Teatro, memória e filme etnográfico: a Barafonda da Cia São Jorge

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Projeto de Pesquisa
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Projeto de Pós-Doutoramento a ser desenvolvido junto ao Departamento de
Antropologia da Universidade de São Paulo e ao Projeto Temático “A
Experiência do Filme na Antropologia” (Processo FAPESP 09/52880-9).
Título
Teatro, memória e filme etnográfico: a Barafonda da Cia São Jorge de Variedades.
Pesquisadora
Carolina de Camargo Abreu
Supervisora
Rose Satiko Hikiji
Maio de 2012
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Resumo
Este trabalho é disparado pelas provocações do espetáculo de rua Barafonda do grupo de
teatro de pesquisa Companhia São Jorge de Variedades que percorre a memória do bairro
paulistano da Barra Funda. Interrompendo o fluxo das máquinas velozes da grande cidade, a
Barafonda da Cia. São Jorge abre brecha no cotidiano do bairro para fazer-se ouvir histórias de
outros carnavais, jogos de futebol de várzea, poetas desconhecidos, utopias, esperanças e tensões.
Através da dinâmica extraordinária da performance teatral irrompem memórias soterradas ou que
correm risco de esquecimento.
A pesquisa investiga o potencial crítico do audiovisual na produção de conhecimento
antropológico através da realização de um filme etnográfico que procura articular pontos de contato
entre o pensamento de Walter Benjamin e o trabalho de Jean Rouch. Aproveita as provocações de
Barafonda para adentrar a Barra Funda contemporânea e desenvolver diálogos entre a arte e a
antropologia, entre as linguagens artísticas e a retórica científica. Ou ainda, entre teatro, cinema e
antropologia.
Palavras-Chave
Antropologia Visual, Antropologia Benjaminiana, Antropologia da Performance, Artes Cênicas,
Filme Etnográfico.
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Abstract
This work starts from provocations of the street theater Barafonda of Companhia São Jorge
de Variedades group that permeate the memory of São Paulo's neighborhood called Barra Funda.
Interrupting the flow of fast machines of the big city the Cia. São Jorge's Barafonda opens gaps in
the daily dynamic to listen stories of carnivals, soccer games, unknown poets, utopias, hopes and
tensions. Through the very special dynamic of theater performance buried memories or memories
in the verge of oblivious emerge.
This research investigates the critical potential of the audiovisual in the production of
anthropological knowledge through making an ethnographic film that aims to articulate points of
contact between Walter's Benjamin's thought and Jean Rouch's work. It takes the provocations of
Barafonda to enter actual Barra Funda and develop dialogs between art and anthropology, between
artistc languages and scientific rhetorical. It's about theater, cinema and anthropology.
Key Words
Visual Anthropology, Benjamin’s Anthropology, Anthropology of Performance, Performing Arts,
Ethnographic Film.
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Sumário
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PRÓLOGO .........................................................................................................................
1
INTRODUÇÃO E JUSTIFICATIVA ................................................................................
2
O “olhar cinematográfico” do teatro ........................................................................
7
O teatro da antropologia ..........................................................................................
11
OBJETIVO E HIPÓTESES ................................................................................................
12
A antropologia pelo cinema .....................................................................................
15
RESULTADOS ..................................................................................................................
17
METODOLOGIA E CRONOGRAMA DE EXECUÇÃO ................................................
17
BIBLIOGRAFIA CITADA ................................................................................................
18
Numa fração de segundos, quando os olhares se tocam, reconhecem-se e se
estranham, acontece a comunhão com o que ainda resta de humano em nós, nesta
centelha de vida cada um constrói sua história com as regras do agora.
(Paula Klein, Cia. São Jorge de Variedades, 2010: 113)
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PRÓLOGO
“Assassino!”, brada Prometeu contra Hércules em meio ao ruído incessante dos automóveis
que passam pelo Minhocão. Hércules acabara de atingir a águia com sua quarta flecha1, disparada
de cima da estátua de bronze erguida pela Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo em
homenagem ao Dr. Luiz Pereira Barreto.
Prometeu acorrentado e Hércules, seu libertador, surgem na segunda cena da Barafonda que
a Companhia São Jorge de Variedades (grupo de teatro de pesquisa) vem realizando nas tardes das
sextas-feiras deste outono pelo bairro da Barra Funda. Espetáculo de rua encenado por 25 atores e
quatro músicos, Barafonda percorre quase dois quilômetros ocupando praças, calçadas, esquinas,
rotatórias, passarelas... atravessando a linha do trem.
Barafonda – s.f. 1. situação em que não há controle ou ordem, na qual um grupo de pessoas
produz tumulto, pandemônio. 2. mistura desordenada de coisas diversas; mixórdia,
baralhada, bagunça. 3. bordado de agulha sobre pano desfiado; crivo. 4. aglomerado
populacional onde havia confusão e balbúrdia. 2
Eu, espectadora interessada que sou do teatro, da cidade, da vida social, vibro, deixo-me
provocar, “deixo-me afetar” (cf. Favret-Saada, 2005). Não sou uma das transeuntes que pára,
desavisada, curiosa ou confusa com o que está acontecendo. Não. Eu estou lá já com uma câmera
de vídeo na mão e um projeto de pesquisa na cabeça. O meu susto é algo diferente. Nem tanto
espanto com o insólito construído pelo teatro no meio da rua. Muito mais desolação diante os
cumprimentos trocados entre Marechal Deodoro e o Presidente Costa e Silva [ora incorporados por
atores] que, então, são atravessados por um catador de lixo empunhando carroça na disputa por
espaço entre ônibus gigantes da Mercedes Benz que correm pela Avenida General Olímpio da
Silveira.
Em frente da placa da estação de metrô batizada com seu nome, Marechal Deodoro saúda o
colega debruçado no Elevado Costa e Silva (o Minhocão): “Ó, mais elevado de todos os Silva. Meu
presidente. Olha onde chegou a minha criação... elevou-se. A minha república é a tua”. Entre eles,
quase invisível, completamente anônimo, passa um dos milhares de carrinheiros que subsistem com
o lixo da cidade.
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1
Prometeu é personagem da última das tragédias mais antigas no teatro grego, escrita por Ésquilo (525 ou 524 – 458
a.C.). Das noventa obras criadas pelo autor, o mais velho dos três grandes dramaturgos gregos e criador da tragédia em
sua forma definitiva, apenas sete restam completas. (Kury, 1993) Do pouco que se conhece, graças a fragmentos de
Prometeu libertado, a terceira peça da trilogia iniciada com Prometeu acorrentado, Herácles mata a águia que devorava
incessantemente o fígado de Prometeu. Eis que na versão apresentada Herácles aparece como Hércules. Ver também
Heiner Müller, "A libertação de Prometeu"(1993).
2
Verbete que abre o editorial do fanzine Jorges, número 8, especialmente dedicado ao Projeto Barafonda da Cia. São
Jorge de Variedades em sua pesquisa sobre a história da Barra Funda, o “coro-entidade” nas festas populares
tradicionais e as relações de habitação desta companhia de teatro no bairro, que desde 2004 instalou sede na Rua Lopes
de Oliveira número 342.
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1!
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O que irrompe na brecha aberta pela ação teatral é a aparição do passado no presente. Como
num flash o catador de lixo do agora revela algo de perverso de uma longa história de políticas
nacionais. Histórias monumentais de marechais, generais e presidentes que abriram caminho para
que as máquinas de transporte da metrópole alcançassem alta velocidade.
