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UMA FIGUEIRA ESTÉRIL: A PERVERSÃO DO SENTIDO DO CULTO
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RESUMO
Por meio da análise do texto de Mc 11:11-26 este artigo propõe auscultar memórias
evangélicas sobre a situação da religião judaica e a contradição do Templo de
Jerusalém em sua função que fazem ecos nos moldes religiosos e Templos hodiernos.
O Templo de Jerusalém, comparado à figueira estéril, nega sua vocação primeira de
alimentar o povo faminto de Deus pervertendo o sentido do culto para fazer dele uma
fonte de lucro. O povo é, ao contrário, espoliado em nome de Deus e da religião. Havia
apenas aparência, como a árvore frondosa que não dava fruto, e por isso o gesto de
Jesus coloca fim ao expediente religioso que transformara o Templo num covil de
ladrões ao invés de ser casa de oração. Este artigo discutirá os seguintes pontos: fome
não saciada (11: 11-14); templo exorcizado (11: 15-16); covil de ladrões X casa de
oração (11: 17-18); fim a uma religião infrutífera (11: 20-21) e surgimento de uma nova
figueira (11:22-26).
Palavras-chave: Palavras-chave: Templo; Lucro; Figueira estéril; Casa de oração;
Vocação.
ABSTRACT
Through the analysis of the text of Mark 11:11-26 this article proposes to listen the
evangelical memories about the situation of the Jewish religion and the contradiction of
the Temple of Jerusalem in its function that make echoes in the religious molds and in
the temples at the present time. The Temple of Jerusalem, compared to the barren fig
tree, denies its primary vocation to feed the hungry people of God perverting the
meaning of worship to make it a source of profit. The people are instead plundered in
the name of God and religion. There was only appearance, as the leafy tree that gave
no result, so the gesture of Jesus puts an end to religious expedient that turned the
temple into a den of thieves instead of being a house of prayer. This article will discuss
the following points: hunger is not satisfied (11: 11-14); temple exorcised (11: 15-16);
den of thieves X house of prayer (11: 17-18); fruitless end to a religion (11 : 20-21) and
the emergence of a new fig tree (11:22-26).
Keywords: Temple, profit, barren fig tree, house of prayer, vocation.
1. INTRODUÇÃO
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Flávia é mestre em Ciências da Religião e especialista em Teologia Bíblica. E-mail: [email protected]
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O texto do Evangelho de Marcos 11:11-26 aborda a temática da função do
Templo de Jerusalém. Essa narrativa se coloca após a conclusão da viagem de Jesus
da Galiléia a Jerusalém iniciando a quinta parte do Evangelho. A primeira ação,
simbólica, realizada por Jesus ao chegar em Jerusalém foi a de entrar na cidade
montado num jumentinho enquanto a multidão o aclamava como Messias (11: 1-11).
Após a “entrada triunfal”, se dirige ao Templo e faz uma vistoria silenciosa.
“Depois de inspecioná-lo, inteiramente, visto que era tarde” (11:11), volta para Betânia,
onde passa todas as noites durante sua estadia em Jerusalém. Assim, a primeira
perícope da quinta parte de Marcos ao ser concluída com a informação de que Jesus
observa o expediente do Templo anuncia os fatos seguintes.
A partir do olhar silencioso de Jesus sobre o Templo a narrativa em análise é
construída em forma de “sanduíche” onde os dois extremos descrevem a maldição
simbólica de Jesus sobre a figueira frondosa que se mostra sem frutos bem como a
subsequente constatação de que a árvore tinha secado até a raiz. Entre esses relatos
referentes a figueira descreve-se uma prática de Jesus que é denominada como a
expulsão dos vendilhões do Templo que encerra a mensagem central da perícope
dando sentido a maldição lançada sobre a árvore pela compreensão de ser um ato
simbólico que diz respeito a situação atestada por Jesus sobre o Templo em sua
vistoria. Cada elemento desse “sanduíche”, dessa maneira, se refere expressamente à
crítica que Jesus faz do Templo em sua função.
