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JUSTIÇA EDUCATIVA
DE FAMÍLIAS*
VANNÚZIA LEAL ANDRADE PERES**
Resumo: uma Justiça educativa de famílias, metodologia fundada na epistemologia qualitativa e na teoria cultural-histórica da subjetividade objetiva desafiar famílias a gerarem novos
sentidos subjetivos do litígio e a construírem alternativas criativas para ele. Os resultados
apontam para a emergência do sujeito no confronto com o problema que não se resume a
aspectos culturais nem patológicos..
Palavras-chave: Litígio. Subjetividade. Educação. Aprendizagem. Desenvolvimento humano.
O litígio pela guarda dos filhos mobiliza estudiosos das áreas do Direito de família
e da Psicologia Jurídica que, em geral, não incluem nas suas análises do problema
o sujeito e sua subjetividade. Por exemplo, César-Ferreira (2007), Duarte (2009),
Reis (2010), Silva (2010), Castro (2013), Traboulsi (2013), entre outros. Os autores descrevem situações do litígio envolvidas com aspectos culturais e patológicos e não exploram a
complexa e contraditória trama que o constitui, isto é, a sua verdadeira realidade em cada
família concreta - a realidade subjetiva.
No estudo das produções subjetivas das famílias em litígio pela guarda dos filhos
pretendo alcançar o complexo processo singular de desenvolvimento do sujeito implicado
* Recebido em: 18.09.2013.
Aprovado em: 23.10.2013.
Este projeto decorre da pesquisa Produções Subjetivas de Famílias em Litígio pela Guarda dos Filhos
(2009-2013), desenvolvida na PUC Goiás e subvencionada pela Federação Internacional das Universidades
Católicas. Implantado em parceria com o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, por meio do II Centro
Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania, coordenado pela Juíza de Direito Drª Sirlei Martins da
Costa, integra o trabalho de alunos de Psicologia (graduação e pós-graduação) e de psicólogos voluntários,
em especial, a Psicóloga Gisela Izaac Basto
** Doutora em Psicologia. Professora Titular na PUC Goiás. E-mail: [email protected].
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no complexo processo de desenvolvimento da sociedade. Nisso, compreendo que o litígio é a
expressão do vivido e do sentido pelos ex-cônjuges nas experiências do casamento e do divórcio, em relação recursiva e contraditória com as representações da sociedade. Dito de outra
forma, o litígio na família pela guarda dos filhos é um processo que expressa a complexidade
do viver humano.
González Rey (2004; 2013) diria que esse processo, embora perpassado por mitos
e imagens construídos pela sociedade é mediado pelo sujeito que, com a sua produção subjetiva do viver, constitui e organiza a sua psique que se desdobra ou não em determinados
comportamentos.
Posso dizer que o litígio, implicado com as potencialidades humanas de desenvolvimento, mais especificamente com o sujeito em desenvolvimento, não pode ser reduzido
a representações sociais sustentadas por crenças e mitos que o institucionalizam, tanto a
serviço da ordem médica quanto da ordem judicial. Essas ordens perpassam pela história de
desenvolvimento do sujeito, porém nunca a determinam.
O desenvolvimento humano é um processo cultural-histórico (VYGOTSKY,
1996): dinâmico e indeterminado. De acordo com González Rey (2004) é um processo do
sujeito, mediado por ele, embora ocorra na relação com o outro. O autor se refere a um “sujeito subjetivado” (GONZÁLEZ REY, 2003, 2013) que é capaz de gerar alternativas para o
problema e que, por isso, deve ser desafiado a fazê-lo.
Eis o meu motivo para desenvolver a sua metodologia qualitativa (GONZÁLEZ
REY, 2005) com famílias na situação do litígio e buscar converte-la em um processo de Justiça Educativa de Famílias.
O desafio (PERES, 2012) consiste em transformar a ideia de determinação do desenvolvimento humano que tem legitimado descrições universalizantes e patologizantes de
ex-cônjuges e seus filhos na situação do litígio. Nisso, rever conceitos e práticas que não consideram o sujeito e sua produção subjetiva dos fatos.