Eis que o catador dos restos do dia que passou – ora enquadrado pela performance do teatro
da Cia. São Jorge – é capaz de fazer despertar a própria memória involuntária da cidade. O catador
surge como resíduo de uma longa relação de expropriação. Humano-resíduo, figura dialética,
imagem carregada de tensões: sem lugar nas instituições políticas e sociais centrais, ele marginal,
informal, exerce alguma autonomia, ou ainda, suporta múltiplas possibilidades 3.
Eu, espectadora interessada que sou no teatro, na cidade, na vida social, deixo-me afetar
pelo turbilhão de lampejos que surgem das provocações da Cia. São Jorge, mas, desta vez, já com
uma câmera na mão e um projeto de pesquisa na cabeça.
INTRODUÇÃO E JUSTIFICATIVA
Este projeto de pós-doutorado é fruto de descobertas e inquietações que acompanharam
minha tese de doutorado defendida no início de março de 2012 no Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social da Universidade de São Paulo. Intitulada Experiência rave: entre o espetáculo
e o ritual, a tese procurou iluminar a experiência das festas de música eletrônica (as raves) – e da
sociedade que as produz – ressaltando suas contradições e seus inacabamentos sob inspiração de
leituras de textos de Walter Benjamin.
Seguindo o caminho aberto pelos trabalhos de John Dawsey (2009) para uma perspectiva
benjaminiana na antropologia4, minha pesquisa voltou atenção aos ruídos, aos esquecimentos e aos
elementos não-resolvidos produzidos pela performance da festa tecnológica a partir de diálogos
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3
Não é raro encontrarmos um carrinheiro forte, orgulhoso de sua força de trabalho, que parece sorrir com algum
deboche. Acredito que o documentário Estamira (2006), de Marcos Prado, por exemplo, aborda exatamente essa força
(e esse riso debochado) de uma mulher catadora de lixo que sobrevive com o Aterro Sanitário do Jardim Gramacho
(RJ).
4
Em 2009, John Dawsey publicou texto específico “Por uma antropologia benjaminiana: repensando paradigmas do
teatro dramático”, mas as questões levantadas por essa perspectiva já estavam presentes desde a defesa da sua tese de
livre-docência De que riem os ‘Bóias-Frias’? Walter Benjamin e o Teatro Épico de Brecht em Carrocerias de
Caminhões (1998). Ver também Turner, Benjamin e antropologia da performance: o lugar olhado (e ouvido) das
coisas (2007). Michael Taussig é outro dos antropólogos que também abriu possibilidades para uma leitura crítica da
vida social a partir dos textos de Benjamin. Sobre este último, ver especialmente Xamanismo, colonialismo e o homem
selvagem: um estudo sobre o terror e a cura (1993a) e Mimesis and alterity: a particular history of the senses (1993b).
Uma lista de diversos trabalhos na antropologia que dialogam com a perspectiva benjaminiana foi elaborada por AndréKess
Schouten
em
sua
atual
pesquisa
para
o
doutorado
e
está
disponível
em:
<http://arquivoswbdeantropologia.net.br/escritos/#em-antropologia>.
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com o campo da antropologia da experiência e da antropologia da performance (cf. Turner, 1987 e
2005)5.
Além de apresentar oito capítulos escritos, a tese ainda foi composta por três vídeos. Os
vídeos entregues, tal como os textos, configuraram ensaios experimentais (cf. Adorno, 2003) que
procuraram refletir sobre, não apenas expressar, o processo de exploração do campo de pesquisa.
Embora o primeiro projeto previsse, cinco anos antes, o uso de uma câmera de filmar apenas
como um instrumento de registro – que então parecia muito apropriado para o estudo da “interação
peculiar entre as pessoas” nessas festas de música eletrônica, a chamada vibe da rave –, a iniciativa
de filmar operou uma pequena revolução em todo o processo de pesquisa.
6
As! gravações!
deixavam!à!mostra!minhas!estratégias!em!campo!para!conseguir!cooptar!pessoas!para!minha!
pesquisa,! meu! jeito! desengonçado! de! me! apresentar,! vacilante,! às! vezes! tímido! com! as!
palavras,! mas! intrusivo! com! a! câmera.! As! gravações! também! revelaram! como! eram!
produzidos!alguns!dos!discursos:!pela!minha!escolha!dos!enquadramentos,!e,!contrariamente!
à!minha!vontade,!pela!repetição!espontânea!de!frases!e!idéias!que!as!pessoas!haviam!ouvido!
da! minha! boca! instantes! antes.! Tive! a! impressão! de! que! algumas! pessoas! se! comportavam!
para!a!câmera!para!serem!escolhidas,!incluídas,!elaborandoHse!como!personagens!de!acordo!
com!o!que!acreditam!ser!do!gosto!da!pessoa!que!olhava!pela!lente.7!
A máquina que se interpõe registra, re-apresenta apenas um fragmento visível e audível,
sempre precário, mas importante, de um fluxo de seduções mútuas. No material gravado, encontrei
diversos quadros de pessoas que fitam a lente e sorriem. Esses quadros me fizeram perceber que era
eu antes que sorria, fascinada pelo que via nas pistas de dança, já imaginando que tipo de vídeo eu
poderia montar. Eles sorriam para mim, ou talvez de mim.
No processo de produção fílmica alguma inocência foi perdida8: foi perdida a arrogância
inocente de quem ainda não tinha se dado conta que o modo pelo qual o antropólogo coloca suas
interrogações aos sujeitos que lhe informam não é apenas uma escolha metodológica, mas também
ética e epistemológica.
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Ainda que o trabalho de Victor Turner durante toda a década de 1970 e início de 1980 tenha se voltado ao estudo dos
rituais, de expressões teatrais e o enredo de revoluções sociais, configurando seu interesse pelas performances culturais,
o último dos textos escrito pelo antropólogo expressa seu interesse na organização do campo de uma antropologia da
experiência que amplificaria e conteria os estudos da antropologia da performance.
6
Na época de redação do projeto de pesquisa eu não havia antes experimentado realizar trabalho de campo com uma
filmadora, nem mesmo sabia operar uma filmadora. O desenvolvimento do doutorado requereu cursos específicos de
capacitação técnica (direção de documentários, edição de vídeo), além de pesquisa filmográfica e bibliográfica sobre
produções da antropologia visual.
7
A impressão de que as pessoas se portam como personagens quando diante de câmeras e gravadores é reportada desde
os primeiros trabalhos antropológicos, no século XIX. Sobre a temática ver David Mac Dougall (2006). Também
devemos considerar o necessário caráter performativo da construção das identidades sociais, tal como aponta Erving
Goffman (1995) e teoriza Judith Butler (1993).
8
Anna Grimshaw dedicou um dos capítulos de seu livro The Ethnographer’s Eye (2001) à análise do romantismo que
caracterizou os projetos antropológicos de Flaherty e de Bronislaw Malinowski com o sugestivo título “The innocent
eye: Flaherty, Malinowski and the romantic quest”.
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A prática fílmica pôs em xeque questões cruciais quanto à antropologia que eu pretendia
realizar, sugerindo, inclusive, a realização do que antes não fora previsto: a apresentação de
narrativas audiovisuais para compor a tese.
