Sociologia, produto da sociedade

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Sociologia, produto da sociedade
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A sociedade rumo a uma interpretação funcionalista
Tópico 1: A construção sociológica
de coletividade
A sociologia, como ciência da sociedade, nasce com seu objeto, no século XIX. A formação de um conhecimento sobre a sociedade significa participar da construção política
da sociedade.
A sociedade não tem nada de natural, é uma categoria da prática social, uma categoria
ao mesmo tempo política e sociológica. Quando se fala em sociedade, refere-se a um
conjunto social delimitado pelas fronteiras de um Estado-nação. É por isso que se fala
em sociedade brasileira ou americana ou alemã. A identificação de um conjunto social
e seus habitantes com uma Nação sob a égide de um Estado, no entanto, não é uma
simples invenção sociológica, é uma realidade histórica e datada, produzida por questões
econômicas, políticas e culturais.
A sociologia faz parte desse processo, pois tanto
contribuiu para seu desenvolvimento como é sua
consequência. Os sociólogos pensam a sociedade
como o modo moderno de organização da vida em
comum cuja unidade se constrói no interior do território nacional. A sociedade toma o lugar da comunidade, e a ideia de sociedade foi e ainda é a ideologia
das nações em formação.
Em termos culturais, a sociedade inscreve-se nos
termos da modernidade. O século XIX era considerado o corolário da revolução democrática e cultural
que havia engendrado a ideia do indivíduo como
um ser autônomo. As sociedades não são somente
sociedades nacionais, são também sociedades dos
indivíduos, isto é, encontro de indivíduos iguais.
Tema
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A sociedade rumo a uma interpretação funcionalista
A sociedade moderna significa a destruição do mundo tradicional, ou seja, a ordem
externa, divina ou natural, é substituída por uma ordem interna inteiramente humana,
a sociedade deixa de ter um caráter natural e intangível, e passa a ser vista como um artefato, uma construção sempre passível de mudança. Assim, o poder sempre limitado pela
ordem natural das coisas ou pela moral natural passa a ser ilimitado, tudo é permitido, e o
indivíduo pode afirmar-se enquanto ser singular e livre em relação à tradição. O binômio
indivíduo/sociedade nacional opõe-se à comunidade. Na comunidade, o “nós” ou o grupo impõe-se sobre a independência dos membros, e na sociedade, dá-se o inverso.
A sociologia desenvolve-se nesse quadro de pensamento buscando explicações para
essa ruptura. Para Durkheim, o progresso da divisão do trabalho e a complexização das
sociedades são acompanhados por uma maior autonomia dos indivíduos.
A sociologia é, assim, o estudo da sociedade enquanto ela é composta de indivíduos
que pertencem à mesma nação. Ela procura entender como se faz a socialização, ou
seja, a formação e a constituição de indivíduos em suas inter-relações no interior da
nação. A sociedade é o espaço das relações sociais que há entre o indivíduo e a nação;
os mecanismos sociais são, portanto, mecanismos que ligam os indivíduos à nação e esta
aos indivíduos que a compõem.
Uma vez constituída sobre os escombros da comunidade, a sociedade moderna vê-se
sempre ameaçada pela dissolução total da solidariedade, vendo a vida social transformar-se em uma justaposição de indivíduos guiados exclusivamente por seus interesses. Para
Durkheim, a sociedade está sempre ameaçada pela anomia, porque o individualismo pode
levar ao egoísmo e à destruição dos laços sociais. Se não existe uma ordem natural, o que
faz os indivíduos aceitarem a ideia de sociedade? Se a ordem social deriva do político, de
um contrato entre indivíduos livres, o que os levaria a aceitar e respeitar esse contrato?
Desde o século XIX, a resposta a essas questões baseava-se na filosofia do interesse, ou
seja, a busca racional de seus interesses levava os indivíduos a dominarem suas paixões
individuais e constituía, também, a fonte da ordem pública. A busca da felicidade individual levaria à felicidade coletiva, a sociedade seria um mercado que se autorregula. É
suficiente que cada um aja naturalmente e não socialmente (em função de preconceitos, de pertencimentos ou da tradição) para que se instale uma ordem social estável e
moderna. A vida social instalar-se-ia, assim, espontaneamente, graças ao progresso da
economia, do mercado e da indústria.