É necessário produzirmos uma “zona de sentido” do litígio que nos encaminhe para
a concretização da ação educativa das famílias. Assim, podemos desenvolver a teoria da subjetividade de González Rey (2013) e rever conceitos utilizados mecanicamente para explicar
os comportamentos dos membros da família no processo do litígio. Por exemplo, o conceito
de “alienação parental”, certamente uma interessante metáfora de processos subjetivos de disputa de ex-cônjuges pela guarda dos filhos, processos que tem uma “lógica configuracional”,
portanto, processos que incluem desdobramentos complexos.
O maior problema é exatamente a sua utilização universal e mecânica, muitas vezes
patologizante ou para justificar comportamentos de filhos com o genitor não guardião. A minha
hipótese é de que isso destitui os filhos de sua condição de “sujeitos subjetivados” ou geradores
de sentidos subjetivos do problema vivido e sentido de forma singular. O fato é que os filhos
não são meros reprodutores de representações construídas pelo genitor guardião para o genitor
“distante”, embora sejam atravessados por elas. Entretanto, os sentidos subjetivos que geram
de suas relações com cada um dos genitores não são imediatamente visíveis, eles precisam ser
acessados e analisados com base na lógica configuracional proposta por González Rey (2005).
Como diria González Rey (2013), embora assujeitados às representações e aos mitos que as sustentam, os filhos geram sentidos subjetivos daquilo que vivem e sentem. Esses
sentidos são implicados com os seus registros cognitivo-afetivos do vivido, mas também com
“realidades que transcendem esses registros” e das quais eles sequer tem consciência.
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O curioso é que os comportamentos dos filhos são muitas vezes considerados determinantes na análise do litígio. Ao contrário disso, os diagnósticos deveriam ser fundados no
estudo de suas produções subjetivas, portanto, não deterministas e não prescritivas. Para isso,
a minha referencia é a ideia de González Rey (2013) sobre os diagnósticos, que não deveriam
ser mediados pelo uso mecânico de teorias e de instrumentos. Para o autor, tanto a teoria
como os instrumentos são recursos para o desenvolvimento do pensamento sobre o tema
estudado, não a sua solução, com o que concordo plenamente.
Assumo com González Rey (2013) a ideia de utilizar como recurso para o estudo
do fenômeno o seu conceito de configuração subjetiva. No Caso do estudo do litígio, este é
o recurso que tem me ajudado (PERES, 2012) a explicar como a representação simbólica e
emocional do problema é vivida por cada um dos membros das famílias. Segundo González
Rey (2013), este seria um recurso a ser utilizado na produção de um novo sistema teórico
cultural sobre a humanidade.
O conceito de configuração subjetiva é um recurso para o desenvolvimento dos
pensamentos de González Rey e Mitjáns Martínez (1989) sobre a educação e desenvolvimento da personalidade, tema central no meu estudo do litígio na família (PERES, 2012).
Aliás, ele tem sido o mais importante recurso para eu produzir um pensamento próprio sobre
o processo de constituição e de manutenção do litígio e desenvolver uma prática pericial no
sentido de uma nova inteligibilidade dos processos humanos nessa situação. Assim, não me
rendo à sedução de modelos teóricos classificatórios e deterministas de diagnóstico, nem a
suas consequências metodológicas.
Os resultados? A possibilidade de desenvolver o novo modelo teórico proposto
por Gonzalez Rey - o da subjetividade - e a sua metodologia construtivo-interpretativa
que eu assumo na perícia psicológica e busco desdobrar na proposta de uma justiça educativa de famílias. Creio na possibilidade das famílias em litígio se desenvolverem ao se
envolverem ativamente no seu processo de educação na situação do litígio. Provocadas
a se confrontarem com o problema e a darem um novo rumo a ele, sem se submeterem a
prescrições ideológicas, psicológicas e judiciais, elas poderão se mobilizar cognitiva e emocionalmente para isso.
