AIDS E GÊNERO: REPRESENTAÇÕES DE RISCO ENTRE MULHERES DE UMA COMUNIDADE FAVELADA NO RIO DE JANEIRO, BRASIL.* Regina Helena Simoões Barbosa Professora do Departamento de Medicina PreventivalFaculdade de Medicina, localizada no Núcleo de Estudos de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Av. Brig. Trompowslcy, sln, Ed. Hosp. Universitário - 50. andar, Cidade Universitária, CEP 21941-590, Rio de Janeiro, Brasil. Telefax: (021) 280 5810 e 270 0097. E-mail: [email protected]. org sabem como negociar o sexo seguro com os parceiros. SUMÁRIO: Esta pesquisa teve como objetivo contribuir para as estratégias educativas de prevenção à AIDS voltadas para as mulheres, especialmente aquelas que hoje configuram o segmento da população feminina brasileira mais vulnerável ao HIV: as mulheres pobres, donas de casa, casadas e mães de família. Para realizá-la, entrevistamos 20 mulheres moradoras de uma comunidade favelada da região urbana do Rio de Janeiro, Brasil. Adotamos os conceitos de representação social e gênero para interpretar a fala dessas mulheres. Optamos pela metodologia qualitativa (entrevistas As conclusões do estudo apontam para a necessidade de se incluir a população-alvo na definição, implementação e avaliação das estratégias educativas considerando fundamentalmente a cultura de gênero, marcante na determinação das opções que as mulheres têm para se prevenir do HIV. Também considera-se a necessidade de inclusão de programas de prevenção voltados especificamente para os homens que se relacionam com mulheres. Por fim, sugerese a redefinição de algumas estratégias preventivas que têm se revelado irreais, como o estímulo à fidelidade ou a parceria única semi-estruturadas) para penetrar e compreender seu universo de vida - concreto e subjetivo - com o intuito de explicitar suas representações de gênero, suas visões de mundo, sua sexualidade e relação de parceria, seu poder de decisão, sua percepção em relação ao risco para o HIV e as formas de lidar com a prevenção. Os resultados mostram que essas mulheres têm consciência do próprio risco e o associam à infidelidade de seus parceiros. Os códigos sociais da fidelidade/infidelidade são por elas questionados. muito embora justifiquem a infidelidade masculina quando 'naturalizam' a sexualidade do homem, Palavras-chave : prevenção de AIDS, mulheres de baixa representação de risco renda, gênero, * Este trabalho é um resumo da tese de Mestrado intitulada AIDS e Género: as Mulheres de uma Comunidade Favelada, apresentada à Escola Nacional de Saúde Pública/FIOCRUZ. representada como impulsiva e sem controle. Com relação às estratégias de prevenção voltadas para as mulheres, as entrevistadas demonstram impotência frente à questão: não 33 Cad. Saúde Coleto 5 (1),1997 AIDS AND GENDER: RlSK REPRESENTATIONS AMONG WOMENOFASLUMCOMMUNITY IN RIO DE JANEIRO, BRAZIL incJuding prevention programs dircctcd specifically to men. Fmally, it is suggested a re-definition of some preventive stralegies lha! have provo themselves unreal, as the stimulus to fidelity. ABSTRACT: The purpose of lhis research was to contribute to the education stralegies for the prevention of AIDS direct to women, especially those who today foem the segment of the Brazilian female population more vulnerable to the HIV: the poor women, housewives, marrid women and mothers. To accomplish it, we interviewed 20 women living in a slum community in an urban area ofRio de Janeiro City, Brazil. We have adopted the concepts of social and gender representations to enlighten and interpret the speech of these women. We have chosen the qualitive methodology ( sentistructured interviews) to penetrate and understand their universe of !ife - concrete and subjective - aiming to exp!icit their gender representations and their views of the world, their sexuslity and partnership relation, their power of decision, their perception regarding the risk of acquiring the HIV and the ways of coping with prevention. The results show thatr these women have conscience Df their Qwn risk and associate it to the infidelity of their partners. They quastion the social codes of fidelity/ infidelity although they justify malc infidelity when they 'naturalize'men's sexuality, represented as impulse and without control. As for the prevention strategies directed to women, the interviewed women showed clearly impotence before the issue; they do not know how to ncgotiate safe sex with their partners. The conclusions of this study poiot out to the necessity of including lhe tatgeted population in lhe definition, implementation and evaluation of education strategies fundamentally considering the culture of gender, outstandin item in determining the options women have to prevent themselves against HIV. It also considers the necessity of Cod. Saúde Colet. 5 ( J), 1997 Key-words : AIDS prevention, poor women, gender, risk representations. • This work is surnrnary ofMastership Thesis entitled "AIDS e Gênero: as Mulheres de uma Comunidade Favelada" ( AIDS and Gender: Women of a Slum Community), presented to Nationall School of Public Heallh, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brazil. 34 A AIDS tem se revelado um campo fértil para o (re) desvelamento das complexas relações entre o biológico e O social, relações estas que assumem caráter histórico (Sontag, 1984). O 'novo' perfil epidemiológico da epidemia no Brasil e outros países latino- o que constitui uma dimensão complexa que provavelmente continuará tendo efeitos decisivos na evolução da epidemia em todas as nações e gmpos sociais. Assim, as Ciências Sociais têm e continuarão tendo um papel fundamental na explicitação das questões apontadas, cruciais para determos essa epidemia que coloca em risco gerações inteiras de vidas humanas americanos mostra o crescimento geométrico jovens. da doença entre as mulheres (panos, 1993). As formas como homens e mulheres se relacionam em nossa sociedade, a dinâmica de poder que perpassa tais relações, incluindo questões ligadas à sexuatidade e auto-estima, o imaginário coletivo relativo aos papéis de A EPIDEMIOLOGIA E AS MULHERES: A 'NOVA' CATEGORIA DE RISCO INTRODUÇÃO gênero certamente constituem importantes variáveis na conformação deste perfil Os indicadores epidemiológicos mostram inequivocamente que a evolução da (Pitanguy, 1995). O enfrentamento da complexidade da pandemia de AIDS e os consequentes enfoques teórico-metodológicos devem, segundo Cáceres (1995), contemplar as seguintes questões: epidemia de AIDS no mundo e no Brasil se massifica e se pauperiza, atingindo, de forma alarmante, os setores mais pobres da população e, dentre esses, as mulheres. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que, dos 10 a 14 milhões de pessoas infectadas pelo HIV em todo o mundo, um terço é de mulheres, que contrairam o vims através de relações sexuais. Até 1990, 60% de todas as contaminações registradas no mundo se deram pela via das relações sexuais entre homens e mulheres (Panos, 1993). Em seu último relatório, o Programada Organização das Nações Unidas contra a AIDS prevê que, no ano 2000, 14 milhões de mulheres estarão infectadas com o vims HIV e, até lá, 4 milhões estarão mortas (Jornal do Brasil, 8/03/96). Adverte ainda que o risco das mulheres se infectarem durante relações sexuais sem o uso de preservativos é de duas a quatro vezes superior ao dos homens. Os dados epidemiológicos mostram que em vários pafses do mundo está crescendo vertiginosamente a proporção de mulheres infectadas: 19% na Espanha, 20% na França No Brasil, o risco de infecção cresceu ainda mais: 25% de todos os casos de contaminação são hoje de mulheres, enquanto que, em 1981, havia uma mulher para cada 99 homens infectados pelo HIV (JB, 8/03/96). Além disso, segundo o Ministério da Saúde, as relações heterossexuais foram responsáveis pela maioria dos casos identificados entre as a) o estudo do problema do HIV entre os pobres e os grupos socialmente estigmatizados deve desvelar os processos sociais nos quais as práticas de risco se inserem, assim como possíveis fannas em que tais 'estilos de vida' considerados marginais são condicionados pela estrutura social. b) um enfoque inovador sobre a sexualidade deve considerar a globalidade da experiência sexual, particularmente seus significados emocionais para as pessoas envolvidas. c) deve-se inserir os 'comportamentos de risco' em seu contexto social, assim como as estruturas macro-sociais e econômicas que podem ter gerado tais padtões e que podem estar impedindo suas mudanças. d) finalmente, deve-se compreender a distribuição de poder nas relações entre homens e mulheres na maioria das sociedades, particularmente os aspectos vinculados às decisões sobre os encontros sexuais entre uns e outras, sem deixar de considerar a aparente maior susceptibilidade das mulheres para adquirir a infecção heterossexualmente, 35 Cad. Saúde ColeI. 