1 Hospital Servidor Público Municipal SÍNDROME COLESTÁTICA FAMILIAR – RELATO DE CASO BEATRIZ RODRIGUES DE ANCHIETA São Paulo 2015 2 BEATRIZ RODRIGUES DE ANCHIETA SÍNDROME COLESTÁTICA FAMILIAR – RELATO DE CASO Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Comissão de Residência Médica do Hospital do Servidor Público Municipal, para obter o título de Residência Médica. Área: Clínica Médica. Orientadora: Dra Renata da Silva Moutinho. São Paulo 2015 3 AUTORIZO A DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE. São Paulo, ____ / ____ / ______ . _________________________________ Beatriz Rodrigues de Anchieta Residente de Clínica Médica 4 Beatriz Rodrigues de Anchieta SÍNDROME COLESTÁTICA FAMILIAR – RELATO DE CASO Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Comissão de Residência Médica do Hospital do Servidor Público Municipal, para obter o título de Residência Médica. Área: Clínica Médica. Orientadora: Dra Renata da Silva Moutinho. COMISSÃO EXAMINADORA _____________________________________________ Dra. Christiane M. V. Boas _____________________________________________ Dr. Sadi F. S. Navarro _____________________________________________ Dra. Pérola G. Lerner São Paulo, 13 de outubro de 2015. 5 RESUMO Colestase é definida como uma redução do fluxo biliar. Em crianças, é quase sempre devido a alterações genéticas. Pode ser por diminuição no transporte, síntese ou obstrução biliar. As causas são divididas em intra ou extra-hepáticas. Dentre as causas intra-hepáticas destacamos duas: colestase intra-hepática familiar progressiva (PFIC) e colestase intra-hepática recorrente benigna (BRIC). PFIC refere-se a um grupo heterogêneo de doenças autossômicas recessivas da infância, secundárias a mutações em genes do sistema de transporte hepatocelular envolvidos na formação de bile e se apresentam com colestase. Já BRIC é uma doença rara, também de caráter autossômico recessivo, caracterizada por episódios intermitentes de prurido e icterícia, que evolui sem sequelas funcionais hepáticas. O objetivo do presente artigo é relatar um caso de síndrome colestática que ficou internado no serviço de Gastroenterologia do Hospital do Servidor Público Municipal e comentar os principais aspectos clínicos das colestases intra-hepáticas. Neste episódio foi realizada uma investigação criteriosa, para a exclusão de outras causas de colestase. Palavras chave: colestase, colestase intra-hepática familiar progressiva (PFIC), colestase intra-hepática recorrente benigna (BRIC). 6 ABSTRACT Cholestasis is defined as a decrease of the biliary flux. In children, it is almost always due to genetic alterations. It may be decreased in transport, synthesis or biliary obstruction. The causes are divided into intra or extrahepatic. Among the intrahepatic causes we highlight two: progressive familial intrahepatic cholestasis (PFIC) and benign recurrent intrahepatic cholestasis (BRIC). PFIC refers to a heterogeneous group of autosomal recessive disorders of childhood, secondary to mutations in genes of hepatocellular transport system involved in bile formation and present with cholestasis. Already BRIC is a rare disease, also autosomal recessive, characterized by intermittent episodes of pruritus and jaundice, evolving without liver function sequelae. The objective of this article is to report a case of cholestatic syndrome who was admitted to the Gastroenterology service of the Hospital do Servidor Público Municipal and comment on the main clinical features of intrahepatic cholestasis. In this episode a judicious investigation was carried out for excluding other causes of cholestasis. Key words: cholestasis, progressive familial intrahepatic cholestasis (PFIC), benign recurrent intrahepatic cholestasis (BRIC). 7 SUMÁRIO 1. Introdução ...................................................................................................... 8 2. Objetivo .........................................................................................................10 3. Relato de caso clínico ..................................................................................11 4. Discussão .................................................................................................... 