International Journal of Cardiovascular Sciences. 2016;29(6):517-519 517 RELATO DE CASO Policitemia Vera: Uma Etiologia Rara da Insuficiência Cardíaca Polycythemia Vera: A Rare Ethiology of Heart Failure Monyck Barros Cardoso1, Marcelo Foradini Albuquerque2, Rosa Regina Sannuti Pais3, Renata Rodrigues Teixeira de Castro1,2,3 Hospital Geral de Nova Iguaçu1, Nova Iguaçu, RJ; Universidade Iguaçu2, Nova Iguaçu, RJ; Hospital Naval Marcílio Dias3, Rio de Janeiro, RJ − Brasil Introdução A prevalência da Insuficiência Cardíaca (IC) com disfunção sistólica ultrapassa 20 milhões de pacientes no mundo, ou seja, corresponde a 2% da população ocidental.1 Nas duas últimas décadas, houve grande avanço no tratamento ambulatorial de pacientes com IC, incluindo não só farmacoterapia (uso de betabloqueadores e bloqueadores dos receptores de aldosterona), 2 mas também o uso de dispositivos implantáveis (ressincronizadores e cardiodesfibriladores implantáveis). 3 Apesar de todos estes avanços, a mortalidade do paciente com IC continua elevada, ultrapassando muitas doenças oncológicas, por exemplo. Outro grande desafio do tratamento nesta área tange aos desfechos tidos como secundários, mas também importantes, como a melhora da qualidade de vida e a redução do número de internações destes pacientes.1 No que diz respeito à etiologia, existem diferentes causas de IC e seu reconhecimento pode ser determinante para a otimização do tratamento. Disfunções ventriculares secundárias à isquemia miocárdica, arritmias e hipotireoidismo, entre outras, devem ter seu tratamento com foco na doença de base.2 Assim, a identificação da causa da IC deve ser perseguida até que se esgotem as possibilidades, afim de que o tratamento possa ser individualizado. De fato, as chamadas miocardiopatias de origem idiopática exibem pior prognóstico quando comparadas com aquelas cuja etiologia é conhecida.4 Palavras-chave Palavras-chave: Insuficiência Cardíaca / etiologia, Policitemia Vera / etiologia, Microcirculação, Doenças Hematológicas / fisioterapia. O objetivo do presente estudo foi relatar um caso de IC secundária a uma doença hematológica rara, a policitemia vera. Relato do caso Paciente do sexo masculino, 47 anos de idade, pardo, natural de Belo Horizonte (MG), atualmente trabalhando como jardineiro no Estado Rio de Janeiro. O paciente procurou serviço de emergência referindo dispneia há 2 meses, inicialmente aos médios esforços, evoluindo para repouso na última semana. Associados ao quadro, relatava ortopneia e dispneia paroxística noturna. Negava precordialgia, febre, emagrecimento ou infecções recentes. Na história patológica pregressa, não tinha relato de comorbidades, internações, doenças prévias ou cirurgias. Negava alergias, tabagismo e etilismo. Apesar de trabalhar como jardineiro, o paciente era militar aposentado, tendo trabalhado em caldeira de navio por vários anos. Desconhecia a causa mortis dos pais e apresentava duas irmãs vivas aparentemente saudáveis. Não havia outros dados relevantes na anamnese. Ao exame físico, paciente eupneico em repouso. Corado, anictérico, acianótico, hidratado, mal distribuído. Apresentava turgência jugular a 45°, ritmo cardíaco regular em dois tempos, bulhas normofonéticas, com frequência cardíaca de 92 bpm e pressão arterial de 110 x 60 mmHg. Não havia sopros ou atrito pericárdico. À ausculta pulmonar, apresentava murmúrios vesiculares diminuídos em bases, com estertores crepitantes nos dois terços inferiores de ambos os pulmões. Abdome flácido, peristáltico, timpânico, com dor à palpação profunda em hipocôndrio direito. Hepatimetria normal, com fígado de borda romba, doloroso à palpação. Espaço de Traube ocupado, porém, baço