A Historia da Maçonaria

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A Historia da Maçonaria
Permitam-me que os felicite por terem decidido organizar este jantar debate e sobre o tema
da Maçonaria, que me foi proposto de modo a apresentar não os aspectos contemporâneos,
mas sim sobre o ângulo da História.
Mas de que História podemos tratar? Necessariamente a do Homem praticante ou adepto da
Maçonaria, o Maçon. História dos Maçons portanto. Mas quando apareceram os maçons?
Quem foi o primeiro maçon? E quem iniciou o primeiro maçon, seria ele um pré-maçon, e
portanto também elegível para figurar numa historia da maçonaria? E será que os maçons
sempre foram conhecidos por este vocábulo “maçon”? è que hoje já não há romanos, mas
sim italianos...e se quisermos falar sobre a historia dos italianos, forçosamente que temos de
remontar aos romanos, e aos etruscos, tal e qual como para se falar da história dos
portugueses temos de remontar aos lusitanos e aos galaicos durienses... Para além do
problema de semântica, a identificação exacta do que se entende por maçon e por
maçonaria, temos um segundo problema que é o que se reduz em saber se de História
temos o conceito estrito de elementos em documentos escritos, ou se será possível recorrer
também à pré história...
Enfim terceiro e último problema. Que aspectos dos maçons e da maçonaria interessam a
esta pequena conferência? O da filosofia dos maçons? O das obras dos maçons? O da galeria
dos ilustres maçons? A temática dos mistérios e dos rituais? A das Lojas maçónicas, ou da
suas Obediências e Ordens? Vamos depois de postos os problemas à sua solução possível,
ponto por ponto: 1) do conceito de história, 2) do conceito de maçon, e 3) do essencial da
maçonaria – a iniciação.
1) do conceito de História
Todas as obras sobre História localizam o seu início em função da história do Homem
civilizado, e assim remontam a cerca de 4000 anos antes de Cristo. Um bom exemplo é a
História do Mundo de Christos Kondeatis (edição Caminho 1990) Cujo mapa de parede refere
na Europa a cultura megalítica, a civilização de UR na Mesopotâmia (as primeiras cidades
datariam de 3000 AC), a unificação do Egipto com o primeiro Faraó Menés, em 3100 AC,
enfim a época dos primeiros escritos sumários com pictogramas de 3100 AC, em tábuas de
argila. Recorde-se que a idade da pedra se estende até 2000 AC a idade do bronze
(misturado com cobre e ferro), que cede á idade do ferro em 1100 AC, e sempre com
epicentro no Oriente ou médio oriente. Mas vamos abarcar toda a Terra, todo o globo
terrestre? Então devemos citar a primeira civilização americana, dos Olmecas no México
cerca de 1200 AC, a civilização do povo Tcheu na China em 1120 AC.
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Será esta aproximação satisfatória? Podemos começar no neolítico e na idade dos metais,
que alguns situam a começar com a idade do cobre entre 2000 e 3000 AC, e a que se
seguiram com 1000 anos de intervalo a idade do bronze, e depois, quase 1000 anos depois a
idade do ferro como expõem W. Devos e R. Geivers no seu Atlas Historique (edição Erasme
1993)? Podemos situar-nos no epicentro da civilização egípcia como ponto de partida? E se
tivermos em conta os aspectos não apenas materiais mas espirituais, podemos talvez situar
o advento da civilização no Egipto, portanto em momento anterior ao nascimento formal da
filosofia grega, com Thalés de Mileto em 585 AC, como de forma pedagógica ensina Jostein
Gaarder em Le Monde de Sophie (edição Seuil de 1995)...
Fiquemos pois no Egipto.
2) Do conceito de maçon.
Já alertámos para o facto de não nos devermos cingir a este vocábulo se pretendemos
averiguar a concepção e a caracterização de uma realidade maçónica, que hoje é percebida
em termos da Maçonaria Universal como relativa ao Homem, crente em Deus, Grande
Arquitecto do Universo, que pratica em Loja, depois de devidamente iniciado pelos seus
Irmãos, rituais esotéricos que lhe permitem melhor conhecer-se a si próprio, e ao Mundo,
postulando que não deve fazer aos outros aquilo que não gostavam que lhe fizessem a si.
Haveria maçons na idade Média (1212-1600) ? decerto....
Haveria maçons na idade das Luzes (1736- 1899) ? decerto...
Haverá maçons contemporâneos (século XX) ? decerto...
Estas afirmações baseiam-se numa cultura documentada relativamente assente, sobre a qual
há inúmera bibliografia objectiva, e claro, muitíssimos elementos lendários. Todavia naqueles
três períodos de tempo, Maçonaria e Maçons são claramente objecto de investigação, de
estudo e portanto de conhecimento, em variadíssimos autores como por exemplo Pierre A.
Riffard em L´esoterisme (edição Laffont, 1990).
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a) Na idade média, a Maçonaria era apelidada de operativa. Ou seja os detentores de ofícios
“corporativos” sacralizavam a sua profissão emergente dos tradicionais trabalhos de campo
de lavradores, ou de pastores. Algumas destas profissões como a de pedreiro ou de
arquitecto (o que planeia, ou projecta o arco e o tecto) afiguram-se particularmente
importantes, porque o trabalhar da pedra visando transformar a pedra bruta em pedra
cúbica, adequada á construção impõe necessariamente um trabalho de interiorizarão sobre si
próprio, em o que resultado, a obra prima externa, indicia um aperfeiçoamento interior, a
nível da mestria do seu autor. Aliás lê-se na primeira epístola de São Pedro (II, 5) o conceito
de que o trabalhador é também uma pedra viva sobre a qual e com a qual se edifica o
edifício espiritual...tendo com referência o Templo de Salomão, ou seja o primeiro edifício
físico em que a Arca da Aliança fica depositada de forma imobilizada e permanente. A ideia
base é a arquitectura ou o plano da construção, o que implica o respeito de uma ideia ou
concepção com regras e símbolos materializadas no concreto por pedras, colunas, tectos,
paredes, tecidos, artefactos diversos, em que se transparecia o poder de autodomínio, e auto
conhecimento de técnicas e segredos transmitidos ciosamente, por uma cadeia sucessiva de
mestres de obras, que se tinham oportunamente iniciado nessa actividade operativa.
A vivência interior desses segredos, o auto aperfeiçoamento, a capacidade de realizar uma
obra apreciada por qualquer um, nos seus aspectos exteriores, significa o indício de uma
certa elite conceptual, bem diversa da comum dos guerreiros que visavam ainda que em
auto defesa, a destruição aos inimigos, ou a dos lavradores e pastores que surgiam como
sujeitos às leis da natureza. O maçon era pois um homem voltado para si, actuando em
grupo homogéneo, inspirado em regras ancestrais que lhe tinham sido transmitidas por
mestres de saberes e de valores Entrava-se nestes grupos depois de uma iniciação, era
preciso ser escolhido, prestar provas e ser aceite nestas irmandades, que nada tinham de
religioso (não eram nem monges nem sacerdotes), nada tinham de guerreiro (não eram
soldados), nada tinham de senhorial (não pertenciam a nobreza), nem eram dependentes
dos trabalhos e campo (não eram nem servos da gleba nem pastores) nem eram letrados ou
eruditos.
Os Maçons ter-se-iam organizado lentamente talvez a partir de 1212, apenas com homens,
reunidos em Strasbourg em 1275. Dispõe se de documentação relevante sobre estas
especiais comunidades de maçons que se vão estruturando com base em declarações de
princípios, de cartas e de outras formas do que hoje se considera a “auto regulação de
interesses” em termos jurídicos, de “franchising” em termos económicos, e de “Lobby” em
termos políticos.
Entre outros são citados
. 1212 London Assize of Wages (pedreiros)
. 1250 Album de Villard de Honnecourt (arquitecto)
. 1350 Manuscrito Cooke
. 1390 Manuscrito Regius (edição da tradução de René Dez por Guy Trédaniel, 1985).
Nestes documentos encontram-se espelhados vários elementos dos chamados Old Charges,
ou seja caracterização do maçon como homem leal, honesto e incorruptível, respeitador dos
seus irmãos, e da hierarquia de mestre, companheiro e aprendiz, o conhecimento da
geometria de Euclides (de Alexandria), a invocação de Deus, para a prática de um mester
considerado de arte divina, e que se integra no conceito de arquitectura real (palácios de
Reis e Príncipes) e na arquitectura sagrada (de Templos). A solidariedade, o direito à
remuneração, a responsabilidade, o dever de transmissão dos conhecimentos aos
aprendizes, o respeito pelos juramentos, entre outros elementos caracterizam o estatuto dos
maçons, em que o dever da solidariedade suplanta o direito à solidariedade.
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b) Na idade das Luzes, a maçonaria entra no seu período esotérico e moderno, também
identificada por maçonaria de adopção. Isto é, os maçons deixam de ser exclusivamente
integrados por profissionais de mesteres relacionados com a arquitectura e construção, para
receberem também burgueses e nobres. Estão em causa não os segredos de conhecimento
operativo, mas sim a elevação (revelação) dos conhecimentos especulativos e espirituais.
As datas de referência são aos do início do século XVIII, com a institucionalização da Grande
Loja de Londres (por reunião de Lojas pré existentes) e que viria a transformar-se mais
tarde na UGLE (United Grand Lodge of England), a Loja Mãe da Maçonaria Universal, com
aceitação espiritual do deísmo, e respeito pelo poder civil da Coroa:
. 1717 criação da Grande Loja de Londres
. 1723 Constituições dos Franco Maçons
. 1736 Discurso do Cavaleiro de Ramsay
. 1753 rito da Estrita Observância Templária do Barão Von Hundt
. 1758 Ordem CBCS Cavaleiros Benfeitores da Cidade Santa
. 1772 rito escocês rectificado de Willermoz
. 1778 Ordem dos Cavaleiros Eleitos Cohen de Martines de Pasqually
. 1785 Rito egípcio de Cagliostro
Importante documento a ter em conta são os Landmarks, que de tradição oral foram depois
vertidos em versão escrita da Regra em doze pontos, que hoje esta amplamente difundida e
acessível em variadíssimos livros e obviamente em numerosos sites da internet. Em termos
de referências filosóficas a Maçonaria nesta época recorre francamente aos Livros Sagrados
(Bíblia, Tora e Alcorão) e recebe a tradição hebraica da construção do Templo de Salomão, e
demais alegorias e simbolismos conexos.
c) A Maçonaria Contemporânea do século XX e até aos nossos dias acha-se polarizada em
Grandes Orientes e Grandes Lojas e em inúmeras outras organizações de Altos Graus (e a
que só se pode pertencer em “good standing” nas Grandes Lojas), e de diversos ritos, dos
quais os mais frequentes são dos York, o Rito Escocês Antigo e Aceite (REAA) e o Rito
Escocês Rectificado (RER). Constitui uma forma de expressão mundial e institucionalizada,
através de Conferências. As mais importantes são a Conferência Mundial das Grandes Lojas
(a II Conferência reuniu-se em Lisboa em 1996, a V será em 2002 em Nova Delli, Índia), as
Conferências anuais dos Grão Mestres e dos Grandes Secretários da América do Norte (que
incluem os EUA, o Canada e o México), e as Conferências anuais dos Grandes Secretários da
Europa.
Trata-se da Maçonaria Institucionalizada e legalizada, com inúmeros Templos, e publicações,
com expressão na Internet prevendo-se inclusive em Inglaterra para o próximo dia 16 de
Abril de 2002 a consagração da primeira Loja virtual. Esta maçonaria mantém obras de
solidariedade social, e abrange o mundo feminino em organizações para maçónicas como por
exemplo, a Ordem da Estrela do Oriente, (inexistente em Portugal), além de organizações de
influencia maçónica para jovens, a Ordem De Mollay para rapazes, e as Filhas de Job ou o
Rainbow para raparigas.
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Falamos obviamente de Maçonaria Universal (regular) porque existe um sem número de
organizações que se pretendem maçónicas, e que muitas vezes tem expressão apenas nas
suas fronteiras limitadas de adeptos, não sendo reconhecidas internacionalmente, e por isso
não se integrando na Maçonaria de Tradição. Assim, surgiram maçonarias mistas com
homens e mulheres, ditas de Direito Humano, e também maçonarias femininas, como a
Grande Loja Feminina de França, ou de Portugal. Outros Grandes Orientes e Grandes Lojas
(irregulares) multiplicam-se quer na Europa, quer na América Latina , mas não nos países de
expressão ou cultura anglo saxónica. Em Portugal reclama-se da Maçonaria O Grande
Oriente Lusitano, O Direito Humano, A Grande Loja Feminina, a Grande Loja Nacional de
Portugal, a Grande Loja Regular de Portugal, muito embora internacionalmente exista
apenas como reconhecida desde 1991, a GLRP que actua sob a designação de uma
associação sem fins lucrativos denominada Grande Loja Legal de Portugal/GLRP, e cuja Loja
mais activa de conhecimento externo é a Camelot (www.camelotsite.info).
A razão da distinção entre Maçonaria Universal (Regular) e outras maçonarias é simples, na
maioria dos casos, porque são organizações não deístas, e que rejeitam a crença no Grande
Arquitecto do Universo, o dever de imparcialidade religiosa e política, e consequentemente, a
iniciação não implica o juramento sobre um Livro da Lei Sagrada. Para além destes casos,
são também irregulares aquelas organizações que não respeitem determinadas regras de
administração e legitimação maçónica, como por exemplo pretenderem actuar sobre o
território de Grandes Lojas reconhecidas, admitirem no seu seio maçons não iniciados
regularmente, como é o caso de uma pretensa Grande Loja Europeia que pretende actuar no
âmbito geográfico da União Europeia, ou ainda outras que resultam de cisões, e outros
movimentos de auto afirmação, e que portanto não asseguram a legitimidade da
transmissão de origem da consagração e reconhecimento, violando assim os Landmarks, e
Os Antigos Usos e Costumes praticados pela Maçonaria Universal, periodicamente
reafirmados nas Conferências atrás referidas.
3) Do conceito de iniciação
A Iniciação é um elemento indissociável da maçonaria, embora possa haver muitas outras
iniciações, tantas quantas as organizações que a requerem como forma de ingresso do seus
membros. A iniciação maçónica visa transformar um profano, postulante em maçon, através
de provas rituais a que é submetido por maçons, passando depois deste processo a ser
reconhecido como um igual, na sua condição de aprendiz. Mais tarde, pode passar o
aprendiz, mediante novas provas, a Companheiro, e finalmente através de novas provas,
pode o companheiro ser elevado a Mestre, sempre depois de prestar novos juramentos. Ou
seja, a iniciação comporta sempre para o recipiendário: 1) provas rituais, 2) apreciação
favorável pelos já iniciados e 3) juramento pelo neófito para selar a sua recepção como
membro.
Segundo Jesod Bonum (in Secrets de la Magie de Eliphas Lévi, edição Laffont, 2000), o
iniciado tem a lâmpada de Trismegisto, ou seja a razão iluminada pela ciência, o manto de
Apolonio, ou seja o completo autodomínio de si próprio, e o bastão dos patriarcas,
significando o apoio das forças ocultas e perpétuas da natureza. O iniciado é pois um homem
que se libertou de paixões, de constrangimentos e de superstições, pode avançar no
desconhecido, nas trevas da ignorância, apoiado no conhecimento que ganhou sobre si
próprio e sobre a Natureza, e depois partilhar com outros este estádio de elevação da sua
consciência.
O iniciado é pois alguém que atingiu a Luz, a compreensão de si, dos outros e da Natureza, e
assim goza com discrição do saber e o poder adquiridos, antecipa o futuro, trabalha o
presente, e recorda-se do passado. O verdadeiro iniciado não se abate, não desiste, não se
rende aos homens sem espiritualidade. E em maçonaria? A cerimónia de iniciação é
retomada de tradições imemoriais, algumas com registo na Bíblia, como o episódio de Hiram,
outras de origens diversas como a iniciação dos mistérios de Eleusis, ou dos cavaleiros
Templários.
Segundo Daniel Ligou, (Dictionnaire de la Franc Maçonnerie edição PUF, 1987). A inciação
maçónica é típica das sociedades secretas, em especial das corporações de mesteres da
idade média, e exige:
. adesão livre, pessoal e preparada
. inquérito e interrogatórios rituais
. tempo de espera da candidatura
. idoneidade e boa reputação civil
. apadrinhamento por maçon
. período de reflexão isolado
. provas simbólicas e rituais
. juramentos sobre o Livro Sagrado
. admissão formal e solene
. participação no ágape (banquete) fraternal.
Mas estes são os aspectos esotéricos, isto é exteriorizados, não constituem em si mesmo um
segredo, e mesmo os rituais que se acham abundantemente divulgados, revelam ao ínfimo
pormenor os detalhes dos procedimentos adoptados. O verdadeiro segredo maçónico da
iniciação está nos aspectos esotéricos, ou seja, vivenciados intimamente na consciência do
iniciado, em função do conhecimento de si próprio, adquirido face ao simbolismo cujo
significado lhe é revelado, e que lhe permite interiorizar a Luz espiritual do Grande
Arquitecto do Universo, e a compreensão da Criação.
É essencial a predisposição espiritual do candidato, e a sua maturidade psicológica, e
desejável a sua independência económica. O actual Grão Mestre da Maçonaria Regular
portuguesa, José Anes, (A Iniciação Maçónica, uma via de espiritualidade, in Religião e Ideal
Maçónico - convergências, edição da Universidade Nova de Lisboa, 1994), defende que só
pode ser iniciado quem já tem uma religião, ou que acredite no Grande Arquitecto do
Universo. A iniciação é pois o caminho para a inteligência do Transcendente, para a
compreensão da Harmonia do Universo, para a correcta situação do destino do Homem no
Cosmos. Em Maçonaria toma como referências uma tradição ancestral de arquitectura do
Templo de Salomão, de base operativa, de influência sacerdotal e de conotações
cavalheirescas, ao mesmo tempo, como se deduz da presença respectivamente, do esquadro
e do compasso, do Livro da Lei Sagrada, e da espada.
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Sem desprimor para outras iniciações esotéricas, esta será porventura uma das mais
completas face à História conhecida da Humanidade. E não receamos identificar a iniciação
maçónica regular como muito superior à iniciação maçónica irregular, porque, recusando
esta última a espiritualidade do sagrado, mais não é do que a admissão humanística num
circulo de amizades e solidariedade profanas, embora de elevado sentido cívico, como
resulta dos valores da liberdade, da fraternidade e da igualdade. É porém grande a diferença
entre valores materiais e valores espirituais, e que resultam dos diferentes planos, o
imanente e o transcendente. A grande questão é saber se a iniciação maçónica implica uma
morte e um renascimento como a quase unanimidade dos autores maçónicos sustentam, ou
se é antes a aquisição de um saber novo, uma iluminação, e uma ascese. Acima de tudo, a
iniciação é uma viagem espiritual que visa a obtenção de uma revelação do transcendente,
que o próprio iniciado adquire por vivência, sem que lhe seja transmitida exotericamente,
isto é explicitamente, pelos maçons reunidos para o efeito em Loja.
O maçon iniciado interioriza na sua intimidade, de consciência desperta pelo simbolismo, a
chave da criação do mundo, e a chave da sua própria criação humana, sempre a partir do
Kaos em que é lançado. Finda a cerimónia, se bem realizada e bem vivida, o iniciado
adquiriu um grau superior de saberes, que lhe permitirá continuar caminho para superiores
degraus de conhecimento e de integração universal. Existem muitos rituais maçónicos de
iniciação, e como já se disse, até disponíveis na internet, e por isso podem-se inventariar
alguns elementos comuns:
. o candidato apresenta-se vendado
. entra como numa caverna, numa sala que desconhece
. encontra inúmeros obstáculos de difícil percepção
. é sempre guiado pela mão por um condutor
. recebe indicações constantes de caracter ritual
. ouve sons de confrontos confusos
. é confrontado com o ar, o fogo, a água e a terra
. são-lhe propostos juramentos
. enfrenta na semi obscuridade ameaças potenciais
. é apaziguado com as luzes acesas, e com a visão do Templo
. são-lhe transmitidos sinais e palavras rituais
. é reconhecido como maçon, e recebido como um irmão
. é chamado a provar a sua solidariedade
. assiste a intervenções explicativas da cerimónia
. é investido com um avental e com luvas rituais
. depois da cerimónia participa numa refeição conjunta (ágape)
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Quem é maçon e ler estas linhas assume-as com um significado profundo. Quem o não é,
porque não foi iniciado, dificilmente delas retirará qualquer ensinamento e muito menos
qualquer revelação. Mesmo que uns digam que os procedimentos representaram a sua morte
como profano, e o seu renascimento como maçon, ou que se vá mais longe, e se explique
que de olhos vendados assistiu a criação do mundo e ao seu nascimento do ventre materno,
e assim compreendeu o fenómeno da criação. Aliás o fenómeno da criação que as mulheres,
por o serem, e poderem conceber, não necessitam de assistir em representação para
compreenderem uma realidade que lhes é imanente e não transcendente. Essa é Razão pela
qual, aliás, as mulheres não necessitam da iniciação maçónica para a sua vida espiritual, e
pelo que em nossa opinião não faz sentido a iniciação feminina maçónica, nem a maçonaria
mista, e muito menos feminina, e muito menos com rituais de nomenclatura masculina.
Subsiste uma interrogação. Então e Darwin não explicou pela teoria da evolução das
espécies que o Homem é que criou Deus á sua imagem, e não o inverso, já que com toda a
probabilidade o “homo sapiens” não é mais do que um elo na cadeia evolutiva dos
hominideos que há mais de 6 milhões de anos viveram no Quénia? Subiste outra
interrogação, mas a evolução do Homem explica-se apenas em termos terrestres? Então não
é verdade que um padre jesuíta George Coyne, director do Observatório Astronómico do
Vaticano, revelou recentemente (Diário de Noticias, 8 de Janeiro de 2002), a sua convicção
na existência de vida extraterrestre? E também não é verdade que ganha cada vez mais
adeptos a teoria de que a vida na terra, poderá ter tido origem noutros planetas, em
resultado da descoberta de bactérias a mais de 40 Km de altitude como noticiou o Correio da
Manhã de 1 de Agosto de 2001?
Terá assim plausibilidade a Teoria da Panspermia de Fred Hoyle e de Chandra
Wickramasinghe, de que a vida não nasce espontaneamente, mas está presente em toda a
parte, e viaja pelo cosmos fertilizando planetas, como uma espécie de semente universal,
conforme divulgado entre nós no II simpósio Internacional “Fronteiras da Ciência”, em
Setembro de 2001, na Universidade Fernando Pessoa, no Porto? E a ser assim, se há vida
em outros planetas (ou no espaço), será que a evolução da vida hominidea na Terra não
sofreu (beneficiou) de cruzamentos (experiências) de seres mais evoluídos, que teriam
inclusive estado na origem da própria civilização egípcia? Assim se justificaria que as
pirâmides tivessem sido projectadas bem antes da sua construção, cerca de 10.000 AC , em
vez da sua data de referência cerca do século III antes de Cristo? Será essa a data do início
da Maçonaria, ou seja da Sabedoria do Universo, e da possibilidade da capacidade humana
desenvolver o engenho de construção e de arquitectura?
Terá esse saber de origem divina e extraterrestre tido os seus continuadores nos grandes
iniciados?
