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MEDICINA BASEADA EM NARRATIVAS:
O tecer
da cura
SET/DEZ 2013
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foto: Shutterstock.com
//Rejane Medeiros
A medicina busca o bem estar do paciente
aliando-se à ciência para procurar a razão
exata das doenças e a melhor forma de
enfrentá-las. Mas, entre a enfermidade e o
médico, há um ser humano, que precisa ser
ouvido e respeitado. O avanço da tecnologia
está tornando os médicos propensos a
esquecer o ser humano que há entre a
doença e seu possível antídoto? Para
desafiar essa tendência, a médica
norteamericana Rita Charon propôs a
metodologia Narrativas Médicas, em que
os profissionais de saúde são instados a
ler obras literárias, escrever o que sentem
e buscar conhecer as histórias de seus
pacientes. Afinal, como a arte pode atuar
como um instrumento de humanização e
fortalecimento de vínculos?
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“O Senhor ECS era diabético e hipertenso. Sofreu um AVCI e teve uma
excelente evolução. Não apresentou
depressão e retornava sempre muito
animado, querendo continuar com as
sessões de fisioterapia. No entanto,
não aderia ao tratamento de diabetes.
Após algumas consultas e percebendo
minha disposição em ajudá-lo, confessou: ‘prefiro morrer a parar de tomar
cerveja diariamente com meus amigos
do dominó.’ Sem criticar sua crença,
negociei com o paciente afirmando
que ele até poderia continuar com
sua cerveja, desde que não deixasse
de tomar a metformina. Assim, ele
acabou aderindo ao tratamento e teve
sua glicemia regularizada”.
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Essa é uma das várias histórias contadas pela médica Maria Auxiliadora
de Benedetto, no artigo “Entre dois
continentes: literatura e narrativas
humanizando médicos e pacientes”,
em que ela relata experiências vividas por ela ou pelos participantes do
estágio supervisionado oferecido pela
Sociedade Brasileira de Medicina de
Família (Sobramfa).
Com seus exemplos, ela mostra que
ouvir o paciente é o melhor caminho a ser usado pelo médico na sua
missão de cuidar. Assim como vários
profissionais, Dora Benedetto defende
a humanização da prática médica, a
medicina centrada na pessoa e uma
relação mais próxima entre médico
e paciente.
O CURSO QUE DESUMANIZA
Pesquisa do professor da universidade americana Thomas Jefferson Mohammadreza Hojat mostra que o nível de empatia dos estudantes de
medicina decai no decorrer no curso. No artigo The devil is in the third year:
a longitudinal study of erosion of empathy in medical school, publicado, em
2009, na revista Academic Medicine, o psicólogo afirma que o terceiro ano
se configura como o período em que os níveis de empatia dos estudantes
começam a decrescer. Para chegar a essa conclusão, o pesquisador norte-americano usou a Escala Jefferson de Empatia Médica, que ele ajudou a
formatar nos anos 1990.
A vivência de sala de aula do conselheiro do CFM, Henrique Silva, confirma
o que os americanos mensuraram em números. “Os estudantes entram no
curso com uma visão humanitária e holística do paciente, a qual vai sendo
suplantada pelas aulas em que predominam o racionalismo cartesiano e o
avanço tecnológico. No início predomina a vontade de ajudar quem está
sofrendo, sendo a medicina uma vocação e uma espécie de sacerdócio.”
Nas aulas de anatomia há o primeiro impacto pois o homem passa a ser
visto unicamente como corpo, com seus músculos, tendões, vasos e sangue.
Em fisiopatologia, o deslumbramento com o belo intrincado das funções
corporais muda de tom. É quando o estudante aprende que esse corpo tem
partes doentes a serem tratadas e passa a perder a visão holística, dando
lugar a outra, fragmentada e biométrica.
“Começa aí o fascínio pela tecnologia. Ele [o estudante] descobre que pode
curar um corpo doente usando os equipamentos e a farmacopeia correta.
Ele passa a se afastar dos dogmas que tinha até então, inclusive os éticos e
religiosos. É um poder muito forte e o estudante passa a confiar mais nos
aparelhos e exames diagnósticos do que na anamnese”, conta Henrique
Silva, que enfatiza: “O racionalismo cartesiano se sobrepõe à concepção
humanitária e holística inicial”.