Marc-Henri Piault (1995) pontuou que o desenvolvimento da antropologia, como um projeto
específico e deliberado, é contemporâneo ao nascimento do cinema já que os primeiros filmes
foram, de fato, etnológicos: produzidos para descobrir, ver e entender as situações sociais e restituir
não somente a materialidade das produções, mas também os movimentos e expressões.
O uso de uma observação dinâmica e totalizante, a passagem pelo “campo” e assim, a
experimentação, faziam do cinema e da etnografia os filhos gêmeos de um empreendimento
comum de descoberta, de identificação, de apropriação e, talvez, de uma verdadeira devoção
do mundo e de sua história. (Piault, 1995:27)
Embora o uso do audiovisual na antropologia tenha sido em princípio motivado pelo intuito
de registro e exposição de fenômenos sociais, inspirado numa ideologia positivista, a prática do
fazer fílmico levantou diversas questões reflexivas sobre a produção do conhecimento
antropológico desde, pelo menos, meados do século XX, exemplarmente nos trabalhos de Jean
Rouch e do casal Judith e David Mac Dougall.9 Conforme pontua Piault:
A abordagem da antropologia visual não está apenas voltada para a conservação nem
mesmo pode ser reduzida à invenção de um novo setor de apropriação identitária e que seria
a cultura dos gestos, das palavras e das emoções (...). A interrogação é sobre a abordagem e,
ao mesmo tempo, sobre os objetos a que ela se dedica: sua natureza, sua especificidade, as
relações que desenvolvem entre si e com aquele que as observa dentro das condições
particulares desta observação. Não apenas o que olhamos, mas a maneira de olhar,
reconhecer, distinguir neste trajeto do olhar e da escuta. Trata-se igualmente – e talvez seja
este um propósito mais profundo do que o de ajustar e polir a abordagem antropológica, de
precisar seus métodos ou ampliar os lugares de seu exercício – de clarificar a natureza de
um procedimento que tende a uma abordagem indefinida e assintomática da alteridade:
apropriar-se do sentido sem, no entanto, reduzir as exigências lógicas particulares e
mascarar a solução de continuidade que permite conservar na diferença toda sua
autenticidade. (Piault, 1995: 27-28)
Enquanto as críticas à representação da escrita etnográfica ganharam força apenas nos anos
1980 com a edição de Writing Culture: the Poetics and Politics of Etnography (1986) por James
Clifford e George Marcus, David Mac Dougall (1999) lembra-se que já durante o início dos anos
1960, para muitos dos antropólogos que estavam fazendo filmes, foi importante declarar – polêmica
e emblematicamente – a presença autoconsciente do cineasta através de uma radical revisão das
técnicas de filmagem e edição. Com o intuito de ressaltar a base contingente e historicizada da
descrição social nos filmes, eles moveram o documentário da tradição do anonimato em direção a
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9
Peter Loizos (1993) tratou as inovações na realização de filmes etnográficos no período entre 1955 e 1985 exatamente
como o caminho da inocência teórica e epistemológica para a autoconsciência na produção fílmica da antropologia.
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um cinema mais autoral, e com isso enfatizaram para os espectadores o fato do filme ser um
produto humano, uma construção, e não uma janela transparente para a realidade.
Pioneiro neste movimento, Jean Rouch, escancarando a retórica naturalista do realismo
fílmico em meados dos anos 1950, colocou em evidência o caráter representacional da etnografia e
do documentário. Sua produção fílmica produziu uma antropologia que, além de reconhecer a
subjetividade do autor como via de acesso legítimo para a objetividade almejada pelo pesquisador,
também discutiu a impossível dissociação entre inovações técnicas e propostas éticas, entre
preocupação estética e objetivo teórico.
Sobre a potência da reflexividade crítica da antropologia visual, chama minha atenção a
exigência de David Mac Dougall (1998) quanto uma reflexividade na produção fílmica que não seja
simplesmente uma estratégia estética, já que é também, principalmente, uma posição ética que deve
ser esclarecida.10 Sua proposta, que toma forma no conceito de “reflexividade profunda” [deep
reflexivity] (Mac Dougall, 1998: 89), vai além da noção formalista de desfamiliarização, ou
intertextualidade, desde que se dirige à forma propriamente do filme: a natureza social da
representação.11
Não é ao realismo que David Mac Dougall endereça sua crítica, pois demonstra que
reflexividade e realidade coexistem com a representação, e não são separáveis. Ele adverte que
muitos filmes tendem a usar a auto reflexividade apenas como referência de uma fórmula ou estilo,
sem garantir o exercício dessa reflexão de forma “intrínseca e implícita ao filme”. Anúncios
externos ao que versam sobre as características da linguagem, das técnicas fílmicas e da extensão
do trabalho de campo, comportam sempre o objetivo, ainda que não consciente, de exercer certo
controle sobre os significados das imagens apresentadas. E mais, isso implica, ao mesmo tempo, a
crença em uma interpretação mais “correta” por parte da audiência e um investimento nesta direção,
subestimando a multiplicidade de leituras que pode feita.
Esse seria também um modo de restaurar a representação de uma objetividade científica e
manter a ideologia do positivismo do século XIX intacta: objetivo separado de objeto, corpo
separado de mente, obra separada do espectador/leitor. Esse tipo de reflexividade externa perpetua o
que Marilyn Strathern (1987) chamou de “a ilusão do escritor transparente”, pela qual o autor
assume um nível privilegiado de discurso fora do trabalho e limpa o texto (e o filme) de sua
contingência. 12
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10
Sobre o assunto redigi o ensaio intitulado “Reflexividade antropológica no fazer fílmico” publicado nos anais do
Simpósio Performance e o Filme Etnográfico realizado em 2009 durante o 53º Congresso Internacional de
Americanistas.
11
Pontua Mac Dougall (1998:87): "Reflexivity in fact involves putting representation into perspective as we practice it".
12
Johannes Fabian, em Time and The Other (1983), uma década antes, apontara uma contradição inerente da prática
antropológica até a virada da antropologia crítica no final dos anos 1970: se por um lado o conhecimento antropológico
era produzido no curso do trabalho de campo através de comunicação intersubjetiva entre antropólogos e interlocutores,
por outro lado, as formas tradicionais de representação etnográfica requeriam a supressão das realidades dialógicas que
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A “reflexividade profunda” não se restringe a um meta comentário anterior ao trabalho, nem
um artifício descolado, vai além de um momento fugaz de autoconsciência, expressa-se como uma
postura que orienta todo o fazer fílmico de um autor, por isso Mac Dougall requer a codificação do
trabalho reflexivo do cineasta no próprio material do filme. O autor parte do reconhecimento de que
a posição do cineasta não é nem uniforme nem fixa, mas se expressa através do envolvimento
multivalente, instável e constante com os sujeitos filmados. O trabalho de campo geralmente se
desenvolve como exploratório e intuitivo, como um processo dinâmico que afeta de vários modos, e
de forma irregular, a pesquisa. Pode-se dizer que, para Mac Dougall, o processo de um trabalho
antropológico segue como a descoberta progressiva sobre o que é essa relação.
O filme articula qualidades particulares de engajamento com o mundo – um engajamento
intelectual, social, e também emocional. Esse é o engajamento que estimula o olho e a mente atrás
da câmera a ver de modo distinto, que é notado como presença do cineasta através de pequenos
detalhes e respostas, que apenas pode ser “lido” no âmbito peculiar do expressivo e do sutil dessa
reflexividade.