5 (1), J997 mulheres (Ministério da Saúde, 1995). Mantido o atual perfil epidemiológico, é de se prever que dentro de poucos anos (!rés ou quatro, possivelmente), a AIDS estará atingindo o mesmo número de homens e mulheres (panos, 1993). O perfil das mulheres infectadas, no Brasil e outros países, mostra que, ao contrário do que se supunha ou esperava, são as donas de casa, casadas e com um único parceiro as que estão sendo mais atingidas. Essa questão remete para a discussão dos determinantes sociais e culturais de uma epidemia que, desde o seu irúcio, foi marcada por representações sociais que a associaram ao desvio, à levantadas, pretende contribuir para uma melhor compreensão do universo feminino, de onde emergirão - acreditamos - as respostas para tantas e complexas questões trazidas à cena pela AIDS REFERENCIAL TEÓRICO Elegemos dois conceitos teóricos para analisar o objeto da pesquisa: o de gênero e o de representação social. A categoria de representação social é hoje amplamente utilizada no campo da saúde como expressão da necessidade de se compreender a totalidade do fenômeno saúde! doença e a relação entre seus determinantes sociais e individuais, objetivos e sujetivos, concretos e simbólicos. Refere-se, como a entendemos, a um sistema de valores, noções e práticas que dão aos individuos a possibilidade de orientação no mundo social e material (Goulart, 1992). Além disso, possibilita a tomada de decisão e a comunicação intergrupal, bem como a decodificação do mundo e da história indi vidual e coletiva do grupo. Portanto, é mais afeta à vivência e percepção do mundo concreto das relações sociais que o conceito de ideologia, mais amplo e referido à superestrutura social. Como propõe Minayo (1992), as representações sociais ..... por serem ao mesmo tempo ilusórias, contraditórias e ' verdadeiras' , [.... ) podem ser consideradas matéria-prima para a análise do social e também para a ação pedagógico-politica de transformação, pois retratam a realidade". Nesta pesquisa, utilizamos a categoria de representação social em dois campos: o da representação da AIDS e a representação de gênero. Assim, nossas entrevistadas inseremse em um contexto cultural perpassado pelas relações de gênero e de classe social que vão marcar suas visões de mundo e suas possibilidades de ação. Conceituamos gênero como a construção social e histórica das relações entre os sexos. Essa categoria, introduzida nas Ciências Sociais pelo feminismo e hoje amplamente aceita como categoria de anáJise, transgressão de normas, ao pecado e às consequentes punições. Como consequência, quando os indicadores epidemiológicos revelaram, no irúcio da década de 90, um elevado índice de mulheres infectadas, os programas preventivos para mulheres voltaram-se para as prostitutas, vistas como "reservat6rios de lllV" que ameaçavam a humanidade (Carovano, 1991). As mulheres em idade reprodutiva. casadas e mães, representadas pela medicina como assexuadas ou com a sexualidade voltada para a procriação, foram excluídas do risco. Ironicamente, hoje constatamos que são "as rainhas do Iar", aparentemente protegidas pelo casamento, as que estão sendo mais atingidas pelo viros lllV. Além disso, há que se considerar a grave questão do empobrecimento da população feminina a rúvel global o que, sem dúvida, diminui o poder de decisão das mulheres, inclusive na esfera das decisões sexuais. Como dizer para as mulheres casadas usarem o preservativo se, ao solicitarem ao parceiro que o façam, este deduzirá que ela o está traindo ou sugerindo que ele a trai? O único meio da mulher se proteger é dizendo 'não' à relação sexual desprotegida Porém, esse 'não' é muito mais difícil de ser dito se a mulher é pobre, tem filhos e é economicamente dependente do parceiro (Goldstein, 1992). Pesquisas demonstram que as decisões finais sobre quando e como fazer sexo são predominantemente tomadas pelos homens e que estes, frequentemente, se opõem ao uso de preservativos (panos, 1993). Esta pesquisa, a partir das questões Cad. Saúde Coleto 5 (1), 1997 36 constrói, assim, urna fala própria" se contrapõe à compreensão biologicista que explica o papel de inferioridade social da mulher em função de seu lugar na reprodução biológica Dessa forma, a análise de gênero postula que a submissão da mulher ao longo da história tem causas históricas e sociais definidas e que, portanto, é possível e desejável um processo de emancipação que a situe num nível de igualdade ao homem em todas as esferas da vida Há uma vasta e complexa literatura propondo a conceituação de gênero a partir de distintas correntes te6rico-filosóficas. Em nosso ponto de vista, a opressão da mulher tem causas politicas definidas, na medida em que há uma complexa conexão entre as relações sociais de produção e reprodução, com consequências para os papéis sociais. Portanto, também se insere em espaços mais subjetivos e íntimos - os espaços da vida afetiva - como a fann1ia. o casamento e a própria sexualidade. A conexão entre o mundo público - onde o trabalho feminino é explorado - e o mundo privado - onde sua sexualidade é controlada através da família e do casamento - pode ser explicada pelo papel que o casamento e a família desempenham na reprodução das desigualdades sociais (Stolcke, 1980). Cabe ainda ressaltar que o papel social destinado às mulheres - o da passividade e subordinação ao homem - não é por elas exercido sem conflitos e (Ceres, 1981). METODOLOGIA Elegemos a metodologia qualitativa na medida em que pretendíamos nos aproximar do universo de vida de mulheres de determinado segmento social, marcadas, portanto, por uma visão de mundo própria que determina, em grande parte, as possibilidades - concretas e simbólicas - de lidar com a vida, com suas limitações e possibilidades (Simões Barbosa, 1995). A abordagem qualitativa, enquanto proposta teórico-metodológica, pretende atingir e tomar explicitos os significados do comportamento social do ponto de vista dos indivíduos e da coletividade enquanto representação. Isso se justifica na medida em que a ação humana é a expressão de uma consciência resultante de motivações historicamente determinadas. Assim, o estudo qualitativo pretende apreender a totalidade coletada visando, em última instãocia, atingir o conhecimento de um fenômeno histórico que é significativo em sua singularidade. Através do estudo das representações sociais, pretende-se compreender as estruturas e comportamentos sociais que se expressam nos sujeitos concretos através da linguagem do senso comum (Minayo, 1992). resistências. Algumas autoras mostram como as mulheres lutam para superar os limites a elas impostos (Anyon, 1990), Desenho da Pesquisa utilizando mecanísmos de acomodação e resistência que lhes permita a sobrevivência psíquica e social num mundo que não lhes dá espaços de auto-realização. Dessa forma, a fala da mulher é a fala do oprimido que assimila o discurso dominante mas o reescreve a partir das experiências concretas da vida Assim, Optamos pela entrevista semiestruturada, visando coletar principalmente os dados subjetivos, ou seja, aqueles que se referem às atitudes, valores, opiniões e vivências dos atores sociais. A entrevista semi-estruturada é aquela que focaliza temas que orientam o entrevistado, embora o deixe livre para expressar-se. Para análise dos dados, utilizamos a proposta hermenêutica-dialética que pressupõe, segundo Minayo (1992), dois níveis de interpretação: o contexto sóciohistórico do grupo em questão e o encontro com os fatos empíricos, que têm um ''Na relação de poder entre os sexos, ela adota o discurso masculino e, através dele, se descreve, se atribui, se avalia. Ao mesmo tempo, esse discurso dominante é retraduzido, modificado, através da experiência cotidiana da dominação. A mulher 37 Cad. Saúde Coleto 5 (1), 1997 significado particular e revelador do todo. O roteiro de entrevista foi construído com base nos seguintes temas: informações! diálogo sobre sexo, representação de