ana Paula da Silva Johannsen1
Resumo: O Direito Penal funciona como um regulador social, na medida em que,
visando à proteção da sociedade e dos bens jurídicos a ela relacionados, seleciona
graves condutas e as tipifica como crime, cominando-lhes a respectiva sanção. Assim, sendo um instrumento do Direito Penal, a pena tem suas finalidades explicadas
por teorias que surgiram de acordo com o contexto histórico vivenciado. No Brasil,
o Código Penal, adotando a teoria mista, prevê a cominação de penas privativas de
liberdade, multa e/ou restritivas de direito, possuindo estas últimas um caráter substitutivo, desde que preenchidos os requisitos do art. 44 de referido Diploma Legal.
Concernente aos crimes de tráfico de entorpecentes, a Lei n. 11.343/06 veda expressamente tal substituição. Entretanto, recentes decisões proferidas pelos Tribunais
Pátrios, pautadas nos princípios da individualização da pena e da proporcionalidade, têm sido favoráveis à possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade
por restritivas de direito, quando da prática de crimes dessa natureza, culminando,
inclusive, com a declaração incidental, pelo STF, de inconstitucionalidade da parte
1 Técnica Judiciária Auxiliar, lotada na Vara de Execuções Penais da Comarca de Itajaí. Especialista em Direito Penal e
Processual Penal pela Escola do Ministério Público de Santa Catarina em parceria com a Universidade do Vale do Itajaí
- UNIVALI. Pós-graduada em “Grandes transformações do processo” pela Universidade Anhanguera – UNIDERP.
Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 2 • Dez/2011
221
– A SUBSTITUIÇÃO DAS PENAS PRIVATIVAS DE LIBERDADE POR RESTRITIVAS DE DIREITO EM CASOS DE CRIMES DE TRÁFICO DE ENTORPECENTES:
OS DIVERGENTES ENTENDIMENTOS SOB O ENFOQUE DAS FINALIDADES DA PENA E DO DIREITO PENAL –
final do art. 44 da Lei em questão. Todavia, conforme alguns entendimentos, essa
substituição deve ocorrer em casos excepcionais, e não ser a regra, para que as medidas alternativas atinjam suas reais finalidades.
Palavras-chave: Tráfico de drogas. Penas. Substituição. Possibilidade. Diferentes entendimentos.
Abstract: The Criminal Law serves as a social regulator to the extent that, in order
to protect society and the legal rights, selects the severe conducts that must be considered
crimes, imposing them to sanction or penalty. So, being an instrument of criminal law,
punishment has its purposes explained by theories that have emerged in line with the
historical context experienced. In Brazil, the Penal Code, adopting a mixed theory,
provides the penalty of deprivation of liberty, fines and / or restrictions of rights, these
last possessing a substitutive character, since it met the requirements of Art. 44 of Penal
Code. Concerning the crime of drug trafficking, the Law 11.343/06 expressly prohibits
such replacement. However, recent decisions by the National Courts, guided by the
principles of individualization of punishment and proportionality have been favorable
to the possibility of replacement of deprivation of liberty by restricting rights regarding
to the practice of crimes of this character, culminating even with incidental to the
declaration, by the Supreme Court, the final part of unconstitutionality of art. 44 of the
Law in question. However, according to some understandings, such substitution must
occur in exceptional cases, and not the rule, that the alternative measures to achieve
their real purposes.
Keywords: Drug trafficking. Penalt. Replacement. Possibility. Different
understandings.
1. Introdução
As recentes decisões proferidas pelos Tribunais Pátrios, principalmente pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal, têm demonstrado favorável tendência à possibilidade de
substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direito nos casos de tráfico
ilícito de entorpecentes, pautando-se no princípio insculpido no art. 5º, XLVI, da Constituição da República Federativa do Brasil, qual seja, o da individualização da pena, bem
como no princípio da proporcionalidade, culminando com a declaração, pelo Pretório
Excelso, de inconstitucionalidade, de maneira incidental da parte final do art. 44 da Lei
11.343/06, parte esta que vedava expressamente essa substituição.
Entretanto, em que pese ser este o entendimento da Suprema Corte, tal não se
mostra absoluto, pois posicionamentos contrários ponderam a eficácia de referida substituição, sopesando, para tanto, o direito do condenado de reinserir-se no convívio social
e o direito da sociedade de ver-se resguardada e protegida do potencial lesivo que contra
ela representa a conduta delitiva. Para esses posicionamentos, a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos deve ser a exceção, e não a regra, relevando
a necessidade de devidamente preenchidos os requisitos do art. 44 do CP, sob pena de
222
Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 2 • Dez/2011
– Ana Paula da Silva Johannsen –
a sanção aplicada não atingir seu real escopo, e, consequentemente, gerar a sensação de
impunidade.
Assim, o presente artigo tem como objetivos pesquisar e analisar os divergentes
entendimentos acerca da substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de
direitos em casos de crimes de tráfico de entorpecentes sob o enfoque das funções do
Direito Penal e das penas previstas no Código Penal brasileiro.
Para tanto, num primeiro momento, cuida-se da análise das finalidades desse ramo
do Direito, passando-se, em seguida, à verificação das penas, desde seus antecedentes
históricos, como também as teorias que fundamentam suas finalidades e as espécies de
sanções previstas no Código Penal.
Além disso, para tratar-se do tema objeto desta pesquisa, averiguam-se os requisitos
legais necessários à substituição de penas de privação de liberdade por penas alternativas,
bem como são traçadas algumas considerações sobre os princípios da individualização da
pena e da proporcionalidade, atingindo-se, por fim, as breves considerações acerca da Lei
Antidrogas – n. 11.343/06 e dos argumentos utilizados para a possibilidade ou restrição
a essa substituição.
A escolha do tema deve-se ao interesse da autora pelo assunto em tela, porquanto
atual, relevante e diretamente relacionado às atividades profissionais que a pesquisadora
exerce – Vara de Execuções Penais em Comarca Litorânea, em que condenações por crimes de tráfico de drogas são extremamente recorrentes.
Por essa razão, em alguns pontos do artigo, são feitas algumas comparações entre
as matérias postas em lei e a realidade fática, utilizando-se, como método de pesquisa
científico, tanto na fase de investigação quanto na de relato, o indutivo.
2. Do Direito Penal como controle social
Para um convívio social harmônico, capaz de respeitar as liberdades de um indivíduo e os limites de outro, a vida em sociedade requer a existência de um conjunto de
regras e normas que regulem tais limites e liberdades, consubstanciando-se, assim, o direito positivo. A infringência a essas regras é, pois, genericamente denominada de ilícito
jurídico, estando sujeita à aplicação de sanções.
Há momentos, porém, que nem o Direito Civil, nem o Direito Público são suficientes para aplicar sanções, ante a relevância do bem jurídico transgredido ávido a ser
tutelado. Daí por que necessária se faz a intervenção estatal, com o seu poder-dever de
punir os transgressores, utilizando-se, para tanto, do Direito Penal, o qual “constitui uma
espécie de controle social, mas de caráter formal e residual, pois só atua diante do fracasso
dos instrumentos formais de controle” (REALE JÚNIOR, 2006, p. 3).
Nesse sentido, extrai-se das palavras de Capez (2008, p. 1) o seguinte conceito:
Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 2 • Dez/2011
223
– A SUBSTITUIÇÃO DAS PENAS PRIVATIVAS DE LIBERDADE POR RESTRITIVAS DE DIREITO EM CASOS DE CRIMES DE TRÁFICO DE ENTORPECENTES:
OS DIVERGENTES ENTENDIMENTOS SOB O ENFOQUE DAS FINALIDADES DA PENA E DO DIREITO PENAL –
O Direito Penal é o seguimento do ordenamento jurídico que detém a função de selecionar os
comportamentos humanos mais graves e perniciosos à coletividade, capazes de colocar em risco os
valores fundamentais para a convivência social, e descrevê-los como infrações penais, cominandolhes, em consequência, as respectivas sanções, além de estabelecer todas as regras complementares e
gerais necessárias à sua correta e justa aplicação.
Portanto, enquanto todo o direito provê a segurança jurídica, somente o Direito
Penal possui a função de mantê-la, através da coerção penal, com o intuito de evitar a incidência de repetidas ações que afetem de maneira intolerável os bens jurídicos penalmente
tutelados, sendo oportuno observar que, muito embora o Estado detenha o poder-dever
de punir, este não pode aplicar as sanções penais de maneira arbitrária.
Desse modo, as condutas consideradas ilícitos penais são tipificadas em lei, denominadas de crimes e contravenções, e, em assim sendo, a cada conduta típica e antijurídica é atribuída uma sanção, uma pena, consistindo esta no instrumento através do qual se
utilizam o Estado e o Direito Penal para garantia da segurança jurídica e da estabilidade
social.
Importante salientar que, no Direito brasileiro, pena e medida de segurança são
espécies de sanções; contudo, por questões de clareza e objetividade, o presente trabalho
restringir-se-á à primeira espécie, cujas observações serão tratadas no item subsequente.
2. Das penas
A primeira ideia associada à pena é a de castigo. Assim o é para o agressor. De outro
modo, para a sociedade em geral, tal sanção é vista como formas de punição e intimidação
do indivíduo que infringiu uma norma, um valor ético e moral, enfim. Por sua vez, para
a vítima, a pena é considerada uma forma de vingança.
2.1 Dos antecedentes históricos
Analisando-se perfunctoriamente os antecedentes históricos, tem-se que, consoante leciona Bitencourt, “a origem da pena, todos recordam, é muito remota, perdendo-se
na noite dos tempos, sendo tão antiga quanto a humanidade. Por isso mesmo é muito
difícil situá-la em suas origens” (2004, p. 3).
Nesse contexto, ainda quando insipiente o Direito Penal, a existência de legislações,
como lei de Talião e Lei das XII Tábuas, cuidavam de regrar a vida em sociedade, prevendo a aplicação de penas proporcionais à ofensa sofrida. Era a chamada vingança privada.
Posteriormente, logo após o surgimento das grandes civilizações, avançando pela
Idade Média e pelo Renascimento, tem-se a chamada vingança pública, cuja origem confunde-se com a própria formação do Estado, detentor do poder e responsável pela segurança e estabilidade sociais.
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Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 2 • Dez/2011
– Ana Paula da Silva Johannsen –
Tanto nessa época quanto “nas civilizações antigas, dada a ideia de castigo que então predominava, a sanção mais frequente aplicada era a morte, e a repressão alcançava
não só o patrimônio, como também os descendentes do infrator” (MIRABETE, 2006, p.
244), sendo que, além de referida sanção, poderiam ser aplicados açoites, castigos corporais, mutilações e desterro, sem que, contudo, houvesse a prisão como pena em referido
período, pois, consoante discorre Bitencourt (2004, p. 3), a prisão era tão somente um
instrumento utilizado como forma de garantir o resultado útil do julgamento a que seria
submetido o delinquente:
A Antiguidade desconheceu totalmente a privação de liberdade estritamente considerada como
sanção penal. Embora seja inegável que o encarceramento de delinquentes existiu desde tempos
imemoráveis, não tinha caráter de pena e repousava em outras razões. Até fins do século XVIII a
prisão serviu somente aos objetivos da contenção e guarda de réus, para preservá-los fisicamente até
o momento de serem julgados ou executados (...). Por isso, a prisão era uma espécie de ante-sala dos
suplícios.
Somente com o fortalecimento da Igreja Católica é que a prisão passou a ser adotada como forma de sanção. Isso porque, para punir os pecadores, a Igreja não poderia aplicar-lhes sanções desumanas, tendo em vista seus princípios humanistas, razão pela qual a
prisão aparecia como a sanção mais adequada a um pecador, a fim de que este, segregado,
refletindo sua errônea conduta e o mal causado, pudesse ser corrigido e reabilitado.
Segundo Miotto (1992 apud CATÃO, 2006), tem-se que:
[...] A Igreja, não admitindo entre as suas penas, a de morte, teve, desde tempos remotos, locais de
recolhimento para quem desejava aperfeiçoar-se, neles se retirando a fim de fazer penitência [...],
eram esses os penitenciários, de cuja evolução resultariam as prisões para cumprimento de pena,
as penitenciárias, denominação essa que foi adotada pela Justiça secular (ou laica) quando adotou a
privação de liberdade, com recolhimento a estabelecimento adequado, como pena.
Se assim o é, sob as influências do cristianismo, do Iluminismo e do capitalismo, o
Estado, em meados do Século XVIII, não comportava mais a condenação à pena de morte
ou a outras penalidades humilhantes como espetáculos de execução, visto que “o cerimonial da pena vai sendo obliterado e passa a ser apenas um novo ato de procedimento ou
de administração” (FOUCAULT, 1993, p. 14).
Assim, em referido período, as finalidades da pena foram alvo de discussão de filósofos e legisladores, os quais passaram a empregar-lhe caráter corretivo e curativo, daí por
que, “rapidamente vai se tornando, a pena de prisão, a forma essencial de castigo, embora
tratada com nomes diversos: detenção, reclusão, encarceramento correicional, trabalhos
forçados” (BARROS, 2001, p. 48), por ser a forma mais eficaz de privar a liberdade, bem
este que passou a ser extremamente enaltecido e valorizado com os ideais iluministas. E,
para o cumprimento dessas penas privativas de liberdade, é que foram construídos presídios e penitenciárias, ambientes nos quais os delinquentes, condenados ou não, eram
confinados sob guarda e vigia da estrutura administrativa, consoante ensina Barros (2001,
p. 49):
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– A SUBSTITUIÇÃO DAS PENAS PRIVATIVAS DE LIBERDADE POR RESTRITIVAS DE DIREITO EM CASOS DE CRIMES DE TRÁFICO DE ENTORPECENTES:
OS DIVERGENTES ENTENDIMENTOS SOB O ENFOQUE DAS FINALIDADES DA PENA E DO DIREITO PENAL –
Com o aparecimento em massa de presídios destinados ao cumprimento da pena, passa a pena privativa
de liberdade a ter conotação corretiva e de reinserção social futura, sanados os defeitos através do
trabalho e da reflexão. Para a obtenção de tais efeitos, nos presídios, seguindo o modelo inglês, a pena
era executada em isolamento, através do qual imaginava-se fosse o condenado descobrir em si a voz
do bem. Pelo trabalho isolado, buscava-se inserir no preso a noção de utilidade (o homem ocupado
não pratica crimes). Ademais, o trabalho permitia o custeio das despesas da prisão e proporcionava
ocupação e aprendizado. A cela destinava-se à reflexão. Propunha-se a submissão do preso como
forma de alcançar a correção moral e ética. [...] É assim, com o surgimento maciço de penitenciárias,
que se observa o aparecimento de uma preocupação efetiva com a execução da pena, que passa a ter
caráter essencialmente preventivo e curativo.
Verifica-se, destarte, que, embora discutível a origem das penas e, inicialmente,
existentes penas humilhantes, perpétuas e capitais, a valorização da pessoa humana, bem
como de bens jurídicos com a liberdade e a igualdade, atreladas a fatores históricos, foram
cruciais para o surgimento da pena de prisão como sanção nos moldes hodiernamente
existentes. Com efeito, tal fato é recente e decorre da finalidade que se busca atingir com
o emprego e cumprimento da pena, o que será tratado no próximo subitem.
2.2 Das finalidades da pena
As finalidades das sanções penais oscilaram e ainda oscilam na medida em que a
sociedade evolui, tendo em vista o contexto e a existência de fatores históricos influenciadores. Infere-se, assim, que, para algumas escolas penais, a pena pode ter caráter retributivo; para outras, porém, preventivo, havendo ainda quem unifique essas duas características.
Proemialmente, traz-se à baila a finalidade retributiva, defendida por teorias absolutas, segundo as quais a pena é um fim em si mesmo, devendo o agente ser punido
porque cometeu o crime, pois “com a aplicação da pena retributiva não se busca alcançar
qualquer fim, mas apenas a realização da justiça, [...] pressuposto de que a pena é a justa
retribuição do fato cometido” (BARROS, 2001, p. 54), visando-se, assim, manter a ordem
e a estabilidade estatais, punindo-se o mal com o mal.
Bitencourt (2004, p. 116) destaca que, além de Kant e Hegel, foram seguidores dessas teorias Francesco Carrara, Karl Binding, Mezger, Welzel e Maurach, porém, alvos de
críticas, as teorias absolutas retributivas não se preocupavam com a figura do delinquente,
tampouco davam ao Estado o fundamento de punir indiscriminadamente, já que a culpa
humana era insuficiente para tanto. Outrossim, insubsistente é a manutenção de tais teorias, visto que “não é mais admissível, em uma época em que todo o poder estatal deriva
do povo, a legitimação de medidas estatais com a ajuda de poderes transcendentais” (ROXIN, 1976, apud BITENCOURT, 2004, p. 120).