Só o Grande Arquitecto do Universo tem a resposta. [1]
Sertã, ao Oriente de Portugal,
Ao sétimo dia, do terceiro mês de 6002
Luís Nandin de Carvalho
M.·.M.·., e Grão Mestre Ad Vitam da G.·.L.·.R.·.P.·..
Lendas e Tradições
SIMBOLISMO DOS MISTÉRIOS
"No final do séc. XVII e pricípio do séc. XIX, muitos europeus, incluido Maçons,
encaminharam-se para o Médio-Oriente, onde encontraram relíquias das culturas ancestrais
que haviam praticado os Antigos Mistérios. Os Maçons de espírito filosófico reconheceram
nelas semelhanças entre a sua Ordem e estas tradições ancestrais. Os simbolos
semelhantes, alguns dos quais, como a escada do Templo de Mithras, são partilhadas pela
Maçonaria, encorajando a linha de pensamento que defende a ligação intrínseca com estes
rituais ancestrais."
"Ainda que haja uma clara evidência de uma ligação genérica entre o Ofício e os Antigos
Mistérios, não há provas de como este material poderá ter sido transmitido ou de como
poderá ter permanecido escondido e imune à Idade Média e à acção da Inquisição." - W.
Kirk MacNulty, Freemasonry - A Journey through Ritual and Symbol
"A Maçonaria oculta os seus segredos de todos, à excepção dos seus seguidores e sábios, ou
os Eleitos, e utiliza falsas explicações e falsas interpretações dos seus simbolos para induzir
em erro aqueles que merecem ser induzidos em erro; para ocultar a Verdade, chamada de
Luz, destes e para a manter afastada dos mesmos."- General Albert Pike, Morals and
Dogma
Deve-se agora uma breve nota sobre Albert Pike. Pike (1809-91) era um Brigadeiro General
da Confederação durante a Guerra Civil Americana que, quase sozinho, foi responsável pela
criação da forma moderna do Rito Escocês Antigo e Aceite. Abastado, literado e detentor de
uma extensa biblioteca, foi o Líder Supremo da Ordem de 1859 até à data da sua morte,
tendo escrito diversos livros de História, Filosofia e viagens, sendo os mais famosos Moral e
Dogma. Excluindo os quase meio milhão de praticantes do R:.E:.A:.A:., a grande parte dos
maçons nunca leu a obra de Pike. Pike é frequentemente criticado pelos seus Irmãos Maçons
que o acusam de, com a sua visão mística e controversa, ter amplamente alimentado os
inimigos da Maçonaria.
"...O Rito é organizado como uma pirâmide, o majestoso túmulo de Hiram, no topo do qual
uma 'misteriosa escada' de sete degraus é colocada, semelhante ao caminho de Eraclitus,
que sobe e desce, sendo uma e a mesma. A imagem da pirâmide remete-nos de imediato
para os sepulcros egípcios e à viagem de desprendimento do corpo, subindo, que constitui o
objectivo da Iniciação. Simultaneamente, sintetiza de uma forma maravilhosa a
sedimentação de tradições que o Rito provocou..." - Maurizio Nicosia, The Sepulchre of
Osiris
'Let there be light!' - the Almighty spoke,
Refulgent streams from chaos broke,
To illume the rising earth!
Well pleas'd the Great Jehovah flood The Power Supreme pronounc'd it good,
And gave the planets birth!
In choral numbers Masons join,
To bless and praise this light divine."
- Poema maçónico de "Anthem III" in Ilustração da Maçonaria de William Preston
(1804)
II – O ARQUITECTO DO UNIVERSO
"De acordo com o Professor Cornford [do Royal College of Art], todas as pinturas dos velhos
mestres que investigou eram conformes com 'formas perfeitamente geométricas e/ou
subdivisões aritméticas do rectângulo'. Existiam dois tipos de sistemas básicos – um 'era
baseado na crença da Criação descrita em Timaeus, de Plato, e foi publicado por Alberti no
seu “Ten Books on Achitecture” (Florença, 1485). Este sistema procede pela utilização do
cálculo e da construção com instrumentos e teve grande adesão na Alta Renascença e no
período imediatamente seguinte, já que tanto desassociava a arte e a arquitectura das
velhas e manuais formas maçónicas de trabalho da Idade Média, como as associava à escola
humanística. Para além disso, o sistema numérico utilizado era uma espécie de invocação do
Divino enquanto a construção ou pintura se tornaram um ensaio microcósmico do acto
primário de criação."
"O outro tipo de sistema era o maçónico-geométrico. De acordo com o Professor Cornford,
este era 'incomparavelmente o mais antigo dos dois, parecendo de facto ser já conhecido
pelos antigos egípcios e à nossa própria cultura megalítica. Sobreviveu, frequentemente
rodeado de uma atmosfera de segredo do Ofício (ou até de culto), ao tempo de Alberti, e,
subsequentemente, desapareceu sem deixar rasto…”- Henry Lincoln, The Holy Place
“Quem seguisse o Caminho do Artífice teria de fazer uma coisa mais. Deveria lembrar
sempre que estava a construir o templo de Deus. Construía um edifício em consciência onde
ele mesmo era uma pedra individual e única. Com o tempo, cada ser humano polirá a sua
pedra e a colocará no Templo, e então o Templo estará completo; Deus comtemplará Deus
no Espelho da Existência e existirá então, como no Início, um único Deus.” - W. Kirk
MacNulty, The Way of the Craftsman
“Os Antigos Mistérios não deixaram de exitis quando o Cristianismo se tornou a religião mais
poderosa no mundo. O grande Pan não deixou de existir, e a Maçonaria é a prova da sua
sobrevivência. Os Mistérios pré-cristãos assumiram, simplesmente, o simbolismo da nova fé,
perpetuando por meio dos seus simbolos e alegorias as mesmas verdades que possuídas
pelos sábios desde o prícipio do mundo. Não há, portanto, uma verdadeira explicação para o
facto de simbolos cristãos encerrarem em si o que é escondido pela filosofia pagã. Sem as
misteriosas chaves transportadas pelos líderes dos cultos egípcio, brâname e persa, os
portais da Sabedoria não poderiam ser abertos.” - Manly P. Hall, Masonic, Hermetic,
Quabbalistic & Rosicrucian Symbolical Philosophy
“Porque Ele (Deus) é o Construtor e Arquitecto do Templo do Universo; ele é o Verbum
Sapienti." - Yost, i, 411
“No Timaeus de Plato aparece a primeira alusão ao Criador enquanto ‘Arquitecto do
Universo’. O Criador, em Timaeus, é chamado ‘tekton’, ou ‘mestre construtor’. 'Arche-tekton'
denota, por conseguinte, 'mestre artífice' ou 'mestre constutor'. Para Plato, o 'arche-tekton'
traçou o cosmos por meio da geometria.” - Baigent & Leigh, The Temple and the Lodge
“Apesar de a Maçonaria requerer que os seus candidatos confirmem a sua crença em Deus,
não aprofunda o sujeito, deixando a religião e sua prática ao Maçon enquanto indivíduo.”
(nota de tradução: isto pretende afirmar que a Maçonaria requer a crença num Deus, não
forçosamente o Deus Cristão) “Assim, é possibilitado a homens de todas as religiões o
acesso ao estudo dos princípios morais e filosóficos da Maçonaria.” - W. Kirk MacNulty,
Freemasonry - A Journey through Ritual and Symb
Esta secção refere-nos a ligação entre a Maçonaria e o Antigo Egipto, que tem largamente
sido relatada através de lendas, como a do assassínio do mestre Hiram Abiff. Sempre que
seja propício, novos artigos serão publicados, tentando estabalecer uma relação mais
concreta entre ambos.
I – O ASSASSÍNIO DE HIRAM ABIFF
"A lenda do Mestre Construtor [Hiram Abiff] é a grande alegoria maçónica. Na realidade, a
sua história figurativa é baseada numa personalidade das Sagradas Escrituras, mas os seus
antecedentes históricos são de acontecimentos e não da essência; o significado reside na
alegoria e não em qualquer facto histórico que possa estar por detrás." - A.E. Waite, New
Encyclopedia of Freemasonry
A lenda de Hiram Abiff está intrinsecamente ligada às origens do Templarismo Germânico.
"Alguns deste manuscritos do século XVII [preservando as 'Old Charges'] não se referem a
Hiram Abif, o que levou alguns a crer que esta «personagem» seria uma invenção de um
período mais recente. Todavia, o nome Hiram Abif era meramente uma das designações
desta figura fulcral; ele é também mencionado como sendo Aymon, Aymen, Amnon, A Man
ou Amen e, por vezes, Bennaim. É dito que Amen é a palavra hebraica para 'aquele em que
se confia' ou 'o crente', o que se aplica perfeitamente ao papel de Hiram Abiff. Mas é
também sabido que Amon or Amen é o nome do deus ancestral da criação de Thebas, a
cidade de Sequenere Tao II. Poderá aqui existir uma ligação ancestral?" - Christopher
Knight & Robert Lomas, The Hiram Key: Pharaohs, Freemasons and the Discovery
of the Secret Scrolls of
Jesus.
"Para o construtor iniciado,
o nome Hiram Abiff
significa 'Meu Pai, o
Espírito Universal, uno em essênciao, três em aparência.' Ainda que o Mestre assassinado
seja o estereotipo do Mártir Cósmico – O Espírito crucificado do Bem, o Deus moribundo –
cujo Mistério é celebrado por todo o mundo."
"Os esforços levados a cabo para descobrir a origem da lenda de Hiram demonstram que,
apesar da forma relativamente moderna de representação da lenda, os seus princípios
fundamentais remontam a uma longínqua Antiguidade. É habitualmente reconhecido pelos
estudiosos maçónicos que a história do martirizado Hiram é baseada em antigos rituais
egípcios do deus Osiris, cuja morte e ressurreição retratam a morte espiritual do Homem e
sua regeneração através da iniciação nos Mistérios. Hiram é também identificado com
Hermes através da inscrição na Placa de Esmeralda." - Manly P. Hall, Masonic, Hermetic,
Quabbalistic & Rosicrucian Symbolical Philosophy
"De acordo com as Escrituras, Hiram não era um arquitecto, mas um mestre no trabalho do
latão e bronze. Ele não terá sido assassinado, mas terá vivido para ver o templo construido,
tendo então regressado à sua terra natal." - Baigent & Leigh, The Temple and the
Lodge
"A única explicação razoável para se ter chegado ao verdadeiro nome do heroi maçónico é
que Hiram significava 'nobre' or 'real' em Hebreu, enquanto Abiff foi identificado como sendo
francês antigo para 'o que se perdeu', originando uma descrição literal de 'o rei que se
perdeu'." - Christopher Knight & Robert Lomas, The Hiram Key: Pharaohs,
Freemasons and the Discovery of the Secret Scrolls of Jesus
Knight e Lomas avançam a teoria de que Hiram Abif era, na realidade,
Sequenere Tao II, o verdadeiro rei egípcio que viveu em Thebas, cerca
de 640 kilómetros a sul de Hyksos, capital de Avaris, perto dos limites
do reino de Hyksos. Sequenere era o "novo rei do egipto, que não
conhecia José", que foi vizir por volta de 1570 A.C. Apophis, especulase, quereria conhecer os rituais secretos de Horus, que permitiam ao
faraós transformarem-se em Osiris na morte e viver eternamente como
uma estrela. Apophis enviou homens a seu soldo para extrair a informação de Sequenere,
mas ele mais facilmente morreria com violentas pancadas na cabeça antes de contar alguma
coisa; na verdade, foi o que aconteceu.
A identificação de Hiram Abif como sendo Sequenere baseia-se no crânio da múmia, o qual
parece ter sido esmagado por três golpes aguçados, como os que foram deferidos em Hiram
Abif. E quanto aos assassinos descritos no folclore maçónico como Judeus? Knight e Lomas
sugerem que estes serão dois dos irmãos expatriados de José, Simeon e Levi, auxiliados por
um jovem padre de Thebast. Como prova, Knight e Lomas apontam a múmia encontrada ao
lado da de Sequenere. O corpo não embalsamado pertencia a um jovem que morreu com os
orgãos genitais cortados, e com um estertor de agonia no rosto. Teria ele sido enterrado vivo
como castigo pelo seu crime?
"Os rituais maçónicos referem Hiram Abif como o 'Filho da Viúva'... na lenda egípcia, o
primeiro Horus foi concebido após a morte de seu pai, pelo que a mãe já era viúva mesmo
antes da concepção. Parece lógico que, todos os que, daí em diante, se tornaram Horus, i.e.,
os reis do Egipto, se apelidaram de 'Filho da Viúva'" [ver «Isis, the Black Virgin» para mais
informação.] - Christopher Knight & Robert Lomas, The Hiram Key: Pharaohs,
Freemasons and the Discovery of the Secret Scrolls of Jesus.
II - THOTH E ENOCH
“No antigo Egipto, aos engenheiros, projectistas, e maçons que trabalhavam nos grandes
projectos arquitectónicos era concedido um estatuto especial. Eram organizados em
corporações (ou associações) de elite…”
“Foram encontradas, pelo arqueólogo Petrie, provas da existência dessas corporações
especiais, durante as suas expedições ao deserto do Líbano em 1888 e 1889. Nas ruínas de
uma cidade construída por volta de 300 a.C., a expedição do dr. Petrie descobriu diversos
registos em papiro. Uma parte descrevia uma corporação que mantinha reuniões secretas
por volta de 2000 a.C.. A corporação reunia-se para discutir o nº de horas de trabalho,
salários e regulamentos do trabalho diário. Reunia-se num local de culto e providenciava
apoio a viúvas, orfãos e trabalhadores em dificuldades. Os
deveres organizacionais descritos nos papiros são
extremamente semelhantes áqueles atribuidos ao
‘Vigilante’ e ‘Venerável’ num ramo moderno da….
Maçonaria.” - William Bramley, The Gods of Eden
“Eu sou o grande Deus na barca divina… sou um simples
padre no inferno da sagração de Abido, subindo a degraus
mais altos da Iniciação… sou o Grande Mestre dos artífices
que elevaram o arco sagrado como suporte.” - Thoth to
Osiris, The Egyptian Book of the Dead
“De acordo com uma velha tradição maçónica, o Deus
egípcio Thoth ‘teve grande participação na preservação do conhecimento do ofício maçónico
e na sua transmissão á humanidade após as grandes cheias…’ - David Stevenson, The
Origins of Freemasonry
“…O autor de um estudo académico bem fundamentado [The Origins of Freemasonry]…
chegou ao ponto de dizer que, no ínicio, os Maçons consideravam Thoth como o seu
patrono.”
“…O Livro de Enoch foi sempre de grande significado para a Maçonaria, e… certos rituais
anteriores à época de Bruce (1730-1794) identificavam Enoch com Thoth, o Deus egípcio da
Sabedoria.” Na Royal Masonic Cyclopaedia há uma entrada referindo que ‘Enoch é o inventor
da escrita’, ‘que ensinava aos homens a arte da construção’ e que, antes das cheias, ele
‘temia que os verdadeiros segredos se perdessem – para o prevenir este escondeu o Grande
Segredo, gravado numa pedra de pórfiro e enterrado nas entranhas da Terra’.” - Graham
Hancock, The Sign and the Seal.
TOT
Excelso lótus de névoas diamantinas, irresistivelmente perfumado pelo
mais místico delirar da poesia, que um ósculo da Via Láctea,
lascivamente eivado de feitiçaria pagã, semeara nos lábios constelados
do Infinito, a Lua saciava a sede de Tot com o orvalho de magia
cósmica que as pétalas de seu corpo astral rociava, docemente. Seu refulgente olhar de
feitiços de prata, supremo vidente dos enigmáticos oráculos do Universo, convidava-o a
colher o fruto de imortalidade que abençoava o seu paraíso de luz imaculada, etereamente
recamado de nascentes de sapiência ancestral, que se ofereciam, na magnificência de seu
esplendor secular, a todos aqueles que se proponham a errar pela noite da vida, guiados
pela estrela peregrina do conhecimento, eterna pedra filosofal, esculpida por Tot no apogeu
da Criação, que convertia as trevas plúmbeas da ignorância, qual abismo onde somente o
caos se manifestava, na luz transcendental, inebriante brisa de ouro, que acariciava o
nascimento do jardim da humanidade, a fim de nele depositar a semente da sabedoria
divina. Com efeito, Tot era proclamado, pelos fervorosos teólogos de Hermopólis, eterno imo
do seu culto, como o lídimo Ourives da Criação, que, qual demiurgo universal incarnara uma
íbis, a fim de chocar o ovo do mundo, tingindo de seguida na tela do universo vítreo, a
excelso pintura da vida, numa obra de arte ímpar apenas concebida
pela magnificência do som de sua voz.
Esta cosmogonia esculpe no ouro da sua identidade a personificação
da inteligência divina, imprescindível naquele que não era senão
uma deidade criadora e auto- criada, indigitando-o assim líder da
Ogdóade de Hermopólis, um grupo de oito deuses, mais
exactamente de quatro casais, sendo os homens facilmente
reconhecidos através das suas cabeças de rã, em contraste com as
suas esposas que ostentavam cabeças de serpente. Este grupo
divino incarnava os pilares que haviam sustido a fundação do Universo: o casal original, isto
é, aquele que Nun, personificação do oceano primordial, e Nunet, espaço celeste suspenso
sob o abismo, constituíam; o casal Hehu e Hehet, ou seja, os espaços imensuráveis e
impossíveis de destinguir subjacentes ao caos; o casal Keku e Keket, fruto das trevas e
obscuridade; e por fim Ámon e Amaunet, símbolos do desconhecido, ou seja, dos enigmas
que haviam nimbado o caos. A cidade edificada em honra destes oito deuses, actualmente
denominada de El- Achmunein, era conhecida primitivamente por Khemenu, ou, na
realidade, “A cidade dos oito deuses”. Todavia, a identificação vinculada entre Tot e Hermes,
permitiu aos gregos apelidarem-na de Hermopólis, epíteto que se difundiu e estabeleceu
através do tempo e das civilizações. Não obstante a noite pejada de obscuridade que vela o
seu nascimento (determinadas fontes afirmam que Tot nasceu do crânio de Set, enquanto
outras proclamam que o deus- íbis floresceu do coração do criador num momento de
melancolia), indubitável é a sublimidade da chama de sabedoria divina, ateada pela suas
invejáveis sagacidade e perícia, que dança na alma do arguto deus- íbis. Como soberano do
fecundo reino do conhecimento, Tot sentiu ser vital a difusão dos insignes tesouros que este
em sua imensidão guardava, pelo que abraçou a resolução de inventar um instrumento apto
a garantir a transmissão perpétua das ciências por ele cultivadas: a escrita. Qual primeiro
raio de luz bailando nos jardins dos céus, a escrita fende o luto da noite, a fim de passear
pelas fragrantes rosas dos hieróglifos, de brincar na árvore da comunicação, que o Verbo e a
Palavra, doce frutos dos deuses, coroavam num halo de fastígio.
A poesia, primeira manhã do mundo das almas, é cálice de Sol vertido pela taça de sua
sapiência. Os livros, alimento do intelecto, seu testemunho. Em harmonia com esta
ideologia, os Egípcios aludiam aos seus hieróglifos como medu- netjer, ou seja, “palavras do
deus”, numa flagrante oblação ao deus- íbis. Enquanto fautor da escrita, perpétua arauta do
pensamento, Tot conquistou o epíteto de neb medu- netjer, em português “O Soberano das
Palavras Mágicas”. Ao integrar a elite do panteão egípcio, Tot converte-se em depositário das
confidências do excelso soberano dos deuses, equivalente ao faraó na terra, garantindo
assim a denominação de “Ré disse; Tot escreveu”. Não constitui, deste modo, qualquer
surpresa constatar que, num ápice, Tot alcançou a preeminente posição de guardião dos
arquivos divinos, emissário e escriba dos deuses. No seio da comunidade celestial, é o deusíbis quem abraça a incumbência de permitir que a praia de luz, formada pelos cristais de luz
das etéreas almas dos deuses egípcios, seja docemente banhada pelo mar da harmonia
cósmica. Por conseguinte, era ele que, através da análise das inúmeras regras ditadas pelo
criador na fundação do Universo, procura solucionar todas as querelas e desaires semeados
na sociedade dos céus. Desta forma, buscando a aplicação das leis estabelecidas aquando da
excelsa matriz da vida, os deuses reuniam-se em assembleias, marcando o início de morosos
julgamentos que, com frequência, se prolongavam durante alguns anos. Escutadas e
interpretadas todas as vozes envolvidas nos debates e recontros, Tot evoca a sua sapiência e
sela o julgamento com uma decisão apta a implantar a paz, onde outrora o caos reinara.
Resolução alguma deverá sem perpetrada sem o consentimento do escriba divino.
A polivalência intelectual de Tot faculta-lhe a
prerrogativa de invadir e conquistar todo o reino das
ciências, pelo que ele é igualmente o deus das
matemáticas, o calculador primordial e imbatível.
Dominando a criatividade e a razão, o deus- íbis ousou
estipular sozinho os limites dos nomos e as fronteiras
das terras, concebendo assim “o ordenamento do País Duplo (Egipto) e a organização das
províncias; e não hesitou em erguer todos os santuários dos deuses, dado possuir o
monopólio do traçado e das plantas. Além de oferecer-lhe o título de “Arquitecto Divino”,
esta liberdade tornou-o também patrono dos escribas, dos médicos, dos mágicos e dos
arquitectos. Vestido pelo sumptuoso cetim de prata que o luar tece na magia do Infinito, Tot
preside igualmente ao festim de feitiços e sonhos, oferecido pela noite no seu excelso palácio
de abismos constelados. Incarnação da Lua, eterna maga de fantasias pagãs, Tot fendia a
mortalha de trevas e pez que sufocava a essência da noite com a luz imaculada de sua
adaga de feitiçaria divina. No cosmos do tempo, a intemporal estrela de um mito imortaliza
com seu fulgir ofuscante o incidente que inspirou ao deus- íbis a poesia da Lua. Segundo
este, Ré, cujo coração exânime, dilacerado pelos infindáveis conflitos da humanidade,
naufragava nos mares da exaustão do sentir e do querer, cede à tentação de abdicar
parcialmente da sua existência na terra, em prole de uma vida serena nas alturas celestes. O
seu auto- exílio lança o tempo no abismo do caos, visto que doravante o astro- rei somente
abençoaria a os seus súbditos terrenos durante o dia, abandonando-os, por conseguinte, às
trevas e ao caos, no decorrer da sua viagem pelo mundo subterrâneo. Receando pela sorte
da alma humana, Ré evoca então Tot, a fim de o indigitar seu substituto. O poderoso
regente dos céus proclamou então: “ Farei com que rodeies os dois céus com tua beleza e
claridade. E assim nascerá a Lua”. O seu passeio compassado pelos vales dos céus
privilegiou-o com outro dos céus díspares epítetos: “Touro entre as estrelas”. Esta vertente
de substituto do Sol durante a noite justificou igualmente que, durante a Época Baixa, o
apelidassem de “Áton de prata”.