gênero, sexualidade, negociação sexual, fidelidade, relação com o corpo - prazer/culpa, anticoncepção, camisinha, autonomia e independência econômica e aspirações de vida; conhecimentos sobre DST/AIDS, vivência/percepção do risco e prevenção (ver roteiro na íntegra na discussão dos resultados). Apresentaremos. a seguir. os resultados das entrevistas, seguindo o roteiro tal qual ele foi apresentado às entrevistadas. I Tema I: lnfomtJlcãtidi4logo sobre sexo (você conversa sobre sexo ? com quem ? você consegue fawr sobre tudo ou não?) As informantes, de maneira geral, falam pouco sobre sexo, tanto no interior da família como na parceria conjugal. O diálogo - quando existe - se dá mais com outras mulheres, as amigas em especial, muito embora as entrevistadas revelem desconfiança e medo de se abrir e se expor, mesmo com amigas. Como bem ilustra a fala de uma das mulheres, As entrevistadas As entrevistadas foram recrutadas entre a clientela habitual da Unidade de Cuidados Básicos de Saúde da UFRJ (onde a pesquisadora trabalhava então), situada dentro da Vila do João, favela localizada na área da Maré, na rona da Leopoldina, Rio de Janeiro. O sigilo e anonimato foram garantidos, assim como foi trabalhado o uso de gravador. Todas as entrevistas transcorreram em um clima de cumplicidade e confidencialidade (provavelmente pelo fato da entrevistadora ser mulher, ser da equipe de trabalho do serviço e conhecer bem a comunidade em questão). Foram realjzadas 20 entrevistas com mulheres de idades entre 15 e 53 anos, a maioria entre 30 e 40 anos. A maior parte estava desempregada na época e algumas não trabalhavam fora. Apenas uma tinha profissionalização, sendo que as restantes trabalhavam em profissões que não exigem qualificação (empregadas domésticas, serventes, costureiras, etc). A maior parte situava-se, em termos de renda familiar, entre 2 e 4 salários mínimos. A escolaridade do grupo entrevistado era baixa (10 grau incompleto), sendo algumas analfabetas. Grande parte delas são imigrantes de Estados do Nordeste brasileiro. A maior parte era casada ou vivia com parceria estável. Quase todas (18) tinham filhos . O número de entrevistas baseou-se no critério de repetição das falas, ou seja, quando não mais surgiam informações ou novas histórias. ''Eu não tenho liberdade de conversar sobre minbas coisas mais íntimas. Eu converso às vezes com essas minhas amigas. Eu sei que elas não conversam sobre as coisas mais íntimas delas também comigo_" Muitas referem-se à falta de diálogo sobre sexo em suas famílias de origem e assim justificam seu desconhecimento sobre o corpo e os fenômenos biológicos da vida feminina, como a menarca, a gravidez e a menopausa: ''Na minha época, minha mãe nunca explicou nada pra mim. Eu vim pra cá com 19 anos, me casei, fui ter meu primeiro mbo e eu não sabia que era assim. Não sabia como eram as contrações do parto, eu não sabia._." Fica evidente que quase nada se fala sobre sexo, inclusive entre os parceiros sexuais, o que explicita a "estratégia de silêncio" (Ceres, 1981) sobre o sexo. Na cultura brasileira, há um consenso de que sexo não é para ser falado e sim praticado. Dentro dos papéis de gênero, cabe às mulheres o papel de "inocentes" e aos homens, o de "experientes", "vividos". que ensinam as mulheres. Tema 2: Representação de Gênero (se você pudesse escolher, preferia ser homem ou mulher? o que é para você o Iwmem 'ideal' ?) O objetivo deste tema foi explorar a As Entrevistas: a Fala das Mulheres Cad. SoMe Colet. 5 (1). /997 38 ( identidade de gênero das mulheres e sua visão do gênero masculino, através do modelo de 'homem ideal, tão enraizado em nossa cultura de tradição romântica As mulheres entrevistadas revelaram conflito em relação à identidade de gênero: Outms falas mostmm O sofrimento das mulheres com as questões do corpo, como se sua condição biológica fosse sempre vivida com dor e sofrimento, como mostIa a fala a seguir: um pouco mais da metade reafinnou sua "Mulher sofre_.desde a mulher ficar menstruada...homem não, homem não condição feminina, ressaltando os atributos tidos como femininos (a maternidade, a amizade, a lealdade, a vaidade). Porém, praticamente todas expressam insatisfação com as condições desiguais de existência entre sofre tanto. A mulher sofre em casa, tem que lavar, passar, cozinhar, cuidar de criança .... Aí, quando chegar a idade de ter filho, sente aquelas dores pra ganhar neném. Aí, chega a menopausa, tem que fazer tratamento, sente um montão de coisa•..." homens e mulheres, especialmente no que se refere à (falta de) 'liberdade' (incluindo a sexual), a pior remuneração pelo trabalho e o encargo da casa e dos filhos. A fala a seguir ilustIa essa questão: Essas mulheres, ao rejeitarem sua condição feminina, parecem suportar menos as desigualdades e opressões a que estão ''Eu preferia ser mulher mesmo•.. mesmo com todos os problemas que a mulher_, discriminação social__ Mas eu prefiro mesmo ser mulher. Mulher é ser mãe, não sei... A mulher hoje em dia tem todos....se ela lutar, ela tem quase todos os mesmos direitos que o homem tem, os mesmos trabalhos.••" submetidas, inclusive o não-acesso ao mundo da rua, o mundo público, que é uma prerrogativa dos homens em nossa cultura. Ao falarem sobre o ' homem ideal', praticamente todas as informantes descreveram atributos relativos ao companheirismo (como a lealdade, a amizade, a fidelidade, o carinho, a compreensão) e também a intimidade (como a liberdade de conversar sobre sexo). Assim, contatamos que as entrevistadas reivindicam dos homens. seus companheiros, um maior diálogo, compreensão e carinho em suas relações afetivas. Essa questão é fundamental para a prevenção da AIDS na medida em que, quando preconiza-se o diálogo aberto e franco sobre questões que envolvem intimidade e confiança entre um casal, há que se considerar as dificuldades existentes. Já a fala a seguir expressa uma vivência mais realista da discriminação das mulheres no mundo do tmbalho: "Às vezes a gente é discriminada. Em relação ao trabalho, nós somos exploradas. 1-.] Tem também às vezes diferença de salário. I...] A mulher tem a prática, tem o diploma e não ganha a quantia que o homem ganha_." As informantes que optariam pela condição masculina apontaram 'lema 3: Sexualidode (você acha que o sexo é diferente para o homem e para a mulher? principalmente a liberdade - tanto sexual responsabilidades domésticas e dos filhos. A fala a seguir expressa bem este sentimento: o que significa o sexo para o homem? e para a mulher? a mulher pode ter s6 atração sexual pelo homem, sem amor? você acha que as mulheres deviam poder transar fora ''Bem, homem tem mais vantagem assim: tem mais liberdade, é mais solto, faz o que bem entende lá na rua. A mulher não: a mulher tem que rJCBl" mais em casa, não tem certas liberdades que os homens têm..." do casamento ? você acha sua vida sexual boa ?) Neste tema, procuramns desvendar as representações das mulheres sobre a sexualidade feminina e masculina, visando compreender as diferenças entre as vivências e percepções. quanto social - que os homens desfrutam, além de não arcarem com as 39 i Cad. Saúde Colet. 5 (I), /997 As entrevistadas representam a sexualidade da mulher como expressão de amor e afeto, enquanto a sexualidade masculina é claramente 'naturalizada', ou seja, o sexo para o homem é a expressão de um desejo biológico, desvinculado do sentimento e, portanto, impulsivo, sem controle. As falas a seguir ilustram a questão: arraigadas nas culturas de gênero? A questão da fidelidade, central para o discurso preventivo, é também complexa: as mulheres entrevistadas valorizam a fidelidade como essencial para a concretização do amorcompanheirismo. Porém, justificam e, de certa forma, aceitam a infidelidade masculina. Esta é estimulada nas culturas machistas como a brasileira - como afirmação da masculinidade. O código social que rege as relações de gênero impõe um silêncio sobre esta questão: os homens têm relações sexuais extra-conjugais mas não se fala sobre isso; e não é dado às mulheres o direito de querer saber: elas devem fingir que não sabem. Muitas vezes, ousar enfrentar essa discussão dentro do espaço privado pode resultar em agressões físicas e espancamentos contra as mulheres, situação muito mais frequente do que se possa supor. Assim, frente a tão complexas questões, fica um questionamento: deve ser a fidelidade mútua o eixo do discurso preventivo da AIDS? Por fim, ainda neste tema, nossas informantes revelaram, em suas falas, a importãocia de sua realização sexual: elas reivindicam seu prazer e lutam por ele. As que não têm uma relação sexual satisfatória relatam histórias de mágoa e ressentimento com seus companheiros, o que dificultaria uma entrega mais completa Essa questão é fundamental para a discussão do tema a seguir, na medida em que a capacidade de reivindicar o prazer sexual pode ser relacionada a outras, como o sexo sem risco de doenças. "Pra mim, é uma forma da pessoa demonstrar o amor que a mulher sente pelo homem_[..