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As instituições
Pode-se entender a tradição sociológica como uma reação a esse pensamento na medida em que propõe algumas questões: Como preservar a liberdade individual sem cair no
utilitarismo ou na anarquia ou, ainda, sem retornar a um regime autoritário e repressivo?
Como assegurar uma ordem social a partir da afirmação e da preservação da liberdade
dos indivíduos? A resposta dos sociólogos não foi nem o apelo ao interesse (que abalaria
a vida coletiva) nem o retorno à comunidade, definitivamente perdida. Essa resposta são
as instituições.
Os indivíduos fundam politicamente a ordem social porque eles são antes de tudo seres
sociais e morais. Eles pertencem a uma cultura, são o produto da sociedade, da diferenciação social. Produzem e são produzidos pela sociedade. A sociologia deve explicar
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como os indivíduos, apesar de serem seres socialmente determinados, podem constituir
voluntariamente uma associação que é, apesar disso tudo, também necessária.
A sociedade associa o indivíduo à nação por meio de instituições que possuem
uma cultura comum. Indivíduo e sociedade são definidos por sua interação recíproca, que é mediada e viabilizada pelas instituições. Essa formulação sintetiza o pensamento de Émile Durkheim (1858-1917). Para ele, a sociedade sucede ao mundo das
comunidades, cujo princípio da integração moral baseava-se na religião. Na sociedade
moderna, a moral deve separar-se da religião e deve basear-se em princípios racionais
e científicos. A construção de um conhecimento positivo da vida social engendraria os
fundamentos de uma moral laica e racional. A ciência deveria substituir o divino na
sociedade moderna e a escola deveria tornar-se, em detrimento da religião, a instituição
central da sociedade.
Adaptando à teoria social o pensamento evolucionista de Charles Darwin (1809-1882),
Durkheim credita a um processo geral de diferenciação o aparecimento das sociedades
modernas. As unidades sociais das comunidades tradicionais dividem-se à medida que se
especializam. Por exemplo, nas sociedades tradicionais a família é uma unidade afetiva e
econômica, enquanto que, nas sociedades modernas, afetividade e economia se separam
e se diferenciam estruturalmente.
Nas sociedades tradicionais, com pouca diferenciação, o liame entre os indivíduos está
baseado na semelhança. Durkheim denomina esse fenômeno de solidariedade mecânica,
visto que os indivíduos e os grupos referem-se aos mesmos credos, valores, atividades e
ritos. O controle social desenvolve-se de maneira repressiva, punindo todos que ameaçam a unidade e a coesão do grupo. A passagem para uma solidariedade de tipo orgânico dá-se com o crescimento demográfico, a divisão do trabalho e a especialização das
funções. Nas sociedades modernas, as diferentes funções e as multidões de indivíduos
impõem relações que são fundadas na interdependência, à semelhança dos órgãos do
corpo humano. Daí, o controle social dar-se no sentido de manter o equilíbrio entre as
partes; quem não paga suas dívidas não é preso, mas deve, por imposição legal, pagar a
seus credores.
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A diferenciação social leva, também, a uma progressiva racionalização e secularização da cultura, porque, separando-se o econômico do afetivo, separa-se também
o espaço das ações racionais e aquele dominado pela afetividade, pelo credo ou pela
emoção. Uma pessoa doente espera do médico uma intervenção científica, e não que ele
chore por piedade do doente ou que reze a alguma entidade sobrenatural por sua cura.
Nas duas formas de organização social, as concepções de indivíduo são diferentes, polarizadas. Nas tradicionais, ele não se pertence, segundo Durkheim, mas, nas modernas, nas
quais predomina a solidariedade orgânica, o indivíduo não é absorvido pela consciência
coletiva, mantendo-se livre dentro de um corpo social. Para afirmar tal proposição, o autor
desenvolve uma concepção dual de indivíduo.
