1 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 2 Jadir Antunes Libanio Cardoso Neto Michelle Silvestre Cabral Roberto S. Kahlmeyer-Mertens (Organizadores) Anais do XIX Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea da UNIOESTE Toledo – PR 2014 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 3 Catalogação na Publicação elaborada pela Biblioteca Universitária UNIOESTE/Campus de Toledo. Bibliotecária: Marilene de Fátima Donadel - CRB – 9/924 S612a Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (18. : 2014, out. 07-10: Toledo - PR) Anais (do) XIX Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) (recurso eletrônico) / Organização de Jadir Antunes, Libanio Cardoso Neto, Michelle Silvestre Cabral e Roberto S. Kahlmeyer-Mertens. – Toledo : (s. n.), 2014. World wide web http://www.unioeste.br/filosofia/ Evento realizado no período de 07 a 10 de outubro de 2014, na Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE. Toledo, Pr. ISSN: 2176-2066 1. 1. Filosofia moderna – Congressos 2. Filosofia contemporânea – Congressos I. Antunes, Jadir Org. II Cabral, Michelle Silvestre, Org. III. Cardoso Neto, Libanio, Org. IV. Kahlmeyer-Mertens, Roberto, Org. VI. T. CDD 20. ed. 190.63 106.3 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 4 Comitê Científico: Epistemologia: Andre Leclerc (UFPB) Douglas Antonio Bassani (UNIOESTE) Marcelo do Amaral Penna-Forte (UNIOESTE) Remi Schorn (UNIOESTE) Estética: Olímpio José Pimenta Neto (UFOP) Pedro Costa Rego (UFRJ) Wilson Antonio Frezzatti Jr (UNIOESTE) Ensino de Filosofia: Altair Fávero (UPF) Ana Miriam Wuensch (UnB) Célia Machado Benvenho (UNIOESTE) Ester Maria Dreher Heuser (UNIOESTE) Filosofia da Mente: Marcos Rodrigues da Silva (UEL) Luiz Henrique Dutra (UFSC) Metafísica: Alberto Marcos Onate (UNIOESTE) Alexandre Tadeu Guimarâes de Soares (UFU) Clademir Luís Araldi (UFPel) Claudinei Aparecido de Freitas da Silva (UNIOESTE) César Augusto Battisti (UNIOESTE) ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 5 Cristiano Perius (UEM) Eder Soares Santos (UEL) Eneias Junior Forlin (UNICAMP) Erico Andrade Marques de Oliveira (UFPE) Libanio Cardoso (UNIOESTE) Luciano Carlos Utteich (UNIOESTE) Marisa Carneiro de O. F. Donatelli (UESC) Roberto Saraiva Kahlmeyer-Mertens (UNIOESTE) Filosofia Política: Aylton Barbieri Durão (UFSC) Carlo Gabriel Pancera (UFMG) Cláudio Boeira Garcia (UNIJUÍ) Delamar José Volpato Dutra (UFSC) Jadir Antunes (UNIOESTE) José Luiz Ames (UNIOESTE) Luis Portela (UNIOESTE) Marciano Adilio Spica (UNICENTRO) Tarcílio Ciotta (UNIOESTE) Rosalvo Schütz (UNIOESTE) ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 6 SUMÁRIO Apresentação..................................................................................................................................................9 Programação geral.......................................................................................................................................11 Programação comunicações......................................................................................................................14 Resumos......................................................................................................................................................27 Artigos completos.....................................................................................................................................165 Índice de autores dos resumos................................................................................................................571 Índice de autores dos artigos completos................................................................................................575 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 7 APRESENTAÇÃO O substantivo grego simpósium (συμπόσιον) tem sua origem no verbo simpinein (συμπίνειν), formado pela junção dos vocábulos σύν (com) e πίνειν (beber). Simpósio significa, assim, literalmente, juntar-se em grupo para beber. Simpósio pode significar, ainda, a ação de beber do mesmo copo e da mesma fonte. Um simpósio, portanto, ocorre todas as vezes em que um grupo de amigos se reúne para beber e conversar. Um simpósio de filosofia, deste modo, ocorre todas as vezes em que um grupo de amigos, entre si e do saber, se reúne para beber e conversar sobre temas filosóficos. O mais famoso dos simpósios filosóficos é aquele retratado por Platão no diálogo chamado Banquete, onde os convivas, liderados por Sócrates, bebem e discursam sobre os mais diversos significados, poéticos e filosóficos, do termo amor (Eros). Neste Banquete, os amigos do anfitrião e dramaturgo Agatão são convidados para beber, conversar e festejar sua vitória na gincana poética da cidade de Atenas. Neste Banquete, os diversos convivas, então, tais como o comediógrafo Aristófanes, o político Alcebíades e o filósofo Sócrates, entre outros, bebem, festejam e conversam noite adentro sobre o eterno tema do amor. Nosso Simpósio de Filosofia pretende continuar, ainda que em seus modestos limites e condições e de maneira apenas aproximada, a velha tradição poética e filosófica inaugurada pelos gregos de reunir os amigos do saber para beber e conversar sobre os mais diversos temas filosóficos da modernidade e da contemporaneidade. O Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea da UNIOESTE encontra-se em atividade desde 1996, sendo promovido pela Graduação e pelo Mestrado em Filosofia da UNIOESTE. Nosso simpósio já se encontra, portanto, plenamente consolidado dentro da comunidade filosófica nacional, reunindo os mais eminentes pesquisadores da área, sejam eles estudantes da graduação e da pós-graduação, professores da rede pública, mestres, doutores ou pós-doutores das mais diversas universidades do país. A consolidação de nosso simpósio pode ser observada pelos números e pela qualidade das atividades desenvolvidas: O XIXº Simpósio teve cerca de 350 participantes, sendo 250 inscritos e 100 não inscritos. Para festejar conosco e conversar sobre filosofia estiveram aqui palestrantes e participantes das mais diversas localidades da região sul do país. Da Região Oeste do Paraná ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 8 estiveram presentes cidadãos das cidades de Toledo, Cascavel, Marechal Cândido Rondon e Foz do Iguaçu; da Região Norte do Paraná estiveram os das cidades de Londrina e Maringá; da Região Centro Oeste do Paraná estiveram os da cidade de Guarapuava; e do Estado do Rio Grande do Sul estiveram presentes cidadãos das cidades de Santa Maria e Ijuí. Os palestrantes e minicursistas brasileiros, em número de dez, vieram para festejar e dialogar das cidades de Londrina, Maringá, Porto Alegre, Belém, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Goiânia. De Paris e Pisa vieram nossos conferencistas estrangeiros. Neste 19º Simpósio foram apresentados 135 resumos, 100 trabalhos completos, 105 comunicações, 8 palestras e 12 minicursos, totalizando 370 trabalhos. O presente livro de Anais publica, desta amostra, ao redor de 50 trabalhos completos e 110 resumos, entre simples e expandidos. Em conformidade ao espírito festivo de trabalho e discussão, esperamos que a leitura destes textos seja tão agradável e frutífera quanto foram a festa e a presença de todos os participantes em nosso simpósio. Jadir Antunes; Roberto S. Kahlmeyer-Mertes, Coordenadores do XIX Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea da UNIOESTE ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 9 PROGRAMAÇÃO GERAL Terça-feira: 07/10/2014 08:30 – 09:30 Abertura 09:30 – 11:30 Conferência: Dra. Marie Gaille (Université Paris-Diderot – França): Saúde, corpo e usos do corpo: um lugar para a democracia. 14:00 – 18:00 Comunicações e mesas redondas 19:00 – 20:45 Conferência: Dr. Ernani Chaves (UFPA): Nietzsche, Foucault e a Teoria Crítica (UFPA) 21:00 – 22:30 Conferência: Dr. Silvio Gallo (Unicamp): Michel Foucault e uma filosofia outra. Quarta-feira: 08/10/2014 08:30 – 11:45 Minicursos: Críticas à Metafísica na Alemanha do Século XIX Grupo de Pesquisa em Filosofia, Ciência e Natureza na Alemanha do Século XIX. Coordenador: Dr. Wilson Frezzatti Jr. (Unioeste). Ministrantes: Dr. Wagner Félix (UEM), Dr. Jadir Antunes (Unioeste) e Dr. Wilson Antonio Frezzatti Jr. (Unioeste). A racionalidade em três vieses Grupo de Pesquisa em Lógica, Epistemologia e Filosofia da Linguagem. Coordenador: Dr. Marcelo do Amaral Penna-Forte (Unioeste). Ministrantes: Dr. Gelson Liston (UEL), Dr. Marcelo do Amaral Penna-Forte (Unioeste), Dr.ª Halina Macedo Leal (Unioeste). Direitos Humanos Grupo de Pesquisa em Ética e Filosofia Política. Coordenador: Dr. Bernardo Alfredo Mayta Sakamoro (Unioeste). Ministrantes: Dr. Bernardo Alfredo Mayta Sakamoro (Unioeste), Dra. Helena Esser dos Reis (UFG), Dra. Rosa de Lourdes Aguilar Verástegui (UEL). Fenomenologia Grupo de Pesquisa em História da Filosofia. Coordenador: Dr. Roberto Kahlmeyer-Mertens (Unioeste). Ministrantes: Dr. Roberto Kahlmeyer-Mertens (Unioeste), Dr. Claudinei Aparecido Silva (Unioeste) e Dr. Carlos Tourinho (UFF). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 10 14:00 – 18:00 Comunicações e mesas redondas 19:00 – 20:45 Conferência: Dr. João Carlos Brum Torres (UCS).: A teoria kantiana dos conceitos . 21:00 – 22:30 Conferência: Dr. Mauro Castelo Branco de Moura (UFBA): Sobre a Riqueza Burguesa. Quinta-feira: 09/10/2014 08:30 – 11:45 Minicursos: Críticas à Metafísica na Alemanha do Século XIX Grupo de Pesquisa em Filosofia, Ciência e Natureza na Alemanha do Século XIX. Coordenador: Dr. Wilson Frezzatti Jr. (Unioeste). Ministrantes: Dr. Wagner Félix (UEM), Dr. Jadir Antunes (Unioeste) e Dr. Wilson Antonio Frezzatti Jr. (Unioeste). A racionalidade em três vieses Grupo de Pesquisa em Lógica, Epistemologia e Filosofia da Linguagem. Coordenador: Dr. Marcelo do Amaral Penna-Forte (Unioeste). Ministrantes: Dr. Gelson Liston (UEL), Dr. Marcelo do Amaral Penna-Forte (Unioeste), Dr.ª Halina Macedo Leal (Unioeste). Direitos Humanos Grupo de Pesquisa em Ética e Filosofia Política. Coordenador: Dr. Bernardo Alfredo Mayta Sakamoro (Unioeste). Ministrantes: Dr. Bernardo Alfredo Mayta Sakamoro (Unioeste), Dra. Helena Esser dos Reis (UFG), Dra. Rosa de Lourdes Aguilar Verástegui (UEL). Fenomenologia. Grupo de Pesquisa em História da Filosofia. Coordenador: Dr. Roberto Kahlmeyer-Mertens (Unioeste). Ministrantes: Dr. Roberto Kahlmeyer-Mertens (Unioeste), Dr. Claudinei Aparecido Silva (Unioeste) e Dr. Carlos Tourinho (UFF). 14:00 – 18:00 Comunicações e mesas redondas 19:00 – 20:45 Conferência: Dr. Carlos Tourinho(UFF): O lugar da experiência na fenomenologia de Husserl: de Prolegômenos à Ideias I. 21:00 – 22:30 Conferência: Dra. Helena Reis(UFG): Filosofia e Direitos Humanos. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 11 Sexta-feira: 10/10/2014 08:30 – 11:45 Minicursos: Críticas à Metafísica na Alemanha do Século XIX Grupo de Pesquisa em Filosofia, Ciência e Natureza na Alemanha do Século XIX. Coordenador: Dr. Wilson Frezzatti Jr. (Unioeste). Ministrantes: Dr. Wagner Félix (UEM), Dr. Jadir Antunes (Unioeste) e Dr. Wilson Antonio Frezzatti Jr. (Unioeste). A racionalidade em três vieses Grupo de Pesquisa em Lógica, Epistemologia e Filosofia da Linguagem. Coordenador: Dr. Marcelo do Amaral Penna-Forte (Unioeste). Ministrantes: Dr. Gelson Liston (UEL), Dr. Marcelo do Amaral Penna-Forte (Unioeste), Dr.ª Halina Macedo Leal (Unioeste). Direitos Humanos Grupo de Pesquisa em Ética e Filosofia Política. Coordenador: Dr. Bernardo Alfredo Mayta Sakamoro (Unioeste). Ministrantes: Dr. Bernardo Alfredo Mayta Sakamoro (Unioeste), Dra. Helena Esser dos Reis (UFG), Dra. Rosa de Lourdes Aguilar Verástegui (UEL). Fenomenologia. Grupo de Pesquisa em História da Filosofia. Coordenador: Dr. Roberto Kahlmeyer-Mertens (Unioeste). Ministrantes: Dr. Roberto Kahlmeyer-Mertens (Unioeste), Dr. Claudinei Aparecido Silva (Unioeste) e Dr. Carlos Tourinho (UFF). 14:00 – 18:00 Comunicações e mesas redondas 19:00 – 20:45 Conferência: Dr. Stefano Busellato (Università degli Studi di Pisa – Itália). Nietzsche e as doenças. Local: Unioeste Campus de Toledo – Toledo, PR. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 12 PROGRAMAÇÃO DAS COMUNICAÇÕES 07/Outubro: Terça-feira 13h30 Mesa “Platão” – Sala 06 Angélica de F. de Almeida Lara UMA REFLEXÃO ACERCA DA BIVALÊNCIA DA AÇÃO JUSTA NO LIVRO II DA REPÚBLICA Thayla Gevehr (mediadora) HEIDEGGER E FRIEDLÄNDER: UMA DISCUSSÃO SOBRE A TRADUÇÃO E INTERPRETAÇÃO DE ALÉTHEIA, NA FILOSOFIA PLATÔNICA Poliana Tomazi Vieira Lopes AMOR: A MEDIDA DO SER? Mesa “Marx” – Sala 01 Marco Aurélio Palu O JOVEM MARX E A CRÍTICA ONTOLÓGICA DA POLÍTICA: ANÁLISE DOS ESCRITOS POLÍTICOS DE 1842 A 1844 Bruno Gonçalves da Paixão (mediador) POLÍTICA EM MARX: VARIAÇÕES SOBRE O MESMO TEMA Adriana Paula de Souza A QUESTÃO DO ESTADO NO 18 DE BRUMÁRIO Matheus Bernardes Galieta / Matheus I. Silva França Viviane Bonfim Fernandes MARX E O TRABALHO EXPLORADO A ABSTRAÇÃO DO VALOR DE TROCA EM O CAPITAL, DE KARL MARX Mesa “Descartes e a metafísica moderna” – Sala 08 Juliana Abuzaglo Elias Martins O ASPECTO REPRESENTATIVO DA IDEIA EM DESCARTES Isis Moraes Zanardi DEUS E O CONHECIMENTO DO MUNDO EXTERNO NO PENSAMENTO DE DESCARTES João Antônio Ferrer Guimarães (mediador) LEIBNIZ E A SUPERAÇÃO DA NOÇÃO CARTESIANA DE SUBSTÂNCIA ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 13 Mesa “Problemas Filosofia da Ciência” – Sala 20 João Vitor de Oliveira Rego / Pedro Augusto Baleroni LAKATOS: A CRÍTICA À PESQUISA CIENTÍFICA Erickson dos Santos (mediador) A COMUNIDADE CIENTÍFICA NAS CIÊNCIAS PURAS E APLICADAS Mesa “Deleuze” – Sala 02 UM ESBOÇO PARA UMA A IMANÊNCIA ABSOLUTA E UMA ÉTICA VITALISTA: DELEUZE ENTRE SPINOZA E NIETZSCHE Leandro Nunes Sindy Mirian Leite DELEUZE, SPINOZA E UEXKÜLL: UM VITALISMO ÉTICO PELA VIA ETOLÓGICA Anna Maria Lorenzoni (mediadora) FILOSOFIA, ARTE E CIÊNCIA CONVERGÊNCIAS E DIVERGÊNCIAS A PARTIR DE DELEUZE E GUATTARI 07/Outubro: Terça-feira 15h30 Mesa “Filosofia Medieval / Maquiavel : amor e liberdade, da religião à política” – Sala 06 Valbert Luíz Cortarelli Júnior A JUSTIFICAÇÃO COMO MEIO PARA LIBERDADE PARA SANTO AGOSTINHO Douglas Meneghatti (mediador) VONTADE E AMOR EM SANTO AGOSTINHO Anderson Lucas dos Santos Pereira HUGO DE SÃO VÍTOR E O PROBLEMA DO AMOR DESINTERESSADO Lairton Moacir Winter MAQUIAVEL: A LIBERDADE COMO EQUILÍBRIO DOS HUMORES ANTAGÔNICOS. Mesa “Descartes / Galileu – a filosofia da ciência moderna e sua crítica” – Sala 08 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 14 Renato Francisco Merli A DISTINÇÃO DE CURVAS GEOMÉTRICAS E CURVAS MECÂNICAS EM DESCARTES E NOS GEÔMETRAS GREGOS Luiz Antonio Brandt O DIÁLOGO E A DEFESA DA MOBILIDADE DA TERRA: AS CRÍTICAS GALILEANAS À COSMOLOGIA ARISTOTÉLICA César Augusto Battisti (mediador) RESOLUÇÃO DE PROBLEMAS EM DESCARTES: O CASO DA “GEOMETRIA” Leandro Righi de Sousa MICHEL HENRY E A CRÍTICA AO REDUCIONISMO-GALILAICO Mesa “Nietzsche 1” – Sala 17 O MESTRE ANDARILHO EM NIETZSCHE Kelly Cristina Sherer NIETZSCHE: A CRÍTICA A MORAL E A TRANSMUTAÇÃO DE VALORES TIPOS MORAIS Maria Eduarda Pereira Roni Lenon da Silva (mediador) André Murilo Oliveira UMA VISÃO BASEADA NA VERDADEIRA LIBERDADE DA MORAL DE NIETZSCHE Mesa “Foucault 1” – Sala 01 Lucas Silva Russo / Allan G. Vilas Boas Palomares FOUCAULT: A ORDEM DO DISCURSO E O MÉTODO DOS SABERES Matheus Avelaneda / Anderson Alieve MICHEL FOUCAULT: O DISPOSITIVO EDUCACIONAL NA FORMAÇÃO DE SUBJETIVIDADE, SEXUALIDADE E BIOPOLÍTICA Daniel Salésio Vandresen (mediador) A FILOSOFIA COMO PARRESÍA: UMA ÉTYMOS TÉKHNE (TÉCNICA AUTÊNTICA) Mesa “Antropologia filosófica” – Sala 08 Alderberti Batista Prado (mediador) DELINEAMENTOS SOBRE A CONSTITUIÇÃO DA NATUREZA HUMANA EM DAVID HUME ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 15 Jarbas Mauricio Gomes A CONCEPÇÃO DE NATUREZA HUMANA NOS CADERNOS DO CÁRCERE DE GRAMSCI Amilton Martins Oliveira / André Murilo Oliveira UMA CONCEPÇÃO ANTROPOLÓGICA DE EVOLUÇÃO EM TEILHARD CHARDIN "Deleuze, Simone de Beauvoir: questões de gênero e de sexualidade” – Sala 02 Luana Marques SIMONE DE BEAUVOIR: UMA ANÁLISE EXISTENCIALISTA DA FÊMEA MULHER Lucas Henrique Nunes Batista (mediador) A TEORIA QUEER E A PRODUÇÃO DE UM CORPO SEM ÓRGÃOS Tamara Havana dos Reis Pasqualatto DELEUZE EM DEFESA DE MASOCH: ELEMENTOS DA DISSOCIAÇÃO DA UNIDADE SADOMASOQUISTA 08/Outubro: Quarta-feira 13h30 Mesa “Ceticismo” – Sala 06 Henrique Zanelato (mediador) CETICISMO PIRRÔNICO E AS MEDITAÇÕES DE DESCARTES Charles Eriberto Wengrat Pichler O CETICISMO PIRRÔNICO NOS ARGUMENTOS DE MONTAIGNE CONTRA A RAZÃO Mesa “Maquiavel” – Sala 10 José Luiz Ames (mediador) OS VÁRIOS USOS DE LIBERDADE NA OBRA DE MAQUIAVEL Gabriel Allan Drehmer Gonçalves LIBERDADE POLÍTICA NOS DISCORSI DE MAQUIAVEL Douglas Antônio Fedel Zorzo LA MIGLIORE FORTEZZA CHE SIA, È NON ESSERE ODIATO DAL POPULO: A PERSPECTIVA POLÍTICA DA ANÁLISE MAQUIAVELIANA DAS FORTIFICAÇÕES Alícia Beatriz Mallmann Piccinin OS PRINCÍPIOS QUE FUNDAMENTAM A CONQUISTA E A PERMANÊNCIA NO PODER NA CONCEPÇÃO DE NICCOLAU MAQUIAVEL ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 16 Mesa “Hobbes / Espinosa” – Sala 08 Elizandra Bruno Sosa (mediadora) LIBERDADE NO PENSAMENTO POLÍTICO DE THOMAS HOBBES Yohana Silva Marques dos Santos A LINGUAGEM PARA A CONSTRUÇÃO DO ESTADO CIVIL EM HOBBES Francieli Constantini LINGUAGUEM E POLÍTICA EM THOMAS HOBBES: CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESTATUTO DA LINGUAGEM Juliane Cristina Helanski Cardoso O PODER CONSTITUINTE DA MULTIDÃO EM ESPINOSA Mesa “Kant” – Sala 11 Gustavo Ellwanger Calovi O SUMO BEM E A ANTINOMIA DA RAZÃO PRÁTICA Luana Pagno A AUTONOMIA EM KANT, A FUNDAMENTAÇÃO MORAL E A AÇÃO EM SI Solange de Moraes Dejeanne DOUTRINA PURA DA VIRTUDE E ANTROPOLOGIA MORAL EM KANT Dean Fábio Gomes Veiga / Rejane Veissid KANT E OS POSTULADOS DA RAZÃO PRÁTICA Jaime José Rauber (mediador) KANT E A FUNDAMENTAÇÃO DE DEVERES MORAIS A PRIORI Mesa “Schopenhauer / Schelling” – Sala 30 Josieli Aparecida Opalchuka A FELICIDADE ENQUANTO INTERRUPÇÃO DA DOR - UMA APROXIMAÇÃO ENTRE ARISTÓTELES E SCHOPENHAUER Márcia Elaini Luft A CONCEPÇÃO DE “FELICIDADE” PARA SCHOPENHAUER Angela Maria da Silva (mediadora) SCHOPENHAUER E AS SUAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONHECIMENTO HUMANO ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 17 Ademir Menin SCHOPENHAUER E A HIERARQUIA DAS BELAS ARTES Kayenne Cristine Ferigotti Santos Vosgerau A INTUIÇÃO INTELECTUAL EM SCHELLING: A TENTATIVA DE MEDIAÇÃO ENTRE O DOGMATISMO E O CRITICISMO 08/Outubro: Quarta-feira 15h30 Mesa “Filosofia da Mente” – Sala 30 Bruno Fernandes de Oliveira (mediador) MENTE E EXTERNISMO SEMÂNTICO NA FILOSOFIA DE PUTNAM Carlos Ferreira SOBRE VALORES E NORMAS: SONDAGENS A PARTIR DO DIÁLOGO HABERMASPUTNAM Carlos Roberto Bueno Ferreira CAN MORALITY BE BASED ON BIOLOGY? A NEUROECONOMIC MODEL ON OXYTOCIN Lucas Mateus Dalsotto É A TEORIA DO SENTIMENTALISMO CONSTRUTIVO DE JESSE PRINZ DE FATO CONSTRUTIVISTA? Mesa “Ética contemporânea” – Sala 31 Marilda Pereira dos Santos (mediadora) JOHN RAWLS: PRINCÍPIOS MORAIS PARA A ESTRUTURA BÁSICA DE UMA SOCIEDADE JUSTA Daniele Bet JUSTIÇA COMO EQUIDADE: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES QUANTO ÀS IDEIAS DE JOHN RAWLS Bruno Martinez Portela NORMATIVIDADE E MORAL NATURALIZADA Mesa “Foucault 2” – Sala 11 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 18 RELAÇÕES DE PODER, SOBERANIA E GOVERNAMENTALIDADE EM MICHEL FOUCAULT Carla Musa Latsch Cherem Gilson Arend - Vania Sandeleia Vaz da Silva A MULTIDÃO DE ESPINOSA E A PRIMAZIA DA RESISTÊNCIA DE FOUCAULT E DELEUZE NA TESE DE NEGRI E COCCO EM “GLOB(AL): BIOPODER E LUTA EM UMA AMÉRICA LATINA GLOBALIZADA”. Anderssieli Irion Boschetti (mediadora) CONCEPÇÃO MORAL DA LOUCURA EM MICHEL FOUCAULT Mesa “Nietzsche 2” – Sala 16 Adelson Cheibel Simões NIETZSCHE E A FILOSOFIA: NIILISMO E MUNDO DA VIDA Anna Cecilia Amaral Branco da Silva A VONTADE DE PODER EM NIETZSCHE COMO ÍMPETO POR REALIZAÇÃO Neomar Sandro Mignoni (mediador) O FIM DO MAIS LONGO ERRO: NIETZSCHE E A FILOSOFIA DO MEIO DIA Mesa “Filosofia da Educação 1” – Sala 10 Dayanne Vicentini (mediadora) Nilva Aparecida F. da Silva Hélio Clemente Fernandes EDUCAÇÃO CRÍTICA E DIREITOS HUMANOS Giovanna Takata Liberatti A PROPOSTA DIALÓGICA DE PAULO FREIRE NO AMBIENTE HOSPITALAR: A INCLUSÃO DA CRIANÇA HOSPITALIZADA Elaine Emanuelle Lemos da Silva Conejo A SOCIEDADE CHINESA E O DIREITO À EDUCAÇÃO DE QUALIDADE O ENSINO DA FILOSOFIA, A EJA E A ESCOLA JOAQUINA MATTOS – CEEBJA/CASCAVEL, PR 09/Outubro: Quinta-feira 13h30 Mesa “Escola de Frankfurt 1” – Sala 10 Vinícius Bogdan Orlandi Luís Fernando Jacques (mediador) AS FONTES DA FILOSOFIA DA HISTÓRIA DE WALTER BENJAMIN RACIONALIDADE CRÍTICA E RACIONALIDADE TECNOLÓGICA: CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS SOBRE A ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 19 TECNOLOGIA NA SOCIEDADE CAPITALISTA A PARTIR DO PENSAMENTO DE MARCUSE Gerson Lucas Padilha de Lima / Marcelo Barbosa ANÁLISE DO NOVO PRINCÍPIO DE REALIDADE E DO LUGAR SOCIAL DA NEGAÇÃO EM HERBERT MARCUSE Cleberson Odair Leonhardt UMA BASE BIOLÓGICA PARA A EMANCIPAÇÃO Mesa “Problemas gerais de Ética” – Sala 11 João Willian Stakonski A IMPOSSIBILIDADE DA FELICIDADE PLENA NA TESE DE MICHEL HENRY Josete Rockenbach A RELEVÂNCIA DA NOVIDADE E DA ALEGRIA PARA A ECONOMIA, A RELIGIÃO E A POLÍTICA Rafael de Barros (mediador) CRISE DE IDENTIDADE E CORROSÃO DO CARÁTER Mesa “Husserl e Heidegger: mundo-da-vida, ciência e técnica” – Sala 06 Devair Gonçalves Sanchez (mediador) DA CRISE DAS CIÊNCIAS AO MUNDO-DA-VIDA: O ÚLTIMO HUSSERL Felipe Ricardo Deuter Becker SOBRE A DISTINÇÃO ENTRE FILOSOFIA E CIÊNCIA EM HEIDEGGER Silvio Alves HEIDEGGER E O PROBLEMA DA ARTICULAÇÃO ENTRE A TÉCNICA E O PODER Mesa “Problemas contemporâneos” – Sala 20 Lucas Eduardo Gaspar (mediador) CIDADE EM QUESTÃO: DEBATES ACADÊMICOS ACERCA DA CONSTITUIÇÃO DAS CIDADES E DE QUESTÕES URBANAS ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 20 Paulo Alves de Oliveira O MARCO CIVIL DA INTERNET E A TENTATIVA DO ESTADO DE ADESTRAMENTO DO CIBERESPAÇO NO BRASIL Adriano Marcelo Thiel COMUNICAÇÃO E MÍDIA SOB UM OLHAR BERKELEYANO 09/Outubro: Quinta-feira 15h30 Mesa “Escola de Frankfurt 2” – Sala 10 Rosalvo Schütz (mediador) ENTRE ADAPTAÇÃO E EMANCIPÇÃO: O DESAFIO DA EDUCAÇÃO SEGUNDO T. ADORNO Michele Borges Heldt DIALÉTICA NEGATIVA: DA INSUFICIÊNCIA À POSSIBILIDADE Rafael Adilson Ribeiro O CONCEITO DE HOMEM EM ERICH FROMM Mesa “Filosofia e Literatura” – Sala 11 José Luiz Giombelli Mariani (mediador) O ALÉM-DO-HOMEM DE NIETZSCHE NA OBRA CRIME E CASTIGO DE DOSTOIÉVSKI Toani Caroline Reinehr O HOMEM É UM ANIMAL QUE SORRI: O FENÔMENO DO RISO NA OBRA DE ARTE LITERÁRIA Thiago Ossucci Santello A CONSTRUÇÃO DO OUTRO: O ÁRABE EM FRANZ KAFKA Mesa “Filosofia e Arte: As políticas da arte” – Sala 20 Ulisses Santo do Nascimento (mediador) Marlon José Alves dos Anjos A MANIPULAÇÃO DA ARTE PELO DISCURSO STATUS ARTE NA FALSIFICAÇÃO DE OBRAS ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 21 MALANDRO OU MARGINAL? BATALHA SIMBÓLICA EM CIDADE DE DEUS Vera Vilma Fernandes Leite Mesa “Heidegger e Sartre: questões” – Sala 31 DA CONCEPÇÃO DE VERDADE NA ONTOLOGIA FUNDAMENTAL DE HEIDEGGER Luana Borges Giacomini Marli Batista Basseto A OBRA DE ARTE E O BELO COMO UM PROBLEMA DA ESTÉTICA FENOMENOLÓGICA Maria Lucivane de Oliveira Morais O ESPAÇO DESCRITO PELA FENOMENOLOGIA DE HEIDEGGER Guilherme Gonçalves Ribeiro O CARÁTER ONTOLÓGICO DOS CONCEITOS DE “NÁUSEA”, EM SARTRE, E DE “ANGÚSTIA”, EM HEIDEGGER Cristiane Picinini (mediadora) A MORALIDADE NO CONCEITO DE MÁ-FÉ EM JEAN-PAUL SARTRE 10/Outubro: Sexta-feira 13h30 Mesa “Kierkegaard” – Sala 06 A VIA CRUCIS DA CONSCIÊNCIA, EM HEGEL Juan Manuel Terenzi Christiano Tortato FILOSOFIA, ONTOLOGIA E DIALÉTICA A PARTIR DE EXCERTOS DA HISTÓRIA DA FILOSOFIA, DE HEGEL Rômulo Gomes A EXISTÊNCIA HUMANA SEGUNDO SÖREN KIERKEGAARD Cleyton Francisco Oliveira Araújo (mediador) O CONCEITO DE ANGÚSTIA EM KIEKEGAARD E O IDEALISMO ALEMÃO Samuel Schaia REFLEXÃO SOBRE PROJETO DE VIDA EM SÖREN AABYE KIERKEGAARD Mesa “Bergson/Marcel” – Sala 11 Adeilson Lobato Vilhena INTUIÇÃO – UMA VIA AO CONHECIMENTO DO REAL: PROPOSTA BERGSONIANA AOS PROBLEMAS METODOLÓGICOS DA FILOSOFIA ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 22 Eleandro Lopes Depieri A PRIORIDADE DO TEMPO EM RELAÇÃO AO ESPAÇO NO PENSAMENTO DE BERGSON Nadimir Silveira de Quadros (mediador) A EXIGÊNCIA DE TRANSCENDÊNCIA EM GABRIEL MARCEL Mesa “Hermenêutica” – Sala 08 Hubert Milanês Pessoa (mediador) POR UMA HERMENÊUTICA FILOSÓFICA Odair Salazar da Silva A METÁFORA ENTRE O SENTIDO E A REFERÊNCIA: UMA ABORDAGEM RICOEURIANA APLICADA AO DISCURSO LITERÁRIO Vilson Joselito Schütz COMPREENSÃO E LINGUAGEM À LUZ DO PENSAMENTO DE HANS-GEORG GADAMER Mesa “Problemas recentes em Filosofia Política” – Sala 20 Mariana de Macêdo Seixas - Tamires Dias dos Santos A EXPERIÊNCIA DA BARBÁRIE COMO POSSIBILIDADE DA BILDUNG NA CONTEMPORANEIDADE Ricardo Corrêa (mediador) O HOMEM DEMOCRÁTICO E O RISCO DO DESPOTISMO DEMOCRÁTICO SEGUNDO ALEXIS DE TOCQUEVILLE Leandro Mateus Fernandes DECLÍNIO, PERDA DA AUTORIDADE E ASCENSÃO DO TOTALITARISMO EM HANNAH ARENDT Mesa “Filosofia da Psicologia” – Sala 10 Letícia Nunes Goulart A TENDÊNCIA OCULTA NA PSICANÁLISE Alexandre Moschen Ortigara A RATIFICAÇÃO DA ONIPOTÊNCIA POR MEIO DO DOMÍNIO DO SABER Maurício Smiderle A CIVILIZAÇÃO COMO FONTE DE DESPRAZER SEGUNDO FREUD ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 23 Rodrigo Cavalheiro de Lima DA IMPOSSIBILIDADE DE UMA PSICOLOGIA SEM ALMA Maiara Graziella Nardi (mediadora) A CRISE DO SUJEITO NO SÉCULO XIX-XX E O NASCIMENTO DE UMA PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICO-EXISTÊNCIAL 10/Outubro: Sexta-feira 15h30 Mesa “Heidegger” – Sala 06 A HERMENÊUTICA DA FACTICIDADE E A DESCONSTRUÇÃO DA TRADIÇÃO ONTOLÓGICA SEGUNDO HEIDEGGER Caroline Marangoni Katyana Martins Weyh O ENSINO DE FILOSOFIA E O ATO DE FILOSOFAR SEGUNDO MARTIN HEIDEGGER Roberto S. Kahlmeyer-Mertens (mediador) PODE A HERMENÊUTICA FILOSÓFICA DE HEIDEGGER CONTRIBUIR À HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO? Mesa “Filosofia do Direito: discussões” – Sala 08 Douglas Maranhão Marques DIFICULDADES CONTRAMAJORITÁRIAS: JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E LEGITIMIDADE DO DIREITO EM HABERMAS Kátia R. Salomão / Cezar A. Lazzarotto A LEGITIMIDADE DO DIREITO EM FACE DA LEGITMIDADE DA LEGALIDADE, EM HABERMAS João Guilherme Alvares de Farias (mediador) FILOSOFIA E DIREITO: A CONTRIBUIÇÃO DE E. PACHUKANIS PARA A CRÍTICA MARXISTA DO DIREITO Mesa “Rousseau” – Sala 11 Luana Aparecida de Oliveira Luis Carlos Goetz (mediador) APONTAMENTOS SOBRE O CONCEITO ROUSSEAUNIANO DE AMOR-PRÓPRIO ESTADO E EDUCAÇÃO NO PENSAMENTO DE ROUSSEAU ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 24 Alexandre José Krul A EDUCAÇÃO PARA A AUTONOMIA, NO EMÍLIO DE ROUSSEAU Christian Lindberg L. do Nascimento CIÊNCIA E RELIGIÃO NOS ESCRITOS EDUCATIVOS DE JOHN LOCKE Mesa “Filosofia da Educação 2” – Sala 10 DISCUSSÕES ÉTICAS NOS ESPAÇOS ESCOLARES Roselene Aparecida Moreira Valéria Mazzer Tortelli EDUCAÇÃO BANCÁRIA E SUAS IMPLICAÇÕES NA SOCIEDADE: DEMOCRACIA O REFLEXO NA CONSTRUÇÃO DA LIBERDADE Angelina Cortelazzi Bolzam - Renato Bellotti Senicato “OS SETE SABERES NECESSÁRIOS À EDUCAÇÃO DO FUTURO” DE EDGAR MORIN: UMA TEORIA DO CONHECIMENTO José Carlos Mendonça WITTGENSTEIN, SUA FILOSOFIA E SEU ‘ENSINO’: DESAFIOS À PRÁTICA FILOSÓFICA DO PROFESSOR-FILÓSOFO NA CONTEMPORANEIDADE Cristiane R. Xavier Candido (mediadora) ANÁLISE DA ESCOLA E SEU PAPEL SOCIAL PELA ÓTICA DO CONCEITO DE “DESCONSTRUÇÃO” EM JACQUES DERRIDA ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 25 RESUMOS* * A redação e a revisão finais dos textos são de responsabilidade dos próprios autores. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 26 NIETZSCHE E A FILOSOFIA: NIILISMO E MUNDO DA VIDA Adelson Cheibel Simões Universidade Federal de Santa Maria - UFSM [email protected] Palavras-chave: Niilismo; consciência; amor fati; mundo sensível; mundo ideal Diferentemente de Kant e tantos outros filósofos, não encontramos em Nietzsche uma separação detalhadas de assuntos, como é o caso da ética, da moral, etc. Em Nietzsche encontramos um emaranhado de conceitos sobre os quais precisamos transitar. Nosso autor está convencido de que a consciência é como que uma mistura de tudo, sentimentos, desejos de todos os tipos. Fazendo uma comparação um tanto forçada podemos dizer que é como se existisse um mar onde um navio equipado com um farol navega e a cada instante da viagem um ponto desse mar é iluminado pelo farol em movimento. Constatamos então que tudo aquilo que vem à nossa consciência é um recorte insignificante de um todo, a velha metáfora do iceberg. Isto, porém não significa que a medida que uma coisa venha à consciência as demais foram esquecidas. Significa apenas que naquele momento elas não estão ‘sendo iluminadas’. Portanto de maneira muito básica podemos dizer que a consciência para Nietzsche é uma espécie de recorte casual da psique. Entretanto, a grande questão que nos cabe fazer é: quem movimenta o farol? Se formos averiguar veremos que no entender de Nietzsche não é o ‘Eu’, porque este ‘Eu’ é a consciência, e, portanto o ‘Eu’ não poderia ser a água iluminada e o faroleiro ao mesmo tempo. Sendo assim, podemos dizer que quem movimenta o farol é a ‘Vontade de potência’, Energia vital’ chamada por Nietzsche de essência. Em resumo isto significa dizer que para Nietzsche o que ocorre na psique tem muito a ver com aquilo que se sente, que por sua vez tem a ver com as oscilações de potência. Portanto não há um ‘Eu’ consciente que controla o farol, no exemplo citado, pelo contrario, o eu consciente é o resultado da iluminação do farol que por sua vez é inconsciente. Isto quer dizer que não sou Eu (sujeito) que controlo o que se passa na minha cabeça. Usando a afirmação freudiana poderíamos dizer: “você não é senhor em sua própria casa” (FREUD, 1976, p. 178). Outro aspecto importante e que não deve passar despercebido quando tratamos de Nietzsche é a sua forma de escrita, e isto tem muito a ver com a sua teoria. Nietzsche não esta ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 27 preocupado com uma ordem de pensamento. Ele escreve exatamente da maneira como as coisas surgem à sua cabeça, portanto contrario à forma q fomos ensinados. Os passos da aula de redação são um exemplo claro do que estamos falando. Entretanto, isto é muito diferente daquilo que Nietzsche faz. Ele mesmo afirma que o que ele escreve não tem nenhuma pretensão de ser uma verdade suprema. Esta, portanto é a razão pela sua forma de escrita. Logo podemos ultimar daí uma coerência muito clara entre seus escritos filosóficos e a maneira como eles são estruturados. O termo niilismo é utilizado por Nietzsche em todas as suas obras, e é imprescindível que se tenha domínio deste conceito para tentar compreender o autor. Notadamente o conceito ‘niilismo’ é tomado quase que de forma contraria de seu significado verdadeiro. No senso comum, este conceito se equivaleria a uma forma de lavar a vida sem valores superiores, uma forma de conduzir a vida desamarrada de princípios transcendentes. Em termos poéticos, “deixa a vida me levar...” é uma definição sugestiva. Portanto, uma forma de levar a vida sem se pautar por qualquer valor superior. O niilismo no sentido comum é isto, deixar a vida ir de maneira qualquer. Isto, porém, não é o niilismo nietzschiano. Existe outra forma de niilismo que é bem distinta desta formulada anteriormente. Isto é, independente do que aconteça existem alguns princípios sobre os quais nos apoiamos para conduzir a nossa vida. Para Nietzsche, o niilista é justamente aquele que pauta sua vida por valores. Niilista é aquele que tem principio e pauta a vida por eles, o cristão, o socialista etc. Portanto todo aquele que pauta a sua vida em algum valor. Não obstante, se o cristão é um niilista e ele tem valores, o que ele nega? Ele nega o ‘mundo da vida’. O que Nietzsche está afirmando é que pelo fato de se acreditar em valores absolutos, nega-se o mundo das sensações, dos desejos, etc. Isto é, por se acreditar em ideais, em valores superiores e absolutos nega-se o mundo daquilo que acontece o mudo do encontro com a matéria, o mundo dos corpos. Isto se traduz na conhecida frase Nietzschiana, “Em nome do céu nega-se a terra, em nome de valores absolutos e superiores nega-se os tezões”. É necessário lembrar que esta critica ao niilismo não é endereçada a opinião comum das pessoas. Ela é endereçada às posturas filosóficas. E, portanto, a primeira postura é a de Platão. Este é o primeiro grande niilista com o qual podemos começar segundo Nietzsche é Platão. Platão fala de mundo sensível e mundo inteligível no qual este último é pautado por verdades, e ideias absolutas etc., enquanto que o primeiro é pautado pela ilusão. Entretanto o questionamento é: E o que eu vejo com meus olhos, é uma ilusão? Isto é o que vem nos ensinar a alegoria da caverna. Por esta razão Platão é o primeiro niilista no entendimento nietzschiano. Ele nega a matéria em prol do ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 28 imaterial. Ele nega o sensível em prol do mundo inteligível. Esta critica do niilismo de Platão na obra O Crepúsculo dos Ídolos, no capitulo intitulado Sócrates (Cf. 2009, p. 8s). O segundo exemplo de niilismo apontado por Nietzsche é o pensamento aristotélico, porém, aqui ele aparece de forma mais sutil. Para Aristóteles a grande referência é o Cosmos. E a dúvida é saber se cosmo e mundo não são a mesma coisa. Para Nietzsche não. Para ele, o cosmo é certa ideia do mundo, ordenado, harmonizado etc., onde o sujeito para ser feliz precisa encontrar-se dentro dele e em harmonia para ser feliz. E para encontra-se em harmonia com o cosmos é necessário encontrarse dentro dele justamente no lugar onde justamente, só aquele sujeito poderia estar. Logo, assim como no modelo de Platão, este é mais um modelo que escraviza a vida. O sujeito se torna refém no caso de Platão, de um modelo que escravizava a vida a partir da ideia de existência de um mundo das ideias e no caso de Aristóteles de um modelo que escraviza a vida a partir da ideia de cosmo ordenado. Em termos corriqueiros isto significa dizer que o sujeito é obrigado a agir de acordo com o universo e desempenhar exatamente o papel que nasceu para desempenhar, do contrario ele não será feliz. No modelo aristotélico cada um tem um papel a desempenhar no cosmo e tudo estará em ordem quando cada um encontrar o seu lugar. Terceiro exemplo de niilismo são os monoteísmos. Especificamente Deus. Deus está fora daqui e ele criou o mundo. Não obstante, além do mundo em que vivemos existe o mundo das almas, o qual várias denominações são possíveis, céu, paraíso, eternidade, etc. E novamente se percebe que a vida mais adequada é a que busca a eternidade. E outra vez se escraviza a vida em nome de uma eternidade. A crítica nietzschiana neste sentido é que em nome de um céu, se blasfema contra a terra, em nome de um paraíso se blasfema contra as pulsões. Neste sentido, afirma Nietzsche, os homens inventaram um ideal para negar o real, este é o entendimento de Nietzsche. Além disso, Nietzsche trabalha com um conceito intitulado Amor Fati, que nada mais é do que uma proposta de amor pelo mundo da forma como o mundo é. Não se trata de tolerar o mundo, mas de amá-lo da forma como ele se nos apresenta sem adicionar nem excluir nada. Isto por que se formos amar excluindo algo ou alguém acabaríamos voltando para estrutura de pensamento criticada por Nietzsche anteriormente. A partir deste conceito de Amor fati Nietzsche fala de dois momentos. De um lado o momento estóico de amor pelo mundo como ele é. De outro, ele fala dos pensadores que propõe a transformação do mundo onde Marx é o seu expoente maior. A conclusão é que é possível dar razão os dois, desde que não haja extremismos. Contudo se o impasse continuar sem solução, os revolucionários querendo revolucionar tudo e alguém como ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 29 Nietzsche querendo que se ame tudo, a solução mais provável seria, ame o que te faz bem e transforme o que não faz ou não está bem. Ainda um conceito mais é o de Genealogia onde Nietzsche fala do inconsciente. Para ele o pensamento é algo do corpo e que ao mesmo tempo transcende a ele. É portando a ideia de que existe uma força pensante que escapa da decisão do individuo e que ele não controla, que é o consciente. A consciência, portanto é a parte mais ínfima e inútil de tudo aquilo que o sujeito pensa. Assim, quando Nietzsche fala em genealogia o que realmente interessa à ele é, qual o motivo do pensamento pensado? Ou de outro modo, de onde veio o pensamento que brotou em você? Quais são as forças que o fizeram brotar? A isso ele chama de genealogia, a origem do pensamento. Quanto as distintas formas de interpretação do pensamento a partir de Marx e Freud e Nietzsche, posteriormente chamados mestres da suspeita, existem alguns esclarecimentos a serem feitos. A diferença entre Marx, Freud é que quando o individuo no divã e começa a falar, o freudismo tem a pretensão de estabelece sobre este discurso uma espécie de verdade, a chamada verdade do inconsciente. O psicólogo constrói uma gramática a partir do dito. Neste sentido o ato da psicanálise é uma forma de construção de verdades sobre o inconsciente daqueles que se submetem à análise. De forma parecida é no marxismo, onde existe uma convicção de que a sociologia identificará verdades sobre aquilo que passa pela cabeça das pessoas enquanto ideologia. Então, quando Marx e Freud analisam o discurso de alguém eles analisam na posição de cientista, na posição daquele que sabe em relação a alguém que não sabe. Na visão de Nietzsche, é um pouco diferente e mais sofisticado também. Para ele, quanto se analisa um discurso, a interpretação deste discurso é também interpretável e a interpretação desta interpretação também é interpretável e isto vai ao infinito. Para Nietzsche quando o analista faz uma interpretação, esta nada mais é do que o resultado de suas forças vitais e, portanto pode ser interpretado por outro, que quando for interpretar vai falar a partir de suas forças vitais e assim sucessivamente ao infinito. Isto é o que Nietzsche chama em A gaia ciencia de “nosso novo infinito”. O “novo infinito” é o fato de que quando falamos sobre o mundo, o que nós falamos não é uma análise objetiva, mas sim aquilo que as nossas forças vitais e seus estados determinaram. E, portanto quando Nietzsche escreve sua obra, ele não diz que ela é a verdade sobre o mundo e sim que toda esta teoria é, a manifestação das “minhas forças vitais” diz Nietzsche. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 30 A QUESTÃO DO ESTADO NO 18 DE BRUMÁRIO DE LOUIS BONAPARTE – UMA PERSPECITIVA MARXIANA EM RELAÇÃO AO PROCESSO REVOLUCIONÁRIO FRANCÊS Adriana Paula de Souza Universidade Estadual de Maringá - UEM [email protected] Orientador: Prof. Dr. Robespierre de Oliveira Palavras-chave: Proletário; burguesia; revolução Entre as obras de Marx, é em “O 18 de Brumário de Louis Bonaparte” que o conceito de Estado aparece de modo mais significativo. Marx, na obra, observa os fatores que desencadeiam a movimentação da história política na França no século XIX (do período das revoluções de 1848 até o golpe de Luís Bonaparte) através nos quais a problemática teórica do estado é pensada em um cenário composto por lados partidários, pela luta de classes entre dominantes e dominados, personagens históricos e políticos. O livro apresenta-se de forma metafórica, analisando em etapas cronológicas cada ação em particular, seja de uma classe, de outra, ou de um individuo em prol da mesma. O projeto de pesquisa tem como objetivo estudar esse percurso extraindo os conceitos políticos de Marx. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 31 COMUNICAÇÃO E MÍDIA SOB UM OLHAR BERKELEYANO Adriano Marcelo Thiel SEED/PR [email protected] Palavras-chave: Empirismo; publicidade; fama A mídia é pensada já há tempos pela Filosofia. A Teoria Crítica, por exemplo, pensa nela, associando-a a Cultura de Massas, como, inclusive, uma forma política de dominação por meio da propagação de ideologias dominantes, sobretudo observado nos modelos totalitaristas do Século XX. Entretanto, vamos pensar a mídia partindo de uma ótica expositiva: a comunicação tende a expor alguns elementos ao máximo, em detrimento a outros elementos ou acontecimentos. O papel da mídia, por sua natureza, é a comunicação, a exposição de acontecimentos, eventos e informações. Mas o que transmitir, e com que ênfase? Os acontecimentos considerados relevantes, como uma tragédia ou um evento esportivo, por exemplo, possuem cobertura intensa, com flashes ao vivo dados pela televisão e rádio, atualizações imediatas nos portais virtuais e a mídia impressa, que cada vez tem menos alcance, faz edições especiais sobre esses assuntos. É só observarmos o que ocorreu com a Copa do Mundo ou acidente que vitimou o candidato à presidência Eduardo Campos: quase não se via em outros temas nas manchetes e nos noticiários de algumas emissoras. Antes das reflexões mais profundas e filosóficas, queremos destacar que, acima da cobertura, há um excesso de informações, que muitas vezes nada contribuem para o conhecimento sobre a notícia. Questões que são irrelevantes, como a cor de uma chuteira ou o que foi dito por último por tal pessoa antes de um acontecimento, por exemplo, são notícias que acompanham a grande mídia. Podemos nos perguntar o que leva a tal cobertura com a atenção exacerbada, ou a quem é importante que essas informações sejam repassadas à população. Ou ainda, podemos pensar nas ações políticas que são feitas na medida em que a população está “ocupada” com outros assuntos, ou ainda os acontecimentos que ficam “na sombra” enquanto outro rouba a cena. Sobre a questão política, cito um evento bem prático: uma convocação extraordinária por parte da base governista da Câmara de Vereadores da minha cidade, Nova Santa Rosa, que, no dia da semi-final da Copa do Mundo, chamou os edis para votar algo “em ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 32 regime de urgência”: uma parceria de trinta anos, que teve cerca de quinze minutos de discussão e nenhum destaque nos meios de comunicações, parceria esta que beneficia a prefeitura1. Entretanto a nossa reflexão não se aterá a esses pontos de interesses políticos ou ideológicos. Se a comunicação relevante e séria faz isso, ou seja, expõem excessivamente algumas coisas, o que dizer daquele tipo de mídia que se associa à fofoca, à vida das ditas celebridades? Para esse tipo de noticiário, as ações mais irrelevantes e insignificantes devem ser expostas, replicadas a todo o custo. “Quem andou em tal lugar?”, “Quem está ‘pegando’ quem?”, “Quem estava em tal festa?”, enfim, perguntas como estas parecem servir de base para muitos programas televisivos, folhas ou colunas “sociais” de jornais e revistas, e mais uma vez podemos observar a exposição exagerada. Poderíamos nos perguntar sobre o público que esses espaços possuem, pois se não houvesse quem assistisse isso, não haveria patrocínio e por lógica, não haveria esses tipos de comunicação. Mas essa e outras perguntas nós também deixaremos de lado por enquanto, e tentaremos responde-la em um outro momento. Foquemos nos motivos pelos quais alguns “famosos” tentam tanto se expor e como a mídia usa isso muito bem a seu favor, ou seja, como ela faz com as coisas sejam mostradas, expostas e como a fama está associada ao trabalho dos meios de comunicação. É aí que podemos associar a mídia, sobretudo à mídia que foca nos famosos, na fofoca ou nas curiosidades irrelevantes, sob uma perspectiva berkeleyana. George Berkeley, pensador e bispo irlandês nascido em 1685 e falecido em 1753, nos oferece como expressão máxima de sua doutrina filosófica, empirista e imaterial, a frase “ser é ser percebido ou perceber”, ou em latim “esse est percibi o percibere”. Por isso, sua doutrina é dita como imaterialista, pois não há a matéria objetiva das coisas e somente a percepção destes seres. Como as percepções somente são decifradas na mente, virando assim idéias, existindo então só há idéias das coisas e mentes – para quem as idéias são percebidas. E é na primeira parte dessa máxima, a saber, ser percebido, que podemos usar de base para se pensar a maior parte das atividades e exposições da comunicação e a mídia. Para a mídia contemporânea, e por conseqüente, para a sociedade atual, que pode ser chamada de uma sociedade midiática, pois tudo deve ser exposto na mídia para existir, só existe aquilo que é exposto, e bastante exposto, principalmente. A comunicação faz com que alguns elementos sejam percebidos. Por isso mesmo eles são expostos repetidamente. A parceria em questão é sobre o fornecimento de água à população, ou seja, SANEPAR e Municipalidade. Até aí, tudo em ordem, se não fosse por alguns detalhes: o município cedeu à companhia o direito de desapropriar redes particulares e comunitárias, desde que a SANEPAR julgue pertinente. Outros pontos do acordo também foram duramente criticados posteriormente pela população. 1 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 33 Algumas notícias são tratadas por diversos ângulos no mesmo telejornal, por exemplo, afirmando-se cada vez mais a necessidade de que o povo a perceba. Seja por meios de manchetes, gerenciadores de caracteres ou por referências em outros programas, no caso da televisão, seja por vários link’s na internet, popup’s ou outros recurso: o fundamental é que as pessoas percebam, notem, e se possível, comentem, repliquem enfim, espalhem o que estão percebendo. A parte de ser republicado pode ser observado nos hashtag, que, quando usado, faz referencia à algo que as pessoas querem que seja exposto e pesquisado pelos demais. Esse uso ocorre principalmente nas redes sociais, onde há a possibilidade de pesquisa, tomando por base as cerquilhas ou jogos-da-velha; #Berkeley, por exemplo. Temos aí um exemplo forte de percepção e reprodução daquilo que queremos que os outros percebam sobre nós. Isso é influência pela mídia, naturalmente. Para Berkeley, como comentamos acima, a única coisa que realmente existe é idéia dos seres, e não sua matéria. E isso também é associável à mídia. Para ela, só existe o que é exposto, o que aparece e tem destaque. Os elementos que não ganham destaque e espaço na comunicação simplesmente não existem. Não é dada atenção àquilo que não importa à mídia e a comunicação, ou seja, não existe. A família de alguém que ganha destaque ou que sofreu um golpe, ou as ações ilegais realizadas por alguém que teve um grande feito: isso não merece destaque, a não ser que hajam outros elementos que fazem com que aquilo seja relevante, como curiosidades ou a possibilidade de uma cobertura maior ainda. Na teoria berkeleyana, a mente é o único lugar onde as coisas existem, pois em última analise, é a mente quem percebe, já que os sentidos são compreendidos pela mente. Já para a mídia, é somente nela que as coisas aparecem, mesmo que ela possa usar o que foi apresentado em outro espaço midiático: não é raro a televisão se referindo ao que aparece nos jornais ou revistas, e o oposto também é comum. Mas fora da mídia e da comunicação, muitas coisas não existem, não passam de um acontecimento comum, irrelevante ou ainda corriqueiro. Como só existe aquilo que ela faz perceber e percebe, é a mídia que se coloca como a “mente” e como “corpo”, fazendo a ligação entre o que ela percebe e o que ela quer que a sociedade perceba. É ela que identifica algum acontecimento como relevante. Ou seja, as coisas primeiramente existem para ela. Após ela perceber, é ela quem expõem, ou seja, faz com que as coisas sejam percebidas pela sociedade. É esse trabalho que evidencia a forma como a comunicação consolida o que ocorre e o que não existe. É ele que faz as coisas ocorrem. Sobre esse sentido, podemos pensar no uso da mídia para fins políticos/eleitoreiros/partidários. Muitos são os candidatos que só passaram a existir por que ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 34 ganharam destaque midiático, ou por que estavam ‘em destaque’ na mídia e na comunicação. Ou ainda, as várias ocasiões em que a televisão, ou o rádio em localidade menores, oferece a cobertura de alguma coisa somente para beneficiar ou prejudicar a equipe administrativa. Além do impacto instantâneo, esses materiais, muitas vezes são utilizados em momentos posteriores de campanhas eleitorais. Ainda sobre as campanhas eleitorais, tudo que existe só o é por que foi exposto por algum meio de comunicação: o tempo todo há referência a uma reportagem de jornal ou televisão, uma gravação de rádio ou uma capa de revista. Sendo assim, pensamos em abordar a comunicação sob um viés berkeleyano, justamente por que identificamos em Berkeley os elementos suficientes para sistematizar e esclarecer a forma como a mídia se pauta na comunicação de algumas questões ou assuntos. A forma como a comunicação capta alguns elementos ou assuntos ou a forma como esses são apresentados à nós é uma clara tentativa de fazer com algumas coisas existam para nós, mesmo que muitas vezes nós nem ao menos queremos saber. Se pensarmos somente no aspecto da fama, por exemplo, podemos observar a busca por espaço nas redes sociais, na televisão ou mesmo em mídia impressa como um lugar comum de todas as ditas celebridades. A busca pela fama é uma busca por ser percebido, uma busca para ser notado. Aqueles que já possuem espaço na mídia, já possuem destaque, muitas vezes se esforçam para não serem apagados. E aqueles que são os “ilustres desconhecidos” muitas vezes clamam por atenção a espaço, mesmo que para isso eles tenham que se submeter à situações inconvenientes. Para muitos, só isso faz com eles existam socialmente, pois, mesmo sem que se conheça profundamente Berkeley, para estas pessoas, existir é ser visto, comentado, mesmo que os comentários não sejam positivos. Muitos agem segundo a máxima do “falem bem ou falem mal, mas falem de mim”. Não importa tanto, muitas vezes o que será dito, mas o fundamental que a pessoa seja exposta. Mesmo sendo uma situação vexatória ou indelicada, aceita-se e busca-se isso, a fim de ser percebido pela mídia. Aí temos uma base para explicar os paparazzi, por exemplo, que tem a sua atuação profissional captando descuidos ou aparições de pessoas que são consideradas celebres. Muitas vezes, os ditos famosos nem se importam em serem fotografados, ou serem ridicularizados: eles sabem que isso ajudará à sua exposição, sendo assim, acabam sendo mais percebidos pela mídia e pela sociedade, que é influência por essa mesma mídia. Aí temos uma justificativa para participarem de quadros insanos nos programas de domingo à tarde, por exemplo. Aqueles que aparecem constantemente na mídia são aqueles que existem para o grande público. E são estes que serão lembrados. Aí é que entra a publicidade e o ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 35 marketing: a dita celebridade que for a mais lembrada, mais conhecido, ou seja, mais exposta e percebida pela sociedade, é aquela que causa mais impacto na hora de anunciar algum produto ou idéia. Ela será, naturalmente, mais procurada e ganhará os maiores cachês. É aí que temos a relação entre a exposição e o viés econômico. Podemos observar isso nas campanhas publicitárias, onde os produtos são associados a pessoas de “influência”. Também as questões de ordem ideológica e política, pois pode-se manipular a consciência coletiva com base no exagero de informações e opiniões associado à um acontecimento. Isso ocorre, sobretudo, nas mídias engajadas, seja o engajamento aberto ou velado. Os produtos ou idéias, assim como os acontecimentos, também devem ser percebidos pelo grande público, afim de que sejam comprados e aceitos pelos consumidores ou pela população. Mais uma vez aí podemos associar a máxima berkeleyana: só existe o produto que é observado nas propagandas, sejam elas merchandising ou publicidade aberta, enfim, a sempre a idéia de que, “a propaganda é a alma do negócio”, junto com a máxima berkeleyana do “ser é ser percebido”. O mercado serve então de base para o que colocamos acima, ou seja, é ele quem motiva essa exposição massiva, pois muitas vezes ele usa essa mesma exposição para lhe servir de alavanca para o lucro e o comércio. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 36 A CONSTITUIÇÃO DA NATUREZA HUMANA EM DAVID HUME: DELINEAMENTOS SOBRE A NATUREZA DA MORAL Alderberti B. Prado Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE [email protected] Palavras-chave: Percepção; impressão; sensação; reflexão; sentimentos Uma questão norteia o empreendimento teórico ao qual Hume se lança no Tratado da Natureza Humana: como distinguimos o vício e a virtude das ações? Através de ideias ou através de impressões? (p.496). No início do livro III do Tratado, Hume afirma que “nada jamais está presente à mente senão suas percepções; e que todas as ações como ver, ouvir, julgar, amar, odiar e pensar incluem-se sob essa denominação.” (p.496). Para Hume, as percepções da mente se dividem em impressões e ideias. As impressões são, por definição, percepções de uma vivacidade e força primárias, ou seja, são experiências sensíveis que fundamentam os juízos que formamos a respeito do mundo, do conhecimento e, sobretudo, a respeito da moral. Já as ideias, são derivadas das impressões. O termo percepção, segundo Hume, também se aplica aos sentimentos pelos quais distinguimos o bem do mal na moral. Esta percepção é de natureza moral, e a distinção que daí resulta será capaz de qualificar as nossas experiências, de acordo com a sua influência sobre os nossos sentidos. As impressões podem ser impressões de sensação ou impressões de reflexão. Voltaremos o nosso olhar para as impressões de reflexão, ligadas ao nosso sentido interno, ao modo como somos tocados pelas impressões advindas do exterior, estas são chamadas de impressões secundárias, pois elas derivam a sua realidade das impressões de sensação como uma “resposta afetiva” que suscita o louvor ou a censura de nossos sentimentos morais, habilitados a nos guiar por entre as ações e caracteres. Essas impressões são relacionadas às nossas emoções, vontades, desejos e possuem um valor moral, pois estão sujeitas a aprovação e reprovação, conforme o agrado ou desagrado que acompanha tal percepção. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 37 A RATIFICAÇÃO DA ONIPOTÊNCIA POR MEIO DO DOMÍNIO DO SABER Alexandre Moschen Ortigara Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE [email protected] Orientador: Prof. Dr. Roberto S. Kahlmeyer-Mertens Palavras-chave: Onipotência; psicanálise; desenvolvimento humano; narcisismo A Onipotência é definida pela psicanálise como um constructo do sujeito; tal constructo tem origem ainda na infância, na fase anal (uma das fases do desenvolvimento do sujeito proposta nessa ciência). Suas implicações incluem sensação do controle de si, que muitas vezes extrapola o próprio corpo. Como o sujeito é constituído numa sociedade que exerce influência sobre ele, que, por sua vez, exerce influência sobre ela, essa manifestação onipotente narcísica acontece também na sociedade. Inicialmente, ela aparece, na sociedade primitiva mítica, como animismo; posteriormente, no âmbito religioso, como magia, e no científico sob o modo da onipotência do pensamento. Assim como os sacerdotes influenciaram toda uma época, pois eram os representantes autorizados pela religião, hoje os professores também o fazem na condição de estarem autorizados pelo ideal humano oriundo do iluminismo. Deste modo, essa relação de onipotência, que inicia em casa, passa pelo crivo da religião, num segundo momento, a qual ratifica essa condição fantasiosa do humano; tudo isso culmina no ideal de humanidade. O objetivo deste trabalho é investigar a ratificação do processo de onipotência na esfera do conhecimento e o modo como ele é reproduzido em sala de aula, na relação professor/aluno. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 38 UMA CONCEPÇÃO ANTROPOLÓGICA DE EVOLUÇÃO EM TEILHARD CHARDIN Amilton Martins Oliveira André Murilo Oliveira Instituto Federal do Paraná - IFP [email protected] Orientador: Prof. Alan Rodrigo Padilha Palavras-chave: Homem; evolução; vida A filosofia de Teilhard de Chardin pode ser um ponto de partida para pensar o homem no processo de evolução no tempo em uma curta aproximação entre ciência e teologia. Embora desprezado pelos cientistas, por tratar de coisas do espírito e pelos teólogos, por tratar de ciência e evolução, Chardin concebeu pela primeira vez uma síntese entre a ideia de criação e a ideia de evolução. Foi a partir da Origem das Espécies (1959) de Charles Darwin, que a ideia evolucionista ganhou força perante o criacionismo. Para Chardin, a ideia de evolução passa a assumir uma amplitude universal de processo de patamares: matéria – vida – inteligência – ponto ômega. A matéria é o início de tudo; Deus Criador é o Alfa; a vida constitui a Biogênese, que evolui para a Inteligência: a Noogênese; o processo evolui e converge para o ponto ômega, chamado Cristo gênese. A ideia de evolução é aplicada à realidade humana; a matéria natural é transformada pela inteligência de modo contínuo, diretamente ligada à vida, para sua plenitude ou para o fim dela. A terra pode ser vista como ponto ômega, atualização do processo de transformação, mas não generalizada para a humanidade, pois os bens produzidos, as melhorias das condições da vida, não abrange a todos. Podemos relacionar a transformação da natureza em bens para a humanidade; transformamos rocha em minério, minério em liga de ferro ou aço, este em peças, e em incontáveis máquinas, mas máquinas de guerra, para defender o homem do homem. Cultivamos o solo, reproduzimos as sementes que se tornam alimento que dá vida, porém vira lucro, disputas, desperdícios e muitos têm fome, e há desperdício e poluição de recursos naturais. Tudo é evolução; o processo evolutivo é realmente amplo. “Tu és pó e ao pó voltarás” (Gênesis, 3,19) – pó igual matéria, inteligência/consciência, sabemos que somos matéria; voltar ao pó não é ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 39 voltar ao nada, é a convergência para o uno, para o espírito. É um caminho sem volta, por isso evolutivo; ciência e teologia estão juntas. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 40 CONCEPÇÃO MORAL DA LOUCURA EM MICHEL FOUCAULT Anderssieli Irion Boschetti Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE ciely.aib@hotmail Orientador: Prof. Dr. Wilson Antonio Frezzatti Júnior Palavras-chave: Foucault; loucura; moral O intento dessa comunicação é investigar a concepção moral da loucura no período Clássico através do viés arqueológico do pensador Michel Foucault, na obra intitulada História da loucura (1961). Na interpretação foucaultiana, observa-se que o louco é definindo como outro, pois é identificado através de comparações qualitativas, que visam ressaltar apenas os defeitos humanos, os quais evidenciam sua alteridade em relação aos demais indivíduos normativos. No que se refere ao classicismo, a concepção da loucura está associada ao mal-estar social, sendo caracterizada moralmente de acordo com o instinto social, o qual para determinar a presença loucura, se baseia no erro e na falta, tendo a finalidade de excluir e rotular os indivíduos como loucos, apenas por diferirem das normas sociais vigentes. Neste sentido, pretende-se especular qual a influência do advento do internamento, na concepção clássica da loucura, que reduz os diversos tipos sociais considerados como heterogêneos, numa unidade que compartilha a mesma experiência, isto é, o desatino. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 41 UMA VISÃO BASEADA NA VERDADEIRA LIBERDADE DA MORAL DE NIETZSCHE André Murilo Oliveira Instituto Federal do Paraná - IFP [email protected] Orientador: Prof. Alan Rodrigo Padilha Palavras-chave: Moral; liberdade; valores Após a Filosofia moderna de Kant (1780) a metafisica se torna improvável, assim abrindo uma possibilidade de indagações sobre as instituições dogmáticas e o seu controle da moral. Nietzsche baseado na filosofia moderna e com um pouco da ideia Schopenhaueriana, vê que a cultura tem um papel destaque na formação da moral e que essa moral é uma forma de controle sobre o homem, estabelecendo verdades absolutas que tem de ser seguidas e respeitadas, senão haverá punições. Logo o filósofo critica a filosofia de Sócrates, Platão, Kant, Schopenhauer e Hegel, pois, afirma que a filosofia somente surgiu através da superação dos mitos, e por esse motivo ele critica também o cristianismo. Nietzsche cria uma nova perspectiva a respeito do homem, ou seja, um além-do-homem que agora passa a ver o que o controlava, a moral e assim por meio dessa crítica aos valores do homem, Nietzsche abre possibilidades para a transvaloração de todos os valores, isto é a coragem de afirmar o além-do-homem, valente, hábil, sem moral (acima do Bem e do Mal), procurando demonstrar que a existente universalidade dos valores da tradição socrático-cristã não passam de uma construção histórica cujos resultados são contrários à vida. Afirmar a vontade de potência é se guiar pela sua vontade de poder, a sua energia vital. O superhomem é aquele que aceita a vida como ela é: incerta, conflituosa e sem ilusões. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 42 A BIVALÊNCIA DA AÇÃO JUSTA NA REPÚBLICA: O EMBATE ENTRE SÓCRATES E GLÁUCON Angélica de F. de Almeida Lara Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE Bolsista Projeto PIBID Filosofia, Campus Toledo [email protected] Palavras-chave: Cultura; justiça; moralidade Na República observamos as motivações de Platão para responder a uma questão do elenchos socrático: o que caracteriza uma ação enquanto justa? No livro II, Gláucon alega serem as vantagens o que leva o homem a agir com Justiça, portanto a causa da ação. E Sócrates busca conciliar a causa com o efeito, apontando a utilidade como o efeito da Justiça. Para demonstrar que a vantagem é o efeito da Justiça, Sócrates terá que demonstrar qual é a sua causa, o que move a ação. Gláucon exige a demonstração do que a Justiça é para além de qualquer utilidade, ou seja, se é possível uma ação desinteressada, uma ação que possa ser qualificada moralmente. O que Platão vê consolidado é uma cultura solidificando a opinião, pautada nos interesses, e busca refletir se há algo para além desta opinião, i.e., se é possível haver ciência, e se há algo para além do interesse, i.e., se é possível haver moral. Na tentativa de refletir esta possibilidade, Platão idealiza a Callipolis, na qual em oposição ao império da opinião, reinaria a busca pelo saber. Sócrates evoca, no livro IV, a metáfora da lente de aumento, sugerindo averiguar a Justiça na Callipolis para encontra-la no homem, pois, segundo ele, não é possível pensar a Justiça independente da utilidade, ou independente da moralidade, pois toda ação boa é sempre útil. E como poderíamos considerar útil uma ação que não fosse boa? Que visasse o mal a alguém? Não é possível pensar o homem independente da cultura, configurando o que denominamos como a bivalência da ação justa. Esta bivalência configura o empasse de Sócrates, pois não consegue evidenciar a ação desinteressada para Gláucon, sem relacioná-la a utilidade, ou seja, através da Justiça. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 43 SCHOPENHAUER E AS SUAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONHECIMENTO HUMANO Angela Maria da Silva Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE Programa de Estudos Tutorados – PET, Filosofia [email protected] Palavras-chave: Intuição; representação; razão Schopenhauer, ao considerar o mundo como uma representação para o sujeito, suposição esta abstraída de considerações racionalistas de pensadores como Descartes e Berkeley, parece estar de acordo com as proposições afirmativas da superioridade da razão no processo de conhecer, imposta em sua época, principalmente, pela filosofia de Hegel, a qual, como veremos, ele irá refutar. No entanto, uma leitura mais atenta de sua obra O Mundo como Vontade e Representação nos permite verificar que o filósofo, embora afirme que tudo que existe para o conhecimento é objeto em relação a um sujeito, uma representação, não propõe haver um privilégio do sujeito em relação ao objeto: ambos são metades essenciais e inseparáveis que formam a representação, de tal forma que (dessas duas instâncias) “cada uma (...) possui significação e existência apenas por e para a outra; cada uma existe com a outra e desaparece com ela” (SCHOPENHAUER, 2005, p.46). Isso significa que, embora toda representação pressuponha a separação entre sujeito objeto – relação em que o sujeito enquanto “sustentáculo do mundo” tem uma receptividade do objeto intuído, pois é aquilo que conhece sem ser conhecido, e todo objeto existe para um sujeito e se configura a partir das formas do espaço, do tempo e da causalidade – um não é causa do outro, “por isso entre os dois não pode haver relação alguma de fundamento e consequência” (SCHOPENHAUER, 2005, p.55). Há, no entanto, um limite imediato entre sujeito e objeto: “onde começa o objeto, termina o sujeito”. Segundo Schopenhauer, todo objeto encontra-se em relação necessária com outros objetos, sendo determinado ou determinando, por meio do espaço, tempo e causalidade, o que configura o chamado, “princípio de razão”. E é este princípio de razão que originado no entendimento organiza as impressões imediatas, dando-lhes a forma de representação. E que ,por conseguinte, condicionam todo o conhecimento do sujeito. Com isso, ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 44 pode se concluir que sujeito e objeto, embora distintos, formam uma unidade representativa, mantida pelo princípio de razão que, ao mesmo tempo, estabelece o limite entre as duas partes – sujeito e objeto –, pois, só pode ser aplicado aos objetos, mas pertence apenas ao sujeito. O principio de razão, por sua vez, é para Schopenhauer aquele que representa a forma desses objetos, a forma dos conceitos, uma representação de representação, um conceber e não somente perceber como no entendimento acontece. Disso, podemos concluir que o filósofo aponta a diferença entre entendimento, que é imediato, diz o como (descritivo) e o principio de razão, que é mediato (explicativo), pretende dizer o porquê, e é neste, por conseguinte que parece residir o conhecimento, este algo a mais que não só se percebe, mas se concebe. Portanto, ao considerar a representação como ponto de partida para o conhecimento, o filósofo não toma separadamente sujeito e objeto, mas os desdobra pelo entendimento. O sujeito, para o qual o mundo é objeto, tem o entendimento como capacidade fundamental do conhecimento. É apenas por meio dessa capacidade que podemos intuir os objetos. Caberia ao entendimento o conhecimento imediato da relação entre causa e efeito, e à razão, por sua vez, caberia a função da formação de conceitos. Esses conceitos fazem parte de uma classe que, segundo o pensador, é uma forma “especial” de representações, representações de representações; absolutamente distintas das representações intuitivas, só existem no espirito humano, não são percebidas, mas concebidas. Nessa relação causal, a intuição do mundo é um desdobramento desse conhecimento e a razão, de forma parecida, opera com conceitos, ou seja, são ambos modos variados dessa função do entendimento. Sendo assim, por mais abstrato que seja o conceito, ele só é possível, ou só tem seu início, por conta do entendimento ou da sensibilidade, já que, segundo Schopenhauer, não há separação entre ambos. “A razão sempre pode apenas SABER; unicamente ao entendimento, livre de toda influência da razão, é permitido intuir” (SCHOPENHAUER, 2005, § 6, p.69). Percebe-se aqui um distanciamento de Schopenhauer em relação à filosofia de Kant. Enquanto para Kant a sensibilidade tem um papel intuitivo, interno, como aquela que apresenta as relações causais e as noções de tempo/espaço, e o entendimento é a faculdade do julgar, para Schopenhauer a sensibilidade e o entendimento são unificados no entendimento sob o nome de princípio de razão. Espaço e tempo, as formas a priori da sensibilidade, são entendidos como presentes no entendimento juntamente com a causalidade que proporciona o vínculo entre essas duas formas. O entendimento, com o mesmo caráter da sensibilidade, recebe as sensações como um efeito e assim as vincula à causalidade para ir através do tempo até as suas origens e ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 45 posicioná-las no espaço como representação intuitiva. Ou seja, para Schopenhauer, “intuição não é somente sensual, mas também intelectual” (SCHOPENHAUER, 2005, §4, p.55). O corpo, que até o presente momento não é distinto de outros objetos para o sujeito, é também, portanto, apenas representação. Isso se dá porque ele também se apresenta como objeto imediato, assim como a representação, que serve de ponto de partida para o sujeito que conhece. Toda a atividade exercida pela matéria corporal é doravante mediada pela sensibilidade, e esta identifica as relações causais e se traduz para o sujeito no entendimento, que por fim se entende enquanto separado de outros objetos. A representação, portanto, só aparece mediante essa relação sujeito e objeto, em que o objeto primeiro é corpo; isso implica o objeto colocado diante do sujeito, e por sua vez, ambos entendidos pelo sujeito enquanto distintos, porém inseparáveis. Como visto acima, Schopenhauer, afirma que o corpo é ele mesmo um objeto para o sujeito, e neste sentido é considerado o ponto de partida para o conhecimento, como uma forma intuitiva, um sentimento, uma evidência. Portanto, o pensador não parte do sujeito e nem do objeto tomados de forma separada, mas como um mesmo em si para o conhecimento. O entendimento se dá como uma forma primitiva, intuitiva e essencial que se desdobra em uma relação sempre ativa entre sujeito e objeto. Desse modo, podemos inferir que o entendimento é somente essa relação imediata entre sujeito e objeto, causa e efeito, esse modo da intuição pura, um ato da vontade. A forma geral de todo o entendimento se manifesta, então, no modo desse conhecimento a priori (intuição) e nessas relações entre as leis naturais (causalidade), como uma condição prévia de toda percepção de mundo. Essa operação do entendimento não é reflexiva e nem discursiva, mas direta e imediata, que aparece apenas enquanto intuição sem influência da razão. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 46 “OS SETE SABERES NECESSÁRIOS À EDUCAÇÃO DO FUTURO” DE EDGAR MORIN: UMA TEORIA DO CONHECIMENTO Angelina Cortelazzi Bolzam2 Universidade Metodista de Piracicaba – UNIMEP [email protected] Renato Bellotti Senicato3 Universidade Federal de Itajubá - UNIFEI [email protected] Palavras-chave: Educação do futuro; Edgar Morin; filosofia contemporânea Essa investigação é fruto da junção das problematizações realizadas pelos pesquisadores em momentos concomitantes, mas em ambientes diferentes, quais sejam, no curso de Mestrado em Direito da Universidade Metodista de Piracicaba - UNIMEP; e da Especialização em Tecnologias, Formação de Professores e Sociedade da Universidade Federal de Itajubá UNIFEI, que analisaram a mesma obra como desenvolvimento de atividades de pós-graduação. O objeto de nosso estudo, que está nos entreolhares das referidas pesquisas, é a obra Os sete saberes necessários à educação do futuro, de Edgar Morin (1921). Utilizando a metodologia de pesquisa e revisão bibliográfica e a abordagem de cunho Multirreferencial, problematiza-se o que Morin considera acerca desses “sete saberes”. Segundo o autor, “Há sete saberes ‘fundamentais’ que a educação do futuro deveria tratar em toda a sociedade e em toda cultura, sem exclusividade nem rejeição, segundo modelos e regras próprias a cada sociedade e a casa cultura”. (MORIN, 2000, p.13). Na obra, Morin faz uma crítica às formas de se fazer educação, propondo uma reforma da mesma e demonstrando que a insuficiência do conhecimento se dá pela ausência do elemento complexidade na educação. Ao desenvolver suas ideias, Morin nos apresenta sete buracos negros totalmente ignorados e que precisam ser colocados no centro das preocupações sobre a formação de sujeitos, tendo, por fim, a reforma do pensamento. Ademais, pautado na problemática da Bacharel em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba – UNIMEP (2014); Mestranda do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Metodista de Piracicaba – UNIMEP. 3 Licenciado em Filosofia pela Universidade Metodista de Piracicaba – UNIMEP (2014); Estudante de especialização em Tecnologias, Formação de Professores e Sociedade pela Universidade Federal de Itajubá – UNIFEI. 