Interessa-me ressaltar, neste momento, que o questionamento ético e epistemológico da
antropologia visual encontraram-se felizmente com minhas intenções de produzir uma antropologia
crítica. Tal encontro, possibilitado pelas leituras orientadas por Rose Satiko Hikiji na disciplina
"Antropologia e audiovisual: comunicação e narrativa", requereu um estudo específico sobre
linguagens artísticas e antropológicas, suas eficácias e as políticas que engendram. O estudo revelou
contaminações e provocou inversões inesperadas. O texto passou a ser montado sob a inspiração de
técnicas cinematográficas, e o ato de filmar deixou de ser apenas registro para se revelar um modo
particular de tecer narrativa.
Na tese, a apresentação do texto atendeu à orientação benjaminiana de montagem de
citações em choque inspirada na concepção do cineasta russo Sergei Eisenstein (2002) e nas
montagens surrealistas. Por outro lado, os vídeos exploraram o encontro etnográfico, algumas de
suas expectativas e motivações. O vídeo Tribo Planetária13 (36 min.), por exemplo, filmado durante
o festival Universo Paralello de 2010, procurou não apenas acessar o “contexto sensorial” (cf. Pink,
2006)14 peculiar dos festivais de música eletrônica, como também certo imaginário sobre a
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geraram as ideias antropológicas. A supressão da simultaneidade e da contemporaneidade do encontro antropológico
cria um “presente etnográfico” retórico que sustentou, por mais de um século, a legitimidade científica da antropologia
e engendrou discursos a serviço da dominação colonial no processo de globalização capitalista.
13
Vídeo selecionado para compor a Mostra de Filme Etnográfico organizado pela Associação Brasileira de
Antropologia – ABA, a ser realizado durante os dias 2 e 5 de julho de 2012 e a concorrer ao prêmio Pierre Verger deste
ano.
14
Sarah Pink, em The future of visual anthropology: engaging the senses (2006), debruça-se especialmente sobre as
potencialidades e as limitações do audiovisual a ponto de sugerir que a experiência e o conhecimento visual adquirem
interesse antropológico por causa de suas relações com outras experiências, conhecimentos e representações sensoriais.
Pink pontua o quanto é problemático separar o visual dos outros sentidos e caracteriza o empreendimento antropológico
como exploração e estudo etnográfico de “contextos sensoriais”.
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sociedade globalizada que produz e reproduz tal festejar. Com outro recorte, o vídeo Minha
geração rave anos 90 (37 min.) apresentou depoimentos do meu grupo de amigos mais próximos
com o qual eu frequentei e organizei raves, mas que há quase dez anos não vai mais a essas festas.
A ideia foi de adentrar, através de uma conversa franca entre amigos, os conhecimentos produzidos,
as memórias e os esquecimentos operados pelo festejar rave.
Esses vídeos que compuseram a tese, mesmo que dedicados a questões diferentes, em
comum abordaram lacunas do trabalho de campo, a posição dividida e o controle imperfeito por
parte da etnógrafa. Neste sentido, especialmente neste sentido, aproximaram-se do enfoque
benjaminiano, orientado por uma dramaturgia brechtiana que expõem as condições de produção e
as retóricas da sua narrativa. Porém, embora eu tenha proposto um experimento de antropologia
não-dramática para aquela tese, de fato, nenhum dos vídeos produzidos naquele momento
conseguiu romper com o paradigma e a estrutura da cinematografia dramática – pelo menos tal
como eu acredito ter realizado nos ensaios escritos e no encadeamento entre textos e vídeos. Eis a
questão inquietante que motiva este projeto de pesquisa: será possível uma antropologia visual
benjaminiana? Há indícios que sim. Eu encontro indícios da possibilidade de uma antropologia
visual propriamente benjaminiana nos trabalhos da Cia. São Jorge de Variedades e em alguns dos
filmes de Jean Rouch.
Este projeto surge, então, de um interesse teórico, meu interesse em experimentar as
potencialidades críticas na produção fílmica, para, a seguir, desenvolver diálogos entre a arte e a
antropologia, entre as linguagens artísticas e a retórica científica. Entre teatro, cinema e
antropologia.
O “olhar cinematográfico” do teatro
Instaurando palco em locais antes imprevistos, desarrumando convenções, a Companhia São
Jorge de Variedades há mais de 10 anos abre espaço para associações surpreendentes.
Com a peça Um Credor da Fazenda Nacional, a segunda montada pela companhia, o grupo
ocupou corredores e cantos do Teatro Laboratório da USP em 1999, quando, então, o público era
convidado a vagar junto com o credor José Joaquim pelos intermináveis caminhos da burocracia.
Espaços foram meticulosamente pesquisados e escolhidos de modo a causar sensações físicas
(confinamento, pequenez) e construir o clima de despotismo que a burocracia da fazenda nacional
exerce sobre o personagem título. Para tal, o grupo também estudou A Poética do Espaço (1993), de
Gaston Bachelard, comenta Paula Klein (2010) – uma das atrizes da companhia em sua dissertação
de mestrado em artes cênicas. Os recortes operados cenograficamente no espaço, a partir, então, do
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que Kelin chamou de “desenvolvimento de um olhar cinematográfico”
15
pelo grupo, atendiam a
uma proposta precisa da Cia. São Jorge: “criar em relação a”.
O convite a uma participação ativa dos espectadores na construção e na significação da obra
parece ser orientação fundante dessa companhia, ou pelo menos, desde que seus participantes
animaram-se com uma exposição de Artur Bispo do Rosário, Hélio Oiticica e Lígia Clark montada
no Paço das Artes, na USP, no final dos anos 1990.
Em 2001, com a criação da peça Biederman e os Incendiários, os espectadores foram
“convidados” à casa do casal Biederman: uma arena intimista onde todos podiam se olhar e se
observar de perto. Apenas outra forma de realizar “o desejo de estabelecer uma comunicação franca
com espectador, de ser humano para ser humano”(Klein, 2010: 15).
Eis que o desenvolvimento de um “olhar cinematográfico” pelo grupo parece ser mais do
que a sugestão de uma perspectiva já que trata especificamente da construção de uma experiência
de interlocução.
Com a montagem de As Bastianas, durante o período entre 2002 e 2004, a companhia
instaurou, definitivamente, uma “nova arte de assistir” ligada, então, “à arte de fazer coletivamente”
(Klein, 2010: 91). Através da montagem desse espetáculo, processo então desenvolvido em abrigos
para pessoas em situação de rua na cidade de São Paulo, a Cia. São Jorge deu vazão à sua declarada
“vontade de criar junto com o público”, envolvendo-o desde a concepção até as performances
semanais que aconteceram nos espaços dos albergues. Neste processo, os membros do grupo
descobriram, conforme anota Klein, um novo jeito de lidar com a plateia: “em pé de igualdade, sem
hierarquia para construção da cena” (2010: 111).
O “olhar cinematográfico” desenvolvido pela Cia. São Jorge, mais do que a sugestão de uma
perspectiva, diz respeito à deliberada construção de uma experiência política e sensível, pode-se
dizer: ética e estética.