O indivíduo é constituído por seu corpo e sua alma. O corpo, lugar das sensações,
é a fonte da individualização, enquanto que a alma é o receptáculo das ideias e dos
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A sociedade rumo a uma interpretação funcionalista
sentimentos, ela é despertada pela sociedade. Para não ser escravizado pelas paixões e pelos sentidos, o homem deve existir como
pessoa moral, isto é, deve ser capaz de agir por sua alma. Isso é
possível graças ao pertencimento à sociedade que é uma realidade
moral, exterior e superior aos indivíduos. Nas sociedades antigas, a
religião impunha a moral ao homem porque ele pertencia à comunidade; nas modernas, ele pertence a si próprio, mas também a uma
coletividade moral. Os indivíduos são mais livres quanto mais forem
sociais e a sociedade será mais integrada quanto mais autônomos
forem os indivíduos. Isso acontece porque, por intermédio das instituições, os indivíduos apreendem e interiorizam valores morais e profissionais que permitem à sociedade manter-se unida e, aos indivíduos, existirem como “pessoas”.
Tal concepção explica o interesse constante de Durkheim pela educação e sua vontade
de fundar as formas de solidariedade em torno da atividade profissional. A educação
destaca-se porque ela repousa sobre a interiorização da moral e gera a participação ativa
na sociedade. Ela pode ser considerada a instituição essencial da sociedade.
Tópico 2: A apropriação funcionalista do
pensamento de Durkheim
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O contexto em que se desenvolve o pensamento durkheimiano refere-se àquele da
construção do Estado central na França. Como pensador europeu, sua preocupação
voltava-se para a recuperação da estabilidade e o controle do caos instaurado a partir
da industrialização e urbanização aceleradas que marcaram o início do século XX. A
organização da sociedade democrática ou o fortalecimento da república significaria uma
forma de provocar a estabilidade, visto que ela, a sociedade, confunde-se com a própria
moralidade, constituindo-se como um conjunto de fatos concretos, exteriores e superiores
ao indivíduo, uma forma de consciência coletiva, um fato social. O Estado, com o apoio
dos intelectuais, principalmente dos sociólogos, seria a garantia de um desenvolvimento
harmonioso da sociedade e do individualismo moderno.
No entanto, os argumentos de Durkheim não são suficientes para provar a relação entre
uma sociedade concreta e a existência de uma consciência moral. Se os fatos sociais
exercessem uma determinação sobre os indivíduos, os homens seriam obrigados a construir sua solidariedade sobre a base de uma moral derivada do individualismo. Porém,
em nenhum momento Durkheim apresenta argumentos convincentes sobre como a solidariedade, sob a forma de consciência coletiva, poderia perdurar. Os acontecimentos
da época, principalmente a Primeira Guerra Mundial, não sustentavam a ideia de uma
sociedade capaz de produzir uma moralização e também não conseguiam exemplificar a
racionalidade e o progresso da sociedade moderna.
Não é estranho, portanto, que as ideias de Durkheim viessem a prosperar, principalmente do outro lado do Atlântico, sobretudo aquelas referentes a reflexões sobre as instituições
morais. A sociologia americana forma-se a partir de uma modernidade já adquirida, inscrita na sua constituição. A questão não será a de perseguir o progresso e a constituição
da sociedade, mas de redimi-la dos excessos da riqueza e do desenvolvimento
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tecnológico. A sociologia da sociedade moderna, desenvolvida pelos funcionalistas, entre
os anos 1950 e 1960, será uma sociologia voltada para o tema da integração.
Ainda que se parta, nos EUA, de uma noção de
sociedade moderna já estabelecida em termos
paradigmáticos, o contexto em que Talcott Parsons
(1902-1979) desenvolve suas teorias é, também,
um contexto de crise. Como Durkheim, ele procura
combater o utilitarismo e a filosofia do interesse, e
encontrar os fundamentos da ordem social no progresso da racionalidade e da autonomia individual.