Para a presidente da Associação Brasileira de Educação Médica (Abem), Jadete
Lampert, um dos problemas dos currículos das escolas médicas é a pouca carga
horária dedicada à semiologia, disciplina na qual o aluno aprende a interagir
com o paciente, a fazer o diagnóstico e o encaminhamento. “Há um excesso
de carga horária, por exemplo, em cirurgia, quando a semiologia médica é
vista uma vez, no meio do curso, e depois é quase abandonada”, critica.
Jadete defende uma mudança nos currículos de medicina, que seriam mais
centrados na construção do conhecimento e não na memorização. O excesso
de cursos de medicina, que passaram de 83, em 1990, para 202, em 2013, é um
empecilho para que haja essa mudança. “Temos um problema de capacitação,
pois não há como formar tantos professores dentro dessa perspectiva mais
contemporânea, de humanização e construção do saber”, argumenta.
Dora Benedetto também concorda que há uma desumanização do estudante
de medicina no decorrer do curso. “Pesquisas mostram que os estudantes
da área de saúde começam o curso com um nível de empatia bom, mas no
último ano, esse nível é menor”, explica.
Foto: Shutterstock.com
Ela defende que os formandos sejam incentivados a expressarem seus
sentimentos, mas destaca que o distanciamento em relação ao paciente
tem sido preponderante no decorrer do curso. “Soube de alunos do terceiro
ano que faziam apostas para ver quem atendia os pacientes com menos
palavras”, critica. Na avaliação da médica, os jovens médicos, como forma
de proteção, tentam se distanciar dos pacientes. “Mas a nossa profissão
trata com emoções e não podemos fugir delas”, avalia.
EXPERIÊNCIAS BRASILEIRAS
Foto: Shutterstock.com
No Brasil, algumas universidades têm oferecido disciplinas eletivas com o
objetivo de debater textos literários e o contexto em que eles se inserem
na relação médico-paciente. Na Escola Paulista de Medicina da Universidade
Federal de São Paulo (Unifesp), o Laboratório de Humanidades (LabHum),
do Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde (CeHFi), oferece há
nove anos uma disciplina em que essa discussão é feita. São duas turmas,
elas se tornaram uma de graduação e outra, de pós. No segundo semestre
de 2013, um dos livros debatidos foi Os irmãos Karamazov, de Fiodor
Dostoiésvski, que deu a linha para a discussão do tema Mergulhando nas
profundezas do humano.
“ Mas a nossa
profissão trata
com emoções e não
podemos fugir delas”
A mesma defesa é feita por Rita Charon, no artigo “Medicina Narrativa:
um modelo de empatia, reflexão,
profissionalismo e confiança”. “Apesar
do progresso tecnológico, os médicos
não têm a capacidade de reconhecer
os males de seus pacientes”, critica a
médica norte-americana. Ela defende
que junto com o conhecimento científico, os médicos precisam desenvolver
a capacidade de ouvir e entender os
pacientes.
O coordenador do Laboratório de
Humanidades (LabHum) e diretor do
Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde (CeHFi) da Universidade
Federal de São Paulo, Dante Gallian,
também defende que os médicos
voltem a ouvir seus pacientes. “O
médico não consegue tirar uma história do paciente. O resultado é uma
medicina hiperespecializada, cada
vez mais cara, baseada em exames
complementares, quando 80% dos
problemas poderiam ser resolvidos
com uma boa anamnese e um bom
exame físico”, argumenta.
Outro autor russo que é muito usado nesses cursos é Leon Tolstoi, principalmente o texto A morte de Ivan Ilitch, que relata o sofrimento de um
juiz russo à beira da morte. “Esses são dois autores que trabalham bem as
histórias de caos, de desespero; elas se tornam histórias de busca, em que
os sofrimentos ou doenças podem ser uma oportunidade de aprendizado,
daí porque são muito usados nos cursos”, resume Dora Benedetto.
Para o diretor do CeHFi e coordenador do LabHum, Dante Gallian, só é
possível humanizar a partir da experiência estética, que pode ser literária
ou outra forma de arte. “Não será um treinamento que tornará o médico
mais humano, só a partir da arrebentação provocada pela arte é que alguém,
anestesiado por uma formação tecnicista e desumana, pode começar a se
sentir no lugar do outro”, argumenta Gallian.