Tornado Senhor do Tempo e das Estrelas, Tot ou “Governante dos anos”
sonhara igualmente o calendário, permitindo uma distinção entre os dias, os
meses, as estações e os anos. De facto, o deus íbis cometeu a audácia de
reinventar o conceito de tempo, a fim de prestar auxílio à deusa Nut,
incarnação do céu, que, seu o consentimento de Ré se havia unido a Geb,
personificação da terra, em lustrais núpcias divinas, fomentando assim a ira
do regente supremo dos deuses, que, irado, coagiu Chu a apartar os dois
amantes clandestinos, num ímpio desaire: Nut, grávida de cinco meses,
jamais poderia dar à luz no espaço de tempo compreendido pelo calendário oficial. Por
conseguinte, Tot, saboreando o néctar de criatividade que resvalava do fruto de sua
extasiante inteligência, propôs-se a jogar aos dados com a lua, na ânsia de obter cinco dias
suplementares, isto é, a septuagésima segunda parte da sua luz, que acolhessem o
nascimento dos cinco filhos de Nut (Osíris, Set, Ísis, Néftis, e Horús, o Antigo). Outra flor de
míticos encantamentos, vogando sem rumo na corrente do translúcido Nilo da mitologia
egípcia, insinua-se em nossos sentidos, através do seu perfume de quimeras ancestrais,
convidando-nos a presenciar um dos mais ferozes recontros que opôs Hórus a seu tio Set e
que culminou com o dilacerar do olho esquerdo do deus falcão (personificação da Lua, em
contraste com o olho direito que simbolizava o Sol). Prontamente, Tot ofereceu-lhe os seus
préstimos, restaurando a visão a Hórus, ao substituir o olho dilacerado pelo amuleto uadjet,
o que restituiu a harmonia ao cosmos e a magia ao deus- falcão.
Coroado pela sua beatífica sabedoria regente do generoso éden do
conhecimento, Tot esculpira o seu trono na prata da Lua e o seu ceptro na
jóia rara da magia suprema. Efectivamente, encontramos em Hermopólis,
sua morada eterna, um tempo luxuriante, cujas criptas acolhiam papiros
místicos, redigidos por aquele que constituíra o primeiro dos mágicos,
venerado e imitado por todos os seus devotos discípulos. Estes, na ânsia de
desbravarem a floresta proibida do conhecimento, em cujo coração pulsava
a essência da magia, elevavam preces a Ré, crentes de que este conduziria Tot até eles: “Ó
velho que rejuvenesceu no seu tempo, velho que se tornou criança, possas tu fazer com que
Tot venha até mim, respondendo ao meu chamado”. A mitologia egípcia atribui-lhe a autoria
das díspares fórmulas mágicas e textos simbólicos que o morto, ou melhor, o maé- kheru
(justificado) ou maet- kheru (justificada) pronunciavam ao franquear as portas do Além e,
mais exactamente, no decorrer do julgamento celestial, presidido por Osíris. Suspiros do
passado confiam-nos que Tot legou também à eternidade um livro de magia e quarenta e
dois volumes, que testemunhavam, sustinham e renovavam toda a magia do cosmos. Por
conseguinte, prestar culto ao deus- íbis revelava-se incontornável e, na realidade, capital,
para qualquer sábio. De facto, todos os escribas que ornavam de sabedoria a alma do
Egipto, desde os mais humildes aprendizes, ou em egípcio, sebati, ao mais proeminente
mestre (sebá) ritualizavam a sua devoção, derramando algumas gotas de tinta numa notória
oblação a Tot.
Por último, Tot tece, juntamente com inúmeras outras deidades, o destino dos inumados no
Além, exercendo a função de escriba divino e arauto dos deuses fúnebres. Desta forma, é ele
quem introduz o defunto no recinto celestial onde será julgado, para, após a pesagem do
coração deste, registar, nas tabuinhas sagradas, o veredicto proferido por Maet. Os sonhos
de amor que a existência semeava no coração de Tot eram cultivados e ditados pela noite da
geografia e pelas veleidades e metamorfoses da alma humana, pois em Hermopólis, o deusíbis era proclamado esposo da sagaz Sechat, deusa dos anais e da
história, que lhe ofereceu um filho de nome Hornub, enquanto que em
Heliópolis Nehemetauai, isto é, “aquela que erradica o mal” era tomada
por sua mulher, concebendo com ele Hornefer. Alguns devaneios da
mitologia revelam que Tot desposou igualmente Maet, a etérea filha de
Ré, versão suplantada por aquela que consignava a união de Tot e
Tefnut, resultante da fuga do Olho de Ré para a Núbia, sob a forma da
graciosa deusa. Incumbido de a restituir ao seu legítimo proprietário, o
deus– íbis não terá resistido aos seus encantos, desposando-a no seu
retorno ao Egipto. Porém, enquanto entidade intelectualmente superior, abençoada pela
consciência da incomensurabilidade da sua sagacidade, Tot bebe da fonte da pretensão,
tornando-se terrivelmente enfadonho, displicente e com uma hedionda propensão a exibir a
sua inteligência através de uma retórica prolixa, escrava de uma abominável e excessiva
facúndia, tal como sugere um determinado episódio do mito osírico: Na ânsia de escapar à
pravidade do deus Seth, Ísis, sustendo nos braços seu filho Hórus, toma os pântanos de
Chemnis, como seu refúgio de eleição. Coagida pela escassez de alimentos, a deusa
abandona todas as manhãs o seu filho, a fim de assegurar a subsistência de ambos.
Contudo, uma noite, ao retornar de mais uma extenuante peregrinação em busca de géneros
alimentares, Ísis deparou-se com Hórus inconsciente e, desesperada, evocou Rá, que, por
seu turno, não hesitou em solicitar a Tot que restituísse a saúde à criança. Após examinar
cuidadosamente o enfermo, o eloquente deus- íbis lançou-se em abstractas cogitações,
extravasadas sob a forma de praguejos pontuais e monólogos facundos e muito pouco
apropriados. Exasperada com a sua inércia, Ísis arrebata Tot aos seus devaneios,
admoestando-o severamente por “sábio ser o seu coração, mas terrivelmente demoradas as
suas resoluções”.
Detalhes e vocabulário egípcio:
Tot era designado, em egípcio, por Djehuti, numa hipotética alusão a Djehut, a décima
quinta província do Baixo Egipto, cuja denominação evocava o íbis, um dos seus animais
sagrados.
Tal como já referido, o insigne mestre do Verbo era representado como um homem com
cabeça de íbis, ornada pelo disco da Lua ou por uma coroa atef com o disco, uraeus e
chifres. Em suas mãos, Tot sustém um cálamo e uma paleta de escriba. É sob esta forma
que o deus- íbis regista os nomes dos faraós nas folhas da divina árvore persea, aquando da
sua ascensão ao imponente trono do Egipto. Todavia, Tot surge-nos igualmente enquanto
íbis ou, eventualmente, sob a forma de um babuíno.
Emissária das leis cósmicas, a magia, ciência divina personificada por Tot, é soberana do
universo egípcio, instituindo um reinado de coesão espiritual que encontra na “mulher sábia”
uma das suas maiores depositárias,. Tal como nos sugerem os arquivos de Set Maet, “Lugar
de Verdade”, povoação alguma, independentemente do seu tamanho, se privava da
protecção destas grandes magas. Habilitada a instaurar a harmonia onde o caos reinava, a
exonerar as forças malignas e a preconizar o futuro, esta vidente surge-nos com frequência
ajoelhada defronte de Tot, que sem hesitar a convidava a franquear a sua morada de
sabedoria.
Sechat- Deusa da escrita e da medição, usualmente retractada como uma mulher
envergando um vestido de pele de pantera. Em sua cabeça, insinuava-se um toucado com
uma estrela de sete pontas e um arco. Juntamente com Tot, a sua versão masculina,
inscrevia o nome dos faraós indigitados na sagrada árvore persea. A II Dinastia concedeu-lhe
o privilégio de assistir o regente terreno no ritual de fundação de “esticar a corda”. A partir
do Médio Império, a sua efígie é uma constante nos cenas dos templos dedicadas às
campanhas militares, sendo representada a registar o número de cativos e despojos de
guerra conquistados pelo Egipto. O Império Novo associou-a também ao festival jubilar Seb.
A deusa Sechat consagrou-se igualmente regente da Casa da Vida, onde se compunham os
rituais vitais para a conservação da harmonia cósmica e onde os faraós eram iniciados nos
enigmas da sua função. Patrona das bibliotecas e protectora dos textos fundamentais,
Sechat regista a oratória da vida com seu pincel divino, ditando nos contornos de suas
palavras o destino dos faraós, tal como é demonstrado no templo de Séti I em Abidos: “A
minha mão escreve o seu longo tempo de vida, a saber: do que sai da boca da Luz Divina
(Ré), o meu pincel traça a eternidade; a minha tinta, o tempo; o meu tinteiro, as inúmeras
festas de regeneração.”
NÉFTIS
Qual peregrino de luz, o magnificente Sol da alma humana vagueia,
cativo de um rumo fadado pela harmonia cósmica, pela excelsa abóbada
celeste da vida, até alcançar, no apogeu da teosofia de seu esplendor, o
etéreo santuário da paz eterna, edificado pela imortalidade do espírito
sobre as nuvens elísias da sus extinção terrena. Franquear as portas do
Ocidente, eterna pátria de luz, onde os justos, despojados da sua
mortalidade, celebravam o rito da felicidade intemporal, constituía, no
Antigo Egipto, o expoente máximo da terrena peregrinação pela beatífica vereda da rectidão
espiritual.
Saciados os céus da alma humana na tempestade do viver, eterno festival de paixões em
chama, onde, entre a sumptuosidade de um banquete de relâmpagos se brindava à luz da
verdade, o corpo, lavado do seu sentir pela chuva da morte, era então convertido em
múmia, para que, no fausto de um funeral destinado a contar a natureza eternal do espírito,
este vosso sepultado de forma honrosa. Um surpreendente halo de festividade nimbava os
funerais, quão clímax da existência, em torno do qual o pensamento dos Egípcios orbitava,
entre um rol imensurável de preparativos e economias. Inebriados com promessas de
imortalidade, apressavam-se a erguer e ornamentar túmulos, a adquirir os vitais caixões,
seguidos de sumptuosas imitações de componentes do seu quotidiano, que o defunto
desejava que o acompanhassem na sua derradeira viagem. Na realidade, esta ideologia era
alimentada por uma fracção do produto nacional bruto, que, num ápice, desvanecia-se, entre
as mãos de um conjunto económico, encarregue de ocupar-se da fabricação de determinados
arranjos funerários. A oeste das cidades egípcias, palco da extinção do fulgor solar, estendese a imensidão da orla do deserto, sobre a qual foram, imponentemente, erigidas as
sagradas necrópoles, sublimes complexos funerários. Desta forma, perto de Mênfis, saúdamnos Saqqara, Guiza, Abusir, entre inúmeros outros.
Por seu turno, Tebas entregou a sua necrópole à margem ocidental do Nilo, eterna residência
de Meretseger, deusa do Ocidente, cujo nome significa “Aquela que ama o silêncio” e que, na
realidade, se tornou na perpétua vigilante do deus- chacal Anúbis. Ultimados setenta dias
nas moradias dos embalsamadores, o corpo já mumificado é enfim depositado num caixão
aberto, faustosamente recamado, que se coloca, de seguida, sobre um carro de arrasto,
puxado por uma junta de bois ao longo de todo o soberbo cortejo fúnebre. Precedendo-o,
eleva-se a fragrância dos incenso espalhados pelos sacerdotes e os lamentos lancinantes das
carpideiras ( elementos vitais num funeral, mas, que, dado o seu elevado custo, eram
apenas acessíveis aos mais abastados), que caminham com os cabelos despenteados e os
bustos nus; fulguram as jóias, móveis, vestes, cofres e cosméticos, transportados por
escravos até à derradeira morada do morto; e escutam-se os passos lentos da família e dos
amigos. Uma tempestade de lamentos sacia, num banquete de relâmpagos de dor e trovões
de gritados pelo sofrimento, a sacra Natureza espiritual do defunto. Num eterno brinde à
saudade, realizado que as lágrimas vertidas pelos céus de seus olhares, as carpideiras
recitam fórmulas harmoniosas, que, quais estrelas guias, conduziriam a alma dos entes
queridos até ao fecundo paraíso do Além. De facto, estas mulheres, cantoras da deusa
Háthor, desfrutavam de um diversificado leque de textos e cânticos, nos quais era evocado o
deserto de intempéries que o espírito nómada do defunto teria de atravessar, para alcançar
o sublime oásis da regeneração, onde a sua sede de vida seria por fim saciada.
Às duas carpideiras primordiais, concede-se o epíteto de “djeryt”, isto é,
“milhafres fêmea”, incarnando assim as aves de rapina que velavam pelo
sarcófago. As suas etéreas silhuetas inebriam, adornam e purificam
igualmente a barca sagrada que permite ao ataúde alcançar as
acolhedoras margens do éden dos juntos. Estas duas aves não são senão
poema de luz inspirado por Ísis, “a grande carpideira” e Néftis, “a pequena
carpideira”. Qual jardim de constelações, semeado no cosmos da
sublimidade, Néftis não desabrochava para o conhecimento, quando
privada da Primavera de luz, incarnada por sua irmã. Juntas, inebriavam o
Infinito com o perfume de harmonia fraternal que se desprendia das rosas
de estrelas florescidas da sua união. Pertencente à última geração celestial
da famigerada enéade de Heliópolis, Néftis é fruto colhido do paraíso de amor sonhado pela
fusão do céu, Nut, e da terra, Geb. Embora o sagrado ourives do matrimónio tenha
entretecido o seu destino ao de Seth, seu irmão, foi Osíris, divino esposo de Ísis, quem a
convidou a saciar a sua sede no cálice de uma outra vida, ao oferecer-lhe um filho: o deus
chacal Anúbis. Numa complementaridade cobiçada pela terra e pelo céu, Ísis é mãe de
Hórus, enquanto que Néftis se revela sua ama, tal como sugere o seguinte texto: “Ele é
Hórus. Sua mãe, Ísis deu-o à luz, ao passo que Néftis embalou-o”. Personificando o eterno
jogo de luzes e sombras perpetrado pelo dia e pela noite, Ísis incarna o nascimento e a luz,
enquanto que, num contraste alucinante, Néftis estigmatiza o exício e a penumbra,
materializando nesta excelsa fusão toda a magia dispersa pelo Universo.
Por oposição a sua irmã, cujo culto era celebrado em diversos templos, disseminados um
pouco por todo o país, Néftis não era venerada de forma isolada, privando-se assim de uma
existência autónoma, facto que justificava a sua constante aparição ao lado de Ísis. A sua
associação ao culto dos mortos aflorou do mito osírico, no decorrer do qual a sua presença é
incontornável. Este, tal como referido anteriormente, relata que, após o assassinato e
desmembramento de Osíris, as duas irmãs unem-se para recolher todos os pedaços do corpo
do defunto, num ritual álgido, ritmado por lamentações vestidas de lágrimas, saudade e dor.
Coroada de sucesso a diligência a que se haviam proposto, Ísis e Néftis entrelaçam os
acordes de sua voz numa melopeia plangente, ornada de comoção: “Graças a nós olvidaste a
mágoa. Nós reunimos teus membros e velámos por teu corpo. Vem ao nosso encontro para
que o teu inimigo seja esquecido. Regressa sob a forma que detinhas na terra. Exonera a tua
ira e concede-nos a tua clemência, Senhor. Retoma a herança do País Duplo (Egipto), tu, o
deus único, cujos desígnios revelam-se benéficos para as divindades. Retorna, pois, sem
receios, à tua morada!” A iluminada semente de luz depositada pelo amor de Ísis e pela
compaixão de Néftis, no éden do horizonte, desponta por fim sob a forma da flor da aurora,
cuja beleza orvalhada de feitiços de paixão anuncia ao céu a ressurreição de Osíris,
restituindo o seu trono de turquesas ao Sol da vida eterna. Numa flagrante analogia deste
magnificente episódio da mitologia egípcia, Néftis e sua irmã são incumbidas de velar pelo
morto, no insondável enigma do Além. Por conseguinte, esta primeira era representada na
cabeceira dos sarcófagos reais do Império Novo, enquanto que, por seu turno, Ísis surgia
aos pés do mesmo, da mesma forma que não raras vezes eram evocadas em cenas do
julgamento dos mortos. É função das duas deusas serem efígie do barco que transportará o
defunto na sua derradeira viagem até ao país da luz. De igual modo, e juntamente com
Selkis e Neit, oferecem a sua protecção aos vasos canópicos, onde as vísceras do falecido
eram conservadas.
Néftis, ou em egípcio Nebhwt, ou seja, “A Senhora da Casa”, era
retractada como uma mulher, cuja cabeça se encontrava adornada
com um toucado formado por dois símbolos hieroglíficos, destinados a
representar o seu nome, isto é, “neb”, o cesto, e “hwt”, a planta da
casa. Esta deusa foi igualmente associada ao deus babuíno Hapi e, na
Época Baixa, à deusa Anuket, tendo com ela sido adorada em Kom
Mer, no Alto Egipto. Egípcias como Ny-Anq-Háthor isto é, “Aquela que pertence à vida,
Háthor” abraçavam a prerrogativa de incarnarem as duas deusas irmãs, recitavam as
lamentações proferidas por Ísis e Néftis num ritual que restituíra a vida a Osíris. Na festa das
carpideiras, cânticos e músicas inebriavam os sentidos, preludiando o renascer do deus
assassinado. Convertida a essência humana em essência divina, pela transfiguração de todos
os defuntos em Osíris, as carpideiras suplicavam a ressurreição espiritual do morto, ao longo
de todo o cortejo fúnebre. As cenas representativas dos mesmos são uma constante nas
paredes dos túmulos de personagens tão proeminentes, como é o caso de Ramsés, que
legou à eternidade os lamentos embebidos em lágrimas e impregnados de um desespero
ensaiado, que as carpideiras proferiam, entusiasticamente.
Quando por fim se achava diante do túmulo, a múmia é então retirada do seu caixão e
suspensa nos braços de um sacerdote embalsamador, cujo semblante mantém-se oculto por
uma máscara de Anúbis. O incenso queimado por um outro sacerdote, em geral no limiar da
sua carreira e, geralmente, filho do morto, entrelaça-se com as fórmulas mágicas proferidas,
solenemente, por um seu homólogo. Seguidamente, dá-se a cerimónia da “Abertura da
Boca”, realizada com o fim de conceder, uma vez mais, àquele que faleceu o dom do Verbo,
da visão, da audição e do olfacto, de forma a permitir-lhe saborear as dádivas alimentares,
deixadas no túmulo. Findo este ritual, o morto acha-se reanimado, num processo que pode,
muitas vezes, prolongar-se por vários dias. Entre despedidas, o corpo do morto é, uma vez
mais, restituído ao repouso do seu caixão, sendo rodeado por tudo o que podesse vir a serlhe necessário no Além. Deste modo, com o fito de impedir que os egípcios abastados
necessitassem de entregar-se a qualquer tarefa laboral (nomeadamente, lavrar, ceifar ou
bater trigo, entre outros árduos trabalhos), colocavam-se no seu túmulo pequenas figuras de
madeira representando os servidores de diversos corpos de ofício e os animais domésticos,
além de réplicas em miniatura de casas e barcos. Por seu turno, os príncipes ou outras
distintas personagens eram enaltecidas com um inexaurível exército de pequenas estatuetas
de madeira, concebendo-se assim algo similar a um mundo artificial. Porém, em meados do
segundo milénio antes de Cristo, este hábito de dispor no túmulo figurinhas representando
servidores foi substituído pelo costume de colocar na derradeira morada do defunto uma
sósia em miniatura deste, representada, habitualmente, em forma de múmia e colocada
sobre uma caixa de menores proporções. Esta sósia esculpida, geralmente, em argila,
madeira ou metal, achava-se incumbida da tarefa de efectuar, no reino dos mortos, o
trabalho correspondente ao defunto.
Na sua derradeira viagem, as crianças faziam-se acompanhar
de seus brinquedos, geralmente, piões, bonecas articuladas,
animais de brinquedo, entre outros. Porém, também os
momentos mais sóbrios e conscenciosos eram recordados ao
serem também depositados nos túmulos os seus cadernos em
papiro ou ardósia, contendo exercícios de caligrafia, aritmética,
etc.. As disparidades sociais e económicas estavam latentes na
forma como os Antigos Egípcios eram sepultados, uma vez que
em contraste com as prerrogativas concedidas aos mais
abastados, que detinham a possibilidade de desfrutarem do seu
último sono num túmulo ao abrigo dos chacais e outras feras
do deserto, os mais humildes não possuíam recursos
económicos que lhes permitissem mandar embalsamar o seu corpo. Consequentemente, os
seus restos mortais jazem, isentos de um sarcófago, sob um metro de areia, onde acabam
por ser dilacerados pelo tempo, que não lhe concederia o direito à imortalidade. Temendo a
hedionda perspectiva de uma morte definitiva, os menos afortunados empregavam todas as
suas forças no sentido de reunir uma determinada quantia que lhes permitisse realizar um
funeral decente ou, pelo menos, para reservar um lugar nos inúmeros túmulos colectivos,
que se encontravam escavados na rocha.
A tão desejada “Casa da Eternidade”, consistia numa tumba escavada na falésia, e que veio
substituir as imponentes pirâmides e mastaba, onde o corpo permanecia oculto num poço
funerário subterrâneo ou num local secreto, precedido por uma parte aberta, que permitia
um acesso ao exterior: a capela, dotada de uma tela na qual se encontra inculcado o nome
do defunto ou, eventualmente, a sua efígie e onde se ergue a mesa das oferendas.
Paralelamente, é erigida uma porta fictícia (ponto de ligação entre o mundo dos mortos e o
dos vivos), a qual o morto transpõe sempre que deseja usufruir das oferendas que lhe são
levadas: pão, legumes, aves de capoeira e carne vermelha nos dias de festa.
Concomitantemente, a sua alma desfruta do incenso que invade de prazer o seu olfacto e a
sua sede é saciada pela salubridade da cerveja ou água fresca, que lhe deixam,
regularmente, visto ele habitar na orla do deserto. Contudo, os longos períodos de caos
ensinaram aos egípcios que até mesmo as dádivas “eternas” tornam-se efémeras, pelo que
foram concebidas fórmulas, inscritas, mais tarde nas paredes, que permitiam ao morto
desfrutar das oferendas, sempre que as pronunciasse. Assim, sobre inúmeras peças
comemorativas, surge diversas vezes a seguinte prece: “Vós que viveis na terra e passais
diante desta estela, indo e vindo, se ameis a vida e detestais a morte, dizei que há mil pães
e mil potes de cerveja”.
Detalhes e vocabulário egípcio:
Keres- caixão, ataúde.
Geb, deus da terra, era, habitualmente, venerado pelos demais como um deus
benevolente, dado haver brotado do seu corpo a vegetação e a água. Porém, a morte
tornava-o cruel e malévolo, por tomar no interior do seu corpo os cadáveres dos mais
humildes.
Carpideira- mulher paga para chorar nos funerais.
Protecção dos vasos canópicos do defunto - Os quatros filhos de Hórus detém o título de
“Senhores dos Pontos Cardeais, função que preservam enquanto protectores dos vasos
canópicos, que permitem que cada víscera seja correctamente velada pela deusa tutelar, ou
seja:
Sul: Deusa Ísis- mulher coroada com o símbolo usado na escrita de seu nome
(trono de espaldar alto).
Amset- génio com cabeça de homem. Incumbência- protecção do fígado.
Norte: Deusa Néftis- mulher coroada com os signos empregues na escrita de seu
nome, isto é, cesto e planta da casa.
Hapi- génio com cabeça de babuíno. Incumbência- protecção dos pulmões.
Este: Deusa Neit- mulher coroada com um emblema representativo de dois arcos
juntos, no seu estojo.
Duamutef- génio com cabeça de chacal. Incumbência- protecção do estômago.