Neste sentido, os espetáculos não são concebidos como apresentações para uma platéia, mas
constituem, antes, oportunidades para um “jogo” particular: o jogo que se estabelece entre atores e
espectadores em situação cênica. De fato, a vontade de interlocução com o público e o suporte para
uma polifonia de interpretações, ainda que seja peculiar no trabalho da Cia. São Jorge não é
particular dela, surge como tendência de diversas experimentações teatrais a partir da segunda
metade do século XX – caracterizadas por Hans-Thies Lehmann (2007) como pós-dramáticas
16
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15
Um “olhar cinematográfico” que opera escolhas e recortes para a constituição do espaço cênico ocupado pela Cia.
São Jorge não chega a constituir um conceito, mas surge como modo de descrição usado no texto de Klein (2010) em
três diferentes momentos. Embora sem aspas, e anotada despretensiosamente, tal ideia chamou minha atenção.
16
Lehmann (2007), mesmo sem delimitar um campo preciso, conceitua uma enorme variedade de experimentações
teatrais e performáticas como pós-dramáticas a partir da ideia do rompimento com a centralidade do texto dramático e
de novos modos de tratamento dos signos teatrais. Esse teatro pós-dramático “se torna mais presença do que
representação, mais experiência partilhada do que comunicada, mais processo do que resultado, mais manifestação do
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8!
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Ainda assim, é bastante maduro e marcante no trabalho dessa companhia a precisão com a qual suas
peças sacrificam sugestões de sínteses interpretativas para fundarem o teatro como acontecimento
de momentos intensos, construídos pela atividade conjunta de todos os presentes na atualidade
compartilhada do aqui e agora.
As montagens da Cia. São Jorge geralmente veiculam significados que não encontram
palavras imediatas, mas estão a espera de denominações, parecem antes se dirigir à experiência
sensorial partilhada do que à análise puramente intelectual. Suas montagens apresentam formas
estéticas (musicalidades, gestualidades, caminhos e composições espaciais, figurinos, alimentos,
etc.) que se valem da sinestesia entre os sentidos para mobilizar memória, afetos e sensações. Um
teatro que é processo de comunicação multisensorial e de percepção dialógica, que vale-se da
produtividade do campo estabelecido pelo jogo teatral entre o palco e os espectadores.
As peças da Cia. São Jorge parecem trabalhar pela instauração de certo transe compartilhado
entre espectadores e atores visando um teatro ritualístico, tal como fora requerido por Antonin
Artaud (1999). Ao mesmo tempo, sua dramaturgia deixa à mostra muitos dos artifícios das técnicas
de encenação, tal como sugerido por Brecht, a fim de garantir que o acontecimento artístico
caminhe lado a lado com uma situação pedagógica17.
Se por um lado, o tempo extraordinário instaurado pelo teatro produz um afastamento da
vida cotidiana a fim de abrir oportunidade para seu estranhamento, a dramaturgia da Cia. São Jorge
procura também resgatar algo da dimensão cotidiana do ritual. Por exemplo, sobre As Bastianas,
Klein (2010:116) comenta: “a música celebra e aproxima, ritualiza e, ao mesmo tempo,
coloquializa. A diluição do limite se dá quando as atrizes dizem o texto como quem conversa,
cantam como se estivessem numa roda de amigos. O ritual mágico, inusitado, torna-se então,
próximo e familiar”.
A imbricação entre o tempo cotidiano e o tempo performático18, a justaposição de cenas
insólitas criadas pela dramaturgia teatral com imagens corriqueiras de situações cotidianas, é
especialmente explorada pelo espetáculo Barafonda da Cia. São Jorge, dedicado, de alguma forma,
à própria São Paulo, pois que toma a Barra Funda como bairro emblemático do desenvolvimento da
cidade.
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que significação, mais energia do que informação.” (:143). Trata-se, também, da busca por novas combinações de
modos de trabalho, instituições, lugares, estruturas e pessoas.
17
Sobre as estratégias contemporâneas para a efetivação da proposta brechtiana por uma pedagogia do espectador ver
Flavio Desgranges (2003). Através da desconstrução do palco, do desnudamento da cena, assumindo a teatralidade do
evento, Brecht pretendia que o espectador ganhasse intimidade com a linguagem teatral, apropriando-se de recursos
para se tornar um “especialista”.
18
Sobre algumas peculiaridades do tempo performático instaurado como temporalidade extracotidiana pelas e nas
performances culturais ver a coletânea Tempo e Performance (2007).
!
9!
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Em cartaz desde o dia 4 de maio de 2012, com uma temporada de apenas dez apresentações,
o espetáculo é fruto de um amplo projeto de pesquisa iniciado em 2010 19, que procurou estabelecer
aproximações entre as origens do teatro, os coros gregos e as festas populares brasileiras com a
história da Barra Funda. Conforme anunciado no sítio da Internet da companhia: “[e]ssa estratégia
vem da percepção de que as festas populares são atividades que comungam do mesmo aspecto
ritualístico do teatro e se ligam diretamente à realidade social sobre a qual procuramos refletir” 20.
O Projeto Barafonda desenvolveu uma investigação teatral em conjunto com os habitantes
atuais da Barra Funda, atenta às camadas de passados soterrados ou que correm risco de
esquecimento, tal como às projeções futuras, baseadas nas intervenções imobiliárias que se fazem
no presente do bairro.
Ainda que o encontro entre espectadores e artistas seja foco de toda a atividade teatral, a
experiência proposta pela Cia. São Jorge estende-se aquém e além das apresentações de suas peças.
Envolve toda a dinâmica organizacional da companhia e as relações que estabelece com uma rede
de profissionais colaboradores, as fontes financiadoras de sua atividade, a comunidade envolvente
de observadores, aprendizes e/ou interessados. Cada novo projeto da Cia. São Jorge ativa, renova e
estende redes sociais em diversas direções, sempre procurando formas de cooperação sem
diferenciações hierárquicas. Relações não hierárquicas, com intercâmbio de funções, é forma
organizacional nuclear da companhia, que, assim, busca proporcionar para cada membro a
possibilidade de “maturidade criativa e efetiva apropriação dos meios de produção do seu trabalho”
(Klein, 2010: 15).
A “preocupação com a função social da arte e suas possibilidades” é declarada em vários
dos documentos produzidos pelo grupo21, e revela sua particularidade pelo modo como estabelece
sua rede de colaboradores, administra seus recursos, organiza-se internamente, propõem
provocações cênicas e relaciona-se com seu público espectador.
Arte e política, estética e ética estão intimamente imbricadas pela atividade da Cia. São
Jorge de Variedades. Talvez estejamos lidando, afinal, não apenas com questões de apresentação do
mundo, mas também a constituição de uma vontade para interromper o seu curso. Deste ponto de
vista, Barafonda não apenas atrapalha o fluxo das máquinas velozes da cidade, mas luta contra os
esquecimentos de gestos e saberes de uma longa trajetória. Abre brechas na geografia da semântica
cotidiana a fim de dar vazão para o irromper de outras lembranças: ruídos, desejos, palavras
engolidas e figuras desbotadas.
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19
Então contemplado pelo Programa Petrobras Cultural.
Disponível em: <http://ciasaojorge.com/post/view/20-PROJETO_AO_CORO_RETORNAR_S>. Acessado em 25 de
fevereiro de 2012.
21
Citação de trecho do texto de apresentação do grupo, acessado em 25 de fevereiro de 2012, disponível em:
<http://ciasaojorge.com/page/view/apresentacao>. Também há referências escritas nos fanzines produzidos pela
companhia.
20
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10!