Para uma apreensão frutuosa do querigma da narrativa torna-se relevante na
análise de cada cena a consideração do texto dentro do contexto de toda a quinta parte
bem como de todo o Evangelho. Isso porque o Evangelho foi elaborado dentro de um
projeto literário de narrar a história de Jesus com um fim catequético de evidenciar que
o crucificado é o Filho de Deus. Não uma história como se entende o termo nos tempos
modernos, como uma biografia, mas antes com um propósito teológico tece relatos
contínuos e coerentes, que apesar de um mínimo respeito à cronologia não se deixa
dirigir por ela, sobre Jesus e seus discípulos que deram origem à Igreja. A lógica que
liga os relatos, portanto, é teológica e não uma biografia dos acontecimentos. Por isso
na apreensão do sentido dos textos é preciso perceber o fio condutor teológico no qual
a narrativa vai sendo construída tendo em conta que Marcos escreve muito pouco, pois
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o seu trabalho e sua maestria são conhecidos na junção das tradições já existentes a
fim de fazer uma catequese narrativa para os cristãos do seu tempo por meio de
técnicas de interpretação comumente usadas no judaísmo. Dessa forma, utilizando de
meios literários inspirados na tradição judaica para a atualização da Escritura, o escrito
evangélico se torna uma resposta aos discípulos e discípulas que ao relerem a história
de Jesus, no contexto da Palavra revelada do Antigo Testamento, buscam uma
mensagem para o momento histórico em que vivem. Essa técnica de interpretação, que
na verdade é bem mais do que uma simples interpretação de um texto por na verdade
implicar em uma procura através da Escritura de uma palavra de Deus que seja
resposta para uma nova situação histórica, se denomina de derásh.
Esse verbo em seu sentido original significa “buscar”, “procurar”. Por meio do
evento de Jesus se interpreta as Escrituras a fim de que elas se tornem relevantes para
a nova situação vivenciada. É a busca de uma palavra de Deus nas Escrituras a partir
de Jesus, pois, os judeus não acorriam às Escrituras para pesquisar relatos de uma
Palavra divina do passado, mas antes para procurar por meio do texto uma palavra
para o presente, o que certamente era bem conhecido a Marcos quanto aos primeiros
judeus-cristãos. Por isso, o mesmo faz o Evangelista, pois sua pretensão não é
escrever para apenas guardar a memória da vida de Jesus, mas sim procurar uma
Palavra viva de Deus nessa vida. Desse modo, para Marcos e seus contemporâneos, “a
memória dos atos e das palavras de Jesus tem sempre como finalidade a procurar
compreender as palavras e o agir do Senhor ressuscitado à sua Igreja no momento
presente.” (GOPEGUI, 2010, 6f.).
Para tanto, diante do desafio da compreensão de Marcos 11:11-26,
especificamente, resta ainda considerar, que Marcos escreve por volta do ano 70 e
provavelmente elabora seu evangelho em Roma. É plausível o fato de que essa
comunidade possa ter sentido a necessidade de colocar por escrito as tradições
apostólicas após a morte de Pedro e Paulo. No momento em que Marcos descrevia a
expulsão dos vendedores do Templo, Jerusalém estava sendo cercada e invadida pelos
exércitos romanos. Diante desse pano de fundo histórico, onde tudo estava sendo
destruído inclusive o Templo, o gesto de Jesus se torna uma advertência contundente a
todos que pervertem o sentido do culto para fazer dele uma fonte de lucro. Através de
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memórias das palavras e ações de Jesus pode-se apreender alternativas evangélicas
para a religiosidade contemporânea que suscita da mesma maneira a inspeção do
Cristo, bem como suas reprimendas, mas também, apontamentos para uma
religiosidade fecunda.