Desse modo, em razão da ineficácia das teorias retributivas da pena e tendo em
vista o surgimento da Escola Positiva, na qual “o homem passava a centrar o Direito Penal
como objeto principal de suas conceituações doutrinárias” (MIRABETE, 2008, p. 24), de
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– Ana Paula da Silva Johannsen –
modo que “a pena já não era um castigo, mas uma oportunidade para ressocializar o criminoso, e a segregação deste era um imperativo de proteção à sociedade, tendo em vista
sua periculosidade” (MIRABETE, 2008, p. 24), emergem as teorias relativas ou utilitaristas, segundo as quais a finalidade da pena é a prevenção tanto geral quanto especial, intimidando os membros da sociedade para que não cometam crimes, visando, igualmente,
à ressocialização do delinquente.
Inicialmente, traz-se à análise a prevenção geral, cuja ideia principal repousa na
intimidação. A prática de crimes é ameaçada pela cominação de uma pena, de maneira
que “esperam-se da ameaça e execução da pena a intimidação dos delinquentes potenciais
e, em geral, a estabilização da consciência normativa social” (BARROS, 2001, p. 62).
Segundo Bitencourt (2004, p. 122), essa teoria surgiu com os ideais iluministas,
quando da transição do Estado absoluto para o Estado liberal e foi a que mais se coadunou
com a valorização da pessoa humana, tendo como defensores Benthan, Beccaria, Filangieri, Schopenhauer e Feuerbach.
Entretanto, posteriormente abarcadas pelo Estado capitalista, as teorias preventivas
gerais, assim como as teorias retributivas, não foram suficientes para legitimar a atuação
indiscriminada do ente estatal. As críticas aduzem que a ameaça da imposição da pena
não basta para deter o delinquente na prática do delito, justificando-se a afirmação ante a
existência de criminosos habituais e ausência de garantia de que o homem médio nunca
delinquirá constrangido pela possível aplicação de uma pena. Ademais, em alguns casos,
pode ocorrer que as sanções aplicadas sejam superiores à relevância da conduta praticada,
surgindo a hipótese de que um indivíduo seja sacrificado para que outras pessoas não
venham a delinquir, situação em que a dignidade da pessoa humana pode ser relegada em
detrimento da atuação estatal e da garantia de segurança da sociedade.
Já as teorias da prevenção especial, as quais surgiram quando da intervenção Estatal nos controles de criminalidade, ganhando força principalmente no final da II Guerra
Mundial, visam à imposição da pena, ou melhor, de medidas, diretamente à pessoa do
delinquente, pouco importando os reflexos dessa aplicação ao grupo social.
Acerca do assunto discorre Barros (2001, p. 57):
A prevenção especial tem em vista o indivíduo, refere-se ao delinquente. O aspecto negativo da
prevenção especial consiste na intimidação do agente, na sua inocuização para que não volte a
delinquir. Já o aspecto positivo refere-se à socialização, à reeducação ou à correção. A pena tem o fim
de readaptar o indivíduo à vida social.
Daí por que, como bem sintetiza Bitencourt (2004, p. 129), com a prevenção especial, a pena tem as
finalidades de “intimidação, correção e inocuização”.
Muito embora as teorias da prevenção especial padeçam de algumas críticas, inegável deixar de reconhecer alguns méritos que lhe são atribuídos, mencionando-se, dentre
eles, o fato de a prevenção especial positiva ter sido a semente do tão hodiernamente
propalado “princípio da individualização da pena”, consoante assinala Catão (2006): “A
ressocialização trouxe grandes contribuições à teoria da pena, pois centrou suas atenções
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– A SUBSTITUIÇÃO DAS PENAS PRIVATIVAS DE LIBERDADE POR RESTRITIVAS DE DIREITO EM CASOS DE CRIMES DE TRÁFICO DE ENTORPECENTES:
OS DIVERGENTES ENTENDIMENTOS SOB O ENFOQUE DAS FINALIDADES DA PENA E DO DIREITO PENAL –
no infrator, privilegiando o princípio da individualização da pena, por meio da análise
do perfil do condenado”, razão pela qual dizer-se que a teoria em comento adquiriu um
caráter mais humanista à aplicação da pena do que as teorias da prevenção geral.
Por outro lado, alguns pensadores criticam a prevenção especial por consideraremna ineficaz ao indivíduo que, embora tenha praticado um delito, delinquente não o é,
sendo, pois, desnecessário neste caso falar-se em sua ressocialização. Além do que, para
outros críticos, também essa teoria não se presta a delimitar o poder punitivo do Estado, que poderá aplicar medidas ressocializadoras mesmo contra a vontade do criminoso.
Nesse sentido, como bem assevera Bitencourt (2004, p. 137), “o Estado não tem legitimidade para impor aos cidadãos determinado tipo de valor moral. Violaria a liberdade do
indivíduo de escolher suas próprias crenças ou ideologias, sendo altamente questionável
uma ressocialização no plano moral [...]”, motivo pelo qual a recuperação do criminoso
deve ocorrer com a intervenção mínima estatal.
Ante as deficiências das teorias outrora descritas, advieram as teorias mistas, também descritas de ecléticas ou intermediárias, que, por sua vez, tentam aglutinar as teorias
absolutas (retributivas) e relativas (preventivas), visando a um único conceito para as diversas finalidades da pena.
Parafraseando Bittencourt (2004, p. 142), essas teorias surgiram na Alemanha, no
início do século XX, tendo Merkel como precursor, sendo hoje a opinião mais dominante.
É também a teoria adotada pelo Código Penal brasileiro, em seu artigo 59.
De acordo com Prado (2007 apud QUEIROZ, 2010), tem-se que, segundo ela:
[...] a pena justa é provavelmente aquela que assegura melhores condições de prevenção geral e
especial, enquanto potencialmente compreendida e aceita pelos cidadãos e pelo autor do delito, que
só encontra nela (pena justa) a possibilidade de sua expiação e de reconciliação com a sociedade.
Dessa forma, a retribuição jurídica torna-se um instrumento de prevenção, e a prevenção encontra na
retribuição uma barreira que impede sua degeneração.
Enfim, as teorias unificadoras pautam-se na segurança da sociedade e na proteção
dos seus bens jurídicos, e, ao mesmo tempo, têm na retribuição a finalidade de prevenção,
esta limitada a sanções jurídico-penais que não podem ir além da responsabilidade do
agressor, sob pena de caracterizar-se um Estado de terror, sem limites e sem legitimidade
para tanto.
De fato, como as outras teorias, as unificadoras também são alvos de críticas, porque não suprimem as falhas das demais. Todavia, ainda que não haja um consenso e que
as teorias acerca da finalidade da pena não sejam de todo eficazes, tem-se a considerar
que, apesar disso, a aplicação de penas é a forma mais justa de que dispõe a sociedade de
manter-se segura e de ver resguardados seus bens jurídicos, como também o é a forma
mais coerente de afastar o delinquente, criminoso habitual, a fim de que este “pague”
pelo que fez, na forma de castigo, visada sua ressocialização e reintegração à vida em
sociedade, buscando-se a valorização da pessoa em si, pautando-se em princípios, alguns
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– Ana Paula da Silva Johannsen –
dos quais serão tratados no item 4. Por fim, também se destina a pena a constranger os
indivíduos, a fim de que estes, refletindo sobre seus atos e possíveis consequências, não
venham a delinquir.
2.3 Da classificação das penas
Feitas algumas considerações sobre a origem das penas e observadas as teorias que
fundamentam suas finalidades, oportuno verificar sua classificação no ordenamento jurídico brasileiro, o que será feito com base as espécies previstas no artigo 32 do Código
Penal2, quais sejam, privativas de liberdade, restritivas de direito e multa.
2.3.1 Das penas privativas de liberdade
As penas privativas de liberdade são consideradas comuns e consistem na prisão,
na segregação do indivíduo, podendo ser sob a forma de reclusão, detenção ou prisão
simples (nas contravenções penais), sendo que o estabelecimento prisional adequado
para seu cumprimento dependerá do regime aplicado: aberto, semiaberto e fechado.
Na de condenação a regime inicial fechado, a execução da pena se dá em estabelecimento de segurança máxima ou média, as penitenciárias. Nesse caso, o condenado
fica sujeito a trabalho diurno e isolamento durante o repouso noturno, a fim de evitar
“a permissividade e promiscuidade, típicas de celas abarrotadas de presos, propiciando,
inclusive, associações indevidas e conversações a respeito da prática de crimes” (NUCCI,
2007, p. 270). São submetidos a esse regime inicial os indivíduos condenados à pena de
reclusão superior a 08 (oito) anos, bem como os reincidentes, ressalvada tal obrigatoriedade da lei em razão do disposto na Súmula 269 do STJ, verbis “É admissível a adoção
do regime prisional semiaberto aos reincidentes condenados a pena igual ou inferior a
quatro anos se favoráveis as circunstâncias judiciais”, ressaltando-se que é um ato discricionário do magistrado a imposição do regime inicial fechado em caso de circunstâncias
desfavoráveis ao condenado, consoante reza o art. 593 do CP, devendo ser fundamentada
a decisão em se tratando de pena não superior a 08 (oito) anos.
A construção e a administração dos estabelecimentos prisionais dessa natureza são
incumbência do Poder Executivo e, apesar de suas falhas, seja em decorrência de não ser
assegurado ao preso o mínimo de dignidade em celas superlotadas, ou mesmo diante da
2 BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848, de 07 de dezembro de 1940, com redação dada pela Lei n. 7.209, de 11 de julho
de 1984. Institui o Código Penal. Disponível em: <http//www.planalto.gov.br/legislação>. Acesso em 13 maio 2011.
Também denominado de Código Penal, CP.
3 Art. 59. O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às
circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário
e suficiente para reprovação e prevenção do crime: I - as penas aplicáveis dentre as cominadas; II - a quantidade de pena
aplicável, dentro dos limites previstos; III - o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade; IV - a
substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível.
Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 2 • Dez/2011
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– A SUBSTITUIÇÃO DAS PENAS PRIVATIVAS DE LIBERDADE POR RESTRITIVAS DE DIREITO EM CASOS DE CRIMES DE TRÁFICO DE ENTORPECENTES:
OS DIVERGENTES ENTENDIMENTOS SOB O ENFOQUE DAS FINALIDADES DA PENA E DO DIREITO PENAL –
má remuneração e consequente desestímulo e despreparo dos agentes prisionais, a pena
privativa de liberdade no regime fechado é a ainda a forma mais adequada de garantir à
sociedade um mínimo de segurança diante da existência de criminosos que apresentam
alto grau de periculosidade, já que, como bem assevera Nucci (2007, p. 272), “não há o
que se fazer, a curto ou médio prazo, com determinados tipos de delinquentes” e “não há
que se sustentar a falência da pena privativa de liberdade, mormente no regime fechado,
enquanto não se dispuser de alternativa viável e factível, longe da utopia”.
Tocante ao regime semiaberto, tem-se que é inicialmente aplicado aos condenados
à pena privativa de liberdade maior que 04 (quatro) e não superior a 08 (oito) anos, bem
como a qualquer condenado a pena de detenção e aos sentenciados reincidentes que atendam aos requisitos da Súmula anteriormente descrita, podendo igualmente cumprir pena
neste regime os que obtiveram progressão do fechado para o semiaberto. O cumprimento
da pena se dá em colônias penais agrícolas, industriais ou em estabelecimentos similares, sendo admissível o trabalho externo, como também a frequência a cursos supletivos
profissionalizantes, de instrução de segundo grau ou superior, viabilizadas ainda as saídas
temporárias, para visitas à família, desde que preenchidos alguns requisitos previstos no
art. 1234 da LEP5.
Com efeito, o cumprimento da pena em colônias agrícolas ou industriais tem o
objetivo de reavivar no preso o gosto pela vida, bem como retomá-lo paulatinamente ao
convívio social, tendo em vista exercício de atividades laborais nesses estabelecimentos
e as saídas temporárias. Na prática, porém, tais saídas vêm perdendo seu verdadeiro escopo, visto que muitos presos acabam não passando o tempo de que dispõem com seus
familiares, para sim praticarem outros crimes, ou mesmo empreenderem em fuga.
Insta registrar que, no início do cumprimento da pena, após o trânsito em julgado
da sentença condenatória, para fins de individualização da pena e adequada recuperação
do condenado, este é submetido a um exame criminológico realizado pela Comissão Técnica de Classificação de cada presídio, e “será obrigatório para os que forem submetidos,
pela decisão, ao regime fechado, e facultada para os que estão sujeitos desde o início ao
regime semiaberto” (MIRABETE, 2006, p. 255).
Concernente ao regime aberto, este será inicialmente aplicado aos condenados a
pena igual ou inferior a 04 (quatro) anos e desde que não reincidentes. Baseando-se na
autodisciplina e no senso de responsabilidade do apenado, por tal regime, o indivíduo
poderá, sem vigilância e fora dos estabelecimentos destinados a seu cumprimento – Casas
4 Art. 123. A autorização será concedida por ato motivado do Juiz da execução, ouvidos o Ministério Público e a
administração penitenciária e dependerá da satisfação dos seguintes requisitos: I - comportamento adequado; II cumprimento mínimo de 1/6 (um sexto) da pena, se o condenado for primário, e 1/4 (um quarto), se reincidente; III
- compatibilidade do benefício com os objetivos da pena.
5 BRASIL. Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em: <http//www.planalto.gov.
br/legislação>. Acesso em: 13 maio 2011. Também denominada de LEP.
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Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 2 • Dez/2011
– Ana Paula da Silva Johannsen –
de Albergado e presídios urbanos – trabalhar, frequentar cursos ou exercer outra atividade autorizada, permanecendo recolhido durante o período noturno e nos dias de folga.
O regime aberto visa à reinserção de condenado à vida em sociedade, através da
possibilidade de maior contato com seus familiares, bem como propicia o retorno às atividades laborais, além de afastar o indivíduo do encarceramento e da insalubridade, evitando o risco de contaminação por doenças infecciosas. Por outro lado, tal como a saída
temporária, o regime aberto pode ser a porta de entrada para fugas, ou mesmo prática de
outros crimes.
No Estado de Santa Catarina, por exemplo, poucos municípios contam com a existência de Casas de Albergado, razão pela qual o apenado cumpre o regime aberto em
albergue domiciliar, mediante algumas condições estabelecidas por Portaria, determinada pelo Juiz da respectiva Comarca, consoante se extrai do Enunciado n. 4 do I Fórum
Estadual de Magistrados de Execução Penal em Santa Catarina, “Inexistindo casa do albergado para cumprimento da pena em regime aberto, poderá ser deferido albergue domiciliar”.
Além dos regimes fechado, semiaberto e aberto, o art. 52 da LEP, alterado pela Lei
n. 10.792/20036, passou a prever o regime disciplinar diferenciado, cujo objetivo é o de
combater o crime organizado e limitar a atuação de grupos e quadrilhas nos estabelecimentos prisionais.
Nos termos do dispositivo legal supracitado, o regime em comento, abreviado RDD,
é aplicado quando a prática de crime doloso constitua falta grave ou cause subversão à
disciplina e ordem internas, tendo como características: duração máxima de trezentos e
sessenta dias, podendo ser repetida a sanção em caso de nova falta grave da mesma espécie até o limite de um sexto da pena aplicada; recolhimento a cela individual; restrição de
visitas semanais de duas pessoas, com duração de duas horas; direito a banho de sol até 2
horas diárias; possibilidade de aplicação desse regime tanto a presos provisórios quanto
a condenados, nacionais ou estrangeiros, que apresentem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade ou sobre os quais recaiam fundadas
suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando.
Observados os regimes prisionais previstos no ordenamento jurídico brasileiro,
conveniente mencionar que o Brasil adotou o sistema progressivo para o cumprimento
da pena, segundo o qual, parafraseando Marcão (2010, p. 159-160), passa o condenado do
regime mais severo para o menos severo, caracterizando-se, assim a progressão. “Ocorrendo a ordem inversa, tem-se a regressão”.
6 BRASIL. Lei n. 10.792, de 1º de dezembro de 2003. Altera a Lei no 7.210, de 11 de junho de 1984 - Lei de Execução Penal
e o Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal e dá outras providências. Disponível em:
<www.planalto.gov.br/legislação>. Acesso em: 13 maio 2011.