Mediante a epistemologia qualitativa e o estudo de configurações subjetivas de famílias em litígio pela guarda dos filhos (PERES, 2012) construí indicadores de que elas necessitam se confrontar diretamente, sem intermediários, com a tensão produzida na situação
do divórcio e assumir a autoria do litígio. Para isso elas devem ser desafiadas a dialogar sobre
a singularidade da experiência e a gerar novos sentidos subjetivos em relação a ela, os quais
integram novas necessidades, motivações e emoções. Somente assim poderão emergir como
sujeito do processo do litígio e criar alternativas para o desenvolvimento simultâneo e recursivo de si mesmas e da sociedade.
Será possível abrir uma nova zona de sentido em relação às produções subjetivas
dos filhos no processo do litígio? Suponho que sim, porém com a ajuda das famílias, dos
operadores do direito e dos psicólogos que precisam repensar a representação de um poder
absoluto dos adultos sobre a organização psicológica da criança, como diria Bourdieu (2010),
um poder simbólico.
Seria este, o poder simbólico, que tem sido desdobrado na construção e utilização
mecânica e determinista de alguns conceitos sobre o litígio? Para exemplificar retomo o conceito de alienação parental, o qual, na minha opinião, é muitas vezes assumido como verdade
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absoluta pelas próprias famílias que litigam: “isso o que ele (ela) faz [...] é pura alienação
parental”! Não seria esta uma forma de se alienarem do compromisso com o problema?
É fato que esse conceito tem ressoado nos discursos institucionalizados sobre o
litígio. Ao contrário disso, crianças e adolescentes tem confirmado a ideia de que não são
passivos (PERES, 2012), isto é, que são geradores de sentidos subjetivos que não correspondem direta e imediatamente aos fatos nem a suas representações. A partir do que observou
Vygotsky (1996) afirmo que as produções subjetivas dos filhos em relação ao genitor distante,
com os seus complexos desdobramentos, são sempre carregados de imaginação e de fantasias
das quais não tem consciência e que atuam nas suas produções emocionais.
Decorre daí o meu atual desafio: desenvolver com as famílias atendidas no projeto
de justiça educativa um espaço de diálogo e de reflexão sobre suas relações com esses conceitos
e sobre as suas potencialidades para repensá-los e para transformarem o cenário emocional
do litígio. Como fazê-lo se não as convocar a produzir novos sentidos subjetivos da situação,
isto é, a transformarem o vivido e o sentido em processos criativos de desenvolvimento?
Para isso, como em trabalho anterior (PERES, 2007), proponho uma metodologia
de caráter dialógico ou debate e reflexão que orientem a educação do sujeito e lhe permitam
um aprendizado de como gerar justiça para si e para o outro. Nisso, o sujeito também é convocado a participar do processo de concretização de um caminho para a construção de um
novo pensamento a respeito do litígio, isento de categorias prévias e deterministas sobre todos
aqueles que o constituem e vivem.
O PROCESSO DE IMPLANTAÇÃO DA JUSTIÇA EDUCATIVA DE FAMÍLIAS
A implantação e o desenvolvimento da Justiça Educativa ocorrem na clínica-escola
da Pontifícia Universidade Católica de Goiás desde agosto de 2013. Sem qualquer critério
prévio os grupos são formados a partir da adesão das famílias que são encaminhadas pelo
Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, por meio do II Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania.
No encaminhamento os ex-cônjuges são orientados a participar, de, pelo menos,
quatro encontros e são consultados a respeito de sua disponibilidade, ou não, de integrarem
o mesmo grupo, sendo este um dos princípios observados por todos os membros da equipe
de educadores.
Cada encontro tem uma duração média de 2 horas e ao contrário da Mediação Familiar, sem qualquer planejamento de etapas e de procedimentos. O fato é que a justiça educativa
de famílias mantem diferenças epistemológicas e metodológicas significativas em relação aos
modelos mais avançados de mediação, tal como o apresentado por Silva (2011) ou o desenvolvido por Amorim e Schabbel (2013) na perspectiva do construcionismo social, exatamente por
considerar a subjetividade como orientadora da ação transformadora do sujeito do litígio.