•) Eu acho que para o homem já não é assim. Tem muitos homens que só pensam em se satisfazer e não procurar o sexo por amor" ''Eu acho que o homem é diferente, qualquer coisa pra ele já satisfaz. Eu acho que pra ele não tem escolha, principalmente..." ''Eles já são diferentes. Uma coisa assim que balançou, eles gostaram, eles vão lá, não querem nem saber..." Com relação à sua própria sexualidade, as mulheres admitem que possam ter interesse sexual desvinculado do afeto mas o desqualificam, colocando que não vale a pena deixar levar-se por 'impulsos'. Assim, fica claro que as mulheres, embora reivindiquem a igualdade de direitos, inclusive os sexuais, ainda estão fortemente ligadas à idéia de amor romãotico, onde a fidelidade, a lealdade e a entrega amorosa são valores fundamentais. A fala a seguir ilustra essa questão: Tema 4: Negociação Sexual (você toma a iniciativa quando está a fim de transar ou ''Eujamais farla wna coisa dessas, nem que eu não estivesse me dando bem com meu marido. [._) Eu acho que, pra mim, pra ter wn 'caso', fazer amor com um cara, eu teria que chegar pro meu marido e falar abertamente com ele" espera que ele o faça? como vDê faz quando não está a fim de transar: consegue dizer 'não' ou transa s6 pra satisfazer a ele?) Apenas a metade das informantes relata tomar a iniciativa para a relação sexual. As demais esperam que os parceiros o façam. Fica claro que as mulheres, mesmo com todas as conquistas obtidas, ainda assumem predominantemente o papel da passividade na relação amorosa Mesmo as que dizem tomar a iniciativa, não o fazem abertamente: insinuam, provocam O companheiro para que ele perceba seu desejo. Essa discussão é Essa discussão é fundamental para as estratégias de prevenção da AIDS na medida em que percebemos a distância existente entre o universo sexual feminino e o masculino. Como, então, estimular um diálogo dentro da parceria sexual? Como falar de coisas que quebram regras culturais secularmente Cad. Saúde Coler. 5 (11.1997 40 1 1 bastante relevante para a questão da AIDS na medida em que, em muitas situações - de parcerias estáveis ou eventuais -, cabe à mulher a iniciativa de propor o uso de "Até boje eu não sei _~ ele nunca me deu motivo mas eu não 'boto a mão no fogo' (não me responsabilizo) ... " preservativo. As mulheres receiam serem ''Eu sou fiel por causa do problema das doenças que pintam, mas eu não sou feliz por ser fiel a ele porque ele não é a mim..." percebidas, pelo homem, como 'preparadas demais' para o sexo, rompendo com O estereótipo da passividade e ingenuidade feminina (Carovano, 1991). Quanto ao poder de dizer 'não ' (quando não querem ter relações sexuais), a maioria aJega que conversa com o parceiro e que este aceita sua (falta de) vontade. Porém, três informantes relataram que seus maridos as obrigam a ter relações sexuais, alegando 'obrigações conjugais' . Esses homens, segundo elas, ainda as ameaçam de procurar Fica claro, pelas entrevistas, que os homens dispõem de um espaço público, o 'mundo da rua', ao qual as mulheres não têm acesso. Porém, não se fala sobre isso a não ser em raras situações: entre nossas informantes, algumas poucas dizem ter uma relação aberta com seus companheiros, onde existe o diálogo franco para se discutir todas as questões, inclusive as insatisfações mútuas. Esses companheiros, porém, são classificados por elas como homens 'especiais', diferenciados dos demais por serem abertos ao diálogo. Pelos relatos, também fica claro que, mesmo sendo uma questão aceita culturalmente, as mulheres sofrem quando desconfiam ou sabem que os parceiros são infiéis. A maioria delas, porém, preferia que os maridos fossem sinceros pois se sentem enganadas, além de submetidas ao 'falatório' da vizinhança. o que consideram humilhante. Também é interessante notar que algumas delas, ao discutir este tema, reivindicam direitos iguais nas relações, como mostra a fala a seguir: outras mulheres 'na rua' se elas não quiserem satisfazê-los. O poder de dizer 'não' ao sexo não desejado possivelmente está muito relacionado ao poder de dizer ' não' a uma relação sexual insegura Como vemos, as mulheres vêm conquistando espaços irnJXlrtantes de autonomia em suas decisões. Porém, ainda é presente a submissão e dependência ao homem, especialmente em questões relativas às relações afetivas-sexuais. A fala a seguir revela essa situação: "Às vezes eu tenho que transar só pra satisfazer a ele porque.~ tendo mulher dentro de casa, se eu não procurar satisfazer a ele, ele vai procurar mulher na rua e a coisa que eu tenho o maior medo é dessa doença, a AIDS". "Na minha opinião, os direitos são iguais. Em bora a mulher sendo discriminada. A mulber é discriminada em todos os sentidos, até nesse aí. Se ela faz, se ela passar pelo mesmo problema (ser infiel ao parceiro) e se ela procura uma saída na rua, eles já discriminam mais ela: a mulber já é sem vergonba, é isso, é aquilo, é piranha (prostituta) Agora, se eles fazem, já acba que Tema 5: Fidelidade (para você, é importante ser fiel? você é fiel? e seu marido/ companheiro? ser fiel é diferente para o homem e para a mulher? a mulher tem ou não o direito de querer saber sobre isso? você gostaria que teu companheiro 'abrisse o jogo' com você ou preferia não saber?) A totalidade de nossas informantes se dizem fiéis e reafirmam a fidelidade como uma questão central para o relacionamento afetivo. Porém, a maioria acredita que seus maridos/companheiros não são fiéis, independentemente de se relacionarem bem afetiva e sexualmente com elas. Como expressam algumas delas, •• 0 é norma). Eu não entendo porque isso. Por que?" Essa informante denuncia a discriminação e a desigualdade com visível emoção e deixa no ar a pergunta: por que é assim? 41 Cod. Saúde Cole/o 5 (1), /997 Tema 6: Relação com o Corpo - Prazerlculpq (você acha que tudo é válido em sexo ou algumas coiSllS não devem ser feitas? você acha importante a mulher sentir prazer na relação sexual? o que você precisa para ter prazer? você pede ao homem as coisas que te diio prazer? a sua satisfação depentk mais da experiêncin dele ou depentk mais de você se soltar? você conversa com ele sobre essas coisas ou isso 'corta o barato' (tira o prazer) da transa? o que você acha da mulher se masturbar: é errada ou é uma coisa natural?) Com esse tema , procuramos compreender as censuras, as proibições ou o grau de liberdade sexual que as mulheres admitem para si próprias. Poucas mulheres relataram ter total liberdade sexual com seus parceiros. Porém, desde que associada ao amor ('com amor, pode tudo'). As entrevistadas, em sua maioria, reprovam determinadas práticas sexuais (que não são claramente faladas, ficando subentendido que uma delas é o sexo anal), associando-as às mulheres 'da rua' . Alegam também questões de saúde (são 'perigosas', 'sujas' ) e religiosas (é pecado). Algumas falas revelam os preconceitos das mulheres em relação às práticas sexuais não convencionais: elas usam expressões do tipo 'ficar destruída' , 'arrombada', nos parece que tanto DO sentido físico quanto moral. Assim, o sexo 'sujo', pecaminoso, que povoa as fantasias dos homens, fica reservado para o mundo da 'rua' , com as 'outras' mulheres. Com relação ao seu próprio prazer, todas as informantes declararam ser fundamental sua satisfação sexual. Muitas, inclusi ve, ressaltam que os homens têm a preocupação de as satisfazer. Para a realização do prazer, a maior parte das entrevistadas refere o carinho do parceiro como essencial. Muitas colocam que o estado psicológico (estar relaxada, sem preocupações financeiras, com filhos, etc) também é decisivo para uma boa transa sexual. Poucas atribuem sua satisfação à experiência/postura do companheiro: acreditam que elas têm que se 'soltar' e se entregar. Com relação ao diálogo sobre sexo com os parceiros. a maioria das mulheres diz conversar mas alegam que e1es têm muita dificuldade em falar sobre sexo, como a fala Cad. SwiIk Colet. 