Além de lerem e debaterem os textos, os participantes dos cursos são levados
a escrever sobre o que sentiram. “Através de contos que aparentemente
não têm nada a ver conosco, descobrimos a nós mesmos por entre as
linhas, letras e páginas”, avalia Miriam Xavier, que participou do LabHum
no primeiro semestre de 2012.
A atividade do LabHum foi tema de pesquisa realizada por Yuri Bittar e rendeu
o artigo “A experiência estética da literatura como meio de humanização
em saúde: o laboratório de Humanidades da Escola Paulista de Medicina,
Universidade Federal de São Paulo”. Nele, são relatados depoimentos de
participantes que se sentiram transformados com a experiência.
“A ciência te dá muitas informações, mas te consome, exige uma dedicação
quase exclusiva, e há uma supervalorização desse lado técnico-científico,
mas foram as humanidades que me salvaram de um naufrágio”, admitiu um
dos entrevistados citados na pesquisa de Bittar.
“O médico está inserido em um trabalho perverso, desumanizador, no qual
ele tem de atender centenas de pacientes em pouco tempo, com consultas
cronometradas, mas a melhoria das condições de trabalho, por si só, não
vai torná-lo mais humano, é preciso investir na formação humanística desse
profissional”, argumenta Gallian.
Aluno do LabHum, o estudante Thiago Gomes, que no dia 20 de dezembro
recebeu o diploma de médico formado pela Unifesp, é um entusiasta da
metodologia aplicada. “A maior discussão que é feita hoje na nossa profissão
é que ficamos reféns das habilidades técnicas. É possível sair dessa armadilha
a partir do momento em que estabelecemos uma relação mais humana com
nossos pacientes”, raciocina.
As Narrativas Médicas também são incluídas no ementário de disciplinas
como História da Medicina, ou oferecidas de forma eletiva. Faculdades de
medicina do Espírito Santo e de alguns estados do Nordeste têm provocado
essa discussão. A Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro (Unirio) também está buscando introduzir no currículo a
disciplina Literatura e Medicina (saiba mais na página 24).
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ESCREVER SOBRE OS SENTIMENTOS
O curso prático oferecido pela Sociedade Brasileira de
Medicina de Família (Sobramfa) procura aplicar a metodologia
denominada Medicina Baseada em Narrativas, na qual os
estudantes são levados a escrever sobre o que sentiram
durante os atendimentos e incentivados a ler obras literárias, cujos enredos sejam de alguma forma relacionados
a temas médicos.
Nesses cursos, os estudantes acompanham profissionais de
medicina da família em ambulatórios, visitas domiciliares,
locais de cuidados paliativos e abrigos de idosos. Após o
atendimento, são realizadas discussões em grupos, em que
tanto o médico experiente, quanto os formados, falam sobre
as histórias contadas pelos pacientes e suas próprias
impressões. É realizada uma correlação entre os temas
abordados nas obras literárias indicadas e os estudantes
são incentivados a escrever o que sentiram.
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Ao levar os estudantes a escreverem o que sentem, Dora
Benedetto, que é a tutora de muitos dos cursos da Sobramfa,
revela que há uma ojeriza inicial por parte deles. "Isto de
ouvir os pacientes parece ser mais adequado a psicólogos
e psiquiatras do que a médicos generalistas", dizem alguns
alunos. "Com o escasso tempo para a realização das atividades
requeridas para o aprendizado da prática da medicina, a
orientação para se prestar atenção aos pacientes e ouvi-los
com atenção e empatia não seria uma perda de tempo e uma
tarefa a mais a nos sobrecarregar? Como as narrativas
podem contribuir com a prática clínica?", questionam outros.
Esse receio inicial vai sendo diluído no decorrer do curso.
"As histórias dos pacientes me permitem tratar, de forma
especial, cada diabético ou hipertenso e não simplesmente
tratar diabetes ou hipertensão", escreveu um dos participantes do curso no encerramento do módulo. "Aplicar as
narrativas como metodologia nos faz refletir sempre. Com
reflexão, cada encontro com o paciente se transforma em um
aprendizado. Compartilhar histórias nos ajuda a construir
nossa profissão e nossas próprias vidas", afirmam outros.
Há até quem sugira que o curso se torne obrigatório.
Nas escolas médicas se começou a falar bastante sobre o
humanismo, mas ainda não se estabeleceu uma conexão com
a prática. "A utilização das narrativas e dos recursos
literários pode fazer tal conexão", recomendou um dos
participantes do curso da Sociedade.