14 A. Deficiência ATP8B1 ............................................................................... 15 B. Deficiência ABCB11 .............................................................................. 16 C. Deficiência ABCB4 ................................................................................ 17 D. BRIC ........................................................................................................ 19 E. PFIC e BRIC 1 ......................................................................................... 21 F. PFIC e BRIC 2 ......................................................................................... 22 G. PFIC 3 ...................................................................................................... 24 5. Conclusão..................................................................................................... 26 6. Referências .................................................................................................. 27 8 INTRODUÇÃO Síntese ou obstrução biliar, com consequente retenção de seus componentes no fígado e sangue1. Os exames laboratoriais em pacientes com colestase revelam aumento sérico das enzimas canaliculares (gamaglutamiltransferase – GGT e fosfatase alcalina – FA) em graus variáveis, elevação das bilirrubinas, predominantemente da fração conjugada, e dos níveis de colesterol. O quadro clínico cursa com icterícia, prurido, colúria, acolia fecal, fadiga, anorexia, náuseas, vômitos, estatorreia e dor no hipocôndrio direito. A absorção inadequada das vitaminas lipossolúveis acrescenta ao quadro sintomas como distúrbios visuais e da coagulação e Colestase é falha do hepatócito em secretar bile devido à diminuição do transporte, osteodistrofia. Podemos distinguir entre colestase intra- e extra-hepática, dependendo da localização da alteração do fluxo biliar. Colestase extra-hepática pode ser causada por atresia e obstrução das vias biliares. Intra-hepática é resultado de várias doenças, incluindo as auto-imunes e distúrbios hereditários como colestase intra-hepática familiar progressiva (PFIC) e colestase intra-hepática recorrente benigna (BRIC)2,3. Colestase intra-hepática familiar progressiva refere-se a um grupo heterogêneo de doenças autossômicas recessivas da infância, secundárias a mutações em genes do sistema de transporte hepatocelular envolvidos na formação de bile. 9 O curso natural da PFIC provoca hipertensão portal, insuficiência hepática, cirrose, carcinoma hepatocelular e manifestações extra-hepáticas. Três tipos de PFIC foram identificados4,5. A prevalência real da doença permanece desconhecida, mas a incidência estimada é de um por 50.000-100.000 nascimentos. Ambos os sexos parecem ser igualmente afetados4,6. Outra forma de colestase intra-hepática é chamada de recorrente benigna (BRIC). Trata-se de uma doença rara, de caráter autossômico recessivo, caracterizada por episódios intermitentes de prurido e icterícia, de número e duração bastante variáveis7. Entre as crises os pacientes permanecem assintomáticos durante meses ou anos. Ocorre mais frequentemente no sexo masculino, entre os 10 e os 30 anos de idade, manifestando-se em até 80% dos casos em torno da segunda década de vida8. O prognóstico clínico é favorável e não há o desenvolvimento de doença hepática crônica ou cirrose9. A patogênese tem sido elucidada com estudos moleculares dos transportadores de sais biliares, assim como seu caráter familiar, que é reconhecido em 50% dos casos10. 10 OBJETIVO Os objetivos do presente artigo são: 1. Relatar um caso de síndrome colestática em paciente jovem internado no serviço de Gastroenterologia do Hospital do Servidor Público Municipal 2. Revisar os principais aspectos clínicos, laboratoriais e histológicos das colestases intra-hepáticas. 