5 (l). 1997 abaixo mostra: "Não, não conversa. Não sei se por vergonha ou se ele não consegue conversar. Quando a gente começa a ter um papo, ele corta. Ou ele começa a falar alto. Então, às vezes, eu prefiro calar a minba boca e ficar quieta, na minha" Algumas mulheres, aquelas que relatam ter uma boa relação afetiva com companheiros abertos ao diálogo. dizem conversar francamente sobre tudo, enfatisando o quanto isso é fundamental para um bom entrosamento sexual. Com relação à masturbação, metade das informantes a consideram uma coisa natural para as mulheres. As restantes não a aceitam, sendo que muitas delas mostram visível constrangimento ao falar sobre a questão. Consideramos, aqui, que alguns avanços foram feitos pelas mulheres em relação ao seu próprio corpo mas ainda persistem as representações de culpa e repressão, que tão bem se expressam na questão da masturbação. Tema 7.· Anticonceocão (evita filhos ? conversa com o companheiro sobre isso? ele colabora ou não? quais os métodos que você já usou/usa ? qual ac hou/acha melhor? recebeu orientação? de quem? por que escolheu este método ?) Ao explorarmos este tema, tínhamos a intenção de perceber até onde - e se - os homens têm alguma participação na anticoncepção. Esta questão é muito importante para a prevenção da AIDS na medida em que o uso do preservativo pressupõe uma abertura e predisposição dos homens. A maioria das entrevistadas revela que seus parceiros não s6 não participam das decisões que envolvem a anticoncepção como reagem negativamente quando a mulher tem que adotar algum método, mesmo que temporariamente, que traga limitações para a vida sexual (como a tabela) ou que envolva sua participação direta (como o preservativo). As falas a seguir são ilustrativas: 42 • • fidelidade do parceiro o que, como vimos, é uma questão complexa Apenas uma associou ''Não, era totalmente ignorante. Era assunto meu. [ .. . ] Ele nunca se interessou e eu procurava por mim mesma. E tinha meios de evitar que ele tinha que fazer participação e ele não fazia..." 'sexo seguro'ao uso do preservativo. o que parece indicar que a camisinha, para as mulheres, ainda está mais associada à anticoncepção. A maior parte delas, inclusive, refere ter usado a camisinha em algum momento de sua vida anticonceptiva. geralmente quando tinham que interromper, por recomendação médica, a pOula. Além disso, as mulheres parecem repetir o discurso masculino sobre o preservativo, como a seguir: "Era só minha. Meu marido era muito bruto. Eu tentei fazer a tabela mas ele começou a implicar" Das mulheres entrevistadas, metade havia feito a laqueadura tubária. Alguns autores têm levantado a hipótese de que esta escolha anticonceptiva radical pelas mulheres indica, de alguma forma, sua falta de opção na adoção de métodos anticonceptivos que exijam diálogo e participação dos homens (Goldstein, 1992). O preservativo foi muito pouco utilizado por elas pois o consideram inseguro para evitar a gravidez, além das resistências dos homens. Fica claro, pelos depoimentos, que é fundamental, quando pensamos em estrntégias de prevenção da AIDS, reverter a "Fica uma coisa revestida ... sinceramente, não gostei muito não" "Incomoda muito, fica uma coisa muito superfJCial, você sente direitinho o plástico. Eu não gosteP' Com relação à reação dos companheiros caso fossem solicitados a usar a camisinha, mais da metade das entrevistadas acreditam que seus parceiros reagiriam negativamente: com desconfiança e mesmo com a recusa pura e simples. A fala seguinte é ilustrativa: imagem negativa associada ao preservativo e, principalmente. trazer os homens de volta ao cenário das decisões sexuais, enfatisando a importância do casal se proteger "Eu tava falando com ele: olha o que você tá fazendo, eu vou comprar (preservativo)_.EIe virou bicho! Ele virou a cara e rlCOu uns dois dias sem Calar comigo. Falou: 'você tá desconfiando de mim?'Eu disse: não é que eu tô desconfiando, eu tô lendo em tudo que éjornaI, revista, televisão, que é pra usar._Só sei que ele virou a cara e desaprovou a idéia" mutuamente. Tema 8: Se;w Seguro e Camisinha (o que é 'sexo seguro' para você? o que você acha da camisinha? já usou? sabe como usar? quais suas vantagens/desvantagens em relação a outros métodos? como você acha que seu companheiro reagiria se você pedisse que ele usasse a camisinha?) Neste tema, procuramos aprofundar a percepção que as mulheres têm do 'sexo seguro' (se associado às doenças ou à gravidez indesejada), da camisinha, suas dificuldades para lidar com sua utilização e as reações dos companheiros caso fossem solicitados a adotála. Nossas informantes, em sua maioria, associaram 'sexo seguro' ao sexo livre de doenças, o que representa, a nosso ver, uma mudança positiva: parece que a preocupação com as doenças, especialmente com a AIDS, suplantou a milenar preocupação das mulheres com o medo de engravidar. Porém, grande parte delas associa 'sexo seguro' à Uma delas relata que já pediu ao marido que usasse o preservativo, pois tem certeza que ele tem outras mulheres e tem medo de contrair alguma DST. O marido em questão respondeu (sic) : "pode deixar que eu estou 'limpo' (sem doença). O dia que eu tiver uma doença, qualquer coisa, eu jamais vou fazer isso com você". Nesta fala, transparece claramente o discUISO masculino de 'proteção' à mulher: 43 Cad. Saúde Coleto 5 (1),1997 cabe ao marido ser o provedor e protetor da mulher e da prole. Além disso, até que ponto permanece no imaginário masculino a associação - histórica - entre as DSTs e a virilidade? doméstico das mulheres está em transformação nas regiôes urbanas e que hoje as mulheres aspiram ao trabalho fora de casa almejando um maior conhecimento e participação no mundo, o que é, em nosso Tema 9: Autonomia e Independência fato de trabalhar e ter uma renda própria mesmo que muito baixa, como é o caso das entrevistadas - não parece garantir, por si SÓ. maior independência e autonomia para as mulheres na esfera privada de suas vidas. entender, extremamente positivo. Porém, o Financeira (você acha importante a mulher trabalhar fora ou ela deve ficar em casa cuidando da família ? qual(ais) a(s) vantagem(ns) da mulher trabalhar fora ?) Este tema foi abordado com a intenção Tema la: ConhecimentQs sobre DSIeAlDS (você já teve alguma orientOfão em serviço de saúde sobre as doenças sexuais (inclusive a AIDS) ? caso sim, esclareceu ou não? quais você conhece ou já ouviu falar? você já teve alguma doença de transmissão sexual? caso sim, você sabe de quem pegou? como foi ? os dois se trataram? o que você sabe sobre a AIDS? como você sobe? o que você achau das campanhas da 1V?) Poucas entrevistadas receberam de compreendermos os anseios das mulheres por autonomia e independência econômica e até que ponto esta questão é fundamental para outras esferas de autonomia e independência em suas vidas. Quase a totalidade das informantes confinnam a importãocia da mulher trabalhar fora de casa. O principal motivo é 'sair das quatro paredes do lar', conhecer o mundo, saber o que acontece. demonstrando claramente que não é a remuneração propriamente que leva essas mulheres a quererem trabalhar fora. Aliás, suas remuneraçôes pelo trabalho são tão baixas que talvez nem compensasse, pois isso implica em ter esquemas para deixar os filhos assistidos. Algumas entrevistadas apontam a própria remuneração como importante, para não ter que depender do marido em suas despesas pessoais. Porém, essas mulheres não se colocam em nível de igualdade com os companheiros no sustento da faIDl1ia: sua renda, embora às vezes igual a do homem, não é vista como essencial. É sempre complementar ou associada às despesas mais supérfluas. Algumas informantes referem-se à dupla jornada de trabalho da mulher que trabalha fora, como na fala abaixo: informaçôes em palestras ou orientaçôes em serviços de saúde. Parece que estes não estão cumprindo seu papel informativo/educativo nesta e em outras questões de saúde. Quanto ao conhecimento das DSTs, a maioria cita a AIDS e a gonorréia, bastante frequentes no Brasil. Algumas poucas se referem ao cancro, herpes e sifilis como doenças de transmissão sexual. Quase todas as informantes relatam nunca terem tido DST. Uma delas estava no centro de saúde naquele momento com suspeita de ter contraído uma DST. Outras duas referem-se a eventos passados em que suspeitam terem tido uma DST (sem confmnação diagnóstica). Ambas relatam seus sentimentos de vergonha e de 'traição' pelos parceiros que as contaminaram. Quanto à AIDS, as entrevistadas estão genericamente informadas. Quando tentamos aprofundar a informação, percebemos que seus conhecimentos eram supérfluos. limitados ao que informam a TV, as revistas femininas, O rádio e os ídolos populares que morreram com a doença Nenhuma delas teve acesso a uma palestra, curso ou treinamento sobre AIDS, inclusive em locais de trabalho. A fala dessa informante reflete bem o estado de confusão que a população fica em relação a tantas informaçôes que são dadas sem um "Acho muito importante (a mulher trabalhar Cora) apesar de que é muito mais diIíciI pra uma mulher brasileira de uma classe bem baixa trabalhar fora. Se torna um trabalho mais puxado porque a mulber, quando ela chega em casa, ela tem um outro trabalho pra fazer, o trabalho doméstico". Pelos relatos, vemos que o papel Cad. Saúde Calet. 