Até o momento quatro grupos de famílias foram atendidos por educadores que participaram de um Curso de formação sobre a teoria da subjetividade na perspectiva cultural-histórica. A formação é primordial para o desenvolvimento de uma postura em acordo com a
epistemologia qualitativa de González Rey (1997) que, como dito anteriormente, fundamenta a metodologia qualitativa do processo de Justiça Educativa de Famílias.
Com o intuito de sustentar e desenvolver a metodologia qualitativa no campo da
psicologia jurídica, busco converter esse processo em um sistema de inteligibilidade da cons418
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tituição subjetiva do litígio e na possibilidade de educar as famílias para aprenderem a produzir um pensamento próprio sobre ele e, portanto, a transformarem, de forma criativa, essa
complexa situação.
Por que o grupo de famílias? Primeiramente porque é constituído de múltiplas
subjetividades, o que tem representado para as famílias uma vivência diferenciada de contato
com o problema vivido por elas de diferentes formas. Como um espaço aberto ao diálogo
sobre as subjetividades, a justiça educativa deverá ajudar as famílias a se confrontarem nas suas
diferenças e se posicionarem em relação a elas, de forma que possam emergir como sujeito do
processo de constituição e desenvolvimento do litígio.
E quanto aos educadores? Como se posicionam nesse processo? Como diria González Rey (2011), reconhecendo o caráter complexo da metodologia e o valor do processo do
diálogo e da reflexão, sem tentar imprimir nas famílias as suas concepções. Os educadores
participam ativamente do diálogo interfamiliar para provocar a crítica, a avaliação de temas,
de situações e das dificuldades dos membros das famílias, sem nenhum a priori.
É notório como o envolvimento ativo dos educadores no diálogo - por meio de perguntas e problematizações para a discussão dos temas emergentes - incitam os participantes
a participarem no debate e a refletirem sobre suas representações. O envolvimento criativo
dos educadores ressoa nos membros das famílias que se implicam efetivamente no diálogo.
O diálogo dá visibilidade aos sentidos subjetivos gerados na situação do divórcio e
possibilita criarem um novo espaço de subjetivação daquilo que é vivido no litígio: um espaço
diferente do espaço judicial. Tem sido interessante compreender esse processo e o processo
pelo qual o envolvimento emocional dos sujeitos é desdobrado em múltiplas expressões
conscientes sobre o litígio vivido no espaço judicial. Por exemplo, um pai que expressa nova
emoção e nova necessidade produzidas mediante a alternativa que cria para a situação processual, a partir do diálogo com o grupo de famílias: “se eu tivesse vindo aqui antes, não teria
aberto o processo [...] agora, já avisei para o meu advogado que não preciso mais dele [...]”.
Foram as reflexões desse pai sobre o vivido e o sentido na situação do litígio e
suas consequências judiciais que possibilitaram entrarmos em contato com o processo de
emergência do sujeito no processo da justiça educativa. É interessante como o pai toma
consciência de suas ações no litígio e as relaciona ao vivido e não à suas representações sobre
o problema. Assim, é possível dizer que esse pai pôde converter os sentidos subjetivos que
gerou na situação do litígio em motivo para emergir como sujeito criativo ou capaz de fazer as
mudanças necessárias ao seu desenvolvimento. Com outras palavras, é possível dizer que esse
pai saiu da situação “paralisante” do litígio e, com isso, mobilizou outros elementos do grupo
de famílias a saírem dessa situação com os seus próprios recursos.