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O teatro da antropologia
Em A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX (2008) James
Clifford pontuou e discutiu como a produção etnográfica encena uma autoridade específica, porém,
pode se valer de distintas estratégias discursivas. Daí segue que estratégias retóricas distintas
produzem conhecimento antropológico de caráter distinto.
Para tratar da encenação da antropologia, John Dawsey (2007: 34) evocou a etimologia da
palavra teatro, que, assim como teoria, nos remete ao “ato de ver” (do grego thea). Isto significa
dizer que o empreendimento teórico seria algo como o teatro, ou seja, um exercício do “cálculo do
lugar olhado das coisas” – conforme a definição de teatro oferecida por Roland Barthes (1990:85)
que é acionada por Dawsey. A analogia é sugestiva, ainda mais se tivermos clareza sobre qual seria
o tipo de teatro produzido pela antropologia que exercitamos.
Experimentando a sugestão de uma antropologia não-dramática, inspirada no teatro épico de
Bertolt Brecht, seguindo os passos já trilhados por Benjamin, Dawsey e Taussig, eu busco uma
antropologia consciente da sala de exposição que oferece. Através da alegoria do teatro épico,
carrego a prática antropológica com a consciência de que ela é uma encenação que escolhe uma
perspectiva específica de apresentação e que tem consequências políticas sobre as quais devemos
nos responsabilizar. A aceitação de que os trabalhos etnográficos são inescapavelmente alegóricos –
ainda que não sejam apenas, ou predominantemente, alegorias (Clifford, 2008) – revela algumas
das suas dimensões políticas e éticas, modifica e complexifica as formas com que eles podem ser
apresentados e lidos.22
Diante das possibilidades abertas pelas leituras da obra de Walter Benjamin23, tomo como
desafio o que John Dawsey (1998: 75) chamou de um experimento nos limites da antropologia
hermenêutica de Clifford Geertz e às margens do drama social de Victor Turner. Um cálculo do
lugar que configure “um olhar carnavalizante capaz de suscitar um efeito de estranhamento em
relação aos carnavais analisados por Turner e Geertz” (Dawsey, 2009: 364). Neste sentido, Dawsey
requer um duplo deslocamento – “as margens das margens” – capaz de produzir efeitos de
estranhamento em relação não apenas ao cotidiano, como aquele propiciado pelas performances
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
22
Inspirado em considerações de Victor Turner, Clifford caracterizou a escrita antropológica como performances que
encenam “histórias poderosas”, míticas e de senso comum, proporcionando uma retórica e um enredo estruturado ao
processo social. As etnografias simultaneamente descrevem acontecimentos culturais reais e fazem afirmações
adicionais, morais, ideológicas e cosmológicas, pontua ele. Neste sentido, somos levados a reconhecer que “a escrita
etnográfica é tanto alegórica no nível de seu conteúdo (o que diz sobre as culturas e suas histórias) quanto no de sua
forma (as implicações de seu modo de textualização)” (Clifford, 2008: 63). Disso segue que a própria atividade da
escrita etnográfica encena alegorias ocidentais, por vezes redentoras, que precisam ser percebidas e avaliadas em
contraste com outros enredos possíveis.
23
A proliferação de questões críticas que obra de Walter Benjamin parece suscitar deve-se ao seu caráter aberto e
fragmentário, embora seja construída a partir de orientações metodológicas precisas. Além dos textos de Benjamin, ver
também Willi Bolle (2002, 2006), Olgária Matos (1999), Susan Buck-Morss (2002) e Jeanne Marie Gagnebin (2007).
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11!
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culturais (Turner, 1987), mas também ao extraordinário, ou seja, aos próprios carnavais, rituais,
teatros, festas, exigindo, assim, “atenção ao extraordinário cotidiano, tal como ao cotidiano
extraordinário”.
Atento aos esquecimentos operados pela interpretação hermenêutica, Dawsey (2009) nos
convida, em companhia de Victor Turner e Walter Benjamin, a enveredar numa espécie de
arqueologia da experiência: a explorar os substratos das culturas contemporâneas. Ele nota que
enquanto Turner (1982) discute o enfraquecimento da experiência liminar e o estilhaçamento do
ritual, Benjamin trata do declínio da grande tradição narrativa e do empobrecimento da experiência
coletiva pelo esfacelamento dessa tradição. Nos novos gêneros de ação simbólica, Turner descobre
fontes do poder liminar, e nas novas formas narrativas Benjamin encontra indícios da força maior
da grande tradição: sua abertura às múltiplas possibilidades. Sobre tais semelhanças Dawsey (2009:
21) é enfático: “uma experiência com o passado, de onde irrompem esperanças ainda não
realizadas, abre-se a partir da atenção aos ruídos” aos quais ambos estariam atentos.
Numa perspectiva benjaminiana, Dawsey propõe uma “hermenêutica da desconfiança”,
suspeitando que quando uma sociedade fala sobre si, como nas performances culturais, “o
significado do que foi dito encontra-se justamente nos esquecimentos, nos lapsos, nas elipses e
emendas” (Dawsey, 1998: 45-46).
Eis a questão inquietante que motiva ora este projeto de pesquisa: será possível uma
antropologia visual que trate de esquecimentos, de lapsos e elipses? Há indícios que sim.
OBJETIVOS E HIPÓTESES
O objetivo desta pesquisa é produzir ensaios - audiovisuais e escritos - a fim de explorar as
potências críticas da “experiência do filme na antropologia”
24
. O ensaio é formato específico
especialmente escolhido para o exercício de uma escuta etnográfica (cf. Hikiji, 2005) que procura
abrir possibilidades para uma antropologia crítica, atenta aos "ruídos" (Dawsey, 2007).
Theodor Adorno (2003) advoga pelo ensaio como forma de reflexão apropriada para a
modernidade, especialmente por sua recusa em impor ordem através da escrita a um mundo com
características essencialmente fragmentárias. “Ao se rebelar esteticamente contra o método
mesquinho, cuja única preocupação é não deixar escapar nada, o ensaio obedece a um motivo da
crítica epistemológica”, comenta Adorno (2003: 12).
Em O ensaio como forma, Adorno nota que, caracteristicamente, o ensaio, em vez de
pretender alcançar algo cientificamente novo, não tem vergonha de se entusiasmar com o que os
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24
“A Experiência do Filme na Antropologia” é título do Projeto Temático coordenado por Sylvia Caiuby Novaes que
discute os encontros da antropologia e das novas técnicas de reprodução da imagem e do som, ao qual esse projeto se
vincula.
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12!
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outros já fizeram, pois seu caráter diferenciado não é nenhum acréscimo, mas sim o seu meio.
Ocupa um lugar entre despropósitos: começa “com aquilo sobre o que deseja falar, diz o que a
respeito lhe ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim, não onde nada mais resta a dizer”
(Adorno, 2003: 2).
Sua intenção se desembaraça da ideia tradicional de verdade e recai sobre o processo de
desvendar seu objeto de interesse, deixar transparecer o desconcertante da coisa. “O pensamento é
profundo por se aprofundar em seu objeto, e não pela profundidade com que é capaz de reduzi-lo a
uma outra coisa”, comenta Adorno (2003: 8). Nesse processo, o ensaio compõe experimentado,
revirando, apalpando, questionando seu objeto.