impalpável. Não havia edema periférico. Correspondência: Renata Castro • Avenida Abílio Augusto Távora, 2.134, Jardim Nova Era. CEP: 26275-580. Nova Iguaçu, RJ – Brasil. E-mail: [email protected] DOI: 10.5935/2359-4802.20170010 Artigo recebido em 25/07/2016; revisado em 21/11/2016; aceito em 04/12/2016. Int J Cardiovasc Sci. 2016;29(6):517-519 Relato de Caso Diante do diagnóstico de IC, foi instituído tratamento com vasodilatadores (inibidor da enzima conversora de angiotensina) e diurético (furosemida) e foram solicitados exames. Como o paciente residia em localidade distante ao hospital, optou-se por internação, para melhor investigação e estabilização do quadro clínico. Os exames revelaram policitemia (com hematócrito de 50,7% e hemoglobina de 17,1 g%) com normocitose. Leucograma, bioquímica e funções hepática e tireoidiana foram normais. Ecocardiograma transtorácico revelou cardiomiopatia dilatada, com fração de ejeção de ventrículo esquerdo de 24%. Apesar da melhora clínica do paciente, a anamnese não permitia identificar com segurança a causa da disfunção ventricular grave neste paciente jovem e sem fatores de risco clássicos para IC. Na busca pela etiologia do quadro, foi realizada cintilografia miocárdica com dipiridamol; foram coletadas hemoculturas e pesquisadas tuberculose, HIV, doença de Chagas e doenças do colágeno. Todos estes exames foram negativos. Considerando o elevado hematócrito, optou-se por avaliação pneumológica, com realização de espirometria de repouso, que também foi normal. Finalmente, o elevado hematócrito, na ausência de tabagismo ou pneumopatia, levou à investigação de policitemia vera, a qual foi confirmada. Foi oferecido ao paciente a opção de realizar biópsia endomiocárdica, a qual o paciente recusou. Não havia disponibilidade de ressonância nuclear magnética de miocárdio, motivo pelo qual a mesma não foi realizada. Com o diagnóstico de policitemia vera, foi adicionado ácido acetilsalicílico ao tratamento do paciente. Após alta hospitalar, o paciente foi encaminhado para acompanhamento em serviços de cardiologia e hematologia em sua cidade. Discussão A doença mieloproliferativa policitemia vera foi primeiramente descrita por Vasquez, em 1892, e, subsequentemente, em 1903, por Osler, sendo também conhecida como doença de Osler-Vaquez.5 Trata-se de doença rara (4-16 casos/milhão), caracterizada pelo aumento do hematócrito e, consequentemente, da viscosidade sanguínea. A relação da função ventricular parece exibir um comportamento paradoxal no que diz respeito à policitemia vera. Estudo realizado nos anos 1960 Cardoso et al. Insuficiência cardíaca e policitemia vera analisou de forma invasiva o perfil hemodinâmico de dez pacientes com policitemia vera e os comparou com indivíduos saudáveis,6 chegando à conclusão de que os pacientes com policitemia vera exibiam hipervolemia, que se traduzia em maior débito cardíaco e consumo de oxigênio. Levando em consideração mecanismos fisiopatológicos, a ocorrência de hipervolemia e o aumento do hematócrito podem justificar o maior débito cardíaco e a capacidade aeróbia. Entretanto, tal afirmativa é verdadeira até determinados limites. De fato, aumentos extremos de hematócrito podem elevar a viscosidade sanguínea a níveis que propiciem hipercoagulabilidade. No entanto, na verdade, o mecanismo trombofílico em pacientes com policitemia vera é ainda mais complexo. Ele inclui não apenas hematócrito e contagem de plaquetas elevadas, mas também as interações entre plaquetas, leucócitos e derivados celulares e a redução de anticoagulantes endógenos.7 A maioria dos poucos casos encontrados na literatura nos quais a policitemia vera acarretou IC ocorreu por