O litígio dificulta o processo de desenvolvimento que exige movimento e engajamento criativo do sujeito na ação (PERES; CUPOLILLO, 2011). Ilustro o problema com a
imagem dos processos judiciais vividos anos a fio pelas famílias, sem qualquer reflexão crítica
de que suas ações são orientadas por suas configurações subjetivas atuais, não imediatamente
acessíveis à consciência. O que decorre senão a culpabilização do outro, da “outra parte”, por
ações, cujas “provas” são desdobradas em múltiplos procedimentos judiciais que ajudam a
perpetuar o conflito?
Ao contrário disso, a educação do sujeito no grupo interfamiliar exige reflexão crítica sobre as suas ações e sobre os seus desdobramentos no processo do litígio. Como em qualquer outro processo de educação e de aprendizagem (LIMA SCOZ; TACCA; CASTANHO,
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2012), no processo de justiça educativa, esse processo não ocorre sem uma tensão que mobilize as famílias a se comprometerem criativamente com a mudança necessária.
Para fazer avançar esse pensamento e suas consequências metodológicas sigo desafiando estudantes e profissionais a discutirem sobre as representações do litígio e também
sobre as produções subjetivas das famílias – o nosso grande desafio. Nisso, busco desenvolver
esse novo pensamento no próprio processo de realização do projeto de justiça educativa e na
realização de perícias judiciais.
Retomo o meu projeto anterior de educação de famílias em situações de violência
(PERES, 2007) levando em conta a ideia de intersubjetividade, tal como é discutida pelos autores: Matusov (1996), Lektorsky (1999) e Stetsenko (1999). Entretanto, os conceitos-chaves
para o desenvolvimento da justiça educativa de famílias são os de sujeito e subjetividade na perspectiva de González Rey (2003). São esses conceitos que me ajudam a pensar em diferentes
formas de convocar as famílias para o diálogo sobre suas emoções contraditórias, produzidas
no processo do litígio e a desenvolverem uma consciência de sua capacidade de mudar esse
processo com suas práticas e ações.
Embora incipiente, nós constatamos que o trabalho de justiça educativa tem possibilitado a alguns membros das famílias assumirem as suas representações e as suas emoções
contraditórias que organizam as suas configurações subjetivas presentes no litígio. Por exemplo,
a assumirem a representação de que “quem resolve o conflito é a justiça” e de que é assim que se
isentam da tarefa de se confrontarem consigo mesmas e com os desdobramentos de suas produções emocionais contraditórias. Quer dizer, exatamente por tentarem suprimi-las: “Estou aqui
por causa do meu filho”. Ao mesmo tempo: “é ela (a mulher) que não quer resolver”.
É nesse sentido que o diálogo no grupo interfamiliar deve ser valorizado. A minha
suposição é de que o diálogo sobre as necessidades, dúvidas e incertezas dos diferentes membros
das famílias é uma forma de fazerem uma leitura crítica de suas expectativas e de como a configuração do litígio em nível institucional dificulta se converterem em sujeitos desse processo.
Decorre desse pensamento as atitudes dos educadores de convocarem as famílias
a serem ativas nesse processo e valorizarem as suas emoções contraditórias. Os educadores,
como diria González Rey (2013), tomam as emoções contraditórias expressas pelas famílias
em seu caráter singular, isto é, comprometidas com as suas histórias, com as suas configurações psicológicas específicas e não com as suas representações sociais.
Sobre isso também temos uma ilustração. O pai cuja configuração subjetiva é patologicamente denominada na análise psicológica do litígio, porém descolada de sua história
e de suas produções subjetivas do casamento e do divórcio. Embora não seja um “louco” no
sentido de um transtorno, ao ser atravessado pela subjetividade social do litígio, que é institucionalizada, sua configuração subjetiva é representada como se o fosse.
O seu envolvimento em um espaço de diálogo personalizado – especialmente construído para ele que havia desistido de se confrontar com a ex-cônjuge no grupo interfamiliar - foi um “disparador” para que se revelasse sem reservas e se engajasse na proposta de se
confrontar com as suas representações e tomar consciência de suas emoções contraditórias
presentes na situação do litígio. O resultado nós ainda não sabemos! Quem sabe irá resgatar
um sentido da vida produzido em outras situações e diferente daquele produzido no litígio?