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231
– A SUBSTITUIÇÃO DAS PENAS PRIVATIVAS DE LIBERDADE POR RESTRITIVAS DE DIREITO EM CASOS DE CRIMES DE TRÁFICO DE ENTORPECENTES:
OS DIVERGENTES ENTENDIMENTOS SOB O ENFOQUE DAS FINALIDADES DA PENA E DO DIREITO PENAL –
Desta feita, nos termos do art. 112 da LEP, a pena privativa de liberdade será executada progressivamente, com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, mediante decisão fundamentada e precedida de manifestação do Ministério
Público e do defensor, desde que o condenado cumpra ao menos um sexto da pena no
regime anterior nos crimes comuns, ou dois quintos, se primário em crimes hediondos ou
equiparados, ou ainda três quintos, se reincidente em crimes de mesma natureza, além do
que esteja comprovado o bom comportamento carcerário, demonstrado este pelo diretor
do estabelecimento. São, pois, os requisitos objetivos e subjetivos.
Por fim, outras penas privativas de liberdade são a detenção e a prisão simples.
Em regra, a primeira segue as mesmas orientações da pena de reclusão, diferenciando-se
desta, contudo, quanto ao regime inicialmente fixado: tão somente aberto ou semiaberto,
sendo, porém, possível o cumprimento da pena de detenção em regime fechado, se ocorrida regressão.
Já as prisões simples, embora igualmente admitam apenas os regimes iniciais aberto e semiaberto, nos termos do art. 6º da Lei de Contravenções Penais7, devem ser cumpridas sem rigor penitenciário, em estabelecimento especial ou seção especial de prisão
comum, de modo que o condenado à pena de prisão simples fique separado dos condenados à pena de reclusão ou de detenção, facultado o exercício do trabalho, se a pena
aplicada não exceder a 15 (quinze) dias.
Observadas as penas privativas de liberdade e suas características, importante mencionar que, nas décadas de 70, 80 e 90 até os dias atuais, referidas penas passaram a ser
alvo de muitas críticas, tendo sua eficácia questionada. Por essa razão, foram realizados
diversos estudos e Congressos, a fim de buscar formas alternativas para as penas privativas de liberdade, fato este que implicou o surgimento das penas restritivas de direito,
conforme se analisa a seguir.
2.3.2 Das penas restritivas de direito
As penas restritivas de direito estão previstas no ordenamento jurídico brasileiro,
seja no Código Penal, seja na legislação esparsa, limitando-se este item a analisar as previstas no artigo 438 do CP, cujo conceito se extrai da obra de Nucci (2007, p. 294):
As penas restritivas de direitos são consideradas alternativas às privativas de liberdade, expressamente
previstas em lei, tendo por fim evitar o encarceramento de determinados criminosos, autores de
infrações penais consideradas mais leves, promovendo-lhes a recuperação através de restrições a
certos direitos.
7 BRASIL. Decreto-Lei n. 3.668, de 03 de outubro de 1941. Institui a Lei de Contravenções Penais. Disponível em: <http//
www.planalto.gov.br/legislação>. Acesso em: 13 maio 2011. Também denominado de LCP.
8 Art. 43. As penas restritivas de direitos são: I - prestação pecuniária; II - perda de bens e valores; III - (VETADO); IV prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas; V - interdição temporária de direitos; VI - limitação de fim
de semana.
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Os fatos que antecederam a discussão acerca da possibilidade de aplicação das penas em comento são trazidos por Dotti (1981 apud MIRABETE, 2006, p. 271):
Diante do reconhecimento universal da crise das penas institucionais, os projetos e códigos dos
anos 70 vêm consagrando a previsão de outras sanções que, embora possam recortar a liberdade
do condenado, não o afastam da comunidade e, consequentemente de participar do processo de
desenvolvimento da sociedade. A prisão é reservada para as espécies mais graves de ilicitude, ou, em
outra hipóteses, quando os antecedentes, a personalidade e a conduta social do agente recomendarem
tal providência.
Por sua vez, nas décadas de 80 e 90, acentuaram-se ainda mais as discussões acerca
das alternativas para as penas de prisão, surgindo, pois, as Regras de Tóquio estabelecidas
no 8º Congresso da ONU, o qual foi realizado em 14 de dezembro de 1990, cujo objetivo
principal era a promoção de medidas alternativas em detrimento das penas privativas de
liberdade.
Com efeito, medidas alternativas são mais abrangentes do que penas alternativas/
restritivas. Enquanto aquelas consistem em alternativas processuais ou penais para evitar
a prisão provisória ou definitiva, estas, como a própria denominação indica, são penas
que impedem a privação de liberdade, motivo pelo qual se restringe o presente trabalho
a referidas penas.
Dentre os objetivos das penas restritivas de direito, destacam-se a redução da
criminalidade e o incentivo do criminoso a retomar o convívio social, como também
a possibilidade de dar-se à justiça maior agilidade, a redução da população carcerária e
consequente diminuição dos custos do sistema penitenciário, além de visar à redução da
reincidência, já que, consoante assevera Jesus (2000, p. 13), no IX Congresso da ONU
sobre Prevenção do Crime e Tratamento do Delinquente, realizado no Cairo, em 1995,
constatou-se, pelas estatísticas que: “a reincidência é maior em relação aos condenados
que cumpriram pena privativa de liberdade; menor, no tocante aos submetidos a medidas
alternativas [...], ou a penas substitutivas ou alternativas [...]”.
Verificados conceito, antecedentes históricos e objetivos, passa-se à classificação
das penas restritivas de direito, podendo estas ser em sentido estrito, as quais restringem
o exercício, a liberdade e a prerrogativa de direito, ou pecuniárias.
Dentre as restritivas de direito em sentido estrito, destacam-se:
a) Prestação de serviços à comunidade: nos termos do art. 46, caput e §§, do CP,
consiste na realização de tarefas atribuídas ao condenado, conforme suas aptidões, em
estabelecimentos e órgãos públicos, como hospitais, escolas, orfanatos, programas comunitários, enfim, fixadas à razão de uma hora de tarefa por dia de condenação, de modo a
não prejudicar a jornada normal de trabalho. É cabível a substituição por essa pena restritiva de direitos, dede que a condenação à privativa de liberdade seja superior a seis meses,
bem como é facultado ao apenado cumprir a pena substitutiva em menor tempo, nunca
inferior à metade da pena privativa de liberdade, se a substituída for superior a um ano.
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– A SUBSTITUIÇÃO DAS PENAS PRIVATIVAS DE LIBERDADE POR RESTRITIVAS DE DIREITO EM CASOS DE CRIMES DE TRÁFICO DE ENTORPECENTES:
OS DIVERGENTES ENTENDIMENTOS SOB O ENFOQUE DAS FINALIDADES DA PENA E DO DIREITO PENAL –
Para Nucci (2007, p. 296), trata-se “da melhor sanção penal substitutiva da pena
privativa de liberdade, pois obriga o autor de crime a reparar o dano causado através do
seu trabalho, reeducando-o, enquanto cumpre pena”.
Na prática, em varas de execução penal, observa-se que tal finalidade, contudo,
não é plenamente atingida. O trabalho social, com o fito de conscientização e ressocialização, quando aplicado como sanção substitutiva, muitas vezes é relegado pelos condenados, que o consideram um encargo difícil de ser cumprido, seja por indisponibilidade
de tempo, incompatibilidade com as atividades laborais ou qualquer outra razão. Muitos
preferem a substituição por penas pecuniárias, para livrar-se o mais breve possível do
cumprimento da pena.
b) Interdição temporária de direitos: consiste na restrição ao exercício de determinada função ou atividade, por um período de tempo – geralmente o da condenação, como
forma de punir o indivíduo pela prática de crime relacionado à atividade restringida ou
proibida.
Consoante leciona Mirabete (2006, p. 276):
Entende-se que essa espécie de sanção atinge fundo os interesses econômicos do condenado sem
acarretar os males representados pelo recolhimento à prisão por curto prazo e que os interditos
sentirão de modo muito mais agudo os efeitos da punição do tipo restritivo ao patrimônio. Ademais,
tem maior significado na prevenção, já que priva o sentenciado da prática de certas atividades sociais
em que se mostrou irresponsável ou perigoso.
Essas medidas alternativas, de certo modo, são coerentes e razoáveis, porque punem o autor da ação com a restrição ou a proibição da atividade que exerce e que foi, de
alguma maneira, violada, a exemplo do que ocorre em alguns crimes de trânsito, nos
quais pode o motorista infrator ter suspensa sua habilitação a veículo automotor.
Para Nucci (2007, p. 335), no entanto, não há “sentido em privar, como medida reeducativa e ressocializadora, alguém de seu trabalho lícito”, visto que, muitas vezes, o autor
do delito não é criminoso em sua essência, pois os delitos sujeitos à substituição da pena
privativa de liberdade por interdição temporária de direitos estão sujeitos à sua prática
por qualquer indivíduo.
O art. 47 do CP elenca as hipóteses de interdição temporária de direitos, quais sejam: proibição do exercício de cargo, função ou atividade pública, bem como de mandato
eletivo; proibição do exercício de profissão, atividade ou ofício que dependam de habilitação especial, de licença ou autorização do poder público; suspensão de autorização ou de
habilitação para dirigir veículo e proibição de frequentar determinados lugares, podendo
ser esta última restrição uma condição para a concessão de outros benefícios.
c) Limitação de final de semana: dispõe o art. 48 do Código Penal que referida pena
consiste na permanência do condenado em casa de albergado ou outro estabelecimento
adequado, aos sábados e domingos, por 5 (cinco) horas diárias, período em que poderão
ser ministrados ao condenado cursos e palestras ou atribuídas atividades educativas.
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Perez (apud MIRABETE, 2006, p. 280) aponta algumas vantagens, como o fato de a
limitação de final de semana, de certa forma, manter afastado o apenado dos presos mais
perigosos, ante a inocorrência de isolamento celular, bem como aproximá-lo dos seus
familiares e permitir o cumprimento da pena, nos finais de semana, sem que interfira nas
atividades profissionais, possibilitando-se, assim, sua reflexão sobre os atos cometidos e
consequentes ressocialização e conscientização.
A crítica, no entanto, reconhece que nem todos os municípios e Comarcas dispõem
de casas de albergado para esse tipo de atividade/pena, além do que, para que sejam ministrados cursos e palestras, é necessária a atuação estatal, o que nem sempre ocorre. Por
tal razão, as finalidades visadas com essa pena restritiva de direitos podem não ser devidamente atingidas.
Observadas as penas restritivas de direito em sentido estrito, citam-se as penas
pecuniárias, que podem ser perda de bens e valores e pecuniárias em si.
a) Perda de bens e valores: consiste no repasse, pelo agente, em favor do Fundo
Penitenciário Nacional, salvo exceções, de valor correspondente ao montante do prejuízo
causado ou do provento por ele obtido pelo agente ou por terceiro, em consequência da
prática do crime. Referida pena encontra-se prevista no § 3º do art. 45 do Código Penal,
como também no art. 5º, XLVI, da Constituição Federal. Para fins de cálculo do montante
a ser pago, “considera-se o prejuízo causado pela infração penal ou o proveito obtido pelo
autor do fato ou terceiro. E se houver diferença entre o prejuízo da vítima e o montante do
proveito obtido pelo sujeito (...), considera-se o maior” (DAMÁSIO, 2010, p. 582).
b) Pecuniária: segundo reza o § 1º do art. 45 do CP, referida pena restritiva de direito consiste no pagamento em dinheiro à vítima, a seus dependentes ou a entidade pública
ou privada com destinação social, de importância fixada pelo juiz, não inferior a 1 (um)
salário mínimo nem superior a 360 (trezentos e sessenta) salários mínimos, que será deduzido do montante de eventual condenação em ação de reparação civil, se coincidentes
os beneficiários.
Acerca dos pontos favoráveis atribuídos às penas dessa natureza, discorre Martins
(2005, p. 91):
O agente, vendo-se compelido a contribuir pecuniariamente, ou mesmo com a entrega de algum tipo
de produto a uma entidade, pode verificar pessoalmente a vantagem que advirá da execução da sua
obrigação. Sentir-se-á de outra parte, não mais estigmatizado, mas tendo a consciência de seu erro,
vendo que as portas da sociedade a ele não se fecharam.
A substituição de uma pena privativa de liberdade por pecuniária não é absoluta.
Demonstrando o apenado que não tem condições de arcar, por falta de condições financeiras, pode requerer ao juízo da execução, órgão competente para apreciar tal pedido,
o parcelamento ou mesmo a substituição por pena de outra natureza, como a doação de
cestas básicas ou mesmo a prestação de serviços à comunidade.
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OS DIVERGENTES ENTENDIMENTOS SOB O ENFOQUE DAS FINALIDADES DA PENA E DO DIREITO PENAL –
2.3.3 Da pena de multa
Outra modalidade de pena prevista no Diploma Legal Penal é a pena de multa, a
qual pode ser aplicada isolada, alternativa ou cumulativamente, neste caso com pena restritiva de direito, em substituição à pena privativa de liberdade.
Consoante dispõem os arts. 49 a 51 da legislação supramencionada, a pena de multa
consiste no pagamento ao fundo penitenciário de quantia fixada na sentença e calculada
em dias-multa, variando de, no mínimo, 10 (dez) e, no máximo, 360 (trezentos e sessenta)
dias-multa, sendo que o valor unitário será fixado pelo juiz, não podendo ser inferior a
um trigésimo do maior salário mínimo mensal vigente ao tempo do fato, nem superior a
5 (cinco) vezes esse salário.
O pagamento da multa deverá ser feito até 10 (dez) dias depois do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, atualizado o valor pelos índices de correção monetária. Assim, transitada em julgado a sentença condenatória, a multa será considerada dívida de valor, aplicando-se-lhes as normas da legislação relativa à dívida ativa da Fazenda
Pública, inclusive no que concerne às causas interruptivas e suspensivas da prescrição.
É admissível ainda o parcelamento do pagamento da multa, a requerimento da
parte, ou, ainda, desconto no vencimento ou salário do condenado se a multa foi aplicada
isoladamente ou de forma cumulada com restritiva de direitos ou, ainda, quando foi concedida a suspensão condicional da pena.
O principal intuito da aplicação da pena de multa é que o indivíduo infrator sinta
em suas finanças as consequências da prática de um crime. Ademais, parafraseando Vasconcelos (2009), outras vantagens apresentadas pela pena de multa são que o condenado
à pena pequena não é levado à prisão, motivo pelo qual não é retirado dos convívios familiar e social, além do que “o Estado não gasta com encarceramento e aufere renda extra”.
Por outro lado, e isso se constata em varas criminais e de execuções penais, o objetivo de penas dessa natureza pode tornar-se inócuo, na medida em que os condenados
– geralmente pessoas de baixa renda – não têm condições de pagar o valor determinado,
ainda que possível o seu parcelamento. Além disso, os condenados mais abastados não se
sentem intimidados com esse tipo de pena, beirando-se, assim, à sensação de impunidade.
3. Da natureza jurídica das penas restritivas de direito
e dos requisitos para sua aplicação
Observadas as penas alternativas previstas no Código Penal brasileiro, para que se possa compreender a possibilidade de sua aplicação nos casos de crimes de tráfico de drogas e
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afins, tipificados na Lei 11.343/20069, necessário se faz traçar breves considerações acerca
da natureza jurídica dessas penas, bem como as condições de admissibilidade para a substituição das privativas de liberdade por restritivas de direito.
Assim, acerca da natureza jurídica, Martins leciona que, “apesar de se constituírem
em penas autônomas, as penas restritivas de direito não estão indicadas junto à definição
do fato delituoso, sendo apenas substitutivas” (2005, p. 29), ou seja, “o juiz, em primeiro
lugar fixa a pena privativa de liberdade. Depois a substitui por uma ou mais alternativas,
se for o caso. Não podem ser aplicadas diretamente, nem cumuladas com as privativas de
liberdade” (DAMÁSIO, 2010, p. 576).
Tem-se que tal substituição, se preenchidos os requisitos necessários, é obrigatória,
e, uma vez descumpridas as penas substitutivas, pode operar-se a conversão para a pena
privativa de liberdade.
Em geral, nos casos das penas de limitação de final de semana, interdição temporária de direitos e prestação de serviços à comunidade, quando de sua aplicação, o magistrado determina o prazo para seu cumprimento igual ao da pena privativa de liberdade
substituída.
Tocante aos requisitos e condições de admissibilidade, tem-se que estão previstos
no artigo 44 do CP, verbis:
Art. 44. As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando:
I - aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido com
violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo;
II - o réu não for reincidente em crime doloso; III - a culpabilidade, os antecedentes, a conduta
social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que
essa substituição seja suficiente.§ 2o Na condenação igual ou inferior a um ano, a substituição pode
ser feita por multa ou por uma pena restritiva de direitos; se superior a um ano, a pena privativa de
liberdade pode ser substituída por uma pena restritiva de direitos e multa ou por duas restritivas de
direitos [...].