Oeste: Deusa Selkis- mulher coroada com a efígie de um escorpião ou,
eventualmente, de uma larva encéfala.
Khebeh- Senuf- génio com cabeça de falcão. Incumbência- protecção dos intestinos.
ÁMON
Entre os cerúleos pilares de lápis- lazuli do enleante templo dos céus, o Sol,
sedutor feiticeiro do Infinito, transfigurava, através da mística alquimia da luz, a
noite da inexistência, perpétuo algoz da alma humana, no resplandecente dia da
vida eterna. E seus lábios luzentes, pétalas de luz da fragrante rosa de fogo que a
aurora desfolhava sobre o leito do horizonte, na ânsia de perfumar as núpcias do
céu e da terra, albergavam o berço da humanidade e a matriz da perfeição
universal. No Antigo Egipto, Ámon- Ré, imanente incarnação do astro- rei, era
soberano do sublime éden de fruição espiritual, de cujo seio de apoteoses divinas
brotava o fruto da harmonia cósmica que deuses e homens cobiçavam. Ávidos de
saciar a sua sede no néctar de paz intemporal dele resvalado, estes coroavam os céus com
arco –íris talhados em hinos esplendorosos que exaltavam a magnificência do excelso
regente dos deuses: “Único é o oculto que permanece velado para os deuses, sem que a sua
verdadeira forma seja conhecida. Nenhum deles conhece a sua verdadeira natureza que não
é revelada em nenhum escrito. Ninguém o pode descrever, é demasiado vasto para ser
apreendido, demasiado misterioso para ser conhecido. Quem pronunciasse o seu nome
secreto seria fulminado.” (Hino a Ámon).
Todavia, oráculo algum preconizara que tal deidade, quase escrava do anonimato total no
Antigo Império, viria a coroar-se “rei dos deuses” (nesu- netjeru) e incontestável soberano
do vasto reino dos céus. Com efeito, é apenas no decorrer do Médio Império, que Ámon,
efígie do Sol criador, após haver vagueado, enquanto peregrino de luz, pelos ignotos céus do
desconhecimento, alcança por fim o santuário de magia imarcescível, erguido no horizonte
da fé em honra do panteão egípcio, onde, volvida uma viagem mágica, que lhe permitiu a
absorção de diversas outras deidades, o deus solar renasce, cantando a Aurora do seu poder
como divindade nacional, dinástica, universal e criadora. Os jardins onde a mitologia egípcia
semeou as origens de Ámon constituem ainda um paraíso proibido, cujos encantos
florescentes se oferecem somente à nossa Imaginação nómada. Porém, alguns egiptólogos
crêem que originalmente Ámon não era senão uma deidade do ar, que no Infinito nas
crenças egípcias, partilhava as características de Chu, estatuto do qual não jamais viu-se
privado, mesmo após a sua meteórica ascensão até ao trono celeste. É, de facto, como rosa
de vento, orvalhada de doces brisas, que Ámon desabrocha para a Primavera da
popularidade na região tebana de Ermant. Esta teoria é, contudo, contestada por uma
fracção oponente, a qual defende que Ámon, na realidade, floresceu na mitologia egípcia
enquanto um dos membros da Ogdóade de Hermopólis, formando assim com Amonet, sua
parceira feminina, um dos quatros casais que a constituíam. Nesta representação, Ámon e a
sua esposa incarnam os princípios primordiais, suspensos nos braços da escuridão, que se
transfiguravam num hipotético dinamismo criador. A introdução de Ámon na região tebana
ofereceu-lhe uma inaudita ascensão no seio da Ogdoáde, ao indigitá-lo líder dos deuses que
a formavam.
Independentemente das dúvidas que,
quais planetas perdidos no Universo da
História, orbitam em torno da fulgurante
estrela que exaltara o nascimento de
Ámon, é certo que este deus manteve-se
cativo do cárcere do anonimato até ao
Império Médio. Com efeito, a partir da XII dinastia, o seu culto desenvolve-se de forma
surpreendentemente célere, permitindo a Ámon ser consagrado soberano incontestável do
panteão egípcio. Despindo a mortalha de nuvens que obliterava o seu rutilante corpo de Sol,
Ámon inundou de luz as almas dos monarcas egípcios que, em retribuição, permitiram que o
sublime pulsar do coração da eternidade entoasse até ao seu atroz eclipsar, a maviosa
sinfonia composta pelo doce epíteto do deus criador. Assim, em Karnak foram edificados
templos, cujo esplendor conquistou o tempo e desafiou a morte. Concomitantemente, o
faraó torna-se filho carnal de Ámon, proclamando-se assim emissário dos deuses entre os
homens e vice- versa. Em Tebas, cidade cuja cosmogonia combina elementos oriundos de
Hermopólis, Heliópolis e Mênfis, Ámon tange no doce harpa do coração da doce deusa Mut a
harmoniosa melodia do amor. Com ela e com Khonsu, fruto dos seus esponsais, formará
uma poderosa tríade. Na qualidade de deus patrono da capital egípcia (Tebas), Ámon é
coroado regente dos deuses.
Contemplando a surpreendente ascensão ao trono dos céus do agora prestigiado deus
criador, o clero abraça a resolução de talhar na sua coroa de luz a jóia rara de uma teologia
apta a exaltar o fastígio da sua soberania, facto facilmente constatável através da leitura e
análise do seguinte mito. Canta a lenda que a serpente Kematef, ou seja, “a que cumpre o
seu tempo”, emergiu de Nun, o excelso oceano de energia primordial, no local exacto da
cidade de Tebas, brindando os céus com o nascimento de Irta, isto é, “aquele que fez a
terra”, para de seguida desbravar o paraíso indómito dos sonhos.
Por seu turno, Irta, sublime ourives da Criação, converteu as trevas do nada no sumptuoso
tesouro do Universo, principiando por esculpir a terra, eterna barca de rubis navegando nos
mares de pérolas negras do Infinito e, acto contínuo, os já citados oito deuses primordiais
que se dirigiram a Hermopólis, a Mênfis e a Heliópolis para sonharem o esplendor da luz
divina que do áureo corpo do Sol se desprendia (Ptah e Atum). Traídos pela sua obra
colossal, que no decorrer da sua concepção todas as suas forças havia furtado, as oito
deidades retornaram a Tebas, onde, à semelhança de Kematef e Irta, saborearam as
nascentes de fruição espiritual que brotavam do éden das quimeras. No cosmos deste mito,
a constelação de Ámon brilhou enquanto ba (poder criador) de Kematef, o que cimentou a
sua posição fautor das maravilhas da Criação. Gradualmente, Ámon fundiu a sua identidade
com a de Ré, senhor de Heliópolis, concebendo assim a deidade Ámon- Ré, suprema
incarnação do astro- rei. Esta conotação solar do deus tebano é enfatizada pelos seus
adoradores: “Tu és Ámon, tu és Atum, tu és Khepri”, numa clara oblação às inúmeras
metamorfoses vividas pelo deidade solar, principiando pelo seu derradeiro mergulho no
oceano do horizonte, enquanto Sol poente (Atum), até à sua ressurreição sob a forma de Sol
nascente (khepri).
Conquistando igualmente aparência e funções de Min, deus da fertilidade,
Ámon, agora, Ámon- Min, incarna os elementos primordiais da Criação. De
facto, algumas das primeiras representações de Ámon em Karnak, datadas
do início da XII dinastia, representam o deus tebano, enquanto fruto da sua
fusão com Min. Através da associação ecléctica às mais proeminentes
deidades do panteão egípcio (Ré, Ptah e Min), Ámon conquista a dádiva do
poder, inevitavelmente depositada no sumptuoso altar de sua alma
iluminada, bordando nas sedas consteladas que velam a etérea silhueta do Universo a poesia
da sua sublimação, enquanto divindade nacional, primordial e demiúrgica. Durante o reinado
de Akhenaton, em meados do séc. XIV, o deus tebano é alvo da perseguição do regente,
quiçá numa represália contra o intimidatório poder do clero amoniano, que aumentara
proporcionalmente ao prestígio da deidade em questão. Após uma noite de cerca de quinze
anos, uma aurora adornada de paradoxos e controvérsias canta a ressurreição do Sol, que
uma vez mais se apodera do trono dos céus, sob a forma de Ámon. Este converter das
trevas na luz deve-se à alquimia secreta de um único faraó: Tutankhámon (reinado: 13371348 a . C.).
Um orvalho cristalino, eivado de mil enigmas, perla a rosa da fortuna, em cujas pétalas
repousa o simulacro incerto do príncipe Tutankháton, espírito isento de origens concretas.
Teria o futuro faraó despontado dos braços de Akhenaton ou do seio de uma família nobre?
Um vórtice de conjecturas enlaça igualmente o significado do seu nome, sendo “ imagem
viva de Áton” ou “poderosa é a vida de Áton” as traduções mais credíveis. Após a extinção
de Akhenaton, o trono do Egipto oferece-se ao olhar hesitante de Tutankháton, uma criança
de apenas nove anos, que, contudo, havia já desposado a terceira filha do faraó falecido.
Inebriado pelo fausto de jogos e festas, enclausurado num débil esboço de uma
personalidade esbatida, Tutankháton prostra-se diante dos conselhos de um preceptor,
possivelmente, o alto- dignitário Ay, ignorando as ferozes querelas entre os partidários de
Ámon e de Áton, cujo fulgor torna-se num sorriso da heresia. Gradualmente, a influência do
clero enleia, irreversivelmente, o ingénuo jovem, depositando na sua alma ainda perfumada
pela infância, o desejo de retornar ao seio da primordial religião, tecida em torno de Ámon.
Por conseguinte, o jovem altera o seu nome para Tutankhámon, entregando cada suspiro do
seu império aos lábios de nácar do politeísmo. Desta forma, no regaço de seu reinado o
compasso do tempo esculpiu o sepulcro da excelsa “Cidade do Sol”, cujo fulgor foi extinto
com o fito de restituir a soberania à olvidada cidade de Tebas, no seio da qual o faraó se
reinstalou, concedendo, uma vez mais, imensuráveis poderes aos sacerdotes que se
prostravam diante do divino simulacro de Ámon. Submissamente, todos aqueles que haviam
ornado de vida a quimérica cidade de Akhenaton seguiram a família real, entregando Armana
aos nefastos braços da decadência. As carícias letais do vento árido arrebatou o fastígio dos
templos e palácios, resumindo-os a lúgubres escombros, no coração da areia enclausurados.
Somente após 3000 anos, a alma desta cidade foi enfim libertado do seu lúrido cárcere.
Intoxicado pelo incenso celestial queimado sobre a cidade de
Tebas, Tutankhámon não empreendeu qualquer campanha
militar, impedindo assim uma ascensão do Egipto no plano
internacional. Privado do seu antigo poder, o exército
egípcio entrega-se aos braços da decadência. Na realidade, somente a contínua vigília de
Horemheb, a quem Tutankhámon havia entregue plenos poderes, impediu toda e qualquer
invasão do território egípcio. Este general encontrava-se deveras distante da imagem de
soldado grosseiro e rude que inúmeras vezes lhe é atribuída na actualidade. Trata-se, na
verdade, de um escriba, um letrado, cuja alma se encontra escravizada pelo amor ao direito
e à justiça. Ao completar quinze anos, no ano 6 do seu reinado, a consciência dos seus
deveres fende as pálpebras outrora cerradas de Tutankhámon, Desprendendo-se do torpor
da infância, o jovem faraó principia a mergulhar nos seus ofícios de soberano, recorrendo ao
pronto auxílio de seus mentores Ay e Horemheb, detentores de um poder imensurável,
concedido pelo próprio regente. Surpreendentemente, Tutankhámon lida, habilmente, com a
política externa, solucionando diversas questões pendentes. Simultaneamente, almeja
restituir ao Egipto o seu esplendor estonteante, pelo que ordena a restauração e construção
de monumentos e o levantamento de ruínas. De seu espírito resvalaram rasgos de luz,
orvalhados pelo gotejar da independência, que fenderam enfim a sufocante influência que Ay
e Horemheb possuíam sobre o faraó e sobre o destino do Egipto. Porém, quando
Tutankhámon completou dezoito anos, a auspiciosa melodia entoada pela sua fortuna
extinguiu-se nas trevas de uma sinfonia de silêncio, concebida pelas lúgubres carícias da
morte...
Intrigados com tão suspicaz falecimento, os egiptólogos lançaram-se numa desesperada
procura pela verdade, já sepultada entre as valsas do tempo. Por fim, após um inexaurível
rol de pesquisas e investigações, uma autópsia realizada à múmia do faraó concedeu-lhes o
fulgor da solução que tanto haviam cobiçado: uma fractura na base do crânio de
Tutankhámon comprovava que este havia sido, brutalmente, assassinado. Porém, que mãos
cruéis e isentas de compaixão haviam desferido o golpe fatal que oferecera aos lábios
sequiosos da morte o travo da vida de Tutankhámon? Os sacerdotes tebanos, movidos pelo
temor de que o regente, agora livre igualmente da sua influência, abraçasse os devaneios de
Akhenaton? Ou aquele que queimara o incenso da sua vontade sobre o débil altar da alma de
Tutankhámon, submetendo-a aos seus caprichos e alentos: o divino- sacerdote Ay, tornado
mais tarde em sucessor do faraó falecido? A verdade oferece-se ao olhar daqueles que
pressentem os silvos das conjecturas, em cujo regaço quase sentimos o toque do sangue do
jovem faraó tingir as mãos do ambicioso Ay. Na realidade, sobre a imagem de Tutankhámon
baila um inexorável paradoxo, delineado pela imensurável fama que este insigificante faraó
alcançou na actualidade. Indemne à acção dos inúmeros saqueadores, o seu túmulo,
descoberto em 1822 por Howard Carter, derramou sobre a alma perplexa da humanidade a
fragrância do fausto e fastígio do Antigo Egipto. Jamais houve uma descoberta mais preciosa
do que a do túmulo de Tutankhámon. A grácil beleza dos móveis e as suas obras de arte
ultrapassaram tudo o que até então fora encontrado no Egipto. Graças ao túmulo do jovem
faraó, o único encontrado intacto, a cultura egípcia atraiu muitos mais admiradores do que
no passado; admitiu-se que esta cultura havia exercido sobre os povos vizinhos uma
influência muito mais profunda do que então se cogitara. Ao contemplarem-se as excelsas
riquezas que um faraó considerado verdadeiramente irrelevante, cujo reinado prolongou-se
por um escasso período de tempo, levava para a sua derradeira morada, calcula-se o
esplendor que brincaria nos túmulos de poderosos faraós como Tutmés III, Amenófis II, Seti
I e Ramsés II.
No paraíso de seu reinado, brotou a cobiçada fonte da ressurreição,
onde Ámon, outrora cativo do sepulcro do esquecimento, saciou a
sua sede de vida. Durante cerca de meio século, mais precisamente
de 1000 a.C. até 525 a.C., data da invasão persa, a soberania da
sumptuosa cidade de Tebas não foi senão dança ritmada da
melodia de luz reflectida pelos cristais de Sol, que no olhar de uma
magnificente dinastia de mulheres haviam esculpidos pela benção
do astro- rei. A estas mulheres, intituladas “Adoradoras Divinas”
ou, em egípcio, duat- netjer, o faraó havia concedido, sem hesitar, um poder espiritual e
régio sobre a principal cidade santa do Alto Egipto.
Sacerdotisas iniciadas nos mistérios de Ámon, a quem se uniam em esponsais divinos, com o
fito de lhes prestarem um culto ornado de um certo erotismo, as Adoradoras Divinas eram
regra geral provenientes de famílias nobres. Em diversas representações, contemplamos o
rito que permitia à dama despertar na carne e espírito do deus tebano os ardores da paixão.
Sob a liderança desta casta de mulheres viviam sacerdotisas, contempladas como o “harém
de Ámon”, a quem era também confiada a incumbência de semear o desejo no peito do rei
dos deuses e preservar a harmonia entre os céus e a terra. Enquanto esposas de Ámon, as
Adoradoras divinas, não obstante não serem coagidas a celebrar votos de castidade, eram
privadas não de vincular um casamento humano, mas também de ter filhos. De facto, a
herdeira do seu cargo era a sua filha espiritual, elevada a este estatuto através da adopção.
Consagrando-se exclusivamente ao culto da deidade, as Adoradoras Divinas, excelsas
instrumentistas que na harpa do cosmos fazem vibrar a energia celestial, garante da vida
terrena, embora não fossem reclusas, usufruíam da maior parte do seu tempo no interior do
templo de Ámon em Karnak, onde todos os dias persuadiam o deus a exprimir de forma
benéfica o seu poder criador.
Personalidades proeminentes no seio da cidade tebana, as Adoradoras Divinas eram
incontestáveis proprietárias de casas, terrenos, servidores e diversos outros bens que
contribuíam para a sua comodidade e autonomia.
Detalhes e vocabulário egípcio:
Amonet- Deusa constituinte da Ognóade de Hermopólis. É frequente depararmo-nos em
Tebas com efígies suas, enquanto versão feminina do deus Ámon, papel geralmente
concedido a Mut. Diversos textos da dinastia ptolomaica apresentam-nos Amonet ou
Amaunet como incarnação do vento do Norte, a mãe primordial que “é pai”, isto é, aquele
que sem intervenção masculina se encontra apta a conceber os seus filhos. Algumas fontes
revelam que Amonet deu à luz Ré, ou, segundo outras vozes, Ámon, enquanto
personificação de Ré. É exequível aventurar que o culto dedicado à deusa ultrapassa o da
sua versão masculina em antiguidade.
Identificamos Ámon nas diversas representações que o honram, como um homem
ostentando sobre a sua cabeça uma coroa com duas plumas (kachuti) e em suas mãos
(consoante as circunstâncias em que é invocado) o signo da vida (ankh), uma cimitarra
(khopech) ou o ceptro uase, entre outros. O seu trono assenta sobre uma esteira que, por
seu turno, se encontra sobre um pedestal dotado dos símbolos da deusa Maet.
Ámon, “aquele cuja natureza escapa ao entendimento”, é representado por um carneiro
de chifres curvos ou, pontualmente por um ganso. Com frequência, as díspares formas de
animais adoptadas por um deus confere-lhe o poder para se tornar irreconhecível ou apto a
ser confundido com outra deidade. A imagem do carneiro simboliza o conjunto das forças
criadoras, quer aquelas incarnadas pelo Sol, quer aquelas que permitam garantir a
reprodução dos seres vivos.
“Tu és o deus oculto (Ámon), Senhor do silencioso, que acorre ao apelo do humilde, tu
que dás alento a quem dele é privado” (Estela de Berlim).
ÁTON
Saciados os céus no faustoso festival de luz que exaltava o excelso
palácio do dia, o Sol abdica do seu eterno trono de turquesas e,
velando a sua mística silhueta d’ ouro com as exóticas sedas do
poente, estira-se languidamente no lendário tálamo do horizonte,
preludiando a noite que já brotava no Infinito. À semelhança de
tantas outras civilizações da Antiguidade, os egípcios veneravam o
Sol como a mais importante deidade da sua inebriante religião,
prestando-lhe um culto sincero e apaixonado enquanto deus
primordial, ourives da criação que nos primórdios da existência
talhara a jóia do universo, fonte da vida e alimento perpétuo.
No panteão egípcio, inúmeras são as deidades que incarnam o sublime regente dos céus, e,
em particular, o seu rutilante ceptro de luz ou a força criadora que em seu extasiante
esplendor se renovava, como é o caso de Horakhti, “o Hórus do Horizonte”, identificável
como um homem de cabeça de falcão, sobre a qual repousa um disco solar; ou Ámon- Rá,
deidade venerada em Tebas, cujo fastígio de luz, cálice solar derramado ao florir da aurora,
sublimava o firmamento e conduzia a humanidade até à apoteose divina. Todavia, o desejo
de se designar o astro- rei em si ou de evocar o disco solar somente era satisfeito através do
pronunciar de uma única palavra: Áton. Enquanto variante aperfeiçoada de Ré- Horakthi,
Áton era já alvo de um culto modesto mesmo antes da radical subversão de Akhenaton. Na
realidade, as primeiras menções ao seu nome, enquanto designação do globo luminoso,
datam do Antigo Império, podendo ser encontradas nos “Textos das Pirâmides”. Porém, é
somente na 18ª dinastia, mais exactamente no reinado de Amenófis III, que Áton torna-se
no centro de um desafio a toda a realidade conhecida, ao satisfazer o desejo deste faraó e,
de seguida, do seu filho Amenófis IV, de centrar a religião egípcia num único deus. Mas que
caminhos trilhou Áton até alcançar o estatuto supremo, ou seja, o de divindade dinástica? Ao
longo de dezassete anos, a alma do Egipto ardeu no cálido e conturbado vórtice de uma
revolução, fruto de paixões férvidas e imensuráveis, concebidas por um coração eivado de
poesia e espiritualidade: o de Akhenaton, “O Herético”, faraó cujo reinado se encontra
envolto num obscuro véu de densos enigmas, propiciados pela escassez de materiais
históricos concretos.
Fruto da união entre o faraó Amenófis III e a rainha Teie, Amenófis IV galgou as veredas da
infância e os labirintos da adolescência entre o fastígio do imponente palácio tebano de
Malgatta, onde se submeteu a uma educação rigorosa, que visava despertar e esculpir,
diligentemente, não somente as suas faculdades intelectuais, como as suas capacidades
físicas. O seu mentor, Amenotep, filho de Hapu, inculcou no espírito algo sonhador do jovem
príncipe o respeito pela Luz Criadora, cujo fulgor animava igualmente os deveres sagrados
inerentes ao trono, que Amenófis IV ocupou em 1364 a . C., quando detinha apenas quinze
anos. A seu lado, resplandecia uma jovem de beleza esplendorosa, Nefertiti, a quem,
todavia, se havia unido por imposição de dirigentes egípcios, que ignoravam a devastadora
paixão que entrelaçaria, posteriormente, as almas dos dois soberanos. Esta jovem rainha,
Nefertiti, cujo nome significa “a bela veio”, pertencia, segundo a opinião de diversos
historiadores, a uma famigerada família de um poderoso elemento
da corte, versão contestada por alguns que afirmam que a
soberana era na realidade filha de Amenófis III.
Inúmeras dúvidas adornam o exórdio do reinado de Amenófis IV,
uma vez que se coloca a hipótese deste haver governado em
simultâneo com seu pai, probabilidade contestada por uma fracção
da comunidade egiptóloga. Desta forma, segundo a hipótese
escolhida, observa-se uma variação de dados e datas. No quinto ano do seu reinado, o
jovem soberano, agora com vinte anos, entrega a sua alma ao deus solar Áton, considerado
a fonte de toda a vida, chegando mesmo a renegar o seu nome, com o fito de tomar a
designação de Akhenaton, ou seja, “espírito eficaz para Áton” ou “aquele que agrada a
Áton”, numa clara homenagem a esta deidade criadora. O seu fulgor fendeu o fausto
ostentado pelas demais divindades egípcias, cujos cultos seculares Akhenaton desejou
dilacerar, prostrando-os diante da luz que o enfeitiçava. Na realidade, semelhante politeísmo
havia sido gerado no exórdio dos tempos pré-históricos, quando o Egipto se compunha de
inúmeros reinos exíguos, cada um dos quais protegido por um deus próprio e distinto,
geralmente, representado sob a forma de um animal. Todavia, muito cedo os Egípcios
principiaram a venerar o Sol como uma deidade, à qual concederam a denominação de deussol Rá, uma soberano supremo com o qual gradualmente os deuses locais foram-se
identificando e fundindo. Desta forma, o lógico ultimar de tão prolixa evolução deveria ter
sido a assimilação dos díspares deuses locais numa só divindade. Porém, tal conclusão
mostrar-se-ia deveras inconveniente para os diversos sacerdotes, sustentados pelas
oferendas realizadas em honra das inúmeras divindades egípcias, cujo culto se realizava
igualmente nos luxuosos templos, que os albergavam.