11 RELATO DE CASO Identificação: G.L.S.R., 16 anos, estudante, natural e procedente de Santo André. Queixa principal: prurido há 15 dias. História da moléstia atual: paciente deu entrada no Pronto Socorro do Hospital do Servidor Público Municipal com queixa de prurido generalizado há 15 dias, com piora progressiva e associado à icterícia, colúria e acolia fecal. Negava dor abdominal, náuseas, vômitos, diarreia, disúria e febre. Havia comparecido na mesma unidade na semana anterior com a mesma queixa e medicado com antihistamínico, sem melhora dos sintomas. Antecedentes pessoais: negava comorbidades, uso de medicações, drogas, anabolizantes, energéticos e chás. Negava transfusões sanguíneas, uso de álcool e tabagismo. Amputação bilateral de pernas após acidente automobilístico há seis anos. Antecedentes familiares: pais e irmã hígidos. Tio paterno falecido por cirrose e prima paterna com doença hepática. Exame físico: bom estado geral, consciente, contactuante, afebril, eupneico, acianótico, descorado+/4, ictérico 3+/4+, sem estigmas de hepatopatia crônica. Sem flapping. Pele com sinais de escoriações pelo corpo. Abdome: flácido, indolor à palpação superficial e profunda, ruídos hidroaéreos presentes e normoativos, descompressão brusca negativa, sinal de Murphy negativo, sem visceromegalias. Sem alterações nos aparelhos cardiovascular e respiratório. 12 Exames laboratoriais: vide tabela 1. Tabela 1: Exames Laboratoriais 17/05/14 Hb / Ht 23/05/14 04/06/14 16,2 / 48,9 10,4 / 32,5 Leucócitos 9.000 13.200 Plaquetas 396.000 344.000 TP (s) / AP (%) 12 /90 TTPA 14 / 84 38 AST 40 37 18 ALT 56 49 31 FA 428 391 3 9 Triglicerídeos 168 161 Colesterol total 113 97 4 / 75 6 / 59 13 / 10,2 20,8 / 18,4 GGT HDL / LDL Bilirrubina total / direta Lipase 5,7 / 4,8 47 Amilase 60 Proteína total / albumina 57 6,7 / 3,7 DHL 262 279 Ck total 285 87 5,5 /3,1 Sorologias para hepatites A, B e C, HIV, toxoplasmose, citomegalovírus, vírus Epstein Barr: negativas. VDRL: não reagente. Anti-DNA, FAN, anticorpo antimúsculo liso negativo, anticorpo anti-LKM negativo e fator reumatóide: negativos. 13 PCR: 0,13. Eletroforese de proteínas: dentro dos limites de normalidade. Urocultura e hemocultura: negativas. Exames de imagem: Ultrassonografia de abdome: dentro dos limites da normalidade. Endoscopia digestiva alta: pangastrite leve. O paciente evoluiu com piora da icterícia com bilirrubina direta 18,4 mg/dl. Foi realizada biópsia hepática percutânea que identificou fígado com arquitetura lobular conservada. Espaços porta com infiltrado linfocitário moderado envolvendo arteríolas, vênulas e ductos biliares, porém sem ultrapassar a placa limitante. No lóbulo, os hepatócitos apresentavam colestase em zonas II e III. Os sinusóides não apresentavam particularidades e as veias centro lobulares estavam inalteradas. Diagnóstico: Colestase Intra-hepática. O paciente permaneceu internado por 18 dias e recebeu alta com melhora do prurido e diminuição dos níveis de bilirrubina após o uso de anti-histamínicos, colestiramina e ácido ursodesoxicólico. Foi referenciado para acompanhamento ambulatorial no mesmo serviço. 14 DISCUSSÃO Colestase é decorrente da alteração na formação e/ou do fluxo biliar. Clinicamente se manifesta como fadiga, prurido e, na maioria dos casos, com icterícia. As alterações bioquímicas são aumento da fosfatase alcalina (FA) e gamaglutamiltransferase (GGT) e hiperbilirrubinemia com predomínio da fração conjugada. O nível de elevação das enzimas tem sido discutido: nível de FA maior que 1,5 e GGT maior que 3 vezes o limtie superior da normalidade (LSN) tem sido aceito. Pode ser classificada como intra-hepática ou extra-hepática. Colestase intrahepática pode resultar de defeitos funcionais ou lesões obstrutivas do trato biliar intra-hepático distal ou dos canalículos biliares11. O diagnóstico diferencial de colestase intra-hepática do nosso paciente, inclui causas hepatocanaliculares, tais como hepatites virais, hepatite alcoólica, uso de drogas/medicações, hormônios esteróides, colestase intra-hepática familiar e colestase recorrente benigna. Dentre as causas biliares, colangite esclerosante primária (CEP) como principal. O paciente apresentava-se ictérico, com sinais de escoriação, eutrófico, sem estigmas de hepatopatia crônica. Negava uso de álcool, medicações, chás e anabolizantes. Os exames laboratoriais foram compatíveis com colestase, sem deficit de função hepática, com destaque para níveis normais de GGT. As sorologias virais foram negativas, bem como os marcadores de doença auto imune. A ultrassonografia de abdomen descartou causas obstrutivas de icterícia. A biópsia hepática foi realizada para esclarecimento diagnóstico e foi consistente com colestase hepatocelular sem injúria aos ductos biliares. Os diagnósticos de PFIC ou BRIC com primeiro surto foram considerados. 