O ensaio também não pergunta por nenhum dado primordial já que denuncia,
silenciosamente, a ilusão de que o pensamento possa escapar do âmbito da cultura para o âmbito da
natureza. Neste sentido, se recusa a definir seus conceitos, em contrapartida introduz sem
cerimônias e “imediatamente” os conceitos, tal como eles se apresentam.
Na verdade, todos os conceitos já estão implicitamente concretizados pela linguagem em
que se encontram. O ensaio parte dessas significações e, por ser ele próprio essencialmente
linguagem, leva-as adiante; ele gostaria de auxiliar o relacionamento da linguagem com os
conceitos, acolhendo-os na reflexão tal como já se encontram inconscientemente
denominados linguagem. (Adorno, 2006: 9)
O caráter persuasivo de sua comunicação aloja-se na determinação da exposição como tal.
Em detrimento das deduções conclusivas, prefere as conexões transversais entre os elementos.
A forma do ensaio crítico encontra-se com o que George Marcus (1986) chamou de
proposta modernista, uma alternativa crítica às construções holísticas das etnografias mais realistas.
Ao invés de localizar seu objeto como parte de uma ordem maior, evoca um mundo ainda mais
amplo, de uma ordem por vezes incerta, pressupondo a incompletude como forma própria. Mas vale
pontuar, ainda em companhia de Adorno, que “o caráter aberto do ensaio não é vago como o do
ânimo e do sentimento, pois é delimitado por seu conteúdo. O que determina o ensaio é a unidade
de seu objeto, junto com a unidade de teoria e experiência que o objeto acolhe”. (Adorno, 2006: 13)
Afinal, os ensaios previstos para esta pesquisa são experimentações que procurarão um
modo de evocar o mundo sem representá-lo realisticamente. Produzir conhecimento, e também
estranhamento, sobre o cotidiano do bairro da Barra Funda, a Barafonda da Cia. São Jorge e a
própria antropologia.
Neste processo, o fazer fílmico surge antes como um modo de "engajamento com o mundo"
(cf. Mac Dougall, 1998) do que um modo de comunicação. Engajamento que implica sujeito,
espectador e cineasta num processo que favorece a explanação como experiência reflexiva, que
procede mais por implicação do que por demonstração.
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13!
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A própria descontinuidade entre o texto e o audiovisual, e também entre o vídeo e o teatro,
surgem como objeto de reflexão desta pesquisa. Eis, de fato, um desafio essencial para a tarefa
assumida: como envolver uma linguagem poética sem transformá-la simplesmente numa estética?25
Ou ainda: como citar cinematograficamente uma dramaturgia que se funda no encontro presencial
entre atores e espectadores sem esvaziar [completamente] sua potência?
A problemática envolve autoria e responsabilidade ética. E o que seria a estética de um
filme senão uma expressão ética do seu cineasta?
O filme necessariamente reduz a complexidade das experiências vividas e trava a construção
de outras, neste sentido não reproduz o real, mas pode falar sobre ele, de qualquer forma o filme
produz consequências reais para todos os envolvidos.
É certo que este trabalho, ora projeto que se apresenta, funda-se num compromisso ético que
se mostra especialmente importante e delicado, pois necessariamente desloca a pesquisa estética da
linguagem teatral da Cia. São Jorge para o suporte cinematográfico. Nesse deslocamento corre-se o
risco de trair os propósitos políticos explícitos de uma dramaturgia que se apresenta pública e
gratuita, que se nega a indicar respostas em favor do exercício do questionamento. Uma
dramaturgia desenvolvida propositalmente por um sistema organizacional sem distinções
hierárquicas. Uma dramaturgia desenvolvida com a proposta de implicar o espectador como um
igual, autor como um outro autor.
Esse é um teatro/jogo que aguarda a intervenção do espectador. Jogo que requer não apenas
a presença física do espectador, pois que deseja fomentar mais que emoção, deseja fomentar
vontade crítica.
Diferentemente de outros empreendimentos antropológicos, este trabalho não trata da
temporada de uma peça de teatro, nem se propõe a acompanhar seu processo de montagem.
26
Diferentemente, esta pesquisa aceita o convite e se deixa afetar pelas provocações do espetáculo
Barafonda a partir de um lugar preciso: o da espectadora interessada, também uma espectadora
“especialista”(cf. Brecht).
Com esse proposta, a peça teatral deixa de ser objeto privilegiado ou exclusivo, mas antes
um dispositivo bom para fazer pensar a contemporaneidade do bairro da Barra Funda, um
dispositivo que dispara reflexões e estudos. Eis que a Barafonda da Cia. São Jorge sugere questões
em diferentes direções:
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25
Essa questão crucial também foi levantada e discutida pelo trabalho da cineasta Trinh T. Minh-há. Sobre o assunto
ver The totalizing quest of meaning (1991) e também entrevista de Chen Mancy com ela publicada Visualizing Theory:
selected essays from V.A.R. 1990-1994 (1994), editado por Lucien Taylor.
26
Por exemplo, posso citar o belo trabalho de Rita de Cássia Castro (2005), que desenvolveu etnografia sobre o
processo de montagem da peça Hamlet, de William Shakespeare, dirigida por Chiquinho Medeiros no ano de 2002.
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14!
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(a) Dimensões históricas sobrepostas na fisiognomia do bairro da Barra Funda. 27
(b) O entrelaçamento do cotidiano com o extraordinário.
(c) A montagem como método construtivo para uma “dialética do olhar” (cf. Buck-Morss, 2002)
própria de uma perspectiva benjaminiana.
Filmar uma peça de teatro, mesmo com pretensões bem delimitadas - a saber: realizar seu
convite brechtiano à reflexão e produção crítica - de qualquer modo, reabre o abismo sobre o qual
se insiste em fazer teatro no século XX. Diante as novas mídias de reprodução, a fotografia e o
cinema, e também a expansão das formas de comunicação e de entretenimento, o teatro tem
buscado e realizado seu sentido próprio. 28 Pois talvez o mais importante não seja sobre o que o
espetáculo Barafonda fala, mas o lugar que sua linguagem consegue ocupar.
Antropologia pelo cinema
Se num primeiro momento a apresentação teatral de Barafonda serve como dispositivo para
a produção fílmica, no momento seguinte, será o próprio filme dispositivo que abrirá possibilidades
para uma “antropologia compartilhada” (cf. Rouch, 2005). O filme atende assim, nesta pesquisa,
tanto um olhar e uma escuta, quanto uma vontade. Vontade de estender diálogo, de também
disparar crítica.
Nesta pesquisa, o processo fílmico se estende para além do ato de filmar e montar, realiza-se
também durante sua apreciação. No sentido de uma antropologia compartilhada, espera-se que a
audiência do filme pelos sujeitos filmados dispare diálogos sobre a temática abordada e os modos
de representação em questão.
Neste percurso, o trabalho do antropólogo-cineasta Jean Rouch é simultaneamente (1)
inspiração para a prática fílmica, que estende como processo de saber compartilhado, e (2) modelo
de ensaio fílmico, que alcança sua pertinência científica pela mediação do sensível e da imaginação.