Ao tomarem Tebas como sua capital, os faraós tornaram Ámon no mais prestigiado dos
deuses egípcios, concedendo aos sacerdotes que lhe prestavam culto um poder imensurável,
que atingiu o seu apogeu, quando esta divindade se fundiu com o deus- solar Ra. Na
verdade, não era contra Ámon, em concreto, que Akhenaton se batia, mas sim, contra a
poderosa hierarquia religiosa tebana , que principiava a desafiar, embora subtilmente, a
autoridade real. Desta forma, Akhenaton adopta o título de sumo- sacerdote de Heliópolis,
denominando-se assim de “o maior dos videntes”, num acto que o prendeu à mais antiga
expressão religiosa, considerada mais pura do que a religião tebana. Porém, é em Carnaque,
templo dedicado a Ámon, que Akhenaton esculpe a sua visão, ordenando aos escultores que
concebessem um ser singular, delineado num vórtice de características masculinas e
femininas, que se reflectem, entre outros, num rosto deformado e num ventre saliente
evocando uma fecundidade, que pretendia ilustrar que o faraó é mãe e pai de todos os
seres.Após ter defrontado uma vez mais os sacerdotes tebanos ao retirar-lhes a gestão de
intrínsecos bens temporais, inerentes ao trono do Egipto, Akhenaton reserva-lhes , no sexto
ano do seu reinado, um novo sobressalto, ao tomar a decisão de criar uma nova cidade,
desenhada na luz sublime de Áton, abandonando, deste modo, Tebas. O local eleito,
“revelado pelo próprio Áton”, repousa na orla direita do rio Nilo, entre Mênfis e a antiga
capital dos faraós, sendo actualmente conhecido pelo nome de Tell El- Amarna.
Nesta cidade, construída com uma rapidez surpreendente, Akhenaton
manda erigir um palácio que o acolha e um tempo onde lhe seja
possível prestar culto à luz que o inunda. O esplendor quase celestial
de ambas as construções desvaneceu-se no compasso do tempo,
restando agora apenas uma ideia prófuga a seu respeito. O faraó
concedeu à sua cidade o epíteto de “Cidade do Sol”, jurando jamais
abandoná-la, promessa que cumprir até ao eclipsar da sua existência.
Diversos funcionários administrativos, escribas, sacerdotes, militares, artífices e camponeses
desprenderam-se da sua antiga cidade para seguirem, obedientemente, o faraó. A cidade
torna-se acolhedora, detendo largas avenidas, zonas verdejantes, parques sublimes e
mansões nobiliárias, que abraçam a divina luz solar. Por seu turno, o referido templo erguido
em honra de Áton revela-se díspar dos demais santuários construídos ao longo da décima
oitava dinastia, devido à ausência de salas veladas pela escuridão, onde os cultos eram
celebrados, quase secretamente. Em contraste, possuía inúmeros pátios brindados pela luz,
que conduziam ao altar do deus solar, onde eram depositadas dádivas sumptuosas. Áton,
deus de amor e luz, era geralmente representado sob a forma de um disco solar,
ornamentado na maioria das vezes com um uraeus, símbolo de soberania, e cujos raios
resplandecentes terminavam em mãos que agraciavam a humanidade com carícias celestiais.
Teoricamente, o culto dedicado àquele que se convertera “no pai dos pais e na mãe das
mães”, facultava a todos o acesso ao Divino, já que para adorar Áton, bastaria dirigir-se ao
magnificente soberano da luz. Contudo, tal ideologia sagrou-se numa utopia impressiva,
terrivelmente aparada da realidade, uma vez que a essência de Áton persistia num paraíso
proibido aos simples mortais, aos quais era oferecida a presença efectiva do deus no céu,
mas não a compreensão do mesmo. Como tal, tornou-se vital a existência de um
intermediário, que simultaneamente incarnasse as luzentes manifestações do deus único e
permitisse ao mais comum dos mortais com ele comungar. Ocupando este intrínseco papel
de mediador, Akhenaton converte-se então no único profeta do seu deus e seu
representante junto dos crentes. Estes, por seu turno, prestavam culto a Áton através de
uma oblação algo inusitada, que se concretizava numa oração pronunciada em casa, diante
da estátua do rei. Na realidade, não se contentando em reformular a religião egípcia,
Akhenaton introduziu no panteão artístico, além das insólitas silhuetas andróginas e de
ventres salientes que traiam um estado de gravidez perpétuo, crânios alongados e rostos
deformados, que se distanciavam deveras dos ideais cultivados anteriormente.
Nefertiti permanece imutavelmente ao lado do seu esposo, a quem dedica um amor
imensurável, apenas comparável à devoção que a leva a prostrar-se diante da magnificência
de Áton, a cujo culto se entrega, literalmente. Tornada num fascinante símbolo de beleza, a
rainha exerce uma vital função religiosa, sendo “aquela que faz repousar Áton com a sua
bela voz e as suas belas mãos, que seguram sistros”. Esta
soberana, cujas responsabilidades políticas são inegáveis,
oferece porém o seu coração ao amor que nutre pela sua
família, que, no espírito de Akhenaton, é um estigma da vida
divina., cujo esplendor merece ser imortalizado por artistas.
Desta forma, os regentes concedem-nos, em diversas
representações, a prerrogativa de perscrutarmos o seu lar,
onde o enlace entre um homem e uma mulher é contemplado
como um enlevo sagrado. Num baixo- relevo, repleno de
ternura, Nefertiti, sentada nos joelhos do rei, segura uma das suas seis filhas; noutro, é
esculpida a dor ímpar que devastou o casal régio, prostrado diante do féretro da sua
segunda filha, perecida em consequência de uma prolongada enfermidade. Sacerdote e
profeta de uma deidade nimbada por um halo de energia que concebe a vida, Akhenaton
inicia determinados dignitários nos sacros mistérios de Áton, entregando-se, literalmente, a
esse papel de mestre espiritual. Concomitantemente, emprega cada lampejo das sua forças
à concepção de um sublime hino, que muitos consideram, flagrantemente, semelhante aos
Salmos de David, nomeadamente, ao salmo 104.
Hino ao Sol
Bela é a tua alvorada, oh Áton vivo, Senhor da eternidade!
Tu és brilhante, tu és belo, tu és forte!
Grande e profundo é o teu amor; os teus raios cintilam nos olhos de todas as criaturas; a
tua pele espalha a luz que faz os nossos corações viver.
Tu encheste as Duas Terras [nota: Akhenaton refere-se ao Egipto] com o teu amor, oh belo
Senhor, que a ti mesmo te criaste, que criaste a Terra inteira e tudo o que nela se encontra:
os homens, os animais, as árvores que crescem no chão.
Levanta-te para lhes dar vida, pois tu és a mãe e o pai de todas as criaturas. Os seus olhos
voltam-se para ti, quando ascendes no firmamento. Os teus raios iluminam toda a Terra; o
coração de cada um enche-se de entusiasmo, quando te vê, quando tu lhe apareces como
seu Senhor. Quando te pões no horizonte ocidental do céu, as tuas criaturas adormecem
como mortos; obscurecem-lhes os cérebros, tapam-se-lhes as narinas, até que de manhã se
renova o teu brilho no horizonte oriental do céu.
Então, os seus braços imploram o teu Ka, a tua beleza acorda a vida e renasce-se! Tu
ofereces-nos os teus raios e toda a Terra está em festa; canta-se, toca-se música, soltam-se
gritos de alegria no pátio do castelo do Obelisco , o teu templo de Akhenaton, a grande
praça que tanto de agrada, onde te oferecem alimentos como homenagem...
Tu és Áton, tu és eterno... Tu criaste o longínquo céu para aí te elevares e veres as coisas
que criaste. Tu és único e, no entanto, dás vida a milhões de seres, é de ti que as narinas
recebem o sopro da vida. Quando vêem os teus raios, todas as flores vivem, essas mesmas
que crescem no chão e se abrem quando tu apareces. Com a tua luz se embriagam. Todos
os animais se levantam de um salto, os pássaros que estavam nos seus ninhos abrem as
suas asas, para fazerem preces a Áton, fonte da vida.
Convidemos, por instantes, este cântico devoto a adornar a nossa
imaginação, permitindo-nos pressentir a fé ardente com que era
entoado, entre o vibrar das cordas de uma harpa, que brindava cada
alvorada e cada crepúsculo com a sua alma melódica. No exórdio das
drásticas alterações religiosas, Áton ocupava um lugar de supremacia
diante dos outros deuses, com quem, porém, coexistia. Somente após
longos confrontos com os sacerdotes, Akhenaton ordenou enfim a
supressão de todas as divindades egípcias, à excepção do seu deussolar, ordenando que os seus nomes fossem apagados dos templos,
num linchamento espiritual que principiou com Ámon. As razões e modo de aplicação desta
estratégia religiosa encontram-se todavia sepultados sobre os escombros da obscuridade.
Apesar da persistência febril do soberano, as divindades que ele tentara aniquilar
permaneceram vivas no interior das casas de inúmeros egípcias, que continuaram a prestarlhes culto, secretamente. De súbito, a alma egípcia colheu do reinado de Akhenaton uma
rosa perlada pelo sacrilégio, que havia florescido de um gesto talhado num atroz equívoco: a
supressão de Osíris, cujo culto era nimbado pela irresistível fragrância da imortalidade,
quimera que escravizava o coração dos Egípcios. Desafiando a reconfortante noite de uma
tradição secular com a rutilante aurora de uma herética subversão, Akhenaton concede ao
seu deus a prerrogativa de usurpar os atributos e incumbências do venerado Osíris. Por
conseguinte, em todas as representações funerárias datadas deste período de tempo, o
personagem principal não é senão Akhenaton, mensageiro do deus único tanto na terra
como no Além.
Porém, a récita de indignação que rasgava o peito Egípcio esbateu-se em cânticos de
submissão, elevados mesmo no instante em que o soberano proibiu o pronunciamento da
palavra “deuses”. Eclipsada pela celestial visão da “Cidade do Sol” e pelo divino alento de
enaltecer o esplendor de Áton, a liderança do Egipto tombou, negligentemente, numa remota
e obscura lacuna da alma do regente, de cujas mãos sonhadoras resvalaram um imensurável
rol de erros. Abominando conflitos ou guerras, Akhenaton adopta uma política de
passividade, crendo que o prestígio do Egipto bastará para preservar o equilíbrio no Próximo
Oriente. Desta forma, desvanece o halo de protecção que o faraó deve manter em torno dos
seus aliados, permitindo que gradualmente o império formado por Tutmósis III se desintegre
nas mãos do poderoso povo hitita. Embora tenha já perdido a maioria dos seus vassalos,
corrompidos ou ameaçados, Akhenaton continua a ignorar os desesperados pedidos de
auxílio provindos daqueles que ainda lhe são fiéis. A morte de Ribaldi, príncipe da Síria, que
pagara com a sua vida semelhante fidelidade não rasgam tão denso véu de passividade. Esta
ausência de qualquer reacção por parte do faraó fá-lo perder os portos fenícios, acentuar a
revolta da Palestina, permitir a atroz chacina que levou ao desaparecimento de Mitanni,
aliado do Egipto. O mutismo de Akhenaton talha o brilho feroz das armas dos hititas e
assírios, tingidas do sangue de aliados egípcios. Como não conceder à atitude do regente o
epíteto de deplorável? Como não condenar o seu reinado, conspurcado pelo travo do
sangue? Porém, é possível argumentar a seu favor: talvez os relatórios que repousavam nas
mãos fossem incompletos, adulterados ou mesmo falsos. Ter-se-ia ele, de facto, apercebido,
da aterradora gravidade da situação? A luz de Áton tornou-se, para os egípcios, num
fragmento das trevas, que invadiam, gradualmente, o seu pais, já fustigado
por graves perturbações económicas, florescidas da ausência de tributos
pagos por aliados. Os inimigos de Akhenaton fizeram ressoar a sua cólera
nos murmúrios do rio Nilo, bordando-a, de seguida, num apelido
significativo: “O Herético”. Na realidade, somente Akhenaton e um exíguo
grupo de fiéis entregavam a sua alma à luz de Áton, deidade incapaz de
silenciar os clamores tentadores de Osíris, de cujos braços o povo egípcio não
se ousava desprender.
O Sol do seu reinado extinguiu-se num céu de enigmas. Que sucedeu a Nefertiti após o ano
15 do reinado de Akhenaton? Ter-se-á oposto, igualmente, à conduta de seu esposo ou terá
entoado cânticos dedicados a Áton até ao seu derradeiro suspiro? Crê-se que talvez a rainha
tenha perecido no ano 13 ou 14 do reinado de Akhenaton, dilacerando o sopro de vida que
ainda brincava no semblante do soberano. A sua morte perde-se na fragrância do
desconhecido, suspeitando-se apenas que não tenha sido sepultado no túmulo familiar que
mandara escavar em Amarna e onde já jazia o corpo da sua segunda filha. A “Cidade do
Sol”, sublime oferenda a Áton, foi abandonada à aridez do deserto, sendo considerada como
o fruto da heresia.
Detalhes e vocabulário egípcio:
Amarna, cidade localizada na margem direita do Nilo, mais exactamente a cerca de 280
km do Cairo, conquistou o tempo, tornando-o escravo dos seus caprichos, a fim de legar à
eternidade algumas das mais magníficas obras de arte egípcia, como é o caso do famigerado
busto de Nefertiti, encontrado numa oficina de escultura, e que hoje deslumbra visitantes de
todo o mundo, no Museu Egípcio de Berlim. De resto, a luzente “Cidade do Sol” foi
igualmente testemunha da subversiva arquitectura dos sumptuosos templos erigidos em
honra de Áton. Com efeito, estes extasiantes edifícios a céu aberto contrastam terrivelmente
com a arquitectura tradicional característica dos templos dedicados a Ámon.
MAET
,
Verdade... Etérea harpista de Sol que ritualiza em seu mavioso
tocar o florir do dia numa Primavera de Luz, mera melodia de
manhãs intemporais, cuja harmonia divina recria a ordem
universal, inebria a humanidade com a sabedoria ancestral,
semeia no jardim do mundo a rosa da justiça e coroa a árvore da
vida com as excelsas flores do equilíbrio cósmico...
No Antigo Egipto, longe de constituir um conceito trivial isento de
sentido ou alma, quiçá uma utopia impressiva banalizada pelo
tempo, a "Verdade" surgia como o mais sublime caminho para a
fruição espiritual. Encarnada pela deusa Maet, a verdade é assim sinónimo de rectidão,
lealdade, justiça, em suma, de todos os princípios básicos que asseguram não apenas o
equilíbrio cósmico, mas igualmente o aperfeiçoamento intelectual e espiritual do indivíduo. É,
por conseguinte, graças ao equilíbrio oferecido por Maet que o mundo organizado mantém a
sua integridade e o Universo conserva a harmonia que lhe fora concedida no acto da Criação.
Maet parece suspirar-nos que a verdade, a vida e o conhecimento deveriam constituir a
nossa religião primordial, que a Justiça deveria por nós ser eleita dogma universal e o que
bem e a liberdade deveriam ser abraçados como a base das nossas preces. A deusa Maet,
simultaneamente filha e mãe de Rá, num eterno reinventar de um cosmos renascido, era
representada como uma jovem elegante, portadora de uma cabeleira que acariciava
graciosamente os seus ombros. Na sua cabeça, a deusa ostentava uma pena de avestruz,
empregue igualmente pelos egípcios de forma isolada, como símbolo da deusa Maet (nome
próprio ) ou do conceito de verdade em si (nome comum). Em suas mãos, a deusa acolhe
alguns dos mais eficazes símbolos profilácticos, como é o caso do uase ou uadj, ceptros
também empunhados por diversas outras deidades do panteão egípcio.
Principio sagrado entre os egípcios, Maet consistia num rito incontornável não apenas para
os simples mortais, mas também para os faraós e até mesmo para os deuses. Com efeito, a
maviosa melopeia entoada por esta deusa era brisa sagrada que alimentava, inebriava e
renovava os sentidos das restantes deidades, permitindo-lhes assim preservar a harmonia
universal que ela encarna. O culto diário prestado aos deuses conhecia o seu apogeu com a
oferta de Maet. Relevos de determinados templos tardios permitem-nos conquistar o tempo
e, na mais sagrada lacuna da Imaginação, reviver as intrínsecas cerimónias do ofertório,
legadas à eternidade nas paredes do mais íntimo dos santuários. Extasiados, quase
abraçamos a prerrogativa de encarnar o sacerdote oficiante, eterno representante do faraó,
que num rito pleno de magia oferece Maet, sob a forma de uma figurinha transportada num
pequeno cesto, à deidade local, saciando assim a sua sede no cálice da ordem Universal, que
o entoar de um hino derrama docemente: "(...) Salve a ti, que estás provido de maet, autor
do que existe, criador do que és. (...) Tu surges com Maet, tu unes os teus membros em
Maet (...)". É de facto graças a este ritual de uma beleza inefável que Maet, não residindo
em nenhum templo específico, se encontra presente em todos os santuários do Vale do Nilo.
Com efeito, nem mesmo o poderoso Rá, mítico regente dos
deuses, subsiste quando privado do melífluo fruto da
Verdade, pois somente o néctar que dele resvala sacia a sua
sede de harmonia, alimenta o seu esplendor e renova a luz
que o nimba num halo de espiritualidade ("Tu existes porque
Maat existe", como refere um hino). De resto, era igualmente
Maet quem se propunha a confrontar todos os inimigos de Ámon, fulminando-os com a sua
cólera, a fim de jamais permitir que o fastígio do deus- solar fosse obnubilado. Não constitui
assim qualquer surpresa constatar a presença de Maet na viagem amoniana. Embora
somente ao deus- sol fosse concedido o apanágio de desfrutar intimamente da companhia de
Maet, muitos outros deuses deixavam-se inebriar pela rima perfeita que a deusa concedia ao
sublime verso do cosmos, como é o caso de Toth, que era com alguma frequência
contemplado como esposo (ou por vezes irmão) de Maet, dada a sua invejável posição
enquanto epítome celestial da precisão, justeza e rectidão. Enquanto Maet zelava pela
harmonia celeste, na terra era o regente quem se encontrava incumbido do dever divino de
conservar a ordem social e perpetrar as leis "maéticas", dispondo para tal de um completo
corpo de funcionários, de entre os quais se destacava o vízir. Na função de garante da ordem
moral, da justiça e da verdade, o vízir, chefe do poder executivo e de toda a área
administrativa, abraça o epíteto de "Sacerdote de Maet", ostentando como insígnia uma
pequena figurinha da deusa, geralmente esculpida em lápis- lazuli.
Como aqueles que coroavam o céu da humanidade com o arco-íris da liberdade, da verdade,
da justiça e da equidade dos sentidos, os faraós não só não dispensavam maet no seu
quotidiano, como também nos seus nomes reais, incluindo assim a deusa ou o próprio
conceito que ela encarnava nas suas denominações, na ânsia de que assim lhes fosse
concedida a eficácia necessária para uma regência próspera. Podemos evocar o exemplo de
Hatchepsut, rainha do Império Novo, cujo pronome não era senão "Maatkaré", ou seja,
"Maet é o alimento de Rá" ou "Maet é o ka (poder criador) de Rá. A sublime praia de Maet,
graciosamente formada pelos mais rutilantes cristais de Sol, oferecia-se a todas as almas
náufragas que se propusessem a brincar nas ondas de sabedoria ancestral do imponente mar
do conhecimento. Para que a espírito algum o acesso a estas águas ornadas de magia fosse
negado, os sábios egípcios (como os faraós Amenemhat I e Hor- djedef, filho do famigerado
Quéops, entre muitos outros) elaboraram os “Ensinamentos”, fulgurantes estrelas de
sabedoria destinadas a guiar a humanidade através da enigmática noite da vida. A leitura
destes textos de valor incontestável permite-nos abraçar os fundamentos da solidariedade,
da equidade, da justiça e da espiritualidade, indispensáveis para a criação de uma sociedade
recta, harmoniosa e subversivamente oposta a isefet, ou seja, ao caos, à desordem, enfim, à
pravidade em todos os seus subterfúgios e formas. Logo, todos devem respeitar aquilo que
Maet representa, para possibilitar o retorno dos fenómenos naturais que garantem a vida e a
vitória sobre as forças do caos que pairam ainda sobre a humanidade.
A presença de Maet, embaixatriz da Verdade e
da Justiça, revelava-se vital para o bom
funcionamento do tribunal osírico, uma vez que,
caso privados da sua benção, os defuntos seriam
alvo de um julgamento iníquo e imparcial.
Conduzidos por Anúbis, o deus da cabeça de
chacal, os defuntos compareciam diante do
tribunal de Osíris, onde as suas almas seriam
julgadas, revelando o seu destino. O tribunal divino erigia-se na "Sala das duas Justiças",
intermediária entre o além e o submundo, rodeada por 42 demónios (este valor estava
relacionado com o número de distritos- 42- que dividiam o Egipto Antigo). Perante cada uma
destas temíveis entidades, o morto deveria declarar-se inocente de um pecado, resumindose estas 42 faltas em algumas categorias distintas: blasfémia, perjúrio, assassínio, luxúria,
roubo, mentira, calúnia e falso testemunho. Para alcançar a absolvição, os réus deveriam
não somente afirmar que haviam alimentado os esfomeados, saciado a sede dos sequiosos,
entregue roupas àqueles que não as possuíam e concedido auxílio na travessia de um rio a
quem não detinha qualquer embarcação, mas igualmente permitir que o seu coração fosse
pesado, uma vez que este representava, para os egípcios, o cerne real da personalidade, a
base da razão, da vontade e da consciência moral. Desta forma, sobre a vigilância de Anúbis,
o coração do defunto (ib) é depositado num dos pratos de uma balança, confrontando o seu
peso com o de uma pena de avestruz, símbolo de Maet. Esta prova, a que ninguém se pode
eximir para aceder ao reino de Osíris, permite determinar se a alma do defunto se encontra
em conformidade com Maet, isto é, se de facto, nela impera a harmonia oferecida pelo
cumprimento das normas morais e espirituais que regem a sociedade.
Enfim, os resultados seriam registados por Toth, deus da escrita, para, em seguida, serem
comunicados por Hórus a seu pai Osíris, que absolveria o morto, caso os dois pratos se
equilibrassem ou se o seu coração se revelasse mais leve do que a pena. Neste caso, seria
oferecido ao falecido um sublime paraíso, localizado a ocidente, onde as espigas de trigo
elevavam-se a muitos metros do chão e a vida irradiava uma felicidade ímpar e desmedida.