15 A seguir, uma revisão da literatura dos principais aspectos clínicos, laboratoriais e histológicos destas entidades que recentemente foram renomeadas. Colestase intra-hepática familiar progressiva (PFIC) é um grupo heterogêneo de doenças genéticas raras, autossômicas recessivas, caracterizada por colestase intra-hepática, geralmente na infânica ou adolescência. A progressão para insuficiência hepática pode ocorrer nas primeiras décadas de vida. Atualmente, são reconhecidas três formas caracterizadas por defeitos nas proteínas biliares envolvidas na formação e no fluxo de bile no fígado4. A. Deficiência ATP8B1 A deficiência ATP8B1 é uma doença autossômica recessiva causada por mutações no gene ATP8B1 que codifica ATP8B1 (denominada anteriormente como FIC), uma ATPase. Atualmente, mais de 50 mutações são reconhecidas12-14. PFIC1 e colestase intra-hepática recorrente benigna (BRIC) compartilham das mesmas mutações. Contudo, na BRIC há um defeito parcial desta enzima. A ATP8B1 também está expressa numa variedade de órgãos, tais como, intestino delgado, vesícula biliar, fígado e pâncreas. Está localizada na membrana apical das células epiteliais, incluindo a membrana canalicular dos hepatócitos. Sua deficiência determina um posicionamento inadequado dos aminofosfolipídeos na membrana canalicular, diminuindo a estabilidade e função dos transportadores transmembrana, causando colestase15. O quadro clínico caracteriza-se por colestase com prurido intenso, geralmente na infância (PFIC1 ou doença Byler) ou com episódios recorrentes de 16 colestase em qualquer idade (BRIC1). Algunas pacientes com BRIC apresentam progressão da doença, porém, a maioria continua a ter episódios intermitentes de colestase de duração variável, sem evidência de dano hepático16. Pacientes com PFIC1 apresentam colestase contínua desde o primeiro ano de vida. Na ausência de tratamento, irão progredir para cirrose e insuficiência hepática. Complicações decorrentes da má absorção das vitaminas lipossolúveis podem ocorrer. Manifestações extra hepáticas como diarréia, pancreatite e perda de audição também são observadas17-19. Em pacientes com deficiência ATP8B1, as aminotransferases e ácidos biliares estão elevados, atividade da GGT e concentração de colesterol são normais. Na histologia, observa-se colestase intra-canalicular com grânulos biliares identificados na microscopia eletrônica18,20. B. Deficiência ABCB11 Doença autossômica recessiva decorrente da mutação no gene ABCB11 que codifica a bomba exportadora de sais biliares (BSEP), uma enzima transportadora específica do fígado. A BSEP transporta ativamente sais biliares conjugados para o canalículo biliar , produzindo fluxo biliar. Foram identificadas mais de 100 mutações21,22. Quando a função da BSEP está diminuída, a doença é denominada BRIC 2 e quando estiver ausente, PIFIC 2 (Síndrome Byler). Na BRIC 2, a colestase é episódica. Na PFIC 2 , ocorre colestase permanente desde a infância23. 17 Os pacientes, geralmente, apresentam icterícia colestática no período neonatal. Prurido é uma característica dominante da doença. As manifestações das deficiências de vitaminas lipossolúveis são bem frequentes. Manifestações extra hepáticas da doença não são observadas, uma vez que a proteína é específica do fígado. O surgimento de colelitíase é comum, em até um terço dos pacientes, uma vez que há menor concentração de sais biliares na bile, provocando aumento da saturação de colesterol. O risco para tumores hepatobiliares está aumentado nestes pacientes, devendo ser realizado rastreamento para hepatocarcinomas e colangiocarcinomas24,25. As alterações laboratoriais encontradas são aminotransferases elevadas, colesterol normal e GGT normal ou baixa26. A doença pode progredir rapidamente para cirrose, mas a doença hepática e os sintomas podem melhorar com o tratamento cirúrgico. A necessidade de transplante é comum. Na histologia, observa-se hepatite de células gigantes e canalículo biliar afilado. A imuno histoquímica caracteriza-se por ausência ou redução da BSEP. C. Deficiência ABCB4 Doença autossômica recessiva causada por mutações no gene ABCB4 que codifica uma glicoproteína transportadora (MDR3). Ela se localiza na membrana canalicular dos hepátócitos, translocando