5 (/). /997 44 I aprofundamento subsequente: por isso até que eu me separeL" "_.é tanta coisa que a gente não guarda tudo na cabeça. A gente só sabe que o método mais eficaz é a camisinha, só isso. Porque, de resto, não dá pra gente ''Eu poderia me contaminar, a partir do momento que meu marido tenha guardar tudo" " •..nocaso (eu poderia me contaminar) mulher na rua •.." com meu marido. FJe fica lá e eu não • sei o que ele tá fazendo. De repente ele vai e transa com uma pessoa lá e vem pra cima de mim. Não só com o virus da AIDS como também das outras doenças_" Além disso, há a construção do imaginário social, que produz fantasias em cima do que sabe ou ouve, como a seguir. ''porque eu escuteI DO rádio que nós todos temos o vims. [_.l_quer dizer, "Ab, o marido dela pegou e passou pra nós todos temos o vírus mas só que em uns se manifesta e em outros, não." ela. Eu rICo pensando também: se meu marido pega, passa pra mim. Me preocupa_" Muitas informantes referem-se à questão da solidariedade com os portadores, o que parece mostrar que as últimas campanhas voltadas para essa questão sensibilizaram as pessoas. Algumas mulheres observaram, também, que só campanhas não são suficientes para o aprendizado das pessoas. E sugeriram: Como vemos, as mulheres não estão alheias ao risco e não o atribuem a um 'outro' distante. Porém, o diálogo com os parceiros sobre a questão é difici!: algumas conseguem 'conversar', ou seja, alertá-los para os riscos e fazer recomendações de fidelidade. Poucas referem um diálogo aberto e franco com o parceiro e uma preocupação deste com a questão. A maioria dos homens não quer falar sobre o assunto, como relata "Não é só pela televisão. No caso, isso aqui que você tá fazendo_o entrevista..• deveria ter mais palestra." uma entrevistada: Tema JJ: Vivência/Perçepcão do Risco (você conhece alguém que esteja contaminado? Você já pensou que pode se contaminar? como ? já conversou com o companheiro alguma vez sobre isso ? ele já tocou no assunto alguma vez?) O objetivo deste tema era constatar o quão perto a AIDS já chegou na vida dessas mulheres e até que ponto elas se sentem em risco ou ainda percebem a questão como sendo do 'outro'. Quase metade das entrevistadas já teve alguém próximo com AIDS (parentes, vizinhos, amigos). A maioria absoluta delas já pensou, alguma vez, que poderia se ''Não, quando eu toco (no assunto), ele desconversa e diz: 'mulher boba, essa mulher só pensa em morrer, só pensa em doença•.• '" É paradoxal , mas a mulher quer conversar exatamente porque teme a doença e o homem a acusa de ser mórbida, como se a sua preocupação fosse irreal ... Tema 12: a Prevencão (quem corre mais risco de se contaminar: os homens ou as mulheres? quem tem 11Ulis risco de se contaminar: as mulheres casadas ou as solteiras? como as mulheres podem se proteger da AIDS, já que é o Iwmem que usa a camisinluJ.? as mulheres casadas devem pedir que os maridos usem a camisinha?comoelaspodemfazerisso? como você acha que se pode convencer as pessoas a usarem camisinha: 'fazendo a cabeça' (convencendo) das mulheres para exigirem que contaminar com o vírus através de relações sexuais e através de seus próprios companheiros: ''Eujá tive até vontade de fazer um teste, sabe_ porque meu marido, meu ex· marido, tinha uma vida muito hTeguJar, 45 Cad. Saúde Colet. 5 (I). 1997 os companheiros usem ou conscientizando os homens de que eles devem usar? ) "A mulher casada corre mais risco porque ela tá ali, sem saber de nada, inocente. Eles lá na 'rua' é que As entrevistadas dividem-se quanto ao risco: metade acredita que os homens estão mais expostos ao risco porque são mais impulsivos, não se 'controlam' e não escolhem as parceiras. Algumas argumentam que alguns homens não acreditam na existência da AIDS: sabem da vida deles ... " Cabe observar que nenhuma das entrevistadas levantou suspeita de que os homens mantenham relacionamentos com outros homens na 'rua', o que é mais frequente, em nossa cultura, do que se possa supor. Essas práticas homossexuai s, inclusive, não implicam em perda da identidade masculina, na medida em que os homens que se comportam como 'ativos' na relação são vistos e se percebem como 'machos'. Como não formulamos explicitamente nenhuma questão a respeito, não sabemos se as mulheres não imaginam que isso possa acontecer com seus homens ou não falem em assunto por demais mobilizante. Quanto à questão das mulheres se protegerem da AIDS quando cabe ao homem o uso do preservativo, as informantes se mostraram impotentes. Mais da metade não soube o que dizer e não sabe o que fazer. As demais propõem soluções de difícil execução, especialmente em parcerias estáveis, como 'parar de transar'. 'ter sempre camisinha à mão' (quando vimos, anteriormente, o quanto é difícil a negociação da camisinha nas parcerias), 'greve de sexo' e a criação de uma camisinha feminina Gá em fase de testagem mas com sérias dificuldades para serem viabilizadas em larga escala, como sabemos). As falas abaixo traduzem bem o sentimento de impotência e conformismo das mulheres frente ao risco de se infectarem: "Aliás, a maioria dos homens não tem medo, eles nem acreditam que a AIDS exista. Eu conheço muitos que CaJam que a mulher usa muito essa palavra 'AIDS'praobrigarohomemaserlieP' As que atribuem às mulheres maior risco de se infectar o relacionam à sua 'fragilidade biológica'. associando sua conformação anatômica a uma maior facilidade para 'abrigar' as doenças. como fica claro nas falas: " Porque eu acho que a parte do homem é mais protetora e a parte da mulher já é mais interna, eu acho que tem mais Cacilidade.•." ''E a mulher é mais Crágil, a saúde da mulher... A mulher tem orgãos, tem muito mais órgãos que os homens. [...) e a mulher menstrua. Então, essas coisas todas... eu acho hem mais Cácil a mulher se contaminar" É interessante observar que os argumentos para defender um ou outro ponto de vista (homens ou mulheres com maior risco) são dados ora pelo comportamento masculino ora pela biologia feminina mas nunca pelos dados epidemiológicos que mostram a crescente infecção das mulheres. Com relação ao risco associado ao estado conjugal, mais da metade das informantes acreditam que as mulheres solteiras correm mais risco, na medida em que têm mais parceiros sexuais. Porém, as restantes atribuem risco igual para as duas, argumentado que também as mulheres casadas correm riscos na medida em que seus maridos têm outros relacionamentos na 'rua'. A fala seguinte ilustra essa percepção: QuI. Saúde Coleto 5 (l), 1997 "Agora, se tiver que acontecer comigo, vai acontecer. Por mais que eu me previna, não tem como escapar. Se tiver que acontecer, vai acontecer_eu acho" o meu caso é assim: se tentar convencer ele, eu sei que ele não vai usar. Então, ou eu corro risco ou eu saio fora ..." "Até eu quero saber também (risos)...Eu aebo difícil... Eu acho que só vai depender deles, né? Porque só 46 I eles podem usar essa (camisinha) casada não deve pedir que o marido use o preservativo). Se ela começar a perceber que o marido dela, que ele começa a.~.sabe, a ter outros casos na 'rua', é melhor ela largar ele que ficar .~" ''Eu acho que não tem jeito não~.[.~l Porque se ela sair com um homem e o homem já tiver contaminado, ele não vai querer saber de não contaminar ela. Ele não quer nem saber. Eles não tão nem aL." 'tem que usar camisinha!' ... Então, casal é casal, por isso já tem o nome de 'casal' , não pode existir essas coisas. [-1 A maioria dos maridos é tudo 'bruxo', uns ignorantes••.Eles acham que a mulher tem que.