Todavia, a "Grande Devoradora", um misto aterrador de crocodilo, pantera e hipopótamo
acha-se, igualmente, presente em todos os julgamentos esperando, impacientemente, pelo
deleite de tragar todos aqueles, cujo coração detivesse um peso excessivo. Atormentados
com a perspectiva das suas quimeras de ressurreição serem, abruptamente, devastadas pelo
aniquilamento das suas existências, os Egípcios entregavam-se, ao longo das suas vidas, a
um imensurável rol de precauções. Deste modo, com o fito de auxiliarem os mortos na sua
derradeira diligência ao Império dos Mortos, surgiram inúmeras fórmulas mágicas, que,
gradualmente, se reuniram no famigerado "Livro dos Mortos", cujo conteúdo era inculcado
num rolo de papiro (embora anteriormente fosse apenas gravado nos caixões ou nas
paredes)colocado nos túmulos, junto dos cadáveres. Na realidade, inicialmente apenas os
faraós poderiam usufruir das referidas fórmulas de encantamento, mas, mais tarde, estas
proliferaram-se, igualmente, pelos funcionários e sacerdotes mais bem sucedidos, que,
assim, poderiam, enfrentar os inúmeros demónios, emergidos das trevas sob a forma de
serpentes, crocodilos gigantes ou dragões, ao longo de toda a viagem. Porém, devido aos
seus elevados custos, o "Livro dos Mortos" manteve-se inacessível para as classes mais
pobres.
Aqueles que o procuravam, poderiam adquirir o "Livro dos Mortos",
totalmente pronto, restando-lhes apenas acrescentar o nome do
proprietário. A crença popular referia que este documento havia sido
concebido pelo próprio Toth, que oferecia aos viajantes o meio de
afastarem-se de um passo em falso. Por exemplo, ao serem
abordados por um crocodilo, os defuntos deveriam pronunciar as
seguintes palavras: "Passa de largo! Vai-te, crocodilo maldito! Tu não te aproximarás de
mim, pois eu vivo de palavras mágicas, nascidas da força que está em mim!". Porém,
fundidos com estas fórmulas, também foram registados no "Livro dos Mortos" pensamentos
dogmáticos, como o apresentado, seguidamente "O homem deverá ser julgado pela forma
como se conduziu na Terra", que representa uma clara divergência para com os restantes
textos, divergência esta que pode ser explicada pelo facto desta obra não merecer, de todo,
o epíteto de homogénea, uma vez que os seus capítulos acompanharam os díspares estados
de evolução das ideologias egípcias. Com efeito, as partes mais antigas desta obra surgem
nas paredes da pirâmide do faraó Unas, derradeiro soberano da Quinta Dinastia, enquanto
que as mais recentes datam do século VII a.C. Embora não correspondessem já às
concepções religiosas dos Egípcios, os textos mais arcaicos do "Livro dos Mortos" nunca
foram retirados do mesmo, graças ao respeito que esta civilização dedicava a tudo o que
pertencia ao passado. Como consequência, esta obra tornou-se, progressivamente, num
espelho reflector da evolução da religião egípcia.
Detalhes e vocabulário egípcio:
Ao longo de aproximadamente cinco séculos (de 1550 a 1070 a. C.), subsistiu no Antigo
Egipto uma confraria, constituída por homens e mulheres extraordinários, simultaneamente
artesãos e sacerdotes, da qual brotaram muitas das obras- primas da arte egípcia. Esta
confraria, expoente máximo da espiritualidade aliada à criatividade, viveu numa aldeia do
Alto Egipto, interdita a profanos, cujo epíteto verdadeiramente excepcional é merecedor da
nossa atenção: “Lugar da Verdade”, ou seja, “Set Maet”. O eterno cosmos onde a
constelação de Maet reinventava a harmonia da sua luz, de forma a alumiar o universo com
uma ordem espiritual inabalável, ainda se oferece ao nosso olhar, caso visitemos a localidade
de Deir el- Medina, a oeste de Tebas. Lá, somos tentados a sonhar com todas as obrasprimas que a mão humana, orientada pelo ritmo divino, forjou e imortalizou.
Com frequência, deparamo-nos com as palavras Maet e maet escritas de forma
verdadeiramente díspar. Consoante o autor, Maet é apelidada de Maat, Ma-a-at, Majet,
Mayet, Maät, etc. Segundo a fracção mais numerosa de egiptólogos envolvidos nesta
altercação, Maet, ou seja, a grafia empregue neste artigo, é a mais correcta. Porém, iníquo
seria não salientar que egiptólogos tão prestigiados quanto William Hayes e Cyril Aldred
optam pelo uso de Maat, grafia apresentada no início do séc. XX.
Na escrita hieroglífica, a deusa Maet surge como uma figura ajoelhada, ostentando a sua
característica pena de avestruz na cabeça e o signo ankh (símbolo da vida) sobre os joelhos.
ANÚBIS
Qual estrela reinventado a imanência da sua luz no cosmos da
imortalidade, onde a mítica constelação da vida se traduzia e
renovava num fulgor eterno, Anúbis (Anupu em egípcio) iluminava a
noite do panteão egípcio enquanto pilar que sustinha o templo de um
mito intemporal que prometia às almas a eternidade.
Escravizados pelo alento de vogarem no regaço da imortalidade,
superando os próprios limites da existência, os Egípcios conceberam a arte do
embalsamamento, que, ao conservar os seus corpos, os arrebatava ao abominável espectro
da deterioração, tal como sugere uma das muitas inscrições talhadas sobre os caixões: “Eu
não deteriorarei. O meu corpo não será presa dos vermes, pois ele é durável e não será
aniquilado no país da eternidade”. Esta arte divina, apta a enfeitiçar o tempo, tornando-o
escravo daqueles que a ela recorriam, era ditada, reinventada e abençoada por Anúbis,
guardião das sublimes moradas da eternidade, Soberano das mumificações e
embalsamamentos, intermediário entre o defunto e o tribunal que o aguardava no Além e
deidade cuja aparência é estigmatizada pelas incumbências de que é investido. Por
conseguinte, e numa flagrante evocação dos cães e chacais que velavam pelas inóspitas e
desérticas necrópoles, esta divindade surge como um animal da família dos Canídeos ou,
então, como um homem detentor de uma cabeça de chacal. A mitologia egípcia revela-nos
que Anúbis era fruto de uma ilegítima noite de amor vivida por Osíris nos braços de Néftis.
A lenda revela-nos que tão inusitada união dera-se aquando do retorno do então Soberano
do Egipto ao seu magnífico país. Extenuando de uma viagem que o mantivera longe da sua
pátria por uma eternidade, Osíris ardia em desejo de sentir o Sol que raiava no olhar de Ísis
despir a mortalha de nuvens, tecida pela saudade, que vestia e sufocava os céus de sua
alma. Ao vislumbrar Néftis, o deus enlaça-a então em seus braços, tomando-a pela sua
esposa. E os seus sentidos, cegos pela paixão, revelam-se impotentes para lhe desvendar a
traição que ele cometia, antes desta encontrar-se consumada. Graças a uma coroa de
meliloto abandonada por Osíris no leito de Néftis, Ísis abraça a percepção de que o seu
amado esposo havia-lhe sido infiel e, desesperada, confronta a sua irmã, que lhe revela que
de tão ilídimas núpcias nascera um filho, Anúbis, o qual, temendo a cólera do seu esposo
legítimo, Seth, ela havia ocultado algures nos pântanos. Ísis, a quem não fora concedido o
apanágio de conceber um filho de Osíris, enleia então a resolução de resgatá-lo ao seu
esconderijo, percorrendo assim todo o país até encontrar a criança. Acto contínuo, e numa
notória demonstração da benevolência que lhe era característica, a deusa amamenta Anúbis,
criando-o para tornar-se o seu protector e mais fiel companheiro.
A lenda de Osíris comprova que Ísis foi coroada de sucesso,
uma vez que, após o desmembramento do corpo de seu
esposo, Anúbis voluntariou-se prontamente para auxiliar a
deusa a reunir os inúmeros fragmentos do defunto.
Posteriormente, Anúbis participa com igual dedicação nos
rituais executados com o fim de restituir a Osíris o sopro de
vida e que lhe facultaram a concepção da primeira múmia, facto que legitimou a sua
conversão no venerado deus do embalsamamento, eterno guia do defunto no Além. A sua
crescente influência garantiu-lhe um posto relevante no tribunal composto por quarenta e
dois juizes que julgava os recém- inumados. De facto, é ele quem conduz o morto até Osíris,
apresentando-o ao tribunal por ele presidido, para de seguida proceder à pesagem do
coração. Se porventura o morto desejar mais tarde regressar à terra, é Anúbis quem ele tem
a obrigação de notificar previamente, dado que esta surtida só será exequível com o seu
consentimento expresso, formalmente consignado sob a forma de um decreto.
As suas múltiplas funções permitem a este deus deter diversas denominações, embora todas
elas se encontrem intrincadamente relacionadas com o seu papel na vida póstuma dos
egípcios. Assim, Anúbis é reconhecido como “o das ligaduras”, como patrono dos
embalsamadores, “presidente do pavilhão divino”, enquanto soberano do edifício onde a
poesia da mumificação era declamada por peritos, “senhor da necrópole” ou então “aquele
que está em cima da montanha”, designações que exaltavam a sua posição enquanto
guardião dos túmulos e condutor dos defuntos nos traiçoeiros labirintos do mundo inferior.
Como tal, não é de todo inusitado o rol interminável de hinos e preces a ele destinados, que
encontramos não raras vezes nas paredes das mastabas mais antigas e igualmente no
famigerado “Texto das Pirâmides”.
Anúbis constitui igualmente a deidade tutelar da décima sétima província do Alto Egipto, cuja
capital, Cinopólis (“A Cidade dos Cães”), era o âmago do seu culto, não obstante a sua
imagem ser também uma constante em relevos e textos figurativos existentes nas
sepulturas reais ou plebeias do vale do Nilo. Com efeito, ao longo de toda a época faraónica,
Anúbis usufruiu de uma inefável popularidade que se reflectiu na sólida implantação do seu
culto nos díspares centros religiosos do país, particularmente em Tebas ou Mênfis. Em
Charuna, localidade próxima do seu principal santuário, deparamo-nos com uma necrópole
de cães mumificados, os quais eram venerados enquanto animais sagrados do deus.
Mas afinal que arte era esta que Anúbis protegia e representava? Originalmente, antes de
haverem alcançado o seu meticuloso método de mumificação, os Egípcios envolviam os seus
defuntos numa esteira ou pele de animal, visando que o calor e o vento dissecassem os
cadáveres. Após um moroso processo evolutivo, os embalsamadores conseguiram enfim
obter de forma artificial tal conservação natural, mediante um prolixo tratamento, que se
prolongava por setenta dias. Uma vez ser necessário quantidades abundantes de água para
lavrar os corpos, este ritual era realizado na margem Ocidental do rio Nilo (a considerável
distância das habitações), onde os embalsamadores trabalhavam numa tenda arejada.
Ultimado o referido período de tempo, os defuntos seguiam para as designadas “Casas de
Purificação”, meras salas reservadas para as práticas de
mumificação, onde cada gesto dos embalsamadores era
talhado no olhar vigilante dos sacerdotes. Segundo
inúmeros baixos-relevos e pinturas, estes primeiros
ostentavam máscaras com a efígie do deus- chacal
Anúbis, a deidade protectora dos mortos, talvez num
desejo de atrair a sua benevolência.
O único exemplar que se conserva de semelhante máscara leva a crêr que esta servisse
igualmente de protecção contra os diversos cheiros que fustigavam os embalsamadores.
Alguns momentâneos descuidos destes levaram-nos a esquecerem-se, por vezes, de
determinados instrumentos no interior das múmias, o que nos permite conhecer,
aprofundadamente, os seus diversos utensílios de trabalho: ganchos de cobre, pinças,
espátulas, colheres, agulhas, vasos munidos de bicos para deitar a goma escaldante sobre o
cadáver e furadores com cabeça de forcado, para abrir, esvaziar e tornar a fechar o corpo.
Dada a ausência de qualquer informação legada pelos Egípcios sobre as suas técnicas de
embalsamamento, é necessário recorrer aos relatos de historiadores gregos, como Heródoto,
para que a nossa curiosidade seja saciada. As suas descrições permitem-nos vislumbrar cada
movimento dos embalsamadores. Em primeiro lugar, estes extraíam o cérebro do defunto
pelas narinas, com o auxílio de um gancho de ferro. Seguidamente, “com uma faca de pedra
da Etiópia” (segundo refere Hérodoto) efectuavam uma incisão no flanco do defunto, pelo
qual retiravam os intestinos do morto.
Após terem limpo diligentemente a cavidade abdominal, lavavam-na com vinho de palma e
preenchiam o ventre com uma fusão de mirra pura, canela e outras matérias odoríferas.
Deixavam então o corpo repousar numa solução alcalina, baseada em cristais de natrão
seco, onde permanecia durante setenta dias, ao fim dos quais a múmia era envolvida com
mais de vinte camadas de ligaduras e coberta por um óleo de embalsamamento (uma
mistura de óleos vegetais e de resinas aromáticas- coníferas do Líbano, incenso e mirra),
que endurecia, rapidamente. Todavia, as suas propriedades anti-micósicas e anti-bacterianas
não protegiam a estrutura do corpo esvaziado, dessecado e leve, facto comprovado pelo
incidente ocorrido com a múmia do jovem faraó Tutankhámon, que se fragmentou, quando a
tentaram remover do seu caixão. As faixas que envolviam o defunto eram,
preferencialmente, de cores vermelho e rosa, jamais sendo utilizado
para a sua concepção linho novo, mas sim, aquele que era obtido a
partir das vestes que o morto envergava em vida. À medida que as
ligaduras eram colocadas em torno dos defuntos, os sacerdotes
presentes pronunciavam fórmulas sagradas. Simultaneamente,
depositavam-se nos leitos de linho inúmeros amuletos profilácticos,
tendo mesmo sido encontrada uma múmia com cerca de oitenta e
sete destes objectos de culto. Entre estes encontrava-se ankh
(vida), uma das mais preciosas dádivas oferecidas aos homens pelos deuses; o olho de
oudjat, ou olho de Hórus, símbolo de integridade, que selava a incisão feita pelos
embalsamadores, para retirar as entranhas do morto; um amuleto em forma de coração,
concebido para assegurar que os defuntos seriam bem sucedidos nos seus julgamentos; e o
escaravelho, esculpido em pedra, barro ou vidro. Este insecto enrola bolas de esterco, onde
depõe os ovos. Os Egípcios creiam que um escaravelho gigante gerara o Sol de forma
similar, rolando-o em direcção do horizonte, até ao firmamento. Uma vez que todas as
manhãs este astro soberano desprende-se de um abraço de trevas, o escaravelho tornou-se
num símbolo da ressurreição dos mortos.
No exórdio da civilização egípcia, ultimados os seus processos de mumificação, as pessoas
notáveis eram inumadas num caixão de forma rectangular, depositado num sarcófago de
pedra, considerado como depositário das vida. Porém, ao longo da história, os caixões
sofrem diversas metamorfoses, que alteraram, radicalmente, os seus simulacros. No Médio
Império, os caixões tornaram-se antropomórficos, aumentando a sua produção. A própria
múmia principiou a ter uma máscara de linho estucado, isenta de qualquer semelhança com
o defunto. Na realidade, inúmeras múmias eram sepultadas em diversas urnas, sendo
colocada uma dentro da outra, à semelhança das bonecas russas. Deste modo, a urna
interna, mais ajustada, deveria encontrar-se apertada atrás. Durante muito tempo, os
sarcófagos eram construídos em madeira. Não obstante, num período mais tardio, as urnas
interiores eram efectuadas com camadas de papiro ou linho, o que se tornava mais
economicamente acessível. Junto aos túmulos, repousavam cofres de madeira, que
guardavam quatro recipientes, desde o mais humilde pote de barro ao mais faustoso vaso de
alabastro. Estes canopes, cujo nome advém de Kanops, cidade situada a leste de Alexandria,
continham as vísceras do defunto, uma vez que sem estas, o corpo não se encontraria
completo. Inicialmente, esta pratica consistia em mais uma prerrogativa reservada aos
soberanos do Egipto, mas com alguma rapidez estendeu-se igualmente aos sacerdotes e
altos funcionários e, por fim, no Novo Império, a todos os egípcios abastados.
O fígado, o estômago, os pulmões e os intestinos eram envolvidos separadamente em
tecidos de linho, formando embrulhos que eram, em seguida, depositados no interior dos
díspares canopes, após terem sido impregnados com resina de embalsamamento. Em
contrapartida, o coração, símbolo da razão, cerne do encontro do espírito e simulacro da
alma, após ser submetido a um rigoroso tratamento que visava a sua conservação, era
sempre recolocado no corpo do defunto, que iria necessitar dele, ao longo do seu julgamento
no Além. Por seu turno, as intrínsecas vísceras eram entregues a quatro deidades
protectoras, filhos de Hórus, cujas cabeças ornamentavam
frequentemente as tampas dos canopes: Amset, com cabeça de homem,
(cujo nome resulta de aneth, uma planta conhecida pelas suas
propriedades de conservação), tornado protector do estômago; Hápi,
possuidor de uma cabeça de babuíno, que vela pelos intestinos;
Duamoutef, que ostenta uma cabeça de cão e cuja missão é proteger os
pulmões; e Quebekhsenouf, detentor de uma cabeça de falcão, que
preserva o fígado. A partir do Novo Império, eram representadas nas
arestas dos canopes deusas protectoras, que, com as asas abertas,
resguardavam os seus conteúdos. As mesmas deusas surgiam
ajoelhadas nos cantos dos sarcófagos. Nut, a deusa da abóbada celeste,
adorna a face interior do tampo do caixão.
Paradoxalmente, os mais humildes eram privados de qualquer prerrogativa, sendo
sepultados no deserto, envoltos numa pele de vaca, uma vez que não possuíam meios para
pagar o avultado preço da imortalidade.
Detalhes e vocabulário egípcio:
Djed- eternidade;
Keres- caixão;
Na Época Greco-Romana, Anúbis foi investido de novas incumbências, incarnando numa
deidade cósmica, regente dos céus e da terra.
Etimologicamente, o epíteto “Anupus” pode possuir a sua origem na palavra inep,
empregue com o significado de “putrificar”.
A imagem de Anúbis, nas suas díspares representações, é uma constante não apenas nas
múmias e sarcófagos, mas também nas vinhetas dos papiros funerários. A estatueta de
Anúbis com cabeça de cão selvagem constituía igualmente um amuleto, que colocava os
defuntos sobre a protecção do deus. Evoca-se como exemplo o túmulo do jovem
Tutankhámon, entre muitos outros.
A famigerada múmia do faraó Ramsés III sobreviveu indemne durante quase 3000 anos,
graças à arte egípcia do embalsamamento e à preservação do deserto. Porém, alguns meses
de permanência num museu teriam causado a sua total destruição, caso inúmeros
egiptólogos não houvessem agido, prontamente.
out- embalsamadores
vabet- lugar de purificação, 'Casa da Purificação'
HÁTHOR
Amor... Rutilante véu de estrelas que veste de luz o corpo de
pérolas negras da noite da humanidade... Rosa de fogo, orvalhada
por uma poesia em chamas, despontando nos jardins do horizonte,
para almas vagantes inebriar com o perfume de um imortal Sol de
felicidade... Cálice de sonhos e feitiços derramado sobre os
corações dos Antigos Egípcios pela sensual Háthor, soberana de
um éden de felicidade perene, em cujo esplendor brotava o cobiçado fruto do amor, nascia a
maviosa nascente da música, em cujas águas vogava a sensualidade das danças,
desabrochavam as orquídeas selvagens do erotismo e brincava a doce brisa da alegria. Sua
alma, cosmos de amores constelados, renovava-se nos semblantes de todas as apaixonadas
que devotadamente a inundavam de preces ardentes, na esperança de escravizarem o
coração dos seus amados e, por conseguinte, alcançarem “a felicidade e um bom marido”.
Venerada em Dendera por nas suas mãos divinas florescer o amor, a bela deusa, filha de Rá,
inúmeras vezes representada sob a forma de uma vaca, desempenhava, tal como sucedia a
um rol imensurável de outros deuses, díspares papéis, em diferentes zonas do Egipto.
Podemos afirmar que as suas origens remontam a uma época longínqua da história, já que a
deusa consta do documento egípcio mais antigo conhecido até ao momento: a “Paleta de
Narmer”, cuja leitura nos permite conhecer a unificação do Egipto por Narmer, primeiro faraó
da I Dinastia, acontecimento que constitui a inauguração da instituição faraónica. Ambas as
faces deste documentos estão ornadas com cabeças de vaca que, tal como referido
anteriormente, simbolizam a deusa Háthor. No Delta, é associada ao céu, sustendo o discosolar no seu toucado, enquanto, em Tebas, surgia como uma deusa da morte. Enquanto
protectora da necrópole tebana, Háthor é representada como uma vaca emergindo de uma
montanha escarpada que simboliza a falésia onde estão escavados os túmulos. Aqueles que
se aproximavam da morte, suplicavam, assim, pela sua protecção, ao longo das suas
viagens até ao além.
Com efeito, tal como a maioria das divindades egípcias, Hátor sabia mostrar-se cruel e
devastadora. Tomemos como exemplo uma das lendas, que procura explicar as mudanças de
estação, na qual, após uma feroz discussão com o seu pai, Hátor refugia-se no desero,
permitindo que as trevas invadissem a terra, uma vez que o Sol somente ocuparia o seu
legítimo lugar, quando a deusa retornasse. A euforia rasga tão profundo pesar, quando,
persuadida por seu pai, Hátor regressa, enfim, banindo a noite. Em torno desta personagem,
tece-se ainda outra narrativa, notavelmente, violenta. Indignado por a humanidade lhe
haver desobedecido, Rá toma a decisão de massacrá-la, enviando, para este
fim, a sua filha, tornada num olho solar fulminante. Porém, ao contemplar a
devastação que a sua filha causava, Rá compadece-se daqueles que lhe
haviam desobedecido e toma a resolução de por fim a tão hediondo crime.
Deste modo, convida a sua filha a sorver uma cerveja cor de sangue, que,
além de a embriagar, lança-a num sono profundo. Ao despertar, a sua cólera
insaciável havia-se desvanecido, pelo que os derradeiros sobreviventes da
sua chacina permaneceram incólumes.
Em Dendera, ergueu-se, no templo ptolomaico, um imponente templo em sua honra, que a
deusa deixava, anualmente, para, após uma prolixa viagem através do Nilo (em que o seu
temperamento bravio era suavizado por músicas e bebidas) consumar o seu divino
casamento com o deus- falcão Hórus, que a aguardava em Edfu (cidade situada a cerca de
cento e sessenta quilómetros a montante do Nilo). Esta diligência mítica, que mantinha
Háthor afastada da sua morada durante cerca de três semanas, era celebrada pelos egípcios
com um festival alegre e faustoso. Procurando reproduzir o trajecto executado pela deusa, a
solene procissão seguia então pelo rio, rasgando com uma barca (“A Bela de Amor) onde,
detentora de uma fastígio inigualável, uma estátua de Háthor se elevava.
Concomitantemente, os sacerdotes de Edfu preparam o encontro dos esposos, que ocorrerá
no exterior do santuário, mais exactamente numa exígua capela localizada a norte da cidade.
Este encontro deveria suceder num momento preciso, ou seja, à oitava hora do dia da lua
nova do décimo primeiro mês do ano. Quando por fim Háthor abençoa Edfu com a sua
magnífica presença e perfuma aos lábios de seu esposo com o
incenso de um beijo, iniciam-se então as festividades, no
decorrer das quais a deusa é aclamada, saudada e inebriada com
a música docemente tocada em sua honra. Não era pois Háthor a
“Dourada”, a “Dama das Deusas”, “A Senhora” e “A Senhora da
embriagues, da música e das danças”?