“O ideal é que o médico use os avanços
científicos, sem esquecer os valores
humanos do paciente. Una a tecnologia
com uma ação humanitária e humanista”,
ensina o conselheiro do CFM de Sergipe, Henrique Batista e Silva, que foi
professor da Universidade Federal de
Sergipe de 1972 a 2004. Nesses mais de
30 anos em sala de aula, ele percebeu
uma mudança no perfil dos formandos.
“Hoje os alunos estão mais interessados
em diagnósticos baseados em evidências
científicas, deixando em segundo plano o
exame físico, as narrativas e as histórias
do paciente”, constata.
Henrique Silva reconhece que a atração
exercida pela tecnologia é arrebatadora. “É como se fosse algo impactante,
grandioso e belo, pelo qual você fica
fascinado. Eu mesmo passei a ter uma
preocupação mais humanista quando
comecei a dar disciplinas de conteúdo
humanístico, como história e ética
da medicina e tive de me debruçar
sobre os valores estruturantes do ser
humano, culminando com a dignidade
médica” exemplifica.
Mas, como promover essa humanização?
A empatia pode ser ensinada? Diversos
médicos já se concentraram nessa questão e dão algumas pistas. O Programa de
Medicinas Narrativas, na Universidade
de Columbia, criado por Rita Charon em
2000, leva os participantes a refletirem
sobre textos previamente definidos. O
curso também estimula estudantes a
escreverem sobre o que sentem nos
momentos de atendimento. Rita Charon
admite que o profissional de medicina
procura se proteger das dores daqueles
que são tratados. O antídoto, no entanto,
é o contrário da fuga e da frieza.
“O pouco envolvimento dos médicos
com seus pacientes é uma estratégia
defensiva. Pensam: se eu for frio, objetivo e distante não terei de sofrer. Isso
é verdade, mas o que eles não sabem é
que não recebem nenhuma alegria e é por
isso que sentem burnout (caracterizado
por exaustão emocional, esvaziamento
afetivo, despersonalização etc.) e um vazio
por dentro. Isto porque não têm a ligação
necessária para saber que a sua presença
tem significado na vida de um doente e
que são uma presença estável e muscular”,
argumentou Rita Charon, em entrevista ao
jornal português Notícias Médicas.
HUMANIZAR A MEDICINA
BASEADA EM EVIDÊNCIAS
Foto: Márcio Arruda
O MÉDICO COMO MEDICAMENTO
A preocupação com a humanização da medicina não
é um tema novo. Em 1957, o médico inglês Michael
Balint defendeu, no livro “O médico, seu paciente e
a doença”, o conceito “médico como medicamento” e
defendeu a medicina centrada na pessoa. Para o inglês,
o médico às vezes é apenas um placebo, alguém a quem
o doente narra sua história, o que já auxilia no processo
de cura. A presença do médico, a sua dedicação sobre
o enfermo, funciona como bálsamo, que alivia dores
reais e imaginárias.
Na França e na Inglaterra, no final da Idade Média, os
súditos acreditavam que o toque das mãos reais os deixariam curados, o que de fato era percebido. Na análise de
alguns estudiosos, essas curas talvez ocorressem principalmente nos casos menos graves. “Era bem provável que
a excitação causada pela visita à corte e pela cerimônia
do toque afetasse o organismo, fazendo o sangue correr
mais depressa e favorecendo uma cura”, analisou em
1732 o médico William Beckett, citado por Moacyr Scliar
no livro “A paixão transformada: história da medicina na
literatura”. Para Scliar, o toque transmite calor e afeto, e
exerce por si só um efeito terapêutico não desprezível.
“É preciso contemplar não
apenas a doença (que seria algo
igual para todos os pacientes),
mas também a enfermidade
(que é a forma como o
indivíduo vivencia a doença).”
O pneumologista escocês Archie Cochrane atuou em
hospitais de campanha na Guerra Civil Espanhola e na
Segunda Guerra Mundial. A sua experiência no campo de
batalha o levou a concluir que muitos dos tratamentos
utilizados no tratamento de doenças respiratórias
não tinham comprovação científica. A partir dessa
constatação, Archie Cochrane passou a mobilizar a
comunidade médica a adotar métodos científicos para o
tratamento de doenças, lançando os fundamentos para
a Medicina Baseada em Evidências (MEB). Os principais
difusores dos preceitos do médico são os The Cochrane
Collaboration, existentes em todo o mundo, inclusive
no Brasil.