hipercoagulabilidade. Nestes casos, foram relatados enormes trombos intraventriculares, acarretando IC obstrutiva, sem que houvesse dano direto aos mecanismos de contração ventricular propriamente ditos.8,9 Na literatura internacional, encontramos apenas um caso de policitemia vera que evoluiu com disfunção ventricular por necrose de cardiomiócitos e fluxo sanguíneo lentificado na microcirculação coronariana, provavelmente pela hiperviscosidade.10 A despeito de nosso paciente ter se recusado à realização de biópsia endomiocárdica, a ausência de trombos intracavitários ao ecocardiograma deixa a hipótese de microinfartos como o único possível mecanismo fisiopatológico para a disfunção ventricular por ele apresentada. Vale ressaltar que o resultado negativo para isquemia miocárdica na cintilografia miocárdica não exclui nossa hipótese fisiopatológica, uma vez que este método não tem sensibilidade adequada para a identificação de microinfartos. Como exemplificado neste caso, a certeza de relação etiológica em casos de IC nem sempre é simples e direta. De fato, a razoável implicação fisiopatológica e a ausência de outras etiologias possíveis são os principais fatores que levam à definição (ou forte suspeição) etiológica na maior parte dos casos de IC não isquêmica na prática clínica. No caso em questão, uma vez excluídas as principais causas de IC em nosso meio, diante da recusa do paciente de realizar a biópsia endomiocárdica, só restariam duas opções para conclusão diagnóstica: IC não isquêmica 518 Cardoso et al. 519 Int J Cardiovasc Sci. 2016;29(6):517-519 Relato de Caso Insuficiência cardíaca e policitemia vera idiopática em paciente com policitemia vera ou IC secundária à policitemia vera. Considerando a raridade da policitemia vera,5,11 a existência de relatos prévios apontando para o possível desenvolvimento de IC em pacientes com esta doença hematológica,6,10 a ausência de outras causas para o quadro de IC deste paciente e a coerência médica de sempre tentar explicar as queixas de um paciente com o menor número possível de diagnósticos, acreditamos que a opção mais razoável seja a de considerar a policitemia vera como causa da síndrome de IC, e não como diagnóstico associado neste caso. Contribuição dos autores Concepção e desenho da pesquisa: Castro RRT. Obtenção de dados: Cardoso MB, Albuquerque MF, Pais RRS, Castro RRT. Análise e interpretação dos dados: Cardoso MB, Albuquerque MF, Pais RRS, Castro RRT. Redação do manuscrito: Cardoso MB, Castro RRT. Revisão crítica do manuscrito quanto ao conteúdo intelectual importante: Albuquerque MF, Pais RRS, Castro RRT. Potencial Conflito de Interesse Declaro não haver conflito de interesses pertinentes. Conclusão Apresentamos um caso cuja relação causal entre policitemia vera e insuficiência cardíaca se deu por exclusão de outros diagnósticos. A etiologia da insuficiência cardíaca deve ser perseguida em todos os casos novos, pois seu conhecimento pode direcionar o tratamento e influenciar no prognóstico destes pacientes. Fontes de Financiamento O presente estudo não teve fontes de financiamento externas. Vinculação Acadêmica Não há vinculação deste estudo a programas de pósgraduação. Referências 1. Mozaffarian D, Benjamin EJ, Go AS, Arnett DK, Blaha MJ, Cushman M, et al; American Heart Association Statistics Committee.; Stroke Statistics Subcommittee. Heart disease and stroke statistics-2016 update: a report from the American Heart Association. Circulation. 2016;133(4):e38-360. Erratum in: Circulation. 2016;133(15):e599. 5. Stone MJ. Polycythaemia vera: Osler-Vaquez disease. J Med Biogr. 2001;9(2):99-103. 2. 7. Tefferi A. 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