De forma muito peculiar, a produção fílmica de Rouch borrou as fronteiras entre ciência e
arte, sublinhou a tenacidade entre documentário e ficção, entre real e imaginário, entre natural e
artificial, revelando efeitos de factual pela poesia, o sonho e a fabulação. Ainda assim, Stoller
argumenta que Rouch pode ser compreendido como um “empirista radical” (citado em Loizos,
1993: 47) já que conferiu igualdade de status a toda atividade intelectual e espiritual do homem,
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27
Inspirando-se na obra de Benjamin, Willi Bolle (2000) sugere a leitura da cidade de São Paulo a partir da superfície
de sua arquitetura e de suas imagens publicitárias. O autor nota que seria a fisiognomia da grande cidade pós-Revolução
Industrial um instrumento propriamente benjaminiano para a percepção e o mapeamento da paisagem social, tal como a
revelação de seus sonhos coletivos.
28
Sobre a problemática ver Denis Guénoun, O teatro é necessário? (2004).
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15!
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sem privilegiar a teoria em detrimento da descrição, o pensamento em detrimento do sentimento, ou
a visão em detrimento de outros sentidos.
Les Maîtres Fous (1955), por exemplo, é um filme controverso e poderoso. Etnografa o
ritual de possessão Hauka a pedido dos seus participantes, e apresenta cenas sem os cortes de uma
censura esperada: homens em transe, debatendo-se, babando, bebendo o sangue de um cachorro
sacrificado durante o evento. A narração do cineasta acentua o clima de tensão sobre as imagens de
possuídos que esfregam tochas acesas pelos próprios corpos. Rouch parece expor os limites da
linguagem para provocar a experiência cinematográfica do transcendental, do indizível, do
desconhecido. Nesta direção, Rouch dedica-se à exploração da eficácia cinematográfica em rebentar
os modos de engajamento cotidiano com o mundo. Sua intenção é de criar um tipo diferente de
experiência cinematográfica, que alcança o delírio e a fantasia para referir-se à realidade vivida das
pessoas.
Ele confia à sua câmera uma agência quase autônoma, o que chamou de “cine transe”. De
alguma forma, a câmera torna-se parte do corpo do cineasta, mas não exatamente como uma
extensão tecnológica domesticada, ela provoca transformações em mais de uma direção, age pelos
dois lados de sua lente: nos sujeitos filmados e no sujeito que filma.
Já o filme Moi, Un Noir, apresentado por Rouch em 1957, anuncia, já em seu primeiro
minuto, a proposta de um “fazer de conta” através da qual dois jovens são convidados a criar e
interpretar personagens para o filme. Os dois protagonistas imigrantes de Treichville em Abidjan
(capital portuária da Costa do Marfim), então circulam pelos lugares que frequentam, encontram
amigos e comentam - em voz off, num modo subjetivo - interesses, preocupações, dificuldades e
expectativas dos personagens Eddie Constantine e Edward G. Robson. Através da brincadeira do
“como se” do filme, os protagonistas apresentam, através da representação cinematográfica, as
condições concretas de suas próprias vidas e as fantasias com as quais se alimentam.
A investigação de Rouch articulava a premissa que os valores de uma sociedade
repousariam mais nos seus sonhos do que na realidade que constroem. Eis que os sonhos coletivos
são objeto de análise privilegiado por Walter Benjamin.
Hipótese importante desta pesquisa: os trabalhos cinematográficos29 de Rouch revelam-se
como modelos interessantes para radiografar os sonhos coletivos de uma sociedade, sonhos
impressos na fisiognomia da arquitetura de suas cidades, nas fantasmagorias criadas pelas imagens
publicitárias, nas máquinas de transporte que correm em fluxo constante.
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29
Refiro-me especialmente a Les Maîtres Fous (1954), Moi, Un Noir (1958), Chronique d’um été (1961) e Jaguar
(1967, filmado em 1954). Sabe-se que Rouch filmou durante mais de vinte anos e montou aproximadamente 400 filmes.
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16!
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RESULTADOS
Estão previstos como resultados diretos da pesquisa um vídeo etnográfico e a redação de
ensaio crítico. Também estão previstos: a apresentação da pesquisa em congressos científicos, sua
publicação em revistas especializadas, além da docência de uma disciplina no PPGAS/USP.
METODOLOGIA E CRONOGRAMA DE EXECUÇÃO
A metodologia do trabalho envolve pesquisa de campo com gravações audiovisuais sobre
(1) apresentações do espetáculo Barafonda da Cia. São Jorge de Variedades, (2) a dinâmica
cotidiana do bairro paulistano da Barra Funda e também (3) pesquisa de documentação histórica
(arquivos audiovisuais) sobre a Barra Funda a fim de compor um vídeo etnográfico.
O desenvolvimento deste trabalho prevê, ainda, pesquisa bibliográfica e filmográfica, além
de participação em grupos de estudos, durante todo o período.
De fato já está em curso a gravação de apresentações de Barafonda e minha participação em
dois grupos de pesquisa – o NAPEDRA e o GRAVI –, de tal modo que a elaboração deste projeto
desenvolveu-se através das conversas e discussões nesses fóruns.
Desde início de 2002 participo das atividades regulares do Núcleo de Antropologia
Performance e Drama – NAPEDRA, coordenado por John Dawsey, orientador de minha pesquisa
de doutorado. Durante esses anos, o NAPEDRA mostrou-se arena interdisciplinar instigante, onde
exploramos possibilidades críticas sobre dramas sociais e estéticos junto ao projeto temático
“Antropologia da Performance: Drama, Estética e Ritual” (Processo FAPESP 2006/53006-2).
Minha participação no Grupo de Antropologia Visual – GRAVI, coordenado por Sylvia
Caiuby Novaes, iniciou-se neste ano de 2012, já motivada pelo meu interesse de interlocução e
envolvimento nas dicussões sobre arte e antropologia desenvolvidas no âmbito do Projeto Temático
“A Experiência do Filme na Antropologia” (Processo FAPESP 09/52880-9). De fato, minha
aproximação da antropologia visual fora gestada anos antes, em 2007, durante o curso de pósgraduação ministrado por Rose Satiko Hikiji. Desde então, o frutífero diálogo com Rose S. Hikiji
ganhou corpo nos exames de qualificação e de defesa da minha tese de doutorado. O convite para
sua supervisão nesse projeto de pós-doutorado aconteceu, pois, como extensão desse diálogo já
fecundo, mas que ora busca no GRAVI arena apropriada para amadurecimento.
Cabe ainda anotar que também sou membro do Núcleo de Antropologia Urbana – NAU,
também da USP.
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17!
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Como atividade complementar, porém não menos importante, será ministrada uma
disciplina optativa para o curso do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da USP
durante um semestre.
O cronograma para a realização e finalização da pesquisa prevê quatro semestres, ou seja,
dois anos, que coincide com o período de amadurecimento e finalização do Projeto Temático “A
Experiência do Filme na Antropologia”. As atividades serão distribuídas conforme segue:
1º Sem.
2º Sem.
Pesquisa bibliográfica e filmográfica
x
x
Trabalho de campo e gravações audiovisuais
x
x
Apresentação e discussão em congressos
x
Redação de artigos científicos
x
3º Sem.
4º Sem.
x
x
x
x
x
x
x
x
Curso ministrado PPGAS/USP
x
Finalização do vídeo etnográfico
x
Seminários de pesquisa NAPEDRA
x
x
x
x
Seminários de pesquisa GRAVI
x
x
x
x
Relatórios FAPESP e PPGAS
x
x
BIBLIOGRAFIA CITADA
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doutorado em Antropologia Social, 2012.
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Brasiliense, 1994. (Obras Escolhidas; v.1)
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Benjamin. Passagens. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; Belo Horizonte: Ed.
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18!
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