2. A FOME NÃO SACIADA (11: 11-14)
Na leitura e análise dos primeiros versículos (11-14) da perícope em questão é
indispensável considerar que a cena descrita é previamente preparada por Marcos pela
inserção da informação, no final da cena anterior, de que Jesus conclui seu primeiro dia
em Jerusalém numa observação silenciosa sobre o expediente do Templo. Ele entra a
tardinha no Templo e olha tudo a sua volta. Essa atitude de Jesus faz recordar que
“uma das funções do sacerdote encarregado do Templo, consistia em inspecionar, cada
tarde o templo, para verificar se tudo estava em ordem” (GOPEGUI, 2010, 14f.) A partir
dessa consideração da informação sobre a vistoria de Jesus sua ação subsequente,
não realizada no mesmo dia simplesmente devido a falta de tempo, pode ser
ressignificada para além de um ato isolado, quiçá, incompreensivo. O texto informa que
após a visita de vistoria no Templo, anunciando os fatos seguintes não realizados por
Jesus no mesmo dia por simples falta de tempo, devido a hora avançada Jesus
regressa para Betânia. Em toda sua estadia em Jerusalém Jesus não chega a pernoitar
na cidade. Esse fato parece apontar para o indício da consciência que tem sobre o
perigo que corre concomitantemente com o fato de apenas aparecer em público, no
Templo, onde seus adversários não poderiam prede-lo pelo temor do povo que o
admira.
No dia seguinte, saindo de Betânia retornando para Jerusalém, o texto salienta
que Jesus sente fome. “nota-se a precariedade da alimentação da casa em Betânia”
(BERTONINI, 2006, p.213). No entanto, a fome de Jesus, na narrativa, é sintomática.
Avistando uma figueira frondosa, Jesus, que tem fome, procura figos na árvore. Não
sendo época de frutos, Jesus não encontram nada além de folhar na figueira. Mas,
talvez para espanto dos discípulos e do leitor de Marcos, Jesus amaldiçoa a figueira,
como se rogasse uma praga, para que ninguém jamais comesse frutos daquela árvore.
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A pergunta que emerge sem demora é sobre a compreensão desse ato aparentemente
violento ou no mínimo estranho por parte de Jesus, pois a figueira devia ser inculpável
ante a realidade de estar fora da época de frutos. Com esse questionamento em mente
é que Marcos parte para a descrição da próxima cena. É imprescindível, dessa
maneira, ter clarividente a construção da narrativa elaborada em forma de um
sanduíche onde entre os relatos sobre a figueira insere-se outra prática de Jesus no
Templo. A postura, portanto, de leitura da perícope deve seguir o viés teológico, por
meio do qual narrativa é construída, cuidando para não dissociar o que Marcos interliga
na narrativa com o risco comprometer a apreensão do sentido simbólico da ação de
Jesus. Após a maldição sobre a figueira, o episódio seguinte descreve Jesus
expulsando os vendedores do Templo. Apesar de parecer totalmente desconexo com a
cena anterior, é, no entanto, a partir de agora que o leitor poderá absorver a mensagem
evangélica embutida nesse “sanduíche”.
A figueira perde as folhas em outono (ou novembro) e as põe na primavera (a
partir do fim de março). Os frutos se distinguem em primeiros e segundos figos. Os
primeiros aparecem em março nos ramos velhos e estão maduros a partir d do fim de
maio, sendo muito procurados por tratar-se dos primeiros frutos. A maior parte da
colheita é dada pelos segundos figos, que brotam nos ramos novos e amadurecem no
fim do verão. Por isso, conforme um dito rabínico, na Tora, como na figueira, sempre é
possível encontrar frutos, mesmo fora do tempo (GOPEGUI, 2010, 14f.).
3. TEMPLO EXORCIZADO (11: 15-16)
Parece que Jesus chega ao Templo decido a agir impelido pelo que havia
constatado no dia anterior ante ao seu olhar silencioso avaliativo sobre o expediente do
Templo. Sem demoras, Jesus, chegando ao Templo tem outro gesto violento como ante
a figueira sem frutos. Põe-se a expulsar os que vendiam e compravam bem como
derruba as mesas dos cambistas e as cadeiras dos que vendiam pombas além de não
deixar ninguém carrega coisa alguma através do Templo, como descreve Marcos. No
pátio do Templo, área reservada aos pagãos, que era sua zona externa, desenvolvia-se
um comércio autorizado de objetos e principalmente animais para o sacrifício. Havia
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também cambistas para trocar a moeda estrangeira, pois “a moeda que entrava no
Templo era a tetradracma de Tiro, imune à inflação galopante desse tempo”
(BORTOLINI, 2006, p.214).