~ Por isso que é bom a mulher trabalhar fora, a mulher ser Independente~." As falas revelam inequivocamente que essas mulheres estão conscientes da 'situação de risco' que vivem. não s6 o risco de contrairem o HIV mas também suas limitações - objetivas e subjetivas - para mudar esta situação (seja pela conscientização dos parceiro s Essa informante aponta a independência econômica da mulher como urna forma dela não ter que se submeter a situações que a exponha a riscos embora algumas que trabalham fora tenham revelado submissão emocional e afetiva aos seus companheiros. o que nos leva a supor que a questão econômica, por si SÓ, é imprescindível mas não absoluta para a superação da e consequente adoção de práticas sexuais seguras, seja pela mudança de uma situação de vida e parceria que as coloca em risco). Da mesma forma, quando discutiu-se a necessidade - ou não - das mulheres casadas usarem o preservativo e como elas poderiam convencer seus maridos, as entrevistadas demostraram impotência frente à questão. Quase todas concordaram que as casadas devem usar mas não sabem como as mulheres podem colocar essa reivindicação para os companheiros: dependência feminina Duas informantes apontaram o 'jeitinho feminino de conseguir as coisas' (com doçura e aparente submissão) como urna alternativa (tipo 'convencer o parceiro que o médico recomendou para não engravidar'). "Ab, aí que ia ser fogo! Como é que ela ia pedir? O cara ia falar o que? E a briga que ia ter? Sei lá, aebo que todos nós tamos correndo risco, mulber solteira, mulher casada, todo mundo..." Porém, quando questionamos como as ''Eu já entrei numa de pedir. Eu nem têm outros relacionamentos, o que provocaria sei como tem que falar, como pedir... não sei" mágoa e ressentimento nas mulberes (como vimos, são emoções e sentimentos difíceis de lidar). Constatamos, assim, como a questão da fidelidade e do diálogo na parceria é complexa e envolve a ruptura de códigos há mulheres esterilizadas (a maioria delas) poderiam usar esse argumento, não souberam responder. Por fim, duas informantes levantaram uma difícil questão: se os homens aceitam usar o preservativo. estarão assumindo que ''Isso aí é uma coisa que depende do homem, sei lá. Tem homem que é compreensivo, que é diferente, gosta de se prevlnlr. Às vezes não previne muito enraizados na cultura de gênero. Mesmo a epidemia de AIDS, urna doença tão grave que coloca em risco a vida das pessoas, não é suficiente para romper uma situação que, certamente, colocaria as relações homem-mulher num patamar superior: O da confiança mútua através do diálogo. Com relação ao último tópico deste em casa mas previne na 'rua' (risos)••." o depoimento a seguir foi o único, neste tema, que apontou uma saída para a mulher frente a essa questão: tema - para quem as campanhas deveriam ser prioritariamente direcionadas - a maioria ''Eu acho que não (que a mulher 47 1 Cad. Saúde Coleto 5 (11. 1997 das entrevistadas entende que os homens devem seros alvos neste sentido. O argumento dessas é que os homens são mais 'durões', suficiente? Serão as campanhas capazes de fortalecer as mulheres para que elas realizem as mudanças necessárias em aspectos tão difíceis da vida afetiva e amorosa? Finalizando, julgamos relevante 'autoritários' e difíceis de serem convencidos. As falas ilustram esse ponto de vista: destacar uma voz destoante entre as entrevistadas. Essa informante foi a única, entre todas, que se posicionou de maneira finoe e decidida em relação à sua auto-estima ''É o homem. Porque só a mulher, não adianta. Você pode chegar em casa e falar com teu marido e é como eu te Calei: ele vai desconfiar. Ele pode até largar a mulher. Quer dizer, você chega em casa e_o Tem homem que acha que só ele tem direito de falar, só ele que tem autoridade em casa. A mulher não pode chegar em casa e falar nada com ele." e seu compromisso com a vida. Sua história de vida revela situações não muito diferenciadas das demais: uma separação anterior de um companheiro irresponsável e imaturo, a luta para sobreviver com o filho pequeno, um novo casamento com um homem mais aberto e consciente e, consequentemente, uma relação amorosa ''Eles têm que se conscientizar mais que aquüo é um beneficio pra eles, que é pra previnir, não é que já esteja. De imediato, o que passa na cabeça deles é: 'ah, você lá pensando que eu tô com isso? Você lá pensando que eu tô doente? ' É logo o que vem na cabeça deles. Eles acham que a mulher tem medo de pegar o que eles já tem, não é baseada no diálogo e compreensão. Porém, por razões que não exploramos suficientemente nesta pesquisa, essa mulher adquiriu uma determinação e finoeza diante da vida que . gostaríamos - fosse a regra e não a excessão. A seguir, sua fala: U[ ...] Porque, de primeiro, a gente tinha medo de gonorréia, disso e daquilo, mas tomava o remédio e passava. E agora a AJDS, que não tem cura? E eu sempre pensei muito: eu tenho meu filho, eu amo meu fdho e eu amo a mim. Então, eu não vou morrer por causa de amor._." pra evitar._" As entrevistadas que apontam as mulheres como alvos privilegiados das campanhas educativas usam o argumento que estas têm mais força para convencer os bomens. Além disso, atribuem às mulheres o papel social do cuidado à saúde, embora mais da família que a sua própria. Esse papel é aqui plenamente assumido, como ilustra a fala a seguir: Tema 13: Aspiracõesde yitla fcom o que você sonha na vida ? o que você goslaria de fazer ou de ler e que aindn não conseguiu?) Este tema teve como objetivo explorar, a nível da subjetividade e das fantasias, o projeto de vida dessas mulheres e seu confronto com uma realidade social que não lhes dá, geralmente, oportunidades de se "Pra ela fica mais fácil, eu acho assim....porque a mulher é mais. ... a mulher se previne mais do que o homem. A mulher lá sempre no médico e o homem não..._O homem é que nem realizarem enquanto sujeitos. O principal 'sonho' relatado referiu-se ao bem estar da filho. Se a gente não evitar, o homem família - geralmente associado a ter uma casa vai evitar?" própria, sentida como um 'chão finoe' numa vida em que nada é garantido· e à educação dos filhos, mantendo-os longe do mundo da marginalidade e das drogas, questão muito presente nesta realidade social. O depoimento a seguir é contundente: Essas entrevistadas, portanto, assumem esse papel e o direcionam num sentido positivo: a mulher deve, então, usar sua força e poder no âmbito da vida privada para mudar uma situação de risco para todos. Porém. a questão que fica é: tem ela poder Cad. Saúde Colei. 5 (J), /997 "Sonho ... meu sonho agora, no 48 momento, pode ser assim de ver meus filhos crescerem com saúde, neste mundo doido que está aí. Ter muita força, pedir muito à Deus paz, saúde, trabalho e•.• pra mim já••. na época de hoje e no lugar que eu moro acho que.•• só o fato de (tubo) não lidar com tóxico no meio da bandidagem já é uma grande coisa porque falam que 'não é o lugar que faz' (o meio não influencia) mas influi muito. Então, meu sonho é esse" esfera da vida; algumas dizem-se satisfeitas com suas relações atuais e outras não questionam ou não admitem mudanças, revelando um certo confonnismo com uma situação insatisfatória Cabe lembrar que nenhuma entrevistada expressou aspiração à ascenção de classe social. Não nos cabe inteI}Jretar aqui esta questão pois não temos elementos para tal mas fica registrada a pergunta: conformismo ou realismo? Como dizumadas mulheres, Podemos compreender melhor essa preocupação quando constatamos que a VIla do João é hoje, no Rio de Janeiro, uma das favelas mais .disputadas pelos traficantes de droga A tal ponto que a Unidade de Cuidados Básicos de Saúde da UFRJ parou de funcionar no ano passado, após sucessivos e violentos tiroteios entre traficantes locais e entre esses e a polícia Assim, o perigo de 'cooptação' dos jovens dessa comunidade, por mais que as famflias te ntem impedir, é grande, principalmente se levarmos em conta que nenhuma perspectiva de vida mais digna é a eles oferecida Os sonhos de auto-realização dessas mulheres ficam, portanto, secundarizados. Algumas delas falam do desejo de retomar os estudos, via de regra interrompidos pelo casamento e maternidade. Porém, têm perfeita consciência que sua concretização é impossível numa realidade social que lhes reserva um destino previamente definido