A MEB defende que o médico, ao prescrever um tratamento, tome a decisão baseado no maior número de
informações disponíveis em artigos científicos sobre
a doença. Também propõe linhas de condutas clínicas,
o que resulta em uma padronização dos tratamentos. Para Dora Benedetto, é importante que além do
conhecimento científico, o médico interprete o que
o paciente tem a dizer. Ela destaca que é certo que a
MEB oferece incontáveis vantagens e foi a responsável
pela supressão de grande parte do sofrimento humano
decorrente de enfermidades e traumatismos. Mas não
podemos nos esquecer – diz – que as dimensões sutis
e imponderáveis do ser humano influenciam a forma
como ele adoece e interfere nos processos de cura.
“É preciso contemplar não apenas a doença (que seria
algo igual para todos os pacientes), mas também a
enfermidade (que é a forma como o indivíduo vivencia
a doença),” defende Dora. Ela deixa claro não existir
uma contestação ao MEB, mas sim a reafirmação da
necessidade de se adequar as evidências científicas “ao
paciente único que o médico tem diante de si”.
A presidente da Associação Brasileira de Educação
Médica (Abem), Jadete Lampert, tem o mesmo raciocínio.
“É possível uma complementaridade entre a MEB e uma
medicina centrada no paciente. O médico pode usar
todo o conhecimento científico disponível no processo
de diagnóstico da doença e, observando e respeitando
as peculiaridades do paciente, prescrever o melhor
tratamento”, argumenta.
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O caminho do cuidado
por Molière, Tolstói e Nava
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Você já parou para pensar como uma
peça parisiense levada ao palco em
1673, um livro russo de 1886 e uma
obra brasileira da década de 70 podem
enriquecer o trabalho médico? Cresce
o número de docentes brasileiros que
desafiam essa indagação, defendendo
o poder da interface entre literatura
e medicina. Para eles, sim, Molière,
Leon Tolstói e Pedro Nava – e muitos
outros autores – podem ensinar muito
sobre a prática médica. A leitura de
bons livros e a aproximação de outros
discursos não-científicos pode ser um
caminho transformador.
“A literatura permite uma visão mais geral do contexto social, além de
dar acesso a diversos perfis psicológicos do paciente. O profissional passa
a conhecer melhor o doente”, argumenta o professor emérito de clínica
médica Mário Barreto, que defende a inclusão da disciplina Medicina
e Literatura no currículo das faculdades de medicina. “Os estudantes
ganharão, pois terão uma formação mais humana e, principalmente, o
paciente, que terá um atendimento mais humano”, enfatiza.
Uma iniciativa com esse objetivo vem da faculdade de medicina da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), que promoveu
seminários nos quais usou as obras desses autores. A experiência deu
origem ao livro “Disciplina Literatura e Medicina: a pesquisa do contexto
médico em textos literários: uma leitura transdiscursiva”, de autoria de
Mário Barreto e do professor de literatura Paulo César dos Santos Leal.
Confira a seguir:
“A literatura permite uma visão mais geral do contexto social,
além de dar acesso a diversos perfis psicológicos do paciente.
O profissional passa a conhecer melhor o doente.”
Foto: Frédéric Bazille (1841-1870) - The Improvised Field Hospital
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Foto: Ricardo Chaves
Foto: Shutterstock.com
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O DOENTE IMAGINÁRIO
A MORTE DE IVAN ILITCH
BAÚ DE OSSOS
Composto em forma de farsa burlesca,
“O doente imaginário”, de Molière, escrito no século XVII, retrata a situação
de Argan que, achando-se enfermo,
usava quase toda a sua renda para
pagar o médico e o farmacêutico
e, como forma de economizar,
pretendia casar a filha com o filho
do primeiro. Molière, por meio de
Beralde, irmão de Argan, aponta as
mazelas da medicina da época, como
o caráter mercantilista e a pouca
efetividade.