Assim como Jesus que fez a peregrinação da Galiléia até Jerusalém em ocasião
da Festa da Páscoa, milhares de peregrinos se dirigiam de todas as partes para
Jerusalém a fim de participar das festas anuais. Entre seus deveres estava o
pagamento do imposto do Templo e para isso precisavam trocar suas moedas
inflacionadas pela moeda de tíria. Esses peregrinos também precisam comprar em
Jerusalém os animais que deviam oferecer em sacrifício pela dificuldade de trazê-los de
seus lugares de origem que por vezes era bastante longínquo.
A realidade, portanto, era em primeiro lugar de que o comércio praticado no pátio
dos gentios no Templo servia para suprir os peregrinos em tudo que precisavam
segundo as necessidades para o culto, que incluíam animais, câmbio, vinho, óleo e sal.
Apesar de que comentadores cristãos geralmente dão a impressão de que Jesus se
mostrou um tanto surpreso de encontrar comércio em lugar de oração e de adoração, “a
atividade comercial era aspecto inteiramente normal de qualquer culto na antiguidade.
O Templo de Jerusalém, como Jeremias mostrou, era fundamentalmente instituição
econômica, e na verdade dominava a vida comercial da cidade” (MYERS, p. 360).
Sendo que o funcionamento diário do culto era questão de emprego para várias
profissões.
Dentro dessa realidade comum na religiosidade antiga, “a indignação de Jesus
dificilmente poderia ser atribuída a uma descoberta da existência de comércio no
Templo em si” (MYERS, 1992, p.360). Na apreensão da questão que emerge sobre o
motivo que perturbou a Jesus é pertinente observar o julgamento do profeta Oséias
(9:15) envolvendo a classe dirigente de Israel: “Eu os expulsarei da minha casa, todos
os seus chefes são desobedientes”. “Segundo Jeremias, muitos dos lucros comerciais
pertenciam à família dos sumos sacerdotes. Pode-se acrescentar aqui que o sumo
sacerdote Ananias (em exercício de 47 a aproximadamente 55 d.C.) era chamado de o
grande procurador do dinheiro por Flávio Josefo” (MYERS, 1992, p.360).
A indignação de Jesus se explica, portanto, pelos interesses e lucros da classe
dirigente que controlavam os empreendimentos comerciais no mercado do Templo.
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Jesus ataca não a necessidade do comércio existente, mas sim a avareza e ganância
dos dirigentes da religião judaica. Essas atividades comerciais estavam ligadas
diretamente ao sumo sacerdote e chefe dos sacerdotes, os quais lucravam a venda dos
animais para o sacrifício, aluguéis e câmbio. Reforçando essa constatação observa-se
que Marcos destaca dois grupos dos empresários do Templo como alvo específico da
ação veemente de Jesus: os cambistas e os vendedores de pombas.
O abuso era gritante nesse comércio onde os “cambistas retinham 8% do valor
da transação como pagamento do seu trabalho” (BORTOLINI, 2006, p.214). Pouco se
importava com o fato de entrar nos cofres do Templo uma moeda pagã que continha
efígie de divindade estampada, o que era proibido pela Lei. Parece que “Marcos
considera esses cambistas como símbolos adequados das instituições financeiras
opressoras a que ele bravamente se opunha” (MYERS, 1992, p.361).
Sobre o outro grupo referido especificamente por Jesus diz-se que eram “os que
vendiam pombas”. Essa expressão se refere a esse comércio ganancioso praticado no
Templo que se sustentava à custa dos pobres. Eram os pobres que ofereciam pombas
para o sacrifício as quais utilizadas, primordialmente, para purificação de mulheres (Lv
12:6; Lc2; 22-24), para purificação de leprosos (Lv 14: 22) além de outras finalidades
(Lv 15: 14-29). Os preços dos pombos, em época de festa, eram exorbitantes. Percebese como as obrigações cúlticas eram especialmente pesadas os pobres.