Parafraseando Capez (2008, p. 404-405), devem estar preenchidos requisitos objetivos e subjetivos.
São requisitos objetivos a quantidade da pena privativa de liberdade aplicada, a
qual deve ser igual ou inferior a 4 anos, e, quanto à natureza da infração penal, o crime
deve ter sido cometido sem violência ou grave ameaça à pessoa em caso de crime doloso.
Contrario sensu, “no caso de condenação por crime culposo, a substituição será possível,
independentemente da quantidade da pena imposta, não existindo tal requisito [...] mes-
9 BRASIL. Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad;
prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas;
estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras
providências. Disponível em: <http//www.planalto.gov.br/legislação>. Acesso em: 13 maio 2011. Também denominada
Lei Antidrogas.
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OS DIVERGENTES ENTENDIMENTOS SOB O ENFOQUE DAS FINALIDADES DA PENA E DO DIREITO PENAL –
mo quando cometido com emprego de violência” (CAPEZ, 2008, p. 404), visto que a lei
restringe crimes dolosos praticados com emprego de violência e grave ameaça.
Relativamente aos requisitos subjetivos, deve não ser o réu reincidente em crime
doloso e contar com motivos e circunstâncias bastantes para tal possibilidade de substituição, analisando-se a culpabilidade, os antecedentes, a conduta e personalidade do condenado, basicamente, respeitando-se alguns dos requisitos constantes do art. 59, caput,
do CP.
Registre-se que o reincidente pode ser beneficiado com a substituição, visto que a
nova lei vedou o benefício apenas ao reincidente em crime doloso. Assim, se um indivíduo condenado definitivamente pela prática de crime doloso vem a cometer novo crime
dessa natureza, não tem direito à substituição. Se, por outro lado, tiverem decorridos mais
de 5 anos entre a extinção da pena do crime doloso anterior e a prática do novo, poderá o
condenado beneficiar-se da substituição.
Assim, consoante se verificou, as penas restritivas de direito são alternativas a fim
de evitar-se a privação da liberdade do indivíduo, não devendo, pois, ocorrer sua aplicação de forma generalizada e indiscriminada. Destinam-se a infratores primários e ocasionais que praticaram condutas de baixas gravidade e repercussão.
Nessa esteira, leciona Martins (2005, p. 84):
Os critérios que devam ser utilizados para a aferição da que seja mais conveniente, [...] deverão ser
aqueles que motivaram o juiz na confecção do cálculo da pena, atendendo, primordialmente, ao
estudo relativo ao fato da modificação se apresentar satisfatória, tendo-se em mente o mal cometido
E, tanto para aplicação das penas privativas de liberdade quanto para averiguação da possibilidade de substituição destas por alternativas/restritivas, implícitos estão os
princípios da individualização da pena e da proporcionalidade, sobre os quais se tratará
adiante.
4. Dos princípios da individualização da pena e da
proporcionalidade
Dentre os princípios norteadores para a aplicação pena, à presente pesquisa, cujo
cerne reside na verificação da possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos em alguns dos crimes previstos na Lei Antidrogas, ante as
recentes decisões dos tribunais pátrios, o que será tratado no item 5, necessária se faz a
análise dos princípios da individualização da pena e da proporcionalidade, pois são estes
os pilares nos quais se pautam referidas decisões.
Feitas essas considerações, primeiramente, passa-se a analisar o princípio insculpido no art. 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal, qual seja, a individualização da pena,
cujo conceito é trazido por Nucci (2007, p. 30):
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Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 2 • Dez/2011
– Ana Paula da Silva Johannsen –
A individualização da pena tem o significado de eleger a justa e adequada sanção penal, quanto ao
montante, ao perfil e aos efeitos pendentes sobre o sentenciado, tornando-o único e distinto dos
demais infratores, ainda que coautores ou mesmocorréus. Sua finalidade e importância é a fuga da
padronização da pena ‘mecanizada’ ou ‘computadorizada’ aplicação da sanção penal, que prescinda da
figura do juiz, como ser penante, adotando-se em seu lugar qualquer programa ou método que leve à
pena pré-estabelecida, segundo um modelo unificado, empobrecido e, sem dúvida, injusto.
Destarte, a individualização da pena consiste na aplicação de uma sanção proporcional e coerente com a conduta praticada, levando-se em consideração o indivíduo que a
praticou e as circunstâncias que o fizeram agir de tal modo, sem que haja uma padronização na aplicação da pena. Sustenta-se, portanto, na apreciação de exames e circunstâncias
subjetivas relacionadas ao caso concreto, podendo ocorrer em três momentos distintos.
Proemialmente, no plano legislativo, quando da elaboração dos tipos penais, as penas a eles relacionadas oscilam entre um mínimo e um máximo coerente para a punição
da prática delituosa. Em seguida, na fase judicial, o juiz detém o arbítrio e a discricionariedade para aplicar a pena no montante que considerar razoável. Por fim, a individualização da pena se dá na fase de execução, ou seja, durante a fase de cumprimento da pena.
Acerca da aplicação de referido princípio na fase de execução penal, registra Mirabete (2008, p. 48) que “[...] a execução penal não pode ser igual para todos os presos
– justamente porque nem todos são iguais, mas sumamente diferentes – e de que tampouco a execução pode ser homogênea durante todo o período de seu cumprimento”, pois,
“individualizar a pena, na execução, consiste em dar a cada preso as oportunidade e os
elementos necessários para lograr sua reinserção social, posto que é pessoa, ser distinto”.
Por essas razões, quando do cumprimento das penas privativas de liberdade, nos
regimes fechado e semiaberto, por exemplo, a realização do exame criminológico se dá
em atendimento ao princípio da individualização da pena, consoante se verificou no item
2.3.1.
Diante do que se observou, tem-se que a individualização da pena começa na lei
e termina na execução penal. Nesse sentido, Barros (2001, p. 112) lembra que “Ao longo
desse processo, a pena está condicionada aos princípios constitucionais norteadores do
Estado de direito, e só haverá legitimidade onde a pena for necessária e proporcional ao
fato – [...] e se destinar à proteção subsidiária de bens jurídicos”, motivo pelo qual se passa
a estudar o princípio da proporcionalidade, pois é este o limite para a individualização da
pena em relação à conduta criminosa.
E, por proporcional, entende-se o que é harmônico, necessário, adequado. Assim,
o princípio da proporcionalidade consiste na adequação da fixação de penas aos tipos
penais previstos em lei, bem como harmônica aplicação da pena ao caso concreto. As
finalidades da pena – punição/retribuição/justiça – devem ser proporcionais à agressão
realizada contra o bem jurídico tutelado, sopesando-se, para tanto, o real valor de referidos bens, a fim de que a pena não seja fadada ao exagero e à desproporcionalidade.
Com sapiência, Barros (2001, p. 113-114) ensina que:
Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 2 • Dez/2011
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– A SUBSTITUIÇÃO DAS PENAS PRIVATIVAS DE LIBERDADE POR RESTRITIVAS DE DIREITO EM CASOS DE CRIMES DE TRÁFICO DE ENTORPECENTES:
OS DIVERGENTES ENTENDIMENTOS SOB O ENFOQUE DAS FINALIDADES DA PENA E DO DIREITO PENAL –
Num direito penal, que tem por função limitar a violência punitiva, o princípio da proporcionalidade
implica a necessidade de adotar-se alguma forma de adequação entre pena e fato desde a cominação
penal [...]. Como limite à intervenção penal, o princípio da proporcionalidade implica, no âmbito da
medida da pena, que a sua gravidade seja adequada à gravidade da lesão do bem jurídico ocorrida.
A proporcionalidade é a boa face da retribuição, o que dela ainda resta. Vinculada à subsidiariedade
do direito penal, a proporcionalidade pressupõe que o legislador não pode utilizar meios penais
restritivos de direitos que não sejam necessários à proteção de bens jurídicos relevantes.
Diante do que se observou, tem-se que os princípios da individualização da pena e
da proporcionalidade estão intrinsecamente relacionados, sendo este a medida para aquele. Além disso, ambos devem ser ponderados nas fases legislativa, judicial e executiva da
pena.
5. Da Lei n. 11.343/06 e dos entendimentos acerca da
substituição de penas.
Observados os objetivos do Direito Penal e as teorias das finalidades da pena, bem
como os tipos de penas previstos no Código Penal brasileiro, com seus pontos favoráveis
e desfavoráveis, e tratados os princípios da individualização da pena e da proporcionalidade, passa-se ao estudo acerca das discussões que permeiam a possibilidade/impossibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos em casos
de crimes previstos nos arts. 33, caput, e § 1º, e 34 a 3710, da Lei n. 11.343/2006, condutas
tais tipificadas como tráfico de drogas.
10 Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em
depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda
que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão de 5
(cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa. § 1o Nas mesmas
penas incorre quem: I - importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda, oferece, fornece,
tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com
determinação legal ou regulamentar, matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas;
II - semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, de
plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas; III - utiliza local ou bem de qualquer natureza
de que tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize, ainda
que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, para o tráfico ilícito de
drogas [...].
Art. 34. Fabricar, adquirir, utilizar, transportar, oferecer, vender, distribuir, entregar a qualquer título, possuir, guardar
ou fornecer, ainda que gratuitamente, maquinário, aparelho, instrumento ou qualquer objeto destinado à fabricação,
preparação, produção ou transformação de drogas, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou
regulamentar: Pena - reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e pagamento de 1.200 (mil e duzentos) a 2.000 (dois mil)
dias-multa.
Art. 35. Associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes
previstos nos arts. 33, caput e § 1o, e 34 desta Lei: Pena - reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e pagamento de 700
(setecentos) a 1.200 (mil e duzentos) dias-multa. Parágrafo único. Nas mesmas penas do caput deste artigo incorre
quem se associa para a prática reiterada do crime definido no art. 36 desta Lei.
Art. 36. Financiar ou custear a prática de qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1o, e 34 desta Lei: Pena reclusão, de 8 (oito) a 20 (vinte) anos, e pagamento de 1.500 (mil e quinhentos) a 4.000 (quatro mil) dias-multa.
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– Ana Paula da Silva Johannsen –
Primeiramente, impende salientar que a Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006, revogou expressamente as Leis n. 6.368/7611 e n. 10.409/0212, objetivando dispensar ao usuário
um tratamento adequado ao vício de substâncias entorpecentes, estabelecendo diferenciação entre traficantes e dependentes, visando igualmente à prevenção e ao combate ao
tráfico de drogas, através de políticas e instrumentos.
Se assim o é, com vistas a punir de maneira mais rigorosa os condenados por tráfico de drogas, a nova lei, em seu artigo 44, vedou expressamente a concessão do sursis e da
substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, nos crimes previstos
nos seus arts. 33, caput, e § 1º, e 34 a 37, vedação esta que inexistiu até o advento da Lei
11.343/06, daí por que, até então, crimes dessa natureza admitiam propalada substituição,
pois “tratando-se de novatio legis in pejus, a imediata aplicação do óbice à substituição de
pena aos condenados por delitos hediondos configura ofensa ao princípio da legalidade,
previsto no art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal e no art. 1º do Código Penal” (STJ.
HC n. 73.7666/RJ. Rel. Min. Jane Silva, j. em: 25.9.2007).
Todavia, em que pese a vedação outrora apontada, a substituição da pena privativa
de liberdade por restritivas de direitos em crimes de tráfico, como bem lembra Robaldo
(2007), “ganhou um novo componente, ainda que indiretamente, a partir da decisão do
STF que declarou inconstitucional a proibição literal da progressão de regime nos crimes
hediondos e assemelhados, prevista no parágrafo 1º do art. 2º da Lei nº 8.072/90”, através
do HC n.º 82.959/SP13, em 23 de fevereiro de 2006.
Ora, se antes alguns resistiam à substituição de penas em questão, ao argumento de
que crimes de tráfico de drogas são equiparados a hediondos, aplicando-se-lhes, quando
possível, a legislação especial, entendendo que o cumprimento da pena deveria ser integralmente fechado, pois incompatível o emprego de penas alternativas para esses crimes,
com o julgado anteriormente mencionado, o posicionamento dos Tribunais Superiores,
principalmente da Corte Suprema, passou a ser outro, culminando com a edição da Lei n.
11.464/200714, a qual passou a permitir o regime inicial fechado de cumprimento da pena,
Art. 37. Colaborar, como informante, com grupo, organização ou associação destinados à prática de qualquer dos crimes
previstos nos arts. 33, caput e § 1o, e 34 desta Lei: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e pagamento de 300
(trezentos) a 700 (setecentos) dias-multa.
11 BRASIL. Lei n. 6.368/76, de 21 de outubro de 1976. Dispõe sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e
uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica, e dá outras providências.
Disponível em: <http//www.planalto.gov.br/legislação>. Acesso em: 13 maio 2011.
12 BRASIL. Lei n. 10.409, de 11 de janeiro de 2002. Dispõe sobre a prevenção, o tratamento, a fiscalização, o controle e a
repressão à produção, ao uso e ao tráfico ilícitos de produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência
física ou psíquica, assim elencados pelo Ministério da Saúde, e dá outras providências. Disponível em: <http//www.
planalto.gov.br/legislação>. Acesso em: 13 maio 2011.
13 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 82.959. Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 23/02/2006. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/legislação>. Acesso em: 13 maio 2011.
14 BRASIL. Lei n. 11.464, de 28 de março de 2007. Dá nova redação ao art. 2o da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990,
que dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do inciso XLIII do art. 5o da Constituição Federal. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/legislação>. Acesso em: 13 maio 2011.
Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 2 • Dez/2011
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– A SUBSTITUIÇÃO DAS PENAS PRIVATIVAS DE LIBERDADE POR RESTRITIVAS DE DIREITO EM CASOS DE CRIMES DE TRÁFICO DE ENTORPECENTES:
OS DIVERGENTES ENTENDIMENTOS SOB O ENFOQUE DAS FINALIDADES DA PENA E DO DIREITO PENAL –
e, por conseguinte, a progressão de regime aos crimes hediondos e equiparados, levados
em consideração os princípios da individualização da pena e da proporcionalidade.
Via de consequência, relevados os mesmos princípios, estendeu-se tal interpretação
à possibilidade de substituição das penas privativas de liberdade por restritivas de direito
em casos de crimes de tráfico de drogas, em decisão proferida pelo STF, antes mesmo da
edição de mencionada lei, através do HC n. 84.928/MG:
EMENTA: SENTENÇA PENAL. Condenação. Tráfico de entorpecente. Crime hediondo. Pena privativa
de liberdade. Substituição por restritiva de direitos. Admissibilidade. Previsão legal de cumprimento
em regime integralmente fechado. Irrelevância. Distinção entre aplicação e cumprimento de pena. HC
deferido para restabelecimento da sentença de primeiro grau. Interpretação dos arts. 12 e 44 do CP,
e das Leis nos 6.368/76, 8.072/90 e 9.714/98. Precedentes. A previsão legal de regime integralmente
fechado, em caso de crime hediondo, para cumprimento de pena privativa de liberdade, não impede
seja esta substituída por restritiva de direitos (BRASIL. STF. HC n. 84.928/MG. Rel. Min.: Cezar
Peluso. J. em. 27.9.2005).
No mesmo sentido, citam-se o HC n. 93.857/RS15, o HC n. 102.678/MG16 e o HC n.
97.256/RS17, sendo que, por este último, reconheceu a Corte Suprema, de forma incidental, a inconstitucionalidade da parte final do art. 44 da Lei 11.343/2006, assim como da
expressão “vedada a conversão em penas restritivas de direitos”, constante do § 4º do art.
33 do mesmo diploma legal, sob o fundamento de que:
As penas restritivas de direitos são, em essência, uma alternativa aos efeitos certamente traumáticos,
estigmatizantes e onerosos do cárcere. Não é à toa que todas elas são comumente chamadas de penas
alternativas, pois essa é mesmo a sua natureza: constituir-se num substitutivo ao encarceramento e
suas sequelas. E o fato é que a pena privativa de liberdade corporal não é a única a cumprir a função
retributivo-ressocializadora ou restritivo-preventiva da sanção penal. As demais penas também são
vocacionadas para esse geminado papel da retribuição-prevenção-ressocialização, e ninguém melhor
do que o juiz natural da causa para saber, no caso concreto, qual o tipo alternativo de reprimenda
é suficiente para castigar e, ao mesmo tempo, recuperar socialmente o apenado, prevenindo
comportamentos do gênero.