“A morte de Ivan Ilitch”, de Leon
Tolstói, também permite reflexões
produtivas. Relata os momentos
finais de um juiz russo, em que ele
faz um balanço da sua vida e pondera sobre o tratamento recebido da
família e dos médicos, os quais não
entenderam a sua dor. O único que o
compreendia e que procurava amenizar seu sofrimento era um criado,
Guerássim. A evolução da morte de
Ivan foi delineada pelo autor com
enorme intensidade humana através
de um crescendo de imagens. Descreve os sintomas iniciais, além de
seus próprios sentimentos íntimos
e o pavor pela morte.
O escritor mineiro Pedro Nava viu
a morte chegar muito cedo em sua
vida, quando seu pai, com pouco
mais de 30 anos, morreu em decorrência de broncopneumonia,
adquirida em uma visita médica
domiciliar que fizera em uma casa
do subúrbio carioca. A saúde fragilizada do pai foi um dispositivo que
transferiu ao filho a solidariedade
pelo doente.
“Eles (os médicos) sabem falar em
belo latim, sabem nomear em grego
todas as doenças, defini-las; mas
quanto a curar, eles não sabem
mesmo é nada”, critica Beralde.
Por fim, o irmão convence o doente imaginário a ser ele próprio o
médico, sem que para isso tenha de
fazer o curso. É a carnavalização da
medicina devido à falta de ética do
médico e do farmacêutico, que até
então se aproveitavam da fragilidade do paciente.
No final da análise, Barreto e Santos
Leal propõem diversas linhas de leitura e debate, como a hipocondria, a
história da medicina, a psicanálise,
a prática médica, a ética médica e a
mercantilização da medicina.
Entre as linhas de leitura propostas
ao final do texto, estimula-se os
alunos a refletir sobre a busca da
boa reciprocidade, abordando o paciente e não a doença como centro
de estudo. O tema da morte também
é abordado. Esta é encarada como
fracasso, desafiando a pretensão da
medicina de tudo controlar através
dos progressos científicos e técnicos. O próprio Ivan Ilitch, no início
de sua doença, se coloca como um
ser imortal. Aos poucos, no entanto,
compreende que “veio do nada e,
dentro em breve, voltará ao nada”.
A obra “Baú de ossos” se trata de
um denso texto autobiográfico,
sendo o próprio Nava o narrador
em primeira pessoa. Aborda temas
como o tempo, a memória, a experiência existencial do autor como
médico e escritor, o erro médico,
e a vocação médica.
O autor tinha uma memória prodigiosa. Essa memória – uma das
qualidades de um bom médico,
segundo Mário Barreto – pode
ser cultivada com a leitura de
bons livros e a aproximação de
outros discursos não-científicos.
Para Barreto, os bons médicos, em
geral, são apreciadores de outros
saberes aparentemente dissociados
do discurso científico. Isso permite
que experimentem “várias sensações humanas que enriquecem e
estimulam a sua memória social e
coletiva. Fortalecem os laços com
os outros seres humanos e ajudam
a compreendê-los melhor”.
*A apresentação das obras teve como base o livro “Disciplina Literatura e Medicina: a pesquisa do contexto médico em textos literários: uma leitura
transdiscursiva”, de Mário Barreto e Paulo César dos Santos Leal.
A PAIXÃO TRANSFORMADA
A interface entre literatura e medicina
também era defendida pelo médico
e escritor Moacyr Scliar. “São duas
atividades que têm em comum o
interesse pela condição humana. A
experiência médica pode dar muito
para a atividade literária e esta, por
sua vez, desenvolve uma sensibilidade
que a medicina tende a perder por seu
aspecto tecnológico”, afirma Scliar no
livro “A paixão transformada”.
O principal desafio, cada vez mais urgente
em uma época onde os usos que se faz da
tecnologia podem acentuar ainda mais a
assimetria entre o médico e o paciente, é
contrapor ao ensino meramente tecnicista,
inserindo, no currículo do ensino médico e
de carreiras afins o que se convencionou
chamar “humanidades médicas”, que seriam capazes de forjar no aluno um perfil
de profissional e de ser humano habilitado
no trato com os outros.
“Os alunos das escolas médicas e dos
demais centros de saúde são saturados
de ensinamentos técnico-científicos, até
mesmo de boa qualidade, mas a formação
de caráter humanístico, importantíssima
para todos os profissionais que lidarão com
o ser humano, fica muito a dever e, pode-se
dizer, é negligenciada. É exatamente este
saber que proporcionará ao futuro médico
a compreensão e o respeito pelo outro”,
argumentam Barreto e Santos Leal. //RM
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