O ato de Jesus de “virar” (katestrepsen, que também pode significar “destruir”) as
mesas dos cambistas e as cadeiras dos vendedores de pombas, sinaliza que Marcos
não está pleiteando ou defendendo preços mais baixos para os pobres nem ao menos
reivindicando práticas econômicas justas. Isso fica clarividente porque Jesus já havia
repudiado os sistemas de pureza e sua específica marginalização de leprosos (1: 41ss)
e de mulheres (5: 25ss). Portanto o que está explícito no texto é que Jesus quer que
tenha fim todo esse tipo de sistema cúltico simbolizado na ação de “virar”. Portanto, os
lugares utilizados por esses dois grupos deviam ser destruídos enquanto representação
dos mecanismos concretos de opressão dentro de uma sociedade que exploravam
duplamente os pobres e os impuros. Além de serem considerados cidadãos inferiores o
culto os obrigava a fazer reparação por tal condição por meio de sacrifício gerando uma
situação da qual os comerciantes tiravam proveito (MYERS, 1992).
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A última ação de Jesus no conjunto de seus atos impelidos pela vistoria feita no
dia anterior proíbe qualquer pessoa de carregar “algum objeto (skeuos, aqui
significando algum vaso ou peça necessária para o culto) através do Templo”. Isso
deixa entrever que a meta desses passos destruidores era, realmente, o aniquilamento
de todas as operações do Templo (10: 16) (MYERS, 1992, p.362).
O gesto de Jesus no Templo configura-se como simbólico. A imensa dimensão
do pátio dos pagãos, “medindo 450x350 metros, indica que a ação de Jesus foi
limitada, uma vez que não implicou em intervenção nem da guarda do Templo, nem da
guarnição romana” (GOPEGUI, 2010, 14f.). A resposta, portanto, de uma visita primeira
ao Templo sem alardes, acontece em ato simbólico por não se configurar, a ação de
Jesus, em violência não provocando resistência alguma nem ao menos tem alcance
político. Assim, a chamada “purificação” do Templo é expressão do que faziam os
antigos profetas em tempos de críticos, sobretudo Jeremias e Ezequiel. “A ação
simbólica é uma espécie de parábola em forma de mímica. O gesto, embora
desconcertante, pode ser fator expressivo” (Bíblia do Peregrino in loco).
4. COVIL DE LADRÕES X CASA DE ORAÇÃO (11: 17-18)
Jesus recorre às Escrituras para conformar a sua crítica ante ao funcionamento
do Templo o que amplia e explica o alcance do seu gesto. Porém, ao invés de retornar
ao texto de Oséias, Marcos utiliza os dois grandes profetas, Isaías e Jeremias. Os
primeiros leitores do texto evangélico com facilidade compreenderiam com facilidade o
argumento intertextual utilizado pelo evangelista. Já, para melhor apreensão por parte
dos leitores modernos a fim de compreenderem o problema é preciso retomar as
citações.
A primeira citação feita por Marcos é extraída diretamente do texto dos LXX de
Isaías 56:7 onde se diz que o Templo devia ser uma casa de oração para todos os
povos. Isaías 56: 1-8, faz parte do início da coleção que os estudiosos modernos
chamam de “Terceiro Isaías”, que narra a promessa de Javé feita ao estrangeiro e ao
socialmente marginalizado declarando que a casa de oração na montanha sagrada
seria lugar de alegria para todos os desamparados. “Ao citar essa tradição Marcos
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indicou o que se supõe que o Templo encarne: inclusividade/abrangência e
comunidade, especialmente acessível aos de fora” (MYERS, 1992, p.363).
Ante a duas coisas essenciais salientadas na citação, a função do Templo, a
casa de Deus, a casa de oração e a abertura aos pagãos, a realidade, porém,
encontrada no Templo de Jerusalém por Jesus era bastante contraditória. Estrangeiros,
mulheres e pessoas consideradas impuras não podiam entrar no Templo. Eram
totalmente excluídas.