Seguidamente, os esposos separam-se e ocupam as suas barcas,
para que o cortejo possa dirigir-se para o santuário principal,
onde os sacerdotes puxam as embarcações para fora de água e
instalam-nas no recinto. Uma vez mais acompanhada por seu marido, Háthor saúda então
seu pai, o Sol, que ao lado de Hórus velava por Edfu, como referem os inúmeros textos
encontrados: “ela vai ao encontro de seu pai Ré, que exulta ao vê-la, pois é o seu olho que
está de volta”. Terminado este encontro, tão lendários esponsais são enfim celebrados,
prometendo, entre sumptuosos festejos, os dois deuses a divinas núpcias de luz. No dia
seguinte, dá-se início a uma faustosa festa, que se demora pelos catorze dias do quarto
crescente, num período de tempo marcado por um rol quase inefável de ritos, sacrifícios,
visitas a santuários, celebrações, solenidades, entre outros eventos. Um grande banquete,
no fim do qual dá-se a separação de Háthor e Hórus consagra o fim das festividades.
Tal como salienta Plutarco, o escritor grego, na escrita hieroglífica o nome de Háthor lê-se
Hut- Hor, isto é, “a morada de Hórus” ou “a habitação cósmica de Hórus”, sendo portanto
flagrante que a deusa representa o espaço celeste no qual o Hórus solar se desloca.
Denominada “Senhora do Sicômoro”, deusa das árvores, Hátor surge inúmeras vezes a
amamentar os defuntos, especialmente, os faraós, mediante os longos ramos de um
sicômoro. Háthor, como deusa benevolente, possuía a intensa devoção, não somente de
nobres, mas também dos mais humildes, erigindo-se, deste modo, em seu redor um culto
que se proliferou no Império Romano. Todavia, a crescente popularidade do culto, tecido em
torno de Osíris e Ísis, levou a que este deidade passasse a deter algumas das funções de
Háthor, acabando estas por fundir-se numa única divindade.
Em matéria de iconografia, a sua representação mais interessante é aquela que lhe permite
surgir como soberana dos quatro cantos do céu e senhora dos pontos cardeais. Os quatro
semblantes que a representam simbolizam cada um deles um determinado aspecto da sua
personalidade, ou seja, Háthor- leoa, sublime olho dos astro solar, que os inimigos de seu
pai, Ré, aniquila sem hesitar; Háthor- vaca, poderosa soberana do amor e do renascimento;
Háthor- cobra, incarnação da beleza e juventude; e, por fim, Háthor- gata, eterna protectora
dos lares e, claro, ama real.
Não lhes sendo possível distinguirem-se noutros planos profissionais, muitas mulheres
tornavam-se sacerdotisas de Hátor (mais tarde designadas por “cantoras de Ámon”,) uma
vez que as actividades musicais que desempenhavam permitiram-lhes investir-se de funções
honrosas. Por seu turno, fora dos cortejos religiosos, as bailarinas de Háthor, ostentando
somente uma tanga curta, arredondada na frente, entretinham os convidados de um
banquete.
Detalhes e vocabulário egípcio:
O nome Háthor significa “ a casa de Hórus”.
Nebet- per- dona de casa.
Neferet- a bela;
Merout- amor;
Hensi irem- viver juntos
Sen- beijar / “respirar um odor”
No Antigo Egipto, os apaixonados seduziam as mulheres amadas com epítetos plenos de
doçura, alguns deles ainda empregues na sociedade contemporânea, como é o caso de
“gazela”, gatinho”, “andorinha”, “pomba”, enquanto outros facilmente podem ser
qualificados de impopulares e até perigosos para a integridade física do amante, como “meu
hipopótamo”, “minha hiena” ou “minha rã”.
Na realidade, o amor era representado discretamente pelos artesãos encarregados de
enaltecer os túmulos egípcios com a sua arte, surgindo este sentimento sob a forma de um
tímido gesto, em que a mulher rodeia os ombros do seu marido com o braço ou se apoia nas
suas costas (o oposto jamais sucede). De facto, o perfume era um dos mais conhecidos
símbolos do amor, o que sustenta a filosofia de que os egípcios abdicavam da vulgaridade de
uma manifestação directa, em prole de uma doce e subtil sugestão, com frequência plena de
sensualidade.
O tecto da sala hipostila do templo de Háthor em Dendera enleva os seus visitantes com a
visão de sublimes decorações contendo cenas de natureza astronómica, considerados por
muitos como as mais originais jamais encontradas. Nele, o nosso olhar extasiado possui o
privilégio de conhecer as horas do dia, da noite, os decanos, as regiões celestes, as décadas,
os deuses dos pontos cardeais, as constelações, entre outros.
Ao observarmos o vão sul, somos maravilhados com uma cena, reproduzida não raras vezes
em díspares pontos do santuário, que nos o corpo de Nut, a abóbada celeste, cujo corpo,
banhado pelas ondas do oceano inferior, prolonga-se de uma extremidade à outra da sala.
Os seus pés acariciam o este, enquanto que a sua cabeça repousa a oeste. Ao executar o
seu trajecto cíclico, o deus solar incarna alternadamente os corpos diurnos e nocturnos de
Nut, alumiando a terra de dia, enquanto, por oposição, de noite a lança nas trevas,
desaparecendo, tragado pela deusa, para ir iluminar as regiões subterrâneas. Outra imagem
oferece-nos, assim, a ressurreição do Sol , que os seus mil raios derrama sobre o templo de
Dendera, personificado pela cabeça de vaca de Háthor, colocada sobre um edifício.
HÓRUS
Hórus, mítico soberano do Egipto, desdobra as
suas divinas asas de falcão sob a cabeça dos
faraós, não somente meros protegidos, mas,
na realidade, a própria incarnação do deus do
céu. Pois não era ele o deus protector da
monarquia faraónica, do Egipto unido sob um
só faraó, regente do Alto e do Baixo Egipto?
Com efeito, desde o florescer da época história,
que o faraó proclamava que neste deus refulgia
o seu ka (poder vital), na ânsia de legitimar a
sua soberania, não sendo pois inusitado que, a
cerca de 3000 a. C., o primeiro dos cinco
nomes da titularia real fosse exactamente “o
nome de Hórus”. No panteão egípcio, diversas são as deidades que se manifestam sob a
forma de um falcão. Hórus, detentor de uma personalidade complexa e intrincada, surge
como a mais célebre de todas elas. Mas quem era este deus, em cujas asas se reinventava o
poder criador dos faraós? Antes de mais, Hórus representa um deus celeste, regente dos
céus e dos astros neles semeados, cuja identidade é produto de uma longa evolução, no
decorrer da qual Hórus assimila as personalidades de múltiplas divindades.
Originalmente, Hórus era um deus local de Sam- Behet (Tell el- Balahun) no Delta, Baixo
Egipto. O seu nome, Hor, pode traduzir-se como “O Elevado”, “O Afastado”, ou “O
Longínquo”. Todavia, o decorrer dos anos facultou a extensão do seu culto, pelo que num
ápice o deus tornou-se patrono de diversas províncias do Alto e do Baixo Egipto, acabando
mesmo por usurpar a identidade e o poder das deidades locais, como, por exemplo, Sopedu
(em zonas orientais do Delta) e Khentekthai (no Delta Central). Finalmente, integra a
cosmogonia de Heliópolis enquanto filho de Ísis e Osíris, englobando díspares divindades
cuja ligação remonta a este parentesco. O Hórus do mito osírico surge como um homem com
cabeça de falcão que, à semelhança de seu pai, ostenta a coroa do Alto e do Baixo Egipto. É
igualmente como membro desta tríade que Hórus saboreia o expoente máximo da sua
popularidade, sendo venerado em todos os locais onde se prestava culto aos seus pais. A
Lenda de Osíris revela-nos que, após a celestial concepção de Hórus, benção da magia que
facultou a Ísis o apanágio de fundir-se a seu marido defunto em núpcias divinas, a deusa,
receando represálias por parte de Seth, evoca a protecção de Ré- Atum, na esperança de
salvaguardar a vida que florescia dentro de si.
Receptivo às preces de Ísis, o deus solar velou por ela até ao tão esperado nascimento.
Quando este sucedeu, a voz de Hórus inebriou então os céus: “ Eu sou Hórus, o grande
falcão. O meu lugar está longe do de Seth, inimigo de meu pai Osíris. Atingi os caminhos da
eternidade e da luz. Levanto voo graças ao meu impulso. Nenhum deus pode realizar aquilo
que eu realizei. Em breve partirei em guerra contra o inimigo de meu pai Osíris, calcá-lo-ei
sob as minhas sandálias com o nome de Furioso... Porque eu sou Hórus, cujo lugar está
longe dos deuses e dos homens. Sou Hórus, o filho de Ísis.” Temendo que Seth abraçasse a
resolução de atentar contra a vida de seu filho recém- nascido, Ísis refugiou-se então na ilha
flutuante de Khemis, nos pântanos perto de Buto, circunstância que concedeu a Hórus o
epíteto de Hor- heri- uadj, ou seja, “Hórus que está sobre a sua planta de papiro”. Embora a
natureza inóspita desta região lhe oferecesse a tão desejada segurança, visto que Seth
jamais se aventuraria por uma região tão desértica, a mesma comprometia,
concomitantemente, a sua subsistência, dada a flagrante escassez de alimentos
característica daquele local. Para assegurar a sua sobrevivência e a de seu filho, Ísis vê-se
obrigada a mendigar, pelo que, todas as madrugadas, oculta Hórus entre os papiros e erra
pelos campos, disfarçada de mendiga, na ânsia de obter o tão necessário alimento. Uma
noite, ao regressar para junto de Hórus, depara-se com um quadro verdadeiramente
aterrador: o seu filho jazia, inanimado, no local onde ela o abandonara. Desesperada, Ísis
procura restituir-lhe o sopro da vida, porém a criança encontrava-se demasiadamente débil
para alimentar-se com o leite materno. Sem hesitar, a deusa suplica o auxílio dos aldeões,
que todavia se relevam impotentes para a socorrer.
Quando o sofrimento já quase a fazia transpor o limiar da loucura, Ísis
vislumbrou diante de si uma mulher popular pelos seus dons de magia, que prontamente
examinou o seu filho, proclamando Seth alheio ao mal que o atormentava. Na realidade,
Hórus ( ou Harpócrates, Horpakhered- “Hórus menino/ criança”) havia sido simplesmente
vítima da picada de um escorpião ou de uma serpente. Angustiada, Ísis verificou então a
veracidade das suas palavras, decidindo-se, de imediato, e evocar as deusas Néftis e Selkis
(a deusa- escorpião), que prontamente ocorreram ao
local
da tragédia, aconselhando-a a rogar a Ré que
suspendesse o seu percurso usual até que Hórus
convalescesse integralmente. Compadecido com as
suplicas de uma mãe, o deus solar ordenou assim a Toth
que
salvasse a criança. Quando finalmente se viu diante de
Hórus
e Ísis, Toth declarou então: “ Nada temas, Ísis! Venho até ti, armado do sopro vital que
curará a criança. Coragem, Hórus! Aquele que habita o disco solar protege-te e a protecção
de que gozas é eterna. Veneno, ordeno-te que saias! Ré, o deus supremo, far-te-á
desaparecer. A sua barca deteve-se e só prosseguirá o seu curso quando o doente estiver
curado. Os poços secarão, as colheitas morrerão, os homens ficarão privados de pão
enquanto Hórus não tiver recuperado as suas forças para ventura da sua mãe Ísis. Coragem,
Hórus. O veneno está morto, ei- lo vencido.”
Após haver banido, com a sua magia divina, o letal veneno que estava prestes a oferecer
Hórus à morte, o excelso feiticeiro solicitou então aos habitantes de Khemis que velassem
pela criança, sempre que a sua mãe tivesse necessidade de se ausentar. Muitos outros
sortilégios se abateram sobre Hórus no decorrer da sua infância (males intestinais, febres
inexplicáveis, mutilações), apenas para serem vencidos logo de seguida pelo poder da magia
detida pelas sublimes deidades do panteão egípcio. No limiar da maturidade, Hórus,
protegido até então por sua mãe, Ísis, tomou a resolução de vingar o assassinato de seu pai,
reivindicando o seu legítimo direito ao trono do Egipto, usurpado por Seth. Ao convocar o
tribunal dos deuses, presidido por Rá, Hórus afirmou o seu desejo de que seu tio deixasse,
definitivamente, a regência do país, encontrando, ao ultimar os seus argumentos, o apoio de
Toth, deus da sabedoria, e de Shu, deus do ar. Todavia, Ra contestou-os, veementemente,
alegando que a força devastadora de Seth, talvez lhe concedesse melhores aptidões para
reinar, uma vez que somente ele fora capaz de dominar o caos, sob a forma da serpente
Apópis, que invadia, durante a noite, a barca do deus- sol, com o fito de extinguir, para toda
a eternidade, a luz do dia. Ultimada uma querela verbal, que cada vez mais os apartava de
um consenso, iniciou-se então uma prolixa e feroz disputa pelo poder, que opôs em
confrontos selváticos, Hórus a seu tio. Após um infrutífero rol de encontros quase soçobrados
na barbárie, Seth sugeriu que ele próprio e o seu adversário tomassem a forma de
hipopótamos, com o fito de verificar qual dos dois resistiria mais tempo, mantendo-se
submergidos dentro de água.
Escoado algum tempo, Ísis foi incapaz de refrear a sua apreensão e criou um arpão, que
lançou no local, onde ambos haviam desaparecido. Porém, ao golpear Seth, este apelou aos
laços de fraternidade que os uniam, coagindo Ísis a sará-lo, logo em seguida. A sua
intervenção enfureceu Hórus, que emergiu das águas, a fim de decapitar a sua mãe e, acto
contíguo, levá-la consigo para as montanhas do deserto. Ao tomar conhecimento de tão
hediondo acto, Rá, irado, vociferou que Hórus deveria ser encontrado e punido severamente.
Prontamente, Seth voluntariou-se para capturá-lo. As suas buscas foram rapidamente
coroadas de êxito, uma vez que este nem ápice se deparou com Hórus, que jazia,
adormecido, junto a um oásis. Dominado pelo seu temperamento cruel, Seth arrancou
ambos os olhos de Hórus, para enterrá-los algures, desconhecendo que estes floresceriam
em botões de lótus. Após tão ignóbil crime, Seth reuniu-se a Rá, declarando não ter sido
bem sucedido na sua procura, pelo que Hórus foi então considerado morto. Porém, a deusa
Hátor encontrou o jovem deus, sarando-lhe, miraculosamente, os olhos, ao friccioná-los com
o leite de uma gazela. Outra versão, pinta-nos um novo quatro, em que Seth furta apenas o
olho esquerdo de Hórus, representante da lua. Contudo, nessa narrativa o deus-falcão,
possuidor, em seus olhos, do Sol e da lua, é igualmente curado.
Em ambas as histórias, o Olho de Hórus, sempre representado no singular, torna-se mais
poderoso, no limiar da perfeição, devido ao processo curativo, ao qual foi sujeito. Por esta
razão, o Olho de Hórus ou Olho de Wadjet surge na mitologia egípcia como um símbolo da
vitória do bem contra o mal, que tomou a forma de um amuleto protector. A crença egípcia
refere igualmente que, em memória desta disputa feroz, a lua surge, constantemente,
fragmentada, tal como se encontrava, antes que Hórus fosse sarado. Determinadas versões
desta lenda debruçam-se sobre outro episódio de tão desnorteante conflito, em que Seth
conjura novamente contra a integridade física de Hórus, através de um aparentemente
inocente convite para o visitar em sua morada. A narrativa revela que, culminado o jantar,
Seth procura desonrar Hórus, que, embora precavido, é incapaz de impedir que um gota de
esperma do seu rival tombe em suas mãos. Desesperado, o deus vai então ao encontro de
sua mãe, a fim de suplicar-lhe que o socorra. Partilhando do horror que
inundava Hórus, Ísis decepou as mãos do filho, para arremessá-las de
seguida à água, onde graças à magia suprema da deus, elas
desaparecem no lodo. Todavia, esta situação torna-se insustentável
para Hórus, que toma então a resolução de recorrer ao auxílio do
Senhor Universal, cuja extrema bonomia o leva a compreender o sofrimento do deus- falcão
e, por conseguinte, a ordenar ao deus- crocodilo Sobek, que resgatasse as mãos perdidas.
Embora tal diligência haja sido coroada de êxito, Hórus depara-se com mais um imprevisto:
as suas mãos tinham sido abençoadas por uma curiosa autonomia, incarnando dois dos
filhos do deus- falcão.
Novamente evocado, Sobek é incumbido da taregfa de capturar as mãos que teimavam em
desaparecer e levá-las até junto do Senhor Universal, que, para evitar o caos de mais uma
querela, toma a resolução de duplicá-las. O primeiro par é oferecido à cidade de Nekhen, sob
a forma de uma relíquia, enquanto que o segundo é restituído a Hórus. Este prolixo e
verdadeiramente selvático conflito foi enfim solucionado quando Toth persuadiu Rá a dirigir
uma encomiástica missiva a Osíris, entregando-lhe um incontestável e completo título de
realeza, que o obrigou a deixar o seu reino e confrontar o seu assassino. Assim, os dois
deuses soberanos evocaram os seus poderes rivais e lançaram-se numa disputa ardente pelo
trono do Egipto. Após um recontro infrutífero, Ra propôs então que ambos revelassem aquilo
que tinham para oferecer à terra, de forma a que os deuses pudessem avaliar as suas
aptidões para governar. Sem hesitar, Osíris alimentou os deuses com trigo e cevada,
enquanto que Seth limitou-se a executar uma demonstração de força. Quando conquistou o
apoio de Ra, Osíris persuadiu então os restantes deuses dos poderes inerentes à sua
posição, ao recordar que todos percorriam o horizonte ocidental, alcançando o seu reino, no
culminar dos seus caminhos. Deste modo, os deuses admitiram que, com efeito, deveria ser
Hórus a ocupar o trono do Egipto, como herdeiro do seu pai. Por conseguinte, e volvidos
cerca de oito anos de altercações e recontros ferozes, foi concedida finalmente ao deusfalcão a tão cobiçada herança, o que lhe valeu o título de Hor-paneb-taui ou
Horsamtaui/Horsomtus, ou seja, “Hórus, senhor das Duas Terras”.
Como compensação, Rá concedeu a Seth um lugar no céu, onde este poderia desfrutar da
sua posição de deus das tempestades e trovões, que o permitia atormentar os demais. Este
mito parece sintetizar e representar os antagonismos políticos vividos na era pré- dinástica,
surgindo Hórus como deidade tutelar do Baixo Egipto e Seth, seu oponente, como protector
do Alto Egipto, numa clara disputa pela supremacia política no território egípcio. Este
recontro possui igualmente uma cerca analogia com o paradoxo suscitado pelo combate das
trevas com a luz, do dia com a noite, em suma, de todas as entidades antagónicas que
encarnam a típica luta do bem contra o mal. A mitologia
referente a este deus difere consoante as regiões e períodos
de tempo. Porém, regra geral, Hórus surge como esposo de
Háthor, deusa do amor, que lhe ofereceu dois filhos: Ihi, deus
da música e Horsamtui, “Unificador das Duas Terras”.
Todavia, e tal como referido anteriormente, Hórus foi
imortalizado através de díspares representações, surgindo por
vezes sob uma forma solar, enquanto filho de Atum- Ré ou
Geb e Nut ou apresentado pela lenda osírica, como fruto dos
amores entre Osíris e Ísis, abraçando assim diversas correntes
mitológicas, que se fundem, renovam e completam em sua
identidade. É dos muitos vectores em que o culto solar e o
culto osírico, os mais relevantes do Antigo Egipto, se complementam num oásis de Sol,
pátria de lendas de luz, em cujas águas d’ ouro voga toda a magia de uma das mais
enigmáticas civilizações da Antiguidade.
Detalhes e vocabulário egípcio:
culto de Hórus centralizava-se na cidade de Edfu, onde particularmente no período
ptolomaico saboreou uma estrondosa popularidade;
culto do deus falcão dispersou-se em inúmeros sub- cultos, o que criou lendas
controversas e inúmeras versões do popular deus, como a denominada Rá- Harakhty;
as estelas (pedras com imagens) de Hórus consideravam-se curativas de mordeduras de
serpentes e picadas de escorpião, comuns nestas regiões, dado representarem o deus na sua
infância vencendo os crocodilos e os escorpiões e estrangulando as serpentes. Sorver a água
que qualquer devotado lhe houvesse deixado sobre a cabeça, significava a obtenção da
protecção que Ísis proporcionava ao filho. Nestas estelas surgia, frequentemente, o deus
Bes, que deita a língua de fora aos maus espíritos. Os feitiços cobrem os lados externos das
estelas. Encontramos nelas uma poderosa protecção, como salienta a famigerada Estela de
Mettenich: “Sobe veneno, vem e cai por terra. Hórus fala-te, aniquila-te, esmaga-te; tu não
te levantas, tu cais, tu és fraco, tu não és forte; tu és cego, tu não vês; a tua cabeça cai
para baixo e não se levanta mais, pois eu sou Hórus, o grande Mágico.”.
out- embalsamadores
vabet- lugar de purificação
OSÍRIS
Osíris é, indubitavelmente a mais célebre deidade do panteão egípcio e igualmente uma das
mais complexas, pelo que não é, pois, de estranhar que os teólogos tenham procurado
sintetizar os díspares aspectos desta personagem, através da criação de uma lenda. Para
infortúnio de todos os amantes da mitologia egípcia a denominada “Lenda de Osíris” não é
relatada integralmente por nenhum documento egípcio, fragmentando-se assim em trechos
esparsos que relatam uma ou outra circunstância. Na realidade, a descrição completa das
suas aventuras é nos oferecida por Plutarco, filósofo e escritor grego, através da sua obra
“Ísis e Osíris”, na qual podemos verificar que a lenda se encontra dividida em três momentos
fundamentais: o ímpio assassinato de Osíris; o nascimento e a infância de Hórus, seu filho; e
o recontro entre este e Seth, aquele que lançara Osíris nos braços da morte.
Mas quem é afinal este deus, venerado por reis e plebeus, cujo coração encarnava a
felicidade eterna, oferecida por seu pulsar a todos aqueles que o escutassem? Osíris
despontou do seio da famigerada éneade de Heliópolis, denominação concedida à família
divina criada por Átum-Rá, e na qual se reuniam nove poderosas deidades, cujas origens são
narrados num mito arcaico da criação: Do caos inerte, que envolvia o universo, sob a forma
do primitivo oceano Nun, emergiu uma colina de lodo, na qual poisou, latente no corpo de
um escaravelho ou serpente, o deus- criador Átum, "Senhor Uno de nome misterioso", que
através do seu sémen, gerou o primeiro casal divino, constituído por Shu, a atmosfera, e
Tefnut, a humidade, os quais, por ser turno, procriaram Geb, a Terra, e Nut, o céu, cujos
corpos achavam-se fundidos em eternas núpcias de luz. Devido à intervenção de Ra, a quem
desagradava a visão de tal amor, Shu foi coagido a separar o céu e a terra. Porém, ao
apartar tão sublimes amantes, o deus estava igualmente a sonhar uma imagem poética,
incessantemente, representada pela arte egípcia, na qual, acima de Geb, surge um homem
nu, alongado e enfeitado com plumas, erguendo nos braços Nut, de corpo semeado de
estrelas.