e subalterno. Também aparece, nas falas, a preocupação com a saúde. Afinal, neste segmento social, 'ter saúde' é fundamental para a sobrevivência e a ausência de saúde significa total desassistência por parte do Estado e da sociedade, especialmente no contexto neo-liberal de desmonte das polítieas públieas que ora vivemos. Por fim, poucas entrevistadas referemse ao sonho - tão básico! - da realização amorosa, ou do 'grande amor' , segundo a tradição romãotica em que vivemos. Talvez isso se explique pelo fato de serem, na maioria, mulheres vividas e sofridas, que não mais fantasiam sobre o amor. A maioria delas parece não ter perspectiva de mudança nessa "Ah, eu já tive tanto sonho .. , ultlmamente ... foram todos água abaixo. Eu não sou mais Dudida lL'iSim, não" Duras palavras, aprendidas com a dureza da vida ... CONSIDERAÇÕES FINAIS A AIDS trouxe ao mundo contemporâneo. especialmente para a medicina, importantes desafios. A começar pelas respostas sociais geradas pelo discurso científico, ele próprio permeado por representações ideológieas (Cáceres, 1995). Porém, as respostas geradas por grupos sociais inicialmente mais atingidos pela epidemia particularmente os gays - mostrou como tem sido fundamental, no enfrentamento desta questão, a participação das populações-alvo na concepção, elaboração e execução das políticas preventivas. Esse é um dado fundamental que, se não for devidamente inCOlJ'Orado nas estratégias preventivas, pode continuar levando a fracassos e perigosos equfvocos. Assim, esta pesquisa não teve a pretensão de extrair conclusões definitivas. Ao contrário, constatamos que a AIDS reveste-se de tal complexidade que precisamos urgentemente buscar respostas inovadoras e criati vas para responder aos desafios por ela colocados. Acreditamos termos identificado questões relevantes para as estratégias educativas/preventivas dirigidas às mulheres, especialmente aquelas que hoje 49 Cad. Saúde Cole/. 5 (1 ),1997 conformam o segmento feminino mais vulnerável: as mulheres pobres, com pouco acesso às informações e serviços, com pouco - ou nenhum - poder de decisão sobre suas vidas e sexualidades e aparentemente ' protegidas' pela segurança do casamento. Como adverte Marge Berer, da Rede Global de Mulheres pelos Direitos Reprodutivos, "as escolhas e prioridades das mulheres precisam encontrar eco junto aos responsáveis pelas políticas públicas. Se as mulheres não falam nem agem no sentido de se fortalecerem [...] nossos interesses serão esquecidos ou serão submetidos aos interesses dos homens"(panos, 1993). Sem dúvida, a questão é fundamentalmente política e passa pela discussão do poder, como aponta Jonathan Mann: vivências das próprias mulheres com seu corpo e sexualidade, estratégias educativas de comprovada eficácia (Xavier et alli, 1989). Deve-se também considerar a articulação da prevenção das DST/AlDS aos Programas de Atenção à Saúde da Mulher. Nossa pesquisa mostrou claramente como a questão do preservativo está associada à anticoncepção e como esta se enraiza profundamente na cultura de gênero. Portanto, seria altamente relevante associar a discussão da prevenção às práticas educativas - anticonceptivas e outras (como prevenção de cãocer de mama, exame preventivo) - já implantadas nos serviços de saúde. 2) Envolvimento dos homens de identidade heterossexual no processo educativo! preventivo. Criação de pesquisas e programas - também com envolvimento dos grupos-alvo na elaboração e execução - específicos para esse segmento, enfatisando sua responsabilidade na prevenção e abordando claramente as questões relativas ao mundo sexual masculino como a infidelidade, as práticas de risco e outras. Deve-se considerar também a articulação desses programas a outros, como as clínicas de tratamento das DSTs e outros que assistam mais especificamente a população masculina. "o momento não é só de dizer 'não' 80 sexo não desejado, ao sexo sem proteção ou à gravidez indesejada. O momento é de dizer 'não' também à desigualdade, à discriminação e à falia de opções" (panos, 1993). Porém, as mudanças neste sentido, ou seja, a conquista de direitos - de cidadania - nos países do Terceiro Mundo são ainda utopias, especialmente no momento atual, onde as desigualdades se aprofundam. Portanto, sem perder a perspectiva de mudanças políticas que apontem para um mundo mais justo e igualitário, julgamos urgente e inadiável mudanças de curto e médio prazo que possam ser implementadas pelos governos e programas de AIDS. Destacamos, resumidamente, os pontos que julgamos fundamentais para a formulação de programas para as mulheres deste segmento social. 3) Re-definição de algumas estratégias preventivas que têm se revelado irreais, tais como: a) a fidelidade como eixo central da prevenção: embora a discussão da fidelidade deva ser incluída nos processos educativos! preventivos (no sentido de estimular as mulheres a 'descortinar os véus' que recobrem a dupla moral sexual vigente), as mensagens que associam a diminuição do risco à diminuição do número de parceiros (as) ou à mútua fidelidade são irreais. Talvez a mensagem mais adequada fosse a que enfatisasse o sexo mais seguro em todas as relações, independentemente do número de parceiros, muito embora essa questão não faça parte dos sentimentos e desejos das mulheres em geral, que almejam relações honestas e baseadas no diálogo. b) a questão do preservativo é complexa. Em primeiro lugar, como estimular seu uso se não I) Elaboração e implementação de programas de prevenção voltados para as mulheres especialmente as de baixa renda - que contemplem todas as questões envolvidas na discussão da AIDS, com a participação e envolvimento dos grupos-alvo nas estratégias de formulação e execução. Deve-se considerar a histórica experiência dos movimentos de mulheres que construiram, a partir das Cad. Saúde ColeI. 5 (I), /997 50 há uma distribuição gratuita massiva e permanente para a população de pouco poder aquisitivo? Cabe lembrar que seu preço no Brasil é dos mais altos do mundo. Em segundo, não há tradição de uso de preservativo na cultura brasileira nem como anticoncepcional. Além disso, há fortes resistências dos homens, que não admitem ter seu prazer restringido por um pedaço de látex. Há a resistência das mulheres, que não confiam em sua eficácia. Não há diálogo entre os dois, especialmente em parcerias estáveis. Portanto, há que se investir maciçamente não s6 na resimbolização do preservativo como na aquisição de habilidades específicas para seu uso. Há que se considerar também o alto índice de esterilização das mulheres brasileiras, o que dificulta a associação do preservativo à anticoncepção. Por fim, é bom lembrar que a luta pelo direito à saúde e à vida no Brasil é uma luta histórica. Luta, inclusive, em muito enriquecida pelas mulheres que, através de movimentos organizados. vêm conquistando importantes avanços na área da saúde reprodutiva. Embora O cenário da AIDS não permita ainda sentimentos otimistas, me permito compartilhar da visão do grande companheiro Betinho que situa a AIDS, no mundo contemporâneo. como a possibilidade de rupturas com uma ordem injusta e excludente. Agradecimentos: Agradeço às mulheres da Vila do João que comigo compartilharam, no processo da pesquisa, seus medos, angústias e alegrias. São elas bravas 'guerreiras' que não perdem a esperança de ter fé na vida. A elas dedico este trabalho. E à Karen Giffin, minha orientadora de Mestrado, que muito me ajudou nessa 'viagem' pelo mundo feminino. REFERÊNCIAS BffiLIOGRÁFICAS ALCORN, K. 1988 "IIIness, Metaphor and AIDS" In: Aggleton, P. & Homans, H. (org.) Social Aspects 01 AIDS. London, The Falmer Press. ANYON, J. 1990 "Intersecções de Gênero e Classe: Acomodação e Resistência de Mulheres e Meninas às Ideologias e Papéis Sexuais" (trad. Edith P. Piza). Codernos de Pesquisa. São Paulo, (73): 13-25. CÁCERES, C. F. 1995 "AIDS: um Desafio para as Ciências Sociais e a Medicina. La Construcción Epidemiológica" In: Hardy, E., Osis, M.J.D. & Crespo, E.R. (org.) Ciências Sociais e Medicina. Atualidades e Perspectivas Latino-americanas. Campinas/SP, CEMICAMP. CAROVANO, K.(1991 "More than Mothers and Wores: Redefining the AIDS Prevention Needs of Women". lnternational Journal of Health Services. voL I. no. 1 (131-142). DANIEL, H. & PARKER, R. 1989 AIDS: a Terceira Epidemia. Rio de Janeiro, Ed. Iglu. 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Sculde Coleto 5 (I). 1997 52