Outra vez Marcos recorre às Escrituras a fim de explicar em que o Templo havia
se transformado (“mas vós fizestes dele”). Agora o evangelista se inspira em outra
tradição bem diferente tirando a metáfora “covil de ladrões” de Jeremias 7: 11 (LXX)
para conceituar a função assumida pelo Templo. “Esta tradição, em contraste com o
texto de Isaías, é um dos ataques mais amargos feitos ao templo-Estado na Bíblia
hebraica” (MYERS, 1992, p.363). Jeremias insiste em dizer que a aliança de Javé só
confere morada a Israel na medida em que ele pratica a justiça com o estrangeiro, o
órfão, a viúva, e o inocente (7: 5-7). Segundo o profeta, se a idolatria e a exploração
florescessem, o Templo seria destruído, como aconteceu com o primeiro santuário em
Silo (7: 9-15). Jesus pronuncia, baseado em Jeremias, uma palavra de ameaça contra o
próprio Templo tendo o sentido claro no contexto de Jeremias 7: 8-11. “O culto do
Templo, quando não corresponde a uma vida justa se converte em fraudulento e
inoperante refúgio de malfeitores!” (GOPEGUI, 2010, 14f.). Assim, é significativo que
Marcos tenha se inspirado nessa tradição para legitimar a ação de Jesus.
Jesus denuncia, dessa forma, o mau uso do Templo com seu gesto simbólico
imbuído pelas palavras dos profetas que sinalizam sobre a função primordial do
Templo. Em outras palavras pode-se entender que “a religião não pode ser usada para
explorar o povo nem para sustentar e legitimar os privilégios da classe dirigente”
(MESTERS; LOPES, 2003, p.195).
Com a denúncia de que o Templo, com sua vocação traída por uma economia
política de exploração por parte de seus dirigentes, não poderia permanecer de pé, as
autoridades decidem matar a Jesus. Nada surpreendente na luta pelos interesses
lucrativos que se depara com uma mensagem que subverte a ordem da ganância. Os
chefes dos sacerdotes, os doutores e os anciãos, incomodados com o gesto de Jesus,
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decidem matá-lo. Encontram, no entanto, uma resistência pelo medo que tinham do
povo que admirava Jesus e se maravilhava com seus ensinamentos. À tardezinha, ante
as ameaças de morte, Jesus sai novamente da cidade e volta para Betânia.
5. FIM A UMA RELIGIÃO INFRUTÍFERA (11: 20-21)
No outro dia pela manhã, Jesus passa de novo próximo a figueira que havia
amaldiçoado por não encontrar nela fruto que saciasse a sua fome. A narrativa retorna
à figueira. A indagação sobre o gesto aparentemente violento e estranho de Jesus ao
amaldiçoar a figueira numa época imprópria para frutificar, parece agora clarear-se ante
ao recheio do “sanduíche” elaborado por Marcos.
A cena do gesto profético de Jesus contra os vendedores do Templo, inserida
entre os relatos da figueira, confirma a referência ao simbolismo da figueira sem frutos
em relação ao Templo. “No contexto o simbolismo aparece claro: o culto do Templo de
Jerusalém, apesar de sua aparência grandiosa, como a folhagem da figueira, não deu
frutos de vida e salvação” (GOPEGUI, 2010, 14f.). A ação de Jesus no Templo é que
dá, portanto, compreensão ao simbolismo da figueira infrutífera amaldiçoada.
Como acontece na narrativa de Marcos, às vezes a figueira é símbolo de Israel
no Antigo Testamento. “Entende-se, portanto, porque Jesus vá fora da época procurar
frutos nessa “figueira”. É que o povo de Deus não pode ser como uma árvore; pelo
contrário, toda época é tempo de frutos” (BORTOLINI, 2006, p.213). Porém, pelo fato
de ser apenas aparência, folhas, a sentença é drástica. Na verdade a mensagem ante a
esses gestos simbólicos é a de que o povo de Deus, o Templo, deveria ser ponto de
atração, acolhimento para todos os povos que sentem “fome” de Deus. Ao contrário, o
Templo traiu sua vocação universal transformando em esconderijo de ladrões e lugar
de discriminação onde o povo é espoliado em nome de Deus e da religião.