Impende registrar que o entendimento segundo o qual deve preponderar a liberdade em relação à prisão, tendo em vista ser esta uma excepcionalidade, tem se firmado ainda mais no ordenamento jurídico brasileiro, inclusive em decorrência da recém “saída do
forno” Lei nº 12.403/1118, que altera dispositivos do Decreto-Lei 3.689/41 – CPP, relativos
15 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC n. 93.857/RS, Rel. Min. Cezar Peluso, j. em. 28.8.2009. Disponível em: <www.
stf.jus.br>. Acesso em: 13 maio 2011.
16 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC n. 102.678/MG, Rel. Min. Eros Grau, j. em: 9.3.2010. Disponível em: <www.
stf.jus.br>. Acesso em: 13 maio 2011.
17 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC n. 97.256/RS, Rel. do Min. Ayres Britto, j. em: 1.9.2010. Disponível em: <www.
stf.jus.br>. Acesso em: 13 maio 2011.
18 BRASIL. Lei n. 12.403, de 04 de maio de 2011. Altera dispositivos do Decreto-lei n. 3.689, relativos à prisão processual,
fiança, liberdade provisória, demais medidas cautelares e outras providências. Disponível em: <www.planalto.gov.br/
242
Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 2 • Dez/2011
– Ana Paula da Silva Johannsen –
à prisão processual, fiança, liberdade provisória, adotando novas medidas cautelares, a
fim de que a segregação pessoal seja a última das alternativas não só quando da execução
da pena, mas como na fase de instrução processual.
Na mesma seara, considerando a liberdade a regra, e a prisão, a exceção, Gomes
(2010) aduz que, muito embora caiba ao legislador elaborar leis, este, muitas vezes, não
consegue avaliar com magnitude o caso concreto, incumbência então que é entregue ao
magistrado, razão por que critica que, ao criar a Lei Antidrogas, o legislador tenha diferenciado conceitualmente o pequeno do grande traficante, mas não o tenha feito tocante
às cominações legais, o que considera uma afronta ao princípio da isonomia, posicionando-se manifestamente favorável à substituição das penas de segregação por restritivas de
direito.
Por outro lado, com sapiência, Robaldo (2007) salienta que tal substituição deve
dar-se em casos excepcionais, quando estritamente preenchidos requisitos subjetivos e
objetivos descritos no art. 44 do Código Penal, sob pena de as medidas alternativas não
atingirem suas reais finalidades:
A exceção virou regra. Isso se deve ao fato de que muitas decisões judiciais têm considerado apenas
os requisitos relacionados com a quantidade de pena aplicada e a inexistência de violência ou grave
ameaça à pessoa para se fazer a substituição, fazendo-se vistas grossas aos demais requisitos de
admissibilidade, institucionalizando-se, assim, a impunidade. [...] A bússola e o termômetro do juiz,
ao fixar a espécie de pena, sua quantidade e a forma de execução ou não da mesma, estão no art. 59 do
CP, que a doutrina denomina de circunstâncias judiciais. Em se tratando de condenação por tráfico
de drogas ilícitas, ainda que a pena aplicada não seja superior a quatro anos, em face da diretriz da
norma do referido art. 59, dificilmente comporta a substituição por pena alternativa, eis que o grau de
reprovação da conduta do traficante, em especial pelos males causados à sociedade, sobretudo para a
juventude, por si só, já impede ou obstaculariza a substituição.
Nessa esteira, tem entendido o Superior Tribunal de Justiça que, apesar de o STF
ter declarado, incidentalmente, no HC n. 97.256/RS, a inconstitucionalidade do óbice da
substituição de penas privativas por restritivas, tal substituição nem sempre é possível, segundo decidiu no HC n. 191237/MS19, caso em que “não se mostra adequada a conversão
da pena privativa de liberdade em sanções restritivas de direitos, uma vez que a Paciente,
conforme observado na sentença condenatória, não preenche os requisitos previstos no
art. 44, inciso III, do Código Penal”.
E, no Tribunal Catarinense, já decidiu:
PENA. SUBSTITUIÇÃO DA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR RESTRITIVAS DE DIREITOS.
VEDAÇÃO A QUE ALUDE O ART. 44 DA LEI 11.343/06. PROVIDÊNCIA QUE NÃO SE AFIGURA,
ADEMAIS, SUFICIENTE PARA A REPROVAÇÃO E A PREVENÇÃO DO CRIME. DESCABIMENTO.
A SUBSTITUIÇÃO da pena privativa de liberdade por RESTRITIVAS de direitos na hipótese de
legislação>. Acesso em: 15 maio 2011.
19 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC n. 191237/MS, Rel. Min. Laurita Vaz, j. em: 22/03/2011. Disponível em:
<www.stj.jus.br>. Acesso em: 13 maio 2011.
Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 2 • Dez/2011
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– A SUBSTITUIÇÃO DAS PENAS PRIVATIVAS DE LIBERDADE POR RESTRITIVAS DE DIREITO EM CASOS DE CRIMES DE TRÁFICO DE ENTORPECENTES:
OS DIVERGENTES ENTENDIMENTOS SOB O ENFOQUE DAS FINALIDADES DA PENA E DO DIREITO PENAL –
condenação por TRÁFICO ilícito de entorpecentes não é recomendável, por força da vedação a
que alude expressamente o art. 44 da Lei Antidrogas, além de se mostrar insuficiente tanto à sua
reprovação, quanto à sua prevenção. (TJSC. Ap. Cív. n. 2010.077397-7, de Itajaí, Rel. Des. Sérgio
Paladino, j. em: 29/04/2011).
Em arremate, pertinentemente ao tema, Nucci (2007, p. 332) pondera que muitos
dos autores condenados trazem consigo práticas de crimes incompatíveis com a sistemática da substituição das penas privativas por alternativas, penas essas que se destinam
a “autores de crime de baixa gravidade e de mínima repercussão na comunidade, geralmente criminosos primários ou ocasionais”, e pensar que tráfico de entorpecentes é crime
de baixa gravidade ou mínima repercussão é um desrespeito à sociedade, haja vista as
consequências que de referida conduta advêm: violência, homicídios, incitação à prática
de outros delitos, desestabilidade das estruturas familiares, enfim.
Ora, o tráfico de drogas é um chamariz lucrativo, através do qual se vislumbra rápida ascensão, motivo por que muitos indivíduos se tornam traficantes por profissão, não
por falta de opção ou de emprego, mas sim para não ter que se submeterem a trabalhos
honestos, cuja rentabilidade, na maioria das vezes, demora mais a ser atingida. Não se
observa, pois, que, em casos como esses, as penas alternativas tenham caráter ressocializador, porquanto insuficientes à reprovação e prevenção de crimes dessa espécie. E, muito
embora nem mesmo a privação da liberdade consiga recuperar um condenado por crime
dessa natureza, pode ao menos garantir à sociedade a segurança e a sensação de que graves condutas são devidamente punidas, visto que, do contrário, como bem acentua Nucci
(2007, p. 332):
A aplicação ilimitada, sem checar as consequências negativas que penas alternativas inoperantes
e inúteis podem trazer, gera o indesejável sentimento de impunidade. A partir daí, uma das
possibilidades é o fomento da criminalidade, uma vez que parcela da sociedade pode encontrar, na
prática da infração penal, maiores vantagens do que o fiel cumprimento da lei.
Entram, pois, aqui, as finalidades da pena: ela não é só um fim em si mesmo, tampouco a sensação de justiça ou vingança, nem somente a ressocialização e reeducação do
criminoso. A pena é, além disso, a forma de constranger o indivíduo, para que este não
delinque mais, ante a ameaça de uma proporcional punição, bem como também o é a garantia e a segurança de que dispõem o Estado e a sociedade que seus bens jurídicos sejam
devidamente tutelados e resguardados.
Como bem asseverou Foucault (1993, p.79), em suas regras para fundamentar o
poder de punir estatal, “um crime é cometido porque traz vantagens. Se a ideia de crime
fosse ligada a ideia de uma desvantagem um pouco maior, ele deixaria de ser desejável”.
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6. Das considerações finais
Cuidou o presente trabalho de tecer algumas considerações acerca da possibilidade
da substituição das penas privativas de liberdade por restritivas de direito, em casos de
crimes de tráfico ilícito de entorpecentes, sopesando, para tanto, as finalidades do Direito
Penal e das penas, bem como as teorias que fundamentam a aplicação dessas sanções,
esclarecendo ainda as espécies de penas previstas no Código Penal brasileiro.
Assim, preliminarmente, verificou-se que o Direito Penal é a forma de controle
social de que se utiliza o Estado para exercer seu poder-dever, na medida em que, visando à segurança da sociedade e à tutela dos bens jurídicos, tipifica as condutas ilícitas,
cominando-lhes as respectivas e proporcionais penas ou sanções.
Estas, pois, são o instrumento do Direito Penal. Suas origens são tão antigas quanto
a própria história da humanidade e suas finalidades são, em suma, fundamentadas por
três teorias: as retributivas ou absolutas, segundo as quais a pena é um fim em si mesmo e
a realização da justiça; as relativas ou preventivas, preocupadas com a figura do condenado e com a reinserção deste ao convívio social, residindo na teoria preventiva positiva o
gérmen do princípio da individualização da pena; e as unificadoras, as quais pautam-se na
segurança da sociedade e na proteção dos seus bens jurídicos, e, ao mesmo tempo, têm na
retribuição a finalidade de prevenção, bem como visam à ressocialização do condenado.
Observou-se, igualmente, que o Código Penal brasileiro adotou a teoria unificadora, prevendo, como penas, as privativas de liberdade (reclusão, detenção e prisão simples),
as restritivas de direito (prestação de serviços à comunidade, prestação pecuniária, interdição temporária de direitos, limitação de final de semana e perda de bens e valores), e as
penas de multa. Como regimes, para o cumprimento das sanções que privam a liberdade,
referido Diploma Legal elenca o fechado, o semiaberto e o aberto, e, a LEP prevê o regime
disciplinar diferenciado.
Averiguou-se também que, embora possa ser estabelecido o regime inicial fechado
a alguns crimes, é possível a progressão, porquanto adotado no Brasil o sistema progressivo, desde que preenchidos os requisitos subjetivos e objetivos descritos em lei, inclusive
para os casos de prática de crimes hediondos e equiparados, a partir do HC n. 82.959/SP
e da edição da Lei n. 11.464/2007.
Do mesmo modo, estudou-se que é possível a substituição de penas privativas de
liberdade por restritivas de direito e/ou multa, ou conversão destas em outras espécies,
nos termos do artigo 44 do Código Penal, vedada tal viabilidade nos crimes de tráfico de
drogas, descritos nos arts. 33, caput, e § 1º, e 34 a 37, da Lei n. 11.343/2006, consoante
disposto no art. 44 da mesma lei.
Ocorre que, pautados nos princípios da individualização da pena (art. 5º, XLVI, da
CRFB/88) e da proporcionalidade, bem como na máxima de que a liberdade é a regra, e
a prisão, a exceção, os Tribunais Superiores, principalmente o STF, passaram a decidir no
sentido da viabilidade da substituição de penas privativas de liberdade por restritivas de
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– A SUBSTITUIÇÃO DAS PENAS PRIVATIVAS DE LIBERDADE POR RESTRITIVAS DE DIREITO EM CASOS DE CRIMES DE TRÁFICO DE ENTORPECENTES:
OS DIVERGENTES ENTENDIMENTOS SOB O ENFOQUE DAS FINALIDADES DA PENA E DO DIREITO PENAL –
direito em crimes dessa natureza, culminando com a declaração incidental de inconstitucionalidade da parte final do art. 44, bem como de parte do § 4º do art. 33, ambos dispositivos da Lei n.11.343/2006, através do HC n. 97.256/RS.
Mas, diante de toda a pesquisa realizada, e traçando-se um paralelo com a realidade fática observada e vivenciada por esta pesquisadora, tem-se a considerar que a
substituição em comento deve ser aplicada em casos extremamente excepcionais, quando realmente preenchidos os requisitos objetivos e subjetivos previstos em lei, ou seja,
quando a condenação por crime doloso à pena privativa de liberdade não for maior que 4
anos, sem emprego de violência, e quando constatada a primariedade do réu, ponderados
antecedentes, culpabilidade, personalidade e conduta social.
Isso porque a aplicação de medidas alternativas, em substituição às penas privativas
de liberdade, tem como objetivo a ressocialização do condenado, bem como a reprovação
e prevenção da prática criminosa, sendo destinadas a crimes de baixa gravidade e mínima
repercussão.
Nos casos de crimes de tráfico de entorpecentes, muito embora não haja violência
explícita, tal se mostra presente implicitamente, tendo em vista as consequências que de
referida conduta advêm, como homicídios, incitação à prática de outros delitos, desestabilidade das estruturas familiares, enfim. Ademais, muitos indivíduos veem no tráfico uma
profissão, porquanto rapidamente lucrativa. Não se vislumbra que, nesses casos, medidas
alternativas como prestação de serviços à comunidade ou prestação pecuniária possam
conscientizar e recuperar os condenados na sua integralidade, haja vista que, consoante
se mencionou no corpo deste trabalho, até para os crimes de pequena repercussão e baixa
gravidade essas penas não são de todo eficazes.
Obviamente que nem mesmo as penas privativas de liberdade atingem tal escopo
em casos de crimes de grande clamor, como o é o tráfico de entorpecentes, porém, a prisão é ainda a forma que mais se coaduna com as finalidades da pena definidas hodiernamente no Código.
Conforme se observou, a pena não é só um fim em si mesmo, tampouco só a sensação de justiça ou de vingança, nem somente a ressocialização e reeducação do criminoso.
A pena é, além disso, a forma de constranger o indivíduo, para que este não delinque
mais, ante a ameaça de uma proporcional punição, bem como também o é a garantia
e a segurança de que dispõem o Estado e a sociedade de que seus bens jurídicos sejam
devidamente tutelados e resguardados, e possibilitar a substituição de penas privativas
de liberdade por restritivas de direito nos crimes de tráfico de entorpecentes de maneira
indiscriminada pode gerar a indesejável sensação de impunidade e, consequentemente, a
falsa impressão de que cometer um crime compensa mais do que a sanção que pode vir
a ser aplicada.
246
Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 2 • Dez/2011
– Ana Paula da Silva Johannsen –
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repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá
Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 2 • Dez/2011
247
– A SUBSTITUIÇÃO DAS PENAS PRIVATIVAS DE LIBERDADE POR RESTRITIVAS DE DIREITO EM CASOS DE CRIMES DE TRÁFICO DE ENTORPECENTES:
OS DIVERGENTES ENTENDIMENTOS SOB O ENFOQUE DAS FINALIDADES DA PENA E DO DIREITO PENAL –
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Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 2 • Dez/2011
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Direito Administrativo
OS CARTORÁRIOS DEVEM SER EQUIPARADOS AOS
SERVIDORES PÚBLICOS?
Should notary be treated as public servants?
Joice Dutra 1
Resumo: Os notários e oficiais de registro, historicamente, sempre usufruíram de
certos privilégios negados à maior parte da população brasileira. A Constituição Federal de 1988, estabelecendo, por exemplo, a necessidade de concurso público para
prover as vagas em cartórios extrajudiciais, tentou impedir que os antigos costumes
continuassem sendo aplicados à classe cartorária e, com isso, implantar mais seriedade à entrada e à saída dos profissionais da atividade. O que ainda não se efetivou,
contudo, foi a equiparação dos notários e oficiais de registro aos servidores públicos.
A finalidade deste trabalho é mostrar que tal igualdade é desejável, uma vez que
ambas as classes efetuam trabalho de forte interesse social e, quanto mais elas se
confundem, mais consolidada se torna a aplicação dos princípios constitucionais da
Administração Pública aos cartorários, moldando-lhes conforme as necessidades do
atual Estado Democrático de Direito brasileiro. Para a construção do presente estudo, foi utilizado o método indutivo e a temática foi desenvolvida por meio da técnica
da documentação indireta, com pesquisa bibliográfica e jurisprudencial.
Palavras-Chave: Cartorários. Servidores públicos. Notários. Oficiais de registro. Democracia. Moralidade. Impessoalidade.
Abstract: The notaries, historically, always had some privileges denied to the
largest part of the Brazilian population. The Federal Constitution of 1988, preceded by
the Notaries Law, establishing, for example, the need of public contest to provide the
vacancies in registries, tried to prevent that the old habits continue to be applied to the
notaries and, with that, implant more seriousness to the entrance and to the exit o the
professionals. What still do not effected, however, was the equality between notaries
and civil servants. The purpose of this work is to show that such equality is desirable,
since both the classes make work of strong social interest and, the more they are
equalized, more consolidated becomes the application of the constitutional principles
1 Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Pós-graduanda em Direito Constitucional pela
Universidade Anhanguera - Uniderp. Técnica judiciária auxiliar no Tribunal de Justiça de Santa Catarina.