fosfatidilcolina de dentro para fora da membrana. Neste processo, são formadas micelas que protegem as células da membrana da árvore biliar das propriedades detergentes dos ácidos biliares. Assim, na ausência ou diminuição da atividade MDR3 ocorre um desequilíbrio na 18 composição biliar com falta de fosfatidilcolina e predomínio dos sais biliares , levando à inflamação e morte do epitélio biliar25,27. Esta deficiência pode causar seis doenças hepáticas: PFIC3, cirrose biliar, colelitíase, colestase intra-hepática da gravidez, colestase neonatal transitória e colestase induzida por drogas28. O prurido é menos intenso. Hipertensão portal pode ocorrer na adolescência ou na fase adulto jovem. Os primeiros sintomas podem se manifestar como colestase induzida por droga ou mais tardiamente como colestase na gravidez. Não há manifestações extra hepáticas, nem evolução para malignidade24. A atividade da GGT está elevada, acima de 10 vezes LSN. As aminotransferases, bilirrubina conjugada e fosfatase alcalina estão aumentadas. Fosfolipídeos biliares estão bem reduzidos. Pacientes com pequenas mutações podem responder ao tratamento com ácido ursodesoxicólico. Entretanto, transplante hepático pode ser necessário24, 26. Na histologia, inflamação portal com proliferação ductular são identificados na fase inicial. Nas fases tardias, cirrose biliar é observada. A ausência ou diminuição, na imunohistoquímica, da expressão MDR3 pode auxiliar no diagnóstico, embora possa estar normal em até 50% dos pacientes. 19 Tabela 2: Características dos três subtipos de colestase familiar Etiologia Deficiência ATP8B1 Deficiência ABCB11 Deficiência ABCB4 Mecanismo presumido: prejuízo na translocação de aminofosfolípides através da membrana celular Mau funcionamento de BSEP: comprometimento do transporte canalicular de sais biliares Comprometimento da translocação canalicular de fosfatidilcolina Características clínicas BRIC1 e PFIC1 Possíveis características extra hepáticas (diarreia, doença pancreática e deficiência auditiva) BRIC2 e PFIC2 Incidência aumentada de colestase Risco de malignidade hepatobiliar PFIC3 Características diagnósticas Elevação sérica de sais biliares GGT sérica normal Colestase branda Elevação sérica de sais biliares GGT sérica normal Elevação sérica de sais biliares GGT sérica elevada Proliferação ductular D. BRIC É uma doença rara, sendo encontrados 77 casos relatados na literatura, e desses apenas cinco casos brasileiros. Ocorre mais frequentemente no sexo masculino, entre os 10 e os 30 anos de idade, manifestando-se em até 80% dos casos em torno da segunda década de vida 8,29. Mutações no gene ATP8B1 tem sido descritas como responsáveis pela BRIC. Baseados na diferença no número de mutações identificadas no gene ATP8B1 nestas duas condições, acredita-se que o produto proteico do FIC1 na BRIC poderia ser mais disfuncional ou susceptível a outras formas de injúria, exlicando a natureza recorrente da doença. A predisposição genética está bem descrita na literatura: 50% dos casos tem caráter familiar. Entretanto, formas esporádicas têm sido relatadas30. 20 O quadro clínico se manifesta por episódios recorrentes de icterícia e prurido. Outros sintomas são fadiga, anorexia, hipocolia fecal, colúria e esteatorréia. Menos frequentemente, são observadas febre, artralgia e cefaléia. Recentemente, tem sido descrito o surgimento de tosse intratável e alteração nas provas de função pulmonar. Estas anormalidades desaparecem espontanemente após o término da colestase. Os surtos da doença podem durar semanas ou meses com recuperação total espontânea e não estão relacionados com a idade. Apesar da sintomatologia ser intensa durante a crise, com prejuízo temporário da qualidade de vida, o paciente evolui sem sequelas funcionais hepáticas9,31. Fatores ambientais têm sido aventados como possíveis desencadeadores dos episódios de colestase, como gastroenterocolites, infecções por influenza, otite média e erupções cutâneas. As principais alterações laboratoriais são ácidos biliares elevados, hiperbilirrubinemia e GGT normal32. A biópsia hepática é normal nos períodos sem crise e no surto da doença é identifica colestase canalicular sem fibrose, cirrose ou demonstração de obstrução ducto biliar extra hepático. Em estudo