Para tal, acentua os progressos da civilização moderna em seu conjunto, mostrando o desenvolvimento
econômico dos EUA apesar da crise de 1929. Mais
do que Durkheim, Parsons identifica os progressos da
sociedade aos esforços conscientes do ser humano
para realizar o ideal moral da civilização. O progresso, para o autor, não é o resultado de uma evolução
indeterminada, mas o “engajamento dos homens na
realização ativa de seus valores” (PARSONS, 1973,
p. 51). Para os funcionalistas, a sociedade é uma realidade ativa, que não existe fora das condutas individuais, dos comportamentos e das ações humanas.
A compreensão da sociedade será dada a partir das
Figura 1 Talcott Parsons
condutas sociais, porque a sociedade, repetindo, é
uma dimensão da conduta social.
Na vida social cotidiana, cada indivíduo percebe, espontânea ou intuitivamente, as
expectativas dos outros e procura responder a elas. Mas para tal é necessário possuir as
mesmas grades de interpretação e de compreensão, ou compartilhar as mesmas regras e
códigos. É fundamental que os indivíduos refiram-se às mesmas normas. Toda ação e toda
relação social inscrevem-se, assim, em um quadro normativo que prescreve o comportamento de cada um, concede as chaves de interpretação das situações e traça os limites
entre o bem e o mal.
A vida social, ou seja, a existência concreta da sociedade supõe a presença de tais quadros, e a ação de cada indivíduo a partir desses quadros faz com que a sociedade exista
concretamente. Quando um indivíduo fica doente, não pode cumprir suas atividades
sociais habituais. Está, portanto, em uma situação de “desvio”. Sair dessa situação significa
voltar à normalidade, cumprir suas obrigações sociais. A sociedade oferece-lhe um corpo
de especialistas, uma profissão, os recursos necessários para voltar a esse comportamento
normal e, por esse processo, gera formas de comportamento que o doente deve assumir
que se impõem a ele como um dever moral. Esses comportamentos são denominados
papéis sociais e são eles que ligam o indivíduo à sociedade.
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Papel social
O termo papel social remete ao teatro. Em cena, um ator desempenha um papel, ou seja,
adota os atributos e os comportamentos do personagem em uma situação dada. A vida
social pode ser representada dessa maneira: os indivíduos, em situações sociais, adotam
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A sociedade rumo a uma interpretação funcionalista
espontaneamente comportamentos definidos a priori, como se seguissem um script. Dispõem, porém, de um grau de liberdade delimitada pelo próprio quadro normativo.
De acordo com Parsons, o papel social implica em um tipo de comportamento
distintivo, ou seja, que distingue os indivíduos entre si: irmão, pai, mãe, jovem, idoso. O papel social só existe em uma interação: A se comporta com B de uma maneira
determinada, o que faz com que B se comporte com A da maneira igualmente prescrita. Esse comportamento é intencional, mas é também regular e recorrente; realiza-se
na interação, mas constitui-se, para os atores, num conjunto de dados sobre os quais
fundamentam suas condutas. Os atributos comuns aos atores que desempenham esse
papel são concebidos como produzidos por regras sociais; os atores esperam que cada
um obedeça a essas regras e a sociedade espera que eles se comportem em função de
direitos e obrigações ligadas a seu papel. Finalmente, um papel social é composto por
uma série de atributos ou características próprias. Por exemplo: o papel de padre supõe
que o indivíduo celebre missas, que não seja uma criança e que tenha renunciado ao
casamento e à sexualidade. Para Parsons, o papel supõe uma definição institucionalizada, explícita ou implícita, das expectativas, normas e sanções que condicionam a
conduta do ator em consequência da posição que ele ocupa na estrutura social.