O nascimento de Osíris, fruto dos amores entre o céu e a terra é nos relatado por um mito
que não carece de originalidade: Quando o deus- sol Ra abraçou a percepção de que no
jardim da alma de Nut, desabrochava a rosa do desejo, cujo perfume incensava os seus
encontros clandestinos com Geb, ele tomou a resolução de confiná-lo ao álgido Inferno de
uma maldição: a deusa é proibida de dar à luz no período de tempo compreendido pelo
calendário oficial. Desesperada, Nut, que se encontrava grávida de quíntuplos, resolve então
pedir ajuda a Thot, senhor do tempo, que segundo alguns referem, lhe dedica uma paixão
secreta. Após haver meditado sobre todas as soluções plausíveis, Thot enlaça então a
resolução de jogar aos dados com a Lua. Abençoado pela Fortuna, o deus ganha a partida e
obtém cinco dias suplementares no calendário. Nestes cinco dias, considerados como
distintos do ano de doze meses, a maldição perdia o seu efeito, pelo que Osíris pôde enfim
sublimar o mundo com seu nascimento, ocorrido no primeiro destes dias. Segundo a lenda,
no instante em que Osíris floresceu para a vida, uma voz incendiou os céus com o fogo da
seguinte anunciação: “O Senhor de tudo veio ao mundo!”. Algumas fontes referem também
que um certo Pamyles escutou uma voz provinda de um templo tebano, que, num grito
tonitruante lhe anunciou que o magnânimo Osíris, rei dos céus e da terra, havia nascido. No
segundo dos dias suplementares, Nut deu à luz Hórus, o Antigo; no terceiro, o deus Seth; no
quarto, Ísis; e, por fim, no quinto, Néftis, desposada por Seth.
É na qualidade de primogénito, que Osíris
herda a soberania terrestre, pelo que, após
unir-se a Ísis em esponsais divinos, ascendeu
ao trono do Egipto, iluminando este país com o
Sol de magnanimidade e indulgência que
dourava a sua alma. Reinando como soberano
da terra, Osíris arrebatou os egípcios às garras
da selvajaria que os escravizara até então,
concedeu-lhes leis e fê-los descobrir a arte de
prestar culto aos deuses. Por seu turno, Ísis, a
quem a corrente prática de canibalismo
horrorizava, ofereceu aos Homens o trigo e a
cevada, que Osíris os ensinou a cultivar,
levando-os a abdicar dos seus costumes
antropófagos, em prole de uma dieta de cereais. Para além disso, Osíris é conhecido por
haver sido o primeiro a colher frutos das árvores, a assentar a vinha em estacas e a pisar as
uvas, visando a confecção de vinho. Na ânsia de enriquecer o tesouro da humanidade com a
jóia rara do conhecimento, Osíris delegou a Ísis todas as responsabilidades subjacentes ao
governo do Egipto e percorreu o mundo, saciando a sua sede com o cálice da civilização e a
sua fome com o desvendar dos segredos da agricultura. O seu reinado foi assim uma sonata
de harmonia perfeita, tocada no piano de luz da felicidade suprema. Todavia, em breve um
artífice das trevas consagrado mestre da sua eterna confraria de sombras e medos, iria
esculpir o mais nefasto silêncio, pois apesar dos poderes inerentes à sua divindade, Osíris
viria a aproximar-se da humanidade, ao partilhar com ela a vereda da morte. Seu irmão
Seth, esposo de Néftis, cuja alma era escrava da inveja, cobiça e ódio, ofereceu um fausto
banquete, no qual exibiu uma extraordinária urna, prometendo oferecê-la, a quem nela
coubesse.
Quando Osíris aceitou o desafio, Seth selou a urna e arremessou-a ao Nilo. Ao aperceber-se
de que, após uma apaixonada busca, Ísis a havia encontrado, Seth tornou a apoderar-se
dela, retalhando o corpo do irmão, para lançá-lo, novamente, ao rio. Desesperada, Ísis
tomou então a resolução de recuperar os catorze fragmentos do cadáver de Osíris,
percorrendo, para tal efeito, todo o país. Após conquistado o sucesso, Anúbis, deus do
embalsamamento, possuidor de uma cabeça de chacal, e que muitos proclamam como filho
de Osíris e de Néftis, reuniu os catorze fragmentos do cadáver do poderoso deus, enrolandoos em ligaduras, com o fito de criar a primeira múmia. Ísis tomou então a forma de um
falcão fêmea, de cujas asas o seu esposo recebeu, uma vez mais, a vida que havia perdido,
podendo então gerar o deus- falcão, Hórus, herdeiro do trono que o seu tio Seth havia
usurpado. Ultimado este acto, Osíris necessitou de regressar ao submundo, tornando-se no
"Senhor da Eternidade", soberano dos mortos, que preside aos julgamentos do além. É
representado na arte egípcia como um homem de rosto esverdeado, qual lodo que concebe a
vida do Egipto, ostentando as insígnias do poder: coroa, ceptro em gancho e chicote.
Contudo, o seu corpo assemelha-se rígido, dado surgir como uma múmia enfaixada. Este
mito reflecte flagrantemente uma paixão, representando Osíris como um ser que, na terra,
foi vítima de uma traição que o teria confinado à extinção eterna, caso um amor isento de
limites não se houvesse oposto a tão lúgubre fortuna, reinventando em seu corpo a arte
perdida da vida, através de uma esplendorosa ressurreição. Compreende-se assim que todos
procurem a benção deste deus, uma vez que somente ele coroa o firmamento da vida com o
arco-íris da eternidade. Assim, não constitui qualquer surpresa verificar que no Antigo
Império, o faraó defunto, na ânsia de com o deus se identificar, recebia o epíteto de Osíris,
enquanto que o regente abraçava a denominação de Hórus. Todavia, vicissitudes políticosociais ocorridas no final do mesmo, permitiram que a benção de Osíris deixasse de ser
prerrogativa exclusiva dos soberanos, estendendo-se assim a todos funcionários. No entanto,
nem sempre Osíris usufruiu desta fama, sendo pois fruto de uma prolixa evolução.
Na realidade, Osíris foi venerado desde uma época muito antiga,
principiando por encarnar um deus da fertilidade, relacionado com o
milho, com o ciclo do seu enterramento como semente, o seu tempo
de repouso debaixo da terra, a sua germinação e, finalmente, o seu
retorno à vida. Era sua, portanto, a incumbência de propiciar aos
egípcios uma boa colheita, sendo também responsável pela
inundação do Nilo. À medida que a sua importância aumentava,
Osíris assimilou características de outros deuses, os quais substituiu
gradualmente. Em Mênfis, por exemplo, adoptou as características
funerárias de Sokaris e, em Abidos, usurpou a identidade e o culto
de Khentiamentiu, deus dos mortos e soberano das necrópoles.
Posteriormente, integrou a cosmogonia de Heliópolis,
transformando-se no legítimo herdeiro de Geb e Nut. Como símbolo
da ressurreição, Osíris supervisionava as entradas no seu mundo, surgindo como um Sol,
durante o poente. O culto de Osíris e Isís proliferou-se, com surpreendente popularidade, na
bacia mediterrânea, durante a Época Baixa (664-332 a.C./ XXVI- XXX Dinastias),
influenciando, segundo muitos historiadores também o cristianismo, com os seus
ensinamentos sobre morte e ressurreição. Osíris, Ísis e Hórus formaram a Tríade (família
constituída por três divindades) de Abidos, cidade onde se centralizou o seu culto, celebrado
num dos maiores santuários egípcios, em cujo interior jazia a cabeça do deus da morte. Era
de facto naquela que viria a tornar-se na capital da oitava província do Alto Egipto, que
decorria o festival anual de Osíris, ao longo do qual a barca do deus era levada em procissão
e a vitória de Osíris sobre os seus inimigos celebrada.
Todavia, também outras cidades foram iluminadas pela benção de Osíris, ao receberem
partes do corpo retalhado do deus, salientando-se Busíris (“Domínio de Osíris” ou “Lugar de
Osíris”, no Delta Central, como uma das mais famosas, dada a sua relação com a espinha
dorsal de Osíris. Por seu turno, Per- Medjed, capital da 19ª capital do Alto Egípcio, estava
ligada ao mito de Osíris, através do seu falo, que, segundo a tradição, jamais foi descoberto
por Ísis.
Detalhes e Vocabulário Egípcio:
Eneada de Heliópolis: família divina constituída por Átum, deus criador, Tefnu, humidade,
Shu, atmosfera, Geb, terra, Nut, céu, Osíris, Ísis, Néftis e Seth.
Ousir- Osíris
Neb djed- O Senhor da Eternidade.
Douat- submundo
Sah- múmia
ISÍS
Nenhuma personalidade do panteão egípcio pode rivalizar com a deusa Ísis, sublime essência
da alma de uma das mais excelsas e proeminentes civilizações da antiguidade e maga
detentora do esplendor ofuscante que a conduziu até ao auge da popularidade. Surgindo na
teologia heliopolitana como fruto dos amores entre o céu (Nut) e a terra (Geb), Ísis reinara
com uma sabedoria incontestável nas Duas Terras, o Alto e o baixo Egipto, muito antes do
nascimento das dinastias. O amor que unia Ísis a Osíris em ternos esponsais vestia a sua
alma com uma felicidade que abraçava o Infinito. Todavia, em breve a doce melodia que tão
mítica perfeição dedilhava na harpa da sua vida seria, pelas trevas, resumida a um rol de
acordes dissonantes, orquestrados numa sinfonia de silêncio e dor.
Tão vil prelúdio de uma noite sem fim surgiu sob a forma de um convite de Seth, que
solicitava afavelmente a presença de seu irmão Osíris num banquete. Sem jamais cogitar
que se tratava de uma ímpia conjuração, Osíris não declinou a oferta, colocando-se então à
mercê de um execrável assassino. Algures no decorrer do banquete, Seth apresentou um
caixão de proporções verdadeiramente excepcionais, assegurando que recompensaria
generosamente aquele que nele coubesse. Imprudente, Osíris aceitou prontamente o
desafio, permitindo que Seth e os seus acólitos pregassem a tampa e consequentemente o
tornassem escravo da morte. Cometido o hediondo crime, o assassino Seth, que cobiçava
ocupar o trono de seu irmão, lança a urna ao Nilo, para que o rio a conduzisse até ao mar,
onde veio a perder-se. Este trágico incidente deu-se no décimo sétimo dia do mês Athyr,
quando o Sol se encontra sob o signo de Escorpião. Quando Ísis tomou conhecimento do
ocorrido, baniu de sua alma todo o desespero que a assombrava e abraçou a resolução de
procurar o seu marido, a fim de lhe restituir o sopro da vida. Assim, cortou uma madeixa do
seu cabelo, estigma da sua desolação, colocou o seu vestuário matutino e errou por todo o
Egipto, na ânsia de ver a sua diligência coroada de êxito.
Por seu turno, e após haver dançado nas ondas do mar, a urna atingiu finalmente uma praia,
perto da Babilónia, na costa do Líbano, enlaçando-se nas raízes de um jovem tamarindo,
cujo prolixo crescimento a prendeu no interior do seu tronco. Ao alcançar o clímax da sua
beleza, a imponente árvore atraiu a atenção do rei desse país, persuadindo-o a ordenar ao
seu séquito que o tamarindo fosse derrubado, com o fito de ser
utilizado
como pilar na sua casa. Em simultâneo com o
crescimento da referida árvore, Ísis prosseguia tão
exaustivas busca pelo cadáver de seu marido, pelo
que, ao escutar as histórias tecidas em torno da
surpreendente árvore, tomou de imediato a
resolução de ir à Babilónia, na esperança de ultimar
enfim e com sucesso a sua odisseia. Ao chegar ao
seu destino, Ísis sentou-se perto de um poço,
ostentando um disfarce humilde e brindou os transeuntes que por ela passavam com um
rosto lavado em lágrimas. Os relatos da sua inusitada condição rapidamente chegaram aos
reis da Babilónia, que, intrigados, propuseram-se a conhecer o motivo de tanto desespero.
Quando Ísis os viu estancar defronte de si, presenteou-os com saudações cordiais,
reverentes e, solicitou-lhes que permitissem que os seus cabelos ela entrançasse. Uma vez
que os regentes, embora servos da perplexidade, não impuseram qualquer veto ao seu
convite, Ísis uniu o gesto à palavra, incensado as tranças que talhava pouco a pouco com o
divino perfume exalado por seu ástreo corpo. Ultimado tão peculiar ritual, a rainha da
Babilónia apressou-se a contemplar o resultado final, sendo enfeitiçada pelo irresistível
aroma que seus cabelos emanavam. Literalmente inebriada por tão doce perfume dos céus,
a rainha ordenou então a Ísis que a acompanhasse até ao palácio.
Assim, a deusa franqueou a entrada do palácio do rei da Babilónia, junto do qual conquistou
o privilégio de tornar-se na ama do filho recém-nascido do casal régio, a quem amamentava
com o seu dedo. Devido aos laços que a vinculavam à criança, Ísis desejou conceder-lhe a
imortalidade, pelo que, todas as noites, a queimou, num fogo divino e, como tal, indolor,
para que as suas partes mortais ardessem no esquecimento. Certa noite, durante este
processo, ela tomou a forma de uma andorinha, a fim de cantar as suas lamentações.
Maravilhada, a rainha seguiu a melopeia que escutava, entrando no quarto do filho, onde se
deparou com um ritual aparentemente hediondo. De forma a tranquilizá-la, Ísis revelou-lhe a
sua verdadeira identidade, e ultimou precocemente o ritual, mesmo sabendo que dessa
forma estaria a privar o pequeno príncipe da imortalidade que tanto desejava oferecer-lhe.
Observando que a rainha a contemplava, siderada, Ísis aventurou-se a confidenciar-lhe o
lancinante incidente que a coagira a visitar a Babilónia, conquistando assim a confiança e
benevolência da rainha, que prontamente aquiesceu em ceder-lhe a urna que continha os
restos mortais de seu marido. Dominada por uma intensa felicidade, Ísis apressou-se a
retirá-la do interior do pilar. Porém, fê-lo com tão negligente brusquidão, que os seus
escombros de pedra espalharam-se por toda a divisão, atingindo, mortalmente, o pequeno
príncipe. Na realidade, existem inúmeras versões deste fragmento da lenda, uma das quais
afirma que a rainha expulsou Ísis, ao vislumbrar o aterrador ritual, pelo que esta retirou a
urna, sem o consentimento dos seus donos. Porém, a veracidade desta versão semelha-se
deveras suspicaz...
Com a urna em seu poder, Ísis regressou ao Egipto, onde a abriu, ocultando-a,
seguidamente, nas margens do Delta. Numa noite, quando Ísis a deixou sem vigilância, Seth
descobriu-a e apoderou-se, uma vez mais dela, com o intento de retirar do seu interior o
corpo do irmão e cortá-lo em 14 pedaços, que foram, em seguida, arremessados ao Nilo. Ao
tomar conhecimento do ocorrido, Ísis reuniu-se com a sua irmã Néftis, que não também
tolerava a conduta de Seth, embora este fosse seu marido, e, juntas, recuperaram todos os
fragmentos do cadáver de Osíris, à excepção, segundo refere Plutarco, escritor grego, do seu
sexo, que fora comido por um peixe. Novamente deparamo-nos com alguma controvérsia,
uma vez que outras fontes egípcias afirmam que todo o corpo foi recuperado. Acto contínuo,
Ísis organizou uma vigília fúnebre, na qual suspirou ao cadáver reconstituído do marido: “Eu
sou a tua irmã bem amada. Não te afastes de mim, clamo por ti! Não ouves a minha voz?
Venho ao teu encontro e, de ti, nada me separará!” Durante horas, Ísis e Néftis, de corpo
purificado, inteiramente depiladas, com perucas perfumadas e boca purificada por natrão
(carbonato de soda), pronunciaram encantamentos numa câmara funerária ignota, que o
incenso queimado impregnava de espiritualidade. A deusa invocou então todos os templos e
todas as cidades do país, para que estes se juntassem à sua dor e fizessem a alma de Osíris
retornar do Além.
Uma vez que todos os seus esforços revelavam-se vãos, Ísis assumiu então a forma de um
falcão, cujo esvoaçar restituiu o sopro de vida ao defunto, oferecendo-lhe o apanágio da
ressurreição. Seguidamente, Ísis poisou no sítio do desaparecido sexo de Osíris, fazendo-o
reaparecer por magia, e manteve-o vivo o tempo suficiente para que este a engravidasse.
Em contraste, outras fontes garantem que Osíris e a sua esposa conceberam o seu filho,
antes do deus ser assassinado pelo seu irmão, embora a versão mais comum seja a
relatada, primeiramente. Assim, ao retornar à terra, Ísis encontrava-se agora grávida do
filho, a quem protegeria até que este achasse-se capaz de enfrentar o seu tio, apoderandose (como legítimo herdeiro) do trono que Seth havia usurpado. Alguns declaram que Ísis,
algum tempo antes do parto, fora aprisionada por Seth, mas que Toth, vízir de Osíris, a
auxiliara a libertar-se. Porém, muitos concordam que ela ocultou-se, secretamente, entre os
papiros do Delta, onde se preparou para o nascimento do filho, o deus- falcão Hórus. Quando
este nasceu, Ísis tomou a decisão de dedicar-se inteiramente à árdua incumbência de velar
por ele. Todavia, a necessidade de ir procurar alimentos, coagiam-na pontualmente a
ausentar-se, deixando assim o pequeno deus sem qualquer protecção. Numa dessas
ocasiões, Seth transformou-se numa serpente, visando espalhar o seu veneno pelo corpo de
Hórus, pelo que quando Ísis regressou da sua diligência, encontrou o seu filho já próximo
das morte.
Todavia, a sua vida não foi ceifada, devido a um poderoso feitiço executado pelo deus- sol,
Ra.
Dada a sua devotada protecção, Ísis era constantemente representada na arte egípcia a
amamentar tanto o seu filho, como os faraós. Sendo um dos mais populares vultos da
mitologia egípcia, cujo nome é representado por um trono (e crê-se que terá mesmo esse
significado), Ísis assume o lugar de deusa da família e do casamento, a quem foram
concedidos extraordinários poderes curativos, empregues, essencialmente, para salvar
crianças de mordeduras de cobras. Devido às suas qualidades maternais, surge, por vezes,
com a forma de uma porca ou de uma vaca, o que leva a que seja confundida com Háthor
(deusa do amor), com quem, na realidade, se fundiu, na Época Baixa (664-
332
a.C./ XXVI- XXX Dinastias), período de tempo em que o seu culto atingiu
auge. Deste modo, o seu culto proliferou-se por toda a bacia
mediterrânea, na qualidade de Ísis- Afrodite, o que demonstra bem a
forma como os romanos lhe prestavam culto, esculpindo imagens em
sua homenagem, nas quais ela surgia, muitas vezes, com uma túnica
que flutua ao vento e com um toucado composto por espigas, chifres de
vaca, um disco solar e penas de avestruz.
Em torno do seu temperamento bravio (tão díspar da sua maternidade e benevolência!),
teceu-se igualmente outra lenta, que narra a forma como Ísis, intrigada com o segredo que
sustinha os poderes de Ra, conjura para obter o nome secreto do Senhor Universal, matriz
das suas forças e esplendor. Assim, recolhe um pouco da sua saliva, amassa-a com terra e,
com essa argila, molda uma serpente em forma de flecha, que coloca na encruzilhada dos
caminhos desbravados pelo cortejo solar. Escrava da magia de Ísis, a serpente não hesita
em morder Ra à sua passagem, que, com um silvo de dor, desfalece. Quando recupera a
o
consciência, o deus- sol evoca, desesperado, todos os deuses, relatando-lhes o seu
infortúnio: “ O meu pai e a minha mãe ensinaram-me o meu nome e eu dissimulei-o no meu
corpo, para que mago algum o possa pronunciar como malefício para mim. Tinha eu saído
para contemplar a minha criação, quando algo que desconheço me mordeu. Não foi nem
fogo, nem água; mas o meu coração está em chamas, o meu corpo treme e os meus
membros estão frios. Tragam-me os meus filhos, os que conhecem as fórmulas mágicas e
cuja ciência chega aos céus!”. Ísis debruça-se sobre Rá e, simulando uma estupefacção
imensurável, questiona: “ Que se passa? Ter-se-ia um dos teus filhos erguido contra ti?
Então, destruí-lo-ei graças ao meu poder mágico e farei com que seja expulso da tua vista!”
Quando o deus- sol lhe confidenciou a matriz do seu padecimento, Ísis assegurou-lhe que
somente lhe entregaria o vital antídoto, caso este lhe revelasse a origem das suas
imensuráveis forças.
Exasperada por Rá se negar a atender á sua reivindicação, Ísis solicitou, novamente: “Dizme o teu nome, meu divino Pai! Porque o homem só revive quando é chamado pelo seu
nome!”
Escravizado pelo desespero, a personificação da luz oferece a Ísis um rol interminável de
nomes falsos, na ânsia de que a deusa não alcançasse a percepção de que ele procurava
ludibriá-la. Todavia, Ísis replicou: “ O teu nome não está entre aqueles que citaste! Diz-mo e
o veneno abandonará o teu corpo, porque o homem revive quando o seu nome é
pronunciado.”
Subjugado pela dor, Rá aceita o ultimato, mesmo sabendo que tal concederia a Ísis
autoridade sobre a sua pessoa. Num suspiro, declara então: “Olha, minha filha Ísis, de modo
que o meu nome passe do meu corpo para o teu... Mal ele saia do meu coração, repete-o ao
teu filho Hórus, submetendo-o a um juramento divino!”
Na realidade, todas as deusas egípcias possuíam esta dualidade, que as colocava entre a
crueldade extrema e a indulgência infinita, num jogo de luzes e sombras que não as
impediram de ser adoradas através dos tempos. A sua imagem é omnipresente e tanto cobre
os sumptuosos santuários do Vale do Nilo, como os mais íntimos testemunhos de devoção
pessoal. Porém, ao percorrermos o Egipto, deparamo-nos com três locais particularmente
abençoados com a magia de Ísis:
Behbeit el- Hagar, no Delta, onde um sumptuoso templo foi erigido em honra de Ísis.
Malogradamente, o halo de magia e espiritualidade que nimba esta excelsa deidade revelouse impotente para deter aqueles que, não votando qualquer respeito pela sua índole
sagrada, cometeram a ignomínia de destruir tão colossal santuário, onde os céus se
reflectiam e renovavam num jogo divino, a fim de o transformar numa pedreira.
Consequentemente, Behbeit el- Hagar é na actualidade um local quase literalmente
desconhecido dos turistas e que semeia uma franca desilusão nos corações dos intrépidos
que ainda o ousam visitar, pois a grandeza daquele que fora outrora um templo dedicado a
uma divindade verdadeiramente excepcional resume-se agora a um monte de escombros e
blocos de calcário ornados de cenas rituais.
Dendera, no alto Egipto, eterno berço de feitiços onde Ísis desabrochou para a vida, onde
nos deparamos com um santuário de Háthor parcialmente conservado, com um templo
coberto e com o mammisi, ou seja, “templo do nascimento de Hórus), assim como com um
exíguo santuário, onde a etérea Ísis nasceu, deslumbrando o mundo com sua pele rosada e
revolta cabeleira negra.
Filae, ilha- templo de Ísis, que serviu de refúgio à derradeira comunidade iniciática
egípcia, mais tarde (séc. VI d. C., mais precisamente) exterminada por cristãos escravos do
fanatismo.
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