de seguimento de 30 anos de pacientes com BRIC, nenhum sinal de doença crônica foi observado. Contudo, alguns pacientes com BRIC podem progredir para doença crônica com fibrose e formação de septos porta-porta, caracterizando PFIC1. Tygstrup e Jensen, em 1969, propuseram critérios clínicos para o diagnóstico desta entidade33, sendo os seguintes: (1) pelo menos dois episódios de icterícia e prurido separados por períodos assintomáticos com duração de vários meses a anos; (2) alterações bioquímicas consistentes com colestase; (3) 21 demonstração de colestase centrilobular em espécime hepático; (4) vias biliares intra e extra-hepáticas normais à colangiografia; (5) ausência de outras causas conhecidas de colestase. Embora o diagnóstico possa ser suspeitado após a resolução do primeiro episódio de colestase, o diagnóstico definitivo de BRIC não pode ser feito antes que um segundo ou terceiro episódio de colestase sintomática se desenvolva e se resolva espontaneamente. Tratamentos com corticóide, fenobarbital, colestiramina, rifampicina, ácido ursodesoxicólico não se mostraram eficazes. A plasmaferese pode auxiliar no prurido e diminuição dos níveis de bilirrubina. E. PFIC e BRIC 1 PFIC1 é causada por mutações no gene ATP8B1 (designado FIC1)14,16. Este gene codifica uma ATPase do tipo P, designada proteína FIC1, localizada na membrana canalicular de hepatócitos e cuja função é desconhecida. Como mutações nesta proteína causam colestase não é claro. Postula-se que indiretamente a função da proteína anormal poderia perturbar a secreção de ácidos biliares, explicando a baixa concentração biliar destes encontrada em pacientes com PFIC1 16,34. O gene FIC1 está localizado no cromossoma humano 18 12,35. Mutações neste gene têm sido confirmadas no fenótipo mais suave de colestase intra-hepática recorrente benigna tipo 1 (BRIC1)14,16,36. É muito provável que a deficiência de FIC1 representa um processo contínuo com fenótipos intermediários entre o fenótipo benigno BRIC1 e o fenótipo grave PFIC116. As 22 mutações em PFIC1 perturbam gravemente a função da proteína, enquanto em BRIC 1 esta funçaõ é apenas parcialmente prejudicada37. Pacientes com PFIC1 mostram um nível normal de GGT no soro. A colestase geralmente aparece nos primeiros meses de vida, e causa episódios recorrentes de icterícia que se tornam mais tarde permanente no curso da doença. Prurido grave é geralmente observado. Características extra-hepáticas têm sido descritas em PFIC1, tais como baixa estatura persistente, surdez e pancreatite, sugerindo uma função biológica celular geral para FIC1 16,18, 38 . O gene FIC1 é expresso em vários órgãos, incluindo fígado, pâncreas, intestino delgado e rim 34. A histopatologia hepática é caracterizada pela colestase canalicular e a ausência de uma verdadeira proliferação ductular com metaplasia biliar só periportal de hepatócitos18,24. F. PFIC e BRIC 2 PFIC2 é causada por mutações no gene ABCB11 (designado BSEP). O gene BSEP codifica a proteína hepática da membrana canalicular BSEP ATPdependente e está localizado no cromossoma humano 2 21,39. Mutações nesse gene levam a uma falta de expressão da proteína BSEP, que é a maior exportadora de ácidos biliares primários contra gradientes extremos de concentração, o que leva a diminuição do fluxo de bile e acúmulo destes sais dentro dos hepatócitos, resultando, assim, em grave dano hepatocelular 40. 23 A deficiência de BSEP representa um fenótipo contínuo entre BRIC2 e PFIC2. Pacientes com PFIC2 tem atividade sérica normal de GGT e alta concentração de ácidos biliares no soro. Também tem maiores níveis séricos de transaminase e alfa-fetoproteína do que pacientes com PFIC1 24, 34, 40,41. A evolução inicial de colestase é mais grave do que nos outros tipos de PFIC, com icterícia permanente desde os primeiros meses de vida e aparecimento rápido de insuficiência hepática dentro dos primeiros poucos anos. Os achados histopatológicos revelam arquitetura hepática mais perturbada do que PFIC1, com fibrose e inflamação lobular portal mais pronunciadas. Colestase canalicular, ausência de uma verdadeira proliferação ductular, lesão lobular grave, necrose hepatocelular mais óbvia e transformação de células gigantes mais evidente são confirmados com exame histopatológico18,24,41. Para PFIC1 e PFIC2, medicação como ácido ursodesoxicólico é considerada durante a gestão terapêutica inicial das crianças42. Alguns pacientes podem também se beneficiar de desvio biliar43,44. No tratamento do prurido tem sido utilizado colestiramina, que é uma resina de troca aniônica que se liga a sais biliares no intestino aumentando a eliminação fecal desses45. Em PFIC2, ainda é incerto se transplante de hepatócitos ou terapia gênica com hepatócitos modificados são uma boa abordagem terapêuticas. De fato, pode haver um risco de deixar as células pré-malignas do fígado no local46. 