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A noção de papel social é inseparável da noção de status social, isto é, um conjunto de
comportamentos que um ator pode esperar legitimamente da parte dos outros. O médico,
em função de seu status, tem o direito de pensar que ele terá, em seu grupo social, certa
posição, que ele beneficiar-se-á de certo prestígio, e seus pacientes, por sua vez, esperam
ser atendidos e tratados por ele; esse é seu papel. Não existe, assim, papel sem status
nem status sem papel, pois o papel constitui o aspecto dinâmico do status. O papel, para
Parsons, é o status em ação. É sempre por intermédio de um papel que o “ego” entra em
interação com o “alter” que, por sua vez, está em interação com outros por intermédio dos
papéis sociais. Mesmo nossas relações mais íntimas são estruturadas por papéis sociais.
A interação implica, sempre, atores desempenhando seus papéis; uma instituição não
é nada além de uma pluralidade de papéis e de status complementares e coordenados
como, por exemplo, a família, a escola, a igreja.
Nessa concepção, a sociedade seria uma imensa rede de papéis sociais organizada em
uma ordem específica coerente e racional, por meio das instituições. Todos os indivíduos
de uma sociedade estão inscritos em redes e relações que são também rede de papéis.
Cultura, personalidade e sociedade
Em uma sociedade as instituições são quadros normativos, elas constituem cristalizações
relativamente estáveis do comportamento, ações compatíveis com as exigências funcionais da sociedade. A sociedade seria, assim, um conjunto de instituições que prescrevem
os comportamentos individuais, a fim de que eles sejam funcionais, que contribuam para
o bom andamento da sociedade. Esses comportamentos sociais são os papéis sociais.
Concretamente, a sociedade constitui-se como soma das interações de papéis sociais
estruturados por normas e organizados em instituições.
As normas podem ser compreendidas como a tradução prática dos ideais morais e dos
sistemas de interpretação correspondentes às exigências funcionais da vida social. Os
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modelos simbólicos de significações e de valores formam a cultura. Mas as normas são
colocadas em prática por indivíduos, cada um com sua particularidade. A personalidade
designa as disposições essenciais da pessoa individualmente. Essas disposições representam uma combinação de necessidades orgânicas e emocionais de caráter não social. Elas
se organizam em uma identidade individual ao longo da experiência social da pessoa.
A personalidade dos indivíduos constitui-se pela interação entre as disposições e pelos
valores, por intermédio dos papéis institucionalizados que eles são conduzidos a desempenhar. “O indivíduo é o ator que desempenha um papel, mas é também a pessoa que
coordena os motivos e as orientações” (PARSONS, 1973, p. 66). O indivíduo exerce,
de maneira autônoma, as atividades específicas e institucionalmente definidas. Ele é um
indivíduo institucionalizado. Na sociedade moderna, sua liberdade repousa na multiplicidade e diversidade de instituições às quais ele é ligado. Correlativamente, a sociedade
pode se definir como “uma coletividade, quer dizer, um sistema de indivíduos concretos
em interação que constitui o suporte essencial de uma cultura institucionalizada específica”. (PARSONS, 1973, p. 66)
Personalidade, cultura e sociedade são distinções analíticas e não realidades concretas.
Nessa perspectiva teórica, correspondem a diferentes níveis da vida social. Toda conduta social
pode ser interpretada a partir das relações entre esses dois níveis: o analítico e o concreto.
O valor simbólico liberdade implica uma orientação cultural voltada à liberdade dos
indivíduos. Como tal, é profundamente difundido e partilhado por personalidades e sociedades muito diferentes. Por exemplo, no plano do sistema social e das instituições, podemos pensar em modelos diferentes de organização para garantir a liberdade econômica.
As primeiras sociedades capitalistas salientavam a liberdade de compra e venda, como
se realiza no mercado. Mais tarde, com o advento do Estado Providência nas sociedades
europeias, a liberdade foi organizada de outra maneira, a fim de proteger os mais pobres,
a força de trabalho. No início, a liberdade existia principalmente para as classes superiores
e, em seguida, foi reduzida para aumentar aquela das classes populares. Os dois modos
de organização social são compatíveis com o valor liberdade.Desenvolvendo-se a análise
ao nível da personalidade, observa-se a mesma diversidade: a liberdade pode ser articulada a uma personalidade rígida e a um autocontrole pessoal muito forte. Nesse caso, a
liberdade corresponde a uma questão de disciplina e controle de paixões, enquanto em
outros tipos, a liberdade é vivida como a obediência espontânea a seus desejos e paixões.