Pedro constata que a figueira amaldiçoada havia secado completamente. A
figueira era usada para representar o povo escolhido (Jr 8; 13; Os 9: 10), mas agora é
uma figueira que tem folhagens de aparências e não dá frutos. Ou seja, se o Templo se
perde em sua função, seu destino é secar completamente e desaparecer. Jesus coloca
fim a essa exploração religiosa.
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Torna-se clarividente que a narrativa da figueira amaldiçoada que murchou
completamente secando até a raiz esquematiza a ação do Templo. Cada elemento
desse “sanduíche” se refere expressamente à crítica que Jesus faz ao funcionamento
do Templo que distorce sua vocação de ser alimento para todos os povos famintos por
Deus que se redunda numa prática de vida com justiça e fraternidade.
O Templo de Jerusalém, da maneira que estava funcionando, não passava de
uma figueira frondosa, bonita, cheia de folhas, mas sem oferecer fruto para quem
buscava o Deus da vida. Por isso, Jesus declara encerrado o expediente do Templo e
põe fim ao culto da maneira como estava sendo realizado. Não fazia sentido uma
existência distanciada do propósito: “Que ninguém mais como de seus frutos”.
Agora é completamente inteligível a história da figueira que secou até a raiz
compreendendo-a como o “simbolismo profético que condena o cerne de uma
sociedade estéril, que não dá fruto porque, em vez de alimentar uma prática de justiça e
liberdade sustenta uma religião que aliena e explora em nome de Deus” (BALANCIN,
2005, p.140).
Insta ressaltar que os leitores originais de Marcos precisam escolher em que
realidade acreditará: o templo que murchou até as raízes (sinal do sistema que está
chegando ao fim) ou o templo como algo maior que a vida (sinal do sistema que nunca
terá fim). Em outras palavras, o momento narrativo intenciona instruir esses leitores do
tempo de Marcos, em seu momento histórico, em que eles tinham que decidir unir-se ou
não na defesa do templo-Estado durante a revolta na guerra romano-judaica (MYERS,
1992).
6. SURGIMENTO DE UMA NOVA FIGUEIRA (11:22-26)
Jesus coloca fim ao expediente do Templo que se equivoca em sua vocação,
mas isso não quer dizer que o fim, pois surgirá uma nova figueira (compare com 12: 9).
No entanto, a nova figueira terá como característica ou como centro de sua vida não um
Templo, mas a adesão incondicional a Jesus (fé). A conclusão da narrativa começa
com um convite desafiador no qual Jesus exorta a ter fé, “Tenham fé em Deus”, uma fé
que brote do mais profundo da pessoa, fé sincera.
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Ante a tarefa de convencer os discípulos para além de uma modificação na
ordem social do Templo, mas antes, de que eles poderiam reconstruir a vida
separadamente dela, Jesus se põe a um minissermão sobre a fé. Exortar a crer em
Deus não é, no contexto de Jesus, a simplicidade que possa parece à primeira vista. “O
leitor moderno precisa lembrar de que no mundo social do Oriente Médio do século I,
um Templo era algo intimamente identificado com a existência de uma divindade”
(MYERS, 1992, p.365).
Essa realidade era também extremamente verdadeira para o judeu. Portanto,
rejeitar o Templo provocaria uma crise fundamental sobre a presença de Javé no
mundo. Jesus desafia esta identificação ensinando que abandonar a fé no Templo não
redundaria em abandono da fé em Deus. Assim, os dois ditos seguintes continuam
essa catequese declarando a presença e a atividade contínua de Deus por meio da fé.
A ordem de lançar a montanha ao mar (“se alguém disser a esta montanha:
levante-se e jogue-se no mar”) alude à remoção da montanha por excelência, o monte
do Templo. Dessa maneira, “o Templo, conhecido pelo povo judeu como a “montanha
da casa” ou “esta montanha” não devia ser elevada, como se esperava, mas arrasada”
(MYERS, 1992, p.366). A ordem de lançar ao mar naturalmente recorda a ação
simbólica idêntica contada na narrativa anterior do endemoninhado garaseno
expressando que Marcos insiste em dizer que o poder opressor, seja da legião romana
como da montanha judaica encontrarão o seu fim a partir da crença numa nova ordem.