24 Pacientes com deficiência de BSEP estão em risco significativo para malignidade hepatobiliar (15% podem desenvolver carcinoma hepatocelular ou colangiocarcinoma)46. G. PFIC 3 PFIC3 é causada por mutações no gene ABCB4 (designado MDR3), localizado no cromossoma 7. Tal gene codifica uma proteína multidroga resistente classe 3, denominada MDR3, que é uma proteína translocadora de fosfolípidos (fosfatidilcolina) envolvida na excreção biliar desses e é predominantemente expressa na membrana canalicular de hepatócitos4,47. Os fosfolipídeos cumprem a função de solubilizar os sais biliares e proteger o epitélio ductal. Colestase resulta da toxicidade de bile em que sais biliares detergentes não são inativados por fosfolipídeos. O mecanismo dos danos no fígado em PFIC3 está provavelmente relacionado com a ausência de fosfolipídeos biliares24. Pacientes PFIC3 mostram um elevado nível sérico de GGT, normal de colesterol e concentrações moderadamente elevadas de sais biliares primários. Raramente se apresenta com icterícia no período neonatal, e, em vez, ocorre mais tarde na infância e até mesmo na idade adulta jovem. O prurido é geralmente leve. No entanto, adolescentes e pacientes adultos jovens têm sintomas de cirrose devido a hipertensão portal, que pode resultar em insuficiência hepática. 25 A histopatologia do fígado obtido na fase inicial mostra fibrose portal e verdadeira proliferação ductular com infiltrado inflamatório misto. Num estágio mais avançado, existe extensa fibrose portal e uma imagem típica da cirrose biliar 24. O espectro fenotípico da PFIC3 varia de colestase neonatal para cirrose em adultos jovens48. Deficiência MDR3 pode também representar uma clínica contínua, em que um único paciente pode experimentar diferentes fenótipos durante o curso da doença. Essa deficiência está envolvidade em colestase intra-hepática da gravidez tipo 3, doença biliar do colesterol, colestase induzida por drogas, colestase neonatal transitória e cirrose idiopática adulta6. Nos candidatos a PFIC, o diagnóstico molecular pode ser proposto. A análise genética é geralmente realizada por sequenciamento de DNA. 26 CONCLUSÃO A presença de colestase em paciente jovem, sem estigmas de hepatopatia crônica, com as causas mais comuns de colestase intra-hepática excluídas, e níveis normais de GGT sugeriram o diagnóstico de BRIC. A histologia hepática identificando a presença de colestase hepatocelular sem fibrose e sem anormalidades dos ductos biliares foi fundamental para esclarecimento da patologia. Pelo fato de ter sido o primeiro episódio de colestase do paciente, o diagnóstico de BRIC fica ainda sendo provável. Apesar de rara, BRIC deve ser considerada nos diagnósticos diferenciais das colestases. O esclarecimento do caráter recorrente e benigno da doença devem ser informados aos pacientes, uma vez que não estão bem estabelecidos os fatores que determinam os episódios de colestase, assim como um tratamento eficaz. 27 REFERÊNCIAS 1. Erlinger S. Medical management of chronic cholestasis. In: Schiff E, Sorrel MM, Mandrey WC, editors. Schiff's Diseases of the liver. 8a ed. Philadelphia: LippincootRaven Publishers; 1999. p. 611-29. 2. Reshef R, Sbeit W, Lachter L. The chronic cholestasis enigma in adults. IMAJ 2002; 4: 449-53. 3. Blum H.Chronic cholestatic liver diseases. Journal of Gastroenterology and Hepatology (2002) 17,S399–S402. 4. Davit-Spraul A, Gonzales E, Baussan C, Jacquemin E. Progressive familial intrahepatic cholestasis. Orphanet J Rare Dis 2009;4:1. 5. Kullak-Ublick GA, Beuers U, Paumgartner G. Hepatobiliary transport. J Hepatol 2000;32:3-18. 6. Hori T, Nguyen JH, Uemoto S. 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