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Tópico 3: A desigualdade e o conflito
A análise do processo de integração e de constituição da sociedade de indivíduos e seu
funcionamento através das instituições é o objeto central da sociologia funcionalista. A
ligação entre cultura, sociedade e personalidade permite compreender a integração da
vida social em seu conjunto. A transformação de valores culturais em conjuntos estruturais concretos, ou seja, em instituições assegura a integração social, porque permite pôr
em consonância as normas do sistema com as motivações dos indivíduos através dos
papéis sociais, assegurando o equilíbrio geral e funcional das estruturas diferenciadas da
coletividade. Vale lembrar, ainda, que a sociologia funcionalista não considera a sociedade totalmente desprovida de tensões. Reconhece a existência de conflitos que podem
apresentar uma dimensão patológica e ser desencadeados pelo mau funcionamento das
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A sociedade rumo a uma interpretação funcionalista
instituições e das estruturas sociais. No entanto, reconhece que o conflito pode apresentar
aspectos positivos para o equilíbrio da sociedade, como a questão da desigualdade social.
Kingsley Davis e Wilbert Moore (1945) estudaram o significado da estratificação que
se dá no interior das sociedades. Para os autores, todas as sociedades são estratificadas,
ou seja, existem diferenças entre os indivíduos em função das posições que ocupam:
algumas conferem prestígio, recursos financeiros e outras benesses, mas também comportam obrigações pesadas em termos de trabalho ou competências, são ligadas a funções
essenciais para o equilíbrio da sociedade. Assim, a desigualdade pode ser benéfica para a
sociedade, porque, para usufruir de uma posição, os indivíduos se esforçaram ao máximo
para consegui-la e, depois, cumprirão suas funções com zelo e competência para lá permanecerem. É por isso que a desigualdade é positiva; trata-se de um meio inconsciente
pelo qual a sociedade assegura que as posições mais importantes sejam ocupadas pelas
pessoas mais competentes.
A socialização
Para Robert Merton (1965 [1949]), a socialização pode ser definida como o processo por meio do qual as pessoas adquirem os valores, as atitudes, os interesses, as
qualificações e o conhecimento, ou seja, a cultura do grupo ao qual elas pertencem ou
desejam pertencer. Ela se refere ao aprendizado dos papéis sociais. Trata-se de um fator
essencial para o equilíbrio da sociedade.
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Nas sociedades modernas, o número de papéis a serem coordenados por um único
indivíduo é imenso. Em um sistema de ensino, por exemplo, centenas de professores vêm
de todos os lugares, mas devem ter sido socializados de uma maneira semelhante para
ser possível que desempenhem o mesmo papel. Isso só é possível graças à existência de
valores comuns ao conjunto da vida social que, por sua vez, deve ser estruturada por uma
cultura fortemente integrada, que permita a comunicação social entre todos os indivíduos, assim como referências suficientemente gerais a inúmeras situações sociais. Somente
a nação moderna – impondo uma cultura e valores baseados na universalidade da razão
– pode garantir, do ponto de vista teórico, a integração da sociedade.
Robert Merton afirma que uma sociedade funciona perfeitamente se as exigências do
papel social correspondem aos ideais e valores da cultura, assim como às disposições da
personalidade, a qual, por sua vez, só pode se afirmar a partir dos conteúdos da cultura. Esse
processo, que resulta em obrigações e significações ligadas ao papel social, deve desenrolar-se, ainda, de acordo com os recursos materiais e sociais necessários.
As instituições constituem o centro da vida social e, sobretudo, asseguram o equilíbrio e a harmonia. Elas têm uma função de socialização
e, também, de controle social, na medida em que prescrevem a cada
indivíduo o comportamento mais adequado às necessidades de estabilidade. Interiorizando essas exigências, o indivíduo as transforma em uma
moral que lhe permite conferir significados positivos ou negativos às suas
ações, tendo em vista suas obrigações institucionais. Dessa maneira, o
indivíduo deseja, moralmente, aquilo que deve fazer socialmente.