A ilustração serve para constatar como a justiça educativa de famílias deverá se
constituir como processo de produção de subjetividades individuais, não imediatas porém
fundantes da mudança de sistemas de valores e de mitos sobre o litígio. Esse sujeito, como
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personagem concretamente envolvido nesse processo com a sua personalidade, provavelmente
gerou sentido para o desenvolvimento da experiência. Por quê? Diria González Rey e Mitjáns
Martínez (1989) que o diálogo teria se constituído para ele em um importante momento de
sua história e da educação e desenvolvimento de sua personalidade.
Nessa perspectiva, não há como reduzir a experiência da justiça educativa a uma
tentativa de pacificação das famílias, por meio de técnicas de mediação. Na justiça educativa o
foco é nos processos de produção de novos sentidos subjetivos do litígio por meio do diálogo
e da reflexão das famílias sobre ele, em interlocução com os educadores que se prestam não a
controlar e a prescrever ou a apaziguar, mas a ouvir, perguntar, reconhecer e, principalmente,
desafiar e convocar as famílias à reflexão.
Como sugere González Rey (1997), proponho que o diálogo no grupo interfamiliar seja realizado a partir de elementos complexos da subjetividade e dos processos de desenvolvimento de cada sujeito concreto. É nesse sentido que as famílias são convocadas a decidir
e escolher para definirem o que fazer com o litígio que elas próprias constituíram.
É óbvio que esse processo é um processo do sujeito que se integra no diálogo
sobre a realidade social, com a sua personalidade (GONZÁLEZ REY; MITJÁNS MARTÍNEZ, 1989).
É o sujeito que gera seu próprio percurso no grupo, ao poder colocar em evidencia
as contradições entre as suas necessidades e motivações e as necessidades e motivações para ele
colocadas pela realidade social do litígio, especialmente em relação aos filhos.
González Rey (2003) diria que a justiça educativa de famílias seria a oportunidade
do sujeito integrar estados afetivos contraditórios, de forma consciente ou não.
Posso dizer, neste momento, que a justiça educativa é uma oportunidade do indivíduo se constituir sujeito do processo do litígio, ao avaliar como lida com as suas contradições
e com as contradições das outras pessoas. O importante é como se posiciona em relação a
essas contradições e como busca alternativas para elas, especialmente na tarefa de educar os
filhos na situação do divórcio, sem ter de constituir um litígio.
Como afirma González Rey (1999) as contradições são importantes momentos da
constituição de qualquer realidade, se referindo tanto à dialética marxista quanto à epistemologia da complexidade.
O que vemos na justiça educativa? Vemos que o diálogo sobre as contradições desafia o sujeito a promover a sua capacidade de se envolver no conflito de uma forma ativa e criativa, sem suprimir as contradições que o constitui. Por exemplo, o genitor que não suprime a
sua “dureza” mas gera a necessidade de assumir a sua “doçura” na relação com a ex-cônjuge e
possibilitar que os filhos convivam com ela sem mais tensões.
Quero dizer que o diálogo sobre as contradições promovem o debate e a revisão das
ideias das famílias, inclusive sobre o conflito da definição da guarda dos filhos ou da definição
dos modelos de visitas. Por isso elas são importantes e não devem ser suprimidas, mas superadas (MORIN, 1997). Este é o desafio da problemática da complexidade, que segundo o autor
(MORIN, 2003), ainda é marginal nas epistemologias e teorias.
Não tenho dúvida das complexidades das famílias em litígio com as quais tive contato no trabalho de pesquisa e, mais atualmente, no desenvolvimento do projeto de justiça
educativa. Especialmente neste projeto vejo como o diálogo sobre essas complexidades possibilita a reflexão das famílias sobre as suas incertezas e dificuldades na situação do litígio.
Guatarri (1992) enfatiza no diálogo as contradições vividas e relacionadas às inFRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 23, n. 4, p. 415-424, out./dez. 2013.