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253
– OS CARTORÁRIOS DEVEM SER EQUIPARADOS AOS SERVIDORES PÚBLICOS –
of the Public Administration to notaries, moulding them as the needs of the current
Brazilian State. For the present study construction, it was used the inductive method
and the thematic was developed through the technique of the indirect documentation,
with bibliographical and jurisprudencial research.
Keywords: Public notaries. Civil servants. Notaries. Official of record. Democracy.
Morality. Impersonality.
INTRODUÇÃO
As atividades praticadas pelos notários e pelos oficiais de registro, não obstante
permeiem o meio social de forma um tanto sutil e sem o reconhecimento a que fazem jus
pela sua inegável relevância, mostram-se essenciais, dentre outros aspectos, na formação
da segurança jurídica, na manutenção da propriedade privada e no respeito à manifestação de vontades individuais.
Apesar da vasta existência de uma categoria profissional dedicada ao registro de
documentos e de fatos importantes e ao domínio da fé pública, que remonta, no Brasil,
à época em que os portugueses aqui aplicavam suas ordenações, apenas a Constituição
Federal de 1988 dedicou-se efetivamente ao regramento geral das atividades em cartórios
extrajudiciais, atribuindo à legislação infraconstitucional a estipulação de mais detalhes a
respeito do serviço notarial e registral.
Não obstante tenha se desenvolvido, no Brasil, uma legislação de notas e registro
satisfatória para o atendimento dos anseios sociais imediatos, muitos aspectos referentes
ao tratamento legal oferecido à classe cartorária ainda causam discussões doutrinárias e
jurisprudenciais. De fato, as polêmicas começam quando se percebe que a Constituição
Federal, ao mesmo tempo em que optou pela proclamação do caráter privado da atividade
cartorária, a ser delegada pelo Poder Público, elegeu o concurso público como forma de
preenchimento das vagas em titularidades de cartórios extrajudiciais, aproximando os
cartorários do regime atribuído aos servidores públicos.
Tampouco a Lei n. 8.935/1994, promulgada para reger a atividade de notas e registros, mostrou-se apta a determinar a natureza jurídica dos notários e oficiais de registro.
Em que pese haver discussões a respeito da natureza jurídica dos cartorários, a
sua equiparação aos servidores públicos é desejável na medida em que traria uma maior
moralização da classe. Com efeito, não há motivos para que se distingam os notários e
registradores dos servidores públicos, haja vista ambas as classes praticarem atividade de
interesse público, auxiliarem na organização do meio social e servirem de instrumento
para que o Estado efetive os seus objetivos.
O que se pretende no presente estudo, portanto, é a busca por justificativas que
assemelhem os cartorários aos servidores públicos, sendo necessário, para tanto, a verificação dos conceitos que rodeiam cada uma das classes profissionais e das funções por
elas exercidas.
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Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 2 • Dez/2011
– Joice Dutra –
1. Conceito geral e importância das atividades notariais
e de registro
A necessidade humana de composição de registros para proteger e dar publicidade
às propriedades, por exemplo, ou de se dar maior confiabilidade e segurança aos acertos
feitos entre particulares, através de agente capaz de proceder a tais registros e a conferir tal
legitimidade, sempre acompanhou o desenvolvimento das sociedades.
No Brasil, porém, os serviços voltados a esses fins, durante longo período, apenas
seguiram a tendência ofertada especialmente pelas ordenações portuguesas, mantendo-se
à margem das preocupações e das atividades legislativas e jurídicas.
Leonardo Brandelli afirmou que
o primeiro tabelião a pisar em solo brasileiro, porém, foi Pero Vaz de Caminha, português, que narrou
e documentou minuciosamente a descoberta do Brasil e a posse da terra, com todos os seus atos
oficiais, traduzindo-se no único documento oficial da descoberta do Brasil.
[...]
Como já vimos, ao tempo do Brasil colônia, o direito português emanava quase todo de ordenações
editadas pelo rei. Sendo pois o Brasil colônia de Portugal, as ordenações que lá vigiam passaram a
viger aqui também, transformando-se na principal fonte do direito no Brasil, onde tiveram vigência
por longo período, chegando as Ordenações Filipinas a serem aplicadas até o início do século XX.
[...]
Tais ordenações dispunham sobre o modo e a forma que deveriam os tabeliães lavrar as escrituras
e testamentos, rezando: ‘Escreverão em hum livro, que cada hum para isso terá, todas as Notas dos
contractos, que fizerem. E como foram scriptas, logo as leam perante as partes e testemunhas, as quaes
ao menos serão duas. E tanto que as partes outorgarem, assinarão ellas e as testemunhas. E se cada
huma das partes não souber assinar, assinará por ella huma pessoa, ou outra testemunha, que seja
além das duas, fazendo menção, como assina pela parte, ou partes, por quanto ellas não sabem assinar.
E se em lendo a dita Nota, for emendada, accrescentada por entrelinha, mingoada, ou riscada alguma
cousa, o Tabellião fará de tudo menção no fim da dita Nota, antes das partes e testemunhas assinarem,
de maneira que depois não possa sobre isso haver dúvida alguma’. ‘E nas scripturas, que fizerem,
ponham sempre juntamente o dia, mez e anno do Nascimento de Nosso Senhor JESU CHRISTO, e
não separado, como até aqui se fazia, e a Cidade, Villa, ou lugar e casa, em que se fizerem, e assi os
seus nomes delles Tabelliães, que as fazem’.
O Rei era quem nomeava os Tabeliães, consoante esclareciam as ordenações: ‘Crear de novo
Tabelliados a Nós sómente pertence, e não a outrem; por tanto defendemos, que pessoa alguma, de
qualquer dignidade, stado e condição que seja, não faça de novo Tabellião algum, assi das Notas,
como do Judicial, na terra, ou terras, que de Nós tiver’ (1998, p. 45-47, grifo no original).
Antes da formulação da vigente Constituição da República Federativa do Brasil de
1988, chamada de Constituição Federal, os serviços notariais e registrais foram aparentemente desprezados pelo Poder Legislativo, que seria o responsável por regulamentá-los.
A despeito disso, tais atividades se desenvolveram e foram adquirindo cada vez mais autonomia e importância social.
Num contexto de infindável evolução, destarte, se tornou inevitável o surgimento
de dificuldades e de controvérsias na busca por um desenvolvimento mais acertado e
Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 2 • Dez/2011
255
– OS CARTORÁRIOS DEVEM SER EQUIPARADOS AOS SERVIDORES PÚBLICOS –
justo das atividades notariais e registrais. Exemplificando tal fato, há a hereditariedade
como a tão criticada forma utilizada, tempos atrás, para a transmissão dos cartórios,
uma vez vacante o posto de seu titular. Ocorria, assim, o repasse do serviço de pai para
filho, mesmo que este não estivesse intelectualmente preparado para tanto (BENÍCIO,
2005, p. 46-47).
Com efeito, considerando a inexistência de lei a regulamentar de maneira adequada a forma de preenchimento das vagas de titularidade dos cartórios extrajudiciais, não se
podia evitar que as famílias mantivessem seus cartórios como fonte de renda e de sustento
para todas as gerações vindouras.
As controvérsias que foram cercando as atividades notariais e de registro resultaram no constante aumento da necessidade de se criar normas jurídicas aptas a regulamentar com maior exatidão um serviço que se mostrou tão importante para a manutenção da
ordem social e até mesmo da propriedade privada e da liberdade contratual.
Nesse sentido, já afirmou Cláudio Martins, citado por Leonardo Brandelli, que
a ‘regra de boa política democrática terá que ser sempre a valorização da profissão’ (notarial) ‘como
atividade autônoma, vinculada à relação jurídica negocial. O meio para atingir objetivo tão justo
seria regulamentá-la por intermédio de lei orgânica que, dentre outras providências, estabelecesse
um critério seletivo, amparado na formação jurídica obrigatória, semelhante à do juiz ou advogado, e
idoneidade profissional’ (1998, p. 51).
Tendo em vista o surgimento desse premente anseio de se dar contornos bem delimitados às atividades notariais e registrais, tanto em relação ao seu exercício como à
sua localização no âmbito do Poder Judiciário e do serviço público, a atual Constituição
Federal dedicou um artigo específico para os profissionais da área, qual seja, o artigo 236,
mencionando que mais aprimorada regulamentação apenas viria com a promulgação de
uma nova lei.
E assim foi feito. Em 1994, os legisladores criaram a Lei n. 8.935, a Lei Orgânica dos
Notários e Registradores, também intitulada de Lei dos Cartórios, retirando a profissão
notarial e registral do obscurantismo a que antes havia sido submetida.
Somente com a formulação de normas referentes ao assunto é que se pôde chegar
a conceitos e doutrinamentos mais detalhados a respeito das atividades notariais e de
registro. Mesmo porque a própria Lei dos Cartórios, em seus artigos iniciais, expõe os
conceitos dos serviços e dos profissionais aos quais se dedica, assim se manifestando em
seu artigo 1º: “serviços notariais e de registro são os de organização técnica e administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos
jurídicos”.
As atividades notariais e de registro, dessa forma, reconhecidas genericamente
como serviço, podem ser conceituadas como o trabalho, organizado técnica e administrativamente, desenvolvido sob as ordens de um delegatário do Poder Público habilitado
e provido de fé pública para cumprimento de suas tarefas. A função notarial e registral,
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– Joice Dutra –
outrossim, caracteriza-se por sua natureza cautelar e preventiva de conflitos, situando-se
na área de realização espontânea do direito (ORLANDI NETO, 2004, p. 13-14).
A fé pública dos profissionais que atuam nessa área, relacionada com a condição
de serem profissionais do direito, afirma a certeza e a verdade dos assentamentos que
pratiquem e das certidões que expeçam nessa situação. A fé pública corresponde, nesse
sentido, à confiança atribuída por lei ao que os notários e registradores façam ou declarem, no exercício de suas funções, com presunção de verdade, afirmando a eficácia do
negócio jurídico ajustado com base no que foi declarado ou praticado pelos cartorários
(CENEVIVA, 2000, p. 30).
Pode-se afirmar que o âmago da prática notarial e registral é o caráter decisório
ou prudencial, havendo a necessidade de se conceder, a seus profissionais, liberdade, ou
melhor, independência jurídica. Sendo este um pressuposto para o correto andamento
da atividade, entende-se também que uma independência técnica, correspondente a uma
elevada qualificação, sem a qual resta derrocada até mesmo a fé pública de que devem
usufruir os cartorários, mostra-se essencial para o exercício de um juízo consciente e imparcial dos títulos e das situações apresentadas (RICHTER, 2004, p. 192-194).
Dessa forma, qualquer abalo que porventura venha a sobrepujar-se sobre a independência técnico-institucional dos praticantes dos serviços notariais e de registro colocará em risco os valores que sustentam o Estado Democrático de Direito brasileiro, considerando que os princípios constitucionais da autonomia da vontade e da propriedade
privada servem de amparo à aferição da segurança jurídica aos profissionais cartorários.
Justamente por isso, na defesa da ordem justa e dos valores que emanam da Constituição
Federal para a manutenção de uma sociedade livre e organizada juridicamente, o artigo
28 da Lei dos Cartórios preceitua que “os notários e oficiais de registro gozam de independência no exercício de suas atribuições, têm direito à percepção dos emolumentos
integrais pelos atos praticados na serventia e só perderão a delegação nas hipóteses previstas em lei”.
A independência técnico-institucional acima indicada compreende um conjunto
de liberdades essenciais que moldam as atividades de notas e registros, em meio às quais
se encontra a liberdade de juízo. Participantes do conceito desta, é possível indicar três
importantes elementos, responsáveis por caracterizar de forma especial os serviços cartorários: a autonomia financeira, a liberdade para administração dos serviços e a liberdade
de contratação.
É relevante evidenciar que, naturalmente, a base de todas as liberdades de que gozam os notários e os registradores é a responsabilidade, cuja avocação, para o exercício de
uma atividade de forte função social, abrange a ética profissional e dá ensejo à cobrança
de valores indenizatórios em caso de efetivo dano.
Tal responsabilidade se expande para além dos serviços exercidos dentro dos próprios cartórios e torna os seus titulares, dependendo da função profissional que exercem,
verdadeiros fiscalizadores tributários, sem que o Estado tenha que despender qualquer
Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 2 • Dez/2011
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– OS CARTORÁRIOS DEVEM SER EQUIPARADOS AOS SERVIDORES PÚBLICOS –
quantia para a efetivação desse papel que a ele tanto beneficia. Nessa senda, para exemplificar a função fiscal mencionada, pode-se dizer que ninguém compra ou vende um imóvel
sem que esta transação seja imediatamente informada à Receita Federal, seja pelo notário
ou pelo registrador, para se verificar a compatibilidade das declarações de renda com o
patrimônio; além disso, nenhuma escritura é lavrada se não for apresentada a certidão
de regularidade com o imposto predial e territorial urbano (IPTU), além do pagamento
do imposto sobre transmissão de bens imóveis (ITBI); e nenhuma construção é averbada
sem a comprovação do recolhimento das contribuições previdenciárias dos operários que
trabalharam na respectiva obra com a apresentação, no registro de imóveis, da certidão
negativa de débitos (CND) do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
É de se ressaltar, também, que, graças aos registradores civis, que informam gratuitamente ao INSS todos os óbitos ocorridos no mês, o sistema previdenciário brasileiro
economiza milhões de reais com a suspensão imediata do pagamento de benefícios que,
sem esta informação, continuariam a ser pagos indevidamente.
Toda essa tarefa de ajuda ao serviço de fiscalização, que competiria ao Estado, é
efetuada de forma gratuita para o Ente Público, que faz grande economia por prescindir
de milhares de fiscais tributários para os mesmos fins.
Acrescente-se que, além de funcionarem como fiscais do Poder Público, os tabeliães ainda se tornam, nesta atividade, devedores solidários dos tributos que eventualmente
deixam de fiscalizar ao momento do recolhimento. Além de contar com o serviço gratuito
destes profissionais, portanto, as Fazendas Públicas ainda multiplicam sua capacidade de
arrecadação, com fundamento na responsabilidade dos notários ou dos oficiais de registro.
Não obstante as duas atividades, tanto a notarial quanto a de registro, terem por
objetivo garantir ou dar eficácia a negócios jurídicos, os deveres profissionais dos notários
são diferentes daqueles aplicáveis aos registradores. Por isso, é necessário, na busca por
um melhor entendimento a respeito dos elementos conceituais que recobrem o tema aqui
apresentado, estabelecer conceitos isolados para o serviço notarial e para o de registro.
O serviço notarial, prestado pessoalmente por notários ou tabeliães, é a atividade,
autorizada por lei, de redigir, formalizar e autenticar, com fé pública, instrumentos que,
constituídos por meio de atos jurídicos extrajudiciais, representam a vontade dos solicitantes ou particulares que a eles deram surgimento. O serviço notarial, pois, fornece
legalidade à vontade declarada por particulares, permitindo que esta, nos exatos termos e
limites nos quais foi expressa, produza os desejados efeitos jurídicos (CENEVIVA, 2000,
p. 22).
Julenildo Nunes Vasconcelos e Antônio Augusto Rodrigues Cruz, em sua obra sobre o direito notarial, anotaram que
a atuação notarial tem um desenvolvimento na fase da normalização das relações jurídicas entre os
particulares, formando um direito que tem como regra proteger, através de sua função legitimadora, o
exercício desse mesmo direito, excluindo de forma extrínseca as relações manifestamente contenciosas
(2000, p. 21).
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– Joice Dutra –
Para Leonardo Brandelli,
a função notarial está voltada a dar uma intervenção e, via de regra, também uma documentação,
especial, pública, privilegiada, aos atos e contratos, aos negócios jurídicos, dando-lhes mais qualidade
e tornando-os críveis, forçosamente, o que traz vantagens e soluções óbvias (1998, p. 128).
Já o serviço de registro é a atividade que, destinada a fornecer publicidade aos atos
da vida civil, favorecendo sua oponibilidade a terceiros, procede ao assentamento de títulos de interesse privado ou público. Através dele, a segurança, a autenticidade e a eficácia
de tais atos são asseguradas (CENEVIVA, 2000, p. 23).