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Essa perspectiva teórica deve ser compreendida dentro do contexto histórico dos anos
1950 e 1960, marcado pela Guerra Fria e pelo crescimento econômico que permitiu a
recuperação de uma visão otimista em relação à sociedade moderna. Uma ordem racional
parece perfeitamente possível, e cabe à ciência definir as condições sociais para que isso
aconteça. As reflexões teóricas da época buscavam, mais do que representar fielmente a
realidade, definir as condições de equilíbrio de uma sociedade moderna, livre e desenvolvida. É dentro desse espírito que Parsons elabora seu modelo teórico e abstrato das
funções de um sistema social, precisando as condições de equilíbrio social: adaptação,
busca de objetivos, integração e latência.
A sociologia funcionalista tem dimensões críticas e conformistas. Situa-se claramente
dentro de um espírito de “otimismo modernizador” próprio dos anos 1950. Ela acredita
na integração da sociedade, legitima as normas sociais e a institucionalização dos valores
para evitar a anomia, valoriza o equilíbrio e o conformismo social. Mas reconhece que o
racismo é uma patologia da integração social, que o comportamento desviante é o produto de disfunção social. Reconhece, principalmente, que a sociedade não é o que pretende
ser e que ela deve ser transformada pela redução das desigualdades e pelo crescimento
da liberdade pessoal. A liberdade pessoal resultaria, por sua vez, de um equilíbrio entre o
conformismo pessoal e a crítica.
A partir do final da década de 1960, o pensamento funcionalista não conseguiu responder a todas as violentas críticas que lhe foram dirigidas, principalmente nos EUA, com
os movimentos sociais que sacudiram o país. A imagem de uma sociedade integrada em
torno de um consenso normativo foi danificada pelas contestações e pela própria evolução
das práticas sociais. Os movimentos estudantil e feminista desenvolveram-se no centro das
universidades americanas mais prestigiadas e foram conduzidos por pessoas “totalmente
integradas”. Foram elas que questionaram uma representação da vida social julgada conservadora, porque definia uma norma de integração identificada a uma população particular:
aquela dos homens brancos, anglo-saxões e protestantes, assim como uma imagem ideal e
institucionalizada dos EUA, mais precisamente da costa leste desse país. Em consequência,
as outras categorias de população e os outros países eram percebidos negativamente: eram
menos integrados e deviam conformar-se ao modelo central. Nos países “periféricos”, o processo de descolonização e a diversidade de modelos de desenvolvimento também põem
em xeque a ideia de um único modelo de modernização e de organização social e passam
a ver sob esse modelo uma forma de imperialismo cultural e econômico.
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As classes sociais
A sociologia funcionalista entende a sociedade moderna como uma sociedade nacional
construída em torno de instituições morais que permitem ajustar as motivações dos indivíduos às necessidades fundamentais da unidade social. Essa representação de sociedade,
no entanto, não foi a única a inspirar as reflexões sociológicas.
Além de uma entidade nacional, a sociedade moderna é, também, capitalista e industrial,
formada em torno de um modelo particular de dominação e constituída por desigualdades
mais ou menos acirradas. Ela não é somente o resultado de transformações na cultura e de
desenvolvimento da individualização; ela é o resultado de um formidável desenvolvimento
econômico e técnico, de uma acumulação, sem precedentes, de capital e trabalho.
Assim, os pensadores do século XIX percebiam o contraste singular entre esse desenvolvimento e a generalização da miséria. “A sociedade burguesa moderna que fez surgir
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A sociedade rumo a uma interpretação funcionalista
meios de produção e de troca poderosos, parece um feiticeiro que não sabe mais controlar as forças infernais que ele evocou” (MARX, 1960 [1923]).Diante do panorama social
catastrófico produzido pela Revolução Industrial e pelo desenvolvimento do capitalismo,
a questão social inscreve-se no centro do pensamento e do mundo modernos. É dentro
dessa perspectiva que se desenvolve a reflexão sobre as classes sociais e a desigualdade.