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fluencias sociais e culturais.
É fato que as famílias necessitam refletir e serem críticas a respeito dessas influencias
na constituição do litígio. Contudo reconheço que elas podem estabelecer relações diferenciadas com essas influências e produzirem novos sentidos subjetivos do litígio.
BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O DESENVOLVIMENTO DO PROJETO
DE JUSTIÇA EDUCATIVA DE FAMÍLIAS
Assumo as contradições expressas pelas famílias na situação do litígio pela guarda
dos filhos, como a possibilidade de superarmos o paradigma positivista, tradicionalmente
colocado no campo da psicologia jurídica. O que me interessa estudar são as configurações
subjetivas do litígio em cada família concreta e aprender como desafiá-las a produzir novos sentidos subjetivos da situação, mesmo estando atravessadas, como afirma González Rey
(2013), pela subjetividade social do litígio configurado em nível institucional.
As turbulências das famílias tem sido a minha fonte de ideias para a constituição de
um espaço de diálogo cada vez mais aberto, caracterizado pela espontaneidade e criatividade
dos educadores, sem qualquer conotação adversarial. Os educadores convocam as famílias a
se abrirem ao diálogo sobre as suas contradições, como uma forma de encararem e superarem
a situação do litígio.
Inspirada por Morin (2002) sobre a categoria superação proponho que este seja um
dos princípios do trabalho de justiça educativa: dar visibilidade às contradições e convocar as
famílias a superarem as suas, sem suprimi-las nem apaziguá-las. Como disse anteriormente,
a tensão do diálogo sobre as contradições ajuda as famílias a se posicionarem como sujeito do
processo do litígio.
A minha análise de prováveis novos sentidos subjetivos do litígio, gerados pelas
famílias no processo da justiça educativa, é baseada na singularidade de suas expressões. Os
educadores acompanharam as expressões verbais e não verbais das famílias sobre as suas histórias e sobre as prováveis consequências do diálogo e da reflexão nos seus processos de desenvolvimento.
Como afirma González Rey (2011), os educadores puderam observar as construções mais amplas das pessoas, as formas de dizerem e de organizarem as suas expressões no
grupo, aspecto que alimenta o desenvolvimento do meu pensamento sobre as configurações
subjetivas das famílias em litígio pela guarda dos filhos (PERES, 2012).
Sobre o processo de desenvolvimento dos dois grupos temos como indicador a
motivação das famílias para a troca de experiências e o debate sobre a educação dos filhos que
envolve ambos os genitores.
Afinal, a comunicação constituí um grande eixo temático do trabalho de justiça educativa de famílias e deve ser enfatizada entre pais e filhos, especialmente sobre
as representações e mitos que cercam suas relações, as vezes consideradas negligentes ou
indiferentes.
O sentimento da falta de comunicação afetiva entre pais e filhos é um indicador de
processos de produção de violência intrafamiliar na situação do litígio. Chamo a atenção para
a importância da justiça educativa como um espaço de inserção das crianças como sujeitos do
processo, capazes de dialogar sobre o problema. Dialogar, refletir e compreender cada pessoa
na situação do litígio, com a sua humanidade, tem um caráter educativo também para a equi422
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pe de trabalho, para a qual a mudança de paradigma ainda é um processo a ser desenvolvido.
Com esse desenvolvimento é possível que este projeto avance e passe a ser uma realidade nos vários espaços de desenvolvimento das famílias, entre eles o espaço judicial, quem
sabe rumo a uma política de justiça educativa de famílias.
EDUCATIONAL JUSTICE FOR FAMILIES
Abstract: a project of Educational families Justice, founded on qualitative epistemology and cultural-historical theory of subjectivity, aims to challenge families to generate new subjective senses
of the dispute and the construction of creative alternatives to the problem. The results point to the
emergence of the subject in the confrontation with the problem that is not limited to cultural aspects, nor pathological.
Keywords: Litigation. Subjectivity. Education. Learning. Human Development.
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