O ato jurídico ao qual o oficial de registro oferece segurança, publicidade e autenticidade, referido no artigo 1º da Lei n. 8.935/1994, é a ação voluntária da pessoa natural
ou jurídica apta a produzir efeitos de direito. Walter Ceneviva ainda menciona que “a
atividade registrária também assenta fatos jurídicos, ou seja, eventos humanos naturais
capazes de produzir efeitos jurídicos, como acontece, por exemplo, com o nascimento e a
morte” (2000, p. 27, grifo do autor).
Diante das disposições acima expostas, infere-se que as atividades notariais e de
registro primam por uma importante função social, haja vista oferecerem certeza e segurança jurídicas, autenticidade, eficácia e publicidade a fatos e atos desenvolvidos no seio
da sociedade, além de fornecerem tutela pública preventiva e extrajudicial a interesses
privados.
A segurança jurídica, como consequência do exercício dos serviços notariais e registrais, apresenta duas faces: a da certeza quanto ao ato e de sua eficácia e, quando o ato
não corresponde à garantia, a da certeza de que o patrimônio prejudicado será devidamente recomposto.
É importante acrescentar que as funções em questão devem ser exercidas a rogo de
quem delas se beneficiará, não podendo o notário e o registrador dar prosseguimento a
elas por iniciativa própria.
Colocando-se em âmbito exterior ao Poder Judiciário, tais atividades não possuem
qualquer sujeição hierárquica a ele. Ao contrário, apresentam-se, muitas vezes, como recurso de legalização de instrumentos particulares, adequando-os às disposições do ordenamento jurídico nacional, e como método substituto à tradicional lide judicial, como
ocorre com a partilha, o inventário e o divórcio consensuais feitos em cartório, regulados
pela Lei n. 11.441/2007.
Com efeito, a defesa de um direito subjetivo por meio de processo judicial é via excepcional, devendo ser buscada apenas quando não houver quaisquer outros meios mais
céleres e menos dispendiosos para o alcance da efetivação do direito alegado.
Nesse sentido, manifesta-se Hercules Alexandre da Costa Benício:
o cidadão deve ser liberado da tutela judiciária e procurar o meio mais prático e rápido de, na ausência
de conflito, consolidar o negócio jurídico ou alterar a situação de estado, nos casos de separação e
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– OS CARTORÁRIOS DEVEM SER EQUIPARADOS AOS SERVIDORES PÚBLICOS –
divórcio, compra e venda de imóvel ou mero partilhamento de bens em que as partes são civilmente
capazes e dispensam a intervenção estatal (2005, p. 39).
1.1 Especializações das atividades notariais e de registro
De acordo com o artigo 3º da Lei dos Cartórios, “notário, ou tabelião, e oficial de
registro, ou registrador, são profissionais do direito, dotados de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial e de registro”.
É perfeitamente verificável que a legislação diferencia apenas notários de registradores, dando a estes o sinônimo de oficiais de registro e, àqueles, o de tabeliães.
Os notários e registradores são titulares de serventias não oficializadas, ou seja, de
serventias não pertencentes ao Estado, uma vez que se constituem em profissionais cujos
atos, atribuídos por lei, são remunerados por pessoas naturais ou jurídicas (as partes interessadas em utilizar os serviços cartorários) e não pelo Ente Estatal.
Vale mencionar que a remuneração dos serviços notariais e de registro ocorre através de custas e emolumentos, conforme regimento editado pelo Poder Público. No entanto, partes dos valores arrecadados, por força de regulação legal, são repassadas ao erário.
Consoante o artigo 4º da Lei dos Cartórios, os serviços notariais e de registro devem ser prestados de modo eficiente e adequado, em dias e horários estabelecidos pelo
juízo competente, atendidas as peculiaridades locais, em local de fácil acesso ao público e
que ofereça segurança para o arquivamento de livros e documentos. O dispositivo deixa
evidente a obrigação dos profissionais cartorários em proporcionar, com presteza e solicitude, o cumprimento de sua missão, nos termos da lei, observadas as características de
cada especialização profissional da área.
Cada serviço notarial ou registral é especificado pela natureza da função desempenhada, conforme o artigo 5º da Lei dos Cartórios, ou pela área territorial em que o
delegatário pode exercer os atos entregues à sua competência.
O artigo 5º da Lei dos Cartórios é o dispositivo responsável por listar os diferentes
tipos de titulares de serviços notariais e registrais, construindo uma relação de todas as
possibilidades de especialização no ambiente cartorário. Assim ele se manifesta:
Art. 5º - Os titulares de serviços notariais e de registro são os:
I - tabeliães de notas;
II - tabeliães e oficiais de registro de contratos marítimos;
III - tabeliães de protesto de títulos;
IV - oficiais de registro de imóveis;
V - oficiais de registro de títulos e documentos e civis das pessoas jurídicas;
VI - oficiais de registro civis das pessoas naturais e de interdições e tutelas;
VII - oficiais de registro de distribuição.
Informa Walter Ceneviva que
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– Joice Dutra –
o art. 5º adota nomenclatura diversificada para designar os titulares dos serviços: tabeliães de notas,
tabeliães de protestos e oficiais de registros. O art. 6º acrescenta, ainda, notários. São dois tabeliães
(notas e protestos), um tabelião e oficial (contratos marítimos) e quatro oficiais (imóveis, títulos e
documentos, registro civil e distribuidores).
[...]
Depois de assim designar os titulares da delegação, a lei especifica amplamente as atribuições de
notários e tabeliães, mas não faz o mesmo quanto aos demais titulares nela referidos, o que remete
o intérprete a outras leis, como o Código Comercial (para as questões marítimas) e a dos Registros
Públicos (2000, p. 38).
A fim de se dar uma noção geral e sintética a respeito dos serviços atribuídos a cada
especialização cartorária, convém apresentar conceitos e explicações a respeito de cada
modalidade de cartório extrajudicial.
1.1.1 Tabeliães de notas
Os tabeliães de notas tiveram seus serviços regulados pelos artigos 6º e 7º da Lei
dos Cartórios. Distinguindo-se dos tabeliães de contratos marítimos e dos tabeliães de
protestos, compete-lhes formalizar juridicamente a vontade das partes nas escrituras, ou
seja, em documentos de contrato autênticos e válidos publicamente; intervir nos atos e
negócios jurídicos a que as partes devam ou queiram dar forma legal ou autenticidade,
autorizando a redação ou redigindo os instrumentos adequados, conservando os originais e expedindo cópias fidedignas de seu conteúdo; autenticar fatos; lavrar testamentos,
escrituras e procurações públicas; autenticar atos pela ata notarial; reconhecer firmas; e
autenticar cópias.
A escritura pública, um dos principais instrumentos a ser elaborado pelo tabelião
de notas, é dotado de fé pública para que produza os necessários efeitos na manutenção
dos interesses das partes. Tal documento deve obedecer às exigências da Lei n. 6.015/1973,
identificada como a Lei de Registros Públicos.
A lavratura de atas notariais é feita a partir de um relato genérico, garantido pela
fidelidade na narrativa dos eventos. Aos tabeliães cabe a obrigação de serem neutros e
rigorosos quanto à vinculação à verdade. Embora devam reproduzir fielmente as declarações pronunciadas pelas partes, a eles é permitido orientá-las a respeito do que pretendem
que conste na ata (CENEVIVA, 2000, p. 50).
Nem todo ato ou contrato, contudo, precisa passar por uma intervenção notarial,
conforme estipulado em lei. O artigo 108 do Código Civil afirma que podem carecer de
escritura pública os negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor que não exceda a trinta vezes o
salário mínimo vigente.
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– OS CARTORÁRIOS DEVEM SER EQUIPARADOS AOS SERVIDORES PÚBLICOS –
1.1.2 Tabeliães e oficiais de registro de contratos marítimos
Os tabeliães e oficiais de registro de contratos marítimos limitam-se aos negócios
relacionados com o comércio marítimo, subordinando-se aos princípios gerais do Direito
Comercial e às regras próprias do Direito do Mar.
O artigo 10 da Lei dos Cartórios traz as funções que a eles competem, tais como
a lavratura de atos, contratos e instrumentos relativos a transações de embarcações às
quais as partes devam ou queiram dar forma legal de escritura pública; o registro de tais
documentos; e o reconhecimento de firmas em documentos destinados a fins de direito
marítimo.
É interessante salientar a existência da Lei n. 7.652/1988, que regula o registro da
propriedade marítima, dos direitos reais e dos demais ônus sobre embarcações e o registro de armador. Conforme o citado diploma, o registro da propriedade tem por objetivo
estabelecer a nacionalidade, a validade, a segurança e a publicidade da propriedade de
embarcações.
1.1.3 Tabeliães de protesto de títulos
Os tabeliães de protesto de títulos são regidos principalmente pela Lei n.
9.492/1997.
Walter Ceneviva acredita que, em função de haver lei específica dispondo sobre a
atividade dos tabeliães de protesto de títulos, as atribuições concedidas a eles pelo artigo
11 da Lei dos Cartórios foram revogadas em decorrência da estipulação do artigo 2º, §
1º, da Lei de Introdução ao Código Civil, de acordo com o qual “a lei posterior revoga a
anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando
regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior” (2000, p. 66). Esse posicionamento, contudo, não é pacífico.
O serviço dos tabeliães de protesto de títulos envolve a função jurídica testificante
do protesto, considerando a recepção, a qualificação e a instrumentação dos títulos.
O protesto pode ser tido como o ato notarial solene e público que constitui prova e
que, por vezes, é requisito para o direito de ação (AMADEI, 2004, p. 74-76).
Já o título corresponde a instrumento hábil para comprovar o descumprimento de
uma obrigação, seja pela falta, por parte do devedor, de reconhecimento de sua existência,
seja pelo seu não pagamento. Serve, pois, como documento de proteção ao credor e à sua
dívida ainda não quitada (AMADEI, 2004, p. 84-85).
Nos termos do artigo 3º da Lei n. 9.492/1997, compete privativamente aos tabeliães
de protesto de títulos, na tutela dos interesses públicos e privados, a protocolização, a intimação, o acolhimento da devolução ou do aceite; o recebimento do pagamento, do título
e de outros documentos de dívida; a lavratura e o registro do protesto ou o acatamento da
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desistência do credor em relação a ele; a feitura das averbações, a prestação de informações e o fornecimento de certidões relativas a todos os atos praticados.
1.1.4 Oficiais de registro de imóveis
Os oficiais de registro de imóveis são mencionados no artigo 12 da Lei dos Cartórios,
mas sua regulamentação foi verdadeiramente efetuada pela Lei de Registros Públicos.
A principal manifestação da imprescindibilidade dos registros públicos de imóveis
para a organização da vida social ocorreu com o advento do Código Civil de 1916, o qual
estabeleceu o registro como forma de aquisição da propriedade imóvel. O Código Civil
de 2002 não apresentou maiores alterações em relação ao tema, como comprova o seu
artigo 221:
Art. 221 - O instrumento particular, feito e assinado, ou somente assinado por quem esteja na livre
disposição e administração de seus bens, prova as obrigações convencionais de qualquer valor; mas
os seus efeitos, bem como os da cessão, não se operam, a respeito de terceiros, antes de registrado no
registro público.
Parágrafo único. A prova do instrumento particular pode suprir-se pelas outras de caráter legal.
A Lei de Registros Públicos consolidou o sistema de registro imobiliário brasileiro, estabelecendo como base do registro a matrícula dos bens imóveis. Em comentário
relacionado à utilização da matrícula, Décio Antônio Erpen e João Pedro Lamana Paiva
salientaram que
a trasladação da técnica da transcrição, em absoluto, cassou a condição de proprietário, com a adoção
da matrícula. Igualmente, não transformou ninguém em proprietário, quando não o era. Foram
unicamente técnicas registrais, agora aprimoradas para que, num relance de olhos, pudesse o cidadão
comum saber da situação jurídica da coisa (2004, p. 173).
Os mesmos autores ainda afirmaram que “a verdadeira função do sistema registral
imobiliário está em tutelar a propriedade privada, bem assim combater a clandestinidade,
irmã gêmea da fraude” (ERPEN; PAIVA, 2004, p. 171). Nesse sentido, os oficiais de registro, como utilizadores de um instrumento de publicidade, fornecem eficácia constitutiva
de direitos reais e dão procedência à transmissão da propriedade imóvel por ato inter
vivos.
1.1.5 Oficiais de registro de títulos e documentos e de pessoas jurídicas
Os oficiais de registro de títulos e documentos e de pessoas jurídicas são titulares
de duas serventias diversas.
A primeira, a de registro de títulos e documentos, é regulamentada, em especial,
pela Lei de Registros Públicos.
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Título e documentos são entendidos como quaisquer registros gráficos que funcionem como base de conhecimento, fixados de forma escrita e aptos a comprovar fatos
ou acontecimentos. Os oficiais de registro de títulos e documentos, dotados de fé pública,
registram tanto os documentos pessoais como os negociais, desde os públicos até os particulares, e dão a eles autenticidade documental, autenticidade em relação à data em que
foram criados, publicidade, validade erga omnes e perpetuação. Cabe a estes profissionais,
ademais, a guarda e a conservação dos documentos e dos livros que contêm os registros
efetuados por eles e por seus antecessores e substitutos (SIVIERO, 2004, p. 119-123).
É importante ressaltar que a Lei de Registros Públicos permite a recepção, por parte
dos oficiais de registro de títulos e documentos, do material que não puder ser atribuído
a outro ofício. Sendo assim, ensina José Maria Siviero que
é exatamente essa atribuição que transforma Títulos e Documentos no ‘Cartório do Futuro’, pois todo
documento que surgir, para atender às necessidades de segurança das negociações, poderá buscar sua
eficácia jurídica no Registro de Títulos e Documentos (2004, p. 123-124).
O trabalho dos oficiais de registro de títulos e documentos baseia-se na verificação
da documentação criada pelas partes interessadas, de modo a analisar a validade do ato
jurídico quanto à licitude, à obediência à moral e aos bons costumes e à capacidade das
partes que o criaram. Também destina-se a fazer as notificações extrajudiciais, que servem como instrumento de prova de recebimento ou de conhecimento incontestável do
conteúdo ou teor de qualquer ato jurídico levado a registro.
A fé pública que reveste esta espécie de registrador garante que a certidão por ele
emitida representa a exata transcrição do documento registrado no cartório.
A segunda serventia, referente ao registro de pessoas jurídicas, a seu turno, também é regulada pela Lei de Registros Públicos. Esta foi modificada pela Lei n. 9.096/1995,
que acrescentou às atribuições do registro civil das pessoas jurídicas a inscrição dos atos
constitutivos e dos estatutos dos partidos políticos.
O Código Civil de 2002, determinando detalhadamente quem são e como devem
proceder as pessoas jurídicas, em seus artigos 40 a 52, também trouxe alterações para a referida espécie de serventia ao modificar a estrutura, a organização e o registro das antigas
sociedades civis, atualmente divididas em associações e sociedades simples.
O material que poderá ser inscrito pelo oficial do registro civil das pessoas jurídicas
está estabelecido no artigo 114 da Lei de Registros Públicos, o qual cita, dentre outros, os
contratos, os atos constitutivos, o estatuto ou compromissos das sociedades civis, religiosas, pias, morais, científicas ou literárias; além dos atos constitutivos e os estatutos dos
partidos políticos.
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1.1.6 Oficiais de registro civil das pessoas naturais e de interdições e
tutelas
Responsáveis por reger a instituição tida como a mais democrática do Estado de
Direito, aos oficiais de registro civil das pessoas naturais e de interdições e tutelas cabe
a documentação da condição jurídica de todos os brasileiros, desde o nascimento até a
morte, incluindo as modificações que forem ocorrendo ao longo desse período.
Sua atividade também está disciplinada na Lei de Registros Públicos. De acordo
com preleções de Reinaldo Velloso dos Santos,
são registrados no Registro Civil das Pessoas Naturais: os nascimentos e as sentenças de adoção; os
casamentos, civis e religiosos com efeitos civis; os óbitos; as emancipações; as interdições; as sentenças
declaratórias de ausência e as opções de nacionalidade (Lei 6.015/73, art. 29). Além disso, são feitos os
traslados de assentos de brasileiros em País estrangeiro (art. 32).
[...]
Em síntese, a atividade do Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais consiste em assentar, em
livros próprios, os principais fatos da vida civil de uma pessoa, averbar as alterações do teor do
registro, anotar os fatos posteriores à margem do registro e expedir certidões relatando o que consta
dos livros de registro, os quais são indefinidamente conservados, franqueando a toda a sociedade o
acesso às informações contidas nesses livros (2004, p. 43-44).