O desenvolvimento e a divisão crescente do trabalho têm uma contrapartida: a construção
de uma nova sociedade despedaçou os quadros antigos que protegiam os indivíduos mais
fracos e os deixou desarmados diante das forças da modernização. Marx, no Manifesto
Comunista, demonstra a criatividade da burguesia industrial e assinala até que ponto ela
sacudiu as instituições tradicionais e destruiu as antigas sociedades.
A burguesia desempenhou na história um papel eminentemente revolucionário. Onde quer que tenha conquistado o poder, a burguesia destruiu as
relações feudais, patriarcais e idílicas. Rasgou todos os complexos e variados
laços que prendiam o homem feudal a seus “superiores naturais”, para só
deixar subsistir, de homem para homem, o laço do frio interesse, as duras
exigências do “pagamento a vista”. (MARX: ENGELS, 2005, p. 42)
Com a emergência da questão social, a sociedade moderna parece fabricar seu contrário: os que produzem a riqueza o fazem em proveito de outros e não se beneficiam de
seu trabalho; a produção industrial crescente permite a acumulação de recursos, mas a
miséria e a degradação da condição humana desenvolvem-se entre os operários, enquanto os criadores do sistema – a burguesia – parecem incapazes de administrar o caos. A
polarização social é entendida não como o resultado de uma distribuição desigual de
recursos, mas como uma antinomia interna, um antagonismo formal, porque o desenvolvimento pessoal de quem se desenvolve com a modernização significa a exclusão dos
que trabalham e produzem as riquezas.
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Nesse momento é necessário registrar o aparecimento dos movimentos operários e a construção das associações e dos partidos políticos. Timidamente, com
muitas dificuldades, aparecem ações operárias, como greves e quebra de máquinas,
e desenvolvem-se pequenas associações que se transformarão, no final do século, em
sindicatos operários; desenvolvem-se utopias críticas sobre a nova ordem.
É nesse contexto que se desenvolve uma análise da sociedade em termos de classes
sociais e conflito de classes. Tal análise parte da convicção de que a lógica das ideias
e da cultura não pode explicar os comportamentos sociais e a natureza da vida social:
pensamentos assim são encarados como ideologia, uma visão falseada da realidade que
deve ser desmascarada; o avanço da produção, ainda que acompanhada da miséria, faz
supor que a sociedade repousa antes de tudo sobre o trabalho e as dimensões materiais,
concretas, da existência (MARX, 1957).
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Sociologia, produto da sociedade
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Assim, a sociedade define-se a partir de um modo específico de organização
da produção – a infraestrutura –, ao nível das relações de produção que determinam, em última instância, a superestrutura política, institucional e cultural. A sociedade
constitui-se como um conjunto hierarquizado no qual diferentes instâncias relacionam-se entre si: a economia, a vida social, a política e a cultura; é uma sociedade industrial
porque está baseada na produção industrial e organizada em torno de relações que se
encadeiam na empresa. A sociedade não significa mais a institucionalização de uma
cultura, ela se define pelo controle da natureza por meio do trabalho humano.
Agora que terminamos a leitura do Tema 2, vamos acessar a Aulaweb para revisar
e aprofundar nossos conhecimentos por meio de vídeos, exercícios e autotestes,
entre outros.
Referências bibliográficas
RedeFor
DAVIS, K.; MOORE, W. E. Some principles of stratification. In: Class, status and power.
Edited by R. Bendix and S. M. Lipset. New York: Free Press, 1945. p. 47-53.
MARX, K. Contribution à la critique de l ´économie politique. Paris: Editions Sociales, 1957.
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MERTON, R. Eléments de théorie et de méthode sociologique. Paris: Plon,1965 (1949).
PARSONS, T. Sociétés, essai sur leur evolution comparée. Paris: Dunod, 1973. p. 51.
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