O segundo dito de Jesus, nessa conclusão, parece generalizar o primeiro: “tudo
o que suplicardes na oração, crede que será concedido e acontecerá para vós”. Ou
seja, é como se Jesus dissesse que se a montanha pode ser removida, tudo pode
acontecer. O mundo pode se refazer a partir de um novo paradigma. Mas, esse dito
também intencionar assegurar de que o desafio proposto pelo primeiro dito dirigido à fé
depende da oração. Com uma diferença importante de que a oração não depende mais
de uma realidade ultrapassada, Deus não se encontra mais no Templo.
A orientação para o perdão se justifica como algo que dá eficácia à oração
constituindo-se, também, como nova prática alternativa necessária para substituição do
culto do Templo. A palavra de Jesus sobre o perdão “mostra que sua fé na vitória sobre
o poder descomunal e ameaçador do Templo, não deve ser concebido em termos de
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vingança ou concorrência de poderes, mas será o triunfo do perdão e da misericórdia
do Pai” (GOPEGUI, 2010, 14f.).
O ataque de Jesus termina com nova “sede” para a oração já que a “casa de
oração” foi abandonada. No entanto, essa nova sede não é espaço geográfico nem
institucional, mas ética a partir da prática do perdão recíproco dentro da comunidade.
Essa prática do perdão dentro da comunidade se transforma no substitutivo do sistema
redentor simbólico representado no Templo.
CONCLUSÃO
A análise do texto de Mc 11:11-26 possibilita auscultar memórias evangélicas
sobre a situação da religião judaica e a contradição do Templo de Jerusalém em sua
função que fazem ecos nos moldes religiosos e Templos hodiernos. O Templo de
Jerusalém, comparado à figueira estéril, nega sua vocação primeira de alimentar o povo
faminto de Deus pervertendo o sentido do culto para fazer dele uma fonte de lucro. O
povo é, ao contrário, espoliado em nome de Deus e da religião. Havia apenas
aparência, como a árvore frondosa que não dava fruto, e por isso o gesto de Jesus
coloca fim ao expediente religioso que transformara o Templo num covil de ladrões ao
invés de ser casa de oração.
No entanto, as palavras do Cristo não sinalizam para o fim, a não ser desse tipo
de religião transformada num comércio que explora o povo e atende aos desejos
gananciosos de seus líderes. Ao contrário, a perspectiva evangélica encerra
alternativas para a possibilidade do surgimento de uma nova figueira fecunda, a
comunidade dos que seguem a Jesus, por meio da fé, oração e perdão que interligadas
remodelam o paradigma religioso que se desprende do Templo tendo como centro a
adesão incondicional a Jesus.
Dessa forma, as memórias da expulsão dos vendedores do Templo, por Jesus,
denunciando uma religiosidade de aparência que em essência estava permeada de
valores avessos ao do Cristo, distorcendo a vocação, parecem se tornar uma releitura
apropriada para avaliar lucidamente as perspectivas do que tem sido produzido no
14
seguimento cristão atual a fim de apreender alternativas ante a clarividência de
semelhanças com uma prática religiosa que necessitou da vistoria por parte de Jesus.
REFERÊNCIAS
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BORTOLINI, José. O Evangelho de Marcos: para uma catequese com adultos. 2 ed.
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GOPEGUI, Juan A. Ruiz de. Começo do Evangelho de Jesus Cristo Segundo Marcos:
Tradução literal do grego com estruturação do texto. Belo Horizonte: FAJE, 01 mar.
2010. 47f. Notas de Aula.
GOPEGUI, Juan A. Ruiz de. Manifestação messiânica de Jesus no Templo de
Jerusalém: anotações a Marcos 11 e 12. Belo Horizonte: FAJE, 01 mar. 2010. 14f.
Notas de Aula.
GOPEGUI, Juan A. Ruiz de. Notas introdutórias ao Evangelho de Marcos. Belo
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MESTERS, Carlos; LOPES, Mercerdes. Caminhando com Jesus: Círculos bíblicos do
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MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos: Grande comentário bíblico. São Paulo:
Paulinas, 1992.
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