As interdições, assentadas por esses oficiais de registro, têm o intuito de, no interesse da coletividade, privar legalmente uma pessoa do gozo ou do exercício de direitos. E as
tutelas são atos através dos quais é transferido encargo a alguém, por lei ou por testamento, para administrar os bens e proteger a pessoa de um menor, que se acha fora do pátrio
poder, e para representá-lo ou assistir-lhe nos atos da vida civil.
O artigo 44, §§ 2º e 3º, da Lei dos Cartórios, estipula que deve haver, pelo menos,
um registrador civil das pessoas naturais em cada sede municipal e que, nos municípios
de maior extensão territorial, cada sede distrital também disporá de, no mínimo, um desses registradores.
Por fim, como determinação do artigo 4º da Lei dos Cartórios, o fato de o registro civil de pessoas naturais se fundamentar no assentamento de ocorrências especiais
e imprevisíveis na vida dos cidadãos obriga os seus titulares à prestação do serviço nos
sábados, domingos e feriados pelo sistema de plantão.
1.1.7 Oficiais de registro de distribuição
Os oficiais de registro de distribuição recebem os documentos e os títulos que devem ser registrados; registram petições e as encaminham, equilibrando sua distribuição
entre os tabeliães e as varas de cada localidade em que atuam. Em verdade, seu serviço
subsiste apenas como auxiliar da atividade dos tabeliães de protestos e dos oficiais de re
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gistro de contratos marítimos, já que há a necessidade do registro de distribuição somente
quanto à prática destes serventuários.
A Lei dos Cartórios, em seu artigo 13, define com exatidão as atribuições privativas
dos oficias de registro de distribuição, tais como efetuar as averbações e os cancelamentos de sua competência; expedir certidões de atos e documentos que constem de seus
registros e papéis; quando previamente exigido, proceder à distribuição equitativa pelos
serviços da mesma natureza, registrando os atos praticados; registrar as comunicações
recebidas dos órgãos e serviços competentes.
2. Comparações entre a atividade cartorária e o serviço
público
Muitos estudiosos do direito, ao alvorecer das primeiras regulamentações direcionadas aos notários e registradores, já tentaram caracterizá-los como servidores públicos.
Mencionavam, na defesa de tal tese, a importância social da atividade cartorária, bem
como o fato de as serventias serem preenchidas por classificados em concurso público.
Ainda nos dias atuais, porém, há quem considere os notários e registradores praticamente proprietários de seus cartórios, acreditando ser justa a possibilidade de transmissão dos cartórios aos descendentes de seus titulares.
É fato que, desde a implantação da atividade cartorária no Brasil, por influência
portuguesa, as serventias eram passadas de pai para filho, criando-se um reduto de regalias a que poucos privilegiados tinham acesso. Tal situação, contudo, modificou-se com a
entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, a qual foi responsável pela estipulação
da obrigatoriedade de concurso público para que se trabalhe no serviço público em geral
e, especificamente, em cartorários extrajudiciais.
Se mesmo antes da necessidade de concurso para se preencher as serventias já era
de bom alvitre considerar os notários e registradores servidores públicos, que dirá nos
tempos atuais, em que a sociedade urge por uma democratização do serviço público e
pela moralização da prestação de serviços essenciais à vida dos cidadãos e ao bem social.
Servidores públicos são comumente classificados como espécies de agentes públicos, grupo bastante amplo responsável por abarcar, de forma genérica e indistinta, todos
aqueles que servem ao Poder Público, ocasional ou permanentemente, como instrumentos expressivos de sua vontade ou ação.
Em termos gerais, servidores públicos são as pessoas físicas que, prestando serviços mediante vínculo empregatício com o Estado ou com as entidades da Administração
Indireta, recebem remuneração provinda do erário.
Costuma-se dividir a classe dos servidores públicos em servidores estatutários, regidos por estatuto próprio e ocupantes de cargos públicos; empregados públicos, contratados para ocupar emprego público e regulados pela legislação trabalhista, em especial
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pela Consolidação das Leis do Trabalho; e, por fim, servidores temporários. Estes últimos
diferem dos demais por não ocuparem cargo ou emprego; apenas exercem função por
tempo determinado para atender à necessidade temporária de excepcional interesse público, consoante preleção da Constituição Federal (DI PIETRO, 2005, p. 116).
Cada esfera de governo institui, para seus servidores públicos, o regime contratual
ou o estatutário, podendo haver os dois regimes para uma mesma entidade ou órgão.
Os serviços notariais e de registro, por sua vez, conforme se depreende do artigo
236 da Constituição Federal, são prestados por indivíduos aos quais, após aprovação em
concurso público de provas e títulos, é dada a obrigação de executar um serviço de caráter público, a ser realizado em nome próprio segundo as regras impostas pelo Estado, e
sob fiscalização do delegante e do Poder Judiciário. Nesse sentido, é válido dizer que são
delegatários do Poder Público.
A delegação de que aqui se trata não se confunde com uma simples habilitação,
ou seja, com um ato meramente recognitivo de atributos pessoais para o desempenho
de funções cartorárias. Esta habilitação, constituindo-se apenas em um pressuposto da
investidura nos ofícios, é aferida no concurso público, conforme a ordem de classificação
por este indicada.
A delegação propriamente dita, em verdade, é ato sucessivo ao concurso e seu significado é o de adjudicar ou de atribuir um determinado serviço a um sujeito.
Cabe esclarecer que o que se delega a um notário ou registrador não é a totalidade
da atividade notarial ou registral pública do país, já que há múltiplos serviços notariais e
múltiplos serviços de registro, cada qual constituindo uma unidade, operada na respectiva circunscrição pelo sujeito nele titulado. Assim sendo, cada ofício constitui-se em um
segmento da totalidade da função pública notarial ou registral, devendo ser ocupado por
uma pessoa específica que recebe a delegação do Poder Público.
A Lei dos Cartórios, em seu artigo 35, afirma que a delegação somente poderá ser
interrompida, além de, naturalmente, pela morte e pela aposentadoria, também por força
de sentença judicial transitada em julgado na qual se aplicou pena restritiva de direitos,
com caráter autônomo, voltada à proibição de exercício de cargo; ou de decisão em processo administrativo prolatada por autoridade competente do Poder Executivo, depois de
respeitados os princípios do contraditório e da ampla defesa.
Por muito tempo, jurisprudência e doutrina se uniram para defender a classificação dos titulares de cartórios como servidores públicos, detentores de cargos públicos.
Descreviam-se os notários e registradores como entes da fé pública, instituídos pelo Estado e aptos ao desenvolvimento de função pública primordial, sendo, portanto, servidores
públicos.
A mudança de entendimento dos Tribunais Superiores ocorreu, principalmente,
em função de modificações terminológicas feitas na redação do caput do artigo 40 da
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– OS CARTORÁRIOS DEVEM SER EQUIPARADOS AOS SERVIDORES PÚBLICOS –
Constituição Federal que, sucessivas vezes alterado por Emendas Constitucionais, determina o sistema previdenciário e a aposentadoria dos servidores públicos.
Assim se apresenta o citado dispositivo legal:
Art. 40 - Aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, é assegurado regime de previdência de caráter
contributivo e solidário, mediante contribuição do respectivo ente público, dos servidores ativos e
inativos e dos pensionistas, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e o
disposto neste artigo.
Tal análise redacional feita pelas Cortes Superiores adveio da necessidade de definição da aposentadoria compulsória dos notários e registradores: sendo eles considerados
servidores públicos, a aposentadoria obrigatória a partir dos setenta anos dever-lhes-ia ser
aplicada; ao contrário, preenchendo os cartorários posição diversa da ocupada pelos servidores públicos, mesmo completado o tempo máximo de serviço, não lhes seria imposto
o abandono da profissão. Em razão desta celeuma jurídica, tornou-se necessário que os
Tribunais considerassem, definitivamente, os cartorários servidores públicos ou não.
A resposta determinante, nesse contexto, veio, em especial, com a Ação Direta de
Inconstitucionalidade n. 2.602, decidida pelo Supremo Tribunal Federal em novembro de
2005, um dos primeiros julgados a afastar por completo os titulares de cartórios extrajudiciais da classificação de servidores públicos.
Muito embora as Cortes Superiores venham assumindo esse entendimento desde
então, não se pode negar que a sociedade merece uma postura mais severa quanto à classificação das categorias que prestam serviços de interesse público. De fato, não é eficaz para
o bom exercício das atividades cartorárias a atribuição de conceitos e institutos diversos
dos que são estabelecidos para o serviço público em geral, haja vista todos prestarem serviços imprescindíveis no cotidiano da população, muitas vezes por exigência do próprio
Estado, e, por isso, merecerem as mesmas tratativas.
O Estado Democrático de Direito brasileiro está embasado em princípios e regras,
expostos na Constituição Federal, destinados justamente à formação de uma sociedade justa e igualitária a ser organizada por um corpo político que busque sempre o bem social.
Nos termos de Roque Antonio Carrazza,
numa República, o Estado, longe de ser o senhor dos cidadãos, é o protetor supremo de seus interesses
materiais e morais. Sua existência não representa um risco para as pessoas, mas um verdadeiro penhor
de suas liberdades.
[...]
De fato, a noção de República não se coaduna com os privilégios de nascimento e os foros de nobreza,
nem, muito menos, aceita a diversidade de leis aplicáveis a casos substancialmente iguais, as jurisdições
especiais, as isenções de tributos comuns, que beneficiem grupos sociais ou indivíduos, sem aquela
‘correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida (...) e a desigualdade de tratamento em
função dela conferida’, de que nos fala Celso Antônio Bandeira de Mello.
[...]
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Portanto, numa República, todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei,
sem distinção de condições sociais e pessoais.
[...]
Assim, não se compadece com a noção de República o favorecimento de apenas alguns setores da
sociedade. Ao contrário, como o poder procede de todo o povo – já que, como pregoa Black, o governo
republicano se baseia na igualdade política dos homens –, os agentes governamentais devem, semper
et ad semper, zelar pelos interesses da coletividade, e não de pessoas ou classes dominantes. Isto vale
especialmente para o Poder Legislativo, uma vez que o Executivo, em rigor, limita-se a aplicar a lei
(2004, p. 48-54).
A igualdade protegida pelo princípio republicano é violada quando se privilegiam
determinados setores da sociedade sem a existência de um real motivo que, na busca por
uma igualdade substancial entre os cidadãos, enseje tal distinção.
Com efeito, analisando-se as funções prestadas pelos cartorários, não são encontrados elementos que os diferenciem essencialmente dos servidores públicos. Ambos os
grupos profissionais prestam serviços de natureza pública, precisam passar por concurso
público para dar início aos seus trabalhos, apenas podem ser retirados de seus cargos por
processo administrativo ou judicial, dentre outras semelhanças. Sendo assim, considerar
os serventuários membros de uma classe distinta da dos servidores públicos equivaleria a
deixar aberta uma lacuna, por lei ou pelo modo de interpretá-la, que daria azo a regalias e
proteções excessivas somente aos ocupantes dos cartórios extrajudiciais.
Um importante exemplo dos privilégios que podem advir da não classificação dos
cartorários como servidores públicos é a vitaliciedade da função notarial e registral. Muitos juristas já discutiram o tema até que o Supremo Tribunal Federal, em julgamentos
como o da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.602, decidiu que aos cartorários não
é aplicável a aposentadoria compulsória dos servidores públicos, dando-lhes a oportunidade de permanecerem na carreira pelo tempo que desejarem.
Ora, a vitaliciedade em uma atividade de interesse público não condiz com o princípio republicano e com a moralidade desejada tanto na Administração Pública como
nos meios profissionais de que faz uso a população. O Estado é o único real detentor das
funções que afetam a coletividade, de modo que, inexistindo dispositivo constitucional
expresso a conceder vitaliciedade aos cartorários, não há como se privilegiar apenas esta
classe e lhe dar a possibilidade de lidar com os interesses públicos por toda a vida, a seu
bel-prazer.
De acordo com Maria Sylvia Zanella di Pietro,
sempre que em matéria administrativa se verificar que o comportamento da Administração ou do
administrado que com ela se relaciona juridicamente, embora em consonância com a lei, ofende a
moral, os bons costumes, as regras de boa administração, os princípios de justiça, de equidade, a ideia
comum de honestidade, estará havendo ofensa ao princípio da moralidade administrativa (2005, p. 79).
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– OS CARTORÁRIOS DEVEM SER EQUIPARADOS AOS SERVIDORES PÚBLICOS –
A moral corresponde a um conjunto de valores que organizam e dão harmonia
à sociedade. Juridicamente, ela constitui um dos princípios regentes da Administração
Pública, conforme o artigo 37, caput, da Constituição Federal.
O princípio da moralidade foi imposto aos ocupantes das atividades públicas como
forma de equilibrar as relações sociais e trazer mais justiça e coerência nas atitudes por
eles tomadas. Diante destas nobres justificativas, o que se tornaria mais saudável ao Estado brasileiro seria a configuração dos cartorários como servidores públicos, aplicandolhes os mais caros princípios de boa conduta que recaem sobre o funcionalismo público.
Além do mais, a doutrinadora Maria Sylvia Zanella di Pietro ensina que a impessoalidade é exigida tanto dos Administrados como da própria Administração. Vinculando-a
à finalidade pública, que deve nortear toda a atividade administrativa, tem-se que o princípio da impessoalidade impede que a Administração atue com o objetivo de prejudicar
ou de beneficiar pessoas determinadas, uma vez que é sempre o interesse público que deve
nortear o seu comportamento (2005, p. 71).
Vê-se, portanto, que o princípio da impessoalidade dos cargos e atividades públicas
não permite que os serviços efetuados em nome do Estado se confundam com os seus
executores a tal ponto que acabem por serem considerados privados ou pertencentes aos
seus titulares.
Caracterizaria obediência aos princípios constitucionais, destarte, a equiparação
dos cartorários aos servidores públicos, com a aplicação àqueles das mesmas regras da
Administração Pública que por tanto tempo foram sonegadas à população e que, após o
advento da Constituição Federal de 1988, consolidaram-se como a melhor forma de garantir um serviço público de qualidade e voltado para o bem da sociedade.
Diante de tudo o que aqui foi apresentado, é de se inferir que os notários e registradores nada mais são do que servidores públicos revestidos por uma aura diferenciada
apenas justificável pelo histórico de privilégios que os socorrem desde a implantação da
atividade no Brasil. A equiparação definitiva dos cartorários aos servidores públicos, capaz de minorar os conflitos judiciais que persistem em inundar os Tribunais, além de ser
coerente com o ordenamento jurídico brasileiro, traria, com o fomento da impessoalidade, da moralidade e da igualdade, a consciência de que os serviços nos cartórios extrajudiciais, muito mais do que necessários para o sustento de seus titulares, são imprescindíveis
para a manutenção da justiça e para a organização do meio social.
CONCLUSÃO
Apesar da relevância que manifestam na atuação na sociedade, os cartorários apenas tiveram as suas atividades reguladas, de forma mais detalhada, em 1994, ano em que
foi publicada a Lei n. 8.935 (Lei dos Cartórios). A criação de tal lei deu-se em decorrência
de ordem constitucional emitida pelo artigo 236 da Constituição Federal de 1988, segundo o qual maiores regulamentações deveriam se dar por meio de lei infraconstitucional.
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– Joice Dutra –
É certo que a criação da referida lei auxiliou a regulação da carreira cartorária e retirou inúmeras dúvidas a respeito da forma como os seus titulares deveriam ser tratados.
A natureza jurídica dos notários e oficiais de registro, contudo, continuou obscura
e os doutrinadores permaneceram divergentes quanto à possibilidade de considerá-los
servidores públicos.
Analisando-se as funções de interesse público exercidas pela classe cartorária, entretanto, não se pode negar que há mais fatores a aproximarem os cartorários dos servidores públicos do que motivos para distingui-los.
De fato, os cartorários precisam ser equiparados aos servidores públicos, de forma
a manterem a moralidade no serviço e, com isso, a excelência na prestação notarial e
registral. Somente dessa forma os princípios constitucionais que regem o funcionalismo
público, tão importantes para a manutenção do Estado Democrático de Direito brasileiro,
serão facilmente aplicados a todos os profissionais que executam um trabalho de interesse
social.
Cumpre-se dizer, por fim, que a atividade exercida pelos notários e oficiais de registro é de extrema importância para a garantia da segurança jurídica e para o bom andamento do direito e da justiça. Diante de tamanha relevância social, tudo o que puder
ser estabelecido para que a classe cartorária abandone as suas históricas regalias e passe
a adquirir definitivamente um regime de trabalho mais igualitário merece guarida e deve
ser aplicado à realidade.
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