2 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 47 fragmentação do saber, o autor destaca que o pensar complexo supera as formas desassociadas, pois a informação precisa ser contextualizada. É neste ponto que se destaca a interdisciplinaridade. Nessa perspectiva, compreendemos ser necessário problematizar os sete saberes apresentados por Morin, quais sejam: (I) As cegueiras do Conhecimento em relação à realidade e os elementos que a constitui, evitando “o erro e a ilusão”. (II) O conhecimento pertinente que demonstra a necessidade de relacionar e contextualizar os diferentes saberes que também constituem a vida humana. Dessa maneira, há o amadurecimento do conhecimento que se produz, imprimindo-lhe pertinência. (III) A condição humana, desconsiderada dos programas de formação, constituída como trinitária: individual, social e de espécie, de forma que, como categorias interdependentes devem ser consideradas, é com referência à ela que as ciências devem produzir o conhecimento. (IV) A compreensão humana, como elemento que, segundo Morin nunca é ensinado ao outro. Além de pontuar que a compreensão é o ato de agrupar os elementos para o entendimento do objeto, é necessário compadecer-se do outro, estar com, identificando o que leva à. (V) A incerteza, que nos permite compreender a vida como uma aventura suscetível aos imprevistos, portanto, incerta. Contudo, o imprevisto não é de todo desconhecido, fazendo-se reconhecer como possibilidade de acontecimento, para o qual, através da “ecologia da ação”, é possível tomar consciência de possíveis erros por ele provocados e corrigi-los. (VI) A condição planetária, visto que a aceleração do movimento com que se dão as relações é uma justificativa da qual se utiliza Morin para falar de uma noção fragmentária do mundo, da qual o ensino não dá conta. Ao citar que os problemas que encaminham a humanidade para sua finitude estão todos relacionados, o autor fala da necessidade de fugirmos do imediatismo, criando a consciência de que o destino da humanidade é comum. (VII) A antropo-ética que, com ênfase na identidade humana, estabelecida nas relações de interdependência entre o individual, o social e a espécie, reforça a importância da democracia para a tomada de consciência da condição humana, a efetivação consciente dos princípios desta, bem como das antinomias dela provenientes. A criação da consciência para o exercício da cidadania e responsabilidade encaminha-nos a uma noção de antropo-ética. Apesar de considerar a pertinência dos saberes considerados necessários à educação do futuro, Morin adverte que seu texto “não é um tratado sobre o conjunto das disciplinas que são ou deveriam ser ensinadas: pretende, única e essencialmente, expor problemas centrais ou fundamentais que permanecem totalmente ignorados ou esquecidos e que são necessários para se ensinar no próximo século”. (MORIN, 2000, p.13). Ao isolar o caráter ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 48 prescritivo de sua obra, consideramos que Morin constrói uma teoria do conhecimento, que valoriza nesses setes saberes os traços da potência emancipatória que o processo educativo pode assumir. De forma que não circunscreve a exclusividade da pertinência desses saberes à espaços e tempos, como, por exemplo, o da escola, o autor abre as portas desses saberes para o traço educativo indispensável de ser pontuado como valor humano, ou seja, “o saber científico sobre o qual este texto se apoia para situar a condição humana não só é provisório, mas também desemboca em profundos mistérios referentes ao Universo, à Vida, ao nascimento do ser humano.” (MORIN, 2000, p.13). É por colocar os sete saberes como problemas do conhecimento que se refletem na vida que consideramos, com Morin, que o apresentado em sua obra apresenta-se como apontamentos de uma teoria do conhecimento que “abre um indecidível, no qual intervêm opções filosóficas e crenças religiosas através de culturas e civilizações.” (MORIN, 2000, p.13). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 49 FILOSOFIA, ARTE E CIÊNCIA CONVERGÊNCIAS E DIVERGÊNCIAS A PARTIR DE DELEUZE E GUATTARI Anna Maria Lorenzoni Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE Bolsista CAPES/CNPq Orientador: Prof. Dr. Rosalvo Schütz [email protected] Palavras-chave: Arte; ciência; Deleuze; filosofia; Guattari Em O que é a filosofia?, Gilles Deleuze e Félix Guattari respondem à pergunta que dá título ao livro ao mesmo tempo em que estabelecem as ressonâncias entre a arte, a ciência e a filosofia. Tratamse de modos de criação do pensamento que não confundem-se uns com os outros: “o verdadeiro objeto da ciência é criar funções, o verdadeiro objeto da arte é criar agregados sensíveis e o objeto da filosofia é criar conceitos” (MACHADO, 2010, p. 14). Tendo isso em vista, o objetivo deste trabalho é expor como, a partir da perspectiva deleuze-guattariana, esses diferentes domínios do saber diferenciam-se, assim como porquê os autores reivindicam a especificidade da criação filosófica frente a esses domínios. Sendo assim, veremos como saberes diferentes são movimentados por problemas diferentes, resolvendo-os a partir de seus próprios meios. Entretanto, isto acontece sem que haja privilégio de um modo de pensamento sobre o outro, uma vez que essas atividades criadoras interferem e repercutem entre si, podendo, inclusive estimular novas criações. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 50 MENTE E EXTERNISMO SEMÂNTICO NA FILOSOFIA DE PUTNAM Bruno Fernandes de Oliveira Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE [email protected] Orientador: Prof. Dr. Remi Schorn Coorientador: Dr. Luiz Henrique de Araújo Dutra Palavras-chave: Mente; externismo; Putnam Este trabalho tem o objetivo de investigar e apresentar o que o filósofo estadunidense Hilary Putnam entende por mente, e qual a importância deste conceito para o externismo semântico em sua filosofia da mente e da linguagem. Para tanto se faz necessário compreender o conceito de funcionalismo e, em seguida, a relação da teoria dos estados mentais com externismo semântico. Neste sentido surgem questões como: a mente pode ser reduzida ao cérebro? Qual a natureza dos estados mentais? Como os estados mentais se relacionam com o cérebro? Estados mentais são produtos da vida biológica? Computadores podem possuir estados mentais? O externismo supera o funcionalismo? Na década de 60 Putnam propõe uma explicação funcional da mente, isto é, a teoria sobre o funcionalismo. Tal teoria mostra que eventos e estados mentais não são reduzidos à processos biológicos, mas, sim, a funções causais. O funcionalismo pretende definir o cérebro como uma máquina, no qual a mente é um programa e, o computador ao receber informações processa essas informações por meio do programa que recebe através de um input. O funcionalismo tem seus problemas, reduzir o cérebro humano ao um supercomputador é um deles. Na década de 80, o próprio Putnam refutou o funcionalismo. O filósofo percebeu a incompatibilidade do funcionalismo com o externismo semântico, isto é, o funcionalismo tinha uma enorme dificuldade em se relacionar com o externismo semântico e com o conteúdo mental. O próprio Putnam destaca a problemática e refuta definitivamente o funcionalismo em seu livro Representation and Reality (1988). A dificuldade que Putnam levanta é que o funcionalismo não dá conta de superar o internismo, ou seja, os estados intencionais são estados cerebrais. O que é totalmente contra a sua proposta externista. Portanto, segundo o modelo funcionalista, os ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 51 significados são entidades privadas, isto é, o funcionalismo é incompatível com o externismo semântico, no qual os significados são entidades públicas. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 52 POLÍTICA EM MARX: VARIAÇÕES SOBRE O MESMO TEMA Bruno Gonçalves da Paixão Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE [email protected] Orientador: Prof. Dr. Jadir Antunes Palavras-chave: Política; estado; ontonegatividade No campo do pensamento marxista a única assertiva unânime, sem sombras de dúvidas, é de que não existe unanimidade em seus vários intérpretes. A maior evidência é o número de escolas, ou pseudo-escolas, que reivindicam a verdadeira interpretação da obra de Marx. A consequência disso é um enorme desencontro interpetativo-prático da teoria desse pensador alemão. Nesse sentido, a temática aqui estudada está longe de passar ilesa por essas variedades de análises, muitas vezes parecidas, outras nem tanto, e, em sua grande maioria, totalmente díspares. Essa comunicação pretende abordar a política na obra marxiana, procurando entender, a partir da letra de Marx, o real significado de tal dimensão para este autor, assim como a sua validade histórica. Para isso, tentaremos primeiramente mostrar como a temática é abordada por três grandes comentadores marxistas brasileiros que se debruçaram ou ainda se debruçam sobre a questão da política e sua manifestação material, o Estado. O primeiro, José Chasin, vê a política enquanto dimensão essencialmente negativa ou ontonegativa, seguido por Ivo Tonet, que a entende como elemento negativo na sociedade de classes e que atingiria um status de positividade numa sociabilidade emancipada (comunista), e por fim, Carlos Nelson Coutinho, que encara a política como sendo essencialmente positiva. O esforço aqui se dará para apresentar as principais ideias que norteiam o pensamento de cada autor – intervindo nesse primeiro momento apenas pontualmente – para depois, concluirmos de forma breve, o que entendemos sobre a política em Marx. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 53 NORMATIVIDADE E MORAL NATURALIZADA Bruno Martinez Portela Universidade Federal de Santa Maria - UFSM Bolsista da CAPES [email protected] Orientador: Prof. Jair Antônio Krassuski Palavras-chave: Moral; naturalismo; sentimentos; normatividade Estudos recentes em neurociência sobre psicologia moral têm repercutido no cenário filosófico e motivado novos debates sobre a moralidade. Alguns filósofos e cientistas têm apontado divergências entre teorias clássicas da moral e o resultado de determinados experimentos científicos, trazendo novos elementos para discutir conceitos fundamentais da moral, como o papel da razão e sensibilidade nas decisões morais e o próprio fenômeno da normatividade. É o caso dos estudos realizados por Joshua Green há pouco mais de uma década. Com sua colaboração, a discussão moral contemporânea toma um rumo diferenciado e dá lugar a novas teorias naturalistas da moral. No presente artigo, pretende-se mostrar que a importância dos sentimentos no âmbito da moralidade já estava presente em teorias morais naturalistas modernas, como a de David Hume, e que, a exigência de determinadas revisões na forma como a tradição racionalista compreendeu a noção de obrigações morais não devem redundar em um obstáculo à normatividade na moral. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 54 RELAÇÕES DE PODER, SOBERANIA E GOVERNAMENTALIDADE EM MICHEL FOUCAULT Carla Musa Latsch Cherem Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ [email protected] Orientador: Prof. Dr. Guilherme Castelo Branco Palavras-chave: Poder; soberania; estado; governamentalidade; relações de poder A questão do poder emerge em vários cursos e textos do filósofo francês Michel Foucault. Tentar perceber o poder como algo que não existe como substância, nem localizado em instituições é ao mesmo tempo desafiador e um fator importante para compreendermos o olhar foucaultiano sobre o poder. Pela tradição filosófica temos a tendência de identificar o poder aqui e ali, como o poder dos governantes, ou dizer que a burguesia tem poder e o proletariado não. Em primeiro lugar, é relevante dizer que Foucault não está, com seu discurso, negando que, em alguns momentos e em certo sentido, também se possa pensar o poder como aquilo que alguns indivíduos possam, individualmente ou através de instituições, exercer no sentido do controle ou de alguma dominação sobre outros. O que Foucault parece deixar emergir em seus estudos é, no entanto, o entendimento de uma forma de racionalidade política que envolve, em sua lógica interna, alguma coisa que mesmo não estando em nenhum lugar específico está em todos, pois transita pelos espaços. Essa noção multiforme de “espaços” envolve muito mais do que instituições, ou lugares, abrange as pessoas viventes e os discursos que são produzidos. Como Foucault entende as relações de poder? Em que sentido, ou em que medida, o conceito de relações de poder aponta para um caráter multidimensional, em que a dinâmica da “circulação” faz mais sentido para uma análise contemporânea do poder, do que a compreensão “estática” do mesmo, como asseverada por Maquiavel e outros filósofos modernos? Qual o papel do Estado nas relações de poder? O fato de Foucault afirmar que não existe um “Poder com ‘p’ maiúsculo” indica o “fim do Estado”? Tentaremos observar estas questões para buscar investigar, a partir do conceito de relações de poder, o entrecruzamento entre Estado soberania e governamentalidade na contemporaneidade. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 55 SOBRE VALORES E NORMAS: SONDAGENS A PARTIR DO DIÁLOGO HABERMAS-PUTNAM Carlos Ferreira Universidade Federal de Santa Maria - UFSM Bacharel em Ciências Sociais e Jurídicas [email protected] Palavras-chave: Valores/normas; relativismo moral; Putnam; Habermas Neste trabalho empreende-se a busca de um meio termo entre o ceticismo dos que são contra teorias morais e a posição de que a filosofia moral é o tribunal supremo de toda justificação moral. Acompanhando a discussão entre Putnam e Habermas, busca-se avaliar a situação atual da relação entre normas e valores, relevante tanto para a Filosofia quanto para o Direito. Normas e valores então interligados, assim como fatos e valores são indissociáveis. Nossas máximas universalmente válidas, sejam elas poucas ou muitas, contém conceitos éticos estritos e, portanto, não podem ser tomadas por mandamentos meramente descritivos do que deveria ser a correta conduta moral. Tampouco podemos cair no relativismo de considerar que cada lei somente possui validade conforme a valoração individual de cada destinatário. Em razão disso seria necessário um meio termo entre a vinculação normativa absoluta e o relativismo. Aceitar que valores éticos sejam racionalmente discutidos e, portanto, não necessitem ser relativizados, não é o mesmo que tomar valores aprioristicamente. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 56 CAN MORALITY BE BASED ON BIOLOGY? A NEUROECONOMIC MODEL ON OXYTOCIN Carlos Roberto Bueno Ferreira Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUC-RS Mestrado em Filosofia [email protected] Orientador: Prof. Dr. Orientador: Nythamar de Oliveria Palavras-chave: moral molecule; moral theory; neurophilosophy In the past decades the neurosciences made ground breaking discoveries about how the human brain works and, consequentially, what is involved in our decision making processes. This essay faces the question about the possibility of taking under consideration the biological physiology of the brain when formulating a moral theory. Most theories about morality (Aristotle and Kant, for example) focus on the rational aspect of value selection, leaving the natural biological account out of equation. The first part of the present work addresses the research of neuroeconomist Paul Zack, who claims to have found a “moral molecule” capable of making people to act more trustingly. This substance is a neuropeptide named oxytocin. A philosophical experiment is then proposed concerning the possibility (and even the desirability) of a neuroeconomical system based on oxytocin. In conclusion what can be observed is that all moral is based on values. There is no such thing as a “pure morality” simply because there is no pure source of value. Nature has its values, selected throughout billions of years of trial and error, just as cultures construct their own set of moral principles. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 57 A HERMENÊUTICA DA FACTICIDADE E A DESCONSTRUÇÃO DA TRADIÇÃO ONTOLÓGICA SEGUNDO HEIDEGGER Caroline Marangoni Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE Pós-Graduanda Segunda Licenciatura (PARFOR) [email protected] Orientador: Prof. Dr. Roberto S. Kahlmeyer-Mertens Palavras-chave: Hermenêutica; facticidade; tradição filosófica O objetivo deste trabalho é apresentar uma breve explicação sobre a hermenêutica da facticidade tal como encontrada na obra do filósofo alemão Martin Heidegger. Para tanto, tomaremos por base os trabalhos Ontologia - Hermenêutica da facticidade e Ser e tempo, nos quais nosso autor programa sua ontologia fundamental. A partir dessas, será necessário refletir sobre as concepções de hermenêutica e de facticidade. Pretende-se descrever como o autor faz um estudo sobre a tradição filosófica e utiliza a hermenêutica não como um modo artificial de análise, mas como uma interpretação que conduz ao encontro e com vistas à facticidade. Em nossa comunicação, após explanar a hermenêutica da facticidade se faz necessário outra análise da questão do ser, também será apresentada o plano geral de sua destruição da história da filosofia, projeto filosófico por meio do qual o filósofo pretende uma destruição da tradição filosófica. Dizendo de modo claro: nossa comunicação tem por meta descrever como o filósofo busca destruir tudo aquilo que impede a aproximação do caminho que conduz às experiências originárias em torno do ser. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 58 RESOLUÇÃO DE PROBLEMAS EM DESCARTES: O CASO DA “GEOMETRIA” Prof. Dr. César Augusto Battisti Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE [email protected] Palavras-chave: Descartes; resolução de problemas; geometria Conhecer é demonstrar verdades ou resolver problemas? Embora resolver problemas também seja estabelecer verdades e, portanto, em última análise, as duas perspectivas confluam, não é uma mesma coisa conceber a ciência de uma ou de outra dessas duas formas (havendo consequências pedagógicas, epistêmicas e de várias outras ordens). Descartes é um exímio teórico e praticante da ciência (do saber em geral, estando aí incluída também a filosofia) entendida como resolução de problemas. As Regras para a direção do espírito expõem uma “teoria dos problemas” e um método voltado à sua resolubilidade. A Geometria, por sua vez, é talvez o edifício científico mais bem construído pelo autor dentre dessa concepção: seus três livros se organizam em razão da divisão dos problemas examinados; ela inicia e se encera referindo-se a “todos os problemas de geometria”; as etapas do método consistem no tratamento de problemas por meio de sua recondução à sua equação correspondente e por meio de sua resolução (construção) geométrica. Pretende-se discutir essa concepção de conhecimento dentro desta que é uma obra central do pensamento cartesiano e, ao mesmo tempo, um clássico da história da matemática. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 59 O CETICISMO PIRRÔNICO NOS ARGUMENTOS DE MONTAIGNE CONTRA A RAZÃO Charles Eriberto Wengrat Pichler Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE Programa de Estudos Tutorados – PET, Filosofia [email protected] Orientador: Prof. Dr. Gilmar Henrique da Conceição Palavras-chave: Ceticismo; Montaigne; apologia Na perspectiva montaigniana, encontramos o paradoxo da crítica da razão pela própria razão. A razão não pode conduzir a vontade contra as paixões; ao contrário, as paixões podem ameaçar a teórica "constância da alma", pois a razão (instrumento móvel e incerto) inclina-se para diferentes lados porque é defeituosa e cega de um lado e de outro. A razão, em todos os homens, é a mesma em sua instabilidade, e a ignorância impera em todos. Em Montaigne, não há uma razão soberana e exterior; inversamente, para ele a razão é, ela mesma, um objeto de cera que se curva aos imperativos da vida e aos interesses particulares. A razão é, assim, uma instância de justificação. Como é sabido, Montaigne é leitor de Sexto Empírico e de Diógenes Laércio. Ao discorrer sobre o pirronismo, Laércio considera-o o mais nobre filosofar, por ter inventado em seu modo de vida os estados de akatalepsía (inapreensibilidade das coisas) e de epokhé. De acordo com Sexto Empírico, o princípio pirrônico fundamental é criar antinomias, opondo razões contrárias, para renovar o estado de epokhé decorrente dessa impossibilidade de reconhecer a verdade nas filosofias conflitantes. A diaphonia é insolúvel. No contexto desse estudo, este trabalho visa analisar a crítica de Montaigne à razão, mais precisamente ao seu modo de aplicação. No ensaio denominado “Apologia de Raymond Sebond”, a crítica recai sobre o uso da razão que faz o teólogo Sebond na “Teologia Natural”, que tenta sustentar sua crença através da razão, bem como na crítica radical ao uso da razão feita pela Reforma, que busca um novo critério de conhecimento religioso. A crítica de Montaigne é a de que a razão não deve ser usada para estabelecer uma universalidade – como faz Sebond, tentando estabelecer um critério de fé –, no máximo pode ser utilizada de forma investigativa em um contexto particular; no caso de ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 60 Sebond, por exemplo, poderia ser aplicada na fé – que independe de razão e só pode ser adquirida através da revelação divina. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 61 CIÊNCIA E RELIGIÃO NOS ESCRITOS EDUCATIVOS DE JOHN LOCKE Christian Lindberg L. do Nascimento Universidade Federal de Campinas - UNICAMP Bolsista da FAPESP [email protected] Orientador: Profª. Drª. Lidia Maria Rodrigo Palavras-chave: Ciência; educação; Locke; moral; religião O presente texto tem como objetivo central discorrer sobre o pensamento educativo de John Locke. Embora haja argumentações relevantes e pertinentes, a abordagem que este trabalho desenvolve é centrada, única e exclusivamente, no aspecto moral. Para tanto, parte-se de um problema identificado no conjunto da obra de Locke. Fala-se da aparente controvérsia entre a ciência e a religião e o papel que cada uma exerce na formação moral da criança. É com base nesse recorte que a presente análise é feita. Para a construção argumentativa, utilizou-se como fonte primária: Do estudo (1677), Apontamentos de uma carta de Locke para a Condessa de Peterborough (1697), Ensaio sobre a lei assistencial (1697) e Algumas ideias acerca da leitura e do estudo para um cavalheiro (1703). De forma secundária, foi adotada obras de comentadores relevantes. Por ser um estudo estritamente qualitativo, o procedimento metodológico usado foi a análise de conteúdo, sendo a leitura, o fichamento e a interpretação dos dados obtidos a técnica de pesquisa empregada. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 62 FILOSOFIA, ONTOLOGIA E DIALÉTICA A PARTIR DE EXCERTOS DAS PRELEÇÕES SOBRE A HISTÓRIA DA FILOSOFIA DE HEGEL Christiano Tortato Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE [email protected] Orientador: Prof. Dr. Tarcílio Ciotta Palavras-chave: Filosofia; ontologia; dialética Com a presente comunicação, almejamos iniciar uma reflexão sobre Filosofia, Ontologia e Dialética, a partir de alguns excertos retirados das Preleções sobre a História da Filosofia, de Hegel. Iniciaremos nossa apresentação com uma reflexão sobre a proposição de Tales de Mileto, “A água é a arkhé da phýsis” dando prioridade aos conceitos de arkhé e de phýsis. Em seguida, meditaremos sobre o fragmento DK 10 de Heráclito de Éfeso – “Conjunções o todo e o não todo, o convergente e o divergente, o consoante e o dissonante, e de todas as coisas um e de um todas as coisas” (trad. Joé Cavalcante de Souza) – dando ênfase a essa concepção de conjunção, ou seja, à concepção que zela pela unidade imanente entre ser e não-ser mediante a noção de devir. O próximo pré-socrático a ser investigado será Parmênides de Eléia, do qual analisaremos os fragmentos B 7 e B 8 do seu poema Sobre a Natureza (DK 28 B 1-9), em que a via do ser e a do não-ser aparecem radicalmente desvinculadas. É importante ressaltar que nossas reflexões se desdobrarão a partir dos comentários elaborados por Hegel, os quais, nesse primeiro momento, servirão para refletirmos sobre sua concepção de Filosofia e Ontologia. O final do fragmento B 8 do poema de Parmênides é de suma importância para nossa pesquisa, pois, ao apresentar a via do ser enquanto uma esfera, ressalta que seu “limite é extremo”. O limite, que em Parmênides demarca o abismo entre ser e não-ser, é re-pensado e re-apresentado dialeticamente por Platão em seu diálogo Sofista (258a-259b). Assim, retomamos nossa investigação sobre a Dialética a partir dessa imagem que, curiosamente, também aparece no Prefácio da Fenomenologia do Espírito de Hegel. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 63 UMA BASE BIOLÓGICA PARA A EMANCIPAÇÃO Cleberson Odair Leonhardt Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE [email protected] Palavras-chave: Repressão; princípio de realidade; emancipação Entre as construções teoricas marcusianas que procuram demonstrar um caminho a seguir, em relação a possibilidade de reconstrução do princípio de realidade, está a ideia de que existe uma base biológica para tal feito social. A identificação de uma emancipação instintiva que equilibre o processo mental e elimine a repressão dos instintos, não parece ser apenas uma emancipação social ou política, mas do indíviduo como um todo, atingindo até mesmo a sua estrutura de sentimentos e necessidades. Essa reestruturação compreende um novo entendimento e nova conceituação da base biológica, que não significa, em Marcuse, um determinismo biológico, que levaria de qualquer maneira à uma reestruturação do princípio de realidade, mas é antes um potencial facilitador que já está presente na sociedade. A pretensa liberação sexual, estabelecida na sociedade, não significa necessariamente uma maior libertação do princípio de prazer da repressividade que lhe é imposta pelo princípio de realidade. Afinal, a libertação da repressão que é imposta ao princípio de prazer exige muito mais do que uma liberação sexual. A dessublimação repressiva acontece quando a opressão assume a forma de gratificação. O indivíduo pensa que sublima mas na verdade se aliena. A liberação se coaduna a esse processo e acaba servindo aos propósitos do princípio de realidade estabelecido. No entanto, segundo Marcuse, esse não é o mundo que desejamos viver, e a revolta instintiva surge (daí, talvez a base biológica!) e facilmente se tranforma em rebelião política, e contra ela todas as forças desse sistema são mobilizadas. Podemos, ainda que unicamente desse fato, concluir que a própria natureza, impulsionada por essa situação, aspira a revolução. É esta base biológica que Marcuse quer apresentar e fomentar o potencial biológico que ela representa, ao visar a modificação do princípio de realidade e a emancipação. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 64 O CONCEITO DE ANGÚSTIA EM KIEKEGAARD E O IDEALISMO ALEMÃO Cleyton Francisco Oliveira Araújo Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE Mestrado em Filosofia [email protected] Orientador: Prof. Dr. Roberto S. Kahlmeyer-Mertens Palavras-chave: Angústia; idealismo alemão; existência; racionalismo O livro Conceito de Angústia, de Kierkegaard, constantemente dialoga e confronta com as ideias da filosofia do Idealismo Alemão. Compreender o objeto, o sujeito, o mundo, o indivíduo e a realidade (a partir das capacidades cognitivas da racionalidade humana, determinando-as em um sistema racional) é a pretensão dessa escola filosófico que iniciou em Kant, no final do século XVIII e terminou em meados do século XIX, com Hegel. Kierkegaard compreende, em seus escritos filosóficos e religiosos, que o sistema racional da Ideologia Alemã é capaz de compreender a existência em uma perspectiva meramente teórica e esta compreensão é possível somente no campo da lógica. A existência concreta e real, segundo o autor danês, é antagônica a visão desse sistema idealista, pois ela é experimentada no indivíduo em suas possibilidades, em sua liberdade, em suas contradições, sentimentos e angústias. Esta última, compreendida existencialmente e não no campo da psicologia moderna, é um instrumento importante para o entendimento do homem, pois abre-lhe oportunidades de interiorizar-se e descobrir-se como um devir. Angústia, em Kierkegaard, é a realidade da liberdade como possibilidade antes da possibilidade, são escolhas existenciais ainda não efetivadas, questões da vida que estão no campo da imaginação, assuntos contraditórios que não podem ser mediados ou harmonizados pela síntese. Na angústia há a realidade da tese e da antítese e a síntese é a escolha entre uma das duas, a liberdade, a existência vivida e experimentada, o salto. Angústia, em sua essência, é contraditória e paradoxal e pode ser compreendida, não por um sistema racionalista, mas por um indivíduo atento a sua existência. Angústia é um instrumento para a descoberta do homem no homem ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 65 A MORALIDADE NO CONCEITO DE MÁ-FÉ EM JEAN-PAUL SARTRE Cristiane Picinini Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE [email protected] Palavras-chave: Moralidade; má-fé; liberdade De acordo com o existencialismo sartriano, o homem não seria apenas portador de uma essência já dada, mas teria de criá-la a partir da sua existência. Nesse sentido, fala-se da liberdade, condição fixa do humano, dado que o homem estaria "condenado a ser livre". No terreno da moral, seguese que o homem não tem mais a possibilidade honesta de apelar a mandamentos, códigos ou leis para auferir as razões motivadoras de determinado ato. Isso equivaleria a massificar a moral como coisa, quando, na verdade, o único fundamento de qualquer ato está na escolha própria e individual do sujeito. Não há um guia de valores e deveres estabelecidos, mas ao menos se sabe que o sujeito é o único responsável por seus atos. Portanto, é no mundo delimitado pelas situações que o sujeito condenando a ser livre e criador da moral, sem o amparo de Deus, irá encontrar e se defrontar com a Alteridade. A liberdade, no entanto, só pode ser pensada, no plano ontológico, por meio da facticidade. A facticidade se revela pelas condições não escolhidas em que o homem aparece lançado e abandonado no mundo, como presença ao Ser. Neste sentido, a consciência será fundamento do seu Vazio, mas não será capaz de fundamentar a contingência do Ser. O esforço de Sartre direcionou-se ao esclarecimento desse conceito, partindo da sua sustentação em O Ser e no Nada. A consciência concebida fenomenologicamente deve ser vista, ela mesma, como relação com o mundo. A consciência é, ela própria, relação; por sua própria natureza, exige um objeto do qual seja, efetivamente, consciência. A consciência jamais poderia ser “consciência de nada”. Concebida como intencionalidade, ela é a própria atividade intencional e relação com seus objetos. Seja qual for o tipo de atividade em que estiver envolvida – percepção, imaginação, emoção, desejo, crença, etc. – é, a um só tempo, relação e constituição de sentido dessa relação desde um plano existencial, na medida em que é sempre consciência singularizada no mundo. O objetivo de O Ser e o Nada é mostrar que e como o homem traz consigo, sob a forma de sua consciência, uma contradição interna marcada pela ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 66 necessidade de relação com o Ser. Isto significa que, paradoxalmente, a liberdade depende da facticidade para ser liberdade, iluminando-a pelos fins. Se, de um lado, a liberdade deriva do Vazio da consciência humana, de outro, é graças ao Ser que ela surge como liberdade. Pode-se perguntar: a facticidade seria determinante das escolhas, de maneira que a liberdade não fosse apenas ilusão? Não, e é exatamente contra esse tipo de argumentos que se volta o existencialismo sartriano. Nenhum determinismo seria razoável para explicar a situação humana, pois o homem é livre ao anunciar como fim a si mesmo. Toda liberdade está em situação, e não poderia ser de outra forma. É nesse território que nos decidimos pela autenticidade ou pela má-fé, conceito que pretendemos discutir. Para isso, alguns conceitos básicos, porém difíceis, de O Ser e o Nada deverão ser também esclarecidos. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 67 ANÁLISE DA ESCOLA E SEU PAPEL SOCIAL PELA ÓTICA DO CONCEITO DE “DESCONSTRUÇÃO” EM JACQUES DERRIDA Cristiane R. Xavier Candido Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE Bolsista Projeto PIBID Filosofia, Campus Toledo [email protected] Palavras-chave: Educação; desconstrução; Derrida Esta análise tem por objetivo apresentar o desenrolar das ideias principais que o filósofo franco-argelino Jacques Derrida (1930-2004) desenvolveu (em meados da década de 60) acerca do conceito denominado “desconstrução”, de forma que se especifique como tai conceito desenvolve-se no âmbito da educação e, em que medida e circunstâncias pode ser possível estabelecer e observar o surgimento, ou melhor, a redescoberta do papel social das escolas em vista da “desconstrução” proposta pelo filósofo. De acordo com Derrida, a desconstrução na educação é uma quebra de fronteiras (que ainda são existentes), é uma decisão (e não uma ação que rege um comportamento determinado gerador de um modo de ser) em relação ao outro. Não há um método a ser seguido, uma doutrina a ser ensinada, mas sim, uma decisão que se toma. Ocorre, portanto, por um lado - através desta decisão reflexiva - tanto a emancipação do professor quanto do aluno e, diametralmente se sucede a emancipação da escola. Isto se dá, pois num primeiro momento, o professor terá que se vislumbrar com a desconstrução da sua própria maneira de ensinar e, assim ir ao encontro de novos meios de ensino, já o aluno ficará livre para criar suas próprias ideias em relação ao que foi ensinado (terá conhecimento de fato para isso), e assim, sucessivamente, observar-se-á que o papel social da escola abarcará muito mais do que se vem analisando ultimamente (com resquícios da educação tradicional). É neste habitat que a “desconstrução” derridiana “alça vôos” e promove importantes reflexões para a educação. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 68 A FILOSOFIA COMO PARRESÍA: UMA ÉTYMOS TÉKHNE (TÉCNICA AUTÊNTICA) Daniel Salésio Vandresen IFPR [email protected] Palavras-chave: Filosofia; parresía; tékhne O objetivo deste trabalho é apresentar o conceito grego de parresía (dizer-verdadeiro), resgatado por Michel Foucault como forma de redefinir o papel da filosofia como uma técnica autêntica de transformação de si. O filósofo exerce a parresía, pois, ao mesmo tempo em que busca o conhecimento da verdade, também transforma a si mesmo, articulação fundamental que faz da filosofia uma técnica autêntica (étymos téchne). A parresía significa a liberdade do dizer verdadeiro e está ligada a um êthos (atitude moral) e a uma tékhne (procedimento técnico), ambas indispensáveis para a constituição de si. Na parresía se busca o equilíbrio entre o que se fala (procedimento técnico) e o que se vive (conduta). Primeiramente, este trabalho descreve os conceitos de técnica e tecnologia na trajetória do pensamento de Foucault, para compreender como o conceito grego de téchne está presente em diferentes momentos de sua teoria. Para em seguida, apresentar a articulação dos conceitos de parresía e psicagogia (condução da alma ou operação sobre si mesmo por meio de discursos verdadeiros). A parresía consiste na técnica de, por meio do conhecimento verdadeiro, possibilitar a transformação do sujeito – temática fundamental para o ensino da filosofia, onde a formação do sujeito ocorre por meio de discursos, ou seja, uma educação que leva à constituição de si por meio de discursos verdadeiros que promovem rupturas e a expressão de novas formas de subjetividade. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 69 JUSTIÇA COMO EQUIDADE: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES QUANTO ÀS IDEIAS DE JOHN RAWLS Daniele Bet Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE [email protected] Orientador: Prof. Ms. Celito De Bona Palavras-chave: Teoria; justiça; equidade; Rawls A presente comunicação tem como objetivo apontar os principais pontos apresentados na parte inicial da obra Uma Teoria da Justiça, do filósofo político, norte-americano, John Rawls. Esta obra, publicada, originariamente, em 1971, possui grande destaque nas discussões e estudos acerca do conceito de “Justiça”. Na primeira parte do livro, o filósofo apresenta a ideia de “justiça como equidade”, concepção de suma importância para sua teoria. A proposta inicial de John Rawls é imaginar um contrato social hipotético, partindo de uma “posição inicial”, na qual todas as pessoas se encontram em uma posição original de equidade. Nesta posição, elas estariam vestidas com um “véu de ignorância”, a fim de deliberar sobre quais os princípios de justiça seriam utilizados na formação da sociedade. A ideia de Rawls é que usando este “véu de ignorância”, as pessoas ignorariam suas características pessoais e, assim, seriam capazes de raciocinar de forma equilibrada e imparcial, o que possibilitaria escolher os princípios mais adequados para o convívio social. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 70 EDUCAÇÃO CRÍTICA E DIREITOS HUMANOS Dayanne Vicentini Universidade Estadual de Londrina – UEL Bolsista Fundação Araucária. [email protected] Profª. Rosa de Lourdes Aguilar Verástegui Palavras-chave: Educação crítica; direito à educação; educação para a cidadania O objetivo deste trabalho é registrar e analisar a concepção de direitos humanos, dignidade e liberdade ligadas à educação. Para isto, tentaremos analisar os conceitos de dignidade humana e liberdade, observando qual é o âmbito ideal para que eles sejam preservados. Tendo em conta que a democracia não é uma invenção legal senão uma construção social, que se vai aprimorando, ressaltaremos o papel da educação. A importância da pesquisa radica na necessidade de esclarecer que tipo de educação preserva a liberdade, permite o desenvolvimento da autonomia e a construção da democracia. Se bem é reconhecida a relação existente entre educação e política é pertinente observar: que educação e que política queremos desenvolver. Não basta ter o direito à educação, é preciso que esta educação forme indivíduos autônomos e conscientes de sua responsabilidade política e críticos com a realidade. Este não é um trabalho pioneiro nem com a pretensão de esgotar o tema, pelo contrário, é um trabalho que deve ser constante para orientar nossas práticas docentes, que devem continuamente ser revisadas e melhoradas. O percurso metodológico será bibliográfico. Entre os principais teóricos abordados temos a Della Mirândola, que apresenta a dignidade humana e a liberdade fortemente ligadas; a proposta de cidadania pelo teórico da democracia, Norberto Bobbio e, a sugestão da educação crítica apresentadas por Michael Apple e Henry Giroux. Também recorremos a outros teóricos que tratam os temas abordados como: direitos humanos, liberdade, democracia, dignidade humana, cidadania, educação crítica. Trata-se de uma investigação que se situa na confluência entre educação e direitos humanos. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 71 KANT E OS POSTULADOS DA RAZÃO PRÁTICA Dean Fábio Gomes Veiga Rejane Veissid Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUC-PR [email protected] [email protected] Palavras-chave: Kant; moral; razão O objetivo deste trabalho é refletir acerca dos postulados da razão prática, conforme o problema identificado dentro da filosofia kantiana, nas conclusões da Crítica da Razão Pura, o que fundamenta a teoria do conhecimento do filósofo alemão. Nas conclusões, Kant estabelece os limites de sua primeira crítica, ou seja, os limites da razão e da possibilidade do conhecimento humano. A razão vê-se, então, em uma encruzilhada, pois força a si mesma a buscar compreender postulados que em âmbito especulativo não lograra certamente êxito. Deste modo, o problema da razão especulativa tornar-se-á o fundamento basilar das discussões presentes na filosofia prática do autor, especialmente as presentes na Crítica da Razão Prática e na Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Sustentaremos o argumento de que Kant não faz uma cisão em seu pensamento, tampouco divide a razão em esferas especulativa e prática, mas sim que a unidade da razão é identificada dentro das discussões, sendo o objetivo central da filosofia kantiana o de investigar os postulados da razão e sua operação em sentido prático. Ou seja, a preocupação kantiana, desde a primeira Crítica, sempre fora o de constatar a possibilidade da moralidade humana. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 72 DA CRISE DAS CIÊNCIAS AO MUNDO-DA-VIDA: O ÚLTIMO HUSSERL Devair Gonçalves Sanchez Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE [email protected] Palavras-chave: Fenomenologia; mundo-da-vida; ciências O presente artigo visa basicamente, num primeiro momento, explorar a postura do método fenomenológico transcendental em meio à problemática da crise das ciências a partir da metade do século XIX. Em seguida, deslindar a noção de mundo-da-vida (Lebenswelt) a partir da fase tardia do pensamento husserliano. Pretende-se indagar qual seja a tipologia da crise na qual estariam inseridas as ciências, de acordo com Husserl. Para tanto, far-se-á uma análise detida na obra A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental. Para Husserl, a fenomenologia transcendental deve ocupar-se com a análise dos fundamentos últimos de todas as ciências. A necessidade de uma busca por fundamento provém da perda de sentido das ciências de um modo geral e da própria filosofia em seu momento de crise, enquanto ciência das ciências. O conceito de mundo-da-vida como proposta de reflexão na fenomenologia “tardia” equivalerá a um novo panorama acerca da investigação do sujeito e de suas relações intersubjetivas. A abertura de mundo deve levar em consideração o âmbito pre-categorial das vivências. Descrever as estruturas que permitem essa abertura de caráter inédito no pensamento husserliano é tarefa do filósofo como funcionário da humanidade. A busca pelo desvendamento do mundo-da-vida permitirá um cuidado (Sorgen) com a humanidade também afetada no seio da crise europeia. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 73 LA MIGLIORE FORTEZZA CHE SIA, È NON ESSERE ODIATO DAL POPULO: A PERSPECTIVA POLÍTICA DA ANÁLISE MAQUIAVELIANA SOBRE AS FORTIFICAÇÕES Douglas Antônio Fedel Zorzo Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE Bolsista CAPES/CNPq [email protected] Orientador: Prof. Dr. José Luiz Ames Palavras-chave: Maquiavel; guerra e política; arte militar; pensamento militar. Muito próximo às discussões sobre a práxis governamental, Maquiavel apresentava uma problemática que havia se revelado essencial para a manutenção das disposições políticas: a questão militar. A abordagem, que buscava reatar os laços entre guerra e política, é testemunha de um autor que norteia sua argumentação sobre a temática marcial a partir de posicionamentos de cunho essencialmente políticos. É justamente mantendo a perspectiva política como pano de fundo que Maquiavel encarava uma das questões mais proeminentes da arte militar do Cinquecento: a construção das fortalezas. Nosso intuito, aqui, é o de delinear em que medida a dimensão política se sobressai à compreensão militar desses mecanismos de fortificação. Em O Príncipe, notamos Maquiavel fundar sua argumentação em um solo substancialmente político. As fortificações apenas demonstram certa relevância em Estados onde a relação entre súditos e o poder soberano não é desarmoniosa, ou seja, onde os governantes não são odiados pelos governados. As providências militares dependem das deliberações políticas para evitar esse sentimento popular, pois nenhuma construção arquitetônica é capaz de substituir o lugar ocupado pelo povo na dinâmica de governo. Apenas a benevolência popular é capaz de conferir segurança e estabilidade ao Estado, e não muralhas, afinal "a melhor fortaleza que existe é não ser odiado pelo povo". Nos Discursos, as fortificações não apenas aparecem como incapazes de ocupar um lugar pertencente ao povo, mas também são reputadas como altamente nocivas ao aparelho estatal, exatamente por fragilizar a relação entre governantes e governados: as fortificações apenas tornam visível a dominação, cristalizando o ódio dos homens. Assim, a ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 74 crítica às fortificações é depositária das teorias políticas maquiavelianas. Ao destacar o malefício que essas estruturas acarretavam à coletividade, o que estava em questão não era apenas a efetividade militar, mas a fragilidade política dos Estados que as fortalezas buscavam maquiar. Logo, ao basear a segurança estatal em edificações, o papel desempenhado pelo povo no jogo político não apenas era drasticamente diminuído, mas convertido em algo potencialmente nefasto à conjuntura política. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 75 DIFICULDADES CONTRAMAJORITÁRIAS: JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E LEGITIMIDADE DO DIREITO EM HABERMAS Douglas Maranhão Marques Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Cascavel – UNIVEL [email protected] Orientador: Profª. Ms. Kátia Salomão Palavras-chave: Dificuldades contramajoritárias; legitimidade do direito; jurisdição constitucional; democracia A constante tensão a que vem sido submetida a noção de democracia é alvo de estudo dos mais diversos campos das ciências sociais, de modo que o próprio direito circunscreve tal pesquisa aos limites normativos eventualmente aplicáveis a tal imbróglio. A própria noção de legitimidade do direito enquanto instituto social autônomo dita o tom da discussão democrática, através dos embates intrínsecos às relações sociais essencialmente conflituosas, uma vez que o controle social exercido por tal instituição revela uma face eminentemente paradoxal das jurisdição constitucional enquanto ramo jurídico aplicado: a de estabelecer uma relação de equilíbrio entre a vontade majoritária, em face da defesa de garantias mínimas substanciais que contenham avanços políticos indevidos. A opção pela Teoria do Discurso de Jürgen Habermas como critério de legitimação jurídica não é leviana, uma vez que o filósofo alemão é um dos mais proeminentes membros da filosofia contemporânea a depositar em critérios de racionalidade os instrumentos legitimadores do direito, sendo que as esferas das autonomias privadas e públicas coexistem como fundamentos para as indagações propostas no estudo pretendido. Por fim, a concatenação do discurso habermasiano com a crise de legitimidade sofrida pela jurisdição constitucional – consoante a estruturação primariamente alheia ao corpo eleitoral soberano – ensejam a pretendida análise das dificuldades contramajoritárias emergentes no seio interpretativoconstitucional, sempre tomando por base a efetiva necessidade de estipulação do sujeito de direitos como ponto de partida para a conceituação dos institutos pretendidos. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 76 VONTADE E AMOR EM SANTO AGOSTINHO Prof. Ms. Douglas Meneghatti Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE [email protected] Palavras-chave: Vontade; amor; emoções; felicidade A vontade é um dos temas filosóficos mais complexos e que suscitou o interesse de filósofos como Santo Tomás de Aquino, Schopenhauer e Nietzsche. Os dois últimos acreditam que a vontade é uma força originária presente na natureza como impulso de toda e qualquer forma de vida. A partir dessa temática, analisaremos à vontade e suas implicações em Agostinho, tendo como apoio o texto La filosofia della mente in agostino de Gerard O’Daly. A princípio deve-se frisar que a vontade está intimamente ligada com o amor e tem por fim último à felicidade. No livro As confissões, Agostinho sugere que o amor é a medida e a direção da vontade, de modo que quando a vontade chega ao que lhe é desejado, passa a ser amor. No livro O conceito de amor em santo agostinho, Hannah Arendt salienta: “amar não é mais do que desejar (appetere) uma coisa por si mesma [...] o amor é desejo (appetitus)”. Assim, o fundamento de toda a ação é o amor, e a própria vontade é levada a ação por seu intermédio. Convicto de que o homem está onde se encontra o seu amor, o bispo de Hipona orienta que nem todo o amor deve ser amado: o homem deve possuir a diligência de diferenciar as coisas passageiras das eternas, e regozijar-se com as últimas. Não que as coisas passageiras sejam más em sua origem, compete ao homem reconhecer sua hierarquia e dar a cada coisa o seu devido valor. Na perspectiva agostiniana, para a qual o conhecimento implica o amor, quando conhecemos o bem passamos a amá-lo, por isso o homem sente-se atraído pelo Criador que está no seu “interior”. Ou seja, se não conhecêssemos Deus não o amaríamos, pois o homem busca o que, de um certo modo, já lhe é presente. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 77 A SOCIEDADE CHINESA E O DIREITO À EDUCAÇÃO DE QUALIDADE Elaine Emanuelle Lemos da Silva Conejo Rosa de Lourdes Aguilar Verástequi Universidade Estadual de Londrina - UEL [email protected] Palavras-chave: Educação de qualidade; avaliação internacional; PISA O objetivo desta pesquisa é apresentar quais ações foram implantadas pela sociedade chinesa, governo e escola, que beneficiaram a educação tornando-a de qualidade para todos, levando a cidade de Xangai alcançar o primeiro lugar no PISA (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes). Compreendemos que pode haver qualidade educacional e desenvolvimento social, mesmo em lugares que exista alto índice de pobreza. Sendo assim acreditamos que a educação se constitui através de um processo no qual as mudanças são necessárias e são bem vindas as modificações que supram a diferença estabelecida entre a educação para a elite e a educação para as classes menos favorecidas, visando ajustar de forma igualitária e justa a diferença entre acesso, oportunidade, e a qualidade de ensino. Buscamos através de nossa pesquisa relatar e expor indicações e possibilidades para uma educação e escola de qualidade. Utilizamos como ponto de partida o documentário, Destino e Educação: diferentes países, diferentes respostas (2011), exibido pelo canal Futura em parceria com o SESI e pesquisa bibliográfica acerca de textos sobre: a Educação, Avaliação, Órgãos Governamentais, UNESCO, Organização e Gestão da Escola. Ressaltamos que o sucesso deste processo que mudou a realidade educacional dos grupos menos favorecidos da sociedade chinesa se deu através da implementação de políticas públicas que geraram investimento na educação, na modernização, nas pesquisas, treinamento dos professores e também pelo fato de que as famílias assumem um papel de grande importância frente à Educação de seus filhos. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 78 A PRIORIDADE DO TEMPO EM RELAÇÃO AO ESPAÇO NO PENSAMENTO DE BERGSON Eleandro Lopes Depieri Maria Constança Peres Pissarra Mestrando Diversitas- FFLCH/USP [email protected] Palavras-chave: Tempo; espaço; duração; intuição; método A partir do resgate de alguns conceitos-chave, pretende-se analisar e compreender o problema da relação tempo/espaço na filosofia bergsoniana. Afirmando que há duas maneiras de conhecer, uma que se coloca do lado de fora do objeto, e a outra, por outro lado, que procura penetrar no objeto do conhecimento, misturando sujeito e objeto numa mesma realidade, Bergson, afirma que a primeira se prende a um ponto de vista, construindo uma ideia parcial do objeto, e a segunda, por sua vez, apresenta-se como forma ampla e global de conhecimento. A ciência moderna, na perspectiva bergsoniana, sustenta-se a partir apenas da primeira forma de conhecimento, tendo em vista que se baseia somente na observação e análise do objeto. Assim, para o autor em questão, essa ciência é responsável por construir um conhecimento parcial e fragmentado. O caminho para se alcançar o conhecimento pleno da realidade consiste na adesão da intuição como método. A intuição, para Bergson, é o método pelo qual se pode atingir um conhecimento da realidade como uma totalidade. Ao contrário do método da ciência moderna, a intuição, estabelece que a realidade deva ser pensada a partir do tempo e não do espaço. Com base no conceito de intuição, o presente trabalho pretende compreender a inversão conceitual e metodológica que Bergson promove ao considerar o tempo como prioridade em relação ao espaço e, a partir dessa análise, resgatar a importância do pensamento bergsoniano, recolocandoo como elemento central para a compreensão do pensamento contemporâneo. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 79 A COMUNIDADE CIENTÍFICA NAS CIÊNCIAS PURAS E APLICADAS Erickson dos Santos [email protected] Palavras-chave: Ciência; tecnologia; comunidade A comunidade científica tem imensa diversidade na sua composição. Sabe-se que seus numerosos grupos agregam pessoas provenientes de carreiras concebidas, tradicionalmente, como tecnológicas. Essa multiplicidade de pessoas confere diversidade na distribuição de valores, composição de ideias, teorias, grupos e instituições que a ciência e a sociedade atual propagam como representantes do conhecimento. Aquele que faz a ciência básica e aquele que faz a aplicada, porém, não se distinguem, segundo Stokes (2005). Mas um praticante de alguma ciência não pode ser descrito somente pela sua formação acadêmica (graduação, mestrado ou doutorado). Sua linha de pesquisa, que nem sempre está ligada ao seu quadro de formação original, também não pode ser o limite para que ele seja reconhecido como um cientista ou não. De fato, a área de prática de investigação deve indicar para qual grupo tem de responder quando expõe suas teorias e trabalhos a serem publicados. Desse modo, a responsabilidade da comunidade é ser o juiz dos trabalhos que precisam ser avaliados como pertencentes ou não ao campo científico e, também, quais, de fato, são de alcance notável para contribuir com a continuidade daquela referida ciência. Assim, a proposta é estabelecer se há distinção para uma comunidade de cientistas “puros” ou “aplicados”. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 80 SOBRE A DISTINÇÃO ENTRE FILOSOFIA E CIÊNCIA EM HEIDEGGER Felipe Ricardo Deuter Becker Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE Programa de Estudos Tutorados - PET, Filosofia [email protected] Orientador: Prof. Dr. Libanio Cardoso Palavras-chave: Filosofia; ciência; Heidegger Na Introdução à filosofia (1929), Heidegger distingue filosofia de ciência. Nosso objetivo é acompanhar essa distinção, ocupando-nos do modo como, em cada caso, o ente é considerado. De fato, tanto a filosofia quanto a ciência parecem se preocupar, "em teoria", com o ente. Por muito tempo, a filosofia foi mesmo vista como ciência. Se a questão parece ser a mesma – o que é o ente? – qual será a diferença entre elas? Seria apenas o fato de a ciência se ocupar "na prática", enquanto a filosofia se ocupa teoricamente com o ente? Não nos parece que seja assim. Apesar de que, quando começamos a enunciá-la, uma distinção incisiva entre filosofia e ciência soe estranha, podemos perceber que o núcleo que determina a ciência como ciência é bem diferente do núcleo filosófico. Não pretendemos apresentar uma distinção histórica, isto é, contar como cada qual se constituiu; pretendemos investigar o que elas são essencialmente, conforme a distinção heideggeriana proposta na obra mencionada. Isto implica pôr em jogo a determinação própria da filosofia e da ciência à medida que esses "saberes" se relacionam com o ser-aí em seu modo de ser, ou seja, à medida que são comportamentos possíveis do ser-aí junto ao ente. Para apresentar a distinção, pontuaremos, a partir da Introdução à filosofia: (a) o sentido de "verdade" para a ciência e para a filosofia; (b) o modo como cada uma concebe história e historiografia; (c) a relação de cada qual com a facticidade e o fático (facticidade e factualidade). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 81 LINGUAGUEM E POLÍTICA EM THOMAS HOBBES: CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESTATUTO DA LINGUAGEM Francieli Constantini [email protected] Orientador: Prof. Dr. Alessandro Pinzani Palavras-chave: Linguagem; política; signos; contrato; Hobbes O presente trabalho procura analisar a relação que há entre linguagem e política na articulação do pensamento de Thomas Hobbes, principalmente no que tange a argumentação da instituição do estado civil, mediante o consenso das vontades dos homens, reunidas e acordadas na convenção do contrato social. Posto que seja pelo contrato, que os homens abandonam sua fatídica condição natural, nos interessa verificar as prerrogativas deste ‘evento’ sob os sinais da linguagem, haja vista a ressalva de Hobbes de que sem a linguagem não poderia haver entre os homens, nem Estado, nem sociedade, nem contrato e tanto menos a paz. Ademais, nota-se a função díade que a linguagem conserva; é positiva, na medida em que contribui para o avanço do conhecimento ao auxiliar adequadamente à razão no cálculo com nomes; e negativa quando produz engodos e inverdades que levam ao erro e a sedição. Tal caracterização destaca o valor da linguagem no interior da filosofia hobbesiana, operando positiva e/ou negativamente, dependendo dos contextos, ações e intenções dos homens. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 82 ANÁLISE DO NOVO PRINCÍPIO DE REALIDADE E DO LUGAR SOCIAL DA NEGAÇÃO EM HERBERT MARCUSE Gerson Lucas Padilha de Lima Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE [email protected] Orientador: Prof. Dr. Rosalvo Schütz Palavras-chave: princípio de desempenho; lugar social da negação; novo princípio de realidade Para Marcuse a visão de que apenas o proletariado de fábrica é o agente social da revolução não mais se coaduna com a realidade do capitalismo. Esta constatação levou a considerar necessário ampliar o lugar social da negação herdado da tradição marxista. Isto não o levou a fazer uma revisão, mas uma restauração do pensamento marxista, libertando a dialética dos conceitos petrificados, unindo-a com a práxis e assim pensando a realidade a partir daquilo que é possível e deveria ser. Marcuse parte do referencial teórico freudiano da contraposição do princípio do prazer e da realidade, para pensar um novo princípio de realidade, orientado por mudanças qualitativas no plano psíquico e social do ser humano. Estes novos aspectos revolucionários podem ser encontrados em temas como arte, a sensibilidade, os movimentos sociais e outras formas de anseios e necessidades concretas. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 83 A MULTIDÃO DE ESPINOSA E A PRIMAZIA DA RESISTÊNCIA DE FOUCAULT E DELEUZE NA TESE DE NEGRI E COCCO EM “GLOB(AL): BIOPODER E LUTA EM UMA AMÉRICA LATINA GLOBALIZADA” Gilson Arend Vania Sandeleia Vaz da Silva [email protected] Palavras-chave: Resistência; multidão; Espinosa; Foucault; Deleuze Antonio Negri e Giuseppe Cocco no livro Glob(Al): Biopoder e luta em uma América Latina globalizada, publicado em 2005, questionam as interpretações dominantes a respeito da dependência latino-americana a partir do conceito de multidão – originário do filósofo holandês Bento Espinosa (1632-1677) – e da noção de primazia da resistência – tal como formulada por Michel Foucault (1926-1984) e por Gilles Deleuze (1925-1995). Se concordarmos que “a tendência à recomposição da frente global das lutas dá um caráter de urgência à retomada de um debate teórico, tanto múltiplo, quanto voltado para a construção de bases comuns”; será que Negri e Cocco (2005, p. 17) foram capazes de apresentar a resistência da multidão (“a nova figura subjetiva que o proletariado forjou para a própria expressão constituinte”) de modo a conferir “universalidade à análise revolucionária”? ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 84 A PROPOSTA DIALÓGICA DE PAULO FREIRE NO AMBIENTE HOSPITALAR: A INCLUSÃO DA CRIANÇA HOSPITALIZADA Giovanna Takata Liberatti Universidade Estadual de Londrina - UEL [email protected] Orientador: Profª. Drª. Rosa de Lourdes Aguilar Verástegui Palavras-chave: Dialogicidade; educação de criança hospitalizada; pedagogia hospitalar Esta pesquisa tem como objetivo ressaltar a importância do diálogo no ambiente hospitalar, com a finalidade de promover a educação das crianças internadas. Para isto, veremos a situação crítica das crianças hospitalizadas; depois, ressaltaremos as características humanizadoras do diálogo e, por último, trataremos de observar a situação especial do diálogo em ambiente hospitalar e seus benefícios. O referido diálogo apresenta características particulares, tendo como sujeitos do processo o paciente, a equipe médica, os educadores e a família, entre outros. As características particulares do ambiente hospitalar trazem situações não convencionais na educação formal. A importância da pesquisa é que existe uma carência sobre o tema proposto no meio acadêmico, e também a necessidade de levantar uma reflexão sobre a necessidade e os benefícios que traz a modalidade de ensino proposta. A pesquisa é bibliográfica e temos como principal referencial A Pedagogia da autonomia, a Pedagogia do oprimido e a Pedagogia da esperança de Paulo Freire. O trabalho pretende trazer uma colaboração acadêmica através da reflexão sobre a necessidade do diálogo e sua potencialidade na práxis docente e também de alguma maneira colaborar com o desempenho dos docentes que exercem a pedagogia hospitalar. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 85 O CARÁTER ONTOLÓGICO DOS CONCEITOS DE “NÁUSEA”, EM SARTRE, E DE “ANGÚSTIA”, EM HEIDEGGER Guilherme Gonçalves Ribeiro Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE [email protected] Orientador: Prof. Dr. Roberto S. Kahlmeyer-Mertens Palavras-chave: Filosofia da existência; tonalidades afetivas; angústia; náusea O debate a respeito de conceitos filosóficos centrais para dois pensadores implica que, primeiramente, se apresente o significado de cada conceito a partir da filosofia em que aparece. Pretendemos tratar da “angústia” na filosofia de Heidegger, em especial como concebida em Ser e Tempo (1927), e, em seguida, do conceito de náusea em Sartre, conforme exposto, sobretudo, no romance A Náusea (1938), com isso buscaremos fazer uma comparação mostrando em que medida estes dois conceitos podem ser vistos de forma ontológica. Heidegger compreende que a constituição ontológica dos entes é composta por traços existências, referindo-se ao o ser-aí, (Dasein), que não se fundamenta por uma essência porque é puramente existência, um âmbito que possibilita ao ser se “apresentar como” dentro de um contexto. O ser-aí não se define como um ente entre outros, mas sim como uma abertura que possibilita todos os sentidos de ser. A disposição é um dos traços existenciais, e diz respeito à forma com que mundo se abre. É fundamental que o ente se apresente como algo em determinado contexto, mas, antes disso, que o contexto em geral toque afetivamente o ser-aí. A angústia é a mais fundamental entre o que Heidegger chama de “disposições afetivas”. O ser-aí se dá inicialmente conta de si mediante uma dessas disposições; e a Angústia abre o mundo: deixando o ser distante e sem fundamento, esvaziando todos os sentidos dos projetos vividos e o projeto em geral, ou seja, angústia permite que o ser-aí se veja fora do contexto em que está inserido como ente, permite que o ser-aí se veja frente ao seu próprio ser e possa decidir-se livremente por se assumir ou fugir. O conceito sartriano de "náusea", por sua vez, indica um sentimento de estranhamento com o mundo e consigo mesmo. Aparentando ser um caráter ôntico e não ontológico, primeiramente, a náusea permite que o homem perceba sua existência como algo indiferente no mundo, e pior, como algo ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 86 que o magoa, mas, simultaneamente, não há modo de fugir dessa existência. No entanto, segundo a leitura feita, a náusea pode se revestir de um aspecto ontológico, uma vez que joga o próprio homem face à sua existência e lhe permite enxergar que ele mesmo é a náusea que o corrói e que não há como escapar dela, apenas aceitá-la. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 87 O ENSINO DA FILOSOFIA, A EJA E A ESCOLA JOAQUINA MATTOS – CEEBJA/CASCAVEL, PR Hélio Clemente Fernandes [email protected] Nilva Aparecida F. da Silva [email protected] Palavras-chave: Filosofia; humanização; história; EJA; sujeito Intenta-se com este trabalho realizar algumas considerações acerca da educação de jovens e adultos (EJA) tendo como ponto de observação as aulas de Filosofia realizadas no Escola Joaquina Mattos Branco, CEEBJA, Cascavel-PR, em maio/junho de 2013. A partir do materialismo histórico dialético objetiva-se contribuir com o debate sobre a importância dos estudos filosóficos. Entendemos ainda que toda educação precisa contribuir com a hominização, isto é, o homem é o centro de toda ação pedagógica que visa a emancipação do ser social. O referencial teórico que perpassa esse trabalho liga-se ao materialismo histórico-dialético, pois compreendemos que as categorias de totalidade e contradição são fundamentais em toda investigação científica. Nesse intuito e por questões teórico-metodológicas, num primeiro momento, apresenta-se um breve resgate histórico do ensino da Filosofia no Brasil, tendo como parâmetro a EJA. Na sequência, realiza-se uma pesquisa de campo entre os 43 estudantes que frequentaram esta disciplina. A finalidade é perceber as contribuições do ensino da Filosofia para com a formação do sujeito humanizado, consciente e participativo. Por fim, algumas considerações finais são elencadas. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 88 CONHECIMENTO DO MUNDO EXTERNO NO PENSAMENTO DE DESCARTES Isis Moraes Zanardi Centro Universitário Franciscano [email protected] Orientador: Profª. Solange Dejeanne Palavras-chave: Deus; conhecimento de si; mundo externo Descartes afirma que o conhecimento que temos em sua mente é certo, pois se tem conhecimento sobre si mesmo, e que não pode duvidar de suas crenças acerca da sua própria existência e de seus próprios pensamentos. Este conhecimento contém três atributos: é incorrigível, desde o momento que não se pode enganar acerca das crenças sobre si mesmo; é imediato, toda a vez que tem conhecimento sobre seus pensamentos, tem consciência deles; e é evidente, de tal modo que se pensa em algo, sabe que este pensamento está realmente acontecendo. Descartes na obra O discurso do Método redigiu os preceitos metodológicos complementares da evidência, que devem seguir os imperativos da razão. De acordo com esses preceitos, a partir da dúvida (ceticismo metódico), Descartes acaba por descobrir uma primeira certeza: ego cogito, ergo sum - penso, logo existo. O método descrito e aplicado pelo filósofo tinha por preocupação como conhecemos e como podemos ter acesso a ideias verdadeiras que fossem imunes ao erro. E para a realização deste processo, Descartes necessitou analisar cuidadosamente as fontes do conhecimento, como os sentidos e o próprio, espírito, lançando mão no último caso da hipótese da existência de um Deus enganador. A proposta do trabalho será a partir do que o autor entende como “eu”, cuja existência é descoberta através do cogito e este é “ uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente” (DESCARTES, 1979, p. 95). Descartes não invalida a hipótese do Deus enganador e eis o porquê se deve a analise se há um Deus e se ele não é enganador sob pena de Descartes ter que suspender o juízo acerca do mundo externo ao sujeito pensante. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 89 KANT E A FUNDAMENTAÇÃO DE DEVERES MORAIS A PRIORI Jaime José Rauber Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUC-PR [email protected] Palavras-chave: Kant; teoria moral; fundamentação O objetivo da presente comunicação consiste em mostrar que os princípios éticos estabelecidos com base na filosofia moral de Immanuel Kant são necessários e universais e que, como consequência, não abrem espaço nenhum para exceções. Tal exigência é fruto do sistema da filosofia kantiana que, por princípio, apresenta-se livre de toda e qualquer influência sensível. Na Dissertação de 1770, Kant já deixou claro que a filosofia moral e os conceitos morais devem ser tratados sob um viés metafísico, ou seja, por uma filosofia pura, que não recebe nem busca nada na experiência sensível. Nessa mesma linha de raciocínio, na Crítica da Razão Pura afirma que, no que se refere à natureza, a experiência pode nos dar conceitos empíricos e é fonte da verdade, mas no que se refere às leis morais "a experiência é (infelizmente!) a madre da aparência e é altamente reprovável extrair as leis acerca do que devo fazer daquilo que se faz ou querer reduzi-las ao que é feito" (CRP, B 375). Se, na primeira Crítica, Kant mostrou que é somente pela razão pura que se pode alcançar um conhecimento seguro, isto é, um conhecimento que seja necessário e universal, este é também o caminho adotado pelo autor para estabelecer o princípio supremo da moralidade (imperativo categórico) e os fundamentos de toda a sua teoria moral, o que fica evidenciado na Fundamentação da Metafísica dos Costumes e na Crítica da Razão Prática. Uma teoria moral na qual a experiência constitui seu fundamento não alcança necessidade nem universalidade, que são as características marcantes de um princípio moral puro (a priori). Com efeito, os deveres estabelecidos com base no imperativo categórico encontram seu fundamento na razão prática pura e, como tais, não abrem espaço algum para exceções, uma vez que qualquer exceção pretendida encontra seu fundamento em princípios sensíveis e não na razão pura. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 90 A CONCEPÇÃO DE NATUREZA HUMANA NOS CADERNOS DO CÁRCERE DE GRAMSCI Jarbas Mauricio Gomes PPGE-UFSCar/CNPq [email protected] Palavras-chave: Natureza humana; filosofia da práxis; Gramsci O presente trabalho é uma analise da concepção de natureza humana a partir dos Quaderni del Carcere (Q) de Antonio Gramsci (1891-1937). O problema da natureza humana emerge como parte de sua reflexão sobre os fundamentos da filosofia da práxis, enquanto critica a sistematização da concepção de mundo dos grupos sociais subalternos. Para Gramsci, toda Filosofia tem início com a reflexão sobre a natureza humana, cuja concepção não é ponto de partida da investigação, mas o seu resultado. A concepção de natureza humana deve ser deduzida da observação do homem e de sua vida e, por isso, não pode ser encontrada no homem particular, mas, sim, em toda a história do gênero humano (Q 7 § 35). Este princípio está implícito, para Gramsci, inclusive na proposição moderno-burguês de que é “homem” aquele que tem posses, uma realidade historicamente situada acerca da posição dos indivíduos no mundo e na vida social (Q 15 § 29). Para ele, não se pode subtrair da concepção de natureza humana a sua historicidade, isso criaria uma concepção genérica que conduziria ao anacronismo por conceber que o homem é sempre o mesmo no tempo e no espaço (Q 10 §12). Por ser histórica, a natureza humana se realiza na síntese unitária entre pensamento (filosofia) e ação (política), mediada pelas relações entre os homens e as forças materiais presentes na direção política e na transformação da natureza (Q 10 § 48). Ao pensar sobre si e os outros, o homem quer saber aquilo que é e aquilo que pode vir-a-ser. Em outras palavras, à medida que cria a si mesmo. Por este motivo, a indagação sobre o que é o homem e a sua natureza é a primeira e a principal pergunta da filosofia. (Q 10 § 54). Para Gramsci, na filosofia da práxis a concepção de natureza humana é sempre datada, resultado de uma investigação dialética acerca do Ser e daquilo que o homem é em sua totalidade histórica, sem desconsiderar suas contradições e particularidades. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 91 LEIBNIZ E A SUPERAÇÃO DA NOÇÃO CARTESIANA DE SUBSTÂNCIA Prof. Dr. João Antônio Ferrer Guimarães Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE [email protected] Palavras-chave: Racionalismo; substância; mônada O cartesianismo impôs à modernidade uma nova perspectiva para a noção de substância. Ou seja, o cartesianismo reelaborou a noção de substância tendo em vista a superação da noção aristotélico-escolástica – mais precisamente a noção de forma substancial – que se impunha como única resposta possível para a investigação metafísica e consequente interação do ser na multiplicidade dos entes. Ao propor o dualismo substancial, Descartes impôs uma distinção não apenas entre substância infinita e substâncias criadas, mas também entre pensamento e matéria; este aspecto, se por um lado reduzia a quantidade de elementos aptos ao status de substância, por outro lado implicava o acréscimo de problemas que levaram a um conflito e consequente desconfiança sobre a existência real das substâncias nos termos do cartesianismo. Leibniz surge em plena vigência do problema da relação entre matéria/mundo pensamento/sujeito; ou seja, enfrenta o problema de como explicar a essência da realidade via noção de substância, bem como da possibilidade de comunicação entre substâncias. Ao mesmo tempo em que pretende impulsionar o racionalismo, acredita ser possível uma síntese partindo da posição cartesiana e incorporando elementos da tradição – recuperando basicamente a noção de forma e a noção de causalidade final, ambas eliminadas pelo cartesianismo – com o intuito de apontar um novo sentido para a noção de substância. A estratégia para a superação do cartesianismo consiste em apresentar o real sob dois aspectos: por um lado o substancial é apenas o inextenso, negando, portanto, a res extensa como substância e, por outro lado, afirmando que as substâncias são infinitas. A noção de Mônada – derivada do grego monas, unidade, um – é uma força indivisível que dá forma aos corpos compondo suas características essenciais e contendo em si, portanto, atividade plena. Pretendemos mostrar como, tomando a noção de Mônada como única substância, Leibniz pretende superar a noção cartesiana de substância. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 92 FILOSOFIA E DIREITO: A CONTRIBUIÇÃO DE E. PACHUKANIS PARA A CRÍTICA MARXISTA DO DIREITO João Guilherme Alvares de Farias Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP [email protected] Palavras-chave: Direito e marxismo; forma jurídica e forma mercantil; sujeito de direito e capitalismo Alysson Mascaro (2010) afirma que a filosofia do direito, que é tão somente um tema da filosofia, pode, por vezes, apresentar-se, tanto para os juristas, quanto para os filósofos, como um ponto de “intersecção” que acaba por alijar a ambos. Por isso, a importância desta comunicação reside em ampliar o debate em torno da filosofia e do direito. Desse modo, o presente estudo visa apresentar o pensamento de Evgeni Pachukanis (1891-1937), jurista soviético que colaborou para o desenvolvimento da crítica marxista do direito. Pachukanis desempenhou importante papel junto à Revolução de Outubro de 1917, processo no qual esteve presente como “juiz popular” do Comitê Militar-Revolucionário e, mais tarde, como membro do Tribunal de Cassação do Comitê Central Executivo da RSFS da Rússia. No entanto, foi apenas em 1924 que Pachukanis, como membro da Academia Comunista, promoveu uma verdadeira revolução no modo de conceber o fenômeno jurídico, isto é, com a publicação de sua obra Teoria Geral do Direito e Marxismo, evidenciando a natureza íntima do direito no processo de valorização de troca: elemento que possibilita, por meio da subjetividade jurídica, o intercâmbio de mercadorias. É assim que, partindo da rigorosa leitura da obra de Marx, Pachukanis se utilizará do método presente em O Capital, para reconstruir o direito como totalidade concreta (KASHIURA, 2013), o que nos permitirá perceber que “o direito é a lógica de reprodução do capital” (MASCARO, 2013) e que, portanto, a forma jurídica, cuja elaboração teórica parte da categoria mais abstrata, isto é, do sujeito de direito, está para o direito tal qual a forma mercantil, projetada na mercadoria, está para a economia política. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 93 LAKATOS: A CRÍTICA À PESQUISA CIENTÍFICA João Vitor de Oliveira Rego Pedro Augusto Baleroni Instituto Federal do Paraná - IFP [email protected] Orientador: Prof. Dr. Alan Rodrigo Padilha Palavras-chave: Filosofia.Ciência.Pesquisa. Imre Lipschitz nasceu em Decebren, Hungria, no ano de 1922, e lá viveu com sua família de origem judia, se formou na Universidade local, cursando Física, Matemática e Filosofia, por sua família sofrer perseguição Nazista, alterou seu nome inúmeras vezes, por fim fixando em Imre Lakatos, em homenagem ao matemático Grego Lakatos, por seus estudos em Geometria. Durante o auge do Partido Nazista, Lakatos participou ativamente do partido Comunista húngaro, onde auxiliou a produção de um manifesto do partido Comunista Húngaro, por motivos internos saiu do partido, e foi a Lodon School of Echonomics, onde focou seus estudos inicialmente em Geometria Analítica e, por fim, em Filosofia da Ciência, Epistemologia. Na sua primeira obra, Criticism and the growth of knowledge, Imre Lakatos apresentou uma teoria Falsificacionista, em resposta a obra de Thomas Khun, nessa obra Lakatos apresentou que o conhecimento é uma forma de adaptação da natureza ao homem, de forma que a visão do homem é revisada sobre o objeto “observado”, assim tendo uma forma de equívoco, mas podendo conter nela o necessário para ser considerada relevante e até mesmo verdadeira no momento. Em sua segunda obra, Proofs and Refutations, Imre formulou um teorema de base na geometria analítica, a partir da relação e interação das informações presentes nessas formas, nessa mesma obra ele apresenta que nenhum teorema é perfeito, sendo somente justificado a partir de exemplos para a época. Em sua terceira obra, The Methodology of scientific research Programes, Lakatos apresenta que, ao contrário do que se quer apresentar, a ciência não é neutra e imparcial, mas tende ao que o cientista tem como conceitos e pré-conceitos, diz também que a ciência não é feita individualmente, mas por um núcleo de pesquisa, sendo esse atual ou do passado, circulado por um “cinturão”, defendido por bibliografia e conhecimentos prévios. Sua última obra, ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 94 Mathematics, science and epistemology, é considerada a continuação de sua terceira obra, nela ele discorreu sobre seu pensamento e todas sua obras anteriores, formulando uma antítese delas, onde ele adapta seu teorema matemático para sua concepção de epistemologia. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 95 A IMPOSSIBILIDADE DA FELICIDADE PLENA SEGUNDO MICHEL HENRY João Willian Stakonski Universidade Federal da Fronteira Sul - UFFS [email protected] Palavras-chave: Michel Henry; felicidade; desejo; beatitude O presente artigo traz reflexões sobre uma interpretação possível das teorias do filósofo contemporâneo Michel Henry acerca de duas concepções de felicidade defendidas por ele, a saber, saciedade dos desejos, por um lado, e, por outro, beatitude, a aquietação da alma. O objetivo deste trabalho é esclarecer, de modo sucinto, a tese de que, segundo o pensamento de Henry, a felicidade plena é praticamente inalcançável, o que é sustentado pela incompatibilidade entre o constante desejo e a felicidade. Henry defende que a felicidade é a plenitude da alma e sua aquietação, mas que o desejo, eternamente inquieto, tenta sempre alcançar o que está além de si e apossar-se, com sua extensão infinita, de objetos da ordem do finito. Além de uma simples síntese da teoria henryana, se procurou fazer um paralelo com as concepções de felicidade de Aristóteles e de Epicuro, buscando similitudes que facilitem a identificação ou resolução deste problema, como se um mesmo agente unisse sua prática à teoria de Henry e à de um dos dois outros filósofos, buscando nelas a completude que falta à fenomenologia da vida no que tange à felicidade. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 96 WITTGENSTEIN, SUA FILOSOFIA E SEU ‘ENSINO’: DESAFIOS À PRÁTICA FILOSÓFICA DO PROFESSOR-FILÓSOFO NA CONTEMPORANEIDADE José Carlos Mendonça Bolsista UNESP/CAPES/FAPAC [email protected] Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Pelloso Gelamo Palavras-chave: Filosofia; ensino; educação filosófica O presente trabalho tem por objetivo uma reflexão que vise repensar um ‘sentido’ outro à prática de filosofia na contemporaneidade, no contexto de ensino, encarando-a como um problema filosófico. Ou seja, por meio de uma reflexão propositiva, intenta-se repensar a questão da ‘educabilidade’ da filosofia na contemporaneidade, e aí os desafios impostos ao professor e filósofo, tendo como referência a concepção wittgensteiniana de filosofia como um “trabalho sobre si mesmo”. A tal objetivo, toma-se como pressuposto aproximações conceituais da filosofia como atividade à arte de viver, tais como os “exercícios espirituais” de Pierre Hadot e o “cuidado de si” de Michel Foucault. Tal proposição tem seu bojo tanto em vivências e experiências de um ofício, o de filosofia, - e, nesta prática, aquilo que me afeta e problematiza na relação com a filosofia: “Qual é o sentido da Filosofia, e seu ensino, no espaço em que vivemos?”; quanto na pesquisa de doutoramento em vigor, cuja temática está atrelada ao objeto de análise. De forma mais precisa, objetiva-se demarcar os principais elementos pelos quais, a partir do referencial mencionado, quando no contexto de vida atual a ‘filosofia’ e seu ensino, esvaída de seu sentido educativo, tornou-se um problema de cunho ético-pedagógico. Assim, impõe-se a questão: “Quais as implicações e os desafios à própria filosofia, e ao seu ensino, com a concepção de filosofia como um trabalho sobre si mesmo?”. Para o desenvolvimento da questão, propõe-se: 1) Apresentar os principais elementos da noção de filosofia como trabalho sobre si mesmo em Wittgenstein, circunscrevendo-a em seu contexto problemático; fazendo uma aproximação ao conceito de “exercício espiritual” hatotiano; 2) Apontar e analisar as implicações éticopedagógicas que a noção de filosofia como “trabalho sobre si mesmo”; fazendo na medida do ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 97 possível uma aproximação conceitual ao “Cuidado de Si” de Michel Foucault; e, por fim, 3) apontar em que medida as mesmas são um desafio à filosofia e aos envolvidos nesta prática, no contexto de ensino e de vida atual. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 98 OS VÁRIOS USOS DE LIBERDADE NA OBRA DE MAQUIAVEL Prof. Dr. José Luiz Ames Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE Bolsista CNPq [email protected] Palavras-chave: Maquiavel; liberdade; necessidade; conflito Libertà é dos termos mais frequentes do léxico maquiaveliano. Apesar de prevalecer o sentido de liberdade como liberdade política, Maquiavel não reduz seu uso a apenas esta concepção. Elucidar este sentido mais amplo será importante para compreender sua concepção de liberdade política. Iremos apresentar em um primeiro momento os usos comuns de libertà, depois a relação de liberdade e livre arbítrio para, finalmente, mostrar como estes sentidos convergem na concepção maquiaveliana de liberdade política propriamente dita. Uma primeira acepção geral de liberdade presente na obra de Maquiavel é a que a identifica com liberdade de cativeiro físico. Neste sentido, ser livre corresponde a não estar preso, a não ser refém de alguém. É, pois, liberdade como ausência de submissão ou de servidão; ou, formulado positivamente, liberdade como afirmação da capacidade de autodeterminação de seu agir. Um segundo uso de liberdade corresponde à ideia de ser “livre de” no sentido de falta ou de estar desfrutando ou sofrendo a ausência de algo. Ser livre, neste caso, é não estar dependente de algo capaz de tolher a capacidade de autodeterminação; ou, como dizia Aristóteles, de impedir alguém de ser causa interna de seu agir. Uma terceira acepção geral de liberdade é a de um estado mental ou psicológico, como no caso de sentir-se livre do medo. Neste caso, “medo” é aquilo que tolhe o poder que a pessoa tem sobre si mesmo e sobre seus atos impedindo-a de ser causa interna de sua ação, como dizia Aristóteles. Como devemos pensar a relação entre liberdade humana e necessidade natural? Significaria isso que o homem é livre somente em determinadas condições? Nos exemplos utilizados por Maquiavel evidencia-se que, devido à presença do livre arbítrio, o homem é livre sempre, por mais que sua liberdade possa estar limitada ou obstaculizada por outros fatores. A liberdade não é licença, mas capacidade de ajustar a “natureza” individual (“modo de ser e de costumes”) à “natureza” dos tempos (a “fortuna”). Na obra de Maquiavel, ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 99 livre arbítrio denota a independência do espírito humano, a afirmação da capacidade humana de fazer escolhas que situam o homem como responsável pelo curso da história. Na maneira como utiliza a expressão, fica claro que não concebe livre arbítrio como um poder incondicionado pelo qual seria capaz de impor-se às adversidades ou de sujeitar seus desejos à razão: o livre arbítrio é limitado pela fortuna e pela necessidade. No entanto, por fortuna Maquiavel não concebe uma atividade cósmica abstrata, mas uma força que atua em circunstâncias históricas concretas, em configurações políticas e sociais bem determinadas e que pode ser enfrentada pela virtù; por necessidade não concebe a coação inelutável da natureza, física ou humana, mas configurações históricas ou naturais que atuam como “aguilhão” da ação política. Assim, apesar de enfatizar o livre arbítrio como capacidade prática de modificar e/ou influenciar os acontecimentos históricos, não se faz presente a tendência à interiorização própria ao cristianismo da época. Livre arbítrio não é compreendido como a vida interior do homem que delibera sobre as escolhas existenciais para decidir-se por aquelas mais concordantes com sua condição espiritual de criatura diante de Deus. Livre arbítrio, pelo contrário, é a afirmação da capacidade prática do homem de ser autor da história subtraindo-a das mãos da Providência Divina, mas também de uma fortuna ou necessidade inexoráveis. O homem é livre (ou é capaz de livre arbítrio), para Maquiavel, sempre no quadro de uma vida associada, de uma coletividade humana determinada. Libertà e libero arbitrio não são experiências humanas que podem ser ditas de um singular na interioridade de seu espírito, mas da relação deste homem com os demais dentro de uma coletividade política. Maquiavel jamais se ocupa destas expressões como se fossem essências abstratas ou metafísicas. Assim, libertà é algo que se diz, fundamentalmente, de uma cidade: livre é uma cidade, e ainda que libertà possa ser uma experiência do homem, pressupõe uma comunidade política concreta na qual esta possibilidade se realiza. Cidade livre, uma vez que é disso que se trata fundamentalmente, é aquela que vive sob suas próprias leis (con le loro leggi) e não sob o domínio estrangeiro. O contrário de cidade livre é servitù, termo que Maquiavel utiliza para caracterizar a cidade governada por estrangeiros, independente de sob quais instituições governem ou se agem com clemência ou com crueldade. A salvaguarda da liberdade está em evitar cair, internamente, na servidão de uma tirania e, externamente, sob a dominação de outra potência. Consequentemente, a liberdade pode existir em dois planos distintos: a liberdade dos cidadãos sob uma república e a liberdade da república enquanto forma de organização política diante das demais potências. Podemos denominar a primeira de liberdade no Estado e a segunda de ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 100 liberdade do Estado. Uma e outra devem ser entendidas, sobretudo, não como liberdade individual, mas como liberdade do corpo político no seu conjunto. A liberdade externa, ou liberdade do Estado, consiste fundamentalmente na autonomia diante dos demais Estados. Livre é o Estado que se autodetermina. O meio mais importante para assegurar a liberdade externa é a existência de um exército próprio. A força das armas é também o meio mais eficiente para readquirir a liberdade quando o Estado sofre uma intervenção estrangeira. A liberdade interna, ou liberdade no Estado, pode ser equiparada com as estruturas institucionais próprias às repúblicas. Liberdade no Estado é, assim, antes uma qualidade da coletividade inteira que do que de algum membro em particular. Podemos distinguir, no tratamento que Maquiavel confere à questão, uma concepção negativa de outra positiva da liberdade interna. Negativamente, a liberdade é definida (a) por oposição à tirania, (b) por contraste ao governo principesco e (c) como ausência de facções. Além destas três modalidades de definição negativa da liberdade interna, Maquiavel também oferece uma definição positiva a qual consiste, fundamentalmente, em identificá-la às repúblicas: somente as repúblicas dispõem de estruturas institucionais capazes de assegurar de modo duradouro o vivere libero. Maquiavel não vê a liberdade como um fim em si, como uma ideia abstrata ou como um direito natural tal como será considerada a partir dos jusnaturalistas modernos. A liberdade é valorizada por seus efeitos benéficos sobre o cidadão e a coletividade. Ela se define na ação e somente nela tem existência efetiva. Importa a Maquiavel a ação política, a ação pública. Em suma, Maquiavel entende que a liberdade somente pode existir no seio de uma coletividade que se autogoverna. Isto implica que, para ser livre, é preciso cumprir determinadas ações (participação ativa na vida pública) e perseguir determinados fins (o bem público). Maquiavel não imagina que isso aconteça espontaneamente. Cabe à lei produzi-lo: a lei produz a liberdade ao obrigar os cidadãos a participar da vida pública e ao impedi-los de cair no precipício onde a ligação entre autogoverno e liberdade civil seria perdida de vista. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 101 O ALÉM-DO-HOMEM DE NIETZSCHE NA OBRA CRIME E CASTIGO DE DOSTOIÉVSKI José Luiz Giombelli Mariani Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE Bolsista Projeto PIBID Filosofia, Campus Toledo [email protected] Palavras-chave: Crime; castigo; ressentimento; Ubermensch; moral O autor russo Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski (1821-1881) escreveu diversas obras, dentre elas Crime e Castigo, que é o seu primeiro grande romance. A história narra um crime que se passa em São Petersburgo. Este crime fora premeditado e fundamentado por uma teoria, segundo a qual a humanidade era dividida em homens ordinários, que vivem conforme a sociedade e a moral tradicional e homens extraordinários, que têm atitudes extraordinárias e nada deveriam sofrer com elas – um exemplo: Napoleão. O protagonista se toma por extraordinário e comete o crime; porém, antes mesmo de o crime acontecer, ele começa seu castigo, seu ressentimento e sua culpa. Um filósofo contemporâneo que trata desse assunto é Nietzsche (1844-1900); através do conceito Ubermensch, ele tem em vista aqueles que ultrapassam o estabelecido e impõem novos valores. O Ubermensch aqui é visto como criador de novos valores e de uma nova moral, precisando expulsar de dentro de si o medo, a culpa, a noção de Deus ou de deuses e de transcendência. O presente trabalho traz uma relação entre a obra de Dostoiévski, da história de Raskólnikov, com a transgressão do ressentimento produzido por uma moral cristã, examinando a necessidade de criar novos valores – superando o “homem” –, como pensava Nietzsche. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 102 A RELEVÂNCIA DA NOVIDADE E DA ALEGRIA PARA A ECONOMIA, RELIGIÃO E POLÍTICA Josete Rockenbach [email protected] Palavras-chave: Alegria; economia; religião; política; novidade A novidade merece atenção como um elemento norteador das atividades e das relações entre os homens. Para a economia, religião e política a novidade é a causa da alegria, e, apresenta-se de diferentes formas. A economia (SCHUMPETER) explora a ‘inovação’ como estratégia para o desenvolvimento e crescimento, aumentando o poder de compra, e garantindo a aquisição de coisas e serviços. Para assegurar o crescimento, fomenta-se que o ‘novo produto’ vai apresentar algo ‘melhor’, e, ao se tornar real já há outra possiblidade de ser mais alegre na próxima inovação. O poder de compra é o que se busca, ao mesmo tempo, pelas esferas produtiva e consumidora, e é a origem do movimento que acontece no sistema econômico. Para a religião cristã, a Boa Nova indica o único caminho para o Reino de Deus. Jesus, Filho encarnado de Deus traz essa Boa Nova a todo povo. O Reino se torna realidade quando a missão estabelecida for cumprida e então reinar entre os homens fraternidade, justiça, paz e dignidade. Anunciar a Boa Nova é para transformar toda a tristeza em alegria. Quanto à atividade política (ARENDT), esta é para garantir a todos a liberdade, que se refere à capacidade humana de iniciativa. O indivíduo, ao iniciar sua ação no mundo comum aos homens, sente a alegria, experimenta a vida com uma intensidade que supera a mera manutenção da vida. Garantir isso às futuras gerações suscita o poder e provoca a iniciativa para resguardar a liberdade no mundo comum aos homens. A inovação, a Boa Nova e a iniciativa suscitam as relações humanas, estabelecem a maneira como as atividades humanas se realizam, são invocadas como razões para o crescimento e desenvolvimento global, pessoal e local. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 103 A FELICIDADE ENQUANTO INTERRUPÇÃO DA DOR – UMA APROXIMAÇÃO ENTRE ARISTÓTELES E SCHOPENHAUER Josieli Aparecida Opalchuka Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE Programa de Estudos Tutorados – PET, Filosofia [email protected] Orientador: Prof. Ms. Pedro Gambim Palavras-chave: Eudaimonía; dor; prudência Aristóteles, em sua Ética a Nicômaco, desenvolve o conceito de felicidade (eudaimonía) ou sumo bem. A eudaimonía não deve ser associada aos prazeres do corpo, nem às honrarias ou riquezas, pois que geralmente levam às vicissitudes, mas deve estar associada ao uso da racionalidade na deliberação tendo em vista a justa medida (ou meio termo). Aristóteles afirma que o homem virtuoso é aquele que age tendo em vista a moderação e a prudência, evitando os prazeres, e, portanto, buscando aquilo que é isento de dor. Atento a isto, Schopenhauer afirma que o eudaimonismo estaria situado entre o estoicismo, que impõe a privação dos prazeres, desconsiderando o homem como ser repleto de vontade, e o maquiavelismo, em que a busca pela felicidade depende do outro, pressupondo, neste, a razão necessária para tal. O eudaimonismo aristotélico nos ensina como viver da maneira mais feliz possível, tendo alguns prazeres enquanto resultados de boas ações, e sem utilizar outros objetos ou pessoas como possíveis meios para alcançar a felicidade. Já Schopenhauer frisa que a felicidade completa e positiva é impossível, podendo atingir, no máximo, momentos relativamente menos dolorosos. Ao pensar na teoria de Schopenhauer acerca das ideias de caráter adquirido e de autoconhecimento, concebidos meios para evitar a dor, podemos estabelecer uma relação com a teoria das virtudes e da prudência em Aristóteles: o caráter adquirido seria uma virtude, se bem delimitado, e o autoconhecimento corresponderia à prudência, já que evita a dor mais profunda que o humano pode ter, decorrente da falta de conhecimento da própria individualidade. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 104 A VIA CRUCIS DA CONSCIÊNCIA EM HEGEL Juan Manuel Terenzi [email protected] Orientador: Prof. Dr. Luiz Alberto Hebeche Palavras-chave: Hegel; consciência; dialética Neste trabalho, pretende-se abordar a consciência e seu movimento dialético sob a perspectiva da Fenomenologia do Espírito (1807). Hegel, para tanto, opera uma divisão deste momento inicial rumo ao Absoluto em três partes: 1. A certeza sensível, 2. Percepção e 3. Força e entendimento. Logo, interessa-nos analisar de que forma o Absoluto já está presente nestes três estágios inerentes à consciência, e de que forma se desenvolve a dialética hegeliana nessa etapa. Estaremos, ao mesmo tempo, baseando-nos nas leituras de Hegel efetuadas por Martin Heidegger e José Ortega y Gasset. Em relação ao primeiro, destacamos o extenso estudo acerca dos parágrafos que compõem a Introdução da Fenomenologia e que nos ampara em nossa própria leitura, enquanto o filósofo espanhol realiza uma leitura de Hegel através do prisma histórico e da relevância de Hegel neste campo teórico. Assim, desejamos acompanhar o processo dialético em Hegel, verificando como os objetos da consciência se sucedem, aniquilando-se a cada novo movimento, até chegarem a Força e Entendimento, momento-limite que antecede a consciência de si. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 105 O ASPECTO REPRESENTATIVO DA IDEIA EM DESCARTES Juliana Abuzaglo Elias Martins Bolsista CAPES [email protected] Orientador: Profª. Ethel Rocha Palavras-chave: Ideia; representação; conhecimento; razão Durante a exposição do que venha a ser uma ideia, no parágrafo 6 da Terceira Meditação, Descartes nos apresenta uma definição direta e objetiva do que vem a ser uma ideia. Podemos ler: “Entre meus pensamentos, alguns são como as imagens das coisas, e só àqueles convém propriamente o nome de idéia...”. Nesta definição, cabe ressaltar alguns pontos importantes relacionados à expressão “como as imagens”: A) A imagem em questão referida pelo filósofo não necessariamente é uma imagem figurativa. Não se trata de uma analogia com qualquer tipo de representação pictórica. Representar é um ato mental que pode ou não constituir imagens figurativas. B) Ser como uma imagem salienta o aspecto representativo e referencial da idéia, pois uma imagem é sempre imagem de alguma coisa, ou seja, ela visa algo fora dela mesma, ela remete a algo diferente de si própria, que pode ou não existir fora dela mesma. Portanto uma representação de algo. Em outras palavras, teríamos uma referência a algo que por si só já faz referência a outro algo. C) O algo a que a imagem se refere, não necessariamente possui uma existência atual no mundo. Contrariando novamente o senso comum que além de pensar na ideia como algo figurativo, normalmente pensa na ideia como representando algo que existe e Descartes expressamente defende a possibilidade de nós termos ideias de coisas que não necessariamente são no mundo. D) A semelhança que a ideia propõe tendo em vista principalmente A e B consiste simplesmente na referência, isto é, trata-se de estabelecer uma relação entre o pensamento e as coisas, mas uma relação que não é necessariamente de identidade. Nosso trabalho visa expor de modo geral essas características, para entender melhor a teoria do conhecimento de Descartes. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 106 O ENSINO DE FILOSOFIA E O ATO DE FILOSOFAR SEGUNDO MARTIN HEIDEGGER Katyana Martins Weyh Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE Programa de Estudos Tutorados – PET, Filosofia [email protected] Orientador: Prof. Dr. Roberto S. Kahlmeyer-Mertens Palavras-chave: Heidegger; educação; filosofia contemporânea; fenomenologia A presente comunicação se empenha em compreender como a filosofia de Martin Heidegger (1889-1976) torna pensável o ensino de filosofia na atualidade. Sabemos que este filósofo alemão é vinculado à escola da fenomenologia e, com base nessa, desenvolve uma análise da realidade humana com nome de analítica existencial. É exatamente a luz desta análise que pretendemos investigar como Heidegger interpretaria o ato de ensinar filosofia. A questão que nos propomos investigar vai ao encontro da ideia de Heidegger segundo a qual o ser-aí já se encontra na filosofia e que é de sua essência que enquanto existimos filosofamos. Ponderamos que, a partir de algumas indicações dadas pelo próprio Heidegger, em textos diversos, possamos investigar também qual a relação fundamental entre o docente e o discente. A seguir, buscaremos entender em que medida a fenomenologia heideggeriana se relaciona com o ensino da filosofia e do ato de filosofar. Assim, julgamos poder sustentar a hipótese de que – mesmo que Heidegger não seja considerado um “teórico da educação” – suas contribuições são importantes e influentes na interseção entre a filosofia e a educação, bem como ao ensino da primeira. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 107 O MESTRE ANDARILHO EM NIETZSCHE Kelly Scherer Bolsista UFSC/CAPES – DS [email protected] Orientador: Profª. Lúcia Hardt Palavras-chave: Zaratustra, mestre andarilho, labirinto, autossupressão, moral A pesquisa tem como objetivo investigar a ideia de um “mestre andarilho” em Nietzsche e, em especial, na obra Assim falou Zaratustra destacaremos da obra seletas passagens, marcadores da travessia de Zaratustra como prenúncio do além-do-homem e a autossupressão da moral. A partir daí perceber que aprender e ensinar são parte da trajetória trágica da vida e para adentrarmos nos ensinamentos do mestre andarilho é preciso seguir seu labirinto de ideias. Entretanto não demarcaremos na obra os pontos fixos a serem analisados. Serão Itinerários dos quais se pretende extrair ensinamentos, aprendizados do andarilho em direção ao além-homem. Por meio de Zaratustra, fio condutor, figura labiríntica, corpo-trágico, maestro dançante, anunciar uma nova perspectiva sobre o humano, por isso, um estudo para produzir efeitos no campo da educação e refletir sobre a formação humana. Em Zaratustra, aquilo que se ensina e se aprende acontece por meio da (autossupressão) da moral e transmutação do niilismo em afirmação da vida, um contra fluxo na modernidade, cuja questão não está em justapor conteúdos, seguir uma trajetória planejada, mas enfrentar o que “nos chega” e nesse cultivo do afirmar a vida. Tornar-se o que se é. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 108 MAQUIAVEL: A LIBERDADE COMO EQUILÍBRIO DOS HUMORES ANTAGÔNICOS Lairton Moacir Winter UTFPR/UFPR [email protected] Orientador: Profª. Drª. Maria Isabel Limongi/Prof. Dr. José Luiz Ames Palavras-chave: Maquiavel; conflito; equilíbrio dos humores; liberdade O objetivo desta comunicação consiste em analisar a relação que Maquiavel estabelece entre, por um lado, o conflito de grandes e povo, e, por outro, a liberdade política. A hipótese central é a de que a liberdade somente pode ser alcançada mediante um ponto de equilíbrio entre os humores em conflito. A lei republicana, nascida do permanente confronto dos desejos antagônicos, subverte o caráter negativo dos humores de grandes e povo e canaliza sua força para a vida política. A fim de esclarecê-lo, partimos da definição das características dos agentes em conflito, de acordo com as quais o desejo dos grandes se confunde com um desejo de poder, enquanto o desejo do povo se associa à liberdade. A liberdade, porém, como à primeira vista parece significar, não reside no desejo popular, mas entre os dois desejos antagônicos, isto é, num equilíbrio tenso. Para Maquiavel, a verdadeira liberdade política somente é possível com a manutenção deste frágil equilíbrio nos modos de desejar de grandes e povo. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 109 DECLÍNIO, PERDA DA AUTORIDADE E ASCENSÃO DO TOTALITARISMO EM HANNAH ARENDT Leandro Mateus Fernandes Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE [email protected] Orientador: Prof. Dr. Tarcílio Ciotta Palavras-chave: Autoridade; totalitarismo; Hannah Arendt; ruptura; política Um dos fatores preponderantes para o surgimento do totalitarismo, como uma forma de governo nunca vista, foi o declínio e a perda da noção de autoridade. A compreensão de Hannah Arendt acerca do totalitarismo e do que este representou enquanto ato político, para a História, caracteriza-o como terror e atentado à condição e à liberdade humana, já que teria sido o maior ato de ruptura entre o humano e a política na tradição e na história. Quando a pensadora tenta compreender o que aconteceu nos campos de concentração, percebe-se a crueldade, a ameaça à humanidade, já que o totalitarismo, como a forma de terror que impunha suas ideologias, não tinha explicação em nenhuma outra forma de “governo”, como a tirania ou o poder despótico. O governo totalitário é uma ruptura, é algo novo que demanda reflexão. Através da investigação sobre o declínio e a perda da autoridade – esta compreendida como não utilização de meios externos e coercitivos – será analisada a edificação dos governos totalitários, tornados possíveis como uma forma de política, consequência de não se saber mais o que a autoridade é ou foi. Autoridade, antes entendida como a formação de uma vontade comum em uma comunicação orientada para o entendimento, é uma obediência na qual os homens não são ultrajados de sua liberdade; sendo assim, ela se contrapõe aos horrores do totalitarismo, que usava da força, da violência, da burocratização e ideologização das massas, confundido a autoridade com o poder para cometer suas crueldades. O totalitarismo só se constituiu pela crise constante de autoridade, cada vez crescente e mais profunda, que acompanhou o desenvolvimento do mundo no século XX. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 110 MICHEL HENRY E A CRÍTICA AO REDUCIONISMO-GALILAICO Leandro Righi de Sousa Bolsista CAPES/CNPQ [email protected] Orientador: Prof. Dr. Silvestre Grzibowsky Palavras-chave: Michel Henry; reducionismo; vida Apresentaremos, neste trabalho, a crítica tecida pelo filósofo francês Michel Henry ao que é chamado por ele de reducionismo-galilaico. Para isso, iremos nos valer, como referência, da obra de Henry intitulada A barbárie, como também de alguns artigos deste filósofo, que discutem essa temática. Na referida obra, como nos artigos, esta compilada uma série de argumentos que visam expor como este modo de entendimento da realidade, proposta por Galileu, operou uma redução desta. A realidade sendo sempre a da cultura, que é a forma de expressão da própria Vida, segundo Henry, acaba se tornando apenas uma realidade a ser vista e estudada pela própria ciência, entendida apenas como ciência-matemática-geométrica. Nesse pensamento iniciado por Galileu, “tudo o que deseja ser” deve ser passível de demonstração científica, e, assim, ser reduzida, seguindo dessa forma um télos da evidência. Com isso, a própria Vida entendida por Henry como a realidade mesma, fica reduzida ao contexto de estudo de uma determinada ciência, onde o “pensar vivo” não pode se realizar. Não podendo as formas de expressão da vida como cultura se realizar, a própria Vida, entendida por Henry, também não pode existir. Dessa forma, abre-se caminho para pensar uma cultura sem vida, o que no final não se irá realizar. Assim como argumenta Henry, a própria ciência é uma forma de cultura que expressa um certo modo a Vida, mesmo que de forma redutiva. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 111 EROS E CIVILIZAÇÃO - CAPÍTULO 1 A TENDÊNCIA OCULTA NA PSICANÁLISE Letícia Nunes Goulart Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE [email protected] Orientador: Prof. Dr. Rosalvo Schütz Palavras-chave: Civilização; homem; repressão A partir da perspectiva de Freud, Marcuse observa que a repressão já está diretamente ligada à história do ser humano, e que a dominação dos instintos por meio da repressão não é imposta pela natureza, mas pelo próprio ser humano; portanto, a história é construída. Em primeira instância, Marcuse afirma que esse progresso histórico tem objetivos naturais e se relaciona a instintos básicos do homem, o que seria compatível com a sua própria preservação. Para essa preservação histórica de sua existência, o homem tem sufocado e reprimido o principio de prazer: o que sobressai por meio do inconsciente e o que é reprimido acaba não sendo eliminado. “Portanto, os instintos têm de ser desviados de seus objetivos, inibidos em seus anseios” (1975, pg. 32), e acabam sendo abandonados. O processo sócio-histórico do homem não regenera totalmente a busca pelo prazer, pela satisfação, mas adia o prazer e mesmo tolera o desprazer em vista de um prazer futuro. Colocando o homem em sua original direção básico, transformando seus objetivos em manifestações de prazer. Nesta transformação, Marcuse vem nos explicar que os valores instintivos governam os anseios em valores de dominação de um modo probatório. De satisfação imediata, passa-se para satisfação adiada; de prazer, para restrição do prazer; de júbilo (atividade lúdica), para esforço (trabalho); de receptividade, para produtividade; enfim, de ausência de repressão, para segurança. Freud o compreende como o jogo entre princípio de prazer e princípio de realidade. Os processos culturais e civilizatórios criam uma força repressiva capaz de refrear e garantir a convivência mais ou menos pacifica. O que Freud concebe como princípio de realidade é a força modeladora chamada por ele de repressão. A atividade mental retrai-se, evitando qualquer operação que lhe possa causar prazer, dando origem às sensações de desprazer, causando confusões com o próprio meio natural do ser humano. “O indivíduo chega à ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 112 compreensão traumática de que uma plena e indolor gratificação de suas necessidades é impossível”. (1975 pg.33). O princípio de realidade acaba superando o princípio de prazer e o homem acaba renunciando a todo prazer momentâneo, substituindo-o pelo prazer restrito; mas garantido, com o tempo o princípio de prazer fixa uma realidade, uma adaptação do Eros, implicando sua própria transubstanciação e estabelecendo a restrição do prazer. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 113 SIMONE DE BEAUVOIR: UMA ANÁLISE EXISTENCIALISTA DA FÊMEA MULHER Luana Marques Instituto Federal do Paraná - IFP [email protected] Orientador: Prof. Alan Rodrigo Padilha Palavras-chave: Sexo; fêmea; mulher A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana. Desde então, a mulher foi submetida ao papel de frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem. Simone de Beauvoir, ao escrever “o segundo sexo”, rompe com esse destino feminino e faz de sua vida algo completamente diferente do esperado para uma mulher, principalmente para uma mulher do século XIX. Em seu livro, ela faz uma análise existencialista do que é ser mulher, investigando até sua condição biológica. Tenta mostrar como “a realidade feminina” se constitui, e por que a mulher foi definida como o Outro ou Segundo Sexo. Para Beauvoir, o homem é quem representa o lado positivo e o neutro, tanto é que “homem” é indicado pelo uso comum para designar seres humanos em geral, enquanto a mulher sempre é o negativo, definido por critérios de limitação. Até mesmo os biólogos diziam que a mulher nada mais é, que o sexo passivo. A partir desse pressuposto o homem nega e impõe a sua superioridade sobre a fêmea. Beauvoir, para se livrar dessas amarras, anuncia a radicalidade de que, se cada pessoa é formada a partir da sociedade que é criada, cada mulher singular é livre e responsável para criar sua própria moral existencial, bem como livre e responsável para lutar por espaços econômico-sociais que retirem a mulher da condição de corpo destinado a viver “supostas essências femininas” traçada pela ditadura dos machos. “Não se nasce mulher, torna-se mulher”(BEAUVOIR, 1980 p. 9). Acreditar que existe, enquanto essência, um “lugar da mulher” na sociedade seria uma atitude comodista e equivocada, retirando da mulher exatamente a sua única força capaz de criar seu próprio destino, a sua liberdade de escolha em traçar caminhos diferentes, inclusive os considerados “impossíveis para a mulher”. Portanto, o que existe é uma construção econômico-ideológico-jurídico- ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 114 discursiva-social que, criada com base em opressões e dominações, tenta enquadrar a mulher em papéis não escolhidos por ela própria. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 115 A AUTONOMIA EM KANT, A FUNDAMENTAÇÃO MORAL E A AÇÃO EM SI Luana Pagno Universidade Federal da Fronteira Sul [email protected] Palavras-chave: Hetoronomia; autonomia; moralidade Através de estudos da ética em Kant, o objetivo do trabalho de pesquisa é demonstrar a importância da autonomia para a doutrina moral no jugo da ação humana, procurando traçar, ao final, uma pequena diferença entre uma ação moralmente fundamentada e uma ação correta, bem como o impacto disso na moralidade kantiana. Deste modo, levando em consideração que ao discutir ética se discute sempre a fundamentação da moral e, portanto, o que é base para saber se as ações dos homens são corretas ou não, o trabalho tem a pretensão de analisar todos os elementos que fundamentariam a moral na doutrina ética kantiana. Assim, serão apresentados, passo a passo, todos os elementos fundamentais, pelos quais, em Kant, uma ação seria moralmente correta – tais como o dever, a boa vontade, a autonomia, entre outros. A partir daí, será discutido se todos esses elementos são somente possíveis pelo princípio de autonomia, como também o motivo por que autonomia e heteronomia são importantes para uma ação moralmente fundamentada (embora a autonomia não seja necessariamente a base para uma ação correta na ética kantiana); por fim, avaliaremos as consequências disto. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 116 CIDADE EM QUESTÃO: DEBATES ACADÊMICOS ACERCA DA CONSTITUIÇÃO DAS CIDADES E DE QUESTÕES URBANAS Lucas Eduardo Gaspar Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE Bolsista CNPQ [email protected] Orientador: Prof. Rinaldo José Varussa Palavras-chave: Cidade; debates acadêmicos; questão urbana O espaço das cidades em toda sua história foi sempre um campo onde se encontravam, e por vezes se enfrentavam, diferentes pensamentos e atitudes. No meio acadêmico é extensa a produção sobre a cidade, devido a sua pluralidade de características e sujeitos, por isso, não tem a intenção de esgotar o tema sobre as analises e discussões realizadas a respeito das cidades, mas sim, de maneira breve, expor e analisar algumas obras que reflitam acerca do tema, tanto de autores clássicos como Friederich Engels, como também de estudiosos atuantes ainda hoje, como as arquitetas e urbanistas Erminia Maricato e Raquel Rolnik, percebendo seus limites, diálogos e contribuições para a pesquisa em geral. Ao analisar estas obras, abre-se o espaço para o diálogo e debates entre os diversos campos do conhecimento das ciências humanas atuais e passadas, e como estas preocupam-se e dedicam-se a analisar as diversas questões acerca das cidades, contribuindo, assim, para a ampliação dos campos teórico e prático ligados às pesquisas. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 117 A TEORIA QUEER E A PRODUÇÃO DE UM CORPO SEM ÓRGÃOS. Lucas Henrique Nunes Batista. Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE Bolsista Fundação Araucária. [email protected] Orientador: Profª. Drª. Ester Maria Dreher Heuser. Palavras-chave: Teoria Queer; corpo sem órgãos; Deleuze; Guattari O seguinte trabalho tem como proposta abordar elementos da teoria Queer e, em conjunto, trabalhar o conceito de corpo sem órgãos de Deleuze e Guattari fazendo uma relação entre eles. Também se tem a intenção de explicitar o que estes dois autores têm a dizer sobre a teoria Queer trabalhada no pós-estruturalismo francês. Primeiramente se fará uso da interpretação da autora Guacira Lopes Louro para melhor entender o que essa teoria tem a dizer, desde que esta, orientase pelo pós-estruturalismo e usa de filósofos como Deleuze e Guatarri para elaborar seus estudos nessa área. A teoria Queer está preocupada em discutir as novas formas de indentidades, sexuais e de gênero, bem como teorizar formas de viver o próprio corpo. Segundo Louro, existem muitas formas de fazer-se mulher ou homem, e várias possibilidades de viver prazeres em desejos corporais, porém estas práticas são previamente estabelecidas, anunciadas e promovidas socialmente como formas desviantes de comportamento e vistas como uma anormalidade. O que acaba por determinar os indivíduos “anormais” como seres abjetos, pois a sociedade ainda está pautada numa visão heteronormativa que centra as relações humanas num binarismo HomemMulher. Os escritos de Gilles Deleuze e Felix Guattari abordam a questão da sexualidade, gênero e corpo como devir e como processo. A partir de O anti-Édipo e Mil Plâtos, Louro percebe forças para tratar da “queerização”, na medida em que percebe os filósofos criticarem a noção de “normalidade” e o comportamento imposto sobre os modos de vida existentes numa sociedade pautada pela heteronormatividade e pelo capitalismo, sendo assim burguesamente institucionalizada. Com este pano de fundo, se abordará o conceito de Corpo sem Órgãos e um possível diálogo com a teoria Queer. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 118 É A TEORIA DO SENTIMENTALISMO CONSTRUTIVO DE JESSE PRINZ DE FATO CONSTRUTIVISTA? Lucas Mateus Dalsotto Universidade Federal de Santa Maria - UFSM Bolsista CAPES [email protected] Palavras-chave: Construtivismo; sentimentalismo construtivo; Jesse Prinz Recentemente, a posição construtivista em metaética tem atraído e inspirado uma série de comentários, tanto daqueles que compartilham de suas principais teses e veem-na com entusiasmo, quanto daqueles que a veem com certo ceticismo. Uma das importantes teorias construtivistas nessa área é a de Jesse Prinz. A hipótese central do autor é de que se a moralidade depende dos sentimentos, então ela é uma construção, e se ela é uma construção, então ela pode variar através do tempo e do espaço. A teoria do sentimentalismo construtivo, assim chamada por Prinz, baseia-se em duas premissas centrais, as quais são uma fundamento para a outra. A primeira ideia é de que os sentimentos são a base para todos os juízos de valor que são formulados, e que estes mesmos valores podem ser estudados histórica e antropologicamente de modo a explicar porque alguns deles persistem e porque outros têm desaparecido. A segunda ideia é de que os sentimentos criam a moral, e que os sistemas morais podem ser criados espaçotemporalmente de diferentes maneiras. Assim sendo, o problema de trabalho a ser explorado nesse paper é verificar em que medida a teoria de Prinz está de acordo com as principais teses das demais teorias construtivistas e esse não for o caso, por que ela não o faz. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 119 FOUCAULT: A ORDEM DO DISCURSO E O MÉTODO DOS SABERES Lucas Silva Russo Àllan G. Vilas Boas Palomares Instituto Federal do Paraná - IFP [email protected] Orientador: Prof. Alan Rodrigo Padilha Palavras-chave: Discurso; método; saberes Foucault inicia sua pronunciação falando sobre os recursos limitantes do discurso, se dirigindo inicialmente aos recursos de exclusão, que organizam e redistribuem a produção de discursos. O primeiro é a interdição, que envolve o direito de quem fala, o ritual da circunstância, e o tabu do objeto, que se aplicam, na atualidade, principalmente nos campos da sexualidade e da política. Outro recurso é a segregação da loucura, em que Foucault se remete a oposição entre razão e loucura na idade média, onde a voz do louco, por um processo de exclusão, não existia, sua voz, portanto, era onde se exercia a separação. O terceiro recurso se dirige à vontade de verdade, que molda até hoje o modo como se busca o conhecimento verdadeiro, que de acordo com os métodos de busca que ela mesma criou, limita o poder e o alcance dos outros discursos, que acabam por pedir a ela a autorização e a legitimação. Foucault cita procedimentos ditos “internos” que classificam ordenam e distribuem discursos como a disciplina, que se define por “um domínio de objetos”, ”um conjunto de métodos”; essa disciplina se opõe ao princípio do autor – outro método citado por Foucault (2009), que se encarrega de separar os discursos pela necessidade de um autor no discurso científico e sua falta no discurso literário desde o século XVII, situação que vem se invertendo até a atualidade –. Essa oposição ao princípio do autor se deve ao fato de que “constitui uma espécie de sistema anônimo à disposição de quem quer ou pode servir-se dele” (FOUCAULT, 2009, p.30). E se opõe ao princípio do comentário, que diz que o discurso é um sentido que precisa ser redescoberto ou “uma identidade que deve ser repetida”; enquanto, na disciplina, o ponto de partida “é aquilo que é requerido para a construção de novos enunciados”, já que possui como um objetivo “a possibilidade de formular, e de formular indefinidamente, proposições novas” (Ibidem, 2009, p.25). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 120 ESTADO E EDUCAÇÃO NO PENSAMENTO DE ROUSSEAU Luis Carlos Goetz Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE Bolsista Fundação Araucária [email protected] Orientador: Prof. Dr. Gilmar Henrique da Conceição Palavras-chave: Estado; educação; homem; cidadão Este artigo é um recorte do primeiro capítulo da dissertação de mestrado intitulada Estado e educação no pensamento de Rousseau. Dissertação essa que centra-se no estudo da obra O Emílio ou da educação de Jean-Jacques Rousseau, objetivando compreender o pensamento do autor quanto à questão indissociável entre política e educação. De acordo com o enfoque desse estudo, o pensamento de Rousseau sobre educação não pode ser separado de sua filosofia política. O que se comprova na obra O Emílio ou da educação no qual há o resumo do Contrato Social. De maneira que esta constatação nos levou a investigar as seguintes questões: haverá em O Contrato Social preocupações gerais com a formação do cidadão e na obra O Emílio uma proposta pedagógica de formação do homem? Além da formação do homem, haverá, ainda, uma busca de socialização com vistas ao internamento de regras e normas para a vivência social? Afinal, Emílio não é formado também com finalidade à vivência em sociedade? Rousseau se refere ao Estado como a grande família e nessa a administração geral é instituída apenas para garantir a propriedade individual que a antecede? O Estado assemelha-se à família na obrigação de seus chefes, pois, as regras de conduta não são as mesmas nos dois casos? A educação para ter êxito deve ser bem regrada tendo seus conteúdos regulados pela legislação? Elencando essas questões nos torna possível compreender e expor o pensamento de Rousseau referente a afirmações de ordem existencial e política da humanidade. Sem a pretensão de resolver essas questões, abordamos o tema nesse artigo recorte na possibilidade de uma reflexão das afirmações político-pedagógicas de Rousseau, quando este se refere a questão existencial da formação moral humana. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 121 O DIÁLOGO E A DEFESA DA MOBILIDADE DA TERRA: AS CRÍTICAS GALILEANAS À COSMOLOGIA ARISTOTÉLICA Luiz Antonio Brandt Instituto Federal Farroupilha [email protected] Palavras-chave: Filosofia da ciência; cosmologia; movimento Podemos encontrar na Primeira Jornada do Diálogo, obra de Galileu publicada no ano de 1632, uma série de críticas à concepção aristotélica de movimento, cujo o principal objetivo é romper com a ideia de imobilidade da Terra. Para realizar tal propósito, Galileu parte de um pressuposto comum à cosmologia aristotélica: a aceitação de que o universo e seus corpos devem, como tal, estar em plena ordem e harmonia. A crítica à dicotomia cosmológica e à concepção peripatética de movimento partem deste ponto em comum, ou seja, se os corpos se movimentam, tal movimento deve preservar a ordem e a harmonia pré-estabelecidas. Galileu utiliza-se deste “princípio” peripatético de que o universo deve ser perfeitamente ordenado como base para atacar a “naturalidade” e a exclusividade do movimento retilíneo aos corpos sublunares, uma vez que, para Aristóteles, o movimento retilíneo (natural para os corpos sublunares) tem a função também de restituir os corpos ou elementos aos seus lugares naturais. Esta estratégia argumentativa de Galileu tem uma razão de ser. Ora, de acordo com a concepção heliocêntrica do pisano, o planeta Terra se movimenta ao redor do sol com movimento circular, o que seria contrário à cosmologia do estagirita. Assim, na Primeira Jornada, o físico italiano mostra que, num universo perfeitamente ordenado, os corpos integrais não poderiam possuir “naturalmente” uma tendência ao movimento retilíneo, já que este, segundo Galileu, não é um movimento completo como o circular por não ter um fim determinado ou por ser finito. Em suma, estas considerações e outras se convertem, no Diálogo, nos elementos contestadores dos conceitos peripatéticos que fazem oposição à concepção copernicana. Assim, o presente trabalho pretende mostrar como a ruptura galileana com a dicotomia Céu-Terra está intimamente ligada e centrada, no Diálogo, à crítica ao uso “incorreto” do movimento retilíneo por Aristóteles e mais especificamente à concepção qualitativa de movimento do estagirita. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 122 CRISE DO SUJEITO NO SÉCULO XIX-XX E O NASCIMENTO DE UMA PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICO-EXISTÊNCIAL Maiara Graziella Nardi Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE Bolsista Projeto PIBID Filosofia, Campus Toledo [email protected] Orientador: Prof. Dr. Roberto S. Kahlmeyer-Mertens Palavras-chave: Crise do sujeito; psicologia fenomenológico-existencial; daseinanálise A comunicação tem o objetivo de apresentar um esboço da assim chamada crise do sujeito. Assume como problema a pergunta: como a crise da razão propiciaria, durante a passagem do século XIX ao XX, o surgimento de uma psicologia fenomenológico-existencial? Para concretizar este objetivo, percorreremos brevemente as ideias dos principais pensadores ligados à filosofia e a psicologia que desenvolveram a concepção de sujeito (Descartes, Kant e Freud), a fim de tornar compreensível como estes formularam a noção teórica de sujeito, apontaremos às apropriações psicológicas de tais teorias em seu intuito de pensar o sujeito e assim colocar na prática clínica tais teorias. Veremos como cada qual dos filósofos mencionados respondeu de modo satisfatório o ponto em questão. Com isso, enfatizaremos como, em meio à filosofia do sujeito, restaram brechas das quais os pensadores da contemporaneidade partiram para repensar as várias problemáticas ainda abertas, entre elas a da relação entre sujeito e objeto e sua representação. Este repensar partiu de novos pontos de vista (por exemplo, o da fenomenologia), como o do filósofo que enfocamos de modo mais primordial em nosso texto, a saber, o alemão Martin Heidegger e do psiquiatra suíço Medard Boss. Cientes de que, ao nos atermos a referida crise, não a temos como encerrada, estamos alertas também para o fato de que a crise não tem início especificamente no século XIX, já que desde Sócrates iniciaram os questionamentos acerca do homem e de seu modo de agir e pensar. Através do texto, poderemos evidenciar (por meio de uma interpretação que desconstrói o conceito de subjetividade) que somos entes privilegiados de algum modo, por poder projetar e compreender o sentido próprio ao nosso mundo. Contudo, estamos entre outros e necessitamos destes para ser o que somos e assim, não temos privilégio de ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 123 controlar de modo a prever o que está por vir ou estar hierarquicamente num patamar mais elevado que outros. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 124 A CONCEPÇÃO DE “FELICIDADE” EM SCHOPENHAUER Márcia Elaini Luft Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE [email protected] Palavras-chave: Mundo; representação; vontade; felicidade O tema desta comunicação é a felicidade, e o problema central reside em compreender como ela é possível, visto que, segundo Schopenhauer, o constante sofrimento é essencial e a vida se constitui de dor e tédio; portanto, toda a vida é sofrimento. Contudo há momentos em que o homem foge ao mero contexto vital, quando é contemplador da beleza e quando se orienta pelo amor-compaixão próprio da santidade. Ao gênio, através da arte, e ao santo, através do amorcompaixão, é possível chegar ao conhecimento metafísico da vontade, ou seja, da coisa-em-si, ao conhecimento da essência íntima do mundo. A metafísica de Schopenhauer é o ponto de partida para compreender, aqui, o tema da felicidade. Schopenhauer compreende a noção de mundo sob dois âmbitos: a representação e a vontade. O consolo proporcionado pela arte, através do conhecimento da Ideia, é que faz o homem esquecer-se da penúria da vida. É também atribuído aos santos, através da sua compaixão extremada, o conhecimento da vontade. A felicidade é ilusória e só existe quando a vontade é negada; é preciso que o homem se liberte da vontade que o domina, seja por meio da arte ou por meio do amor-compaixão. A felicidade não existe como estado permanente e há momentos breves em que cessa o sofrimento, mas o que caracteriza o sujeito é o estado de insatisfação: a felicidade não passa de um intervalo entre a satisfação de um desejo e a busca de outro. A libertação de um mundo insuportável é possível pela negação da vontade, segundo Schopenhauer, o qual considera a vontade como essência única do homem e do mundo, e uma força obscura e inconsciente que limita e comanda tudo o que existe. A única consolação para o homem é a negação da vontade; assim pode alcançar a libertação temporária pela contemplação estética e, sobretudo, a libertação definitiva pela renúncia total à vontade. A filosofia shopenhaueriana convida o homem a refletir sobre sua própria condição no mundo e utilizar-se de artifícios para ter uma vida o menos infeliz possível, pois feliz jamais será, segundo essa análise metafísica. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 125 O JOVEM MARX E A CRÍTICA ONTOLÓGICA DA POLÍTICA: ANÁLISE DOS ESCRITOS POLÍTICOS DE 1842 A 1844 Marco Aurélio Palu Universidade Estadual de Maringá - UEM [email protected] Palavras-chave: Marx; crítica ontológica; política O presente trabalho tem por finalidade realizar uma reflexão crítica acerca de uma coletânea de escritos políticos de Karl Marx (1818 – 1883). Trata-se de textos datados entre janeiro de 1842 e Abril de 1844: quatro artigos de A Gazeta Renana, correspondências com Arnold Ruge, Crítica à Filosofia do Direito de Hegel, Crítica à Filosofia do Direito de Hegel - Introdução e Sobre a Questão Judaica, os quais caracterizam parte de sua obra de juventude. A análise cronológica desses escritos demonstrou uma radicalização teórico-analítica no interior do pensamento de Marx rumo às suas próprias teses e a consequente ruptura com o padrão de reflexão anterior, consagrado em Hegel pelo postulado de "realização da razão". Nesse sentido, foi constatado o trânsito entre a) a defesa das teses tradicionais de política e o estado moderno enquanto instituição racional, b) a discussão sobre a possibilidade de uma verdadeira democracia e a reforma de consciência, c) uma ruptura de natureza ontológica, a determinação ontonegativa da politicidade, manifesta na oposição categorial entre emancipação humana à emancipação política. Desse modo, buscou-se refletir sobre a emergência do pensamento marxiano sob a perspectiva de crítica ontológica destes textos, e de acordo com um procedimento que se orientou pela lógica imanente aos mesmos, segundo as indicações do filósofo brasileiro José Chasin. Esta conquista analítica viria a caracterizar o pensamento mesmo de Marx ou propriamente marxiano. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 126 NIETZSCHE: A CRÍTICA A MORAL E A TRANSMUTAÇÃO DE VALORES Maria Eduarda Pereira Instituto Federal do Paraná - IFP [email protected] Orientador: Prof. Alan Rodrigo Padilha Palavras-chave: Moral; crítica; valores Nietzsche inverte o papel moral da filosofia dando-lhe um sentido ético-estético ao tratar da transvaloração dos valores, afirmando que o homem é criador de valores, mas que essa criação é algo de "transcendente", de "eterno" e "verdadeiro", isto é, os valores que se apresentam como verdadeiros e absolutos não são mais do que valores "humanos",não são mais que dependências, portanto, contigentes e relativos. Apenas na lógica do rebanho é que se pode afirmar a verdade como absoluta ou então ao puro domínio da razão (iluminismo – Kant) humana, mas o além do homem, “uma corda sobre um abismo”, isto é, um passar e um sucumbir em sacrifício á terra para que a “terra um dia se torne além do homem”,inverte a lógica de uma filosofia moral. A oposição nietzschiana a lógica do rebanho se dá na perspectiva da moral que é imposição de uma “verdade última” para os modos de viver, contudo, sempre há em um rebanho a “ovelha perdida” ou a que não quer ser encontrada, um inovador, sendo “todo inovador um blasfemo” (NIETZSCHE,2009,p.18-19). Este estaria dando o primeiro passo para a transmutação de valores, a ousadia de um pensamento que afirma a diferença, neste aspecto a transmutação do espírito em camelo, em leão, e em criança é a imagem da transmutação dos valores, assim leão e criança constitui dois momentos, um ético no que diz respeito a liberdade (leão) e outro estético (criança) no que diz respeito a criação o que em agenciamento ético estético poderíamos dizer de uma produção da vida como obra de arte que criaria inventivamente novos modos de pensamento e vida, como uma linha de fuga do já dado mundo moral. Porém, sabendo que a criança não é um fim, algo estabelecido,estático e o ser tendo tendência de imitar para voltar ao convívio do rebanho, este mesmo que passou pelo camelo,leão e criança terá de passar pela transmutação ainda diversas vezes. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 127 O ESPAÇO DESCRITO PELA FENOMENOLOGIA DE HEIDEGGER Maria Lucivane de Oliveira Morais Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE Pós-Graduanda Segunda Licenciatura (PARFOR) [email protected] Orientador: Prof. Dr. Roberto S. Kahlmeyer-Mertens Palavras-chave: Fenomenologia; Heidegger; espaço; ser-no-mundo O tema da presente comunicação se refere ao espaço tratado a partir do paradigma fenomenológico proposto por Martin Heidegger na obra Ser e tempo onde a espacialidade é pensada a partir do Dasein. A fenomenologia pode ser descrita como um método de investigação que, nesse caso, tem como principal objeto de interesse o sentido do ser estudado por meio de uma analítica existencial capaz de apontar para a singularidade que permeia o existir humano. Além disso, a análise da realidade, do espaço e a forma como os fenômenos se mostram são preocupações constantes na obra de Heidegger que os descreve a partir de um enfoque ontológico capaz de ilustrar a questão do ser-no-mundo. A aplicação do método fenomenológico permite definir o conceito de espaço e suas características originárias bem como o papel que a dimensão espacial desempenha sobre a existência que é única em cada lugar ou espaço vivido. Dessa forma, objetivo geral proposto nessa comunicação visa: descrever algumas concepções de como o espaço é tratado na fenomenologia de Heidegger. A metodologia de pesquisa empregada nesse processo fundamentou-se em análises bibliográficas que permitiram a consulta de obras cujos autores se dedicaram ao estudo da fenomenologia Heidegger. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 128 A EXPERIÊNCIA DA BARBÁRIE COMO POSSIBILIDADE DA BILDUNG NA CONTEMPORANEIDADE Mariana de Macêdo Seixas [email protected] Tamires Dias dos Santos [email protected] Universidade Federal Fluminense – UFF Mestrado Palavras-chave: Bárbarie; experiência; Bildung Este trabalho tem como intuito entender a dinâmica indissociável entre a crise da experiência e a possibilidade de formação individual do homem (Bildung) à luz do pensamento de Walter Benjamin e Theodor Adorno. Segundo Benjamin (1996, p. 115), ao tratar de nossa cultura, diz que “uma nova forma de miséria surgiu com esse monstruoso desenvolvimento da técnica na qual a experiência não mais se vincula a nós”. Dentro deste âmbito da desvinculação da experiência, a partir do advento da modernidade,faz-se necessário pensar em uma formação que relaciona-se com a “elevação da interioridade do sujeito e com sua autonomia.”(GUR-ZE’EV, 2009, p.12). As profundas mudanças ocorridas na forma organizacional das relações de trabalho surgidas com o desenvolvimento da técnica somadas a aceleração do tempo, impuseram um mecanicismo produtivo no qual homem deixou de pertencer a si mesmo, tornou-se alheio em relação ao que ele mesmo produz se distanciando dos objetos e também dos outros homens, visto que nesta lógica de maximização da produção, não há lugar para a troca de experiências. Adorno em Dialética do Esclarecimento expõe que o grande desafio atual da formação cultural deve se desembocar numa crítica à “semiformação”. A concepção do indivíduo semiformado, é o resultado do conjunto de forças conformistas ou irracionais que são propagadas pela Indústria Cultural que tem por última finalidade moldar as subjetividades. Essa “semiformação” constitui os traços do autoritarismo que favorece a obliteração do eu compelindo, assim, os indivíduos à adaptação e assimilação das massas. Diante desta condição de negação de si mesmo, Adorno ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 129 entende que uma educação não pode tornar-se emancipatória se não se compromete com a inserção crítica na realidade. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 130 JOHN RAWLS: PRINCÍPIOS MORAIS PARA A ESTRUTURA BÁSICA DE UMA SOCIEDADE JUSTA Marilda Pereira dos Santos Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE [email protected] Palavras-chave: Equidade; justiça; princípios O presente trabalho pretende investigar como se apresentam, na obra do filósofo John Rawls, Uma teoria da justiça, os princípios morais para a estrutura básica de uma sociedade justa. O filósofo político promoveu uma justificação teórica legitimando um Estado justo, promoveu uma experiência de pensamento, extraindo dela uma concepção de justiça que coloca em prática os princípios de justiça escolhidos pelos indivíduos. Nosso objetivo é mostrar como o pensador desenvolveu o conceito de justiça como equidade, fundamentando dois princípios de justiça. Sua teoria constitui, em grande parte, uma reação ao utilitarismo clássico, por isso, é seu propósito refutar essa teoria e elaborar uma nova teoria da justiça, visando formar uma sociedade igualitária. A ideia de sociedade bem ordenada e que funciona como um sistema de cooperação social também serão desenvolvidas em nosso trabalho, uma vez que são centrais no pensamento do autor. A proposta argumentativa do pensador americano traz contribuições importantes através de um novo modelo de teoria da justiça, evidenciando uma teoria da justiça como equidade. Por fim, percorremos a argumentação de Rawls em defesa de uma concepção de justiça, a teoria da justiça como equidade, evidenciando que nela o justo e o bem são complementares. No conjunto da apresentação, pretendemos investigar qual é a relação da teoria da justiça com a formação moral dos indivíduos, mostrando como John Rawls fundamenta os princípios gerais de justiça e como ele concilia os dois princípios (defesa das liberdades com a garantia das igualdades). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 131 A OBRA DE ARTE E O BELO COMO UM PROBLEMA DA ESTÉTICA FENOMENOLÓGICA Marli Batista Basseto Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE Pós-Graduanda Segunda Licenciatura (PARFOR) [email protected] Orientador: Prof. Dr. Roberto S. Kahlmeyer-Mertens Palavras-chave: Arte; estética; belo; ontologia; fenomenologia Segundo a metafísica tradicional, o belo e o artístico ou existem em si mesmos, objetivamente, ou existem como princípios e condições subjetivas de apreciação estética. Desse modo, ou bem existiria o belo em si ou bem o belo para o homem. Haveria, assim, a urgênca de encontrar, por meio de uma estética, o fundamento e a essência da arte e do belo, ou os critérios “objetivos” para toda apreciação subjetiva. Por outro lado, o século XX propôe, sobretudo a partir da fenomenologia que a a arte é uma abertura de mundo, inauguração de sentido, rompimento de compreensão que permite visualizar o contexto essencial. A arte é um conhecimento de mundo, um modo humano de se instalar nesse mundo com cores, sons, formas, linhas, movimentos etc. Por meio da arte, atribuem-se significados ao mundo, examinam-se possibilidades de ser ainda não realizadas, criando-se, desse modo, novos objetos ou eventos que serão passíveis de novas interpretações por parte do artista e do observador. Entretanto, uma obra de arte deve ser entendida como a forma pela qual o artista percebe o mundo, reflete sua realidade, sua cultura e sua época. Segundo Selbch (2010, p.35), “a obra de arte permite ao ser humano (artista e observador) imaginar situações, fatos, ideias e sentimentos, aceitando-se plenamente a criatividade, que pode se colocar muito além da experiência imediata”. Deste modo, é importante salientar que a ontologia propõe por meio da fenomenologia inaugurar um sentido aquilo que está dado de modo que as concepções de beleza e de gosto não afetem a compreensão das coisas. No entanto, para não cair no lugar-comum de que “gosto não se discute”, faz-se necessário pensar o que na obra de arte aparece. Pois segundo Heidegger (apud Inwood, 2004, p.141), “a ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 132 obra não é uma coisa a que se adicionam qualidades artísticas; a obra revela a natureza das coisas”. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 133 MICHEL FOUCAULT: O DISPOSITIVO EDUCACIONAL NA FORMAÇÃO DE SUBJETIVIDADE SEXUALIDADE E BIOPOLÍTICA Matheus Avelaneda Anderson Alieve Instituto Federal do Paraná - IFP [email protected] Orientador: Prof. Alan Rodrigo Padilha Palavras-chave: Dispositivo; sexualidade; biopolítica Foucault abordou assuntos tais como as relações de poderes, o uso dos saberes e as formas de controle da sociedade. Em uma de suas obras, "A história da sexualidade: a vontade de saber", Foucault mostra que as relações de poderes são constituídas através dos diversos dispositivos sob uma forma de repressão; neste aspecto, queremos destacar o papel do dispositivo educacional no processo de formação de subjetividade e suas implicações disciplinares. A escola apresenta-se como um campo de práticas disciplinares; inclusive, nesse conjunto heterogêneo, tais práticas tendem ao discurso formador da sexualidade e de constituição dos processos de subjetivação. Desse modo, começaremos a discutir o tema da sexualidade foucaultiana na perspectiva da biopolítica e de suas implicações a respeito da diversidade sexual. As práticas repressoras da sexualidade e o controle dos corpos são evidenciadas por Foucault ao tratar da escola como um dispositivo de poder. As noções e as divisões de sexo e gênero configuram um discurso concernente ao dispositivo que tem o "poder" de "cortar", ou seja, estreitar as relações e os discursos do sexo assim como o envolvimento de pessoas heterossexuais, que são reduzidas aos costumes da religião quanto ao do status da moral. Nisto vemos que o resultado desse dispositivo foi apenas difundir o sexo e suas vertentes? Na verdade, o dispositivo veio para controle de massa e favorecimento do capitalismo, que crescia cada vez mais na época e necessitava de mãode-obra. Nisto vemos que o dispositivo interferiu nessas relações e discursos, relacionado a três poderes explícitos, que regiam as práticas sexuais: o Direito Canônico, a Pastoral cristã e a lei civil. Procura-se, com este trabalho, trazer uma reflexão e um entendimento sobre o dispositivo da sexualidade, sua interferências nas relações homossexuais e heterossexuais, e também mostrar ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 134 o caminho para a mudança dos atuais padrões sexuais impostos pela sociedade na direção de uma igualdade afetiva. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 135 A CIVILIZAÇÃO COMO FONTE DE DESPRAZER SEGUNDO FREUD Maurício Smiderle Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE Programa de Estudos Tutorados – PET, Filosofia [email protected] Orientador: Profª. Msª. Célia Machado Benvenho Palavras-chave: Civilização; indivíduo; sentimento de culpa O presente trabalho tem como objetivo apresentar a civilização como fonte de desprazer segundo a concepção de Sigmund Freud. Em seu livro, O mal-estar na civilização, o pai da psicanálise procura mostrar que a sociedade é responsável por uma parcela do sofrimento do homem. Antes de viver na civilização, o ser humano vivia mais feliz, pois era possível dar livre vazão aos seus desejos e instintos. O problema era que a felicidade era muito curta, visto que aquela espécie de vida da antiga humanidade possuía muitos perigos. Ao perceber que a vida em sociedade, de certa forma, poderia ser segura e vantajosa, o indivíduo realizou uma troca de um pouco de felicidade por um pouco de segurança, pois somente com isso era possível prolongar a sua existência. Ou seja, o processo civilizatório, então, exigiu vários sacrifícios dos homens, visto que era necessário que os estímulos humanos não fossem exteriorizados, mas interiorizados. Isso não foi uma tarefa fácil, acarretando em um desconforto: o sentimento de culpa. Este sentimento foi o resultado da interiorização dos instintos, fazendo o homem maltratar a si mesmo. Com o sentimento de culpa, surgiu uma nova estância responsável por aplicar toda aquela agressividade que o Eu desejava praticar, isto é, o Super-eu. Este, agora, irá agredir o próprio indivíduo, já que os instintos agressivos não foram exteriorizados. Desta forma, segundo Freud, a civilização, que é criação do próprio ser humano, provocou alguns desprazeres, isso não ocorreu de maneira abrupta, mas foi um processo lento e gradual. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 136 A METÁFORA ENTRE O SENTIDO E A REFERÊNCIA UMA ABORDAGEM RICOEURIANA APLICADA AO DISCURSO LITERÁRIO Odair Salazar da Silva SED/SC [email protected] Palavras-chave: Metáfora; epistemologia; discurso literário Paul Ricoeur apresenta em sua produção linguístico-filosófica o fenômeno da metáfora (viva) como um instrumento epistemológico, que objetiva defender a tese de que o referido tropo não tem apenas função de plasticidade, de imitar as ações humanas na tragédia ou colmatar uma lacuna linguística. Pensando assim, o filósofo francês procura criar uma nova metodologia linguístico-filosófica, aplicando-a à metáfora, que garante um novo significado passível de aceitação. A partir da compreensão do conceito de “sentido” e “referência”, adaptado ao discurso literário, cuja origem está Gottlob Frege, é que Ricoeur propõe não só descrever linguisticamente, mas pensar filosoficamente o poder heurístico da metáfora. A pesquisa parte da hipótese de que a metáfora é uma ferramenta legítima que tem o poder de oferecer novos insights sobre a realidade, no momento em que o absurdo linguístico de uma dada sentença se autodestrói ao eliminarem-se o sentido e a referência primários, para darem lugar a um sentido e referência secundários, de onde brota uma nova visão de mundo, válida, passível de aceitação. Esta metodologia adotada por Ricoeur, com a contribuição de filósofos e linguistas, dente eles, Richards (1962), Black (1966), Monroe Beardsley (1978), Cohen (1992), Goodman (2010), entre outros, assegura que não só os discursos ordinários são os detentores de verdades de mundo. Ao contrário, os discursos literários são também possuidores de informação inédita, a partir de um erro sentencial já calculado (Gilbert Ryle) e resolvido. Afinal, o “poema é uma metáfora em miniatura”, cuja função é desvelar um novo mundo compreensível, no dizer de Monroe Beardsley, de quem Ricoeur é seguidor. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 137 O MARCO CIVIL DA INTERNET E A TENTATIVA DO ESTADO DE ADESTRAMENTO DO CIBERESPAÇO NO BRASIL Paulo Alves de Oliveira Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT [email protected] Palavras-chave: Marco civil; estado; adestramento; internet; Brasil Este trabalho insere-se numa tentativa de compreender e pensar as tecnologias através da Filosofia da informação. Contextualizada com essas novas cotidianidades que surgem através das vivências dos seres humanos. Neste caso específico da regulação das redes de computadores através da criação do Marco Civil da Internet. E as ferramentas criadas pelas mesmas para melhor viver e dominar a natureza da tecnologia e assim chegar à razão civilizadora para um melhor funcionamento da sociedade. Direcionado para o controle do Estado visto que “os indivíduos apóiam-se constantemente sobre a ordem e a memória distribuídas pelas instituições para decidir, raciocinar, prever” (LÈVY, 2004 p. 87). O Marco Civil da Internet estabelece os princípios, as garantias, os direitos e os deveres para o uso da Internet no Brasil e determina as diretrizes para atuação do Estado, é oficialmente conhecida como a Lei nº 12.965, foi sancionada pela presidenta Dilma Rouseff no dia 23 de Abril de 2014. Essa regulação do Estado através de uma tentativa de adestramento nos traz a certeza de que a punição “é que deve desviar o homem do crime” (FOUCAULT, 1987). Apesar do início das discussões e a lei dizer que não funcionará como sancionadora ou disciplinar devemos entender que “para que haja infração é preciso haver poder político, uma lei, e que essa lei tenha sido efetivamente formulada” (FOULCAULT, 2002, p. 80). Assim, para Foucault, as condutas somente poderão sofrer as penalidades repreensíveis pela lei. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 138 O CONCEITO PERSPECTIVISTA DE PESSOA NA ANTROPOLOGIA DE VIVEIROS DE CASTRO Pedro Henrique Vieira Universidade Federal do Paraná –UFPR Doutorando em Filosofia [email protected] Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio Valentim Palavras-chave: Perspectivismo; multinaturalismo; humanidade Ao investigar outros povos, a antropologia de Eduardo Viveiros de Castro se propõe a buscar um pensamento outro, uma contrainterpretação antropológica que opere uma transformação no discurso do próprio antropólogo acerca de si mesmo. É dessa maneira que Viveiros de Castro subverte conceitos centrais da tradição ocidental, tais como as dualidades humano/animal, natureza/cultura, corpo/alma, dentre outras. Tal transformação no pensamento deriva, talvez de modo primordial, da exposição da metafísica ocidental à concepção ameríndia de pessoa: antes que um conteúdo substancial que demarcaria uma região ontológica por oposição às demais, pessoa seria aí uma posição perspectiva em constante disputa interespecífica, de modo que o humano e o não humano estariam potencialmente superpostos, em sua diferença, sobre todo e qualquer agente, imbricando-se mutuamente num trânsito recíproco e reversível. É com base nisso que Viveiro de Castro desenvolve sua interpretação do pensamento ameríndio como um perspectivismo ou multinaturalismo, interpretação essa cuja utilidade consiste menos em explicar e dar sentido ao discurso do nativo do que em transformar o discurso que o ocidente desenvolve acerca de si próprio. O objetivo desta comunicação é apresentar os contornos gerais dessa interpretação que Viveiros de Castro elabora a propósito do conceito ameríndio de pessoa, bem como alguns de seus possíveis efeitos reversos sobre a filosofia ocidental. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 139 O CONCEITO DE HOMEM EM ERICH FROMM Rafael Adilson Ribeiro Universidade Estadual de Maringá - UEM [email protected] Orientador: Prof. Dr. Wagner Félix Palavras-chave: Homem; existência; liberdade; necessidades Erich Fromm define que o homem é, sobretudo, um ser social que deve ser entendido a partir da interação com os outros homens, a natureza e ele mesmo; o qual tem seu caráter formado socioculturalmente na relação entre natureza humana e sociedade. Fromm parte da ideia de que a evolução distanciou o homem das determinações naturais, trazendo a ele elementos e propriedades que constituíram sua razão e lhe colocou em uma nova condição na natureza, a qual lhe trouxe maior liberdade e, não obstante, novas necessidades de caráter psíquico. Essa condição é intrinsecamente dicotômica, porque o homem tem, por um lado, liberdade para agir e, ao mesmo tempo, sofre diversas determinações. Esse conflito é o que estabelece o mecanismo fundamental do comportamento humano. Para Fromm os homens possuem, basicamente, dois modos de superar esse conflito inerente à sua existência: um modo regressivo e outro progressivo. O primeiro, Fromm denomina como mecanismos de fuga, que são aqueles modos em que o homem deseja regredir para a unidade com a natureza, ao estado de pré-individuação. O segundo modo é progressivo e consiste em utilizar e desenvolver as propriedades especificamente humanas, um modo de relacionamento com o mundo no qual o homem utiliza as potencialidades de sua razão para, então, lidar com sua situação existencial e satisfazer suas necessidades fisiológicas e psíquicas. A impossibilidade de satisfazer essas necessidades gera os modos regressivos de desenvolvimento tanto a nível individual quanto social. Em suma, para Fromm o homem é naturalmente impulsionado a superar e anular sua inalterável dicotomia existencial, sendo esta, portanto, a origem mais fundamental de suas necessidades e motivações. Assim, para Fromm o conhecimento da psique e da natureza humana deve basear-se na análise filosófico-existencial das necessidades básicas do homem, resultantes das singularidades e contradições da situação humana. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 140 CRISE DE IDENTIDADE E CORROSÃO DO CARÁTER Rafael de Barros [email protected] Palavras-chave: Pós-modernidade; capitalismo flexível; identidade; corrosão do caráter O presente trabalho tem como objetivo compreender o processo de perca crescente da identidade sofrida pelos indivíduos na Modernidade Tardia, que segundo Stuart Hall ocorre devido à flexibilização das relações existentes entre o homem e o meio social em que este se insere, uma vez que todos os processos sociais se flexibilizaram, nos termos de Richard Sennett, o indivíduo se vê imerso em uma sociedade que a todo momento se reinventa e se transforma e que, como consequência, força os indivíduos a se transformarem. Este processo de transformação crescente faz com que os indivíduos percam as bases sólidas sob as quais se apoiavam e tomavam como fonte de segurança, bases estas que proporcionavam a criação de auto identificação e autoconhecimento, de modo geral, de uma identidade. Uma vez que tais relações se flexibilizaram, o indivíduo perdeu seu ponto de apoio, viu-se imerso em uma sociedade que tem como característica fixa a mutabilidade de suas relações. O processo de flexibilização que promove, segundo Hall, a perca da identidade, promove ainda a perca de valores morais fixos aos quais os indivíduos podem fundar seu caráter, desse modo, mais que a perca do sentido de identidade, o indivíduo na Pós-modernidade sofre um processo degenerativo do caráter, que Richard Sennett denomina Corrosão do Caráter. Desse modo, o presente trabalho tem como objetivo analisar de modo comparativo como a crise de identidade diagnosticada por Hall promove a corrosão do caráter apontado por Sennett. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 141 A DISTINÇÃO DE CURVAS GEOMÉTRICAS E CURVAS MECÂNICAS EM DESCARTES E NOS GEÔMETRAS GREGOS Renato Francisco Merli Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE [email protected] Orientador: Prof. Dr. César Augusto Battisti Palavras-chave: Geometria; curvas geométricas; curvas mecânicas; geômetras gregos A proposta do texto é apresentar a tese de que Descartes classifica as curvas geométricas e mecânicas de forma distinta dos antigos geômetras gregos. Vale salientar que as curvas geométricas são os principais objetos geométricos estudados pelo filósofo e são assim chamadas por serem precisas e exatas, além de se abrirem a um tratamento e ordenamento algébrico. Os antigos já haviam fixado certos critérios (implícitos, pelo menos) de aceitação ou de recusa das curvas; entretanto, a consideração dos instrumentos legítimos à sua construção, e sua limitação à régua e ao compasso, levaram os geômetras gregos a excluirem da geometria determinadas curvas tão precisas e exatas quanto as aceitas. Para Descartes, régua e compasso são máquinas tanto quanto os outros compassos. E, portanto, tanto uns quanto outros podem gerar curvas geométricas. Logo, é preciso proceder a uma nova avaliação da natureza das curvas. Ao contrário dos gregos, que com base no método cinemático (de movimento) agruparam todas as curvas como a quadratriz, a cissóide, a concóide e a espiral num conjunto que exigiam na sua construção instrumentos mais complicados do que a simples régua não graduada e o compasso, o filósofo fez uma criteriosa distinção, aceitando a cissóide e a concóide como curvas algébricas e rejeitando as restantes. Assim, tomando por “geométrico o que é preciso e exato e por mecânico o que não é”, ele deu reconhecimento geométrico às curvas como a reta, o círculo, as cônicas, a cissóide e a concóide, designando-as por curvas geométricas. Às curvas restantes, que excluiu da sua A Geometria, deu o nome de curvas mecânicas, pois podiam imaginar-se descritas por dois movimentos separados cuja relação não admitia determinação exata, ou seja, escreveu Descartes, “em virtude de poderem imaginar-se descritas por dois movimentos que não têm entre si nenhuma relação que possa medir-se exatamente”. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 142 O HOMEM DEMOCRÁTICO E O RISCO DO DESPOTISMO DEMOCRÁTICO SEGUNDO ALEXIS DE TOCQUEVILLE Prof. Ms. Ricardo Corrêa Instituto Federal Farroupilha [email protected] Palavras-chave: Alexis de Tocqueville; estado social democrático; despotismo democrático Mesmo que a palavra democracia, para nós ocidentais, designe “bons sentimentos e valores” – pois relacionamos outros dois termos muito caros à nossa cultura: liberdade e igualdade –, para o pensador francês a democracia estabelece um estado social que pode trazer consigo alguns malefícios, como a apatia social e, consequentemente, o despotismo democrático. Pois o estado social democrático, segundo o pensamento tocquevilliano, favorece o aparecimento de um novo tipo de homem, o homem democrático: um tipo que não se prende a nada, não lhe interessa as tradições nem o passado, apenas o quadro do presente. Busca incessantemente os ganhos materiais, sem se importar com a coisa pública. Ao se preocupar apenas com sua vida privada, com os bens privados, o homem retira-se do “palco da vida política”. Mesmo todos tendo os mesmos direitos, podendo gozar das mesmas profissões, podem perder a liberdade política. E perderão de bom grado se lhes garantirem o bem-estar. Este é o perigo do individualismo: uma sociedade em que só o conforto e a segurança são valorizados. Então, através da apatia social, decorrente do individualismo, pode surgir um governo despótico. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 143 PODE A HERMENÊUTICA FILOSÓFICA DE HEIDEGGER CONTRIBUIR À HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO? Prof. Dr. Roberto S. Kahlmeyer-Mertens Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE [email protected] Palavras-chave: Hermenêutica filosófica; fenomenologia; fundamentos filosóficos da educação; história da educação; Heidegger A presente comunicação assume por tema a contribuição que o projeto filosófico heideggeriano de uma hermenêutica da facticidade poderia trazer para pensar os fundamentos filosóficos da educação. O problema que colocaremos e que pretendemos responder, desde o início, será: como a hermenêutica filosófica contribui à história da educação? Para responder este problema, precisaremos determinar como o projeto heideggeriano de uma hermenêutica da facticidade pode ser útil a pensar conceitos fundamentais da educação. Esta meta final, entretanto, apenas se obtém cumprindo os seguintes objetivos específicos: a) Apresentar os termos da hermenêutica da vida fática segundo Heidegger; b) Caracterizar a história da educação como narrativa das concepções de educação em vista de seus fundamentos; c) Descrever como a hermenêutica filosófica de Heidegger poderia liberar o sentido de certas interpretações de educação tornando seus fundamentos compreensivos de modo a permitir novas acepções dos mesmos. Após cumprir estas tarefas, julgamos poder validar a hipótese de que noções tradicionais da educação (e suas respectivas práticas) serão compreendidas de modo mais fundamental com o auxílio da hermenêutica fenomenológica de Heidegger. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 144 DA IMPOSSIBILIDADE DE UMA PSICOLOGIA SEM ALMA Rodrigo Cavalheiro de Lima Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE [email protected] Palavras-chave: Introspecção; psicologia; espírito Em sua derradeira obra, O mundo Interior, Raimundo de Farias Brito (1862-1917) realiza uma intensa e seria investigação de todas as correntes psicológicas da época, com a intensão de encontrar uma Psicologia que atendesse aos requisitos de uma Psicologia filosófica, concluindo que nenhuma delas atende às exigências de uma Psicologia transcendental. Sua ultima obra se inicia com uma severa crítica à psicologia moderna, pois esta, baseada na pesquisa de laboratório, através da experimentação, buscando descrições anátomo-fisiológicas, medida das sensações e dos atos psíquicos, torna-se irônica mediante a sentença “Psicologia sem alma” a qual complementa o Filósofo, “uma Psicologia morta”, ou seja, uma Psicologia que não nos instrui nem edifica, que nada nos diz sobre a energia que reside em nós. Brito diferencia a ciência da Filosofia, entendendo a primeira como a busca do domínio do homem sobre a natureza, a segunda como a busca do domínio do homem sobre si mesmo. Então propõe uma Filosofia do Espírito, uma ciência que leve a conhecer o ser íntimo que é base e sede das ações humanas. Não sendo o espírito apenas base do edifício do pensamento, mas o principio dos princípios, resistindo a toda duvida, torna-se o espírito objeto de ciência, possuindo seus princípios e métodos próprios. Desse modo, identifica a Psicologia com a Filosofia, dando lhe o qualificativo de Psicologia Filosófica, e é esta a ciência das ciências, a ciência fundamental, ciência da coisa em si e do ser verdadeiro, pois só a ela é dado entrar no coração das coisas. Para tanto é preciso de um “método” que não se limite a observar apenas a fenomenalidade, o mundo exterior, a matéria, é preciso entrar no âmago da pura realidade e ver o que se passa no interior mais profundo de nosso ser, e isto se da através da “introspecção”. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 145 A EXISTÊNCIA HUMANA SEGUNDO SØREN A. KIERKEGAARD Rômulo Gomes Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE [email protected] Palavras-chave: Estádio; existência; indivíduo; relação; síntese Vem-se, por meio desse artigo, apresentar o pensamento de Søren Aabye Kierkegaard, que expõe em sua obra a ideia de indivíduo em relação consigo e com seu Criador. Para o autor, cada indivíduo é responsável pela sua existência; mas na falta da autenticidade desta, surge o desespero, doença do espírito que atinge todos os homens. O ser humano é uma síntese de corpo e alma, portanto de finitude e infinitude, de temporalidade e eternidade. A relação destes termos dialéticos é o espírito, pelo qual o homem se distingue de todo o resto do mundo. O espírito, ao relacionar-se consigo, dá origem ao eu, que é a reflexibilidade da relação e a conciliação das partes da síntese. Contudo, o eu não se estabelece por si mesmo, existe um terceiro termo, um Autor, que permite ser. Segundo o filósofo, não é o homem que dá a si mesmo o seu próprio ser, mas participa desse pela responsabilidade de criar sua existência, que é produto de sua vontade. Fazendo uso da sua liberdade o homem escolhe como dirigir a sua vida. O homem, pela capacidade de existencializar-se, pode viver de três modos gerais: segundo o estádio estético, ético ou religioso. No primeiro, estético, o homem deixa-se guiar pelos apetites sensuais e vive uma vida sem responsabilidades, apega-se ao que é superficial e finito, como a beleza corporal, glórias e riquezas; no estádio ético, o homem busca o que é melhor para si, procurando ser uma pessoa boa, conciliando sua vida com as leis éticas; no estádio religioso, por meio da fé, vai-se além da razão, além do que é ético e acredita-se naquilo que é escândalo, absurdo para os homens de pouca fé. A cada ascensão de estádio, o homem percebe o que realmente é merecedor de maior ou menor valor e compreende que nada poderá satisfazer a sua fome de infinito, a não ser o próprio infinito. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 146 TIPOS MORAIS Roni Lenon da Silva Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE [email protected] Orientador: Prof. Dr. Wilson Antonio Frezzatti Júnior Palavras-chave: Hierarquia; moral; tipologia O objetivo desta comunicação é expor de forma interpretativa alguns dos aspectos argumentativos a respeito da moral de senhores e da moral de escravos, tendo como base textual os seguintes escritos do filósofo alemão Friedrich Nietzsche: o capítulo nono de Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro (1886), intitulado “O que é nobre?” e a primeira dissertação (“Bom e mau”, “bom e ruim”) de A genealogia da moral: uma polêmica (1887), paralelos a breves alusões a outros textos do pensador em questão. O intento inicial se desdobra, por um lado, enquanto uma tentativa de detectar algumas das características tipológicas e hierárquicas de ambas as morais (senhores/escravos) nestes contextos, e por outro, descrever uma possível proximidade entre as fontes textuais selecionadas. Isso não consiste em dissecar linearmente todos os aforismos das seções selecionadas, mas apenas em destacar e descrever o que é pertinente para a produção deste texto. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 147 DISCUSSÕES ÉTICAS NOS ESPAÇOS ESCOLARES Roselene Aparecida Moreira Universidade Estadual de Londrina - UEL Orientador: Profª. Rosa de Lourdes Aguilar Verástegui [email protected] Palavras-chaves: Escola democrática; educação cidadã; formação ética O objetivo desta pesquisa é apresentar o espaço escolar como um lugar que propicia a construção de uma sociedade democrática. Para isto, abordamos algumas das críticas feitas pela visão pósmoderna à formação autônoma, que foram apontadas por Freire. Acreditamos que o conceito de autonomia é uma categoria central na obra de Paulo Freire e tem importância não só para a formação profissional, mas também para o exercício da docência, na construção de uma sociedade democrática. A instituição escolar centraliza a atividade intelectual da educação formal, porém, há aquela formação caracterizada como educação não formal intrínseca, que contribui na formação do ser humano que está inserido na sociedade, onde precisa ser um sujeito atuante e que necessita de regras, normas e consciência para garantir o bem estar individual e coletivo. A metodologia utilizada será uma revisão bibliográfica dos textos e entrevistas de Paulo Freire onde trata da autonomia. Nosso principal referencial será: A Pedagogia da autonomia, A pedagogia da esperança e A pedagogia do oprimido. A pesquisa pretende unir as reflexões filosóficas com a prática docente, sem tentar conclusões definitivas, pelo contrário, observando a necessidade de unir sempre a reflexão filosófica na prática docente. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 148 REFLEXÃO SOBRE PROJETO DE VIDA EM SØREN AABYE KIERKEGAARD Samuel Schaia Anhanguera Educacional - FACIAP [email protected] Palavra-chave: Kierkegaard; sofrimento; estádio Utiliza-se muito frequentemente a frase: “Dinheiro não trás felicidade, mas sofrer em Paris é muito melhor”. Não, sofrimento é sofrimento em qualquer lugar, ele está dentro do homem; se o homem for para Paris, Las Vegas, qualquer lugar; O sofrimento lá estará, pois não se trata do local onde o homem está, mas do próprio homem. Parece que não nos satisfazemos nunca a respeito do prazer; nossa condição de humanos e, portanto de sobreviventes, nos leva a isso. Biologicamente, somos animais que lutam pela sobrevivência, correndo atrás de satisfação fisiológica; como comer, beber, fazer sexo que nos leva a manter a vida e reproduzir a espécie, e, quando alcançamos essas metas naturais, ganhamos prazer. Mas então “vivemos felizes para sempre”? Não; logo temos de satisfazer essas necessidades novamente, remetendo ao ciclo da vida, como em qualquer outro animal. Qual é o sentido da vida? Em suma, buscamos a verdade; nesse caminho devido o livre arbítrio podemos decidir o sentido de nossas vidas. Quando não controlamos nossos instintos e vivemos sem buscar uma “independência intelectual”, naturalmente buscando o prazer imediato, como qualquer outro animal, se tornando vício e não virtude, entramos em conflito com o mundo, pessoas, animais, etc, e a satisfação não estará jamais completa.O projeto de vida em aberto, ou dirigido a prazeres imediatos, gerará competição entre os “animais” pelo meio ambiente, o conflito entre o indivíduo e a lei moral, conflito este evidenciado no livro “Diário de um sedutor”, de Kierkegaard. Na concorrência pela sobrevivência “viciada”, com recursos escassos, entende-se que “se ganha quando o outro perde”, e aí se dá o ideal de “lucro”. O conceito de ganho sobre o outro alimenta o ciclo da sobrevivência instintiva, estádio estético, segundo Kierkegaard. A reflexão, a “virtude” do livre arbítrio nos é dada, pela agonia; questionamos o sofrimento, e continuamos nossa busca pela verdade. Agora usamos métodos teóricos, mentais, racionalistas, empíricos e demais fundamentalismos para tentar compreender o ser humano como um todo, e enquanto homens, ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 149 não chegaremos jamais à consecução desse propósito. Não tocamos a verdade, apesar de fazermos parte dela, a verdade universal está no “é” e nós “somos”, estamos presos à nossa finitude e limites humanos. Compreendendo-o, porém, daremos o “salto da fé” passando ao que Kierkegaard denomina estágio religioso. “A fé não é cega, é visionária, no sentido não de lhe faltar, mas lhe sobrar visão. A fé vê no visível o invisível, vê no mundo e em tudo que o mundo contém a luz, a luz de um paradoxo vivenciado, está fé é o destino de toda a existência humana. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 150 HEIDEGGER E O PROBLEMA DA ARTICULAÇÃO ENTRE A TÉCNICA E O PODER Silvio Alves [email protected] Palavras-chave: Técnica; biopoder; controle da vida Como a técnica e o poder se articulam na época atual? A relação entre a técnica e o poder aprofunda o pensamento crítico ou contribui para o controle total da vida? Estas questões norteiam esta investigação, que parte da concepção de técnica de Martin Heidegger, exposta na conferência A questão da técnica, proferida no Auditorium Maximum da Escola Superior Técnica de Munique, em 18 de novembro de 1953. Sua crítica da técnica moderna distancia-se da noção comum da técnica percebida como um meio para alcançar determinados fins e como um fazer do homem. Para Heidegger, a modernidade é técnica, não porque os instrumentos técnicos permeiam a interatividade do homem com o mundo, mas pelo fato de que o pensamento calculista e tecnicista fundamenta a maneira de pensar e de criar dos homens, e, em detrimento disto, contribui também para o esquecimento do Ser. Nesse sentido, sua problematização não somente desloca a abordagem tradicional sobre a técnica, mas apresenta elementos fundamentais para pensá-la no âmbito do poder. Nossa abordagem, portanto, pretende compreender, pelo menos, três aspectos centrais dessa articulação entre a técnica e o poder: a) como a questão da técnica, em Heidegger, apresenta-se como um modo de compreender o mundo; b) de que modo o conceito de biopoder desenvolvido por Michel Foucault no curso Segurança, território e população (1977-1978) contribui para atualizarmos a noção de poder e a reflexão sobre a técnica e poder; e c) que aproximações, similaridades e divergências podemos identificar entre a técnica e o biopoder, a fim de aprofundarmos a compreensão da centralidade da técnica e dos mecanismos de poder pertinentes ao controle da vida na época atual. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 151 DELEUZE, SPINOZA E UEXKÜLL: UM VITALISMO ÉTICO PELA VIA ETOLÓGICA Sindy Miriam Leite Instituto Federal do Paraná - IFP [email protected] Orientador: Profª. Alan Rodrigo Padilha Palavras-chave: Ética; etologia; vida A tese fundamental da ontologia de Spinoza é formulada a partir do ser unívoco sendo substância absolutamente infinita, ou seja, constitui-se de uma infinidade de atributos, cujos produtos são modos. Para Deleuze, Spinoza define corpo de duas maneiras, uma cinética que diz respeito as relações de movimento e de repouso, de lentidão e de velocidade entre partículas. E outra dinâmica que se remete ao poder de afetar e ser afetado, nessa concepção cinética e dinâmica pode-se compreender a afirmação deleuziana da ética como uma etologia que serve tanto aos homens quanto aos animais, porque desse depende somente o poder de afetar e ser afetado e de suas relações de movimento e lentidão conforme já exposto de antemão. O caráter etológico da ética é definido por Deleuze no exemplo uexküliano, o carrapato, animal que suga o sangue dos mamíferos. Ele define esse animal a partir de três afetos: luz, olfato e calor, assim em um primeiro momento ao subir no alto de um galho, a segunda de se deixar cair sobre o mamífero que passar debaixo do galho, e a terceira procurar a região mais quente e de pelo. O homem é definido por duas características, as “ações que se explicam pela natureza do indivíduo afetado e derivam de sua existência, e pelas paixões que se explicam por outra coisa e derivam do exterior” (DELEUZE, 2002, p.33). Para Spinoza, a vida é uma maneira de ser, um mesmo modo eterno em todos os seus atributos. Spinoza inaugura uma nova perceptiva ética que é renovada por Deleuze: a vida é o centro, sua potência. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 152 DOUTRINA PURA DA VIRTUDE E ANTROPOLOGIA MORAL EM KANT Solange de Moraes Dejeanne Centro Universitário Franciscano - Santa Maria/RS [email protected] Palavras-chave: Ser moral; humanidade; pessoa; liberdade; homem como fim em si mesmo Várias são as passagens dos textos kantianos sobre filosofia moral nas quais se encontram afirmações e pressupostos que parecem nos autorizar a conceber aí uma antropologia moral concebida basicamente a partir da condição do homem de ser racional, isto é, uma antropologia não empírica. Com efeito, Kant afirma que “o homem, e, duma maneira geral, todo ser racional, existe como fim em si mesmo [...]” (FMC, 64). E não há dúvida de que Kant pensa o homem como ser moral a partir da sua natureza racional. Na Fundamentação da metafísica dos costumes, assim como na segunda Crítica e na Doutrina da Virtude, onde Kant trata do desenvolvimento do sistema da liberdade, a condição de agente moral do homem lhe é atribuída enquanto ser dotado de razão, isto é, da capacidade de agir segundo a representação das leis. Pois, enquanto ser racional, o homem pode pensar-se como legislador da sua própria conduta. Assim, tanto a metafísica dos costumes, quanto a Doutrina da Virtude, que Kant desenvolve a partir de um princípio metafísico fundamental, apontam para uma antropologia moral. Ou seja, a filosofia moral de Kant parece implicar elementos para uma antropologia moral depurada de todo elemento sensível da condição humana. Contudo, há que se considerar que também, para Kant, o homem enquanto tal não é um ser racional puro, e sim um ser natural racional; e que é exatamente na relação que se estabelece entre uma lei da razão pura e a vontade do homem, que não é santa, mas pode ser boa, que Kant situa o imperativo categórico. Ora, a condição do homem de ser racional natural nos coloca o problema de pensarmos que lugar ocupa (ou ocuparia) no sistema da filosofia prática de Kant uma antropologia (moral) destituída da dimensão empírica do ser humano. Neste ensaio trata-se, pois, de analisar alguns elementos que Kant apresenta em seus textos, especialmente na Doutrina da Virtude, e de fazer notar sob que condições se pode compreender a antropologia moral kantiana. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 153 HEIDEGGER E FRIEDLÄNDER: UMA DISCUSSÃO SOBRE A TRADUÇÃO E INTERPRETAÇÃO DE ALÉTHEIA, NA FILOSOFIA PLATÔNICA Thayla Magally Gevehr Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE Mestrado em Filosofia [email protected] Orientador: Prof. Dr. Claudinei de Freitas da Silva Palavras-chave: Alétheia; Heidegger; Friedländer Pretendemos analisar a discussão de Friedländer com Heidegger sobre a interpretação e tradução do termo grego alétheia. Em A doutrina platônica da verdade, Heidegger traduz o termo por desvelamento, entendendo, a partir disso, que em Platão houve uma mudança no conceito de verdade. Platão teria abandonado a concepção originária de verdade como desvelamento, substituindo-a por adequação (homóiosis). Friedländer, em Platão: eidos, paideia, diálogos, afirma que a tradução de alétheia por desvelamento conduz a uma interpretação errônea da filosofia platônica; afirma, também, que na maioria das vezes, embora se possa encontrar duas exceções – uma em Homero e outra em Hesíodo – o termo é traduzido por verdade. Apresentaremos o teor dessa discussão e suas consequências na leitura da filosofia platônica. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 154 A CONSTRUÇÃO DO OUTRO: O ÁRABE EM FRANZ KAFKA Thiago Ossucci Santello [email protected] Orientador: Profª. Drª. Vania Sandeleia Vaz da Silva Palavras-chave: Poder; dominação; liberdade; alteridade; orientalismo Edward Wadie Said (1935-2003), no livro Orientalismo: a invenção do Oriente pelo Ocidente, publicado em 1978, mostrou que a criação discursiva do Oriente como o “Outro”, pelo Ocidente, servira aos interesses imperialistas das grandes potências europeias. Independente do acerto da tese de Said, a leitura de Franz Kafka (1883-1924) possibilita uma perspectiva interessante a respeito de como alguns europeus simbolizavam o árabe e levanta uma série de questões a respeito dos conceitos de alteridade, poder, dominação e liberdade. Isso fica evidente no conto “Chacais e Árabes”, mas aparece em outras passagens da obra kafkiana, que permitem repensar algumas das articulações entre os discursos do poder e alteridade – já que construir discursivamente o outro como não-humano ou menos humano fornece a justificativa teórica para a dominação de fato, e recoloca o problema da liberdade cuja garantia é política, como bem o demonstra a obra de Bento Espinosa (1632-1677). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 155 O HOMEM É UM ANIMAL QUE SORRI: O FENÔMENO DO RISO NA OBRA DE ARTE LITERÁRIA Toani Caroline Reinehr Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE Bolsista CAPES [email protected] Palavras-chave: Riso; carnavalização; ambivalência O riso é essencialmente humano, uma vez que, como aponta Aristóteles e o confirmam os estudos de Bergson, somente no homem ele se manifesta, o riso é, portanto, traço distintivo entre nós e os outros animais. Fenômeno perturbador e perigoso, o riso pode servir como mecanismo de coesão social, de manutenção de uma ordem, mas também pode, pela inversão, dessacralizar. Por um lado, apresenta-se como distração da vida, fazendo com que nos olvidemos momentaneamente de nossa finitude; por outro lado, rimos também da consciência de nossa morte indubitável, riso do homem que percebe que seu mundo é também representação, sendo ele próprio personagem: agora um, no instante seguinte, já transformado, sempre outro, e, ambivalente, sempre o mesmo (ele próprio, o eu, ele outro, o outro dele e o meu). Nosso objetivo, nesse trabalho, é tratar das questões elencadas, observando o riso na perspectiva de sua manifestação na obra de arte literária, ancorados nas reflexões de Henri Bergson, Georges Minois e Mikhail Bakhtin sobre o tema. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 156 A MANIPULAÇÃO DA ARTE PELO DISCURSO Ulisses Santo do Nascimento Universidade Federal do Recôncavo da Bahia - UFRB Bolsista Projeto PIBID Filosofia [email protected] Orientador: Prof. Ricardo Henrique Resende Andrade Palavras-chave: Retórica; arte; capitalismo O presente trabalho pretende discutir as relações entre a retórica (Chaim Perelman) e a instauração de preços nas obras de arte, destarte, o principal problema de pesquisa é refletir sobre as técnicas de convencimento e persuasão, apresentadas no tratado da argumentação de Perelman, e a partir daí, tentar estabelecer uma relação entre os valores das obras e o discurso que advoga a favor de cada uma delas. Pretendo dialogar com Walter Benjamin, a respeito da reprodução e a desvalorização da arte em meio aos avanços tecnológicos, desse modo, a principal reflexão apresentada no texto é a seguinte: Com quais critérios lógicos os críticos de arte/peritos/curadores, seguem para determinar o nível de qualidade de determinada obra. Sendo que o juízo de valor e o juízo de gosto é algo pessoal e intransferível. Por fim, o texto discute uma perspectiva contemporânea de Filosofia da Arte que segue o pensador Arthur Danto, refletindo sobre o fim da arte, e a grande explosão do capitalismo. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 157 A JUSTIFICAÇÃO COMO MEIO PARA LIBERDADE EM SANTO AGOSTINHO Valbert Luíz Cortarelli Júnior Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE [email protected] Palavras-chave: Justificação; liberdade; pecado Santo Agostinho, após sua conversão, escreve uma filosofia bem parecida com sua vida, de modo especial em O Espírito e a Letra. O processo de justificação se dá pelo fato do homem estar privado, parcialmente, da sua liberdade. Sendo assim, já escravo dos vícios, do pecado, o Espírito age nele, pois o dom da graça já nos é dada na concepção. O início do processo de justificação é a ação do Espírito, mas só continua por livre decisão individual. Se acaso o Espírito privasse o direito de escolha da pessoa, ainda que fosse para seu bem, a ação não seria boa por si, todavia, isso é egoísmo, que é próprio do pecador e não do Espírito. A decisão individual, a qual me refiro, é a tomada de consciência dos erros que estava cometendo, e a vontade de mudar. E assim, auxiliado pela graça, e observando as leis, inicialmente, vai sendo justificado também pelas ações. A liberdade é a última que se alcança nesse processo. A liberdade é entendida considerando todas as consequências, uma vez que as leis, que outrora eram a base do discernimento das ações, portanto, uma prisão, agora não são mais necessárias, em outras palavras, as leis são para os injustos. Qual a necessidade da graça no processo de justificação? Santo Agostinho diz: “Se o caminho da verdade permanecer oculto, de nada vale a liberdade a não ser para pecar” (1998, p.21). A graça é a condição e o meio para o bem, evidencia a liberdade que vai sendo adquirida, e sua perca se não escolher a justiça. Existem dois tipos de leis, e ambas auxiliam no processo: a lei das obras e a lei da fé. A primeira é que nos leva a pecar e incita a concupiscência. A outra, enquanto consciência ética do crente, é uma lei que o sujeito segue por vontade e não por obrigação, pois não é uma imposição, a fim de respeitar o Ser que ele crê sem ver, e a lei é justa, porque a graça não a deixou ser corrompida. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 158 EDUCAÇÃO BANCÁRIA E SUAS IMPLICAÇÕES NA SOCIEDADE: DEMOCRACIA O REFLEXO NA CONSTRUÇÃO DA LIBERDADE Valéria Mazzer Tortelli Universidade Estadual de Londrina - UEL [email protected] Orientador: Profª. Rosa de Lourdes Aguilar Verástegui Palavras-chave: Oprimido; educação democrática; educação libertária O objetivo desta pesquisa é apresentar o conceito de “educação bancária” em Paulo Freire, apontando as implicações que tem com a educação e a construção de uma sociedade democrática. Primeiramente, a noção de educação bancária e os conceitos de democracia e de liberdade, e também, as implicações políticas da educação tradicional sobre a democracia e a liberdade. Os conceitos de oprimido e de liberdade permeiam a obra de Paulo Freire e têm importância não só para a formação profissional, senão também para o exercício da docência, e os estudos filosóficos sobre a construção de uma sociedade democrática. A metodologia utilizada será uma revisão bibliográfica dos textos de Freire, no qual trata do oprimido. As principais referências são a Pedagogia do Oprimido, a Pedagogia da Esperança e a Pedagogia da Autonomia. Sendo que esta pesquisa não terá conclusões definitivas, pelo contrário, coloca como relevante a importância os conceitos de oprimido e liberdade no cotidiano da vida escolar, confrontando novos problemas. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 159 MALANDRO OU MARGINAL? BATALHA SIMBÓLICA EM CIDADE DE DEUS Vera Vilma Fernandes Leite Faculdade Assis Gurgacz [email protected] Palavras-chave: Literatura; dialética da malandragem; marginalidade; violência; batalha simbólica O objetivo desta comunicação é propor uma nova abordagem em relação à sociedade brasileira e, principalmente, à literatura brasileira contemporânea. Para isso, faremos uma reflexão acerca da obra Cidade de Deus (1997), do escritor Paulo Lins, que tem como temática a violência urbana e a marginalidade, contrapondo-a ao ensaio da Dialética da Malandragem formulada por Antônio Cândido, e que, por muito tempo, caracterizou – em alguns casos, ainda caracteriza – a autoimagem do povo brasileiro com a “dialética da marginalidade” proposta por João César Castro Rocha (2004), que busca superar a desigualdade mediante o confronto, a exposição da violência em lugar da passividade e conciliação. Para Castro Rocha, a “dialética da malandragem” – forma descontraída de lidar com a injustiça social do cotidiano – é substituída pela “dialética da marginalidade” – que representa a ordem conflituosa e que pressupõe a exposição da violência. A figura-destaque deixa de ser o malandro e passa a ser o marginal, o que foi excluído pela sociedade e, em vez de se deixar cooptar pelo sistema e transitar entre dois polos, assume a sua situação de excluído e, de objeto do discurso, passa a ser sujeito de seu próprio discurso. O enfrentamento desses dois modos de tentar compreender o país cria o que Castro Rocha denomina “batalha simbólica”, sendo evidenciada, neste trabalho, na tentativa de buscar elementos da narrativa de Cidade de Deus que contribuam com o modelo das relações sociais. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 160 AS FONTES DA FILOSOFIA DA HISTÓRIA DE WALTER BENJAMIN Vinícius Bogdan Orlandi Universidade Estadual de Maringá - UEM Orientador: Prof. Dr. Robespierre de Oliveira Palavras chave: Crítica ao progresso; Benjamin; filosofia da história; historiador; materialismo histórico O presente trabalho tem por objetivo apresentar a crítica da cultura feita por Walter Benjamin, exibindo sua concepção de filosofia da história, bem como suas fontes e influências (o romantismo alemão, o messianismo judeu e o marxismo). Fazer um apanhado do desenvolvimento das teses (Sobre o Conceito de História), e por fim, evidenciar o pensamento do filósofo alemão de que a ideia de cultura parece representar a perspectiva positivista da história, a qual incorpora características destrutivas em seu conceito, e este contém as “sementes da barbárie”, que dão a luz ao melancólico desencantamento da arte. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 161 A ABSTRAÇÃO DO VALOR DE TROCA EM O CAPITAL DE KARL MARX Viviane Bonfim Fernandes Universidade Federal da Bahia - UFBA Bolsista CAPES [email protected] Orientador Dr. Mauro Castelo Branco de Moura Palavras-chave: Marx; valor de troca; abstrato A exposição de Marx começa pelo conceito mais abstrato, mais geral, como o próprio Marx anunciou. No primeiro capítulo de sua obra Marx conceitua o valor da mercadoria, esse é o começo, o conceito de valor de troca, o que temos de mais abstrato, esse começo não é empírico, pois, como vimos, não se trata de uma descrição vinda da sensibilidade, pelo contrário, se trata de uma elaboração do pensamento a partir da realidade. Sendo o valor de troca da mercadoria uma construção social, em virtude de ser a média dos trabalhos no mercado, se constitui uma abstração, no sentido de que o trabalho concreto sozinho não explica o valor de troca, e essa foi a dificuldade encontrada pelos economistas clássicos, não conseguiram perceber a construção social do valor. O trabalho abstrato, ou seja, a média social dos trabalhos, passa a funcionar objetivamente como medida de valor. Deste modo, a abstração passa a ter uma existência real dada pelas próprias relações sociais. No Livro Primeiro do Capital Marx analisa de modo formal e abstrato as leis de funcionamento do sistema capitalista de produção a partir de seu aspecto mais puro e idealizado. Esse é o momento da exposição das contradições mais genéricas e potenciais, que não deixa de conter uma primeira totalização abstrata, que nos esclarece tanto sobre a forma mais elementar do capitalismo, a mercadoria; quanto sobre seu fim. Somente depois que os aspectos genéricos são compreendidos é que se torna possível avançar na exposição. Deste modo, em O Capital existem momentos mais abstratos e momentos mais determinados, é importante destacar que o movimento de exposição dialética, por mais que faça abstrações e generalizações, nunca perde de vista a totalidade, por estar sempre vinculado ao real com suas determinações, tendo-o como pressuposto e retornando a ele. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 162 A LINGUAGEM PARA A CONSTRUÇÃO DO ESTADO CIVIL EM HOBBES Yohana Silva Marques dos Santos Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS [email protected] Palavras-chave: Linguagem; abusos; razão De acordo com o pensamento de Hobbes no Leviatã, capítulo IV, o uso geral da linguagem consiste em passar de um discurso mental para um discurso verbal, isto é, passar todos os pensamentos para uma sequência de palavras. Sendo o discurso mental apenas o raciocínio com imagens, podendo facilmente esquecermos das muitas coisas que passam pela memória, é somente, então, através do discurso verbal que fora possível os homens registrarem seus pensamentos por meio de palavras e comunicar aos outros aquilo que estão pensando. Não sendo algo bem estruturado, o discurso verbal poderá se comprometer a abusos de linguagem. Seguindo o pensamento hobbesiano, o conhecimento verdadeiro, então, deve ser buscado através do estabelecimento de precisas significações, sabendo o que cada palavra significa para que, então, sejam usadas de forma adequada. Então, para o autor, o primeiro passo para o uso da razão será calcular as consequências de nomes, isto é, não somente conhecer as causas de um acontecimento: “mas começar por estas e seguir de uma consequência para a outra” (L, V, p. 40). Após a eliminação de significações gerais e definindo com exatidão aquilo que se quer dizer é que o homem usará adequadamente a razão, que o possibilitará chegar à lei natural (Lex Naturalis) que o privará de “fazer tudo o que possa destruir a sua vida” (L, XIV, p. 112), isto é, o uso da razão vai impor ao homem sua própria preservação. Desta forma, não é possível desconsiderar a relevância da linguagem para a política hobbesiana, pois é a partir da exata definição daquilo que se quer dizer que o homem usará a razão de forma adequada e seguirá o caminho para a sua paz e segurança, renunciando o seu direito a todas as coisas e mantendo-se em um contrato. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 163 ARTIGOS COMPLETOS* * A redação e a revisão finais dos textos são de responsabilidade dos próprios autores. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 164 INTUIÇÃO - UMA VIA AO CONHECIMENTO DO REAL: PROPOSTA BERGSONIANA AOS PROBLEMAS METODOLÓGICOS DA FILOSOFIA Adeilson Lobato Vilhena [email protected] Orientador: Prof. Dr. Celso Kraemer RESUMO: Bergson aponta a metafísica tradicional como a responsável pelas inconsistências do saber moderno, uma vez que este procede segundo o mesmo método intelectivo da metafísica tradicional. Tal método torna-se inadequado para abarcar a essência movente da realidade, porque, sendo da natureza da inteligência analisar o que se apresenta como estático e superficial, acaba atribuindo ao ser um princípio imutável. A proposta de Bergson de erigir a intuição como método para a filosofia é uma forma de possibilitar o conhecimento do real, caracterizado como movimento, duração e tempo real. Sua abordagem teórica é um convite a repensar a essência da filosofia em meio à tendência de nosso tempo de aceitar o que é prático, fenomênico e relativo. Palavras-chave: Bergson; intuição; conhecimento; real 1 Crítica aos problemas filosóficos. A cultura intelectual da época de Henri Bergson, século XIX e a primeira década do século XX, era fortemente influenciada pelo determinismo científico, cujo ideal era estabelecer a ordem positivista a toda área do saber, inclusive às ciências humanas. Dizemos que em tal época, diante da palavra ciência, curvavam-se irreverentes os espíritos mais fortes. Bergson, envolvido pela mentalidade positivista, aceita o ideal de pôr a filosofia no mesmo plano que as ciências positivas, mas percebe que com tal mentalidade, se ignoraria o que ele entende por real e a liberdade em sentido ontológico. Afasta-se então dela, e busca meios de dar precisão à imprecisão que até então era sustentada na filosofia. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 165 O problema que Bergson vê se concentra justamente no procedimento metodológico da análise, que por si mesmo é um método falho e inconsistente. Diz ele: “Analisar consiste portanto em exprimir uma coisa em função daquilo que não é ela” (BERGSON, 2006 a, p. 187). 1.1. A metafísica tradicional Ao olhar para a metafísica tradicional, Bergson percebe que ela é a veia que vem alimentando as ilusões dos sistemas filosóficos e científicos de sua época, pois tais sistemas se equivocaram ao promoverem conhecimentos fundados na tendência natural da inteligência, no que diz respeito em agir sobre aquilo que é prático e estável, deixando despercebido o que Bergson concebe como real; a mobilidade. Diz ele: “Mas, preocupada antes de tudo com necessidade da ação, a inteligência, como os sentidos, limita-se a tomar vez por outra, sobre o transformar-se da matéria, ângulos instantâneos e, por isso mesmo, imóveis” (BERGSON, 1979, p. 239). Bergson caracteriza a inteligência como uma faculdade voltada essencialmente para a matéria, e o fato da metafísica tradicional proceder pelo método intelectivo, estará criando um abismo entre suas certezas e a realidade em sua essência. Para ele “[...] a filosofia antiga procede como faz a inteligência. Ela se instala pois no imutável, e tomará apenas ideias” (Ibid., p. 274). No parecer de Bergson, a metafísica em questão, em vez de adentrar no real, passa apenas a dar representação intelectual dele. Assim afirma: Foi assim que a metafísica foi levada a procurar a realidade das coisas acima do tempo, para além daquilo que se move e que muda, fora, por conseguinte, daquilo que nossos sentidos e nossa consciência percebem. Desde então, a metafísica já não podia ser mais que um arranjo de conceitos mais ou menos artificial, uma construção hipotética (BERGSON, 2006 a, p. 10). O pecado da tradição consiste, portanto, em não conseguir se desvencilhar dos hábitos intelectuais, ao analisar o devir, paralisa-o, crendo que ele é ilusório. Ao longo do capítulo quatro de L’Évolution Créatrice, Bergson focaliza sua crítica aos problemas metodológicos da filosofia tradicional, ao que concebeu como a ‘instauração platônica ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 166 da metafísica’, fazendo-nos entender que, desde Platão, a filosofia se encapuzou de ilusões, tal erro foi se alastrando em todas as áreas do conhecimento, como que uma reação em cadeia. Vejamos: “Mas, a partir do momento em que se ponham as ideias imutáveis no fundo da realidade móvel, uma física inteira, uma cosmologia inteira, até mesmo uma teologia inteira decorrerão, necessariamente” (BERGSON, 1979, p. 273). Nisso, somos herdeiros da filosofia que vê na estabilidade o real, utilizando-se do enfoque inteligível, capta somente o que é imutável. 1.2. O relativismo kantiano Em Introdução à Metafísica, Bergson se refere a Kant da seguinte maneira: “Mas toda a Crítica da Razão Pura repousa também sobre o postulado de que nosso entendimento é incapaz de qualquer outra coisa a não ser platonizar, isto é, modelar toda experiência possível em moldes preexistentes” (BERGSON, 2005, p.57). Com Immanuel Kant, a ilusão filosófica persiste, pois o caminho metodológico tomado pelo pensador alemão é de inspiração platônica. Segundo ele, conhecemos o que está no espaço e tempo: Kant havia estabelecido, dizia-se, que nosso pensamento se exerce sobre uma matéria espalhada antecipadamente no Espaço e no Tempo e desse modo preparada especialmente para o homem: a “coisa em si” escapanos; seria preciso, para atingi-la, uma faculdade intuitiva que não possuímos (BERGSON, 2006 a, p.24). Kant teria chego ao conhecimento real, se não limitasse a capacidade do entendimento humano a aspectos intelectivos, rejeitando, assim, o meio para atingi-lo. Pelo menos num ponto notava Bergson, sublinhando a experiência fundamental de Maine de Biran, era possível ao espírito humano “atingir o absoluto” e fazer dele “objeto das suas especulações”, atingir a realidade “em si” e não só os fenômenos, “essa realidade que Kant declarava inacessível às nossas especulações” (MARTINS, 1946, p. 14. Grifo do autor). Para Bergson, o que Kant rejeita é sim possível, pois o que faltou ao autor da Crítica foi um pouco de esforço de consciência, de outra forma teria chegado ao absoluto. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 167 2. O procedimento metodológico científico O que Bergson identifica como inconsistência da metafísica tradicional é florescido nas ciências particulares, por estas se encontrarem arraigadas aos mesmos parâmetros metodológicos. A ciência moderna, como a ciência antiga, procede segundo o método cinematográfico. Ela não pode agir de outro modo; toda ciência está submissa a essa lei. É da essência da ciência, com efeito, manipular signos que ela põe em lugar dos próprios objetos (BERGSON, 1979, p. 284). Vê Bergson que o conhecimento moderno não escapou da exigência da inteligência de manipular as evidências sensíveis e estacionárias da realidade, caracterizando-se com o teor matemático, ao tentar abordar questões essenciais que não se enquadram no âmbito da exatidão, tais como os elementos que compõem o real; movimento, tempo, duração, acaba demonstrando incoerências e visão distorcida do real. “O que equivale a dizer que o tempo real, considerado como um fluxo ou, em outras palavras, como a própria mobilidade do ser, escapa no caso ao domínio do conhecimento científico” (Ibid., p. 290), diz Bergson. O caminho metodológico da ciência é inteiramente intelectivo e, os sistemas que adotaram a inteligência como propulsora da verdade, mostraram apenas fragmentos do real. Rossetti nos diz que: “A inteligência tem uma visão espacial da realidade e, dessa forma, a percebe como descontínua e imóvel, percepção que a impede de ver o todo e o movimento essencial da realidade [...]” (ROSSETTI, 2004, p. 30, grifo do autor). No Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, Bergson aponta os problemas das psicologias associacionista e experimental. Essas erram em tentar quantificar os dados da consciência em vez de vivê-los. Em tais ciências, os dados da consciência, sentimentos, sensações afetivas e representativas, são tomados como grandezas extensivas. Isso segundo Bergson, é tido como um grande equívoco, pois uma vez feito da consciência objeto de análise da psicofísica, os dados internos tornam-se objetivados, passíveis de aumento e diminuição, o que implica em uma espacialização da consciência. Em sua opinião, os estados da consciência devem ser vividos e não mensurados. “[...] quanto mais se desce nas profundezas da consciência, menos se tem o direito de tratar os fatos psicológicos como coisas que se justapõem” (BERGSON, 1988, p. 12). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 168 O evolucionismo de Spencer é outro para onde se voltam as críticas de Bergson, para nosso autor, aquela teoria se limita em “[...] tirar o decalque das coisas e modelar-se pelo detalhe dos fatos” (BERGSON, 2006 a, p. 04). Ainda acrescenta: “Digamos apenas que o artifício comum do método de Spencer consiste em reconstituir a evolução com fragmentos do evoluído” (BERGSON, 1979, p. 313, grifo do autor).Desse modo, não haveria transformismo, tão pouco evolução. Eis a ambiguidade de sua teoria, pois concebe a vida como uma combinação físico-química, dito de outro modo, o elemento determinante da vida já parte previamente de uma determinação objetiva e externa, de um elemento físico. 3. A intuição como método A intuição na proposta de Bergson é a chave que a filosofia poderá usar para adentrar no real. É o método que se opõe à metodologia intelectiva. Diz Bergson: “Desse modo, nós nos reinstalaríamos no fluxo da vida interior, do qual a filosofia com muita frequência não nos parecia reter mais que o congelamento superficial” (BERGSON, 2006 a, p. 22). Tamanha é a necessidade de Bergson apresentar um novo método para a filosofia, visto que a tradição filosófica comprimida pelos hábitos da inteligência, negligenciava o que realmente compõe a realidade e abstraía somente o superficial. O método que propõe Bergson tem como objetivo abarcar a totalidade de uma forma clara, pois segundo ele “a precisão não podia ser obtida, a nosso ver, por nenhum outro método” (Ibid., p. 25). Assim ele a caracteriza como: “o ato pelo qual nosso espírito conhece perfeitamente a verdade” (Ibid., p. 130). Pelo método intuitivo, Bergson declara uma nova metafísica que se propõe abranger um conhecimento puro da realidade em si, pois intuir é conhecer e afirmar como as coisas realmente são, unindo-se a elas de tal forma que se torne parte dela, pois “Conhecer é unir-se a uma coisa e, em certo sentido, tornar-se a própria coisa; é coincidir o conhecimento do objeto com o conhecimento de si mesmo” (SAYEGH, 1998, p. 26, grifo do autor). Dizemos, portanto, que no método intuitivo nos possibilita uma visão ampla da realidade, o que não se exclui a realidade externa, como a vida em seus aspectos imanentes, mas, além disso, e de forma bem pertinente, podemos conhecer nosso próprio eu, nosso estado de alma, nosso espírito, nisso tornamos claro a expressão que a intuição é um conhecimento do espírito pelo ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 169 próprio espírito, isto é, conhecemos nossa origem, história e tempo, nossa interioridade, portanto, a afirmação do eu sou, torna-se clara e verdadeira, uma vez que é alcançada pela intuição supra-sensível. O alcance da intuição consiste em desvencilhar a consciência dos hábitos naturais da inteligência, ou seja, transcender seu hábito prático de agir sobre o estático. É importante esclarecer, que o transcender, aqui, não significa o desligamento da vida em sua imanência, pelo contrário, consiste em uma maior inserção nela. Nos explicita Bergson: Mas suponham que, ao invés de querermos nos elevar acima de nossa percepção das coisas, nela nos afundássemos para cavá-la e alargá-la. Suponhamos que nela inseríssemos nossa vontade e que essa vontade, dilatando-se, dilatasse nossa visão das coisas. Obteríamos desta vez uma filosofia na qual não se sacrificaria nada dos dados dos sentidos e da consciência: nenhuma qualidade, nenhum aspecto do real se substituiria ao resto sobre o pretexto de explicá-lo (BERGSON, 2006 a, p. 154). A riqueza que vemos na filosofia de Bergson é justamente a possibilidade da experiência com o real, ou seja, conhecer a vida em sua essência pelo uso da intuição. Dessa forma, estaria ele erguendo uma metafísica de ocupação ontológica por excelência. 4. O conhecimento real O tripé ontológico que sustenta a realidade, na perspectiva de Bergson, é composto de movimento, tempo e duração. O Movimento é apresentado como uma realidade intrínseca à vitalidade, isto é, a vida em sua essência é movente, pois tudo passou a existir a partir daquilo que ele chama em L’Évolution Créatrice de impulso original da vida, o Elán vital, fluidez completa O movimento é ontologicamente o que rege todo o existir. É nele e a partir dele, que se efetiva o processo vital, “o movimento, qualquer que seja sua natureza íntima, torna-se uma incontestável realidade. […] Se movimento existe, como uma simples relação: trata-se de um absoluto” (BERGSON, 1990, p. 159, 161). Contrapondo as afirmações de que a essência do real ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 170 é imutável, Bergson apresenta sua crítica à metafísica platônica, afirmando que o movimento é o que rege a vitalidade. Rossetti nos diz que A razão fundamental de tal crítica é que, para Bergson, Platão propõe como fundamento da movente realidade ideias imutáveis e eternas, assim concebe um princípio imutável para a realidade. O que é um equívoco para a visão bergsoniana da realidade, a qual, se verdadeiramente intuída em sua essência, é puro movimento que se move a partir de si mesmo (ROSSETTI, 2004, p. 52). Fechar os olhos para a mutabilidade que nos envolve, é dar ouvidos aos apelos evasivos da inteligência que, por sua natureza, volta sua atenção para o fenômeno da estaticidade. Uma filosofia que se dedique na busca da verdade é fundamental e necessário que afaste o véu que esconde o real, para assim, se pôr no burburinho do movimento, pois “a realidade, intuída em sua essência, se mostra como puro movimento; puro porque quando intuímos, nosso pensamento se move junto com o ser” (Ibid., p. 54). A duração é uma característica intrínseca do real, ou seja, do movimento. Em outras palavras, entende-se que a vida, impulsionada pelo movimento primário, avança em um ritmo de criação e transformação. O que deve ser destacado é que o ato de criar é permeado pela capacidade de mudar, pois o novo só se torna possível mediante a mudança, porém, ao se falar de mudança, não necessariamente se exclui características passadas, pelo contrário, elas conservam-se, ou melhor, atualizam-se no presente. Para ser mais sucinto, dizemos que o movimento criador é em si memória, pois mesmo enveredando por caminhos e desdobramentos múltiplos, ao criar uma nova vida, deixa nela alguns códigos genéticos que foram retidos dos seres anteriores. O itinerário que percorremos no tempo está juncado dos resíduos de tudo o que começávamos a ser, de tudo o que poderíamos ter vindo a ser. Mas a natureza que dispõe de um número incalculável de vias, de modo algum se restringe a semelhantes sacrifícios. Ela conserva as diversas tendências que bifurcaram ao crescer. Ela cria, com elas, séries divergentes de espécies que evoluirão distintamente (BERGSON, 1979, p. 95). A vida como criação, em si é um prolongamento do ponto inicial, uma síntese das diversas formas de vidas perpassadas pelo movimento criador, uma duração genética. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia Utilizando-se da 171 visão do espírito, teríamos consciência de que o passado se atualiza no presente e estica-se ao futuro. A duração torna-se consciente a partir do uso da intuição filosófica, pois “pensar intuitivamente é pensar em duração” (BERGSON, 2006 a. p. 32). A condição para a duração é a consciência, pois essa última percebe o passado e torna-o presente, de outro modo, diz Bergson “não se pode falar de uma realidade que dura sem introduzir nela uma consciência” (BERGSON, 2006 b, p. 56). Tal consciência, necessariamente tem que ser intuitiva, pois é ela que nos põe em contato com a duração, ela é memória. Assim define o filósofo francês: Ela é memória, mas não memória pessoal, exterior àquilo que ela retém, distinta de um passado cuja conservação ela garantiria; é uma memória interior à própria mudança, memória que prolonga o antes no depois e os impede de serem puros instantâneos que aparecem e desaparecem num presente que renasceria incessantemente (BERGSON, 2006 b, p. 51). A duração pura é uma qualidade de nossa consciência. “A duração pura apresenta-nos uma sucessão puramente interna, sem exterioridade” (DELEUZE, 1999, p. 27). Não há, portanto, nessa duração, influência de um espaço ou de um tempo externo, mecanizado. Ela é um estado de consciência límpida, percepcionada a partir de si mesma, por isso a certeza de se afirmar como conhecimento real. Se o movimento é real, logo deve haver um tempo real, cujo papel é fazer a passagem de um estado a outro, ou seja, o tempo é o responsável pela mudança, é a ponte de atualização do que era no que é. Assim, o tempo torna-se uma realidade ontológica. Bergson põe em cheque o conceito de tempo que perdurou na teoria de Spencer, isto é, um tempo justaposto, dividido em partes, por essa concepção, o tempo pode ser mensurado, pois é separado por espaços que impedem a continuidade do movimento, tornando passado, presente e futuro distantes entre si. A concepção de tempo que sustenta Bergson não possui essas características, afirma ele: “Sua essência consistindo em passar, nenhuma de suas partes está mais aí quando outra se apresenta. A superposição de uma parte à outra com vista a mensuração é inconcebível” (BERGSON, 2006a, p. 04). O tempo real que se refere Bergson é o tempo da consciência, o qual se diferencia do tempo mecanicista, isolado e divisível. O tempo freado para ser mensurado não possui duração, ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 172 mas sim instantes, pois uma vez que é superposto uma parte à outra, quebra-se com sua extensão única. A mensuração está voltada para o imóvel em um determinado espaço. Bergson observa que essa é uma problemática que perpassa a história da filosofia: Ao longo de toda a história da filosofia, tempo e espaço são colocados no mesmo plano e traçados como coisas do mesmo gênero. Estuda-se então o espaço, determina-se sua natureza e função, e depois se transportam para o tempo as conclusões obtidas (BERGSON, 2006a, p. 07). Procedendo pelo que ordena a inteligência, as ciências se bastam com a análise do espaço. O erro, vê Bergson, se dá quando elas têm a pretensão de tratar com a mesma visão da matéria o que é espiritual, isto é, reveste os dados da consciência de uma roupagem que não lhe é própria, elimina sua real essência, o que é qualidade, torna-se quantidade; o móbil torna-se estático, a duração torna-se instante, a sucessão dá lugar à justaposição. A proposta de Henri Bergson é de devolver à realidade as características que lhe são próprias, e é mediante ao uso do método intuitivo que isso é possível. Referências Bibliográficas: BERGSON, Henri. A evolução criadora. Trad. Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. ___________. Cartas, conferências e outros escritos. Trad. Franklin L. e Silva. São Paulo: Abril Cultural, 2005. (Os pensadores). ___________. Duração e simultaneidade. Trad. Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2006 b. ___________. Ensaio sobre os dados imediatos da consciência. Trad. João S. Gama. Lisboa: Edições 70, 1988. ___________. Matéria e Memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1990. ___________. O Pensamento e o movente: ensaios e conferências. Trad. Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2006 a. DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. Trad. Luiz B.L. Orlandi. São Paulo: 34, 1999. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 173 MARTINS, Diamantino. Bergson: a intuição como método na metafísica. Porto: Tavares Martins, 1946. ROSSETTI, Regina. Movimento e totalidade em Bergson: a essência imanente da realidade movente. São Paulo: Editora da universidade de São Paulo, 2004. (ensaio da cultura; 25). SAYEGH, Astrid. Bergson: o método intuitivo: uma abordagem positiva do espírito. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 1998. (Teses) ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 174 SCHOPENHAUER E A HIERARQUIA DAS BELAS ARTES Ademir Menin [email protected] RESUMO: A doutrina estética de Schopenhauer vê nas belas artes, mas especialmente na música, uma via de fuga para a problemática existencial, pois o ser humano é continuamente oprimido pelo peso dos conceitos, da representação. Na tentativa de encontrar na contemplação artística uma boa maneira de aliviar a dor ontológica, Schopenhauer expõe, nos dois primeiros livros da sua obra filosófica principal, ou seja, O mundo como vontade e representação, a sua visão de mundo, a qual é muito relacionada à cosmovisão platônica. No terceiro livro da mesma obra, o filósofo apresenta a sua peculiar visão estética, configurando uma hierarquia das artes, sendo a música a maior de todas e, portanto, a mais apta a levar o ser humano para uma dimensão espiritual, ou seja, para além dos conceitos. Palavras-chave: Schopenhauer; vontade; representação; arte; música Arthur Schopenhauer(1788-1860), na sua obra filosófica principal, apresenta a sua visão cosmológica. Para ele, o mundo é a nossa representação, ou seja, é aquilo que nós representamos como tal através dos nossos conceitos, com base naquilo que recebemos através dos nossos sentidos. Na verdade, para o filósofo de Danzig, o mundo é uma força cega e simplesmente existe como tal, independentemente dos conceitos. A mente humana não faz outra coisa senão uma espécie de projeção daquilo que quer que o mundo seja. Essa tese, “o mundo é a minha representação” (I, 1)4, aparece logo no início da obra principal de Schopenhauer, como se fosse um resumo de toda a sua filosofia. Baseado nessa simples e curta frase, ele pretende desenrolar todo o seu pensamento e procura demonstrar a sua aversão em relação ao mundo representativo como um todo. O filósofo é mais propenso a uma A obra de Schopenhauer, O mundo como vontade e representação, é dividida em dois volumes, os quais são indicados em números romanos (I e II). Ao interno de cada volume, existe uma divisão numérica crescente em números arábicos. Esse sistema facilita o estudo e a indicação do preciso trecho da obra a que se faz referimento. Usaremos esse sistema também nessa comunicação, indicando entre parênteses esses trechos do texto quando necessário, inclusive nas citações. 4 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 175 ideia de mundo como sendo uma força bruta, uma força cega e, portanto, procura uma saída para libertar o ser humano das amarras dos conceitos e da vida segundo a representação intelectiva. São os conceitos os responsáveis por grande parte do sofrimento humano e fazem o mesmo viver angustiado e aniquilado por esse peso que incumbe a todo instante; tem-se a impressão que Schopenhauer considere a força da representação uma espécie de “pecado original” que subjuga o ser humano, tirando-lhe a paz de espírito. Apesar de partir dos pressupostos da filosofia kantiana, Schopenhauer tem um modo próprio de ver a realidade, pois coloca por um lado o mundo condicionado pelas categorias da filosofia de Kant, ou seja, espaço e tempo e princípio de causalidade; e por outro lado, a consciência subjetiva que faz com que o mundo exista assim como o representamos. Portanto, todo o esforço filosófico de Schopenhauer se concentra na busca de uma solução ao problema do ser humano, o qual deseja, satisfaz os próprios desejos e depois se entedia, criando um circulo vicioso, do qual não consegue se livrar. A visão pessimista do filósofo em relação ao mundo é exatamente essa: o mundo como representação cria uma barreira ao ser humano, como se fosse uma prisão ontológica onde ele se encontra incapaz de agir espontaneamente. Portanto, é necessário encontrar um modo de objetivar a vontade, cancelando o poder da representação, ao menos em pequenos intervalos de tempo. A representação seria toda a carga de preocupações que fazem a vida tornar-se um peso; d’outra parte, a vontade é aquele viver despreocupado e sem objetivo aparente, como acontece no cosmos, entendido como situação natural. A representação é, em Schopenhauer, o mundo apolíneo, ou seja, dominado pelos conceitos e pela ordem; mais precisamente, é o mundo da razão. A vontade é o domínio de Dionísio, onde tudo acontece com mais naturalidade e despreocupação: é o reino das artes. Os momentos de prazer na vida do ser humano são somente momentos fugazes em que o ser se livra da dor, a qual é uma nota característica da vida humana. Daí parte a busca para poder encontrar caminhos que libertem o ser dessa dor profunda que o acomete. Esses caminhos são particularmente relacionados com a estética. O ser humano é capaz de elevar-se além desse mundo e alcançar um estado de espírito tal que consiga eliminar a dor ontológica, deixando-se levar pela embriaguez dionisíaca proporcionada pela contemplação artística. A obra de Schopenhauer, O mundo como vontade e representação, é composta de quatro livros. Porém se deve notar que essa obra teve duas edições: uma em 1819 e uma segunda edição em 1844. Essa segunda edição foi acrescida de suplementos que o autor achou por bem fazer para ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 176 explicar melhor algumas passagens da sua filosofia. A estrutura da obra, então, em cada edição é essa: os dois primeiros livros tratam da visão cosmológica do filósofo; o terceiro livro discorre sobre o problema estético, ou seja, a via artística como modo de libertar o ser humano das amarras desse mundo, com os seus conceitos e sofrimentos; o quarto livro, enfim, trata de outra via de fuga para o ser humano, isto é, a via ética ou ascética. A via estética do pensamento schopenhaueriano Concentremo-nos agora somente sobre a via estética, ou seja, aquilo que Schopenhauer apontou na sua obra como sendo a primeira possível via de fuga dos sofrimentos desse mundo, na tentativa de aliviar o ser humano do peso que o oprime. No terceiro livro de O mundo como vontade e representação, Schopenhauer faz uma interessante exposição sobre as artes em geral. Apesar da peculiar cosmovisão que tem, a sua descrição e organização das artes segundo uma hierarquia bem definida, é algo para ter-se em conta como sendo de grande valor, vista a sua complexidade (I, 301-316). As artes em Schopenhauer são vistas como um complexo de manifestações humanas e uma forma de conhecimento unitária. Mas organizando as artes segundo uma escala de valores, a tendência do filósofo de Danzig é aquela de construir uma escala das artes, condenando algumas a ocuparem um lugar mais baixo nessa escala. A expressão artística, a qual é uma atividade exclusiva do ser humano, é caracterizada por afastar-se o mais possível dos conceitos. Nas artes prevalece a intuição imediata da vontade, em graus diferentes, obviamente. Inclusive, em Schopenhauer, a filosofia não é nada mais que a tentativa de traduzir em conceitos o conhecimento adquirido através da contemplação artística. Segundo o estudioso italiano de Schopenhauer, G. Invernizzi5, é exatamente a teoria estética aquela que explica a filosofia do nosso pensador, o qual possui um vasto e indiscutível conhecimento no que diz respeito à arte em geral. Na tentativa de expor a sua teoria estética, o autor diz que existe uma verdadeira hierarquia ou escala das artes em Schopenhauer. Segundo essa escala, a arquitetura representa o grau mais 5 INVERNIZZI, G.Invito al pensiero di Schopenhauer, p. 173. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 177 baixo, enquanto que a música ocupa o grau mais alto. D. Jacquette6 expõe com clareza e resumidamente essa escala das artes, classificando-as em ordem ascendente desse modo: arquitetura, escultura, pintura, literatura, poesia e música. Segundo essa escala, as artes figurativas, como a arquitetura, a pintura e a escultura, assumem uma posição inferior; a poesia e a música assumem uma posição de maior importância. Quanto mais livre dos conceitos e do mundo fenomênico, mais a arte consegue exprimir-se como objetivação da vontade. Schopenhauer tende a confundir o peso da matéria com o mundo físico, fenomênico; o maior exemplo dessa tese é exatamente a arquitetura, pois o material usado por essa arte é caracterizado pelo peso e pela rigidez da matéria. Por outro lado, a leveza da matéria é associada ao mundo espiritual, como é o caso da música, a qual é formada de sons, os quais são constituídos de matéria leve e não pesada, como no caso da arquitetura (II, 511). Falando das artes, desde a arquitetura até a música, Schopenhauer se expressa nesses termos: Após termos considerado até aqui todas as belas artes na generalidade adequada ao nosso ponto de vista, começando com a bela arquitetura, cujo fim enquanto tal é clarear a objetivação da Vontade no grau mais baixo de sua visibilidade em que ela se mostra como esforço regular, abafado e sem conhecimento da massa, já manifestando autodiscórdia e luta entre gravidade e rigidez; - e fechando a nossa consideração com a tragédia, a qual, no grau mais elevado de objetivação da Vontade, traz-nos diante dos olhos justamente aquele seu conflito consigo mesma, em terrível magnitude e distinção; após tudo isso, ia dizer, notamos que uma bela arte permaneceu excluída de nossa consideração e tinha de permanecê-lo, visto que, no encadeamento sistemático de nossa exposição, não havia lugar apropriado para ela. Trata-se da música. Esta se encontra por inteiro separada de todas as demais artes. Conhecemos nela não a cópia, a repetição no mundo de alguma Ideia dos seres; no entanto é uma arte tão elevada e majestosa, faz efeito tão poderosamente sobre o mais íntimo do homem, é aí tão inteira e profundamente compreendida por ela, como se fora uma linguagem universal, cuja distinção ultrapassa até mesmo a do mundo intuitivo – que decerto temos de procurar nela mais do que um exercitium arithmeticae occultum nescientis se numerare animi, na qualificação acertada de Leibniz, apesar de ter considerado só a sua significação imediata e exterior, a sua casca; pois se a música não fosse algo mais, a satisfação por ela proporcionada teria de ser semelhante à que sentimos na correta resolução de uma soma aritmética e não poderia ser a alegria interior com a qual o íntimo mais profundo de nosso ser é trazido à linguagem. (I, 301-302). 6 JACQUETTE, D., The philosophy of Schopemhauer, p. 145-146. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 178 O fato de que algumas belas-artes sejam de caráter mais espiritual que outras, (ou seja, não têm tanta necessidade de um suporte material como as outras), faz com que essas artes sejam mais ligadas ao tempo e menos necessitadas do espaço. Nesse sentido, as duas categorias a priori de Kant, espaço e tempo, são amplamente propostas no discurso sobre as artes por Schopenhauer: o espaço é mais necessário às artes visuais, como a pintura e a escultura, mesmo se estas não excluem o tempo, no entanto que o tempo é mais relacionado às artes não visuais, como no caso da narrativa e da música. Schopenhauer mesmo aponta a necessidade de um tempo rigorosamente preordenado no caso da experiência artística de dramas musicais e sinfonias(I, 134). Nesse caso então, a música, não sendo uma arte visual, não necessita do espaço da mesma forma que acontece com as outras artes; por outro lado, as artes figurativas, as quais são estreitamente ligadas ao espaço, tem menos necessidade do tempo para serem experimentadas esteticamente. Como Schopenhauer concorda com a concepção platônica de mundo, ao menos em parte, podemos dizer que ele se refere às artes exatamente com essa concepção, através da qual as Ideias estão em algum lugar (no Hiperurânio), mas não neste mundo fenomênico, o qual é necessariamente influenciado pelas categorias a priori de Kant, ou seja, o tempo e o espaço. A ideia, a qual não entra no princípio de razão, vai além do mundo dos fenômenos, além do véu de Maia. A arte é a responsável pela realização do passo que constitui um grande salto de qualidade em relação aos animais e a todo o mundo fenomênico em geral, ou seja, faz o homem ultrapassar o limiar do puramente sensível. Tem-se a impressão que Schopenhauer não faça nada mais que expor em modo diferente a teoria platônica segundo a qual a arte é mimese, ou seja, imitação dos objetos do mundo sensível, os quais são imitação, eles mesmos, do mundo das Ideias, de forma que as artes se distanciam ainda mais da verdade. Desse modo, as artes devem ser bandidas do estado ideal, conforme a teoria de Platão na República7. Dessa concepção de fundo parece provir a escala das artes proposta por Schopenhauer, o qual não despreza abertamente as artes em geral como o faz Platão, mas se adverte uma certa tendência a privilegiar umas em detrimento de outras. Nesse caso, a música é considerada uma arte superior às outras. 7 REALE, G. Platone: tutti gli scritti. (República, Livro X). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 179 Na contemplação estética, segundo Schopenhauer, acontece algo que suspende, nem que seja só por um momento, o ser das amarras da cadeia causal espaço-temporal. Como diz o comentador de Schopenhauer, C. Janaway8, é como se acontecesse uma celebração do “sábado” no meio da penosa servidão da vontade; é um momento de distração, no qual são colocados em disparte os conceitos. Apesar de que, na visão de Schopenhauer, só a ascese pode anular o domínio da vontade sobre o ser humano, libertando-o do paradoxo criado entre os extremos do desejo/dor e do tédio, as artes constituem um lenitivo para a vida humana, transportando o indivíduo, principalmente o apreciador de música, em direção a uma dimensão mais leve e despreocupada, diferente daquela dominada pelos conceitos. Falando sobre a arte em geral, Schopenhauer diz: “A roda do tempo pára. As relações desaparecem. Apenas o essencial, a Ideia, é objeto da arte. – Podemos, por conseguinte, definir a arte Como o modo de consideração das coisas independente do princípio de razão, oposto justamente à consideração que o segue, que é o caminho da experiência e da ciência. Este último tipo de consideração é comparável a uma linha infinita que corre horizontalmente; o primeiro, por sua vez, a uma linha vertical que corta a outra linha num ponto qualquer. O modo de consideração que segue o princípio de razão é o racional, único que vale e ajuda na vida prática e na ciência; já o modo que prescinde do conteúdo desse princípio é o genial, o único que vale e ajuda na arte. O primeiro é o modo de consideração de Aristóteles, o segundo é no todo o de Platão. O primeiro é comparável a uma tempestade violenta que desaba sem princípio e fim, a tudo verga, movimenta e arrasta; o segundo, ao calmo raio de sol que corta o caminho da tempestade, totalmente intocado por ela. O primeiro é comparável às gotas inumeráveis de uma cascata que se movimentam violentamente e que, sempre mudando, não se detêm um único momento; o segundo, a um calmo e sereno arco-íris que paira sobre esse tumulto. – Apenas pela pura contemplação (antes descrita) a dissolver-nos completamente no objeto é que as Ideias são apreendidas. A essência do GÊNIO consiste justamente na capacidade preponderante para tal contemplação (I, 218). Tendo presente este trecho da obra principal de Schopenhauer, não se pode não notar uma certa dificuldade na compreensão sobre o tipo de tempo a que se refere o filósofo. Visto que a música observa um andamento de tempo que se pode dizer matematicamente exato, parece que quando ele se refere ao tempo em música e nas artes em geral, não se refere ao tempo mecânico, 8JANAWAY, C. Self and world in Schopenhauer’s philosophy, p. 276-277. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 180 mas ao tempo assim chamado “psicológico”. Na contemplação artística, portanto, é deixado de lado o cronômetro para dar espaço a uma dimensão na qual o sujeito não se dá conta do transcorrer do próprio tempo. Só assim podemos compreender e interpretar o que o pensador quer dizer com o que ele chama de “bloqueio da roda do tempo”. Conclusão Com essa breve exposição em relação à hierarquia das artes em Schopenhauer, se pode deduzir que o critério de classificação das mesmas deve ser buscado dentro da própria experiência estética, isto é, quanto mais a arte é ligada à materialidade, tanto mais permanece ligada também ao mundo da representação e dos conceitos; ao invés, quanto mais a arte se liberta dos conceitos, tanto mais leva o ser humano em direção ao mundo da vontade. Como exemplo típico de Schopenhauer para o primeiro caso, se pode indicar a arquitetura; o segundo caso encontra plena conformação na música, a qual é o mais alto grau de objetivação da vontade: a música, dentre todas as artes, é aquela que melhor consegue desvelar alguma coisa desse mundo arcano que é a vontade. Mais uma vez precisamos notar que o nosso filósofo considera a matéria dotada de peso e rigidez, uma pedra por exemplo, como alguma coisa de material; a matéria dotada de leveza, como os sons, é considerada menos ligada à materialidade e, portanto mais espiritual. Essa é uma concepção que destoa com a ciência acústica moderna, a qual considera o som como sendo um fenômeno puramente físico. O fato é que essa escala das artes pode ser considerada como tal só dentro do sistema filosófico schopenhaueriano, o qual tem como objetivo encontrar uma via de fuga da opressão da vontade sobre o ser humano. A doutrina estética schopenhaeriana procura alcançar esse objetivo, ou seja, mostrar como a arte pode livrar o ser humano da trama do mundo da representação, dominado pela causalidade, para inseri-lo em uma dimensão que vai além das aparências. Neste sentido, a vontade, ou seja, a força cega da natureza, se torna conhecível através da via estética, isto é, da contemplação do belo. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 181 Referências Bibliográficas: INVERNIZZI, G. Invito al pensiero di Schopenhauer. Milano: Mursia, 1995. JACQUETTE, D. The philosophy of Schopenhauer. Chesman: Acumen, 2005. JANAWAY, C. Self and world in Schopenhauer’s philosophy. New York: Oxford University Press, 1989. NUSSBAUM, M. C. L’intelligenza delle emozioni. Bologna: Il Mulino, 2004. REALE, G. Platone: tutti gli scritti. Milano: Bompiani, 2008. SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e representação. São Paulo: Unesp, 2000.(Trad.: Jair Barboza) ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 182 A CONSTITUIÇÃO DA NATUREZA HUMANA EM DAVID HUME: DELINEAMENTOS SOBRE NATUREZA DA MORAL Alderberti Batista Prado Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE [email protected] RESUMO: O pensamento de Hume ressalta a moralidade inerente à constituição humana e entende os sentimentos como o princípio que possibilita as relações harmoniosas. Hume afirma que aprovação e reprovação são percepções distintas, sendo as percepções divididas em impressões e ideias, afirma ainda que o louvor moral está fundamentado em uma impressão de natureza reflexiva, que distingue o bem do mal através de prazer e dor, impressões de nosso sentido externo. Considerados manifestações de nosso sentido interno, os sentimentos se baseiam na distinção traçada pelas impressões sensíveis e tende a aprovar as impressões que comunicam prazer. A manifestação dos sentimentos é sempre uma impressão reflexiva, que se volta para o ínfimo de nossa constituição natural e encontra os aparatos necessários para qualificar a afecção proporcionada por um caráter. Palavras-chave: Percepção; impressão; sensação; reflexão; sentimentos Uma questão norteia o empreendimento teórico ao qual Hume se lança no Tratado9. Ela se refere aos princípios fundantes de nossa moralidade, a saber, como distinguimos o vício e a virtude das ações? Através de ideias ou através de impressões10? No início do livro III do Tratado, dedicado aos assuntos morais, Hume afirma que “nada jamais está presente à mente senão suas percepções; e que todas as ações como ver, ouvir, julgar, amar, odiar e pensar incluem-se sob essa denominação.” (p.496). Para Hume, as percepções da mente se dividem em impressões e ideias. As impressões são, por definição, percepções de uma vivacidade e força primárias, ou seja, são experiências sensíveis que fundamentam os juízos que formamos a respeito do mundo, do Cf. HUME, David. Tratado da Natureza Humana: Uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais. Tradução de Déborah Danowski. São Paulo: Editora UNESP, 2001. 10 Cf. Idem, p. 496. 9 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 183 conhecimento e, sobretudo, a respeito da moral. As ideias são consideradas por Hume como cópias das impressões e, por vezes, é designada de percepção fraca. Essa fraqueza se deve ao fato de elas não serem realidades originais, as ideias são, no entanto, derivadas de nossas impressões, não se encontram diretamente em nosso aparato sensível e sim em nosso entendimento, remetendose aos sentidos para fundamentar a sua realidade. O termo percepção se refere a todas as ações da mente e, segundo Hume, esse termo se aplica também aos sentimentos pelos quais distinguimos o bem do mal na moral. Para demonstrar que essa distinção está fundamentada em uma percepção, podemos utilizar a passagem na qual Hume profere que “aprovar um caráter e condenar outro são apenas duas percepções diferentes.” (Idem, p. 496), pois a distinção entre o bem e o mal, entre a virtude e o vício está fundamentada numa percepção11 particularmente moral, a distinção que daí resulta será capaz de qualificar as nossas experiências de acordo com a sua influência sobre os nossos sentidos e a partir da comunicação de uma impressão de sensação ao nosso sentido interno é que estamos em condições para aprovar ou condenar uma ação ou um caráter. Cabe ainda uma subdivisão no que se refere às impressões, elas podem ser impressões de sensação ou impressões de reflexão. As impressões de sensação se referem às percepções ligadas ao nosso sentido externo, que capta as qualidades dos corpos como sons, cores, prazer e dor, etc., estas impressões são chamadas de impressões originais, pois a sua ocorrência na alma não depende de nenhuma impressão anterior, surgem assim que são tocadas pelos objetos externos à nossa sensibilidade. Já as impressões de reflexão são ligadas ao nosso sentido interno, ao modo como somos tocados pelas impressões advindas do exterior, estas são chamadas de impressões secundárias, pois elas derivam a sua realidade das impressões de sensação como uma “resposta afetiva12” que suscita o louvor ou a censura de nossos sentimentos morais, habilitados a nos guiar por entre as ações e caracteres. Essas impressões são relacionadas às nossas emoções, vontades, desejos, etc., estas possuem um valor moral, pois estão sujeitas a aprovação e reprovação, conforme o agrado ou desagrado que acompanha tal percepção. As impressões de reflexão são derivadas das impressões de sensação, pois, diante das impressões de dor e prazer, formamos uma ideia sobre tais percepções, “uma cópia tirada pela mente”. Perante As percepções são classificadas em impressão e ideia; e as impressões são classificadas em impressões de sensação e impressões de reflexão. 12 Cf. PEQUENO, Marconi. 10 Lições sobre Hume. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012, p.78. 11 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 184 essa cópia surge uma nova impressão, uma impressão reflexiva, que enquanto tal imprime no espírito um assentimento pelo prazer e uma repulsa pela dor, suscitando o sentido interno que aprova ou reprova os caracteres comunicados por esta impressão. Hume entende as impressões de prazer e dor enquanto impressões distintivas. A distinção que dessa impressão resulta apoia a nossa decisão moral sobre ações e caracteres. E o prazer ou a dor, amor ou ódio, consequentemente nos constrange à aprovação ou reprovação. Estas impressões distinguem o bem e o mal, suscitando um sentimento favorável à virtude e contrário ao vício das ações. Como as impressões distintivas, que nos permite reconhecer o bem e o mal morais, não são senão dores e prazeres particulares, segue-se que, em todas as investigações acerca das distinções morais, bastará mostrar os princípios que nos fazem sentir uma satisfação ou um mal-estar ao considerar um certo caráter para nos convencer que esse caráter é louvável ou censurável. Por que uma ação, sentimento ou caráter é virtuoso ou vicioso? Porque sua visão causa um prazer ou desprazer de um determinado tipo. Portanto, ao dar a razão desse prazer ou desprazer, estamos explicando de maneira suficiente o vício ou a virtude. Ter o senso da virtude é simplesmente sentir uma satisfação de um determinado tipo pela contemplação de um caráter. O próprio sentimento constitui nosso elogio ou admiração. (HUME, 2001, p. 510- 511). As distinções traçadas pela impressão de prazer suscitam o nosso senso da virtude, e obrigamnos a reconhecer as qualidades morais das ações e caracteres através de um sentimento, que além de reconhecer um valor ao caráter que produziu a ação, discerne a influência de cada uma dessas qualidades sobre a vida dos homens. Essas distinções estão fundadas na natureza humana de modo intrínseco, isto é, podem ser consideradas como uma parte elementar de nossa natureza, de modo a nos tornar humanos e sermos capazes de estabelecer uma relação harmônica com os outros seres humanos, reconhecendo humanidade na bondade de seus propósitos e ações. Hume afirma que essas distinções morais não podem ser fundamentadas na razão, pois a razão não é capaz de acender uma terna afeição em nosso coração e tocar os sentimentos que nos conduzem à virtude e nos afasta do vício. As distinções morais, que nos impõe o certo e o errado, não são capazes de se referir a uma ordem de regras e normas que lhes impõe uma medida, pois, certo e errado deve estar de acordo nossa própria natureza. E como esses valores não estão fundamentados na razão, nada justifica o estabelecimento de objetos que transcendam os limites de nossa própria natureza. A medida para as ações e juízos morais só pode ser ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 185 instituída pela experiência dos sentimentos benévolos, sem a influência dos sentimentos, a moralidade seria incapaz de nos afetar e nos impelir à ação. Como nos diz Hume: Como a moral, portanto, tem uma influência sobre as ações e os afetos, segue-se que não pode ser derivada da razão, porque a razão sozinha, como já provamos, nunca poderia ter tal influência. A moral desperta paixões, e produz ou impede ações. A razão, por si só, é inteiramente impotente quanto esse aspecto. As regras da moral, portanto, não são conclusões de nossa razão. (HUME, 2001, p. 497). Como a moral não pode ser fundamentada na razão, ela (a moral) não pode dizer o verdadeiro e o falso, pois, segundo Hume, é papel da razão descobrir a verdade ou falsidade dos juízos. A verdade e a falsidade fundam-se num acordo ou desacordo que se refere à relação entre as ideias, sendo que cada ideia já possui referência a uma impressão precedente; ou na relação entre o juízo e os fatos cuja existência real impõe um acordo empiricamente aceitável para o nosso entendimento. Os sentimentos, como afirma Hume (Cf. 2001, p. 498), não são suscetíveis desse acordo e desacordo, os quais seriam instaurados pelas relações de ideias ou as questões de fato13. Os sentimentos, enquanto impressões que possuem uma realidade reconhecida pela nossa constituição interna não carecem de referência à outra realidade que vá além das impressões, uma vez que o próprio entendimento se refere a essa realidade original, as sensações e os sentimentos, para fundar a veracidade de seus “juízos impassíveis”. As ações podem ser louváveis ou censuráveis, mas não podem ser racionais e irracionais. Louvável ou condenável, portanto, não é a mesma coisa que racional ou irracional. O mérito e o demérito das ações frequentemente contradizem e às vezes controlam nossas propensões naturais. Mas a razão não tem tal influência. As distinções morais, portanto, não são frutos da razão. A razão é totalmente inativa, e nunca poderia ser a fonte de um princípio ativo como a consciência ou senso moral. (HUME, 2001, p.498). Ao tratarmos da natureza da moral no pensamento de Hume, é importante dar a devida atenção a estas impressões de reflexão, considerando que o nosso senso de moralidade é guiado por estas impressões. Esse modo de pensar inclui Hume entre os partidários do senso moral que, enquanto tal, se opõe ao racionalismo, pois essa corrente filosófica considera que a distinção 13 Relação de ideias e questões de fato são, para Hume, os objetos próprios da razão humana. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 186 moral seria traçada pelo entendimento, segundo as operações básicas da razão: as questões de fato e a relação de ideias. Para o filósofo escocês a razão é impotente, não pode influenciar as nossas forças ativas, o que ela pode é informar a existência de algo que possa suscitar um sentimento; e instruir-nos, através de uma cadeia causal, sobre os meios adequados para a satisfação de um desejo. Com isso, não pretendemos dizer que os juízos racionais são ineficazes, mas sim, que eles não nos dizem o bem e o mal. Comunicados pelas impressões sensíveis de prazer e dor, bem e mal fixam valores que motivam o caráter, de modo que o louvor dedicado a esse caráter está subentendido no prazer que a ação ou o próprio caráter nos imprime. O caráter obrigatório do certo não pode provir do exterior, tal obrigação deve estar fundada na natureza humana, por isso, é necessário encontrar em nossa natureza um senso que nos impelirá a ação moral. Hume encontra nos sentimentos essa norma para a ação e conduta humana. É importante que se entenda os sentimentos morais como impressões de reflexão de uma força capaz de nos constranger a aprovar a afeição e benefício presente nas boas ações e recomendá-la a toda humanidade. Os sentimentos14 seriam a expressão primeira de nossa interioridade em resposta às afecções empíricas que o nosso sentido externo capta. Assim, quando buscamos o sentido de uma ideia15 nos voltamos para a impressão original, também o fazemos quando buscamos um fundamento para os fenômenos morais, buscamos um sentido interno capaz de fundamentar o mérito que imputamos a um caráter. Encontramos nos sentimentos morais, próprios de nossa humanidade, uma regra para a qualificação moral. As qualidades morais não ostentam realidade objetiva, da qual a razão fosse capaz de determinar um objeto de conhecimento. Os sentimentos preservam a realidade dos juízos morais, são eles que dão vida à frieza dos conceitos de bem e mal, dão validade às virtudes e as reconhece enquanto tal. Os sentimentos reconhecem as qualidades das ações e caracteres, assim como a sensibilidade reconhece as qualidades materiais que afetam o sujeito, comunicando percepções. São os sentimentos que apreciam o louvor de uma virtude, e o seu mérito fundamentase no agrado imediato que uma ação é capaz de provocar, bem como das consequências benéficas que as ações são capazes de produzir. 14 15 Compreendidos como sentido interno. Isto é, das qualidades que a compõe. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 187 Referências Bibliográficas: HUME, David. Tratado da Natureza Humana: Uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais. Trad.Déborah Danowski. São Paulo: UNESP, 2001. PEQUENO, Marconi. 10 Lições sobre Hume. Petrópolis: Vozes, 2012. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 188 A EDUCAÇÃO PARA A AUTONOMIA, NO EMÍLIO DE ROUSSEAU Alexandre José Krul Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências - Doutorado. UNIJUÍ/RS [email protected] RESUMO: Este artigo é uma pesquisa de revisão bibliográfica que se propõe a refletir sobre a aproximação proposta por Rousseau entre a educação natural do homem e a educação para a autonomia do cidadão, em sua obra Emílio. Segundo Rousseau a educação do cidadão é permeada pela formação moral que inicia na puberdade, com acompanhamento do preceptor, e estende-se por toda a vida. A educação moral é destacada mais especificamente no Livro IV do Emílio, e aponta para a tensão entre o amor de si do homem e a opção livre de viver com os outros firmando um contrato social. Palavras-chave: Educação. Homem. Cidadão. Autonomia. Rousseau (2004) critica a educação de sua época, que não se decidiu se quer formar o homem ou o cidadão. Um dos objetivos da sua obra Emílio é propor uma aproximação entre esses dois objetivos, ou seja, entre a educação natural e educação civil. Há necessidade de educar os sentidos, mas também fortalecer a educação do cidadão para ser autônomo e viver em um Estado, organizado por leis que dirigem-se ao bem comum. A crítica realizada por Rousseau (idem) se dirige às Instituições educativas de sua época, principalmente aquelas regidas pela ordem dos jesuítas, acusando-as de formar sujeitos dependentes e estúpidos, pois querem desde a tenra idade inculcar reflexões que visam a educação moral. No seu entender, a educação institucional precisa primeiramente promover um desenvolvimento das forças físicas para depois passar a educação moral. Rousseau (idem) questiona o fato do ser humano ser ensinado sobre lições de moral desde a infância, pois é somente no início da juventude, na puberdade, que o homem apresentará interesses e será capaz de entender racionalmente essas relações a partir de um entrosamento com outras pessoas na sociedade. Durante a primeira e a segunda infância há apenas uma grande preocupação do homem consigo mesmo, não existindo ainda sentimentos sociais. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 189 A educação para uma autonomia moral, encontra seu caminho na experiência do indivíduo vivendo em sociedade. Para Rousseau (idem) temos que estudar o homem a partir do estudo da sociedade e estudar a sociedade a partir do homem. Os problemas de um homem em relação a moral só podem ser resolvidos no seio da própria sociedade. O maior desafio do educador é fazer com que o homem não escorregue e caia nos vícios que brotam desta convivência. A moralidade que deve brotar no indivíduo que vive em sociedade torna-se paradoxal quando a criança convive ou confronta-se com comportamentos e atitudes denegridos e mascarados. Salinas Fortes (1997) afirma que Emílio é desafiado a viver em uma sociedade que valoriza, na maioria das vezes, o ter no lugar do ser. A autenticidade, que é própria da natureza humana, é abandonada ou denegrida enquanto que os desvios sociais próprios de uma vida aparente são percebidos em ações corriqueiras. Em um contexto social de degeneração social é que o indivíduo autônomo poderá se questionar sobre determinadas atitudes com que se depara. Agir com autonomia moral, fundamenta-se naquilo que é para si e para os outros realmente útil e importante para o bem comum. Rousseau (2004) afirma que o homem não foi feito para permanecer na infância, demonstrando com isso que o aspecto amoral com que viveu um longo período, reforçando seus músculos e conhecendo o mundo a sua volta pelo contato com as coisas, processos descritos nos Livros I, II e III, devem ser abandonados. A nova postura proposta, descrita no Livro IV; salienta que viver com os outros implica um desenvolvimento moral fundado na valorização dos aspectos fundamentais da condição humana. "Nossas paixões são o principal instrumento de nossa conservação" (idem, 2004, p.287), portanto a alternativa encontrada por ele é valorizar e desenvolver aquelas que são boas para a espécie, e não somente aquelas que colocam o indivíduo em vantagem. Embora a paixão mais vantajosa para o indivíduo, e a única que é inata, e que estará presente em todas as fases da sua vida seja o amor de si. Muitas outras surgem com o desenvolvimento do indivíduo, porém, em muitos casos, não passam de ilusões. "O amor de si é sempre bom e sempre conforme à ordem" (idem, p. 288). Em vários momentos da vida, a paixão poderá, sob olhar instintivo, apontar vantagens, porém não passam de ilusões. Paixões são resultados das relações que são construídas pelo próprio homem, mas se faz importante um constante alerta para que as necessidades, deveres e preferências não sejam fundamentadas na cega obediência e nem no instinto. "O supremo gozo ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 190 está no contentamento consigo mesmo; é para merecer esse contentamento que fomos colocados na terra e dotados de liberdade, que somos tentados pelas paixões e contidos pela consciência" (idem, p.397). Um ponto criticado por Rousseau envolve o hábito, já que esse pode criar barreiras para o desenvolvimento. Assim, como as paixões, os hábitos podem ser bons ou ruins. São bons quando reafirmam atitudes e comportamentos virtuosos, e são ruins quando criam uma espécie de carapaça de insensibilidade e preconceitos. Um dos grandes problemas, segundo Rousseau, acontece quando o homem age de maneira mecânica e fria frente as situações. Podemos perceber um exemplo disso na descrição do Vigário Saboiano. O jovem despatriado e sem lar, mente sobre suas opções de vida para conseguir hospedagem e comida, porém não está consciente de seu comportamento, e ignora as possíveis consequências. Ele mesmo não sustentou, após alguns diálogos, sua real situação e confessou a sua mentira; como reprimenda sofreu a punição de ser preso. É importante que entendamos o conceito de preservação dos traços da natureza, que são a liberdade, a autenticidade e a bondade. Para Rousseau os traços fundamentais do humano devem ser conservados, até que este esteja em condições espirituais de entender o processo pelo qual está passando, sem que haja alguma perda no caminho. A experiência de convivência, juntamente com o acompanhamento do preceptor é que auxiliará o jovem a decidir melhor sobre questões fundamentais, identificando as virtudes e os males que são frutos das relações. A sociedade não é ruim em si mesma, muito menos a natureza possui maldade, mas o próprio homem por meio de seus atos, pode agir de maneira positiva ou negativa. No Livro IV do Emílio, Rousseau apresenta seu aluno inserido-se ainda mais na vida social, vivendo relações que serão fundamentais para a constituição da personalidade. Na vida civil o amor de si, por obra da comparação com os outros, transforma-se em amor-próprio, e os freios desse sentimento que deseja tudo para si é o contrato social. Graças a capacidade de se proteger e querer o melhor sempre para si, é que a educação poderá lapidar esse sentimento direcionando-o, por meio da voz da consciência, às necessidades gerais comuns a todos. Tudo o que o homem recebe de fora de si, pode ser filtrado pela consciência. Segundo Rousseau (2004) o homem é dotado de uma consciência individual que pode ser denominada: "voz da consciência". "A consciência é a voz da alma, as paixões são a voz do corpo. [...] Ela é o ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 191 verdadeiro guia do homem; [...] quem a segue obedece à natureza e não tem medo de se perder" (idem, p.405). Na interpretação de Maruyama (2001), a consciência é um sentimento inato, diferente da sensibilidade física. A consciência é responsável pelo senso de justiça e virtude que envolve todos objetos intelectuais da razão humana. Em outra passagem do Emílio podemos ler a seguinte afirmativa de Rousseau: "Dizem que a consciência é obra dos preconceitos; no entanto, sei por minha experiência que ela se obstina em seguir a ordem da natureza contra todas as leis dos homens" (2004, p.373). Partindo desta afirmação podemos perceber que o homem vive uma tensão entre os próprios desejos e o bem comum. A interpretação de Maruyama (2001) é de que a consciência permite à razão, a partir da observação da natureza, ordenar inteligentemente os atos humanos. Com o auxílio da consciência, a razão deixa de se limitar à mera descrição das leis da natureza, para postular uma ordem universal e inteligível, sem a qual não seria possível o conhecimento. A educação do jovem influência diretamente na construção da autonomia e da autenticidade, sendo conduzida pelas luzes da razão. O desenvolvimento do homem, bem como a constituição da moralidade depende de todo o processo educacional; dependem diretamente das influências resultantes da socialização. É impossível pensar um homem que não sofrerá influência. A diferença é que o indivíduo educado segundo a natureza, estará fundamentado na norma de que ele é um indivíduo que pode assumir um pacto como os outros. Todos os indivíduos estarão dotadas do amor de si, e, portanto terão desenvolvido habilidades de pensar por si mesmos, diminuindo as chances de terem suas decisões manipuladas por ações de outros indivíduos. Rousseau (idem) afirma que o homem natural desenvolveu um amor profundo sobre si mesmo, e se ama tanto que deseja que todos o amem da mesma forma que ele se ama. Pela convivência um indivíduo observa o outro e, caso não esteja bem consciente do seu papel enquanto humano, pode se comparar com outro e querer imitar o outro, ou até mesmo deixar um outro tomar as decisões sobre aquilo que lhe compete. Mas o homem que é influenciado rapidamente poderá chegar ao seguinte dilema: O que duplicava meu embaraço era que, tendo nascido numa Igreja que tudo decide, que não permite dúvida, se eu rejeitasse um só ponto rejeitaria todo o resto, e a impossibilidade de admitir tantas absurdas separava-me também das que não o eram. Ao me dizerem creia em tudo, impediam-me de crer em algo, e eu já não sabia quando parar (idem, p.375). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 192 A educação rousseauniana chama atenção ao desafio que temos de preservar no homem seus principais traços de humanidade e autonomia; "se o homem é ativo e livre, ele age por si mesmo" (idem, p.396). Na leitura de Maruyama (p.43), Rousseau afirma que a atuação pública do indivíduo supõe "o desenvolvimento das faculdades mentais do indivíduo e sobre a relação deste com o modo de vida e os costumes de uma sociedade particular". O Emílio viveu sempre livre, portanto suas necessidades eram suas leis. Para viver em sociedade, o homem terá que abandonar a liberdade natural, para poder viver com os outros. Desta forma o homem natural continuará a pensar somente em si, tendo seus atos baseados exclusivamente no amor de si; pois "O homem, portanto, é livre em suas ações e, como tal animado de sua substância imaterial" (ROUSSEAU, 2004, p.397) Se a bondade moral é conforme à nossa natureza, o homem só pode ser são de espírito ou bem constituído na medida em que é bom. Se ela não o é, e o homem é naturalmente mau, ele não pode cessar de sê-lo sem se corromper, e a bondade é nele apenas um vício contra a natureza (idem, p.406). A educação do indivíduo proposta no Emílio afirma que devemos: [...] exercitar nele a bondade, a humanidade, a comiseração, a beneficência, todas as paixões atraentes e doces que agradam naturalmente aos homens e impedir que nasçam a inveja, a cobiça, o ódio, todas as paixões repugnantes e cruéis, que por assim dizer, tornam a sensibilidade não somente nula, mas negativa, e fazem o tormento de quem as experimenta (idem, p.304). O desafio está justamente em acompanhar a educação do indivíduo, para que tome decisões autônomas de acordo com o bem comum. Assim, homem e cidadão podem ser conciliados, não relativizando nenhum. Agir na sociedade de acordo com a vontade geral, não implica não agir de acordo consigo mesmo, pois as vontades particulares podem ser pertencentes à vontade geral. O desafio é proporcionar ao indivíduo um desenvolvimento racional do homem civil, que aprenda a compartilhar interesses e valores de acordo com o bem comum. Portanto, criar convenções que devem ser seguidas por todos aqueles que realizaram o pacto social. Embora o homem abandona, segundo o Contrato Social, aquele estado disperso da natureza, a piedade natural e o amor de si continua vivo em seu interior, é o ponto de referência para que se forme em seu interior a piedade civil e o amor-próprio. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 193 A vida civil, segundo Rousseau (2010a), permite-nos viver sem os males naturais, mas não ensina como podemos suportar os males que vem do próprio homem por obra das paixões. Ao mesmo tempo que o homem se desenvolve, surgem novas dores e vergonhosas glorificações. As paixões não são boas ou ruins, o desafio está em como o homem conseguirá refrear essas paixões. O homem tem dificuldade de se contentar com aquilo que as suas próprias forças lhe conseguem abastecer, ele quer sempre mais para si, e "o que nos é proibido pela consciência não é sermos tentados, mas sim deixar-nos vencer pelas tentações. Não depende de nós ter ou não ter paixões, mas depende de nós reinar sobre elas" (ROUSSEAU, 2004, p. 657). No Livro IV do Emílio, Rousseau apresenta os pressupostos do desenvolvimento moral, que tendem a reforçar a autonomia do homem. Tais pressupostos estão voltados sempre para os objetivos comuns de todo o Estado. A vontade particular não deixa de ser um sentimento, porém mesmo havendo uma constante tentação de relacionar tudo a si mesmo, cabe ao homem social resistir a ela, e direcionar suas capacidades para a vontade geral. Essa centralidade do eu necessita ser superada para que as relações políticas aconteçam, e assim, prevaleça o bem comum, sobre o bem particular. Portanto, a educação política proposta por Rousseau salienta que sempre as decisões precisam estar baseadas na sabedoria humana que valoriza o bem comum. O maior desafio está em criar condições de se viver bem. Então, educar o homem para por em prática a vontade geral, pode ser uma possibilidade de solucionar a contradição entre homem natural e homem civil. Rousseau (2010a) aponta que as convenções são as melhores formas de organizar o Estado e de formar as leis, sendo assim a República pode ser o melhor lugar para se viver. Na República o cidadão pode participar das decisões como legislador, e vai compartilhar com os outros uma liberdade civil que lhe beneficiará tranquilidade e segurança, pois poderá desenvolver suas aptidões e ser compreendido como um igual aos demais. A vida pública depende diretamente dos indivíduos envolvidos. A República somente existe porque os cidadãos, por convenção, a criaram, logo objetiva promover a vida plena daqueles que ali vivem. Assim, o que determina a ordem pública são as leis positivas, determinando o que é justo e bom. Todo homem que pactua em viver no Estado civil, está livre da submissão a qualquer ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 194 instituição e até mesmo a ordem divina. O homem civil age com autonomia e apenas é submisso ao pacto social, e portanto às leis que dele emergem. Referências Bibliográficas FORTES, Salinas. Rousseau, o bom selvagem. São Paulo: FTD, 1997. MARUYAMA, Natalia. A contradição entre o homem e o cidadão: consciência e política segundo J.J.Rousseau. São Paulo: Humanitas: Fapesp, 2001. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio, ou, da Educação. São Paulo: Martins Fontes, 2004. ___________. O Contrato Social. Porto Alegre, RS: L&PM, 2010a. ___________. Os devaneios do caminhante solitário. Porto Alegre: L&PM, 2010b. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 195 A RATIFICAÇÃO DA ONIPOTÊNCIA POR MEIO DO DOMÍNIO DO SABER Alexandre Moschen Ortigara Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE [email protected] Orientador: Prof. Dr. Roberto S. Kahlmeyer-Mertens RESUMO: A Onipotência é definida pela psicanálise como um constructo do sujeito. Suas implicações incluem sensação do controle de si, e que outras vezes extrapola o controle do próprio corpo. Como o sujeito é constituído numa sociedade, que exerce influência sobre ele e ele sobre ela, essa manifestação onipotente narcísica acontece também na sociedade. Inicialmente na sociedade primitiva mítica como animismo e, posteriormente, na religiosa como magia e científica como onipotência do pensamento. Assim como os sacerdotes influenciaram toda uma era, pois eram os representantes autorizados pela religião, hoje os professores também o fazem na condição de estarem autorizados pelo ideal humano oriundo do iluminismo. Palavras-chave: Onipotência; psicanálise; desenvolvimento humano; narcisismo Introdução: Com o advento da psicanálise, no final do século XIX, quando Freud e Breuer 16 postularam sobre o inconsciente, muito se questionou acerca de seus estudos. Ao inserir a sexualidade infantil nos seus trabalhos, as críticas se acentuaram e nem mesmo Breuer seguiu Freud, porém, esse seguiu com suas convicções, não sem cometer alguns excessos contra outros estudiosos que se interessaram por seus postulados e buscaram ampliar sua área de atuação, entretanto, obteve grande sucesso em sua obra. Contudo, nem por possuir uma história já consolidada a psicanálise deixa de ser contestada. Demonstrar se ela possui validade ou não, não será o objetivo desse trabalho, mas, buscar-se-á, por meio de alguns conceitos que ela fornece, demonstrar como ela poderia estar presente nas 16 Os primeiros escritos da psicanálise foram realizados por Sigmund Freud e Josef Breur. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 196 relações de autoridade no âmbito social, sendo na religião ou no meio acadêmico, e como essa relação pode constituir, com manutenção de algumas psicopatologias que se fundam no inconsciente e se manifestam no humano, mais especificamente a partir da onipotência presente no humano. Para esse fim será necessário conceber que o humano possui um inconsciente que contém os desejos mais íntimos. Esses desejos têm uma carga de energia que conduzem as ações que possuem muito mais controle sobre o humano que sua própria consciência. É a partir disso que a psicanálise busca encontrar esses desejos contidos no humano, para que, após manifestá-los, esse sujeito possa conduzir sua vida um pouco mais leve, ou seja, menos reprimida, com menos culpa. Ao abordar a onipotência como tema central, faz-se necessário, inicialmente, uma apresentação do conceito, bem como suas implicações na vida do sujeito nas fases iniciais e complementares do desenvolvimento. Onipotência pode ser definida pela própria palavra, que pode ser interpretada como “aquele que pode tudo”, ou ainda “aquele que possui tudo”. Sua origem psíquica tem origem no Id, que é constituído pelo princípio do prazer17, e está presente no humano desde o seu nascimento. Na primeira fase do desenvolvimento humano, essa onipotência constitui-se na relação do bebê com a mãe. Nessa relação, a mãe é para a criança parte dela, criando assim uma relação simbiótica para com a mãe. Com essa simbiose, a onipotência da criança está na figura da mãe, vez que a função materna satisfaz as necessidades alimentares da criança18. Portanto, a onipotência está constituída na mãe, enquanto objeto de satisfação plena da criança. Na fase posterior do desenvolvimento, ou seja, na fase anal, essa relação objetal para com mãe é introjetada e não mais se encontra (ou identificada) nela. Esse processo dá-se pelo próprio desenvolvimento do corpo humano, vez que agora ele possui controle esfincteriano19. Di Loreto (2007, p. 64-68), afirma que nessa fase, em que ocorre o processo de dissociação da criança com a mãe, também se inicia o processo de dissociação entre impotência e onipotência. O autor questiona a ausência do termo médio, que seria o caracterizador dos Ao abordar os processos anímicos (ou psíquicos) inconscientes, Freud busca determinar quais seriam os primários, e os identifica como Princípio do prazer-desprazer. Nesses processos, se buscará atingir o prazer, e o que for desprazeroso será recalcado ou reprimido (FREUD, 1911, p. 110-111). 18 A questão alimentar mencionada acima, refere-se a condição de erotização da boca na fase oral. Assim todo o conhecer da criança se da pela boca, vez que essa é sua zona de satisfação. 19 A fase anal se dá com o deslocamento de energia da erotização, que sai da boca para a região anal. 17 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 197 conceitos tratados acima, sendo ele a potência. Busca, então, por meio de exemplo, definir o lugar da potência na constituição da criança e, consequentemente, do adulto potente, diferenciando tanto a impotência e onipotência como gêneses de doenças psíquicas, como de potência enquanto base de um sujeito confiante para a vida. 1 Onipotência no desenvolvimento humano A necessidade da potência no humano é o diferencial para a satisfação e pleno desenvolvimento de suas escolhas, ou seja, a potência seria a utilização adequada desse poder na ação. Enquanto que impotência fantasiada é a potência existente não exercida, ou utilizada, a onipotência é potência fantasiada e, portanto, não praticada, pela impossibilidade de se atingir esse ideal. O termo fantasia, utilizado acima, se faz necessário para a caracterização real da impotência e onipotência. Assim define Freud (1911, p. 114-115): “É a atividade da fantasia, que tem início já na brincadeira das crianças e que depois, prosseguindo como devaneio, deixa de lado a sustentação em objetos reais”, demonstrando, assim, o real sentido, tanto de impotência quanto de onipotência. Nesse processo de constituição e aprendizado, o humano, na sua infância, passa tanto pelo processo da fantasia de impotência quanto pelo processo da fantasia de onipotência, até encontrar-se com a sua potência. É nesse processo diastólico e sistólico, ou ainda, de flutuação entre extremos, no caso Impotência e Onipotência, que ele se apropriaria de sua potência. Ressalta-se que esse seria o processo idealizado do humano para ter consigo uma plena realização de existir junto à realidade, ou seja, saindo da fantasia de não poder realizar nada (impotência), ou ainda poder realizar o que a ele for possível pensar (onipotência). Em sua obra Totem e Tabu, mais especificamente no terceiro capítulo, Animismo, Magia e Onipotência, Freud busca demonstrar nossa projeção de Onipotência enquanto sociedade em constante desenvolvimento. Ao explicar animismo faz referência a Hume, “há uma tendência universal, entre os homens, de conceber todos os seres como eles próprios e de transferir para ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 198 todo objetos qualidades que conhecem familiarmente e de que estão intimamente cônscios” (FREUD, 1912, p. 124).20 A partir dessa referência, Freud, assim como o próprio Hume, passa a demonstrar como esse processo de onipotência se dá na sociedade. Inicialmente, essa projeção é somente para com animais, espíritos ou almas, ou seja, algo que esteja próximo à natureza e que não exija maior descrição lógica de algo para demonstrar essa “evidência” para a crença. Nesse estágio evolutivo, a manifestação dessa onipotência é dada pelo feiticeiro, que possui poderes de influenciar os espíritos para que estes realizem os desejos humanos. Num segundo momento da evolução do homem, em que esses processos de manifestação de poder estão mais constituídos, este passa a projetar num deus uno, detentor de poderes que dão conta de validar a existência de um ser supremo e onipotente, nesse caso o sacerdote é quem manifesta o poder. Já no terceiro estágio evolutivo de sociedade, esse processo de onipotência humana, ou mais claramente, uma “fantasia coletiva de onipotência humana”, se dá pelo processo científico. E aqui o autor narra o que segue: Na concepção científica do mundo não há mais lugar para a onipotência do homem, ele reconhece sua própria pequenez e submete-se resignadamente a morte e às outas necessidades naturais. Mas a confiança no poder do espírito humano, a contar com as leis da realidade, retém algo de primitiva fé na onipotência (FREUD, 1912, p. 140). O ideal humano, concebido no período do Renascimento21 e potencializado no Iluminismo, é quem guia as ciências. A partir de Kant e sua delimitação do uso da Razão, surgiram outros ramos das ciências e, hoje, conta-se com uma infinidade de conhecimentos descritos por métodos que assegurariam a validade das hipóteses levantadas. A partir de essas hipóteses estarem corretas ou não, percebe-se a satisfação humana nas suas relações mais triviais. Por vezes não raras, em diálogos dos mais diversos assuntos, nos quais há uma possibilidade de necessidade de conhecimento brevemente aprofundado, para se ratificar HUME, David. História Natural da Religião. Na edição da UNESP, de 2005, encontra essa citação na p. 36. “O otimismo com respeito à razão já era anunciado desde o Renascimento, quando a nova concepção de ser humano valoriza os poderes do indivíduo contra o teocentrismo medieval e o princípio da autoridade. No século XVII o racionalismo e a revolução científica acentuaram essa tendência, de modo que no Século das Luzes o indivíduo se descobre confiante, como artífice do futuro, e não mais se contenta em contemplar a harmonia da natureza, mas quer conhecê-la, dominá-la” (ARANHA, 2006. p.172). 20 21 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 199 ou não uma questão arguida por um dos propositores, os humanos (sujeitos) buscam assegurar sua condição de estarem certos, ou de estarem de acordo com a validade vigente. Porém, o que ocorre se depurarmos um pouco esses diálogos é que, em várias ocasiões, o que os presentes almejam é estarem “certos”. Não há de fato a busca pelo diálogo, que no caso pressupõe a escuta, vez que ambos somente estão ansiosos em ter sua certeza ratificada. Com a ciência, quando se busca demonstrar a hipótese, tais diálogos são condicionados à validade ou nulidade da hipótese. Ou ainda, ratificar a potência argumentativa de um ou de outro. Por passar boa parte de sua vida convivendo com pessoas que buscam encontrar respostas na religião para suas angustiantes perguntas e, por a mesma reiterar o processo de onipotência em que, por meio da divindade, o humano recebe todo poder, o humano reitera somente o ego primitivo e onipotente. O sujeito onipotente não somente não é capaz de demonstrar a necessidade do outro (partindo do pressuposto que o homem é um ser social), mas também evita toda conduta que possa ser julgada de forma eficiente, como por exemplo, expor-se a uma atividade com outro em que ele não possua domínio ou controle sobre o resultado. 2 A filosofia acadêmica é ciemtífica A filosofia acadêmica que Nietzsche criticou, se me for permitido uma comparação, em pouco difere de qualquer disciplina da ciência. O processo de positivação do conhecimento pouco tem demonstrado modificar o roteiro do saber. Esse método desestimula a liberdade criativa e de se expressar do sujeito pensante que, por vezes, almeja-se aventurar escrevendo algumas conjecturas, mas logo é cerceado pela necessidade de fontes, às quais, o sujeito, muitas vezes, não tem acesso, mas que conjecturou algo, sem a necessidade de consultar Aristóteles, Platão, Descartes, ou qualquer autor que tenha debatido um assunto de interesse do sujeito em questão. Se realizarmos uma reflexão singela e superficial acerca do que diferencia o humano dos demais animais, poder-se-ia inferir que a principal característica da humanidade seria a mudança, por conta da capacidade adaptativa própria da espécie, ou ainda, essa capacidade adaptativa. Com isso, poderíamos deduzir que esse processo onipotente que o humano desenvolve inicialmente em si e, posteriormente, projeta na sociedade, é mais uma das diversas “condições ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 200 humanas” para satisfazer o ego onipotente de estar certo e, para satisfazê-lo, identifica-os em diversos objetos ou institutos diferentes do querer. A pregação que o sacerdote, ou orientador espiritual, realiza na sua religião, em pouco se difere de aulas que muitos professores ministram e, assim como o sacerdote afirma que o livro sagrado contém todas as respostas, também esses professores o fazem com seus alunos a partir do ramo do conhecimento que ele atua e acredita dominar. Na academia, ao seguir um autor, um professor passa, necessariamente, por extensivas horas de estudos, muitas vezes prazerosos momentos com o autor e, nessa relação, o processo empático com o autor já se estabelece, ou seja, esse processo de identificar no outro, ou reconhecer no livro características próprias do sujeito, é algo necessário para a consolidação desse vínculo. O professor, então, ao explanar sobre um autor ou um assunto, também estará falando um pouco de si mesmo. Porém, isso, em muitas vezes, deixa de ser benéfico para condição de potência do aluno, vez que ele, ao questionar o professor, estará questionando o assunto, entretanto, pelo vínculo (inconsciente) do professor para com o assunto ou autor, dificilmente este se deixará ser afetado pela questão, mas, possivelmente, se sentirá atingido por ela. A provável resposta de um professor do exemplo acima em muito poderá se assemelhar à pregação do sacerdote quando invoca o deus que pune. Essas semelhanças somente ratificam a onipotência de ambos e dificultam a descoberta da potência no sujeito em desenvolvimento, em qualquer idade. A filosofia acadêmica presente pouco se distancia do método científico em suas exigências para a escrita acadêmica. Sendo possível afirmar que se vive uma filosofia positiva. Para aqueles que afirmam que a filosofia é diferente da ciência, não parece equivocado, mas, o oposto também pode ser afirmado se o processo para aquisição e produção de saberes for trazido à discussão. A produção filosófica na academia não se refere ao filosofar que o humano é capaz, em suas mais diversas formas e aplicações, enquanto humano dotado de razão. Essa limitação que a filosofia recebe de si mesma seria o equivalente ao que ocorre na ciência, e, por conseguinte, sua proximidade/intimidade com ela se ratifica, ou seja, parece ocorrer um processo de onipotência em todo o processo acadêmico. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 201 Referências Bibliográficas: ARANHA, Maria Lucia de Arruda. História da Educação e da Pedagogia: geral e Brasil. 3ed. São Paulo: Moderna, 2006. FREUD, S. (1905). Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: ___________ Obras psicológicas completas. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 2006. v. 7. ___________.(1911). Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico. In: ___________. Obras Completas. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. v. 10. ___________. (1912-1913). Totem e Tabu. In: ___________.Obras Completas. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. v. 11. ___________. (1914). Introdução ao Narcisismo. In: ___________.Obras Completas. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. v. 12. ___________. (1916-1917). Conferências introdutórias à psicanálise. In: ___________.Obras Completas. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. v. 13. HUME, David. História natural da religião. Trad. Jaimir Conte. São Paulo: UNESP, 2005. KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Trad. Lucimar A. Coghi Anselmi, Fulvio Lubisco. São Paulo: Martin Claret, 2009. (Coleção a obra-prima de cada autor; 3) LORETO, Oswaldo di (Org.). Posições tardias: contribuição ao estudo do segundo ano de vida. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007. NIETZSCHE, Friedrich W. Escritos sobre a educação. Trad. Noeli Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro: PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2003. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 202 OS PRINCÍPIOS QUE FUNDAMENTAM A CONQUISTA E A PERMANENCIA NO PODER NA CONCEPÇÃO DE NICCOLAU MAQUIAVEL Alícia Beatriz Mallmann Piccinin Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE [email protected] RESUMO: Este artigo tem por objetivo descrever de forma breve a organização do Estado para Nicolau Maquiavel. Segundo ele o homem tende naturalmente a suas inclinações e vícios, sendo O príncipe a principal obra utilizada aqui, que se trata de um manual ao qual Maquiavel escreve ao príncipe de Médici, com o intuito de fazê-lo aprender quais devem ser as suas ações perante o povo e a organização de um principado para que permaneça no poder. Caracteriza que o ser humano almeja por poder e por isso, seguindo o seu manual alcançará o poder facilmente. Palavras-chave: Príncipe; poder; povo Nicolau Maquiavel foi um filosofo que nasceu em Florença na Itália em três de maio de 1469. No período de sua juventude Florença enfrentava uma situação de desordem e instabilidade, devido ao domínio da Igreja e a queda e retorno dos Médicos22 ao poder. Devido a está instabilidade Maquiavel que exerceu cargo de destaque na vida pública foi acusado de conspiração quando retornou ao poder os Médicos, o que ocasionou seu exílio, sendo impedido de executar sua função pública. Desde então, ocorreu à tentativa constante de Maquiavel para recuperar seu antigo emprego, o que acabou não acontecendo mesmo depois da redação de O príncipe que ele escreveu dedicando “ao Magnífico Jovem Lourenzo Dei Médici” na esperança de que pudesse retorna a vida pública. Infelizmente depois da publicação de O príncipe, que se trata de um manual de como um príncipe23 deve agir para obter êxito em sua vida pública ele adoece e morre em junho de 1527. Médici (em italiano:Médici) foi uma dinastia política italiana. A família teve origem na região de Mugello na Toscana. O poder político dos Médici aumentou, até que passaram a governar Florença. 23 Na condição de príncipe, refere-se a qualquer governante, seja imperador, rei, presidente, duque, conde, senhor feudal ou mesmo príncipe. 22 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 203 Maquiavel após a publicação de O príncipe ficou conhecido ora como mestre da maldade, ora como bom conselheiro. Tem como ponto de partida e de chegada a percepção da realidade concreta, sendo seu objetivo tratar do estado real. Este autor foi de grande importância, pois provocou a ruptura com o saber que vinha sendo repetido durante os séculos, ou seja, trata-se de uma nova conjuntura sobre o pensar e o fazer política, colocando fim a ideia de uma ordem natural e eterna das coisas e das relações humanas. Caracteriza que a ordem é condição necessária da política, não sendo natural e não sendo definitiva, sendo construída pelos homens e podendo assim ser sempre modificada conforme houver necessidade. A ordem é fundamental, pois é através dela que se pode evitar o caos e a barbaria dos homens. Maquiavel caracteriza que todos os Estados, governos que tem poder sobre os homens são repúblicas ou principados. Os principados são hereditários quando pelo sangue seu senhor tenha sido desde longo tempo príncipe ou são novos. Assim, existem dois modos de principados: hereditários ou novos. Os principados novos ocorrem quando um novo príncipe conquista a cidade, ou seja, quando por um ato primeiro de violência ele toma posse de um determinado local. O ato primeiro deve ser de violência, pois após a tomada da cidade por este primeiro ato deve-se instaurar a paz e manter a paz segundo as leis estabelecidas. A partir daí, só se deve recorrer à violência quando há desordem para que se estabeleça a ordem. Após este primeiro momento a ordem deve manter-se e deve ser respeitada pelos cidadãos. Uma força bem empregada inicialmente é necessária para que o povo nesse momento compreenda que houve mudança e que passe a respeitar o acontecimento, mantendo o respeito por essa ação primeira. Deste modo se instaura a paz e faz-se de tudo para que aos poucos as leis consigam manter a paz e que se utiliza cada vez menos o ato de violência. A força mal empregada é quando a violência é pouco necessária no início para instaurar a paz, contudo depois passa a ser sempre preciso recorrer a ela para manter a paz. Há dois rumores acerca do pensamento de Maquiavel sendo eles: o dos grandes e o do povo. O que diferencia os dois é o desejo em questão de cada um. Os grandes possuem o desejo de manter o poder de qualquer maneira, enquanto que o desejo do povo é somente o desejo de querer um governo que não os oprima, é a luta constante pela não opressão. Este conflito que existe não deve ser eliminado porque é ele que permite esses dois rumores. É necessário canalizar os conflitos, de forma que esses dois rumores possam manter-se na sociedade. O bom ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 204 governante é aquele que sabe usar este conflito a seu favor, canalizando esse conflito e tirando proveito dele. Este conflito torna-se uma condição de liberdade, pois é ele que faz com que as leis estabelecidas sejam e promovam o bem de todos. A liberdade se dá na geração de leis porque as leis servem tanto para um quanto para o outro e proporcionam a liberdade. O conflito é o fundamento para boas leis, que favoreça ambos. O que caracteriza a vida política é o conflito. A escolha do principado sempre se dá ou pelos grandes ou pelo povo. Um desses dois vai eleger o principado, ou, em favor de um ou, em favor do outro. Os principados hierárquicos são os que se mantém mais facilmente no poder, pois o povo esquece com muita facilidade os vícios e os erros cometidos pelos príncipes, visto que sempre estiveram no poder. Quando ocorrem os principados novos, ou também denominados mistos, ou seja, quando alguém de fora da linhagem chega ao principado (podendo ele ter sido eleito pelos grandes ou pelo povo) é mais difícil de manter o poder alcançado. Pois quando ele entra no principado ele não vai poder contar com os que eram contra ele. As pessoas que o apoiaram também não irá poder confiar inteiramente por que do mesmo modo que o apoiaram, eles podem vir a apoiar outro principado misto e ir contra ele. Para que um principado misto consiga manter-se no poder, seja ele eleito pelo povo ou pelos grandes é necessário conquistar acima de tudo o povo. Uma das formas de fazer isso inicialmente é manter as leis e os impostos. O príncipe deve ir de perto manter seu deprincipado. Deve também fundar colônias milícias24, pois quando se funda colônias se tem menos gasto para o principado. Sobre os deveres do príncipe para com seus exércitos, Maquiavel afirma que o príncipe tem que ter como único objetivo a guerra, sua organização e disciplina, o que lhe permite conquistar o Estado é ser um profundo conhecedor da guerra. Nos tempos de paz deve estar sempre exercitando seu pensamento com este propósito, o fazendo de duas maneiras: com a ação e com a mente. A ação remete as caçadas, por meio delas acostumará o corpo as fadigas, conhecendo a natureza dos lugares, como se estendem as planícies e observando a natureza dos rios, sendo este conhecimento útil por duas razões, primeiro, porque se aprende a conhecer seu próprio país e o príncipe pode melhor identificar as defesas que oferece; segundo, em decorrência desta atividade, poderá entender qualquer outro novo local que precise observar, pois são As milícias e exércitos, dos quais afirma serem as bases principais de sustentação do poder, ao lado de boas leis e ambos têm uma forte ligação entre si. Milícias são os exércitos/soldados que eram disponibilizados aos governantes, no caso de houver uma guerra, um conflito ou a necessidade de agir pela violência. 24 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 205 parecidos. Com relação à mente, deve ler as histórias e nelas observar as ações dos grandes homens, ver como se conduziram as guerras, examinar as causas de suas vitorias e derrotas, para que possa evitar estas e imitar aquelas, um príncipe jamais pode ficar inerte nos tempos de paz, deve seguir estas ações, afim de que quando a sorte mudar, encontre-se preparado para resistir. Assim, a arte da guerra deve ser sempre exercitada. É preciso que os seus súditos saboreiem das boas ações do príncipe, ou seja, o príncipe deve conquistar o povo, ser bom com ele para que deste modo consiga manter-se mais facilmente no poder. Claro que não é somente isso que o fará se manter no poder, mas ter o povo ao seu lado é de grande ajuda também em qualquer circunstância, pois o que o príncipe fala ao povo, se o povo o aprova, é levado em consideração e possui valor. O príncipe que deseja se manter no poder precisa aprender a poder não ser bom e usar isso ou não, dependendo da necessidade. Seria excelente encontrar em um príncipe todas as características boas, contudo já que não pode possuir todas, é fundamental que o príncipe prudente as finja, evitando aqueles vícios que lhe tirariam o Estado. Mas deve-se recorrer a eles (aos vícios), quando com eles se poderiam salvar o Estado, porque em alguns casos, podem significar segurança e bem-estar, mesmo sendo vícios. O principado misto deve evitar que os mais fracos alcancem o poder, pois desta forma o príncipe adquire maior poder, prestígio e força diante do povo e de todos. É preciso também estabelecer alianças porque é fundamental estar sempre prevenido com relação às guerras possíveis e futuras. Maquiavel deixa claro também o fato de que se o príncipe for se aliar a alguém que possui tanto poder quanto ele, deve ter em mente que isso abre brechas para futuras traições. Se o seu aliado possui tanta sede de poder quanto ele próprio, seria uma questão de tempo até o seu aliado tentar tomar o seu lugar. Enfatiza o desejo que o homem possui de conquistas, dizendo ser natural de todo homem tal inclinação. A política segundo ele se estabelece de acordo com esse processo contínuo, lembrando que a política visa fundamentalmente o poder e a conquista. Quando ocorrer do príncipe ser eleito pelos grandes, eles agem sempre de acordo com seus interesses, possuem mais visão e inteligência que o povo. Buscam ficar do lado daqueles que possuem maiores chances de vencer. O principado quando eleito pelos grandes é tumultuado em virtude de o príncipe que está no poder estar rodeado de pessoas tão poderosas como ele próprio ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 206 e corre o risco de ser ludibriado e perder o poder/principado para outro grande/poderoso. Apesar desta dificuldade interna de se manter no principado, o príncipe eleito pelos grandes tem uma grande vantagem, pois o povo espera que ele vá oprimir e qualquer atitude dele que vá agradar e favorecer ao povo, como a não opressão, vai surpreender o povo e aos poucos conquistá-los. Quando ocorre do príncipe ser eleito pelo povo, a ação esperada do príncipe vai ser favorável ao povo a não opressão. Contudo como ele foi eleito pelo povo, o povo já espera justamente por esta ação, ou seja, o povo não se surpreende com a atitude tomada pelo príncipe, porque já o seguem e já esperavam esta atitude. O principado eleito pelos grandes já possui o apoio dos grandes. De modo que se conquista o povo pelas suas atitudes surpreendentes passa a ser apoiado pelos grandes e pelo povo. Enquanto que o príncipe eleito pelo povo só terá o apoio destes, de forma que o que ele fizer enquanto príncipe já era esperado pelo povo. Além disso, sendo príncipe ele estará rodeado de grandes, correndo um risco muito grande de perder o poder. Alguém eleito pelo povo não possui tanta inteligência quanto um poderoso e também pode ser facilmente ludibriado por um grande. A manutenção do principado é mais fácil do que a própria conquista do principado. De modo que é o povo quem garante a permanência do principado juntamente com a ordem pública que o príncipe estabelece e que consegue manter. Ao lado das coisas corruptíveis25 está a fortuna (sorte), ou seja, pode acontecer mais, não se sabe onde e nem como. É aquilo que é casual, tudo o que não se pode prever/esperar. Aquele que consegue estabelecer formas de se preparar, enxerga possibilidades de se prever. O homem de virtu26 é o homem virtuoso que consegue frear os efeitos de uma fortuna, ou seja, freia as suas consequências. O príncipe misto deve instaurar seu poder primeiramente por um ato de violência e depois manter a paz a partir de leis, ou seja, pelo seu uso da virtu. O príncipe dá forma à matéria conforme a sua virtu. O homem tende a interesses particulares, ou seja, ele pode tanto tender para o bem quanto para o mau. O que normalmente ocorre é o homem tender muito mais ao egoísmo do que a bondade, pois sendo egoísta ele muitas vezes satisfaz seus interesses particulares. 26 Capacidade de agir e fazer o bem. Promover o sucesso. Homem astuto/esperto. 25 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 207 Os homens tendem aos interesses particulares, sendo necessário ser mau em alguns momentos, no que diz respeito à moral. No caso de uma promessa, existem momentos em que não se deve cumpri-la, ou seja, se a promessa feita for prejudicar o seu governo a frente não tem porque cumpri-la. O príncipe para manter-se no poder “[...] é obrigado, [...] a agir contra a fé, a caridade, a humanidade, contra a religião.” (MAQUIAVEL, p. 88, 1532) é preciso que ele não aparte-se do bem, porém que saiba entrar no mau quando necessário. Os meios empregados sempre são em prol do bem comum, visando uma utilidade ao todo. Os meios utilizados não devem ser aqueles que tornam o principado um tirano, pelo contrário deve visar ao bem do todo, deve promover a boa ação ao povo, diante da perspectiva de que o príncipe deve agir sempre de modo a ter o povo ao seu lado, pois desde modo se manterá mais facilmente no poder. As melhores instituições são aquelas que duram mais que o seu fundador, porque ela é reconhecida por outras. A vida em sociedade em Maquiavel se justifica nela mesma. Assim, conclui-se na visão de Maquiavel que o homem tende naturalmente aos seus vícios, ou seja, o homem sendo egoísta irá agir sempre na perspectiva de alcançar o poder, para que assim torne-se poderoso e respeitado por todos. Referências Bibliográficas: MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Trad. Ciro Mioranza. 2. ed. Revista. São Paulo: Escala, s. d. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 208 A “VONTADE DE PODER” EM NIETZSCHE COMO ÍMPETO POR REALIZAÇÃO Anna Cecilia Amaral Branco da Silva Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE Pós-Graduanda Segunda Licenciatura (PARFOR) [email protected] Orientador: Prof. Dr. Roberto S. Kahlmeyer-Mertens RESUMO: Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900), filósofo alemão cujas ideias influenciaram grandemente o pensamento ocidental, foi uma mente em contraste com seu tempo, combatendo violentamente o cristianismo, o socialismo e criticando, ainda, os valores morais da burguesia. Seu pensamento confronta, assim, obras existentes e tendências surgidas na época, tais como: o positivismo, o voluntarismo e o darwinismo. No temário nietzschiano, um dos pontos mais intrigantes e, ao mesmo tempo, de caráter ilimitado é a Vontade de Poder (Wille zur Macht). Com esta concepção, Nietzsche pretende ressaltar que existem forças instintivas do homem que se exteriorizam através dos fenômenos. Essas forças são inconscientes, vitais e ao mesmo tempo irracionais, pois impulsionam os indivíduos à destruição. Pretende-se aqui realizar uma aproximação com esse conceito de Vontade de Poder, defini-lo e sustentar a hipótese de que tal se traduz em uma espécie de ímpeto para ser, em um impulso à realização. Palavras-chave: Nietzsche; vontade de poder; ser; realização; vida. Para Benedito Nunes, Nietzsche foi um pensador solitário na orla do século XIX, combatendo violentamente o cristianismo e o socialismo e, ainda criticando alguns valores morais da burguesia. O pensamento de Nietzsche confronta as obras existentes e as tendências surgidas na época, tais como: o voluntarismo e o darwinismo, dentre outras, todas essas correntes de pensamento se encontravam em conflito com sua filosofia. Seus primeiros escritos, baseados nas obras de Schopenhauer, têm caráter estético, dotado de grande força poética e de linguagem aguda e paradoxal. No temário nietzschiano, um dos pontos mais intrigantes e, ao mesmo tempo, de caráter ilimitado é a Vontade de Poder (Wille zur Macht). Com esta concepção, Nietzsche pretende ressaltar ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 209 que existem forças instintivas do homem que se exteriorizam através dos fenômenos. Essas forças são inconscientes, vitais e ao mesmo tempo irracionais, pois impulsionam os indivíduos à destruição. Das obras de Schopenhauer, onde Nietzsche se embriagou em seu iniciar filosófico, ele retirou a noção de vontade e através desse conceito fez seus escritos de vida e constituição, sendo vontade de poder o ponto central de sua filosofia. Schopenhauer escreveu e acreditava existir uma vontade cósmica, única e independente do tempo, mítica, um impulso irracional e sem sentido, uma vontade universal, o mal e o mau, causa de interminável sofrimento, ligada a extrema individualidade, onde não há conhecimento, não há Deus e sim uma eterna e frustrante vontade que sempre dará origem as mesmas coisas, aos mesmos seres e situações, gerando um eterno retorno, pois sempre tudo o que já existiu voltará a existir, sendo considerada uma concepção trágica da vida. E assim, conforme afirma Benedito Nunes, foi dessa noção de vontade cósmica que proveio a vontade de poder, onde Nietzsche imprime seu conceito de vontade e associa-o a poder/potência, dando origem a expressão Wille zur Macht (em alemão = vontade/impulso/ímpeto para poder fazer/ser). Esse ímpeto em que se fundem todos os instintos, primeiro nexo de caráter afetivo e volitivo entre o homem e o mundo. É nessa vontade, também universal, que tudo domina e que é dominadora, que o homem tem possibilidades ilimitadas, ou melhor, possibilidade de possibilidades, de crescer, de expandir e de ser. Dependendo unicamente dele o seu destino e das condições que a natureza o dotou, condicionadas à sua consciência, moral, razão e lógica. A auto formação do homem em Nietzsche é natural, biológica e psíquica. Os instintos humanos primários, cujo objetivo natural é a dominação, podem ser direcionados para outras finalidades, porém, para Nietzsche são direcionamentos antinaturais, pois impedem as possibilidades de possibilidades e, nesta concepção trágica para o filósofo, segundo a qual a vida é instinto e o instinto é poder, a razão infere de forma negativa na auto formação do homem, pois o limita, sendo considerada um poder eficaz, porém, secundário e a consciência entra em conflito permanente em relação aos outros. Para o filósofo alemão, essa vontade não está além do mundo, fora de seus limites, ela se dá nessa relação, sendo assim, ela é múltipla e se mostra como efetivação real, ou seja, o mundo é esta luta constante, desequilibrada, apenas tensão que se prova pelo movimento, às vezes imperceptível e outras vezes impetuoso. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 210 A vida é vontade de poder, mas não se pode restringi-la apenas à vida natural orgânica. Vida se expressa é a vontade de poder que está presente em tudo, desde reações físico/químicas simples até à complexidade da mente humana. Tudo o que acontece no mundo é vontade de poder, é aquela capacidade de resiliência, de se expandir, de se superar, de se relacionar, de se associar para se tornar maior, pois todas as forças, no fim, sempre buscam sua própria expansão. A busca constante por dominar, por ser cada vez mais forte, por subjugar outras forças anêmicas ou mesmo absorvê-las. As relações naturais recorrentes diariamente demonstram isso, animais que subjugam outros animais, sistema sanguíneo que produz sempre a quantidade de sangue necessária e suficiente para a sobrevivência, dentre outros, são exemplos de vontade de poder, que não descansa um só momento, mas que sempre está em busca de conquistar mais, de realizar mais. Quem estuda física sabe que nesta ciência, potência ou poder é a capacidade que algo tem de realizar algum trabalho, de executar algum feito, já na filosofia de Nietzsche, vemos vontade de poder/potência como a capacidade que a vontade tem de efetivar-se, de se tornar plena e realizada, vemos aqui o princípio da vontade de poder como ímpeto por realização. Nietzsche através de seus escritos afirma que o homem quer ser o dominador, quer criar valores, provocar sentidos próprios, ser muito mais do que um ente que procura apenas sobreviver ou adaptar-se ao mundo, ele quer ser ativo no mundo, criar suas próprias condições de poder, criar seus feitos; ele quer ser, fazer, criar, ter e principalmente realizar. Quando Nietzsche fala da vontade de poder, ele não quer dizer que o poder pode ser representado, ou que a vontade deseja um poder que não tem, para o filósofo o poder é aquilo que quer na vontade, um sempiterno sim, uma afirmação do poder na vontade quando este diz sim ao devir, quando o realizar se sobrepõem e traz a alegria na afirmação: Vontade! – assim se chama o libertador e o mensageiro da alegria: - eis o que vos ensino, meus amigos; mas aprendei também isto: a própria vontade ainda é escrava. O querer liberta; mas, como se chama o que aprisiona o libertador? “Assim foi”: eis como se chama o ranger de dentes e a mais solitária aflição da vontade. Impotente contra o fato, a vontade é para todo o passado um malévolo espectador.A vontade não pode querer para trás: não pode aniquilar o tempo e o desejo do tempo é a sua mais solitária aflição.O querer liberta: que há de imaginar o próprio querer para se livrar da sua aflição e zombar do seu cárcere?Ai! Todo o preso enlouquece! Também loucamente se liberta a vontade cativa. (NIETZSCHE, 1957, p. 171 e 172). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 211 Neste trecho de Assim falava Zaratustra, sobre a redenção, o filósofo faz uma reflexão muito profunda entre o querer e a vontade, colocando a vontade como aquela que liberta e ao libertar traz a mensagem de alegria, provoca o contentamento do que era até então cativo. Entretanto, ao mesmo tempo em que liberta também se encontra na condição de escrava, sendo subjugada pelo que o passado representa na vida daqueles que estão acorrentados, aprisionados pelo que sempre foi, não se permitindo ser diferente, querer, viver e realizar de forma diferente do que até então se fez. Em Nietzsche a vontade não deve querer olhar para trás, e nem observar o passado, ela deve olhar para frente, visualizar o futuro e o que pode realizar a partir de então, ser completa e plena de si, dar sentido e criar valores, se libertar de seus próprios limites e ir ao alcance de novas fronteiras, se libertar das demarcações que a impedem de expor seu ímpeto por realização. O querer deve utilizar sua própria capacidade de criar e imaginar para se livrar da aflição, porém, esse imaginar pode ser considerado loucura por muitos, e é essa loucura que em seu ímpeto, em sua ânsia pelo que deseja realizar, promove a libertação. Esse ímpeto por realização cresce, ultrapassa e vai além de seus limites, transborda, cria, compõem, inventa, produz, liberta, e, vem de encontro às aspirações do filósofo, a criação de valores. Assim, de modo escalar e hierárquico, algumas forças são impelidas a mandar e outras submetidas a obedecer, e esse ativismo ou pacifismo das forças leva Nietzsche a criar sua genealogia da moral e objetiva realizar a transvaloração dos valores, assumindo que ao homem moderno é necessário reapoderar-se de sua vontade de poder para voltar a criar seus próprios valores, realizar experimentos, estabelecer novas hierarquias, ultrapassar seu tempo e seus valores, ser extemporâneo à sua geração. Desta forma, o homem para Nietzsche poderá superar a si mesmo, se livrar dos limites que o restringem, arrancar as amarras que a sociedade colocou sobre si por séculos, e assim ser capaz de entender o mundo sem se deixar enveredar por explicações metafísicas, dando novos sentidos e novas significações para os fenômenos que acontecem. Mas assim o quer a minha vontade criadora, o meu destino. Ou, para o dizer mais francamente: esse destino quer ser minha vontade. Todos os meus sentimentos sofrem em mim e estão aprisionados; mas o meu querer chega sempre como libertador e mensageiro de alegria. “Querer, liberta!”; essa é a verdadeira doutrina da vontade e da liberdade; tal é a que ensina Zaratustra. [...] Na investigação do conhecimento só sinto a alegria da minha vontade, a alegria ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 212 do engendrar; e se há inocência no meu conhecimento, é porque nele há vontade de engendrar. Essa vontade apartou-me de Deus e dos deuses. Que haveria, pois, que criar se houvessem deuses? A minha ardente vontade de criar impele-me sempre de novo para os homens, assim como é impelido o martelo para a pedra. (NIETZSCHE, 1957, p 107). Novamente nesta passagem, o filósofo trata do querer como libertador, da vontade criadora como mensageira da alegria, procurando se libertar do destino que tão incisivamente o acorrenta. A vontade de criar e de realizar é a causadora da alegria, pois é na criação onde há o conhecimento e nele se encontra o contentamento. Para tanto, o filósofo precisou se afastar de toda a explicação metafísica, precisou se afastar das concepções de divindades, pois não existe capacidade criadora se for considerado a existência de deuses. Tendo em vista que, se existem deuses estes bloqueiam ou impedem a vontade criativa e a capacidade realizadora dos homens. Assim, de acordo com Kahlmeyer-Mertens, a vontade de poder em Nietzsche está em ligação com o eterno retorno, onde o filósofo procura descrever o caráter sempre atual e sua constante inserção ou reaparecimento no modo de ser da realidade. A vontade é vista como algo que o ser humano possui ou não, estando em ligação direta com a possibilidade de escolha, ou com o então conhecido, livre arbítrio. Este ser, que de posse do livre arbítrio, realiza, ou melhor, produz realizações de acordo com o movimento essencial do tempo e na configuração do instante. Sendo assim, a vida se mostra e retorna como impulso ou ímpeto para a realização, para ser possibilidade de possibilidades, possibilidades estas que se configuram no instante, concretizando-se apenas uma por vez, uma a cada instante no tempo. Vida, segundo Nietzsche, é o movimento sempiterno de diferenciação da vontade, tendo este sempiterno o caráter do eterno retorno, que determina o instante em sua circularidade. Vontade de poder/eterno retorno diz respeito a toda e qualquer dimensão do acontecimento de realidade, narrando, enquanto existência, a assunção fundamental da vida em sua cadência, instauração, vigência e propriedade (KAHLMEYER-MERTENS, 2011, p. 6) Finalizando esta exposição, pode-se concluir que Nietzsche, diferentemente de Schopenhauer, conseguia visualizar na vontade de poder uma força positiva sobre o homem, uma força que o mobiliza a ultrapassar obstáculos, a vencer desafios e a ser muito mais do que mera possibilidade, sendo capaz de por esse impulso ou ímpeto, realizar coisas mais grandiosas e ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 213 fascinantes do que se vivesse apenas amarrado pela camisa de força que a sociedade lhe impõe. Daí se reduzir quase tudo na existência à essa luta pela vontade de poder (Wille zur Macht), essa necessidade incondicional do homem de incessantemente lançar-se sobre os demais homens e objetos da natureza, com vistas a seu domínio, querendo ser senhor de todos e de todas as coisas. Uma vontade vital, amoral, que independe de conceitos éticos, uma pulsão incontrolável, uma vontade de poder, uma vontade de ser, vontade como ímpeto por realizar. Referências Bibliográficas: BUCKINGHAM, W. et al. O livro da filosofia. (tradução Douglas Kim) São Paulo: Globo, 2011. KAHLMEYER-MERTENS, R. S. A gênese do problema moral segundo F. W. Nietzsche. Revista Litteris, v. 7, p. 30-55, 2011. MARÇAL, J. (Org.). Antologia de textos filosóficos. Curitiba: SEED-Pr., 2009 MARTON, S. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. 3ª ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. NIETZSCHE, F. W. Assim falava Zaratustra. Col. Universidade. Trad. José Mendes de Souza. Rio de Janeiro: Tecnoprint - Edições de Ouro, 1957. NUNES, B. Filosofia Contemporânea- Trajetos iniciais. São Paulo: Ática, 1991. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 214 MENTE E EXTERNISMO SEMÂNTICO NA FILOSOFIA DE PUTNAM Bruno Fernandes de Oliveira Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE [email protected] Orientador: Prof. Dr. Remi Schorn Coorientador: Prof. Dr. Luiz Henrique de Araújo Dutra RESUMO: Este trabalho tem o objetivo de investigar e apresentar o que o filósofo estadunidense Hilary Putnam entende por mente, e qual a importância deste conceito para o externismo semântico em sua filosofia da mente e da linguagem. Para tanto se faz necessário compreender o conceito de funcionalismo e, em seguida, a relação da teoria dos estados mentais com externismo semântico. Neste sentido surgem questões como: a mente pode ser reduzida ao cérebro? Qual a natureza dos estados mentais? Como os estados mentais se relacionam com o cérebro? Estados mentais são produtos da vida biológica? Computadores podem possuir estados mentais? O externismo supera o funcionalismo? Sendo assim, pretendemos problematizar os conceitos de mente, estados mentais e externismo na evolução da filosofia de Putnam. Palavras-chave: Mente; externismo; Putnam O que é funcionalismo? O funcionalismo, em filosofia da mente, é uma teoria que trata das questões relativas ao problema corpo- mente, e pode ser explicado por teses que envolvem e remontam uma teoria da mente. Trata da relação da mente, dos fenômenos mentais e dos seus componentes físicos, ou seja, o funcionalismo é uma teoria que trata os eventos e estados mentais como não físicos. Os eventos e estados mentais não são produtos de uma análise eletro físicoquímica, mas sim funcionais. Hilary Putnam nos anos 60 formulou sua teoria sobre o funcionalismo (podemos chamá-la de funcionalismo computacional), e tratou que eventos e estados mentais não são reduzidos à processos biológicos, mas, sim, a funções causais. Segundo Kim: ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 215 O funcionalismo também é frequentemente considerado uma forma de fisicalismo não-reducionista. De acordo com esta posição, as propriedades psicológicas não são propriedades físicas ou neurais (caráter do fisicalismo reducionista), mas tipos funcionais, em que um tipo funcional é uma propriedade definida em termos de estímulos (inputs) e resultados (outputs) causais.Para dar um exemplo familiar, a dor é dita ser um tipo funcional, em que estar com dor é estar em algum estado físico/biológico, que geralmente é causado por certos tipos de inputs (por exemplo, danos nos tecidos) e que faz com que causa determinados outputs (por exemplo, gemer, estremecer, comportamento de fuga). (KIM, 1999, p. 646). O funcionalismo pretende definir o cérebro como uma máquina (um computador), no qual a mente é um programa e o computador ao receber informações processa essas informações por meio do programa que recebe através de um input. Segundo Claudio Costa: Particularmente impressionante é o assim chamado funcionalismo da máquina, posto em circulação por Putnam, que se vale de uma analogia entre cérebros e computadores. Um computador é um hardware, um sistema material, no qual é implementado um software, o programa, que é constituído por um sistema de regras que permitem o processamento dos dados recebidos. Ora, também nós somos constituídos por um hardware, que é o cérebro, e por um software, ao qual damos o nome de mente! Assim, a mente nada mais é do que o programa implementado no cérebro, e os estados mentais são os seus estados funcionais. Certamente o “programa mental” nada tem a ver com os softwares que são atualmente implementados em computadores, mas o princípio é o mesmo. (COSTA, 2005, p. 28-9). De fato a proposta funcionalista de Putnam ganhou muita influência no cenário da filosofia da mente. Embora, o filósofo, hoje, rejeitou em parte o funcionalismo, isso não faz da teoria um grande fracasso. Muito pelo contrário, ela trata de questões importantes para o atual contexto da filosofia da mente, como: a causalidade mental, teoria da identidade, externismo semântico e internismo semântico. Feito, brevemente, a análise do funcionalismo em filosofia da mente, passamos agora a analisar o artigo “A natureza dos estados mentais” (1975) de Putnam. II Em “A natureza dos estados mentais”, Putnam inicia seu artigo questionando sobre a “dor”, ou seja, parte das seguintes questões: 1) como sabemos que as outras pessoas têm dores? ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 216 2) as dores são estados mentais? 3) o que é a análise do conceito dor? No entanto, a questão que o filósofo pretende elucidar é: as dores são estados mentais? O conceito dor, ou a sensação de dor, toma um lugar privilegiado no funcionalismo. Putnam parte da premissa que estados mentais ou a relação desses estados mentais tem com o comportamento corporal não são reduzidos a aspectos físicos. O que Putnam quer dizer é que o conceito dor não é o mesmo conceito (ou, não é sinônimo) de estar em um determinado estado cerebral. É importante destacar que o funcionalismo se difere do behaviorismo. Enquanto o behaviorismo sugere input perceptual e output comportamental, sem identificar estados internos, como por exemplo, a visão de nuvens escuras, que por sua vez causa estados internos, como o pensamento de que as roupas no varal ficarão molhadas, e que o guarda-chuva o protegerá ao sair - o que causa output - como o ato de recolher a roupa e pegar um guarda chuva ao sair (Cf. COSTA, 2005, p. 28). Neste ponto que o funcionalismo se difere do behaviorismo; os behavioristas não deram atenção aos estados internos, ao contrário dos funcionalistas atribuindo à teoria os estados internos. Segundo Churchland: Essa concepção pode trazer o behaviorismo à mente do leitor, e, de fato, ela é herdeira do behaviorismo. Porém, há uma diferença fundamental entre as duas teorias. Enquanto o behaviorismo esperava definir cada tipo de estado mental exclusivamente em termos de entrada de dados do meio ambiente e saídas comportamentais, o funcionalismo nega que isso seja possível. Para o funcionalista, a caracterização adequada de quase todos os estados mentais envolve uma referência não-eliminável a uma série de estados mentais com os quais o estado mental em questão está conectado em termos causais, e, assim, uma definição reducionista exclusivamente em termos de entradas e saídas é totalmente impossível. Dessa forma, o funcionalismo está imune a uma das principais objeções contra o behaviorismo. (CHURCHLAND, 2004, p. 68). Segundo o modelo funcionalista de Putnam, estados mentais não podem ser reduzidos a estados neurofísiológicos, ou estados cerebrais. A dor não pode estar localizada especificadamente em uma localização neural, caso contrário, afirma Putnam, a dor é possível em qualquer sistema nervoso. Para justificar a sua tese que a dor é possível em qualquer sistema nervoso, ou em qualquer estrutura neural cerebral, Putnam apresenta o exemplo do reino animal, no qual existem diversas estruturas cerebrais, em diversas espécies animais. No entanto, essas diferenças estruturais em ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 217 nada modificam o resultado da dor, ou seja, os estados mentais ou os estados funcionais não sofrem nenhuma alteração em relação à dor. O que o filósofo quer dizer é que os estados mentais não são exclusivos dos cérebros humanos, podemos falar em inteligência artificial, e os “cérebros” artificiais de robôs podem produzir estados mentais, isto é, os estados mentais não são produtos exclusivos de uma rede neurofisiológica. Para fundamentar a teoria do funcionalismo, Putnam usa a teoria da máquina de Turing. Com isso Putnam pretende mostrar que é possível, através do exemplo da máquina de Turing, demonstrar que a natureza dos estados mentais é como a natureza dos estados automáticos da máquina. O que parece é que Putnam tinha o interesse de universalizar o conceito de estados mentais aos moldes dos estados automáticos da máquina de Turing. Por conta dessa redução, do cérebro biológico a um supercomputador, Putnam foi alvo de muitas críticas. Claudio Costa apresenta uma consequência do funcionalismo: Outra consequência do funcionalismo é que sendo o mental definido em termos puramente funcionais, o substrato material não precisa ser um cérebro biológico. Se pudermos implementar o programa de uma mente humana em um supercomputador, ou no cérebro biônico de um andróide, essas máquinas passarão a ter mentes humanas! Há entusiastas do funcionalismo que previram a conquista da imortabilidade com base nisso: no dia em que a inteligência artificial estiver suficientemente desenvolvida, acreditam eles, poderemos escanear o programa de uma mente humana e implementá-lo em um supercomputador, de modo que essa mente possa a partir de então viver para sempre entre os seus microcircuitos. Uma pessoa poderá, inclusive, ter o seu programa guardado em um disquete como seguro de vida: caso ela venha a falecer, o precioso software poderá ser implementado no primeiro supercomputador disponível. (COSTA, 2005, p. 29-30.) De fato o funcionalismo tem seus problemas, reduzir o cérebro humano ao um supercomputador é um deles. Na década de 80, o próprio Putnam refutou o funcionalismo. O filósofo percebeu a incompatibilidade do funcionalismo com o externismo, isto é, o funcionalismo tinha uma enorme dificuldade em se relacionar com o externismo semântico e com o conteúdo mental. O próprio Putnam destaca a problemática em seu livro The Threefold Cord: Mind, Body, and World (1999). Para melhor compreender o caminho que o funcionalismo deu na filosofia da mente de Putnam, vale destacar o externismo semântico e o argumento da Terra Gêmea, que o filósofo ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 218 propôs para a filosofia da mente e da linguagem. No que se segue trataremos de forma breve o argumento. III Putnam no The Meaning of ‘meaning’ (1975) apresenta suas teses a favor do externismo semântico e suas críticas ao individualismo, às quais causaram um grande impacto na filosofia da linguagem e da mente. Tais teses têm como objetivo fundamental refutar basicamente toda teoria que, em particular, sustenta que o conhecimento, os estados mentais e os significados das palavras são processos eletroquímicos do cérebro. Tal teoria busca determinar como podemos instanciar o significado, ou seja, cabe a pergunta: é através da relação mente humana com o mundo externo que formamos o significado? Ou os significados são simplesmente produto do nosso cérebro? Será que os significados são produtos da vida biológica ou são formados através de uma relação causal com o mundo externo? Como a linguagem se relaciona com o mundo? A doutrina tradicional sustenta que a referência é determinada por estados mentais, ou seja, saber o significado de um termo é apenas uma questão de estar em um determinado estado mental e a intensão de um termo determina a sua extensão. Portanto, se é apenas uma questão de estar em um determinado estado mental e a intensão determina a extensão, pode-se afirmar que é o estado psicológico que determina o significado; logo os significados são instanciados em nossas cabeças. De acordo com Putnam, os significados dos termos linguísticos e seus correlatos mentais estão relacionados com o mundo físico-social-linguístico, isto é, atribuir significado ao termo depende ao menos em parte do mundo físico-social-linguístico. Trata-se, portanto, de uma relação causal da mente humana com o mundo. E para refutar a teoria semântica tradicional, Putnam formulou o experimento mental da Terra Gêmea. Mais adiante retornaremos ao experimento mental da Terra Gêmea. Em suma, Putnam não atribuiu aos significados a condição de instâncias privadas mentais, ou seja, o único lugar que os significados estão é no mundo externo, ou seja, corte a torta da forma que desejar, os significados não estão na cabeça (PUTNAM, 1975, p.227).27 27 “Cut the pie any way you like, ‘meanings’ Just ain’t in the head!” ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 219 IV Em The Meaning of ‘meaning’ (1975), Putnam apresenta o argumento clássico a favor do externismo semântico: o argumento da Terra Gêmea. Nessa ficção ou hipótese de pensamento, Putnam faz com que se imagine viajar para um mundo idêntico a Terra. O filósofo pede que se imagine uma Terra idêntica a esta, molécula por molécula, porém, a água da Terra Gêmea não possui as mesmas propriedades químicas que a água da Terra possui, ou seja, H 2O. Mas ela possui a mesma propriedade fenomênica: é incolor, bebível, corre nos rios, lagos e etc.. A água da Terra Gêmea é composta pelos elementos químicos XYZ. Agora, imagine-se que nessa Terra há alguém fisicamente idêntico a um terráqueo em todos os aspectos. Imagine-se também que esse alguém (Putnam vai chamar esse terráqueo gêmeo de Doppelgänger, do alemão para duplo ou gêmeo) e o terráqueo se encontrassem num dia muito quente e acabassem bebendo um copo de água para saciar a sede, ambos têm o pensamento de que a água está refrescante. A questão que surge é: será que ambos pensam a mesma coisa, a referência sendo diferente? O argumento de Putnam que segue é que embora os falantes estejam no mesmo estado psicológico, eles não entendem a mesma coisa, pois o falante da Terra significa a palavra água como sendo H 2O e o gêmeo significa a palavra água como sendo XYZ. A partir deste ponto, Putnam apresenta seu slogan - os significados não estão na cabeça. Pode-se dizer que os significados das palavras e dos pensamentos dependem em parte das relações com o entorno físico e social, ou seja, a intencionalidade (a direção do pensamento do falante a uma referência) depende do contexto. O que Putnam propõe é que quando o terráqueo diz a palavra água (H2O) e o seu gêmeo diz a palavra água (XYZ) ambos estão no mesmo estado psicológico, ou seja, a intensão é a mesma, mas a extensão é diversa. Portanto, o estado psicológico de ambos não é suficiente para determinar a extensão da palavra. Logo, os significados não estão na cabeça. V ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 220 Depois de feitas as análises do funcionalismo, estados mentais e a influência que o funcionalismo teve para à teoria do significado de Putnam, podemos observar que o filósofo toma uma posição diferente na evolução da sua filosofia da mente. Quando Putnam tratou do funcionalismo, sua argumentação era que os eventos externos em nada contribuíam para os estados mentais, ou seja, o contexto não tinha relevância para os estados mentais enquanto estados funcionais. No entanto, ao tratar do externismo semântico, Putnam toma uma posição inversa ao funcionalismo. Agora, o contexto físico social-linguistico é importante em relação aos estados mentais, ou seja, o filósofo atribui importância à semântica em sua filosofia da mente. Referências Bibliográficas COSTA, Claudio. Filosofia da mente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. , 2005, p. 28-9. CHURCHLAND, Paul M. Matéria e Consciência: uma introdução contemporânea à filosofia da mente. Trad. Maria Clara Cescato. São Paulo: Editora UNESP, 2004, p. 68. KIM, Jaeggwon. Physicalism, In: Robert A. Wilson e Frank C. Keil (org.) The MIT Encyclopedia of the Cognitive Sciences, The MIT Press, Cambridge, Londres, 1999. PUTNAM, Hilary “A Natureza dos Estados Mentais”. Disponível em: http://mlag.up.pt/wpcontent/uploads/2011/05/PUTNAM-2.pdf Acesso em: 02 de junho de 2014 ___________. “The Meaning of ‘meaning’”, In: Mind, Language and Reality. Cambridge: Cambridge University Press, 1975 ___________. “Meaning and Reference”, In: The journal of philosophy, 70/19, (Nov. 8, 1973), p. 699-711 ___________. “The nature of mental states”, In: Block, N. (org.) Readings in the philosophy of psychology, vol. 1. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1980, p. 223-31, 1967. ___________.Reason, Truth, and History. Cambridge: Cambridge University Press, 1981. ___________. Representation and reality. Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 1989. ___________.The Threefold Cord: mind, body and world. Nova York: Columbia University Press, 1999. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 221 A HERMENÊUTICA DA FACTICIDADE E A DESCONSTRUÇÃO DA TRADIÇÃO ONTOLÓGICA SEGUNDO HEIDEGGER Caroline Marangoni Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE Pós-Graduanda Segunda Licenciatura (PARFOR) [email protected] Orientador: Prof. Dr. Roberto S. Kahlmeyer-Mertens Introdução O objetivo deste trabalho é apresentar uma breve explicação sobre a hermenêutica da facticidade tal como encontrada na obra do filósofo alemão Martin Heidegger. Para tanto, tomaremos por base os trabalhos Ontologia - Hermenêutica da facticidade e Ser e tempo, nos quais nosso autor programa sua ontologia fundamental. A partir dessas, será necessário refletir sobre as concepções de hermenêutica e de facticidade. Pretende-se descrever como o autor faz um estudo sobre a tradição filosófica e utiliza a hermenêutica não como um modo artificial de análise, mas como uma interpretação que conduz ao encontro e com vistas à facticidade. Em nossa comunicação, após explanar a hermenêutica da facticidade se faz necessário outra análise da questão do ser, também será apresentado o plano geral de sua destruição da história da filosofia, projeto filosófico por meio do qual o filósofo pretende uma destruição da tradição filosófica. Esclarecendo esta proposição: nossa comunicação tem por meta descrever como o filósofo busca destruir tudo aquilo que impede a aproximação do caminho que conduz às experiências originárias em torno do ser. A hermenêutica da facticidade Em sua obra Ontologia – Hermenêutica da Facticidade, Heidegger nos apresenta os termos de seu projeto hermenêutico. Este, entretanto, só se faz plenamente compreensível à luz das ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 222 investigações que tem em vista a recolocação da pergunta pelo sentido do ser. Da maneira como é apresentada, tal hermenêutica parece ocupar-se com o estado de fato no qual os entes podem se mostrar; não por acaso, há diversos pontos de conexão desta investigação com aquilo que mais tarde nosso autor chamará de analítica existencial. Esta que, por sua vez, significa o exame filosófico do ente que compreende o sentido do ser, ou seja, o ser humano em sua existência.28 Em seu projeto hermenêutico, Heidegger (2014) analisa como a tradição filosófica compreendeu a questão do ser (tema central de toda ontologia) desde a antiguidade. Nessa análise, convém ressaltar que o filósofo não utiliza a hermenêutica como uma simples teoria da interpretação, pois acredita que ela vai além, que ela é a interpretação da facticidade que condiciona ao encontro, visão, maneira e conceito de facticidade. Do mesmo modo, a facticidade, entra em cena não apenas como um mero conjunto de fatos relativos à história do pensamento ontológico. Heidegger a compreende como um caráter do ser-aí que somos em cada ocasião. Deste modo, dependendo dessa noção de facticidade, o ser (objeto de toda ontologia) não é algo determinado de fora, mas sempre compreendido segundo a nossa vida fática, algo que é por si mesmo sobre um caráter ontológico, que é desse modo, e aí que significa possível em cada ocasião. O que nos leva a reforçar a tese de que hermenêutica da facticidade no plano fenomenológico designa o próprio âmbito no qual somos aí no mundo. Contudo, se faz necessário um entendimento sobre a “ontologia” para Heidegger. Ontologia pode significar doutrina do ser, onde irá indagar tematicamente o ser, irá falar do ser. Poderia também ser tratada como uma disciplina, que pertence a linhas acadêmicas, marcada por um caráter escolar, mas não é desta ontologia que o autor trata. Os termos “ontologia” e “ontológico” por ele utilizados, não tem nenhuma das características citadas acima, pois não servem de indicação. Esses termos significam: questionar e determinar de forma voltada para o ser enquanto tal, ao passo que ser e de que modo permanecem totalmente indeterminados. Ser reportarmos para a o grego, ontologia significa o tratamento de questões acerca do ser, e mesmo pretendendo dedicar-se as determinações gerais do ser, ainda tem em vista um setor determinado do ser. Ontologia equivale à teoria da objetualidade, segundo o uso linguístico moderno, o que coincide com a ontologia antiga, entendida enquanto metafísica. A ontologia moderna não é uma disciplina isolada, mas está ligada com aquilo que se compreende por fenomenologia de forma clara. Pois, somente com a fenomenologia é que surge 28 Veja-se mais a este respeito em Ser e tempo, Heidegger (2014). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 223 um conceito apropriado para investigação. Nesse caso, quando utilizada em disciplinas como ontologia da natureza, ontologia da cultura ou ontologias materiais, em função de seu caráter temático-categorial, é que se tem um conteúdo objetual. Contudo, somente a partir da fenomenologia é que a ontologia corresponde em uma base problemática firme. O que se vê e de que maneira se vê, é o caráter objetual de um ente enquanto tal. A ontologia trata dos caracteres objetuais da região do ser, e a fenomenologia em sentido amplo inclui também a ontologia. Desconstrução da tradição ontológica Após desenvolver a hermenêutica da facticidade, será necessário abrir terreno para uma nova apropriação da questão do ser. Heidegger, em parte, faz isso destruindo aquilo que a tradição filosófica fez da referida questão, ou seja, as interpretações do ser enquanto um problema histórico-filosófico. É isso que Heidegger busca quando em sua obra Ser e tempo fala de destruição da história da metafísica. Segundo o autor, toda investigação, e não apenas aquela que se move em torno da questão central do ser, é uma possibilidade ôntica da presença. O sentido do ser da presença está na temporalidade. A definição de historicidade se dá antes do que se pode chamar de história, enquanto acontecimento que pertence à história da humanidade. A historicidade indica uma criação do ser do “acontecer”, próprio da presença como tal. Com base na historicidade, é que a história da humanidade e tudo que pertence à história mundana, tornam-se possíveis. A presença é como o que ela sempre já foi, é sempre o seu passado, mas não no sentido do que está atrás, é algo dado às experiências passadas, que influenciam sobre a presença. A presença é o seu passado no seu modo de ser, pois ela sempre acontece a partir de seu futuro. Ela nasce e cresce dentro de uma interpretação de si mesma, herdada pela tradição filosófica. A historicidade rudimentar da presença pode permanecer escondida nela mesma. A presença pode descobrir a tradição, de modo a investigá-la, explicar o que ela lega e como ela o faz, e pode também conservá-la. Quando a presença investiga a tradição, ela assume o modo de ser do questionamento e dos fatos. A fatualidade só se faz possível como o modo de ser da presença, essa que por sua vez questiona porque, no fundamento de seu ser, pois ela só se ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 224 determina e se constitui pela historicidade. Mas, se a historicidade ficar escondida para a presença é negada possibilidade de questionar e descobrir factualmente a história. Contudo, a falta da história fatual não vem a ser uma prova contra a historicidade da presença, mas sim uma prova a seu favor, uma vez que uma época só pode ser destruída de fatos históricos por ela ser histórica. Mas, caso a presença tiver apanhado sua possibilidade de não apenas se tornar transparente para si mesma, mas também de questionar a definição da existencialidade em si mesma, ou seja, investigar o sentido do ser em geral, e durante esta investigação alertar-se para a historicidade essencial da presença, será inevitável perceber a questão do ser em sua necessidade ônticoontológica, caracterizada em si mesma pela historicidade. Somente a partir do sentido de ser mais próprio é que se caracteriza o questionar como questionamento histórico, onde a questão do ser deve se orientar para questões acerca de sua própria história, ou seja, de determinar-se por fatos históricos. Somente quando ela se apropria positivamente do passado é que abre as possibilidades mais próprias do seu questionamento. Uma interpretação preparatória da presença, no qual ela é antes de tudo histórica, revela o seguinte: a presença tende a decair no mundo em que está, e interpretar-se a si mesma pela luz que dela emana. Desta forma, a presença decai também em sua tradição, e essa lhe retira a capacidade de se guiar por si mesma, de questionar e escolher a si mesma. Sendo assim, a tradição torna-se pouco acessível ao que ela lega, e geralmente ela encobre e esconde. Entrega o que é legado à responsabilidade da evidência, escondendo assim, a passagem a fontes originárias, de onde os conceitos tradicionais e as categorias foram esgotados. A tradição cria a ideia de que é inútil compreender a necessidade do retorno às origens. Segundo Heidegger: A tradição desarraiga de tal modo a historicidade da presença que ela acaba se movendo apenas no interesse pela multiplicidade e complexidade dos possíveis tipos, correntes, pontos de vista da filosofia, no interior das culturas mais distantes e estranhas. Com esse interesse, ela procura encobrir seu próprio desarraigamento ausência de solidez. (HEIDEGGER, 2014, p.59). Como consequência, todo o interesse pelos fatos historiográficos e sua ambição por uma interpretação objetiva, a presença não se torna capaz de compreender as condições essenciais que possibilitam um retorno ao passado de forma produtiva. Na visão de Heidegger, caso o ser adquirir transparência de sua própria história, é necessário abalar toda uma estrutura petrificada de uma tradição e remover os entulhos ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 225 acumulados. Essa seria então a destruição do acervo da antiga ontologia, herança da tradição filosófica. Segundo Heidegger: Deve-se efetuar essa destruição seguindo-se o fio condutor da questão do ser até chegar às experiências originárias em que foram obtidas as primeiras determinações de ser que, desde então, tornaram-se decisivas. (HEIDEGGER, 2014, p.61). Para ele, a questão do ser deve adquirir transparência em sua própria história, então é necessário estremecer a rigidez de uma tradição petrificada. Essa ideia parece querer destruir um acervo da ontologia antiga legado pela tradição, mas na verdade o que o autor busca é destruir tudo que impede de apontar o fio condutor e através dele chegar às experiências originárias. Essa destruição não tem o sentido de arrasar a tradição ontológica, ao contrário ela vai definir a tradição em suas capacidades positivas, ou seja, em seus limites, que tornará o campo da investigação possível. A destruição não se refere ao passado, mas aos dias atuais e para os modos de se tratar da história da ontologia, independente de como esses modos foram impostos. Depois de ter desenvolvido uma “hermenêutica da facticidade”, a ontologia fundamental precisaria de um projeto no qual pudesse pensar em um momento onde as interpretações históricas quando existente faz do ser e de si mesmo. Dessa forma torna-se algo natural falar em destruição. Considerando a hermenêutica da facticidade extensão desta, a destruição da história da ontologia é um processo de libertação do ser das amarras que o subjugavam a interpretações tradicionais. Dessa forma, tanto a hermenêutica fenomenológica da facticidade como o projeto da destruição da tradição, fazem parte da ontologia fundamental. Essa desconstrução da tradição é uma tarefa de urgência na esfera de retomada da pergunta pelo ser. Isso se torna necessário, porque a hermenêutica da facticidade deixa claro que sempre perguntamos pelo ser tendo em vista nossas interpretações prévias, dessa forma o projeto da destruição é necessário para romper com esses ideais tradicionais, uma vez que eles não são apenas pontos do passado, mas podem influenciar no pensar e no agir da existência humana nos dias atuais. Esse processo de desconstrução não deve ser feito apenas com um olhar sobre a tradição metafísica perante as interpretações que fazemos sobre a facticidade, mas de forma decisiva sobre as leituras tradicionais, pois as mesmas são capazes de orientarem nossa compreensão, e exprimem em si mesmas um caráter simplificado, ou seja, são reproduções ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 226 históricas de interpretações que relatam apenas pequenas partes das ideias originais, deixando boa parte encoberta e que muitas vezes se tornam desconhecidas. Sendo assim, a destruição da história da ontologia tomando de forma hermenêutica a história da metafísica atual, viria com o objetivo de confrontar as interpretações, destruindo conceitos, fazendo um exame de seus conteúdos e uma revisão atual das ontologias. Tendo em vista também, indicar os pré-conceitos com interesse de livrar da ação enrijecedora que durante muito tempo obstruiu a compreensão do sentido do ser. Contudo, Heidegger deixa claro seu propósito, e mostra que sua intenção não é uma destruição no sentido negativo de arrasar a tradição ontológica e sepultar o passado, ao contrário, ela tem suas possibilidades positivas, ocorre como um retorno à tradição para nela ver como o que era originário experimentou a decadência e se deixou petrificar. Para ele, há algo de originário sob a tradição que precisa voltar a sua posição de origem que corresponda a uma situação histórica diferente da atual, onde essa base originária seria terreno existencial do ente que compreende ser, do ser-aí. A partir do momento que se apodera dos conceitos metafísicos na gênese da tradição para conduzi-la ao seu horizonte, isso dependerá de um dialogo com a história da filosofia e da historicidade humana. Dessa forma, a questão do sentido do ser conduz a si mesma a uma compreensão fática em concordância com seu próprio trajeto, onde se faz necessário uma explicação sobre nossa existência. Conclusões Heidegger mostra em seus trabalhos que a hermenêutica não é apenas uma interpretação, mas é um questionamento que visa à compreensão acerca do sentido do ser, que se ocupa com a forma de fato com que o ente se mostra, e que no decorrer de seus escritos ele vem a chamar de analítica existencial. Já a facticidade em seu ponto de vista, não é apenas um conjunto de fatos da história, mas um caráter do ser-aí em cada ocasião. O que o autor busca enfatizar é que a hermenêutica da facticidade no plano fenomenológico designa o próprio âmbito no qual somos aí no mundo. Logo após ter desenvolvido uma “hermenêutica da facticidade”, Heidegger acredita que a ontologia fundamental necessita de um projeto que se pode pensar um cenário onde as ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 227 interpretações históricas, quando existente faz do ser e de si mesmo. É nesse contexto que passa a fazer sentido falar em desconstrução. Partindo desse ponto, o autor faz uma análise da tradição filosófica para uma compreensão do ser, e depois de ter elaborado uma “hermenêutica da facticidade”, conclui ser necessária uma destruição da tradição filosófica. Neste momento, se torna compreensível sua atitude de fazer essa desconstrução da história da filosofia, uma vez que este procedimento seria a libertação do problema do ser das amarras que dominavam as interpretações filosóficas tradicionais. Enfim, após a análise e busca pela interpretação dos trabalhos de Heidegger, conclui-se que de fato a desconstrução da tradição ontológica se faz necessária, uma vez que este trabalho seria a emancipação de ideias originárias no seio da filosofia e a abertura para novos horizontes e novas possibilidades de interpretação do ser. Referências Bibliográficas: HEIDEGGER, M. Ontologia (Hermenêutica da facticidade). 2ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. HEIDEGGER, M. Ser e tempo. 9ed. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2014. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 228 CIÊNCIA E RELIGIÃO NOS ESCRITOS EDUCATIVOS DE JOHN LOCKE Christian Lindberg L. do Nascimento Universidade Federal de Campinas - UNICAMP Bolsista da FAPESP [email protected] Orientador: Profª. Drª. Lidia Maria Rodrigo RESUMO: O presente texto tem como objetivo central discorrer sobre o pensamento educativo de John Locke. Embora haja argumentações relevantes e pertinentes, a abordagem que este trabalho desenvolve é centrada, única e exclusivamente, no aspecto moral. Para tanto, parte-se de um problema identificado no conjunto da obra de Locke. Fala-se da aparente controvérsia entre a ciência e a religião e o papel que cada uma exerce na formação moral da criança. É com base nesse recorte que a presente análise é feita. Para a construção argumentativa, utilizou-se como fonte primária: Do estudo (1677), Apontamentos de uma carta de Locke para a Condessa de Peterborough (1697), Ensaio sobre a lei assistencial (1697) e Algumas ideias acerca da leitura e do estudo para um cavalheiro (1703). De forma secundária, foi adotada obras de comentadores relevantes. Por ser um estudo estritamente qualitativo, o procedimento metodológico usado foi a análise de conteúdo, sendo a leitura, o fichamento e a interpretação dos dados obtidos a técnica de pesquisa empregada. Palavras-chave: Ciência; educação; Locke; moral; religião. John Locke é daqueles autores que não desenvolveu uma reflexão sistemática a respeito da educação. Sendo assim, qual o motivo de ele ter sido inserido como um expoente para a Filosofia da educação? Para responder a este questionamento, a presente argumentação virá expor a concepção educativa do filósofo inglês, tendo como ponto de partida o papel que os conteúdos educativos têm. Esta abordagem será alicerçada em quatro obras educacionais dele. Escrito durante o exílio na França, Do estudo aparece como a primeira publicação educativa de Locke. Baillon (2005, p. 20) observa que este manuscrito foi redigido com o intuito de estabelecer um método de trabalho direcionado a um adulto que se dedica aos estudos, tendo ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 229 como foco elevar a própria autonomia e complementar a formação intelectual. Por outro lado, diz o comentador, Do estudo apresenta um esboço do que será o STCE. O que Locke expõe nesta obra são caminhos e métodos para o aperfeiçoamento das experiências da própria pessoa, requisito necessário para o governo de si. Assim, o objetivo da educação é estabelecer uma filosofia moral, a ponto de o governo de si ser a premissa fundamental para a constituição de uma sociedade. Esta filosofia moral compreende a religião e as obrigações que a moral religiosa impõe para a vida de cada um. Locke parte da análise da educação vigente, centrada nas disputas – disputation - e na memorização dos conteúdos educativos. A refutação manifesta-se quando o filósofo afirma que o labirinto de palavras e frases é inventado somente para instruir e entreter as pessoas na arte da disputation (LOCKE, 1986b, p. 354). Assim, o que há é o desenvolvimento de palavras, frases e argumentos sem o progresso do conhecimento. Na crítica à educação vigente, o filósofo demonstra certa preocupação com o uso inapropriado do tempo para o estudo. Como exemplo, cita o caso do ensino de idiomas. Para ele, perde-se muito tempo lecionando idiomas inúteis para a vida do infante. Como contraponto, defende que é mais importante aprender o vernáculo do que outro idioma, salvo aqueles que põem o indivíduo em contato direto com o texto original das Sagradas Escrituras, já que esta obra traz consigo o fundamento eterno da verdade. Por outro lado, Do estudo implica três direções para cada indivíduo: 1) O conhecimento do caminho que o conduz para os assuntos celestiais; 2) A percepção de que a felicidade em outro mundo requer uma conduta discreta e o autocontrole, ou seja, que o indivíduo seja prudente; 3) O ensino de uma profissão, já que o trabalho é uma norma estabelecida por Deus, obrigando cada um a trabalhar para garantir a própria subsistência. Para Locke, o livro é o recurso didático mais apropriado para ensinar. A leitura e a meditação sobre os conteúdos trazidos por ele tornam-se a ponta de lança para a ação, o que requer a seleção das melhores obras e autores. Esta preocupação de Locke tem um motivo. O que o filósofo pretende é tornar possível à mente humana aprender os conhecimentos úteis para a ação, respeitando os princípios da moralidade. Mas o que mais chama a atenção nesta obra é a relação entre a vida mundana e a extramundana, relação esta que perpassa implicitamente o Do estudo. Escrita na década de 1670, a obra repercute o alinhamento existente entre a lei de natureza e a lei civil. Como a moral é o tema central dos escritos lockeanos, parece que os preceitos educativos contidos em Do estudo ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 230 demonstram afinidade com a teoria política defendida pelo filósofo. Mais do que isso, o que Locke pretende é, através da educação, estabelecer as condições necessárias para que a criança aprenda a verdade e a pratique em sociedade, até porque esta é um dever que os seres humanos têm para com Deus, fonte e autor de toda a verdade. Já Apontamentos de uma carta de Locke para a Condessa de Peterborough (ALCP) é uma carta endereçada à citada condessa, que tinha pleiteado orientações para educar o próprio filho. Para Baillon (2005, p. 21), este pequeno texto não tem a pretensão de ser um minucioso tratado educativo. O que Locke fez foi indicar à condessa ensinamentos úteis para a educação da criança. Nesta obra, o filósofo inglês afirma que a educação é o fator determinante para o futuro da criança, portanto os pais devem se preocupar bastante com ela. Essa observação é pertinente porque Locke expõe uma breve rejeição à educação então vigente. Locke estabelece que o objetivo central da educação é a formação moral da criança. Para tanto, defende a importância de o infante conhecer a História: “A história é considerada como um dos estudos mais necessários para um cavalheiro e um dos mais divertidos e fáceis de ser aprendido.” (LOCKE, 1986a, p. 352, tradução minha). O fato de ele citar Tito Lívio caracteriza a preocupação com a formação do futuro governante. O ensino de conteúdos relacionados à Geografia, à Cartografia, à Cronologia e à Leitura só tem utilidade se colaborar para a melhor compreensão da História. Deve-se ensinar à criança outros conteúdos educacionais, como a filosofia natural, a química, a anatomia. Seguindo os passos metodológicos da Ciência moderna, Locke recomenda que sejam ensinadas primeiramente as coisas mais fáceis e perceptíveis aos sentidos da criança para, só em seguida, se proceder de forma gradual até as questões mais abstratas. Todavia, se os conteúdos científicos colaboram para a educação da criança, Locke atribui ao Novo Testamento o poder de ser o principal guia moral para o infante. Jesus Cristo é o exemplo de homem a ser constituído e seguido. É com base nessa preocupação que Locke vincula educação e política, a ponto de dizer que a verdadeira política é uma parte da Filosofia moral. Assim, a educação deve ser capaz de formar as crianças para que elas vivam em comunidade, mesmo sendo ela recheada de vícios. Alguns pensamentos a respeito de leitura e estudo para um cavalheiro foi redigido com o propósito de produzir um programa de leitura destinado aos indivíduos. Baillon (2005, p. 21) chama atenção para o fato de que com esta obra Locke demonstra adaptar seus conselhos e métodos educativos ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 231 para as situações concretas mais diversas. As recomendações feitas por ele têm como preocupação central aperfeiçoar o entendimento humano: “A leitura existe para aperfeiçoar o entendimento. O aperfeiçoamento do entendimento tem duas finalidades: primeiro, visa a nosso próprio aumento do conhecimento; segundo, visa a nos permitir transmitir e mostrar esse conhecimento para os outros.” (LOCKE, 2007a, p. 435). Ora, sendo a atribuição central da leitura o aperfeiçoamento do vocabulário e o enriquecimento dele para que cada indivíduo possa melhor expor as próprias ideias, pode-se apontar que a leitura colabora para o desenvolvimento do entendimento. De igual modo, da mesma forma que Locke defende que os conteúdos educativos tenham uma utilidade prática para a vida das pessoas, com a leitura não poderia ser diferente. Contudo, ele atenta ao fato de que as leituras não podem conduzir à erudição, pelo contrário, as leituras devem possibilitar o raciocínio correto. Sendo assim, o que ler então? Os livros devem ser selecionados de acordo com a moralidade a que se pretende conduzir o leitor. Embora reconheça a existência de vários livros que podem cumprir esse papel, o Evangelho é o que há de melhor quando o assunto é a formação moral. Para Locke, só o Novo testamento é capaz de ensinar a verdadeira moralidade. Livros de política também fazem parte das sugestões dele. A leitura de textos políticos precisa relatar a origem das sociedades e a história da própria nação. Ele menciona outros tipos de leitura. Devem ser lidos livros de Cronologia e Geografia para darem suporte aos de História, além de ser recomendada a leitura de livros que auxiliem no conhecimento da natureza do próprio homem. Estas três primeiras obras – Do estudo, Apontamentos de uma carta de Locke para a Condessa de Peterborough e Alguns pensamentos a respeito de leitura e estudo para um cavalheiro - são direcionadas para alguns casais que integram o círculo de amizade de Locke, o que pode conduzir a leituras apressadas, simplistas e que apontam o filósofo inglês como precursor da educação burguesa.29 No entanto, há outro texto produzido por ele que é direcionado para as camadas pobres da sociedade, onde aborda o tema da educação para os pobres. Karl Marx e Friedrich Engels apontam, no Manifesto comunista, o papel histórico da burguesia e os feitos realizados por ela. Afirmam que a burguesia ao chegar ao poder desempenhou um papel revolucionário e decisivo na história da humanidade, derrubando todas as relações feudais e monárquicas existentes, além de desvelar a brutalidade da Idade Média. Este relato é oportuno porque Locke colaborou com o protagonismo político da burguesia inglesa do século XVII, a mesma que realizou a primeira grande revolução burguesa na Europa. Desconsiderar este fator contextual seria um erro grotesco que poderia conduzir os intérpretes ao anacronismo. 29 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 232 Escrito com o objetivo de dar uma contribuição à lei assistencial proclamada por Elizabeth, no ano de 1601, o Ensaio sobre a lei assistencial é uma obra que registra sugestões para a primeira política de assistência social30 de que se tem relato. Locke (2007b, p. 226) argumenta em torno da necessidade de que cada paróquia deve ser obrigada a fornecer emprego para os homens pobres e fisicamente capazes, de modo a garantir meios de subsistência para eles e permitir a arrecadação de um imposto para sustentá-los. Locke argumenta que não há falta de empregos para os pobres, e atribui a Deus a fartura de alimentos, a pujança no comércio e a paz. Contudo, para o filósofo inglês a origem da pobreza é o vício e ocorre por causa do relaxamento da disciplina e do aumento do ócio. Ele alega que a pobreza é uma vergonha para a cristandade. Locke chega a ser rígido quanto às punições, propondo que todos aqueles que possuam um corpo e uma mente sã, tenham mais de 14 anos e estejam mendigando sejam presos ou enviados para realizar trabalho forçado nos portos ingleses. Já para as crianças com menos de 14 anos, o castigo é o encaminhamento para as escolas, locais onde são açoitadas e obrigadas a trabalhar até o anoitecer. Mészáros, no livro Educação para além do capital, afirma que Locke pretendia controlar as atividades dos pobres com uma disciplina perversa, mesmo sendo um homem religioso. Segundo Mészáros, Locke promove a combinação entre “uma disciplina de trabalho severa e a doutrinação religiosa”, e complementa: “As medidas tinham de ser aplicadas aos ‘trabalhadores pobres’ e eram radicalmente diferentes daquelas que os ‘homens de razão’ consideravam adequadas para si próprios.” (MÉSZÁROS, 2005, p. 42). Estabelece-se, assim, a divisão entre a educação para os ricos e para os pobres, separação guiada pelo afloramento do capitalismo. O que o marxista húngaro esquece de mencionar é que os únicos ambientes educativos para as crianças pobres eram as denominadas escolas de caridade.31 No final do século XVI e início do XVII, a Inglaterra passou por um grande êxodo rural. Pessoas dos mais diversos cantos do país migraram para as cidades em busca de trabalho. Preocupada com a explosão social, a rainha Elizabeth, com a chancela do parlamento, aprovou a denominada Lei dos Pobres, que tinha como atributo central garantir assistência social para os pobres que residiam nos centros urbanos. A ideia funda-se no preceito de que o Estado repassasse recursos para a Igreja e que esta instituição realizasse atividades assistenciais como, por exemplo, alimentar os pobres, capacitá-los profissionalmente, cuidar da saúde deles e preocupar-se com a sua formação moral. 31 A escola de caridade é uma consequência prática da moral calvinista. Para os reformadores educacionais, a caridade é um dever civil universal. O próprio Locke, no Dois tratados sobre o governo, expõe que: “Tal como a justiça confere a cada homem o direito ao produto de seu esforço honesto e as legítimas aquisições de seus ancestrais são transmitidas a ele, a caridade confere a cada homem o direito àquela porção da abundância de outrem que possa afastá-lo da extrema necessidade quando não dispõe de outros meios para subsistir.” (LOCKE, 2001, p. 244) 30 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 233 O que se pode afirmar é que a formação moral guiou a reflexão educativa feita por Locke. Inicialmente, ele defende que devem ser construídas escolas operárias32 para os filhos dos pobres33 em cada paróquia, nas quais as crianças recebam alimentação, aprendam um ofício e sejam obrigadas a frequentar a Igreja aos sábados. O filósofo inglês argumenta que a instituição religiosa tem a tarefa de realizar a educação moral dos infantes, corrigindo-as para o convívio social. Por fim, o trajeto educativo exposto por Locke nas reflexões filosóficas contidas em Do estudo, Apontamentos de uma carta de Locke para a Condessa de Peterborough e Ensaio sobre a lei assistencial aponta para um mesmo caminho: a constituição de indivíduos moralmente corretos. Para tanto, os conteúdos educativos tornam-se meios fundamentais para que isso ocorra, a ponto de que cada conteúdo tenha validade na medida em que seja útil para a vida futura da criança. Por outro lado, percebe-se que a moral cristã, ensinada a partir das Sagradas escrituras, contém os ensinamentos necessários para o estabelecimento desse indivíduo moral. Referências Bibliográficas: BAILLON, Jean François. Une philosophie de l’éducation: John Locke, Some thougths concerning education (1693). Domont-FRA: Dupli-Print, 2006. EBY, Friedrich. História da educação moderna. Rio de Janeiro: Globo, 1978. LOCKE, John. Alguns pensamentos a respeito de leitura e estudo para um cavalheiro. In.: Ensaios políticos. Organizado por Mark Goldie. Trad. Eunice Ostrensky. São Paulo: Martins Fontes, 2007a. p.434-442. ___________. Borrador de una carta de Locke a la Condessa de Peterborough. Trad. Rafael Lasaleta. Madrid: AKAL, 1986a. ___________. Del estudio. Trad. Rafael Lasaleta. Madrid: AKAL, 1986b. Embora centre a sugestão para o meio urbano, Locke não descarta a educação agrícola como um dos tipos de escolas operárias. 33 A faixa etária estipulada vai dos 3 até os 14 anos. A criação destas escolas permite às mães irem ao trabalho sem se preocuparem com a assistência para o filho, já que estes estão em um ambiente seguro. Inclusive, os pais podem receber uma pensão destinada a comprar os mantimentos necessários para a sobrevivência dos filhos, se os enviarem para as escolas paroquiais. 32 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 234 ___________. Dois tratados sobre o governo. Trad. Julio Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001. (Clássicos). ___________. Ensaio sobre a lei assistencial. In.: Ensaios políticos. Organizado por Mark Goldie. Trad. Eunice Ostrensky. São Paulo: Martins Fontes, 2007b. p.226-246. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Trad. Sueli Tomazini Barros Cassal. Porto Alegre: DP&M, 2001. MÉSZÁROS, István. Educação para além do capital. Rio de Janeiro: Boitempo, 2005. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 235 JUSTIÇA COMO EQUIDADE: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES QUANTO ÀS IDEIAS DE JOHN RAWLS Daniele Bet Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE [email protected] Orientador: Prof. Ms. Celito De Bona RESUMO: John Rawls, filósofo político norte-americano, possui grande importância no campo da filosofia do direito. Dentre suas obras, “Uma Teoria da Justiça”, publicada, originariamente, em 1971, possui grande destaque nas discussões e estudos acerca do conceito de Justiça. Em virtude disto, o presente trabalho tem como objetivo apontar os principais pontos apresentados na parte inicial da obra “Uma Teoria da Justiça”. Afinal, é na primeira parte do livro que John Rawls apresenta a “justiça como equidade”, concepção que faz parte de sua teoria. Palavras-chave: Teoria; justiça; equidade; Rawls Introdução: A proposta inicial de John Rawls, ao apresentar sua teoria, é imaginar um contrato social hipotético, partindo de uma “posição inicial”, na qual todas as pessoas se encontram em uma posição original (inicial) de equidade. Vestidas com um “véu de ignorância”, a fim de deliberar sobre quais os princípios de justiça que seriam utilizados na formação da sociedade. Estes princípios definiriam as regras da justiça nas instituições, que, por sua vez, seriam as intermediárias entre as pessoas, no convívio social. Pois, segundo ele, “a justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas de pensamento” (RAWLS, 1981, p. 27). A ideia de Rawls é que, usando este “véu de ignorância”, as pessoas ignorariam suas características pessoais. Ninguém conheceria suas condições financeiras, nem suas qualidades ou falhas. Assim, com o uso do véu, seriam capazes de pensar de forma equilibrada e imparcial. Pois ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 236 teriam de decidir os princípios essenciais sem pensar em si. Deixariam o egoísmo de lado, pois não haveria nada que garantisse que as decisões tomadas às beneficiariam ou prejudicariam. Assim, a única opção, seria procurar algo que fosse bom para todos, independentemente de características e situações individuais. Justiça como equidade É em contraposição ao princípio do utilitarismo que Rawls apresenta sua teoria de Justiça. Enquanto o utilitarismo (princípio da “máxima felicidade”) define como “melhor”, “mais justo” e “mais correto”, aquilo que traz mais felicidade para o maior número de pessoas, a equidade busca definir a ideia de justiça partindo de um ponto comum, de um estado de igualdade. Em virtude disto, as pessoas precisariam ignorar o que realmente eram. Ninguém deveria conhecer sua real situação, nem saber o que seriam, ou teriam, no futuro. E, para que isto fosse possível, todos precisariam ser cobertos pelo “véu”. Esta forma de definir os princípios da justiça (que devem regular as instituições), Rawls denomina “justiça como equidade”: Estes princípios são os que pessoas livres e racionais, reunidas pelos mesmos interesses, adotariam inicialmente quando todos estivessem numa posição de igualdade, para definir os termos fundamentais da associação que estariam fazendo. [...] A esta maneira de ver os princípios de justiça chamaremos de justiça como equidade. (RAWLS, 1981, p. 33) Pois, esta “justiça como equidade”, é o que busca resolver o conflito existente na distribuição dos bens sociais entre as pessoas. A Proposta de Rawls Considerando que a ideia de John Rawls era usar a equidade como base para fazer a sociedade funcionar de forma justa, o filósofo propôs um modelo de instituição que deveria ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 237 fomentar e aplicar o valor de justiça, buscando minimizar as diferenças sociais. Para Rawls, a justiça deveria ser pactuada previamente às instituições. Para que isto fosse possível, as pessoas que compõem esta sociedade deveriam ser vestidas com o véu da ignorância, o que as deixaria num estado de igualdade (posição inicial). Nesse momento, ninguém optaria por valores de justiça que pudessem ser vantajosos para uns, e prejudiciais para outros, pois ninguém conseguiria saber de que forma seria afetado. Afinal, estando todos na mesma posição, e ignorando o que está por vir, não teriam como saber se seriam prejudicados ou agraciados com tais decisões. A partir disso, Rawls desenvolve seu raciocínio ponderando que, as pessoas se encontram em diferentes posições sociais e possuem diferentes características pessoais, o que influencia em todas as suas decisões e expectativas. E é isto que a “posição original” de igualdade busca reparar. Entre os traços essenciais desta situação [posição original], encontramos o fato que ninguém conhece sua posição na sociedade, nem a posição de sua classe, e nem mesmo seu status social ou a parte que lhe caberá dentro da distribuição do conjunto de bens e das capacidades naturais, ou de sua natureza, força ou semelhante. Assume-se também que as partes não conhecem seus diferentes conceitos de bem, ou suas propensões psicológicas particulares. Os princípios de justiça são, dessa forma, estabelecidos em total ignorância da posição específica de cada um. (RAWLS, 1981, p. 33 – 34). Assim, no momento em que todas se encontram na mesma posição social e possuem as mesmas características, buscarão algo que favoreça a todos. E, segundo o filósofo, é isto que também “garantirá que não se possa tirar vantagens ou sofrer desvantagens durante o processo de escolha dos princípios” (RALWS, 1981, p 34). Ninguém buscaria princípios que favorecessem determinadas classes ou características, pois não teriam como saber se estariam inseridos em tais classes e se possuiriam tais características. Deste modo, parece razoável e aceitável, de forma geral, que ninguém possa tirar vantagens ou desvantagens da escolha dos princípios por sorte, ou por circunstâncias sociais. Parece também ser de ampla aceitação, o fato de que seria impossível ajustar os princípios às circunstâncias peculiares a cada caso particular. Deveríamos, além disso, assegurar que as inclinações particulares, as aspirações e a visão que cada pessoa tem de seus bens, não venham a afetar os princípios que seriam racionalmente propostos e aceitos. (RAWLS, 1981, p. 38) ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 238 Assim, a justiça deve, usando tais instituições sociais criadas com base na justiça equitativa, garantir que não existam distinções arbitrárias entre as pessoas, no que tange os direitos e deveres básicos e, também, garantir regras que possibilitem equilíbrio na reivindicação de interesses e vantagens para a vida social e para a distribuição de rendas e riquezas. É neste cenário que Rawls desenvolve sua concepção política de justiça, sua justiça como equidade, e os princípios que a devem reger. Os princípios na teoria da justiça como equidade Diante de sua “justiça equitativa”, Rawls nos faz pensar sobre quais os princípios que escolheríamos, partindo da situação de igualdade, da posição original de equidade. Para ele, os princípios devem decorrer de uma visão mais geral, mais ampla e, consequentemente, mais equilibrada, onde os valores sociais como liberdade, oportunidade, renda, riqueza e até mesmo, auto-estima, devem ser distribuídos de forma equilibrada. Salvo, é claro, se alguma distribuição desigual puder beneficiar toda a sociedade. Rawls acredita que não optaríamos pelo princípio da máxima felicidade (o utilitarismo), pois consideraríamos a terrível possibilidade de fazermos parte da minoria oprimida. Não há razão para se supor que os princípios, que deveriam regular uma associação de homens, sejam simplesmente uma extensão do princípio da escolha de um só indivíduo. Muito pelo contrário: se presumirmos que o princípio regulador, correto para qualquer coisa, depende da natureza da coisa em si, e que a pluralidade de indivíduos distintos com diferentes sistemas de finalidades é um traço essencial das sociedades humanas, não deveremos esperar que o princípio da escolha social seja do tipo utilitarista. (RAWLS, 1981, p. 45) Seguindo essa ideia, para John Rawls, os princípios escolhidos seriam dois: o princípio da liberdade igual (ou, igualdade de liberdades) e o princípio da diferença. Estes princípios, por sua teoria, deveriam ser aceitos por todos, a fim de possibilitar que os direitos e liberdades sejam tão extensos quando possível, para cada pessoa, tendo como limite os direitos e liberdades dos demais. Também as desigualdades sociais e econômicas devem estar igualmente distribuídas para qualquer posição, para promover o melhor benefício pela menor desvantagem. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 239 O primeiro princípio é o que oferece para todos as mesmas liberdades básicas. E o segundo princípio refere-se à equidade social e econômica, onde as desigualdades sociais e econômicas devem ser organizadas de tal forma que, ao mesmo tempo, possam beneficiar e trazer vantagens para todos (dentro dos limites do razoável) e ser vinculadas a posições acessíveis a todos. O princípio da liberdade igual busca garantir um sistema de liberdades e direitos iguais para todas as pessoas, da forma mais ampla possível. Por esse princípio, entende-se que cada indivíduo, considerado como cidadão participante no estado de direito, deve possuir algumas liberdades básicas. E, segundo Rawls: As liberdades básicas do cidadão são, de forma geral, a liberdade política (o direito de voto e a elegibilidade para cargos públicos) associada à liberdade de expressão e de reunião; a liberdade de consciência e de pensar; a liberdade pessoal associada ao direito à propriedade; e a liberdade de não ser preso arbitrariamente e de não ser retido fora das situações definidas pela lei. (RAWLS, 1982, p. 68) Por este princípio, entende-se que estas liberdades básicas devem existir igualmente para todos, pois elas são necessárias para que seja possível atingir o primeiro princípio. Rawls considera tais liberdades básicas como moralmente significantes e imprescindíveis aos indivíduos. Isto, pois, elas são necessárias para a consideração e escolha de seus interesses e, ainda, são necessárias para que as pessoas tenham um senso de justiça. Afinal, nas palavras do próprio filósofo: “todos os cidadãos de uma sociedade justa devem ter os mesmos direitos básicos”. (RAWLS, 1981, p. 68) O segundo princípio é aplicado no que diz respeito à distribuição de renda e riqueza. Nesse sentido, é importante lembrar que, para Rawls, a renda e a riqueza não precisam ser iguais para todos. Basta que a distribuição delas aconteça de tal forma que beneficie todos, independentemente, de posição social ou qualquer outra característica. O princípio da diferença, segundo a formulação de John Rawls, é aquele que combina as desigualdades econômicas e sociais, de uma forma que ambas “correspondam à expectativa de que trarão vantagens para todos”, e “que sejam ligadas a posições e a órgãos abertos a todos”. (RAWLS, 1981, p. 67) O filósofo assume que a divisão igualitária dos bens e da riqueza pode causar problemas. Porém, acredita que as desigualdades sócio-econômicas são permitidas, desde que exista um compromisso entre os mais e os menos favorecidos, ou seja, que o progresso dos mais ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 240 favorecidos se reflita em melhoria na situação dos menos favorecidos. Assim, com este compromisso, todos conseguem obter vantagens. Usando os princípios da liberdade igual e da diferença, John Rawls procura preservar o valor do indivíduo. Seja protegendo as suas liberdades básicas fundamentais ou proporcionando melhorias sociais para sua vida. Porém, para que isto seja possível, os dois princípios da Teoria da Justiça devem obedecer a uma ordem: primeiro, o princípio da liberdade igual e, depois, o princípio da diferença. Esta ordem significa que: as violações das liberdades iguais (protegidas pelo primeiro princípio), não podem ser justificadas, nem compensadas, por maiores vantagens sociais. Nesse sentido, explica Rawls: Tais princípios devem ser organizados dentro de uma ordem serial, com o primeiro princípio antecedendo o segundo. Esta ordem significa que, partindose das instituições de liberdade igualitária para a exigida pelo primeiro princípio, não poderão ser justificadas ou compensadas, através de maiores vantagens econômicas ou sociais. A distribuição de bens e renda, e as hierarquias de autoridade, devem ser consistentes tanto com as liberdades de cidadania igual quanto à igualdade de oportunidade (RAWLS, 1981, p. 68) São os princípios apresentados por John Rawls, que configuram a ideia da justiça como equidade. Sendo que, esta ideia de justiça, esta forma de justiça, não busca a divisão igualitária e totalizadora de bens e da autoridade. Pois ele compreende que esta desigualdade é inevitável e até mesmo, necessária. Dessa forma, a equidade deve ser entendida como uma tentativa de equilibrar os diferentes interesses presentes na sociedade. Ou seja, a equidade busca uma forma de obter vantagens para todos, baseando-se na escolha do princípio da liberdade igual e da diferença, escolhidos na situação inicial de posição original. Ainda a respeito da importância dos princípios, o filósofo explica: Os princípios do direito, assim como os da justiça, impõem limites determinando quais os desejos que têm algum valor; eles impõem restrições sobre o que é razoável conceber como o bem de uma pessoa. Traçando-se planos e decidindo-se sobre as aspirações dos homens, deve-se levar em conta estas pressões. Consequentemente, na justiça como equidade, não se devem tomar as propensões e inclinações dos homens como dados absolutos, sejam quais forem, e então procurar obter a melhor forma de preenchê-las. Seria preferível que seus desejos e aspirações fossem limitados desde o princípio, pelos princípios da justiça que especificam tais limites, de forma tal que os ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 241 sistemas de objetivos dos homens sejam respeitados. Poderíamos expressar tal ideia, dizendo que na justiça como equidade, o conceito do direito vem antes do que for bom. (RAWLS, 1981, p 46) Assim, para que a sociedade seja justa, conforme a ideia de justiça como equidade, faz-se necessário que os cidadãos aceitem os princípios (que devem ser escolhidos com o auxílio do “véu da ignorância”). E, ainda, que os apliquem obedecendo a “ordem serial”: primeiro o princípio da liberdade igual e depois, quando este primeiro já tiver sido “satisfeito”, o segundo princípio, o princípio da diferença. Conclusão A Teoria da Justiça, de John Rawls, foi a primeira grande teoria sobre o assunto. Apesar de já ter recebido inúmeras críticas, tanto quando publicada como ainda nos dias atuais, ela é de grande importância para as discussões referentes à justiça em geral. Para compreender a ideia de justiça, é necessário estudar os princípios elencados na obra de John Rawls. Afinal, ao apresentar seus princípios como pressupostos básicos para a criação de uma sociedade justa, ele nos mostra pontos sobre os quais devemos refletir. Assim, compreendendo os princípios apresentados por ele e entendendo o seu objetivo, é possível compreender a necessidade de pensar sob o “véu da ignorância”. Pois, como ele defendeu, as pessoas só são capazes de optar por tais princípios e, consequentemente, conquistar uma sociedade justa, se não estiverem “cegas” por seus interesses individuais e egoístas. Apesar disso tudo, ao apresentar sua teoria, Rawls sabe que é impossível ter uma visão única a respeito de justiça. Afinal, as pessoas são diferentes, vivem em sociedades distintas e possuem culturas e hábitos bastante diversificados. Por isso, “justiça” sempre será um conceito relativo. Dessa forma, é possível verificar a importância da Teoria da Justiça criada por John Rawls. Pois, ele demonstra grande preocupação social, em uma época onde o individualismo é uma das características predominantes. E, por consequência, defende que todos devem ter as mesmas chances, e que os mais fracos não devem ser “sufocados” pelas vontades e interesses dos mais fortes. Enfim, Rawls acredita que sua teoria possui força para, por meio da própria justiça, criar ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 242 uma sociedade justa, igualitária e equilibrada. Colocando, assim, em prática, a “justiça como equidade”. Referências Bibliográficas: RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Brasília: Universidade de Brasília, 1981. ___________. O Liberalismo Político. São Paulo: Editora Ática, 2000. SANDEL, Michael J. Justiça: O que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 243 EDUCAÇÃO CRÍTICA E DIREITOS HUMANOS Dayanne Vicentini Universidade Estadual de Londrina – UEL Bolsista Fundação Araucária. [email protected] Profª. Rosa de Lourdes Aguilar Verástegui RESUMO: Este estudo tem como objetivo principal observar a relação existente entre os direitos humanos, a dignidade, a liberdade e a educação para a cidadania. Justificamos a intenção da pesquisa porque existe consenso em reconhecer a educação como um direito, embora seja necessário esclarecer que tipo de educação é esta, pois ela deve resguardar a dignidade humana e permitir a liberdade. A liberdade deve estar atrelada à autonomia, para que a partir dela os indivíduos possam construir a democracia. A metodologia se pautará em pesquisa bibliográfica, tendo a Della Mirândola, Bobbio, Apple e Giroux como principais referenciais. Esta pesquisa poderá contribuir para o debate de elementos que denunciam a falta de criticidade da educação, fator este que é fundamental para manter a dignidade e a liberdade. Palavras-chave: Educação crítica; direito à educação; educação para a cidadania Introdução: O objetivo deste trabalho é observar algumas relações entre os direitos humanos e a educação. Para isto, abordamos as manifestações dos direitos humanos: a dignidade e a liberdade fazendo uma relação com a educação para a cidadania. A educação proposta nesta pesquisa é uma educação que nos prepare para exercer nossa cidadania: a educação crítica. Justificamos a pesquisa dada a importância política na formação de cidadãos críticos e ativos. A pesquisa é bibliográfica e servirá para ressaltar o papel da educação na sociedade, bem como para refletir o compromisso dos docentes e discentes no exercício da cidadania e no respeito pelos direitos humanos. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 244 Falar de direitos humanos como a conquista pela igualdade, pela liberdade e a fraternidade nos remete à declaração dos direitos do homem e do cidadão. Por isso, dizemos que os direitos humanos formam um conceito moderno, mesmo tendo antecedentes políticos filosóficos que nos lembrem de uma proposta de liberdade humana e de fraternidade universal. Essas propostas não tinham o status de medida política imposta com caráter de lei como acontece na Revolução Francesa (BITTAR, 2004). Ao reconhecer que os seres humanos são seres dignos de direitos, eles devem ter sua dignidade preservada, assim estamos falando de direitos humanos universais. Os direitos humanos tiveram um processo de reconhecimento internacional, o qual legitimou e fortaleceu sua constituição. Da Revolução Francesa que só reconhecia os direitos dos homens, passamos à declaração dos direitos dos seres humanos. Logo após a Segunda Guerra Mundial, as nações veem a necessidade de criar uma ordem internacional que permita fortalecer internacionalmente o cumprimento dos direitos humanos. Um destes passos que marcam as conquistas dos direitos humanos foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, isto devido a um consenso da Organização das Nações Unidas, assim no Preâmbulo desta declaração encontramos que “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”. Mas, como o que desencadeou esta necessidade internacional foram as agressões contra a humanidade do regime alemã fascista, a declaração manifesta que é “essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra tirania e a opressão”(ONU,1948). Observando a necessidade de cumprimento e respeito por parte dos estados assinantes com a intervenção dos povos que representam, a Declaração cuida para que todo o assinado passe a conhecimento da população e das futuras gerações através da educação. Considerando a educação, parte fundamental para poder cristalizar os ideais da Declaração dos Direitos Humanos, passamos a iniciar nossa proposta sobre a educação crítica, a dignidade humana e os direitos humanos. Sobre a dignidade humana ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 245 Antes de tratar de direitos humanos universais, a filosofia já abordava a condição universal da Dignidade Humana, e assim encontramos no livro de Pico della Mirândola sobre a Dignidade Humana, uma alusão à seguinte exclamação, “o Asclépio, que portento de milagre é o homem!”, um ser admirável, “mensageiro da criação, parente de seres superiores, rei das criaturas inferiores, [...] enfim, um pouco menor que os anjos, conforme o testemunho de Davi” (DELLA MIRÂNDOLA, 2006, p. 37). A enumeração das qualidades do ser humano nos ajuda a observar a importância deste ser frente à natureza, da qual ele é herdeiro. E todas elas constituem razões para respeitar e admirálo. A liberdade é o único que o caracteriza e o faz inacabado. Sobre esta liberdade Della Mirandôla ressalta, “tu, porém, não estás coarctado por amarras nenhuma. Antes pela decisão do arbítrio, em cujas mãos depositei, hás de predeterminar a tua compleição pessoal.” (DELLA MIRÂNDOLA, 2006, p. 39). Deixando esta liberdade nas mãos dos homens, eles poderão descer ao nível dos seres mais embrutecidos ou escolher livremente ascender aos níveis divinos. Maior liberdade não podia ter nenhuma criatura. Quando Pico ressalta a dignidade humana, ela radica no que o caracteriza, o faz único entre as criaturas, sua liberdade. A liberdade permite ao ser humano crescer, e continuar a criação divina. Praticamente ele é o grande continuador da obra divina. Mas dado que a liberdade deixa a decisão em mãos humanas, “oxalá nossa alma se deixe conduzir pela santa ambição de superar a mediocridade e anele por coisas mais sublimes” (DELLA MIRÂNDOLA, 2006, p. 42). A razão livre que nos ajuda a orientarmos e a ser criterioso nas decisões é o que caracteriza ao ser humano. Porque o que nos diferencia dos animais e as plantas não é necessariamente o físico, senão ou como ele se comporta. O que nos faz melhores humanos não é nossa forma, senão a sensibilidade e critério para guiar nossas ações. Não é a aparência que caracteriza ou eleva ao ser humano e sem sua sensibilidade e prudência, que lhe permitem dominar suas paixões. Um ser com estas qualidades é “o mais augusto dos numes revestido de carne humana”. (DELLA MIRÂNDOLA, 2006, p. 41). Pico é bastante enfático ao aproximar ao ser humano dos vegetais e os outros animais, ressaltando que as características humanas que o fazem refletir e atuar com consciência crítica são ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 246 as que o levam ocupar junto com os Querubins os lugares mais elevados, porque podemos ter a mesma dignidade que estes seres incorpóreos. A educação crítica como um direito que preserva a liberdade Enquanto um processo autoconsciente, a educação crítica refere-se à análise consciente e impõe uma necessária e radical vinculação da teoria à prática, com vistas à transformação das estruturas sociais vigentes. A escola, portanto, deve ajudar a criar condições necessárias à tomada de consciência, de forma articulada com a prática, para poder romper com o aspecto ideológico e mistificador de uma racionalidade que desumaniza. A educação crítica exigirá do campo educacional o mesmo procedimento das outras ciências, ou seja, conduzir tanto o trabalho pedagógico como a pesquisa em função de um processo crítico e emancipatório (PRESTES 1994). A educação crítica busca realizar conexões entre as práticas educacionais e culturais e a luta pela justiça social e econômica, direitos humanos e uma sociedade democrática para que se possa ampliar as compreensões críticas e as práticas libertadoras, com o objetivo de buscar transformações sociais e pessoais progressistas. (TEITELBAUM, 2011). Durante o século XX o mundo experimentou transformações profundas em diversos aspectos da vida social. No Brasil, aconteceu a tomada de poder dos militares no posto de governo, evento que fora marcado como “Golpe de 64”. A partir daí houve o reforço do poder executivo, o aumento do controle social pelo conselho de segurança nacional e o fim dos protestos sociais. O pensamento do povo é então “bloqueado” pela repressão, o exercício da democracia desaparece completamente na vida social do brasileiro, sendo ele uma testemunha da negatividade. A sociedade fora marcada por grande repressão e falta de liberdade de expressão. Inúmeros movimentos sociais surgiram no Brasil em prol de uma sociedade mais justa, igualitária e democrática, com melhores condições de vida e de trabalho. Sobre estes movimentos, Ghiraldelli (1999, p.120) afirma que, [...] entre a efervescência ideológica dos primeiros quatro anos da década de 60, cresceram organizações que trabalharam com a promoção da cultura popular, a educação popular, a desanalfabetização e a conscientização da população sobre a ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 247 realidade dos problemas nacionais [...] a movimentação dos anos 60 em torno da promoção da cultura popular prendeu-se às preocupações dos intelectuais jovens e alguns políticos com a emergência das massas na participação política do país. Será que os movimentos sociais conseguiram realizar essas promoções pré-estabelecidas? Como a sociedade se comporta hoje? Alienação? Consciência ingênua? Será que ainda somos represados mesmo sem perceber? Como a educação crítica pode auxiliar para que haja a verdadeira democracia? Para Apple, Au e Gandin (2011), devemos ver o mundo com senso crítico, para agir contra os processos ideológicos e institucionais que reproduzem condições opressivas. Dessa forma, a pedagogia crítica configura-se como uma filosofia educacional que auxilia os estudantes a desenvolverem uma consciência de liberdade, para reconhecer tendências autoritárias e tomar uma atitude crítica à vez para enfrentar os desafios da sociedade. De acordo com Giroux (2010), para o educador crítico Paulo Freire, a pedagogia era considerada como parte de uma prática política mais ampla em prol de uma mudança democrática. Sobre a relação entre educação crítica e democracia, Giroux (2010, p. 113) esclarece que, [...] ocupando o espaço entre o político e o possível, Paulo Freire passou a maior parte de sua vida trabalhando na crença de que vale a pena lutar pelos elementos radicais da democracia, que a educação crítica é um elemento básico da mudança social e que a forma como pensamos sobre a política é inseparável de como compreendemos o mundo, o poder e a vida moral que aspiramos a levar. A educação crítica é um elemento da mudança social e um instrumento para atingir uma verdadeira democracia. A democracia, assim como a liberdade é um dos temas históricos em debate e a sua efetivação depende das opções concretas que os homens venham a realizar. Assim, o elemento principal deste modelo de educação é a criticidade, que permite ao educador e aos educando a reflexão critica da realidade na qual estão inseridos, “possibilitando a constatação, o conhecimento e a intervenção para transformá-la” (MOREIRA, 2010, p.97). Para Freire (1967, p. 67) a postura crítica é importante para um desenvolvimento social justo porque, [...] implica num retorno à matriz verdadeira da democracia. Daí ser esta transitividade crítica característica dos autênticos regimes democráticos e corresponder a formas de vida altamente permeáveis, interrogadoras, inquietas e dialogais, em oposição às formas de vida “mudas”, quietas e discursivas, das fases rígidas e militarmente autoritárias, como infelizmente vivemos hoje, no recuo que ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 248 sofremos e que os grupos usurpadores do poder pretendem apresentar como um reencontro com a democracia. Ainda para Freire, a essência da democracia envolve uma nota fundamental que lhe é intrínseca: a mudança. Os regimes democráticos se nutrem na verdade de termos em mudança constante. São flexíveis e inquietos. Devido a isso, deve corresponder ao homem desses regimes, maior flexibilidade de consciência. (FREIRE, 1967). Essa flexibilidade de consciência dentro da verdadeira democracia exige o engajamento da ação transformadora e prepara os homens para a luta contra os obstáculos à sua humanização, assim o comprometimento não é um ato passivo, “implica não apenas a consciência da realidade, mas também o engajamento na luta para transformá-la”. (FREITAS, 2010, p. 88). Freire coloca a conscientização como o primeiro objetivo de toda a educação, buscando provocar uma atitude crítica de reflexão no sujeito de modo a colaborar com a mudança do mundo. Deste modo, é imprescindível voltar a educação crítica e libertadora para a participação do indivíduo, sendo o educador, o profissional responsável para que de fato isso aconteça, pois “ aprende-se democracia fazendo democracia”. (FREIRE, 1986, p. 60). A relação entre o respeito aos direitos humanos, à dignidade e liberdade é um trabalho árduo, que está diretamente ligado com a educação cidadã. E acreditamos que uma educação que nos prepare de forma honesta e livre ao exercício da cidadania é a educação crítica. Conclusão A liberdade é uma característica fundamental do ser humano, pois ela permite tomar continuamente decisões e fazer da vida uma constante construção, própria de todo ser inacabado. A dignidade humana está centrada no respeito à liberdade. A liberdade propicia o crescimento. E a democracia é o governo no qual a liberdade deve ser respeitada. Por isso, na sociedade democrática, o respeito pela dignidade e a liberdade está contemplados e assegurados pela constituição. Mas, se a liberdade é parte da dignidade humana ela deve ser bem orientada, e o problema do ser humano é como apreender a lidar com a liberdade. Para isto, nosso trabalho traz uma reflexão sobre a educação crítica, como uma educação que nos ensina a ser livres e responsáveis. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 249 Por fim, vale lembrar que Paulo Freire coloca a conscientização como o primeiro objetivo da educação, para poder almejar um senso crítico dos cidadãos. Um cidadão crítico e ativo pode mudar o mundo para melhor. Referências Bibliográficas: APPLE, M. W; AU, W.; GANDIN, L. A .O Mapeamento da Educação Crítica. In: APPLE, M. W; AU, W.; GANDIN, L. A (Org.). Educação crítica: análise internacional. Porto Alegre: Artmed, 2011. BITTAR, E. Ética, educação, cidadania e Direitos Humanos. Barueri: Manole, 2004. CHOMSKI, Sobre democracia y educación. Escrito sobre las instituciones educativas y el lenguaje en aulas. Barcelona: Paidos, 2006. DELLA MIRÂNDOLA, P. A Dignidade do Homem. São Paulo: Editora Escala, 2006. GHIRALDELLI, P. J. História da Educação. 2ed. São Paulo: Cortez, 1991. FREIRE, P. Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Cortez & Moraes, 1979. MAGRI A. C. A educação em direitos humanos: uma abordagem a partir de Paulo Freire, In Revista Espaço Pedagógico, v. 19, n. 1, Passo Fundo, p. 44-63, jan./jun. 2012. ONU, Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948 http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm PRESTES, N. H. “A razão, a teoria crítica e a educação”. In: PUCCI, B; ZUIN, S.; COSTA, C DA; PRESTES, H.; OLIVEIRA, R. de; MARKERT, W.; MAAR, L. (org.). Teoria crítica e educação: a questão da formação cultural na escola de Frankfurt. 2ed. Petrópolis: Vozes, 1994. REDIN, E.; STRECK, D.; ZITKOSKI, J. (Org.). Dicionário Paulo Freire. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. SCHILLING, F.(org.) Direitos Humanos e Educação: outras palavras, outras práticas. São Paulo: Cortez editora, 2011. TEITELBAUM, K. Recuperando a memória coletiva: os passados da educação crítica In: APPLE, Michael W; AU, Wayne; GANDIN, Luís A. Educação crítica: análise internacional. Porto Alegre: Artmed, 2011 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 250 UNESCO. Educação para todos em 2015: um objetivo acessível? Tradução Sergio Couto. São Paulo: Moderna, 2008. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0018/001871/187129por.pdf>. Acesso em: 9 jun. 2014. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 251 DIFICULDADES CONTRAMAJORITÁRIAS: JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E LEGITIMIDADE DO DIREITO EM HABERMAS Douglas Maranhão Marques Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Cascavel – UNIVEL [email protected] Orientador: Profª. Ms. Kátia Salomão RESUMO: A tensão existente entre direito e democracia é alvo dos mais recentes desdobramentos filosóficos e políticos pela alta carga de racionalidade intrínseca a tal embate. Habermas, assim, ao estabelecer o agir comunicativo como teoria capaz de circunscrever as modalidades racionais e ainda dar conta de legitimar o direito enquanto fenômeno social, exsurge como alternativa óbvia para a análise do imbróglio aludido pelo prisma dos diferentes paradoxos envoltos na questão, além da figura enigmática dos direitos humanos dentro do plano conflituoso apontado. Por fim, apontam-se as dificuldades contramajoritárias como eixo condutor da pesquisa pretendida, correlacionando os apontamentos habermasianos ao conflito entre direito e democracia dentro da mais aplicável de suas searas: a jurisdição constitucional. Palavras-chave: Dificuldades contramajoritárias; legitimidade do direito; jurisdição constitucional; democracia Compreender o fenômeno democrático nos dias atuais esbarra necessariamente na vinculação de condutas judiciais como mecanismos auxiliares da própria definição do processo democrático. Funcione o Judiciário como instituto definidor das regras ou da substância do processo de formulação política, é fato indelével que o século XXI é notadamente marcado por este poder atuando como definidor de limites formais e axiológicos. Num dinamismo social constante – e sua intrínseca estruturação midiática –, torna-se indispensável uma análise que faça jus à complexa atuação judiciária de uma Corte Suprema. Não raros são os casos em que indivíduos questionam a legitimidade de Ministros de tal corte para a ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 252 tomada de decisões de grande porte. Quem os colocou ali? Como podem ofender a vontade da maioria se vivemos numa democracia? Assim, o presente estudo objetiva uma análise hodierna quanto ao tema, de modo a sistematizar uma análise que permeie a tensão entre democracia e jurisdição constitucional. A opção pelo modelo habermasiano de contemplação da legitimidade inerente ao questionamento aludido se deve, assim, pelo marcado uso da racionalidade como instrumento diferenciador dos diálogos interinstitucionais, como se verá no momento oportuno. Ressalva que merece ser destacada – e que coaduna com o pensamento habermasiano – é o risco que se corre quando da excessiva atuação jurisdicional na esfera constitucional, onde se cria um fundo de reserva em que se apoia o legislativo para uma atuação menos consciente. Bickel (1986) previu tal defasagem da tripartição dos poderes quando da análise do fato de que o legislativo passa a escamotear a defesa de direitos fundamentais, deixando de se fundar do próprio processo de racionalidade e discursividade para simplesmente confiar no trabalho do Judiciário.34 A citada advertência traz à baila a consequente interconexão entre a modalidade jurisdicional aludida e a função institucional da mesma dentro do Estado Democrático de Direito. Tal forma de Estado é, nos ditames de Hayek (1971 apud KIMMINICH, 2011), o ideal ao movimento liberal que começou a tomar lugar no início do século XIX. A liberalidade proporcionada por um regime governamental que deposita em seus indivíduos a possibilidade de condução do futuro nacional enquanto remanescem desvinculados politicamente é uma das características que permitem, exempli gratia, o livre desenvolvimento econômico, social e institucional. Teóricos da primeira metade do século XIX passaram a assentar o entendimento de que a compreensão de um Estado influenciado pela concepção material de si quanto ao Direito que lhe é intrínseco daria azo o fato de “[...] que a ideia de Estado de Direito não residia na simples vinculação formal das atividades do Estado à letra da lei, assentando-se também numa concepção material de justiça” (KIMMINICH, 2011, p. 1031). É perceptível que a própria noção de justiça substancial apontada por Kimminich (2011) relaciona-se com a racionalidade levantada por Habermas (2003a) na exata medida em que Sobre o processo discurso racional e a respectiva acreditação de legitimidade conferida pelo mesmo ao Estado como um todo, v. infra. 34 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 253 vincula um conceito amplo de possibilidades pautadas no discurso aceito através da chancela racional, de modo que o próprio exercício da liberdade – fim último da distribuição da tutela jurisdicional dentro do viés de observância da jurisdição enquanto mecanismo hábil a resguardar liberdades intersubjetivas mínimas (HABERMAS, 2003b) – é compreendido pela matriz habermasiana da autodeterminação racional. Antes de se passar, contudo, à análise da compreensão da autodeterminação individual como critério de utilização da Teoria do Discurso habermasiana, insta repisar a tensão existente entre o estabelecimento jurisdicional constitucional e a própria noção de democracia, marcadamente substancial, consoante o exposto alhures. A harmonização do tênue equilíbrio constitucional entre a representatividade majoritária ocasional da sociedade e o consenso democrático específico de maior grau qualitativo decorrente da Constituição é atribuída ao controle de constitucionalidade, especialmente à jurisdição constitucional, como uma decorrência natural do caráter jurídico-vinculante das Constituições Contemporâneas, em que estas se caracterizam como um conjunto de normas de maior hierarquia formal e de maior densidade político-jurídica, que, caso não observadas espontaneamente, deve ser imposto mediante coercibilidade pelos órgãos constitucionais responsáveis pelo controle de constitucionalidade, especialmente pelos juízes constitucionais. (MORAIS, 2012, p. 163). O que se faz perceber, assim, é que a atuação constitucional pode contrariar integralmente os anseios de eventuais maiorias representativas ou populacionais para que firme a compreensão constitucional da vexata quaestio, sendo que o próprio texto constitucional, como bem aponta Comella (1997), ostenta indeterminação interpretativa especificamente para fazer jus à adequação de seus ditames aos paradoxos sociais supervenientes. É esta relação de contrariedade, portanto, que é tida como a dificuldade contramajoritária. O termo cunhado por Bickel (1986) na década de 1960 dá conta, contudo, da crise de legitimidade jurisdicional das cortes constitucionais para declarar a ineficácia de atos normativos – os Statues – que contrariem substancialmente o sentido do texto constitucional.35 Eule (1996 apud BASSOK, 2012) dá conta de divergir do precursor da terminologia, fazendo crer que Bickel Ressalva que merece ser feita em relação ao modelo anglo-saxão de decretação de inconstitucionalidade é que a doutrina norte-americana acredita que tal controle por parte da Corte Constitucional retira a validade da norma, não sua eficácia, como ocorre no Brasil e na maior parte das nações europeias. Como visto, o corrente estudo filia-se à posição kelseniana, pleiteando que tal declaração de inconstitucionalidade não interfere na validade normativa, mas tão apenas em sua eficácia. 35 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 254 devesse ter cunhado o termo Dificuldade contrarrepresentativa, uma vez que o controle de constitucionalidade concentrado lida com a amostragem política representativa, não a diretamente populacional. Desta feita, para o autor, a dificuldade contramajoritária se revelaria como a contrariedade do decidido pela corte em face do ansiado pela maioria populacional, numa aparente relação de tensão democrática. Da discussão exposta, Bassok (2012) expõe a adoção pela doutrina especializada do termo dificuldades contramajoritárias, englobando tanto a versão tradicional – lançada por Bickel (1986) – quanto a literal, levantada por Eule (1996 apud BASSOK, 2012). Passando à concatenação do exposto, percebe-se que da metafísica kantiana até a discussão racional intersubjetiva entre sujeitos de direito em Habermas (2004), os critérios de legitimidade não só do direito, mas da atuação jurisdicional, revestem-se da aplicabilidade por darem azo à obediência incontida em relação ao normativamente sentenciado. O questionamento sobre o que efetivamente leva sujeitos livres a se sujeitarem à normas imperativas, à obediência incontida, traz em seu bojo o apelo à racionalidade, tão logo não há outro plano explicativo lógico para tal paradoxo. O que se percebe, desta forma, é a adoção do próprio critério de racionalidade para a definição dos instrumentos políticos e legitimadores debatidos. Há a hodierna noção de que se o instituto discutido é racionalmente estipulado, não subsistem maiores dificuldades para a implementação e continuidade do mesmo. A teoria habermasiana merece destaque na análise do caractere legitimador democrático pelo status de racionalidade conferido pelo filósofo alemão aos processos de diálogos e liberdades intersubjetivas, que decorrem da interação em esferas públicas formais ou não. Costa (2003), ao analisar o princípio democrático em Habermas, percebe a necessidade de fixação do Princípio do Discurso – ou Princípio D, nos termos do próprio Habermas (2003b) – como mecanismo inafastável do processo de conferência legitimadora do agir normativo e/ou institucional. Em que pese o pensamento de Habermas buscar conferir legitimidade ao Direito como um processo único, sua argumentação é plenamente aproveitável ao caso do imbróglio legitimador das Cortes Constitucionais. A partir do momento em que Habermas (2003b) cinge como legítimas normas de liberdade de ação – sendo função dos direitos intersubjetivos limitar, prima facie, o campo de livre desenvolvimento da autonomia privada – em que todos os atingidos assentiram enquanto participantes de discursos racionais, nada obstaculiza a aplicação analógica ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 255 do exposto ao funcionamento institucional das Cortes referidas dentro deste processo racional de estipulação do discurso (COSTA, 2003). O próprio Habermas (2003a) cuida de estabelecer a necessidade de análise da legitimação do direito pelo espectro que este emana dentro da eminência não apenas de sua aceitação enquanto instituto democrático e soberano, mas também quanto ao seu merecimento. Para o alemão, tal relação de busca por uma relação intersubjetiva em que suas decisões não sejam apenas endereçadas e reconhecidas, mas também cumpridas, é o que formula tal pleito em torno do aludido merecimento. Para Costa (2003), ponto a ser destacado é a relação de complementação existente entre o direito positivo e a moral dentro dos termos de Habermas. Para o filósofo, nenhuma lei poderá ser legítima se não for cunhada dentro das permissões morais, sem que isso implique na relação de subordinação dos elementos normativos aos dizeres morais, como supunha Kant. Ordenamentos jurídicos modernos são constituídos fundamentalmente de direitos subjetivos. Esses direitos reservam para os sujeitos de direito espaços legais abertos para uma atuação que é orientada pelas respectivas preferências. Com isso desobrigam a pessoa, de uma forma claramente circunscrita, de mandamentos morais ou de prescrições de qualquer outro tipo. De qualquer modo, dentro dos limites estabelecidos pela lei, ninguém é juridicamente obrigado a justificar publicamente as suas ações. Com a introdução das liberdades subjetivas, o Direito moderno, à diferença de ordenamentos jurídicos tradicionais, promove a validade do princípio de Hobbes de que é permitido tudo o que não for explicitamente proibido. Com isso, Direito e Moral se dissociam. (HABERMAS, 2003a, p. 68). Pinzani (2009) exemplifica o exposto no parágrafo alhures através da relação dos direitos humanos36 e essa premissa de complementação legitimadora: muitos dos direitos expostos como constitucionalmente basilares foram criações normativas sem prévio assentamento moral, sendo que o Direito, nestes casos, lançou as bases para o aceite racional coletivo, não funcionando como mero sintetizador de premissas éticas. Muitos dos argumentos legitimadores da atuação institucional de uma Corte Constitucional, dentro da teoria habermasiana, se aproximam ao critério de autoridade do referido Tribunal O termo Direitos Humanos utilizados por Habermas é plenamente equiparável aos Direitos Fundamentais, como são conhecidos os primeiros dentro do âmbito interno de uma nação. 36 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 256 graças à sua expertise, como aponta Bassok (2012).37 Exemplo disto é a delegação à Corte de um agir moralmente pautado no conteúdo normativo, sendo que na atual sociedade econômica estabelecida, o agir ético é neutro, mas a integração social ainda é necessária (COSTA, 2003). A partir do instante, assim, em que cada indivíduo age pautado na sua liberdade de atuação circunscrita no interior de direitos intersubjetivos, a questão seguinte passa a ser a necessidade de conferir a todos os sujeitos a máxima liberalidade que é conferida individualmente, estipulando Costa (2003, p. 42): Neste horizonte, o princípio da democracia destina-se a amarrar um procedimento de normatização legítima do Direito. Ele significa, portanto, que somente podem pretender ter validade legítima leis jurídicas capazes de ter o assentimento de todos os parceiros de Direito em um processo de normatização discursiva. O princípio da democracia contém, por conseguinte, o sentido performativo intersubjetivo necessário da prática da autodeterminação legítima de membros do Direito que se reconhecem como membros iguais e livres de uma associação intersubjetiva estabelecida livremente. Desta forma, a partir do estabelecimento da legitimidade através do discurso racional pautado numa relação de complementaridade entre moral e direito positivo, o critério legitimador desborda para um discurso aceito na esfera da autonomia privada, mas sempre conferindo participação aos sujeitos de direito dentro da autonomia pública, de modo que também possam eles alterar a argumentação racional empregada na criação de direitos (COSTA, 2003).38 Antes de se passar à análise especificada da racionalidade em Habermas (2003b), merece destaque a estipulação de um espaço mínimo em que é impossibilitado qualquer intervencionismo político e/ou estatal: os direitos humanos. O autor aponta tais direitos como O critério da legitimidade das Cortes Constitucionais pela expertise demonstrada pelas mesmas é tópico extenso que já foi objeto de trabalho próprio pelo autor do corrente artigo. Inobstante, para os fins de compreensão a que se destina este estudo, cabe frisar que tal postulado de legitimação assenta-se na premissa d’O Federalista, em seu texto número 78, assinado por Alexander Hamilton. Desta forma, considerando que, nos ditames do próprio Hamilton, o Executivo tem a espada, e o Legislativo o dinheiro, resta ao Judiciário o contentamento com a própria tecnicalidade que desvela o verdadeiro sentido e substância constitucionais, estando as Cortes legitimadas pelo simples entendimento de que sua atuação pautada no conhecimento é inafastável premissa que sedimenta sua existência. 38 Os dois tipos de autonomia dentro da teoria habermasiana são magistralmente sintetizados por Costa (2003) na medida em que o âmbito privado de autonomia é tido como o espaço de livre desenvolvimento dentro da limitação dos direitos intersubjetivos – que funcionam, assim, como ultima ratio ao conviver social e desenvolver da personalidade – e o campo público é vislumbrado como as possibilidades de participação ativa no discurso racional através dos direitos políticos, cabendo a todos os sujeitos de direito voz na formulação de diálogos pautados na Teoria do Discurso, alterando, eventualmente, o campo de restrição dos direitos intersubjetivos. 37 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 257 escudos mínimos diante de maiorias políticas eventuais, de modo que a própria defesa de tais premissas humanitárias é instrumento de legitimação de qualquer instituição dentro do Estado. Assim, o conceito de maioria deveria restringir-se apenas quando do fomento aos instrumentos de participação política, sem qualquer forma de intervenção no plano individual de conquistas pessoais, cabendo aqui a inserção dos direitos humanos como cláusula de barreira da intervenção legiferante ou política (HABERMAS, 2003a). O nexo interno que se buscava entre direitos humanos e soberania do povo consiste, pois, em que os direitos humanos institucionalizam as condições de comunicação para formar a vontade de maneira política e racional. Direitos que possibilitam o exercício da soberania do povo, não podem, a partir de fora, ser impostos a essa prática como restrições. Essa reflexão, porém, só é convincente, de forma imediata, para os direitos políticos fundamentais, portanto, para os direitos à comunicação e à participação, mas não para os direitos clássicos à liberdade que garantem a autonomia privada dos indivíduos. Esses direitos, que deveriam garantir a cada qual chances iguais de conquista de seus projetos pessoais de vida e proteger de forma abrangente os direitos fundamentais, parecem evidenciar um valor intrínseco – e não se esgotam, por exemplo, no seu valor instrumental para a formação democrática de vontade. (HABERMAS, 2003a, p. 71). O que merece ser levado em consideração é o próprio posicionamento de Bickel (1986) quando da análise da estrutura dos referidos Tribunais para lidar com questões essencialmente valorativas e reveladoras de um plano metafísico de realização pessoal. Em singular expressão, o criador da terminologia objeto deste estudo reflete acerca do sentido substancial de democracia esperado por operadores jurídicos: “O que queremos dizer com democracia, contudo, é muito mais sofisticado e complexo do que a tomada de decisões num encontro na cidade através de levantamento de mãos” (BICKEL, 1986, p. 17, tradução nossa). É por não haver “[...] Direito sem a autonomia privada dos cidadãos” (HABERMAS, 2003, p. 71) que os direitos humanos – ou fundamentais, dependendo da esfera de normatividade a que se referem – funcionam como pressupostos imutáveis da formação da vontade pública, sendo que nenhuma forma de decisão ou vontade majoritária tem o condão de mitigar o campo de livre desenvolvimento da personalidade ou planos pessoais de cada indivíduo.39 Neste mesmo sentido é o entendimento expresso na secular Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, que aduz ipsis litteris em seu art. 4º: “A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram 39 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 258 É verdade, por óbvio, que o processo de refletir a vontade de uma maioria populacional no legislativo é deflagrada por várias desigualdades de representação e por toda sorte de hábitos institucionais e características, as quais talvez tendam mais em favor da inércia. Ainda assim deve ser mantido em mente que os estatutos são produto do legislativo e do executivo agindo concomitantemente, e que o executivo mantém uma constituição muito diferente e tende a curar inequidades de sobre e sub-representação. [...] Um fator muito mais complexo [...] é a proliferação e poder do que Madison previu como ‘facção’, o que o Sr. Truman chama de ‘grupos’ e que nos ditames populares sempre foi chamado de ‘interesses’ ou ‘grupos de pressão’ (BICKEL, 1986, p. 18, tradução nossa). Desta feita, tais grupos de interesses – que, dentro da seara habermasiana das esferas públicas, tendem a aparecer tanto nas modalidades formais e informais – podem, ao buscar a supremacia dos bens e interesses por eles defendidos, almejar a supressão do exercício de direitos humanos inafastáveis de cada indivíduo, de modo que, assim, devem tais direitos serem vistos como barreira última da intervenção política. Conclui-se quanto à dificuldade contramajoritária que a mesma vincula-se com o ato decisório que tem seu conteúdo destoante do texto legal ou dos anseios populacionais majoritários, aparentemente acreditando-se que elas – a lei ou o índice numérico apurado da opinião pública – expressam-se como a vontade da maioria, já que o formalismo legalista supostamente normatiza leis que se referem a todos os cidadãos indistintamente, em respeito ao princípio da isonomia. Contudo, mediante uma análise da teoria do discurso em Habermas (2003b), e do modelo jurídico descrito pelo autor alemão, entende-se que a esfera jurídica pode legitimar conteúdos instrumentais da política, ou estratégicos do sistema: a racionalidade legítima desses discursos foi artificialmente fomentada, com o foco em avultar sua real intenção, impedindo a influência de discursos comunicativamente elaborados, oriundos da interação dos atores sociais na esfera pública. Como antídoto para essa poluição da jurisdição por interesses obscuros e estratégicos, Habermas (2003b) concebe a racionalidade comunicativa que encontra seu lócus de existência na ‘situação ideal de fala’, isto é, na interação intersubjetivamente elaborada entre falantes: fato que aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela lei”. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 259 ocorre no mundo da vida, na sociedade civil, em esferas públicas formais e informais e até mesmo em situações virtuais. Dessas esferas discursivas são elaborados conteúdos, que por vezes possuem potencial crítico e dialético. Assim, tais conteúdos tem que ser dotados de energia para interferir e [des]construir a aparência da legitimidade formalmente elaborada. Um sistema que supere as crises da contemporaneidade, que diametralmente se envolva com o poder, com a política e com o capital, para Habermas (2003b), somente encontra possibilidades de superar tal dinâmica quando este mesmo sistema escuta as vozes dos cidadãos que podem ainda fazer o ‘uso de sua razão’, no sentido de emanar opiniões públicas, ou seja, consensos. Por isso, mesmo quando a decisão contramajoritária é aparentemente elaborada fora das instâncias e limites do formalismo legalista, parecendo ser geradora de um desacordo com o que consente a maioria, ela, em essência, quando livre do decisionismo subjetivo, ou dos interesses do sistema, pode superar a aparência avultadora do direito. In fine, a essência da justiça para Habermas (2003b) liga-se irremediavelmente aos discursos que emanam da racionalidade comunicativa, sendo legítimo todo ato decisório que se deixar influenciar por tais premissas e conteúdos discursivos. Referências Bibliográficas: BASSOK, O. 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ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 261 A SOCIEDADE CHINESA E O DIREITO À EDUCAÇÃO DE QUALIDADE Elaine Emanuelle Lemos da Silva Conejo Rosa de Lourdes Aguilar Verástequi Universidade Estadual de Londrina - UEL [email protected] Introdução: Ao procurarmos no dicionário o conceito da palavra Educação encontramos: Ato ou efeito de educar, processo de desenvolvimento da capacidade física, intelectual e moral do ser humano, civilidade e polidez, refletimos então sobre todas as formas de desenvolvimentos que podemos alcançar através da Educação, Paulo Freire (2013, p.50), nos diz que através de oportunidades e estímulos passamos por processos de grandes mudanças no decorrer de nossas vidas. De acordo com o Relatório de Monitoramento Global de Educação para Todos, Meta de 2015, apresentado pela UNESCO, a Educação é o ponto de partida para amenizar as diferenças existentes no decorrer da vida. Todas as pessoas – crianças, jovens e adultos- devem ter condições de usufruir das oportunidades educacionais elaboradas para atender as suas necessidades básicas de aprendizagem, que compreendem os instrumentos essenciais de aprendizagem-alfabetização, expressão oral, operações com números e resolução de problemas- e o conteúdo básico de aprendizagem, - conhecimentos, habilidades, valores e atitudes. Esses instrumentos são necessários para que o ser humano seja capaz de sobreviver, desenvolver plenamente suas capacidades, viver e trabalhar com dignidade [...] (UNESCO, Relatório de Monitoramento Global EPT, 2008p. 14) Nos dias atuais podemos dizer que todas as pessoas têm acesso a uma Educação de qualidade? Levando em conta as condições precárias, movida pelas desigualdades sociais esse acesso é possibilitado. Ao compreendermos que uma Educação de qualidade muda a história de uma nação e que há uma busca por essa tão esperada, educação de qualidade para todos, reconhecemos que ela se ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 262 constitui através de um processo no qual as mudanças são necessárias e bem vindas sendo assim, como exemplo analisamos a China que nos leva a compreender que pode haver qualidade educacional, que proporcione desenvolvimento social, mesmo em lugares que exista alto índice de pobreza. O presente trabalho busca relatar algumas mudanças que ocorreram na cidade de Xangai na China, onde a educação era privilégio das classes mais favorecidas e ao longo de um processo, se propagou nos dias atuais para todas as classes, proporcionando uma educação pública de qualidade independente da classe social, levando o país estar em primeiro lugar no mundo, nos resultados do PISA, nas disciplinas de matemática, leitura e ciências. Este trabalho busca contribuir, através de seus relatos, expor indicações e possibilidades para uma Educação e Escola de qualidade. O Objetivo Geral desta pesquisa é analisar as ações governamentais do governo chinês para as políticas públicas educacionais visando melhorar a qualidade da educação e especificar as medidas que proporcionaram desenvolvimento educacional nas escolas de Xangai, com o objetivo de que elas possam ajudar, oferecendo um novo olhar para essas experiências com o desejo de que de que em algum momento possam ser testadas em beneficio de mudanças para a qualidade educacional brasileira. Fundamentação Neste Projeto, pretendo abordar a partir do documentário, “Destino e Educação: diferentes países, diferentes respostas” (2011), exibido pelo canal Futura em parceria com o SESI, a educação na cidade de Xangai, onde o mesmo apresenta a cidade, como tendo conquistado o 1° lugar em desempenho na matéria de matemática, leitura e ciências, no mundo. Segundo o documentário e o Ministério da Educação Chinesa, o número de crianças e jovens que frequentam a escola, na Cidade de Xangai é: 99,9 % na idade de 06 a 14 anos e 97% dos alunos estão entre 15 e 19 anos, sendo que grande parte dos estudantes que participam do PISA, Programa Internacional de Avaliação de Estudantes futuramente entrarão em uma Universidade, pois o índice de adolescentes que chegam até a Universidade chega aos 80% dos estudantes. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 263 A avaliação em larga escala é um instrumento significativo cujos resultados orientam investimentos em políticas públicas a favor da qualidade educacional, segundo Penin (2009 p.2324) A avaliação em âmbito externo oferece informações para que tanto os pais quanto a sociedade, especialmente os sistemas de ensino, possam efetivar um relacionamento produtivo, com a instituição escolar. Apurar os usos da avaliação, comparar resultados e comportamento de entrada dos alunos em cada situação e contexto social e institucional é da maior importância para não homogeneizar processos que são de fato diferentes. Segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP, 2011) o Pisa é um: Programa Internacional de Avaliação de Estudantes é uma iniciativa internacional de avaliação comparada, aplicada a estudantes na faixa dos 15 anos, idade em que se pressupõe o término da escolaridade básica obrigatória na maioria dos países. Através dos resultados obtidos pelo (PISA) acontecem então discussões e levantamentos de possíveis problemas que afetam a qualidade da educação no país. Sobre as avaliações Vianna (1999, p.12), afirma que, “a avaliação visa à tomada de decisões, para melhorar o que já existe, a fim de corrigir possíveis distorções”. Para o INEP (2011) Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, as avaliações do Pisa acontecem a cada três anos e abrangem três áreas do conhecimento – Leitura, Matemática e Ciências – havendo, a cada edição do programa, maior ênfase em cada uma dessas áreas. Conforme o documentário, a cidade de Xangai é uma metrópole, a segunda maior cidade da China que lidera o comércio Chinês, em 1968 a Educação era muito ruim, pois privilegiava a elite e tinha como foco atender pessoas que viessem de outras cidades da China, sendo que nos últimos anos o governo investiu em escolas mais pobres buscando dar a mesma oportunidade a todos. Nos dias atuais a Educação deve ser para todos, por isso é uma grande preocupação do Governo os resultados do PISA, que visam à aprendizagem e o desenvolvimento dos alunos não apenas estatísticas para investir em políticas públicas. Segundo Vasconcellos (1994, p.43), ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 264 A avaliação é um processo abrangente da existência humana, que implica uma reflexão crítica sobre a prática no sentido de captar seus avanços suas dificuldades e possibilitar uma tomada de decisão sobre o que fazer para superar os obstáculos. Sobre o tempo que os alunos ficam na escola ao assistirmos o documentário, percebemos que a carga horária se comparadas com a do Brasil, é bem diferenciada, pois existem dias da semana que os alunos estudam em período integral e outros em que as aulas vão das 07h30min às 14h00min horas, os alunos também estudam em casa em torno de duas a três horas por dia, e nos finais de semana. O reforço escolar é indicado para alguns alunos que apresentam dificuldades, recebem aulas extras em casa, os pais procuram estar presentes em todo o processo que envolve escola e a aprendizagem do aluno. Sobre a relação existente entre escola e família Vygotski afirma: A educação recebida, na escola, e na sociedade de um modo geral cumpre um papel primordial na constituição dos sujeitos, a atitude dos pais e suas práticas de criação e educação são aspectos que interferem no desenvolvimento individual e consequentemente o comportamento da criança na escola (1984 p.87). Os alunos recebem o apoio de seus pais para fazerem outras atividades fora do contexto escolar, como música, natação entre outros, desde que não atrapalhe os estudos. Quanto aos professores, eles têm a carga horária muito bem organizada, pois seu horário dentro da sala de aula é reduzido, restando-lhe bastante tempo para preparar aulas e estudar, investindo em sua capacitação. As aulas são preparadas por grupos de professores que trabalham a mesma disciplina, proporcionando então uma discussão sobre a melhor forma de se atingir a aprendizagem no aluno, sendo que professores de escolas bem conceituadas ajudam as mais fracas. Sobre a importância social do trabalho dos professores em grupos, Giroux (1997, p. 29) afirma: Portanto os professores enquanto intelectuais precisarão reconsiderar e possivelmente transformar a natureza fundamental das condições que trabalham. Isto é, os professores devem ser capazes de moldar os modos nos quais o tempo, o espaço, atividade e conhecimento organizam o cotidiano nas escolas. Mais especificamente, a fim de atuarem como intelectuais, os ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 265 professores devem criar a ideologia e condições estruturais necessárias para escreverem, pesquisarem e trabalharem uns com os outros na produção de currículo e repartição do poder. Após o ano 2000, o governo deu maior importância à profissão de professor, sendo o professor mais valorizado, sua profissão bem conceituada e sua remuneração e benefícios também, o que permite que o professor se sinta valorizado. As escolas apresentam adequada estrutura física, recursos tecnológicos, material didático apropriado, os quais são proporcionados pelo Governo, buscando dar direitos iguais de acessos a toda à população. No quadro abaixo o autor Gustavo Ioschpe (2011), publica na “Revista Veja” as medidas educacionais utilizadas na China a fim de proporcionar uma reflexão sobre as possibilidades de se utilizar como um projeto piloto no Brasil. -Grupos de estudos para professores de todos os níveis de educação, os quais tivessem oportunidade de preparar aulas e compartilhar suas experiências; -Professor líder por turma com contato com as famílias dos alunos, proporcionando uma relação direta entre a família e a escola; -As piores escolas reveladas através de índices de avaliação em larga escala teriam o apoio das partes administrativa das melhores escolas; -Dever de casa com objetivos definidos de beneficiar a aprendizagem do aluno e não imposto como uma punição, nos quais os alunos e as famílias participassem juntos desse momento; -Aumento de funcionários dentro das salas de aula, proporcionando uma relação mais profunda entre o aluno e o professor; -Benefícios individuais para os professores comprometidos; -Treinamento administrativo para professores que virão a tornarem-se diretores; -Criação de espaços on-line para profissionais da educação se interagir com outros profissionais de educação; Essas medidas fazem parte de um processo de mudanças que visaram proporcionar uma Educação de qualidade para toda a população, levando a conquista do primeiro lugar no PISA, e os resultados foram se estabelecendo em longo prazo hoje a educação contempla todos de forma a se igualar o acesso e a qualidade sem fazer distinção das pessoas, pelas suas condições financeiras. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 266 De acordo com Depresbiteris (2001 p.140): Avaliar um sistema educativo repousa na idéia de que uma escola é muito mais do que simples junção de classes. A escola existe em certo contexto e é fundamental que esteja analisado, uma vez que se constitui em fator determinante para a qualidade de ensino. O sucesso deste processo se deu através da implementação de políticas públicas que geraram investimento na Educação, na modernização, pesquisas, treinamento dos professores e também pelo fato de que os pais também assumiram seus papéis frente à Educação de seus filhos. Segundo, o Conae Conferencia Nacional de Educação (2010, p.27): A educação com qualidade social, e a democratização da gestão implicam a garantia do direito à educação para todos, por meio de políticas públicas, materializadas em programas e ações articuladas, com acompanhamento e avaliação da sociedade, tendo em vista a melhoria dos processos de organização e gestão dos sistemas, e das instituições educativas. Este trabalho partiu de fatos reais que demonstram que o país que fortalece a Educação acaba consequentemente tendo sucessos em outros segmentos, como a economia a saúde etc., seu contexto demonstrou que as relações entre a Cultura e o desenvolvimento são indissociáveis. Metodologia Este trabalho esta embasado no Documentário, Destino e Educação: diferentes países, diferentes respostas (2011), exibido pelo canal Futura em parceria com o SESI, sendo utilizada a pesquisa bibliográfica a cerca de textos sobre: a Educação, Avaliação, Órgãos Governamentais, etc. Segundo Marconi e Lakatos (2008, p.43) A pesquisa bibliográfica ou de fontes secundárias, é a que especificamente interessa a este trabalho, trata-se de levantamentos de algumas das bibliografias mais estudadas em forma de livros e revistas, publicações avulsas, sua finalidade é colocar o pesquisador em contato direto com o que já foi escrito sobre determinado assunto [...] Referências Bibliográficas: ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 267 BRASIL. Conae Conferencia Nacional de Educação (2010) Disponível em: http://conae.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=category&id=38&Itemid=59 Acesso em: 08/10/2013. BRASIL. INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (2011) Disponível em: http://portal.inep.gov.br/pisa-programa-internacional-de-avaliacao-de-alunos Acesso em: 09/10/2013. DEPRESBITERIS, L. A avaliação na educação básica: ampliando a discussão. In:______. Estudos em Avaliação Educacional. Fundação Carlos Chargas, n. 24Jul./dez.2001. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários a prática educativa 47 ed. Rio de Janeiro; Paz e terra, 2013. GIROUX, Henry A. Os professores como intelectuais: rumo a uma pedagogia crítica da aprendizagem trad. Daniel Bueno. -Porto Alegre: Artes médicas, 1997. http://veja.abril.com.br/noticia/educação/o-que-o-brasil-pode-copiar-da-educacao-chinesa acesso em: 01/11/2013, IOSCHPE, Gustavo. Revista Veja (2011). MARCONI, M. de A.; LAKATOS, E. M. Metodologia do trabalho científico. 5. ed. rev. São Paulo: Perspectiva, 2008. PENIN, Sônia; MARTÍNEZ, Miguel. Profissão Docente: pontos e contra pontos. São Paulo: Summus, 2009. 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Com base no conceito de intuição, o presente trabalho pretende compreender a inversão conceitual e metodológica que Bergson promove ao considerar o tempo como prioridade em relação ao espaço e, a partir dessa análise, resgatar a importância do pensamento bergsoniano, recolocando-o como elemento central para a compreensão do pensamento contemporâneo. Palavras-chave: Tempo; espaço; duração; intuição; método Introdução Procurando resgatar a importância de Bergson para a História da Filosofia, propomo-nos adentrar especificamente em dois conceitos importantes da filosofia desse autor que nos ajudarão a entender a relação tempo e espaço. A partir dos conceitos de intuição e duração, resgataremos perspectivas e ideias bergsonianas que, direta ou indiretamente, fazem parte da reflexão da Filosofia Contemporânea e que, por sua vez, nos ajudarão a entender a inversão conceitual e metodológica que Bergson realiza em sua obra. Segundo Deleuze, “um grande filósofo é aquele que cria novos conceitos” (1999, p. 125). Nesse sentido, é indiscutível que Bergson é um grande filósofo, pois o seu nome sempre estará ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 270 ligado aos conceitos de intuição, memória, impulso vital e duração. São conceitos que fazem parte da construção da Filosofia Contemporânea e que nos remetem a uma reflexão ampla e profunda sobre a relação do tempo e espaço. A proposta bergsoniana é complexa, mesclando crítica com construção teórica, Bergson, procura superar as perspectivas e teorias acerca da realidade e do conhecimento construídas historicamente. Nesse sentido, a sua proposta se apresenta concomitantemente como crítica e como teoria. Dessa forma, para não cometermos equívocos e injustiças com esse autor de extrema importância para a História da Filosofia e visando alcançar o objetivo proposto, analisaremos a seguir os conceitos de intuição e duração como fundamentais para a compreensão da relação tempo/espaço na filosofia do pensador em estudo. A relação tempo e espaço na construção metodológica de Bergson Para Bergson, há duas maneiras de conhecimento. Uma que se coloca do lado de fora do objeto, observando a partir de um ponto de vista a realidade externa que se apresenta à percepção. A outra, por outro lado, procura penetrar no objeto do conhecimento, misturando sujeito e objeto numa mesma realidade de conhecimento. Nesse sentido, a primeira forma de conhecimento, prendendo-se apenas a um ponto de vista, constrói apenas uma ideia parcial do objeto. A outra forma, contudo, não se detém a um ponto de vista e nem está presa a nenhum símbolo. A primeira forma de conhecimento é relativa e a segunda absoluta (BERGSON, 2006, p. 184). A Ciência Moderna sustenta-se e sustentou-se a partir apenas da primeira forma de conhecimento, haja vista que o conhecimento do objeto na perspectiva dessa ciência se dá a partir de um ponto de vista. Nesse sentido, para Bergson, essa ciência é responsável por construir um conhecimento parcial e fragmentado da realidade (BERGSON, 2006, p. 24). Além disso, ela está ligada historicamente às especulações metafísicas clássicas que foram as responsáveis pela construção da dicotomia da realidade, ou seja, pela construção de uma divisão ou barreira entre o que é real e o que possivelmente se apresenta como não sendo real. Essa construção dicotômica tem o seu início principalmente na filosofia Eleática, passando pelo dualismo platônico até chegar à Modernidade, com o ofuscamento total da metafísica pela ciência. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 271 Bergson não é totalmente pessimista em relação à ciência e à metafísica. Para ele, o problema está justamente no fato de que ambas possuem o mesmo objetivo, mas se prendem a caminhos totalmente diferentes. A metafísica buscando o ser dos objetos como se esse ser fosse uma realidade fora do objeto, e a ciência, por outro lado, buscando o conhecimento do objeto a partir de uma perspectiva parcial. Ambas, a partir dessa dicotomia, tornam-se formas relativas do conhecimento na medida em que se prendem apenas a pontos de vistas diferentes. Contudo, existe uma forma de superarmos essa dicotomia e essa consequente fragmentação da realidade que consiste na adesão de um novo método de conhecimento que, em tese, procura superar as parcialidades da metafísica e da ciência. Esse método é o que Bergson chama de intuição. “A intuição, não é um sentimento nem uma inspiração, uma simpatia confusa, mas um método elaborado, e mesmo um dos mais elaborados métodos da filosofia” (DELEUZE, 1999, p. 07). E é por meio da intuição que podemos encontrar o conhecimento absoluto da realidade. Segue-se daí que um absoluto só poderia ser dado numa intuição, ao passo que todo o resto é da alçada da análise. Chamamos aqui de intuição a simpatia pela qual nos transportamos para o interior de um objeto para coincidir com aquilo que ele tem de único e, por conseguinte, de inexprimível (2006, p. 187). Esse novo método de Bergson consiste justamente numa tentativa de unificar crítica metafísica e ciência moderna, ou seja, o conhecimento do ser do objeto e o conhecimento adquirido por meio da experiência (PINTO, 2007, p. 29). E, ainda, é importante ressaltar que o método na perspectiva bergsoniana não é uma entidade que existe antes e se impõe à investigação, ao contrário, ele se constitui como parte do sistema de investigação (PRADO Jr, 1988, p. 27). E essa novidade justifica as aparentes contradições do pensamento bergsoniano, pois, por uma questão metodológica, nada impede ao filósofo tomar caminhos que mais tarde serão ignorados ou combatidos, haja vista que tomar esses caminhos não é assumir posturas ou verdades, mas caminhar e construir um processo de investigação que tem em vista a compreensão total da realidade. Contudo, não se trata de um método que pressupõe um caminhar, ao contrário, esse caminhar que, pressupõe-se idas e vindas, está pautado por um método rigoroso com “regras estritas que constituem o que Bergson chama de precisão em filosofia” (DELEUZE, 1999, p. 07). A respeito da precisão da intuição como método, Bergson afirma: ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 272 O que fez perder de vista esse alvo e pôde enganar a própria ciência acerca da origem de certos procedimentos que ela emprega é o fato de que a intuição, uma vez conquistada, precisa encontrar um modo de expressão e de aplicação que esteja em conformidade com os hábitos de nosso pensamento e que nos forneça, através de conceitos bem definidos, os pontos de apoio firmes de que temos tão grande necessidade. Aí está a condição daquilo que chamamos rigor, precisão, e também extensão indefinida de um método geral a casos particulares (2006, p. 223). Buscando o rigor metodológico, Bergson distingue três comportamentos que também são as três regras principais de seu método. Para melhor entendermos e compreendermos a proposta bergsoniana, faremos uma análise desses três comportamentos que também são as três principais regras da intuição como método. Podemos resumir a primeira regra do método bergsoniano da seguinte forma: “Aplicar a prova do verdadeiro e do falso aos próprios problemas, reconciliar verdade e criação no nível dos problemas” (DELEUZE, 1999, p. 8). Em outras palavras, a primeira regra consiste na construção de verdadeiros problemas. Parece simples, mas olhando de perto e assumindo uma postura crítica percebemos que a intenção de Bergson com essa primeira regra vai além da simples construção de problemas. Ao propor essa regra ele apresenta uma crítica à ciência e à metafísica clássicas que, segundo ele, prenderam-se aos falsos problemas e, a partir dessa crítica, ele propõe que o caminho para se chegar a um conhecimento amplo da realidade passa pela postura de saber e poder elaborar verdadeiros problemas. Essa primeira regra nos impõe uma regra complementar: “Os falsos problemas são de dois tipos: problemas inexistentes porque seus próprios termos implicam uma confusão entre o mais e o menos; problemas mal colocados, que se assim se definem porque seus termos representam mistos mal analisados” (DELEUZE, 1999, p. 10). E é essa regra complementar que nos leva à segunda regra na medida em que os falsos problemas tomam-se o mais pelo menos. Nesse sentido, podemos resumir a segunda regra da seguinte forma: “lutar contra a ilusão, reencontrar as verdadeiras diferenças de natureza ou as articulações do real” (DELEUZE, 1999, p. 14). É essa confusão entre as diferenças de grau e as diferenças de natureza que nos leva, por exemplo, à ilusão da precedência do possível em relação ao real, ou como o professor Bento Prado afirma, da ilusão do Nada como precedente ao real. O Nada como um conceito primitivo em relação a algo (1989, p. 44). E é a partir da análise dessa regra que nos aproximamos mais especificamente ao problema da relação do tempo e do espaço, pois a confusão entre as ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 273 diferenças de grau ou de natureza está centrada no que se entende e no que se compreende dessa relação. Normalmente, atribuímos diferença de natureza onde há diferença de grau. As diferenças de graus são mais comuns e as diferenças de natureza são mais raras, isso porque as diferenças de graus estão ligadas ao espaço e as diferenças de natureza ao tempo. A análise dessa regra nos remete à terceira regra que podemos resumir da seguinte forma: “colocar os problemas e resolvê-los mais em função do tempo do que do espaço” (DELEUZE, 1999, p. 22). E é essa regra que nos coloca no cerne do problema que propomos analisar, pois, segundo ela, a realidade deve ser pensada em função do tempo e não do espaço e, por isso, ela nos leva à análise de outro conceito importante da filosofia bergsoniana, que é o conceito de duração. Para Bergson, a intuição pressupõe a duração no sentido de que a intuição consiste em pensar em termos de duração (DELEUZE, 1999, p. 22). Ao se afirmar que a intuição pressupõe ou supõe a duração não se quer dizer que ambas são as mesmas coisas, ao contrário, pretende-se dizer que a intuição está intrinsecamente subordinada à duração na medida em que a realidade deve ser pensada a partir do tempo e não do espaço. Além disso, dizer que intuição supõe duração é dizer que a intuição é a forma que nós temos para sairmos de nossa duração e irmos ao encontro de outras durações, ou seja, a intuição é o caminho que nós temos para tomarmos consciência da multiplicidade de durações. Nessa perspectiva Deleuze afirma: A intuição não é a própria duração. A intuição é sobretudo o movimento pelo qual saímos de nossa própria duração, o movimento pelo qual nós nos servimos de nossa própria duração para afirmar e reconhecer imediatamente a existências de outras durações acima ou abaixo de nós (1999, p. 23). A intuição é o único método capaz de nos levar ao conhecimento da realidade de forma total. Isso porque ela está subordinada à duração. Conhecer a realidade de forma total não é tarefa fácil até porque essa realidade está constantemente em construção (BERGSON, 2005, p. 295). A realidade está constantemente fazendo-se e refazendo-se, nunca está totalmente acabada. Nesse sentido, a vida é constante movimento e transformação, ela está constantemente a se fazer, nunca está totalmente acabada, assim, o impulso vital se revela como o pressuposto da constante construção e reconstrução da realidade que por si é movente. O impulso vital “trata-se sempre de uma virtualidade em vias de atualizar-se, de uma simplicidade, em vias de diferenciar-se, de uma totalidade em vias de dividir-se” (DELEUZE, 1999, p. 75). Portanto, o impulso vital “será a ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 274 própria duração à medida que se atualiza, à medida que se diferencia. O impulso vital é a diferença à medida que ela passa ao ato” (DELEUZE, 1999, p. 133). Em outras palavras, o impulso vital é a potência móbil da realidade. Partindo do pressuposto da evolução, Bergson, utiliza o conceito de duração como forma de penetrarmos nessa realidade constantemente em processo de construção. Uma definição perfeita da realidade é impossível, haja vista que uma definição perfeita de algo só é possível se esse algo estiver totalmente já feito, e não é o caso da realidade, pois esta está em construção permanente (BERGSON, 2005, p. 14). Diante disso, como é possível pensar numa visão total da realidade sendo que esta está em constante construção? Para respondermos a essa questão é importante compreendermos melhor o sentido de duração. Para Bergson, tudo possui uma duração. A duração mais do que um tempo de existência ou tempo qualquer mensurável, significa invenção, criação constante, elaboração do absolutamente novo. A duração, portanto, é mudança (BERGSON, 2005, p. 12). Indo além, podemos afirmar, de forma comedida, que duração na proposta bergsoniana coincide com o termo movimento, ou ainda, a forma de percepção do movimento. A realidade é movimento constante, a duração é a forma ou percepção do conhecimento dessa realidade móbil. É a partir do conceito de duração como movimento que podemos entender mais especificamente a crítica que Bergson faz à ciência moderna. Para ele, essa ciência é moderna porque compreendeu a mobilidade como uma realidade independente (BERGSON, 2006, p. 225). Contudo, ela continuou no equívoco dos antigos de pensar o móbil a partir do imóvel. A ciência moderna busca conhecer a mobilidade a partir da imobilidade. Em outras palavras, podemos dizer, que a ciência moderna pensa o tempo a partir do espaço. E, nesse sentido, o tempo se torna relativo na medida em que se relaciona com as diferentes perspectivas de espaço. Bergson critica essa perspectiva porque, para ele, devemos pensar o tempo partir do próprio tempo, não é o tempo que se subordina ao espaço, ao contrário, é o espaço que está subordinado ao tempo. Os cientistas modernos necessitam estabelecer um ponto fixo, que é o espaço, para pensar a mudança e é, por isso, que, segundo o pensador em estudo, os modernos teimam em permanecer na vertigem da realidade. Raciocinamos sobre o movimento como se este fosse feito de imobilidade e, quando o olhamos, é com imobilidades que o reconstituímos. O movimento para nós é uma posição, depois uma nova posição, e assim por diante, indefinidamente (...) Temos instintivamente medo das dificuldades que seriam suscitadas para nosso pensamento pela visão do movimento naquilo ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 275 que este tem de movente estamos certos, a partir do momento em que o movimento foi carregado por nós de imobilidades. Se o movimento não for tudo, não será nada; e, se de início, pusemos que a imobilidade pode ser uma realidade, o movimento escorregará entre nossos dedos quando acreditarmos tê-lo pego (BERGSON, 2006, p. 167). Dessa forma, posicionando-se contrariamente à postura da ciência moderna que pretende conhecer a realidade movente a partir da imobilidade, Bergson, apresenta a sua proposta metodológica que se baseia na intuição e que, por sua vez, considera o tempo como prioridade em relação ao espaço. Conclusão A partir da ideia de duração entendida como mudança e construção do novo, podemos entender que o pensar em duração é uma ação de construção do objeto para e na consciência. Pensar em duração é interagir com o objeto do conhecimento, construindo a si mesmo e, também construindo o objeto que se deseja conhecer. Assim, a busca pelo conhecimento passa da epistemologia para a ontologia e dessa para um possível existencialismo, pois, na medida em que busca o conhecimento do objeto, sujeito e objeto do conhecimento passam por um processo de construção. Dessa forma, a duração pode ser considerada a forma de nos fazermos e de construirmos o conhecimento da realidade. Nesse sentido, fica mais clara a ideia de que o método em Bergson, não antecede à investigação, ao contrário, ele é feito e construído ao mesmo tempo em que investiga, e tudo isso é possível a partir da ideia de duração que nos possibilita entrar e participar de um processo constante de construção e elaboração da realidade e de nós mesmos. O pensar em duração participa interiormente da geração do objeto, operando uma superação da própria condição humana (que na sua finidade é separação e exterioridade em relação ao Ser). Mais do que um pensar o objeto, este ato identifica-se de alguma maneira, com o próprio ato que cria o objeto. Pensar em duração é identificar-se com a temporalidade do próprio surgimento do objeto enquanto objeto (PRADO Jr, 1988, p. 37). O conceito de duração apresentado por Bergson, foi a forma que ele encontrou de propor um conhecimento de uma realidade que sempre está a se fazer. Mas a duração, que é percepção temporal do objeto ou da realidade a ser conhecida, propõe algumas questões que nos levam a ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 276 outras reflexões importantes da filosofia do autor em estudo. A duração, como percepção do objeto, proporciona a construção de uma ideia ou conceito da realidade, mas até que ponto esse conceito e essa ideia representam realmente a realidade em si? Qual a relação entre duração, percepção e memória? A duração percebida é um elemento psicológico? Qual a relação entre memória e matéria? São questões que transcendem o objetivo do presente trabalho, mas para responde-las, inevitavelmente, é necessário fortalecer a perspectiva de que, de fato, para construirmos o conhecimento da realidade, devemos necessariamente adotar a intuição como método, pois ela é a única que pressupõe duração e, portanto, não subordina o tempo ao espaço, ao contrário, a partir da perspectiva temporal, procura-se compreender a realidade movente que está constante e permanentemente em construção. Referências bibliográficas BERGSON, Henri. A evolução criadora. São Paulo: Martins Fontes, 2005. _________. O pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006. DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. São Paulo: 34, 1999. PINTO, Debora Morato. Crítica do negativo e ontologia da Presença: a interpretação de Bergson segundo Bento Prado Júnior. O que nos faz pensar? n. 22, p. 23- 48, nov. 2007. PRADO Jr, Bento. Presença e campo transcendental: consciência e negatividade na Filosofia de Bergson. São Paulo: Edusp, 1989. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 277 LIBERDADE NO PENSAMENTO POLÍTICO DE THOMAS HOBBES Elizandra Bruno Sosa Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE Programa de Estudos Tutorados - PET, Filosofia [email protected] RESUMO: No presente trabalho pretendo apresentar o conceito de liberdade segundo Thomas Hobbes, presente na obra Leviatã. O livro é considerado uma obra-prima do pensamento político inglês e contribuiu para o caráter da política moderna. Veremos que a liberdade é ausência de imposição, ela se dá em relação às coisas. Em sua concepção de liberdade, Hobbes difere das tradicionais concepções. Ser livre não significa possibilidades, na idealização da liberdade, ou vontade livre, mas a ausência de impedimentos. Mas de qual sentido de liberdade falaremos? Hobbes fala da liberdade no Estado, o qual é constituído pelo súdito,-visando sua paz e segurança-. O pensador é constantemente acusado de ter formulado uma filosofia política na qual o Estado é um exterminador da liberdade dos indivíduos. Seguiremos como roteiro o capítulo XXI - Da liberdade dos súditos. Palavras-chave: Liberdade; súditos; estado. Em um Estado natural a convivência humana é quase impossível, visto que os indivíduos tendem naturalmente a guerra de todos contra todos, os homens para saírem do caótico Estado de natureza, firmam um pacto de forma voluntária para que se garanta a paz e a segurança, dando origem ao Estado civil. Mas a vida em sociedade implica em abdicar da liberdade que se possui, sujeito a regras, leis (feitas com a finalidade de proteger a sua própria vida). O Estado de Guerra não é um estado de conflito empiricamente conhecido, mas um estado de conflito possível, os indivíduos utilizam de ações violentas para a solução de suas contendas. No Estado em que o poder é absoluto, questionamos que papel caberá à liberdade? O que justifica a ação de homens livres ao abdicarem de sua plena liberdade com objetivo de se pactuarem leis e regras? E como a partir disso denominaremos a liberdade que resta aos ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 278 indivíduos? O que significa ser um homem livre no interior de uma sociedade civil? Inicialmente, podemos dizer que ser livre em um Estado é estar desimpedido de exercer suas capacidades na busca dos fins desejados. Hobbes apresenta a liberdade como ausência de todos os impedimentos para a ação que não está contida como qualidade na natureza do agente, sendo assim: Liberdade significa, em sentido próprio, a ausência de oposição (entendo por oposição os impedimentos externos do movimento); e não se aplica menos às criaturas irracionais e inanimadas do que às racionais. Porque de tudo o que estiver amarrado ou envolvido de modo a não poder mover-se senão dentro de um certo espaço, sendo esse espaço determinado pela oposição de algum corpo externo, dizemos que não tem liberdade de ir mais além. E o mesmo se passa com todas as criaturas vivas, quando se encontram presas ou limitadas por paredes ou cadeias; e também das águas, quando são contidas por diques ou canais, e se assim não fosse se espalhariam por um espaço maior , costumamos dizer que têm a liberdade de se mover da maneira que fariam se não fossem esses impedimentos externos. Mas quando o que impede o movimento faz parte da constituição da própria coisa não costumamos dizer que ela não tem liberdade, mas que lhe falta o poder de se mover; como quando uma pedra está parada, ou um homem se encontra amarrado ao leito pela doença (HOBBES, 1979, p.129). Nessa analogia colocada por Hobbes, onde temos a ação humana com o movimento natural das águas em um rio, o autor nos revela que o Estado, tal como as margens, não criam obstáculos em relação ao movimento natural dos homens na obtenção do que é melhor para si, é, senão, o que orienta para seu melhor fluir. Deste modo a concepção geral de liberdade se aplica a tudo o que existe, o que não deve ser confundido é a falta de liberdade com a falta do poder de se mover, tomamos o exemplo de uma pedra que está parada, visto que quando o que impede o movimento faz parte da coisa, não dizemos que ela não tem liberdade. Entendemos por homem livre “aquele que, naquelas coisas que graças a sua força e engenho é capaz de fazer, não é impedido de fazer o que tem vontade de fazer.’’ (HOBBES, 1979, p.129). Mas quando aplicamos as palavras livre e liberdade a coisas que não sejam corpos, ocorre um abuso da linguagem, cito Hobbes: Porque o que não se encontra sujeito ao movimento não se encontra sujeito a impedimentos. Portanto, quando se diz, por exemplo, que o caminho está livre, não se está indicando qualquer liberdade do caminho, e sim daqueles que por ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 279 ele caminham sem parar. E quando dizemos que uma doação é livre, não se está indicando qualquer liberdade da doação, e sim do doador, que não é obrigado a fazê-la por qualquer lei ou pacto. Assim, quando falamos livremente, não se trata da liberdade da voz, ou da pronúncia, e sim do homem ao qual nenhuma lei obrigou a falar de maneira diferente da que usou (HOBBES, 1979, p.129). Um alerta é feito para o uso da expressão livre arbítrio, nela não é possível alcançar liberdade na vontade, do desejo ou da inclinação, apenas a liberdade do homem, que consiste no fato de ele não se deparar com obstáculos ao fazer aquilo que tem vontade, desejo ou inclinação de fazer. A questão do livre arbítrio é um dos problemas que Hobbes tentará resolver, no qual encontramos a dificuldade em compatibilizar as concepções de liberdade e deliberação e a ideia de que tudo é causalmente determinado. Outro elemento sobre a liberdade é sua compatibilidade com o medo, pois todos os atos praticados pelos homens no Estado, por medo da lei, são ações que seus autores têm liberdade de não praticar. Quando alguém age por medo dizemos que agiu em conformidade com a sua vontade, segundo o que lhe pareceu melhor durante seu processo de deliberação. Por exemplo: Como quando alguém atira seus bens ao mar com medo de fazer afundar seu barco, e apesar disso o faz por vontade própria, podendo recusar fazê-lo se quiser, tratando-se portanto da ação de alguém que é livre. Assim também às vezes só se pagam as dívidas com medo de ser preso, o que, como ninguém impede a abstenção do ato, constitui o ato de uma pessoa em liberdade (HOBBES, 1979, p.130). A liberdade e a necessidade também são compatíveis, pois as ações que os homens voluntariamente praticam -que derivam de sua vontade- derivam da liberdade. Os atos da vontade de todo homem, todo desejo e inclinação derivam de alguma causa, e essa de uma outra causa -em uma espécie de cadeia contínua, onde Deus é a primeira de todas as causas-. Mas derivam também da necessidade, de forma que “Para quem pudesse ver a conexão dessas causas a necessidade de todas as ações voluntarias do homem pareceria manifesta”. (HOBBES, 1979, p.130) Deus que vê e dispõe de todas as coisas, vê que a liberdade que o homem tem de fazer o que quer é acompanhada pela necessidade de fazer aquilo que Deus quer. Os homens podem fazer muitas coisas que Deus não ordenou e, portanto, não é autor (Deus não é autor das ações dos homens), entretanto não é possível ter paixão ou apetite por nada cujo apetite a vontade de Deus ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 280 não seja causa (Deus é a causa primeira). Se a vontade de Deus não garantisse a necessidade da vontade do homem, a liberdade dos homens seria uma contradição e um impedimento à onipotência e liberdade de Deus. A concepção geral de liberdade é aplicada a tudo o que existe; na filosofia política temos a definição de liberdade natural e liberdade civil. A liberdade natural para Hobbes é a única propriamente chamada liberdade. Mas como se justifica que os homens abdiquem de sua liberdade natural e se direcionem a um pacto que os levem a um Estado? Para maior compreensão cito Hobbes: Mas tal como os homens, tendo em vista conseguir a paz, e através disso sua própria conservação, criaram um homem artificial, ao qual chamamos Estado, assim também criaram cadeias artificiais, chamadas leis civis, as quais eles mesmos, mediante pactos mútuos, prenderam numa das pontas à boca daquele homem ou assembleia a quem confiaram o poder do soberano, e na outra ponta a seus próprios ouvidos. Embora esses laços por sua própria natureza sejam fracos, é no entanto possível mantê-los, devido ao perigo, se não pela dificuldade de rompê-los (HOBBES, 1979, p.130). Podemos pensar que é uma enorme vantagem possuir plena liberdade mas, em um Estado em que todo homem seja dotado de liberdade para fazer aquilo que desejar, não devemos esquecer que o outrem também pode. Em tal situação o medo e a insegurança toma conta dos homens, a consequência de plena liberdade para todos é de uma guerra generalizada, uma condição que, segundo Hobbes, “o homem é o lobo do homem”. É sabido que em nenhum Estado do mundo foram estabelecidas regras suficientes para regular todas as ações e palavras dos homens, pois é impossível. Em situações em que as ações não são previstas pelas leis, os homens têm liberdade de fazer o que a razão de cada um sugerir, como mais favorável para si, e nesse sentido há uma liberdade dos súditos, essa liberdade resulta da ausência da repressão. A liberdade dos súditos está: [...] apenas naquelas coisas que, ao regular suas ações, o soberano permitiu: como a liberdade de comprar e vender, ou de outro modo realizar contratos mútuos; de cada um escolher sua residência, sua alimentação, sua profissão, e instruir seus filhos conforme achar melhor, e coisas semelhantes [...] (HOBBES, 1979, p.131) ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 281 Se a liberdade em seu sentido próprio é a liberdade corpórea, é absurdo que homens que não se encontrem presos em cadeias ou prisões, exijam uma liberdade que manifestantemente desfrutem. Homem livre entende-se por aquele que não encontra impedimentos para sua ação, ou seja, realiza sua vontade sem qualquer impedimento interno ou externo. Por que transferimos direitos no momento em que criamos um Estado? Qual a liberdade que a nós negamos? A liberdade e obrigação do súdito deve derivar da função do Soberano: a paz dos súditos entre si, e sua defesa contra um inimigo comum. Há direitos que não podem ser transferidos por um pacto, como o direito de defender seu próprio corpo. Haverá casos em que o súdito tem a liberdade de desobedecer, quando, por exemplo, lhe é ordenado que se prive de alimentos, ou qualquer outra coisa, sem a qual não poderá viver, ninguém pode ser obrigado por um pacto a recusar-se a si próprio. A liberdade no Estado é um contexto de respeito à lei e manutenção dos direitos individuais; serve como modelo de liberdade individual: a liberdade de um cidadão termina onde começa a do outro. Cito Júlio Bernardes: “O Estado hobbesiano como um estado de liberdade, de possibilidade efetiva do exercício dos direitos individuais, mediado por certas obrigações referentes ao respeito às leis.” (BERNARDES, 2002, p.51) O Estado de Natureza é caracterizado como um estado de plena liberdade, onde cada indivíduo é juiz de suas ações, esta liberdade é deixada aos súditos através das leis civis, objetivada pelo Soberano em favor e manutenção da vida. O mecanicismo materialista fundamenta a concepção de liberdade – influência da física de Galileu- na filosofia política de Thomas Hobbes, e para melhor compreensão do tema é necessário se familiarizar com a ideia de força; ela pode ser compreendida nos seguintes sentidos abaixo: compreendida como movimento que age como forças nos corpos, mas sem esses pertencer. O movimento enquanto alteração espacial de um determinado corpo material; em sentido restrito o movimento causa apenas mudança na posição dos objetos e não há alteração das propriedades do objeto segundo a concepção dos Aristotélicos. Um corpo não se movimenta ou deixa de se movimentar por si mesmo, isso ocorre apenas quando recebe influências de forças externas que nele são impressas. Consiste aqui o principio da inércia: Todo corpo permanece em seu estado de repouso, ou de movimento uniforme em linha reta, a menos que seja obrigado a mudar seu estado por forças impressas nele postulado por Newton, popularmente conhecido como a Primeira Lei de Newton. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 282 A ideia de liberdade em Hobbes é compreendida na medida em que os corpos são livres quando conseguem manter seu estado de movimento, cito Júlio Bernardes: A liberdade é definida por Hobbes como ausência de obstáculos ao estado cinético em que um corpo se encontra. De acordo com esta definição de liberdade, a tarefa fundamental do Estado é garantir condições para a manutenção do livre exercício deste estado cinético interno por cada um dos seus súditos. O ordenamento da ação, através da restrição do seu campo de possibilidades, é requerido como meio para a correção de uma perversão originada pela liberdade absoluta de ação no estado de natureza. Qual perversão? Que o princípio ( a manutenção da vida) que legitimava o estado de plena liberdade da ação passa a ser ameaçado quando do exercício do mesmo. Ou seja, a liberdade plena da ação ou de movimento externo se constituía uma ameaça ao movimento vital (BERNARDES, 2002, p.54) Concluímos que o Estado deve por meio de um conjunto de leis, visar ao bem comum, como promotor da paz. O Estado hobbesiano é um artifício humano que possibilita o desenvolvimento dos homens (artes, ciências, trabalho, comercio, etc). No Estado, os súditos possuem um estado de liberdade parcial enquanto um conjunto de ações se encontram impedidas ou constrangidas enquanto outras não. O Estado proíbe certas ações para orientar os homens na busca do melhor para si – o súdito ainda possui a liberdade de deliberar sobre obedecer ou não-. Neste aspecto o Estado político hobbesiano age como um mantenedor da liberdade que se refere ao movimento vital e da liberdade de todas as ações que contribuam para uma vida digna e confortável. A liberdade dos súditos depende da flexibilidade da própria lei, é uma liberdade limitada, mas é efetiva. Referências Bibliográficas: HOBBES, T. O Leviatã: Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Trad. J. P. Monteiro; M.B N. da Silva. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. BERNARDES, J. Hobbes e a Liberdade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 283 LIBERDADE POLÍTICA NOS DISCORSI DE MAQUIAVEL Gabriel Allan Drehmer Gonçalves Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE Bolsista Fundação Araucária. [email protected] Orientador: Prof. Dr. José Luiz Ames RESUMO: O presente texto tem a intenção de levar em frente a análise de conceitos abordados já em O Príncipe, além de novos conceitos implicados nos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, onde o autor que uma vez falou da monarquia se volta para a forma de governo republicano, a partir da qual lança luz ao conceito de conflito como inerente a toda sociedade e mantenedor da vida livre, baseando-se na história da república romana como exemplo de virtude cívica, tanto do povo quanto do governo. A virtú, assim, passa a ser um predicado não só de um, o príncipe, mas de muitos, um povo, tal como atesta e ilustra Maquiavel no decorrer dos seus Discursos. É, pois, nessa obra, os Discursos, que o autor torna audível com mais solidez sua preferência, em consonância com seu realismo, pela forma de governo mais estável e condizente com a vida civil, a república. Palavras-chave: Conflito, liberdade, república Maquiavel fala da fundação do Estado, tema não aprofundado anteriormente, para mais uma vez chegar ao conceito de conflito como possível mantenedor da vida livre em sociedade. A partir disto o autor tem a possibilidade mais ampla de explorar novos conceitos não antes vistos em sua obra sobre o principado, como a lei, virtude popular (não sendo mais esta uma exclusividade do governante, por mais que seja por meio deste que o povo livre pode se manifestar positivamente) e corrupção. Diz Maquiavel, logo no primeiro capítulo dos Discursos, acerca da fundação do estado romano: ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 284 Quem ler a história do princípio da cidade de Roma e da forma como tudo foi ordenado e por quais legisladores, não se admirará de que tanta virtù se tenha mantido por vários séculos naquela cidade; e de que depois tenha surgido o império que aquela república atingiu. E, para discorrer antes sobre o seu nascimento, direi que todas as cidades são edificadas, ou pelos homens nascidos no lugar onde são edificadas, ou por forasteiros. O primeiro caso ocorre quando os habitantes , dispersos em muitas e pequenas partes, percebem que não poderão viver seguros, visto que cada um por si não poderia resistir ao ímpeto de quem os assaltasse, seja pelas feições do local, seja por serem em pequeno número, e não teriam tempo para unir-se para a defesa diante da chegada do inimigo; ou mesmo, em havendo tempo, precisariam abandonar muitos dos seus redutos, vindo assim a tornar-se presa fácil dos inimigos: de tal modo que, para escaparem a esses perigos, movidos por si mesmo ou por alguém dentre eles com mais autoridade, se reúnem para morar juntos, em lugar escolhido por eles, lugar que seja cômodo para se viver e mais fácil de se defender. (Discursos, I,1; MAQUIAVEL, 2007, p. 7-8) O autor segue afirmando que foi esse o início de muitas cidades datadas de tempos antigos, como Atenas. Partindo da concepção da fundação do Estado a partir da regra da necessidade o autor florentino coloca nas mãos de um homem de virtù que capta a ocasião, no caso presente a necessità, que primeiramente se apresenta na forma natural do medo primordial (pestes, guerras, condições climáticas) a tarefa de, institucionalizando-a em uma necessidade artificial, constante, fundar um Estado de equilíbrio entre os interesses dos humores divergentes que compõem a cidade e a necessidade imposta pela lei. Maquiavel parte do princípio de que o desejo do homem é tal que este não age corretamente se não por uma necessidade, daí o autor afirma que, onde a escolha abunda, cabe à necessidade regrar o comportamento dos muitos, caso contrário instala-se a licença e, no caso de um governo já fundado, o advento da corrupção. Sobre a necessidade imposta à escolha, diz Maquiavel: E, como os homens agem por necessidade ou por escolha, e como se vê que é maior a virtù onde haja menos escolhas, é de se pensar que, para a edificação das cidades, talvez fosse melhor a escolha de lugares estéreis, para que os homens, obrigados a esforçar-se e a ocupar-se menos com o ócio, vivessem mais unidos por terem menos razões de discórdia [...] (Discursos, I,1; MAQUIAVEL, 2007, p. 10) Sobre a questão de onde deve-se edificar uma cidade vale salientar que, mesmo que num primeiro momento se cogita a idéia da fundação num lugar estéril, este que reproduziria de forma eficaz a necessidade primordial, esta não é, para o autor florentino, a melhor opção, visto que, ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 285 privados de tudo, os homens tornam-se facilmente industriosos e mesquinhos. Assim, segue o autor, caberia antes edificar uma cidade num terreno fértil, introduzindo ali leis e ordenações tais que o ócio não domine o cidadão. Maquiavel lida com a transitoriedade daquilo que é para mostrar que em termos efetivos não existe uma forma perfeita de governo que sob o estandarte de um fundador/legislador virtuoso que, de acordo com a moral, doe leis e instituições “de mão beijada” para que assim os cidadãos gozem da eterna pluralidade de fins convergindo para um mesmo Bem comum na eternidade harmônica de um Estado incorruptível, de acordo com os ditames da lei divina. O autor abandona a natureza teleológica que vê no homem uma estrutura que está de acordo com um fim supremo desvelado na natureza enquanto tal preferindo uma visão pessimista acerca do ser humano, que é tecnicamente mau, mas que permite pensar a política em termos mais realistas chegando à ‘verdade efetiva’, ao encontro entre o político/governante e o político/governando, evidenciando o verdadeiro tirano da verdadeira vida livre em sociedade. Maquiavel parte do desejo anárquico e insaciável para pensar o homem como um ser medíocre, uma mediania amoral, lhe bastando a perspectiva de consecução desiderativa para que sua moral pessoal cambie entre bem e mal, fazendo do bem um suposto mal e do mal um bem de acordo com a maré, como bem evidencia na sua famosa peça teatral ‘A mandrágora’, onde a moral cristã é colocada em xeque em prol de uma “política” pessoal de fins justificando meios. Assim, como bem salienta Winter em sua tese, para que se compreenda a política de Maquiavel faz-se necessário primordialmente que se entenda sua visão dos desejos humanos: Maquiavel parte da tese de que os homens são dotados de desejos e a todo custo procuram satisfazê-los. Esta constatação acerca da natureza humana permite a Maquiavel estabelecer uma nova compreensão da política a partir de uma visão real e não ideal dos homens. A verdade efetiva das coisas (verità effettuale delle cose) é o fundamento da política maquiaveliana. Compreender a teoria dos humores, circunscrita pela verdade efetiva, por isso, é condição necessária para compreender, na esfera do político, a relação entre o conflito civil de grandes e povo e a liberdade no pensamento do secretário florentino. (WINTER, 2010, p. 51) Maquiavel nos ensina que o único modo pelo qual é possível ao homem modificar e/ou, ir contra a natureza é pelo meio político. Essa idéia é totalmente contraditória com o ideal político cristão onde é seguindo a natureza, como bem exemplificado pela metáfora das abelhas usada por Tomás de Aquino, que o homem chega ao seu devido fim já que está em Deus o ideal que deve ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 286 ser perseguido refletindo-se este na natureza e cabendo ao homem atualizar-se conforme a vontade do criador. Para Maquiavel o jogo político não é uma natureza proveniente do suprasensível, mas algo que modifica e, muitas vezes vai contra essa força cósmica adotada pelo cristianismo para fundar o regime perfeito. Para o autor florentino o agente político é criador na medida em que dá forma à matéria fazendo surgir como possível uma realidade que não existe na natureza, onde a multiplicidade se funde na unidade da coletividade em prol de um “bem comum” ditado pelo próprio jogo político e nunca desvelado na natureza pela forte mão de um ser onipotente. Política enquanto o meio público onde se efetiva a ação é constante criação de um ou muitos homens de virtù de acordo com a necessidade imposta como constante conflito que dilacera a vida social. Como diz Ames: “Na finalidade da natureza humana não existe mais qualquer normatividade interna, ela está livre de princípios. Por esse motivo, não é em conformidade com a natureza e sim contra ela que é possível instaurar uma ordem entre os homens” (AMES, 2002, p.98). Assim, se os homens são maus e não há neles uma natureza tal que garanta o impulso inicial do fundador, é preciso encontrar no próprio jogo político, na verdade efetiva da coisa, um critério, ou regra geral, tal que possa servir de base para o agente político. Tal é, pois, a ação política sob conceitos como virtù, fortuna e ocasião. O governante de virtù, como exposto acima, é aquele que capta a necessidade. Mas se não há uma convergência de fins e cabe ao regente agir, este deve agir sobre o quê? Sobre, ou com base em que, ditar leis e instituições? Daí o conceito de conflito inerente que traz em si todo o sentido antropológico exposto na teoria maquiaveliana onde o homem deseja sempre. Maquiavel fala de dois pólos do jogo político, basicamente, os grandes e o povo, ambos partilhando do mesmo princípio antropológico tendo o mesmo grau desiderativo. Não existe desejo bom e desejo ruim entre povo e grandes. O que existe é a canalização institucional calcada na situação social imposta pela realidade das coisas onde uma parte, os grandes, uma vez tendo muito, mas nunca contentes com o que tem, pelo caráter geral do desejo anárquico e insaciável, querem sempre oprimir, querem sempre mais, e de outro lado o povo que, ainda que deseje tanto quanto os grandes, no medo de perder o que tem apela para a defesa da liberdade pela não opressão. Daí que o povo é o guardião da liberdade na república, pois o equilíbrio entre estes e os grandes suprime, até certo ponto, o desejo popular, que não é diferente do desejo dos grandes, ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 287 possibilitando assim que o povo em tal posição seja o mantenedor da vida livre de acordo com o aparato institucional. Assim, cabe ao governo institucional canalizar os humores de forma que uma parte não se sobreponha à outra, nem que o governo caia na licenciosidade. Cabe ao governante impor a necessidade onde a escolha abunda. Sobre a defesa da liberdade a partir do desejo do povo diz Maquiavel no capítulo IV do livro I dos Discursos: Direi que quem condena os tumultos entre os nobres e a plebe parece censurar as coisas que foram a causa primeira da liberdade de Roma e considerar mais as assuadas e a grita que de tais tumultos nasciam do que os bons efeitos que eles geravam; e não consideram que em toda república há dois humores divergentes, o povo, e os grandes, e que todas as leis que se fazem em favor da liberdade nascem da desunião deles [...] (MAQUIAVEL, 2007, p. 22) Vê-se neste trecho que Maquiavel coloca, mais uma vez, na voz de um interlocutor, a saber, a tradição, a defesa de uma política que não visualiza com precisão o problema do conflito dentro de uma república. Segue o autor logo abaixo, continuando o parágrafo: E não se pode ter razão para chamar de não ordenada uma república dessas, onde há tantos exemplos de virtù: porque os bons exemplos nascem da boa educação; a boa educação, das boas leis; e as boas leis, dos tumultos que muitos condenam sem ponderar: porque quem examinar bem os resultados deles não descobrirá que eles deram origem a exílios ou violências em desfavor do bem comum, mas sim a leis e ordenações benéficas à liberdade pública. (MAQUIAVEL, 2007, p.22) Fica evidente, pois, a ruptura de Maquiavel com a tradição tanto antiga, da política clássica e medieval, como para com seus contemporâneos humanistas. Para complementar diz Maquiavel diretamente sobre o desejo do povo: “E os desejos dos povos livres raras vezes são perniciosos à liberdade, visto que nascem ou de serem oprimidos ou da suspeita de que virão a sê-lo” (MAQUIAVEL, 2007, p. 23) Se em O Príncipe Maquiavel trata de destruir todas as bases metafísicas que mistificavam a ação do príncipe e os fundamentos de um governo segundo a natureza quando denuncia a violência geral a que fazem uso os conquistadores de um principado novo, nos Discorsi o ar se torna um tanto mais teórico possibilitando ao autor a exploração de novos temas como: as leis, a liberdade, as instituições e outros temas associados à república e ao bom funcionamento do Estado. Ao contrário de O Príncipe, escrito como um compêndio de princípios básicos dedicados ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 288 a sua senhoria, os Médici, os Discorsi diferem logo no meio em que foi composto. Apesar de algumas especulações sobre em qual ano especificamente o autor escreveu seus Discursos, o meio onde este resolveu vincular e ampliar suas idéias republicanas foi o jardim da família Rucellai, onde jovens intelectuais reuniam-se para ouvir os ensinamentos de Maquiavel e também para expor sua vontade contra o despotismo Médici na cidade de Florença. Daí vê-se um compromisso mais solto, o tratado desta vez não é dedicado ao príncipe, mas sim ao próprio autor e seu circulo de ouvintes, os cidadãos florentinos. Assim Maquiavel inicia seu tratado sobre as repúblicas discorrendo sobre a fundação dos Estados livres por uma cisão que desde início ditará subliminarmente toda a temática da vida livre no pensamento do autor. A premissa geral sob a qual se desdobrará toda a pesquisa do autor na forma de discurso é a de que, falando da fundação e manutenção de um Estado, o que um funda somente muitos mantém. Pois política é o embate engajado de forças antagônicas. No cerne da atividade fundadora está um homem, ou um grupo de homens que “capta no ar” a ocasião de dar uma resposta à necessidade geral. Para Maquiavel todo e qualquer agrupamento de homens na forma de um Estado pressupõe uma relação de medo prévio, medo este que se traduz pela necessidade mesma que se mostra ao homem de virtù como a ocasião de agir, de inserir forma à matéria, de criar leis e instituições. Este aspecto bruto da necessidade é primordialmente natural, o homem tende a fugir da morte iminente que se traduz na natureza pela fome, peste e até guerras entre homens. Assim, Maquiavel vê nessa necessidade natural o motor que move os homens à coexistência, mas não basta somente este impulso inicial para que se mantenha a vida social e muito menos a vida livre. Daí a necessidade de ditar a forma na matéria, caso contrário retornaríamos ao argumento teleológico aristotélico que pressupõe uma ordem de fins de tal modo inerente à natureza do animal racional, e depois social, que ao fundador bastaria a tarefa de dar esse único impulso inicial a partir do qual tudo convergiria para o Bem comum do ‘dever ser’. A necessidade deve ser constantemente rememorada para que a instituição não cristalize na mente do cidadão aquilo que Maquiavel já denunciava em O Príncipe, que a legitimidade natural de qualquer governo ou principado tem sua origem no sangue e que este foi somente inserido numa perspectiva política na qual se mascarou de segunda natureza inerente ao próprio homem o que é criação do próprio homem a partir de um ato de violência inicial. O cidadão não tem e não pode pensar ter se tornado tal a vida civil que nada poderia dissociar o impulso natural dos homens, a necessidade deve ser constantemente rememorada nas formas institucionais que regulam o ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 289 combate entre as forças sociais que dilaceram a sociedade resultando sempre em novas leis que, de ambas as partes desiderativas, rejam o equilíbrio onde nem uma parte nem outra sobreponha sua antagonista, pois tal seria o fim da vida livre. Por isso, diz Maquiavel, toda forma de governo que prega a harmonia, o fundamento da concórdia, carrega nos seus atos o sangue do povo ao qual oprime por uma ilusão de Bem sobrenatural. Em suma, o fundador de virtù é aquele que institucionaliza a necessidade de forma a dar vazão ao conflito inerente à vida política. Se na filosofia política clássica era concebida uma essência como prévia à existência, no pensamento político de Maquiavel, usando termos conceituais contemporâneos, a existência precede a essência na medida em que o agente político na forma de grandes ou povo é responsável pela sua própria condição. É na coisa mesma que se dá o fazer do político e é nela ainda que se encontram as condições possíveis para toda ação que deve legitimar a si mesma. É no embate social, nos seus desejos e na necessidade imposta pela lei coercitiva como resultado do conflito, que se legitima constantemente a ação política. Fundação é constante renovação, é o embate que lembra sempre a necessidade primordial na figura antagônica do desejo em questão, grandes querendo oprimir e povo querendo não ser oprimido. Assim, o conflito produz a lei que legitima o meio político por sua autoimposição. Não há racionalidade ou racionalização da natureza na forma da lei, mas sim o equilíbrio resultante do conflito. A lei faz a vez da necessidade natural como produto do homem, esta necessidade que é artificial. A produção da lei como criação humana, não natural, se dá no meio institucional que tem como pano de funda o dilaceramento social imposto pela necessità. Ao enunciar o problema da circularidade polibiana Maquiavel intenta achar um meio estável que propicie a conservação da vida política. Uma vez que o ciclo polibiano prevê uma naturalização do político, o que resulta na degradação de sua forma institucional em seu direto oposto. Maquiavel vê no governo misto a estabilidade política que não se deixa naturalizar com tanta facilidade, pois, em vez de somente um, poucos ou muitos governarem, no governo misto cada parte tem seu papel na feitura das leis ao propiciar abertura ao desafogo do conflito. No governo misto o príncipe, grandes e povo nas figuras do cônsul, senado e tribunos respectivamente, são parte ativa e conflitante na dinâmica política que carrega em si o equilíbrio institucional. Ao comparar os governos Espartano e Veneziano, modelos de estabilidade, ao governo Romano, Maquiavel se utiliza de um elemento retórico que coloca na boca do interlocutor (a ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 290 tradição) a defesa de uma pretensa harmonia enquanto defende na primeira pessoa o tumulto romano, considerado pernicioso e prejudicial à república, esta que, como no caso de Roma, se não fosse assegurada pelas armas e pela boa fortuna, nunca teria alcançado liberdade e prestigio. Maquiavel mostra que, se em Roma houveram boas armas, estas decorreram mais da boa educação proveniente dos bons costumes, que por sua vez devem-se às boas leis cunhadas no cerne do conflito, do que de uma falsa noção aristocrática de harmonia essencial. Roma brilhou não só como potência militar, mas, também, como modelo de instituição; suas leis foram cunhadas no conflito de modo a propiciar o desafogo das partes componentes do jogo político. O conflito Romano entre plebe e povo, mediado pela figura do senado, compõe um governo misto baseado na tríplice relação entre as formas institucionais puras, a democracia (povo), a aristocracia (nobres) e a monarquia como cume mediador (cônsul), estas três instâncias individuais unindo-se de forma orgânica contribuindo para a institucionalização do medo como necessidade na forma da lei regulada pelo conflito que garante, de forma mais sólida, a liberdade política, esta que é posta nas mãos do povo que deseja, mas não deseja dominar pela sua posição de oprimido, sendo que, visto que o desejo é anárquico e insaciável dentro do homem em geral, o povo compõe a parte negativa dos desejos antagônicos que passa a ser positivada pela efetividade que o conflito exige contra a total dominação de uma das partes, tornando, assim, o povo guardião da liberdade via institucional/legal. Referências Bibliográficas: ADVERSE, Helton. Maquiavel, a república e o desejo de liberdade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. AMES, José Luiz. A Favola e a sátira na obra de Maquiavel. Tempo da Ciência, Toledo, v. 7, n.14, p. 35-42, 2000. ___________. Lei e violência ou a legitimação política em Maquiavel. Trans/Form/Ação, Marília, v.34, n.1, p.21-42, 2011. ___________. Maquiavel: a lógica da ação Política. Cascavel: Edunioeste, 2002. ___________. Poética da virtù: um estudo da comédia la mandragola de Niccolò Machiavelli. Tempo da Ciência, Toledo, v. 8, n.15, p. 33-45, 2001. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 291 KRITSCH, Raquel. Maquiavel e a república: lei, governo legal e institucionalidade política nos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. Revista Espaço Acadêmico, Maringá, n.113 p. 26– 37, outubro de 2010. LEFORT, Claude. Le travail de l’oeuvre Machiavel. Paris: Gallimard, 1972. MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio (Discorsi). São Paulo: Martins Fontes, 2007. VALVERDE, Antonio. A liberdade cívica no livro I dos Discorsi de Maquiavel. Hypnos, São Paulo, v. 5, p. 337-354, 1999. WINTER, Lairton Moacir. Conflito civil e liberdade: o antagonismo de desejos como fundamento da liberdade republicana em Maquiavel. 2010. Dissertação (Mestrado Filosofia) – Centro de Ciências Humanas e Sociais, UNIOESTE, Toledo. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 292 A MULTIDÃO DE ESPINOSA E A PRIMAZIA DA RESISTÊNCIA DE FOUCAULT E DELEUZE NA TESE DE NEGRI E COCCO EM “GLOB(AL): BIOPODER E LUTA EM UMA AMÉRICA LATINA GLOBALIZADA” Gilson Arend Vania Sandeleia Vaz da Silva [email protected] RESUMO: Antonio Negri e Giuseppe Cocco no livro Glob(Al): Biopoder e luta em uma América Latina globalizada, publicado em 2005, questionam as interpretações dominantes a respeito da dependência latino-americana a partir do conceito de multidão – originário do filósofo holandês Bento Espinosa (1632-1677) – e da noção de primazia da resistência – tal como formulada por Michel Foucault (1926-1984) e por Gilles Deleuze (1925-1995). Se concordarmos que “a tendência à recomposição da frente global das lutas dá um caráter de urgência à retomada de um debate teórico, tanto múltiplo, quanto voltado para a construção de bases comuns”; será que Negri e Cocco (2005, p. 17) foram capazes de apresentar a resistência da multidão (“a nova figura subjetiva que o proletariado forjou para a própria expressão constituinte”) de modo a conferir “universalidade à análise revolucionária”? Palavras-chave: Resistência; multidão; Espinosa; Foucault; Deleuze “Que se vayan todos, que no quede ni uno solo” (Grito argentino das manifestações de 19 e 20 de dezembro de 2001) A trilogia – Império (2000); Multidão (2004) e Commonwealth (2009) – escrita por Michael Hardt e Antonio Negri a respeito do que tradicionalmente chamaríamos de relações internacionais, rompe com o modo próprio de pensar e escrever nas Ciências Sociais, na Ciência Política e nas Relações Internacionais, porque mescla, propositadamente, ciência, mitologia, literatura, sociologia, antropologia, filosofia e, até mesmo, notícias jornalísticas dos eventos que envolvem poder e resistência, ou, para ser mais fiel ao propósito dos autores, potência e resistência aos poderes ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 293 provisoriamente constituídos. Giuseppe Cocco integra-se nesse projeto e modo de pensar a política que lembra muito bem parte de um prefácio que Michel Foucault (1926-1984) escreveu para o livro O anti-Édipo (1972) de Gilles Deleuze (1925-1995) e Félix Guatarri (1930-1992), o qual, segundo escreveu Foucault, poderia ser considerado “uma Introdução à vida não fascista”: Essa arte de viver contrária a todas as formas de fascismo, quer já estejam instaladas ou próximas do ser, acompanha-se de um certo número de princípios essenciais [...]: - liberem a ação política de toda forma de paranoia unitária e totalizante; - façam crescer a ação, o pensamento e os desejos pela proliferação, justaposição e disjunção, antes que pela subdivisão e hierarquização piramidal; - liberem-se das velhas categorias do Negativo (a lei, o limite, a castração, a falta, a lacuna), que o pensamento ocidental há muito tempo sacralizou como forma de poder e modo de acesso à realidade. Prefiram o que é positivo e múltiplo, a diferença à uniformidade, os fluxos às unidades, os arranjos móveis aos sistemas. Considerem que o que é produtivo não é sedentário, mas nômade; - não imaginem que seja preciso ser triste para ser militante, mesmo se o que se combate é abominável. É o liame do desejo à realidade (e não sua fuga nas formas da representação) que possui uma força revolucionária; - não utilizem o pensamento para dar a uma prática política um valor de verdade; nem a ação política para desacreditar um pensamento, como se ela só fosse pura especulação. Utilizem a prática política como um intensificador do pensamento, e a análise como um multiplicador das formas e domínios de intervenção da ação política; - não exijam da política que restabeleça os “direitos” do indivíduo, tais quais a filosofia os definiu. O indivíduo é o produto do poder. O que é preciso é “desindividualizar” pela multiplicação e pelo deslocamento dos diversos arranjos. O grupo não deve ser o liame orgânico que une os indivíduos hierarquizados, mas um constante gerador de “desindividualização”; - não caiam apaixonados pelo poder (Foucault, [1977] 2010, p. 105-6, grifos nossos). A teoria da dependência é desconsiderada sumariamente pelo mainstream da disciplina de Relações Internacionais, a princípio, porque é uma teoria que não é abrangente mas muito circunscrita: seu objetivo é pensar as consequências políticas do desenvolvimento capitalista na região compreendida pelo rótulo América Latina, que, tal como anuncia o adjetivo, teria sido dependente do desenvolvimento capitalista em geral, aquele que diz respeito aos países do Oeste europeu e dos Estados Unidos (e, Canadá, e Japão, e Austrália, enfim, o que poderia ser agrupado no hemisfério Norte definido não por localização geográfica, mas por critérios sócio-econômicos). Enquanto teorias como o Realismo, o Idealismo e o Imperialismo seriam gerais porque consideram a ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 294 interação de todos os Estados – ou dos mais importantes – a teoria da dependência seria restrita e não poderia compor a corrente principal da disciplina de Relações Internacionais. O questionamento feito à teoria da dependência de que trataremos aqui é de um tipo diferente. Antonio Negri e Giuseppe Cocco no livro Glob(Al): Biopoder e luta em uma América Latina globalizada, publicado em 2005, questionam as interpretações dominantes a respeito da dependência latino-americana a partir do conceito de multidão – originário do filósofo holandês Bento Espinosa (1632-1677) – e da noção de primazia da resistência – tal como formulada por Michel Foucault (1926-1984) e por Gilles Deleuze (1925-1995). A obra de Negri e Cocco suscita indagações e curiosidade sobre a matriz filosófica que orienta e conduz o pensamento destes autores para a América Latina. Sua abordagem foca o México, a Argentina e o Brasil dentro de uma perspectiva pós-moderna da filosofia política. Para eles, o poder soberano se encontra em crise no momento histórico que marca a transição da modernidade para a pós-modernidade e o método mais eficiente para a análise dos acontecimentos recentes é levar a sério a ideia de Foucault e Deleuze de que a resistência tem primazia ontológica e explicativa em relação ao poder constituído. Assim, os movimentos coletivos de resistência – a luta dos trabalhadores pela liberação ou pela libertação – antecedem e forjam as nuances seguintes do desenvolvimento capitalista –as inovações técnicas são consequências das inovações sociais – e dos arranjos de poder. Então, se é verdade que “o capitalismo mundial sabe unificar e articular seus instrumentos de domínio e de repressão” (2005, p. 17), cabe notar que a ação da multidão – a mais recente figura subjetiva que o proletariado forjou para sua resistência – pode ser considerada uma consequência na medida em que questiona a unidade do poder, já que é múltipla. A associação da ideia de multidão com a perspectiva da resistência já se encontra presente numa publicação de 2002 em uma coletânea – O trabalho da Multidão: Império e resistências – em que se discute as transformações do trabalho e as formas emergentes de lutas e resistências, plurais, múltiplas, a partir de uma rede (a Universidade Nômade, desterritorializada) que se ocupa de estudos que inclui diversas áreas do conhecimento (é transdisciplinar) e possibilita a cooperação entre várias instituições (é interinstitucional) que buscam atravessar os limites do mundo acadêmico e superar conjecturas puramente teóricas. Negri e Cocco lançam um novo olhar para os movimentos sociais dos anos 90 e asseguram que não faz sentido hoje retornar ao desenvolvimentismo – que se apoia em um Estado centralizador, ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 295 reduzindo o espaço público às implicações individualistas do mercado (2005, p. 54). A partir da crise da representação política – e todo tipo de transcendência ligada ao Estado moderno e soberano, que jamais fora plenamente instituído na América Latina, segundo os autores – enfatizam as inovações da multidão no campo da democracia que eles chamam de New Deal (Novo Pacto), pois, como afirmam, “o desenvolvimento tem necessidade de liberdade e democracia” para que não seja só “crescimento econômico”, e, assim “tais processos representam verdadeiras mutações biopolíticas” (2005, p. 88). Retomando o conceito de multidão – que Antonio Negri reelabora a partir da obra de Bento Espinosa – acrescenta-se a noção de potência do trabalho vivo, que reinterpretam da obra de Karl Marx e consideram que o exercício do poder é melhor entendido a partir da noção de biopoder de Michel Foucault. Para Negri e Cocco, a multidão é “um conjunto biopolítico de singularidades que trabalham e são oprimidas, que resistem com os corpos e que, com a inteligência, querem revolucionar o mundo” (2005, p. 73). Trata-se, portanto, de uma “multiplicidade de todas as diferenças singulares” (Negri e Hardt, 2004, p. 12), comunicando-se em rede em âmbito global e agindo em comum: interferindo, provocando mudanças nas formas de se governar, nesse contexto que definem como Império. A multidão é constituída de minorias atuantes, mas a aspiração de um dado grupo está excluída de se tornar a da maioria ou em governo, pois possui a intenção de provocar transtornos nos trâmites tradicionais de representação política (Hopstein, 2002, p. 48). A ênfase será sempre mantida na “insistência em momentos comuns de luta” (2005, p. 100). A multidão é uma categoria pensada distintamente de outros conceitos como “povo”, “população” e “massa” na análise da atualidade. “População” é uma designação que dá destaque às diferenças e que, por sua vez, o emprego da terminologia “povo” engendra uma ideia de unidade associada a uma identidade comum. Já, no uso do conceito de “massa”, não está presente a noção de identidade e unicidade e a sua característica essencial é a indiferença surgida da diluição de todas as diferenças em um conglomerado uniforme. Ao contrário, a multidão não se permite reduzir a uma unicidade ou identidade, nega-se a ser representável; a sua democracia é absoluta por não reconhecer qualquer princípio ou soberania que lhe seja alheio ou inconveniente (Negri e Cocco, 2002, p. 25). O movimento da multidão é auto-organizado e movido pelo desejo de democracia, trata-se de uma “inteligência fundamentalmente social” (Hardt e Negri, 2004, p. 131), uma inteligência forjada nas relações coletivamente estabelecidas – na vida e trabalho – e que adquire um nível elevado e isento de um controle central ou unificado. O fundamento desta ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 296 inteligência social (ou coletiva) é a comunicação e a cooperação entre diferentes agentes criativos da multidão. Como pensar a resistência considerando um sujeito político que não se permite unificar, que é estranho às teorias da soberania que estudamos – as quais nos ensinaram que os pactos, inclusive o contrato social que cria a soberania do Estado tem que ser mantido? Não se pode romper o contrato porque não é justo retirar a palavra dada. Ora, como explica Michel Foucault (1979, p. 66) a justiça é um instrumento de Estado que age para fragmentar internamente as massas, dissipando-as (Foucault, 1979, p. 67), e se o poder é exercido sempre como “um modo de ação de alguns sobre os outros” (Foucault, 1995, p. 242), ou “um conjunto de ações sobre ações possíveis [de outros]” (Foucault, 1995, p. 243), por outro lado, o exercício do poder somente se dá sobre sujeitos que tenham possibilidades de escolha e reações de comportamentos diversos (1995, p. 244). Quer dizer que a liberdade é uma condição para o exercício do poder: “a relação de poder e a insubmissão da liberdade não podem, então, ser separadas” (1995, p. 244). Foucault explicita que na sociedade as situações de adversidades colocam em ação mecanismos de poder (1995, p. 249), e sendo os sujeitos individuais ou coletivos, as relações de poder se originam na complexidade da rede social (1995, p 247), sendo que o mais importante é notar que: o que torna a dominação de um grupo, de uma casta ou de uma classe, e as resistências ou as revoltas às quais ela se opõe um fenômeno central na história das sociedades é o fato de manifestarem, numa forma global e maciça, na escala do corpo social inteiro, a integração das relações de poder com as relações estratégicas e seus efeitos de encadeamento recíproco (Foucault, 1995, p. 249). Gilles Deleuze, no seu livro sobre Foucault, afirma que “a última palavra do poder é que a resistência tem o primado, na medida em que as relações de poder se conservam por inteiro no diagrama, enquanto as resistências estão necessariamente numa relação direta com o lado de fora, de onde os diagramas vieram” (2005, p. 96). Trata-se de partir das formas de resistência às diversas formas de poder (e das tentativas de suas dissociações) para melhor esclarecer estas relações de poder. As lutas de resistências, conforme Foucault (1995, p. 234), são caracterizadas: por não se restringirem a “uma forma política e econômica particular de governo”, por objetivarem “os efeitos de poder enquanto tal”, por serem imediatistas porque criticam “as instâncias de poder que lhes são mais próximas (...) o inimigo imediato”; por combaterem a fragmentação da vida ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 297 comunitária; por assumirem oposição aos privilégios do saber e sua relação com o poder e por demonstrarem uma “recusa de uma investigação científica ou administrativa que determina quem somos”. Com relação a estas características Foucault define que o alvo específico das resistências diz respeito às técnicas e formas de se exercer o poder, não às instituições ou elites socioeconômicas (1995, p. 235). A principal crítica de Negri e Cocco à teoria da dependência e a todos os movimentos de resistência na América Latina é que “a independência nacional nada tem a ver com a emancipação social” (2005, p. 43), pois aqui “a chamada construção do Estado-nação e do desenvolvimento” jamais foi acompanhada da “criação da democracia” e da “justiça social”; mais especificamente, buscam explicitar que “o Estado moderno – ou seja, o Estado- nação – nos países de soberania limitada nunca existiu propriamente” (2005, p. 46). Mas quem é que deveria lamentar isso? Atualmente, continuam, “a constituição da soberania imperial é um processo aberto” o que não quer dizer que seja linear, mas que é “aberto às lutas, articulado na interdependência e não obrigado à dependência” (2005, p. 47). Cabe, então, à multidão, ter em mente que: A liberdade não é algo que vem depois – algo que só se pode gozar depois de ter comido, uma consequência do emprego e do salário. Ao contrário, a liberdade é a condição mesma da produtividade. Ela o é na organização pós-moderna do trabalho, onde o que o capitalista compra é essencialmente a criatividade intelectual (o que há de mais livre?). Mas ela o foi sempre, mesmo no passado, na história do desenvolvimento capitalista. Marx percebeu isso muito bem quando, percorrendo com enfado a documentação e análises econômicas preocupadas em mostrar a potência civilizadora do capital, definia a força de trabalho do proletariado como “livre”, mesmo na desesperada condição e na situação de violência a que estava submetida pela dominação: por outro lado, era esta liberdade que determinava a possibilidade da valorização econômica. Mas a força de trabalho também é livre lá onde todos parecem negá-lo: no subdesenvolvimento, no êxodo intercontinental e continental, na pobreza absoluta. Viver é ser livre, é tentar sê-lo continuamente, lutar por. Isso não significa, ao mesmo tempo, que viver não seja também ser reprimido, constrangido, disciplinado, controlado – mas isso acontece porque existe a liberdade e, consequentemente, o patrão sente o desejo de revolta respirar ininterruptamente e vê a resistência do sujeito manifestar-se: o patrão reage a isso e demonstra assim que todas as formas organizativas do capital são projetos de enclosure, de bloqueio e de controle dos movimentos da força de trabalho, contra o êxodo, tentado continuamente, do trabalho; demonstra assim que as lutas vêm primeiro, pois as instituições do capital são reações contra a liberdade das lutas proletárias (NEGRI; COCCO, 2005, p. 69-70, em itálico no original). Referências Bibliográficas: ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 298 DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Basiliense, 2005. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 22a. Ed. Rio de Janeiro: Graal, 1979. ___________. O Sujeito e o Poder. In: DREYFUS, Hubert; RABINOW, Paul. Michel Foucault: uma trajetória filosófica – para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. ___________. Repensar a Política. Rio de Janeiro: Forenese Universitária, 2010 (Coleção Ditos e Escritos vol. VI) HARDT, Michael.; NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e paz na era do império. 3a. Ed. Rio de Janeiro: Record, 2014. __________________. O trabalho da Multidão e o Êxodo Constituinte. In: PACHECO, Anelise; COCCO, Giuseppe; VAZ, Paulo (ORGs.). O Trabalho da Multidão: império e resistências. Rio de Janeiro: Gryphus/Museu da república, 2002. HOPSTEIN, Graciela. A “Baderna” Argentina ou a Constituinte da Multidão. In: PACHECO, A.; COCCO, G,; VAZ, P. (ORGs.). O Trabalho da Multidão: império e resistências. Rio de Janeiro: Gryphus/Museu da república, 2002. NEGRI, Antonio.; COCCO, Giuseppe. Glob(AL): biopoder e lutas em uma América Latina globalizada. Rio de janeiro, Record, 2005. SOBRAL, Simone. O império e a Resistência. In: PACHECO, Anelise; COCCO, Giuseppe; VAZ, Paulo (ORGs.). O Trabalho da Multidão: império e resistências. Rio de Janeiro: Gryphus/Museu da república, 2002. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 299 A PROPOSTA DIALÓGICA DE PAULO FREIRE NO AMBIENTE HOSPITALAR: A INCLUSÃO DA CRIANÇA HOSPITALIZADA Giovanna Takata Liberatti Universidade Estadual de Londrina - UEL [email protected] Orientador: Profª. Drª. Rosa de Lourdes Aguilar Verástegui RESUMO: Este estudo reflete sobre a importância do diálogo no ambiente hospitalar, com a finalidade de promover a educação das crianças hospitalizadas. Para isto veremos a situação crítica das crianças hospitalizadas; depois ressaltaremos as características humanizadoras do diálogo e por último trataremos de observar a situação especial do diálogo em ambiente hospital e seus benefícios. O referido diálogo apresenta características particulares, tendo como sujeitos do processo o paciente, a equipe médica, os educadores e a família, entre outros. As características particulares do ambiente hospitalar trazem situações não convencionais na educação formal. A importância da pesquisa é que existe uma carência sobre o tema proposto no meio acadêmico, e também a necessidade de levantar uma reflexão sobre a necessidade e os benefícios que traz a modalidade de ensino proposta. A pesquisa é bibliográfica e temos como principal referencial A Pedagogia da autonomia, a Pedagogia do oprimido e a Pedagogia da esperança de Paulo Freire. O trabalho pretende trazer uma colaboração acadêmica através da reflexão sobre a necessidade do diálogo e sua potencialidade na práxis docente e também de alguma maneira colaborar com o desempenho dos docentes que exercem a pedagogia hospitalar. Palavras-chave: Dialogicidade; educação de criança hospitalizada; pedagogia hospitalar Introdução: Neste estudo veremos a saliência do diálogo proposto por Paulo Freire para a educação hospitalar, durante o tempo de internação da criança. É sabido que um ambiente propício ajuda na recuperação do enfermo, daí a precisão da educação ajudar neste processo, no sentido de ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 300 admitir a inclusão da criança trazendo um cotidiano que o vincule a um ambiente educativo. Por meio deste, veremos a valia de trabalhar a sensibilidade e humanização no processo educativo, que terá o cuidado em escutar a “voz” da criança internada. O tema servirá como uma referência para os educadores que pretendem trabalhar no ambiente hospitalar. Cremos que são poucas as menções e bibliografias a esse respeito, por essa razão vemos a necessidade dessa pesquisa. A pesquisa é bibliográfica, conta com o levantamento de jornais, entrevistas, textos virtuais, impressos e teses, além dos textos propostos nas referências. A situação da criança hospitalizada A criança que chega ao hospital experimenta deixar o lar, o lugar de conforto, para ir a um ambiente frio, impessoal e novo. Esta mudança não é fruto de uma decisão da criança, é uma imposição, na qual ela se sente frágil. Mas, de modo algum, a criança vê que é um mal necessário pelo qual deve passar para poder se sentir melhor. A chegada da criança a um hospital é, muitas vezes, em emergência, sob uma crise, dor e medo, na expectativa de aliviar esta situação (MANNONI, 1983). Quando a criança é internada ocorre um corte nos hábitos e ritmo de vida. Ela espera que este tempo seja breve, mas a incerteza invade, tanto na família como na criança. Se na família os pais são os que têm controle, no ambiente hospitalar, a criança e seus familiares não têm controle nem segurança. A impotência e fragilidade invadem seu entorno. A experiência hospitalar é traumática, desagradável, domina a sensação de descontrole e fragilidade, além, da incerteza. Os pais podem tentar estabelecer equilíbrio e paz, tentam encontrar um profissional da área médica que lhes possa dar alguma segurança. “[...] a atitude emocional dos pais desempenha um papel fundamental nas reações da criança hospitalizada. Nesse sentido, refere que a equipe de saúde pode ajudar os pais a se adequarem às necessidades de seu filho” (QUINTANA; ARPINI; PEREIRA et al., 2007, p. 414). A situação da criança hospitalizada afeta a família por duas razões, primeiro pela existência da doença e por que eles não têm o controle nem a segurança que toda família busca brindar a seus membros. Este fato gera sofrimento e fragiliza a firmeza da família. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 301 Entre as mudanças de hábitos da criança está à saída da rotina escolar. Sobre esta situação buscamos refletir. Além de quebrar um ritmo ao qual a criança está adaptada e faz parte de sua vida e dia a dia. Surge também a preocupação com o escolar. A rotina escolar traz o convívio com outras crianças, o despertar de atividades próprias da idade e desenvolvimento das crianças que juntas experimentam descobrimentos e crescimentos, tanto físicos como psicológicos (SCHNEIDER, 2011). A escola brinda à criança um ambiente de socialização e dependendo do tempo em que a mesma se encontra hospitalizada e o tipo de tratamento que recebe, verá que sua vida adoece e em consequência é hospitalizada, fica mais frágil e sensível emocionalmente. Isto se reforça quando a doença é crônica, neste caso a hospitalização da criança pode ser frequente e prolongada e, as consequências destes métodos podem até causar prejuízos físico e mental da criança. Estudos sugerem que a sensibilidade comportamental da criança a arranjos ambientais específicos aumenta a probabilidade da alteração do comportamento, permitindo o estabelecimento de repertórios comportamentais diferenciados (SOARES e BOMTEMPO, 2004, p. 55). O hospital representa um cenário que destitui da criança sua função de brincar, rir, e de se ser criança. Um ambiente que está cheio de aparelhos, medicamentos, tubos, soros, e com profissionais que querem manter o controle, pela reação dos pacientes ao tratamento, não estão receosos por fazer da vida da criança uma vida próxima a seu cotidiano. E ainda a criança se vê deixada nesse ambiente, com desconhecidos (SCHNEIDER, 2011). O estresse pelo que passa a família ecoa na criança, pois ela é o centro dessa preocupação, o ser mais ingênuo e frágil. Os pais vivenciam sensações de impotência, ignorância, dificuldade econômica, etc. Tais fatores podem afetar o emocional da criança. Um analista do comportamento tem como tarefa identificar contingências que estão operando (ou inferir quais as que podem ou devem ter operado), quando se depara com determinados comportamentos ou processos comportamentais em andamento, bem como propor, criar ou estabelecer relações de contingência para o desenvolvimento de certos processos comportamentais (SOARES; BOMTEMPO, 2004, p. 55). A criança tem um conceito de si e da sociedade que ela formou por meio do convívio familiar e escolar. A partir da hospitalização ela passa a ver mais uma a do sistema de saúde. Ele ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 302 passa a considerar-se um membro desse sistema do qual ele faz uso e no qual vai ser deixado. Se antes ela se sentia segura no seu lar agora passa a ser um estranho, num ambiente alheio e novo e deixado nele. A criança é despida, banhada, vestida com roupas do hospital e tem que obedecer ao pessoal do hospital. E também tem que se submeter a um tratamento doido ou invasivo. A hospitalização influencia no desenvolvimento da criança, causando mudanças de conduta e até físicas e mentais e pode gerar trauma, medo e insegurança. Por vezes a criança pode sentir que é culpada e responsável por essa situação. O controle e a rotina do hospital podem despertar sentimentos de repressão, insegurança e medo. A criança pode passar por uma fase de choro, desespero, ela quer que os pais a “resgatem”, mas por outro lado observa a preocupação dos pais para que ela fique. Diante disto, podemos ajudar à criança a passar por estas situações hospitalares do melhor jeito, para que ela constitua uma fase de aprendizagem e possa compreender que seu papel é essencial para o andamento do tratamento e recuperação. A criança deve sentir que ela ajuda e pode estar no controle de seu corpo. Atualmente, considera-se que a experiência de enfrentar a doença e a hospitalização pode constituir uma oportunidade para que a criança adquira determinados padrões comportamentais mais adaptativos. A hospitalização pode representar uma oportunidade para que o paciente aprenda mais sobre a doença e o funcionamento de seu corpo; descubra sobre as profissões da área da saúde; adquira habilidades de enfrentamento; demonstre capacidade para tomar decisões, independência, autocontrole e autoconfiança, tornando-se participante mais ativo em decisões clínicas (SOARES; BOMTEMPO, 2004, p. 54). Por estas razões uma pedagogia hospitalar é importante para que a criança possa avançar nessa fase de sua existência, e tenha maior conhecimento desse momento que está passando e consiga adquirir maior segurança e controle sobre sua situação. A consciência que pode despertar sobre sua condição hospitalar e as novas relações que nela terá que estabelecer é muito importante. Para isto, propomos o diálogo com uma condição para a aprendizagem e desenvolvimento da criança. O papel do diálogo na educação ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 303 A pedagogia de Freire acredita no ser humano, tem a esperança que a educação pode acordar todos para uma sociedade mais justa e solidaria. O professor e os sujeitos envolvidos no processo educativo precisam ter senso crítico para a elaboração da aprendizagem. A educação exige apreço pela condição dos educandos, um apreço democrático na relação educador educando. Porque “na verdade, se há saber que só se incorpora ao ser humano experimentalmente, existencialmente, este é o saber democrático.” (FREIRE, 2001, p.100). A democracia implica respeito de todos por todos. A educação exige cuidar e o dialogar e é por meio deste que se dá a mudança do ser humano, pois este é o caminho que admite a liberdade, Creio poder afirmar, na altura destas considerações, que toda prática educativa demanda a existência de sujeitos, um que, ensinando, aprende outro que, aprendendo, ensina daí o seu cunho gnosiológico; a existência de objetos, conteúdos a serem ensinados e aprendidos; envolve o uso de métodos, de técnicas, de materiais; implica em função de seu caráter diretivo, objetivo, sonhos, utopias, ideais. Daí a sua politicidade, qualidade que tem a prática educativa de ser política, de não poder ser neutra. (FREIRE,1996, p.69-70). A educação ensina todos envolvidos neste processo, permite o crescimento de educador e educando, trazendo valores, utopias que guiam nossas ações. No caso da criança hospitalizada, a prática educativa usa métodos, técnicas e outros recursos que também tem um caráter próprio, que devem ser cuidadosamente estabelecidas porque elas podem ajudar ou prejudicar no momento de conscientização. Mas, neste caminhar para estabelecer as melhores condições para a formação humana, precisamos adquirir consciência de nossa situação, nosso papel no mundo e sua importância, A proposta político-pedagógico freireana investe na luta contra o sentir-se não ser, a fim de que toda pessoa possa assumir, de modo consciente e crítico, sua responsabilidade pelo contínuo devir do mundo com o outro em um projeto de humanização. Essa experiência dialógica, segundo concepção freireana, impulsiona o homem a investigar criticamente o mundo, problematizando sua relação com ele. (XAVIER, 2009, p.7). Ante a condição da criança hospitalizada, a proposta educativa precisa levar em conta sua situação, o ambiente hospitalar e o sentir da criança neste novo ambiente. Esta proposta democrática é dialógica, pois é uma construção que constroem juntos, educador e educando, para encontrar também juntos os melhores meios para se adaptar e crescer no ambiente hospitalar. Considerar a situação hospitalar como um problema que devem enfrentar e controlar. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 304 Já a educação tradicional, bancária, não valoriza a problematização e a conscientização que nos humaniza, que nos faz seres responsáveis, capazes de mudar o mundo. O conhecimento é estéril se não nos permite crescer e não nos relaciona a outros seres humanos (FREIRE, 1987). Na troca de conhecimentos todos ganham na comunicação nos humanizamos e podemos melhorar nosso entorno. O ambiente hospitalar traz situações que devem ser tratadas com cuidado e respeito. Tentar superar a condição de hospitalizado não significa ignorar ou trivializar esta condição, pelo contrário, a admiração e o descobrimento diante de novas experiências são necessários. Isso se dá segundo um processo de admiração do próprio conhecimento, ou seja, o homem volta-se para olhar como conhece e de que modo está conhecendo. O conhecimento admirado, ao tornar-se objeto de discussão na troca com outros homens, é read-mirado com eles. Essa experiência de comunicabilidade poderá constituir para os admiradores um saber ampliado; um conhecer. (XAVIER, 2009, p.7). A partir do momento em que a criança hospitalizada consegue refletir e agir e pode crescer, porque dá crédito ao conhecimento ou experiência adquirida por ele e pelos outros. O respeito pelas novas condições e a percepção da sua situação e dos outros, permite que sejamos mais humanos, pois não nos consideramos o centro do mundo, mas parte dele. E o diálogo se torna fator principal na interação educador-educando, nas práticas educativas, que permitem reconhecer as dificuldades e estar preparado para novas aprendizagens (BERTONCELLO, L. ROSSETE, 2007). Juntos, educador e educando observam e descobrem sua relação com o ambiente hospitalar, conhecem, compreendem e crescem. Sabemos dos obstáculos de estar numa sociedade excludente e para reverter esse quadro, a educação tem um papel essencial. No caso da condição de hospitalização, pode ser uma experiência nova, agressiva, mas, cabe ao educador e educando tentar tornar esta situação mais controlável. Freire acredita na humanidade, na sua capacidade de criar, recriar e da condição de inacabado, que lhe permite crescer e procurar melhorar. Se o ser humano tem consciência do mundo e do outro e através do dialogo exterioriza esta consciência, de tal forma que a partir de sua experiência e a colaboração dos outros pode crescer e tornar-se um ser autônomo. Compreende-se que o sujeito possui dentro de si uma necessidade de conhecer e de ter noção do mundo e do outro. O diálogo permite chegar à retidão, que ajuda na propagação, de tal forma que se entende como ser livre e autônomo, que precisa crescer diante situações novas ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 305 (BERTONCELLO, L. ROSSETE, 2007). A hospitalização pode ser considerada uma situação nova, que nos converte em ignorantes dessa nova condição. [...] Na medida em que o homem, embora analfabeto, descobrindo a relatividade da ignorância e da sabedoria, retira um dos fundamentos para a sua manipulação pelas falsas elites. Só assim a alfabetização tem sentido. Na medida em que, implicando em todo esforço de reflexão do homem sobre si e sobre o mundo em que e com que está, o faz descobrir “que o mundo é seu também, que o seu trabalho não é a pena que paga por ser homem, mas um modo de amar – e ajudar o mundo a ser melhor. (FREIRE, 2000, p.150). O ser humano descobre a importância do conhecimento, que incluem limites e casualidades, ou seja, saber sobre o papel da ignorância e da sabedoria. Somente sendo consciente de nossas limitações é que podemos crescer e tentar mudar nosso entorno. Nossa razão nos permite conhecer nosso dever com o mundo, com a condição de paciente, discente, cidadão e humano. Abraçar este dever é amar, e não se pode amar o que não se conhece, por isto é necessário sermos consciente de nosso entorno para amar. Esta consciência permite que o ser humano escreva a sua própria história, que o paciente supere seus desafios e obstáculos encontrados no caminho de sua existência. Assim a criança hospitalizada pode se converter em sujeito construtor e transformador. Conclusão A criança hospitalizada deixar o lar e muda para um lugar novo, experimenta desconforto com o tratamento e, enfrenta esta situação com desconhecidos, os médicos. As mudanças na vida da criança hospitalizada não são produto de suas decisões, isto produz descontrole e insegurança frente a sua vida. A proposta do diálogo na pedagogia hospitalar é importante, para que a criança possa desenvolver nesse momento de sua vida maior conhecimento, consciência e controle de sua realidade. A consciência sobre sua condição hospitalar e as novas relações com profissionais de saúde é muito importante. O diálogo é desenvolvido por Freire como uma condição humanizadora e nos permite crescer, não isolados mais juntos. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 306 O docente e discente precisam aprender a lidar com liberdade e a autoridade, com a nova situação hospitalar, com as condições da doença, com o estresse dos pais e tentar juntos manter consciência e controle desta nova situação. Referências Bibliográficas: BERTONCELLO, L. ROSSETE, S.R. A importância do diálogo na relação professor - aluno e o paradigma da complexidade. Revista Cesumar - Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. V. 13, n. 2, p. 177-190, jul/ dez. 2008. FREIRE, P. Conscientização Teoria e Prática da Libertação. 3ª Ed. São Paulo: Centauro, 2001. ___________. Educação como prática da Liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2000. ___________. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários á prática educativa. 30ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. ___________. Pedagogia do Oprimido.17ª.edição.Rio de Janeiro, Paz e Terra,1987. GUIMARÃES, S. S., (1988). A hospitalização na infância. Em Psicologia, Teoria e Pesquisa, v. 4, nº 2, p. 102-112. MANNONI, M. A criança, sua doença e os outros. 3ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. QUINTANA, A. M.; ARPINI,D. M.; PEREIRA, C. R. et al. Vivência hospitalar no olhar da criança internada. In Ciência Cuidado e Saúde. 2007 Out/Dez.; 6(4):414-423. SCHNEIDER, C. M. e MEDEIROS, L. G. Criança hospitalizada e o impacto emocional gerado nos pais. Joaçaba: Unoesc & Ciência, 2011. 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A união desses dois elementos implica realizar a crítica do uso prático da razão, na medida em que dessa vinculação surge o que Kant denomina antinomia da razão prática. A antinomia prática expressa uma relação causal, pelo fato de que ou a felicidade é a causa motriz da virtude ou a virtude é a causa eficiente da felicidade. A antinomia prática, aparentemente, indica um conflito entre duas proposições, mas esse conflito não é seu ponto principal, porque o objetivo central da antinomia é o estabelecer a possibilidade prática do sumo bem. Palavras-chave: Virtude; felicidade; sumo bem. Introdução O sumo bem consiste na unidade de virtude e felicidade, mas para estabelecer essa unidade é necessário fazer a crítica do uso prático da razão, o que necessariamente conduz a uma antinomia da razão prática. A antinomia afeta o conceito de sumo bem na medida em que é preciso mostrar como se dá uma ligação sintética entre os elementos do sumo bem. Na interpretação de Victoria Wike, a antinomia prática possui uma origem conceitual semelhante com a terceira antinomia teórica, mas essa “similaridade inicial entre a antinomia prática e a teórica é perdida no desenvolvimento da antinomia prática”40. Contudo, o fato de a origem conceitual ser parecida implica em analisar se “é o objeto da razão prática a mesma ideia do incondicionado que é o objeto da razão teórica?”41. De acordo com Beck o objeto da razão pura tanto para seu uso teórico como para o seu 40 41 WIKE, 1982, p. 112. Ibid., 1982, p. 112. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 309 uso prático é o incondicionado, na medida em que: “tanto a razão teórica como a razão prática têm uma dialética e um mesmo fundamento, isto é, como razão elas buscam o incondicionado para tudo o que é condicionado, mas elas não o podem encontrar como um objeto do conhecimento”42. O incondicionado para a razão no seu uso prático é chamado de sumo bem na medida em que ele, enquanto objeto da vontade racional finita, é a ideia da totalidade incondicionada. A antinomia prática estabelece que os dois sentidos do incondicionado não são contraditórios e, além disso mostra que eles podem ser relacionados um com o outro no mundo prático por seres finitos racionais43. Após a explicitação da origem conceitual da antinomia prática Kant é conduzido a explicitar o modo como ele resolve a conexão entre virtude e felicidade, isto é, deve demostrar a relação de razão e conseqüência que existe entre os dois elementos do sumo bem. Ele tem de mostar de que forma é possível fixar a possibilidade prática do sumo bem na medida em que “o propósito da antinomia da segunda crítica é estabelecer a possibilidade prática do sumo bem”44. O sumo bem e a supressão crítica da antinomia da razão prática A unidade entre virtude e felicidade dá-se através de uma ligação sintética a priori. Nesse sentido, Kant descreve como ocorre a relação de ‘razão e conseqüência’ entre esses dois elementos, ou seja, essa relação deve “ser pensada sinteticamente e, em verdade, como conexão da causa com o efeito” (CRPr, V, 113). O conflito prático é apresentado da seguinte forma: “ou o apetite da felicidade tem que ser a causa motriz de máximas da virtude, ou a máxima da virtude tem que ser a causa eficiente da felicidade” (CRPr, V, 113)45. Todavia, é preciso advertir que para as asserções do conflito prático Kant não utiliza os termos ‘tese’ e ‘antítese’, no conflito prático BECK, 1960, p. 239. WIKE, 1982, p.133. 44 Ibid., 1982, p. 8. 45 Lewis White Beck na sua obra ‘A Commentary on Kants’s Critique of Practical Reason’ reformula a antinomia prática: “I. Tese: A máxima da virtude deve ser a causa da felicidade, Antítese: A máxima da virtude não é a causa eficiente da felicidade; a felicidade apenas pode resultar do uso bem sucedido das leis da natureza. Esta é uma antinomia real, desde que as proposições são contraditórias, não contrárias; cada uma expressa um inelutável interesse da razão (moral e teórico); e cada um é uma fórmula verdadeira para um daqueles interesses (…) II. Tese: O sumo bem é possível. Prova: A lei moral requer isto. Antítese: O sumo bem não é possível. Prova: A conexão entre virtude e felicidade não é nem analítica nem sintética a priori nem tampouco dada empiricamente” (BECK, 1960, pp 247-248). 42 43 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 310 ele utiliza o termo proposições. A partir dessa diferenciação terminológica é possível afirmar que existe uma diferença na formulação entre as antinomias teóricas e a antinomia prática na medida em que: as asserções da antinomia prática não são rotuladas “tese” e “antítese” como elas foram chamadas na antinomia teórica. Em vez disso, Kant chama o conflito das asserções na antinomia prática de “proposições”. Estes nomes para as asserções revelam uma diferença significante entre a formulação lógica das asserções na antinomia teórica e prática46. A antinomia prática expressa uma relação causal, pelo fato que ou a felicidade é a causa motriz da virtude ou a virtude é a causa eficiente da felicidade. A antinomia prática, aparentemente, indica um conflito entre duas proposições, mas este conflito não é o ponto principal da antinomia, porque o objetivo central da antinomia é o estabelecer a possibilidade prática do sumo bem. Aqueles dois caminhos possíveis de combinar virtude e felicidade estão manifestados nas duas proposições da antinomia prática”47. Kant apresenta, inicialmente, os dois casos da seguinte forma: O primeiro caso é absolutamente impossível, porque (como foi provado na Analítica) máximas que põem o fundamento determinante da vontade na aspiração à sua felicidade não são de modo algum morais e não podem fundar nenhuma virtude. Mas o segundo caso é também impossível, porque toda a conexão prática das causas e dos efeitos no mundo, como resultado da determinação da vontade, não se guia segundo disposições morais da vontade mas segundo o conhecimento das leis naturais e segundo a faculdade física de usá-las para seus propósitos, consequentemente não pode ser esperada nenhuma conexão necessária e suficiente ao sumo bem, da felicidade com a virtude no mundo através da mais estrita observância das leis morais (CRPr, V, 113-114). Para buscar a solução para a antinomia prática é preciso tomar como pressuposto que a promoção do sumo bem é “um objeto aprioristicamente necessário de nossa vontade e interconecta-se inseparavelmente com a lei moral” (CRPr, V, 114). Nessa medida, se não houvesse possibilidade de ligação entre virtude e felicidade não haveria como estabelecer a possibilidade prática do sumo bem, pois, “se o sumo bem for impossível segundo regras práticas, então também a lei moral, que ordena a promoção do mesmo, tem que ser fantasiosa e fundar-se 46 47 WIKE, 1982, p. 16. Ibid., 1982, p. 26. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 311 sobre fins fictícios vazios, por conseguinte tem que ser em si falsa” (CRPr, V, 114). A partir dos resultados da Fundamentação e da Analítica da segunda Crítica, fica claro que a primeira das duas proposições, isto é, que a aspiração à felicidade seja a causa motriz da virtude é absolutamente falsa na medida em que o apetite da felicidade, no contexto da filosofia prática, jamais pode ser a causa de máximas da virtude, porque “máximas que põem a fundamento determinante da vontade na aspiração à sua felicidade não são de modo algum morais e não podem fundar nenhuma virtude” (CRPr, V, 114). Em relação à segunda possibilidade de conexão Kant faz algumas advertências, ou seja, ele a considera apenas como condicionalmente falsa, pois “que a disposição à virtude produza necessariamente a felicidade, não é falsa de modo absoluto mas só na medida em que ela for considerada a forma da causalidade no mundo sensorial e, por conseguinte, se eu admito o existir nele como a única espécie de existência do ente racional, portanto é só condicionalmente falsa” (CRPr, V, 114). A partir dessa passagem, Kant tem de apresentar qual a diferença entre a proposição ser considerada absolutamente falsa ou condicionalmente falsa. A proposição é absolutamente falsa se o existir no mundo sensível for considerado o único modo de existência possível do homem. De outra forma, a proposição é condicionalmente falsa se for admitido um outro modo de existência além do sensível, ou seja, se além da existência sensível o agente moral também pertencer, enquanto sujeito autonômo, a uma esfera supra-sensível. Essa questão remete a chamada “dupla-cidadania” do homem na medida em que pertencemos, ao mesmo tempo, ao mundo sensível e ao mundo inteligível. Nesse contexto, Kant explica a diferença entre as duas esferas da seguinte forma: [Um] ser racional deve considerar-se a si mesmo, como inteligência (portanto não pelo lado das suas forças inferiores), não como pertencendo ao mundo sensível, mas como pertencendo ao mundo inteligível; tem por conseguinte dois pontos dos quais pode considerar-se a si mesmo e reconhecer leis do uso das suas forças, e portanto de todas as suas ações: o primeiro enquanto pertence ao mundo sensível, sob leis naturais (heteronomia); o segundo, como pertencente ao mundo inteligível, sob leis que, independentes da natureza, não são empirícas, mas fundadas somente na razão (FMC, IV, 452). Deste modo, a possibilidade prática do sumo bem depende da habilidade da razão em fixar a diferença entre mundo sensível e mundo inteligível na medida em que “a antinomia é resolvida ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 312 criticamente quando a idéia de um mundo não sensível faz possível uma definição do sumo bem”48. Entretanto, mesmo após essa possibilidade de solução para a antinomia prática, a questão da felicidade, o segundo elemento do sumo bem, permanece em aberto. A felicidade enquanto ideal da satisfação sensível, não pode ter como causa nenhum princípio oriundo da razão pura, o que implica dizer que a solução para a vinculação entre moralidade e felicidade não é possível no mundo sensível. Ao postular o mundo inteligível Kant não está cometendo uma arbitrariedade, ou ainda, fixando uma argumentação vazia. Essa questão pode ser colocada da seguinte forma: a resolução crítica da antinomia inclui a necessidade de estabelecer uma justificação da idéia de um mundo inteligível, essa justificação é fundamentada pela seguinte suposição: Mas, visto que eu não apenas estou facultado a pensar a minha existência também como [noumena] em um mundo do entendimento, porém tenho até na lei moral um fundamento determinante puramente intelectual de minha causalidade (no mundo dos sentidos), não é impossível que a moralidade da disposição tenha um nexo, se não imediato, contudo mediato (através de um autor inteligível na natureza) (CRPr, V, 114-115). Nesse contexto, um primeiro passo, para buscar a ‘resolução’ crítica da antinomia prática é admitir que a promoção do sumo bem como “um objeto aprioristicamente necessário de nossa vontade” está diretamente conectada com a lei moral. O argumento de Kant pode soar como inconsistente, pois, nas conclusões da Analítica da segunda Crítica, a lei moral já está fundamentada e a sua possibilidade é somente através da liberdade prática, admitindo o fato da razão. Nesse sentido, o fato da razão não deve ser entendido como um produto de uma demostração, além disso, “ele também não é - e aí reside a sua diferença radical em relação ao fato empírico – objeto de uma intuição qualquer: a apreensão da liberdade em mim não é imediata. A lei fundamental, cuja consciência constitui o fato da razão, é uma proposição sintética a priori que se impõe por si mesma”49. Contudo, antes de apresentar a resolução da antinomia Kant adverte que: se o sumo bem não for possível e a antinomia não for resolvida, todos os elementos da moralidade serão colocados à prova, o que 48 49 Ibid., 1982, p. 145. CRAMPE-CASNABET, 1994, p.74. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 313 implica em considerar que a autonomia seria um conceito vazio sem resultado crítico-prático50. Na interprteção de Wike, Kant apresenta três fatores que fundamentam a possibilidade prática do sumo bem na medida em que suas justificações são encontradas no sistema crítico kantiano. A justificação da existência noumenal pressupõe a análise da terceira antinomia teórica, mostrando que a causalidade por liberdade e a causalidade por necessidade (leis da natureza) podem ser ambas verdadeiras se for estabelecida à distinção entre mundo sensível e mundo inteligível. A partir da antinomia prática é possível confirmar a suposição do mundo suprasensível, na medida em que admitimos uma causalidade por liberdade e, deste modo, a noção da existência noumenal está fundamentada. A lei moral, conforme Wike mostra uma relação causal entre o mundo sensível e o inteligível, na medida em que se admitem dois momentos, a saber: a fundamentação e a realizabilidade da ação moral. O primeiro está em conexão com o mundo inteligível, porque pressuporia a causalidade por liberdade, a autonomia da vontade e o fato da razão 51. Nesse sentido na Crítica da razão prática Kant afirma que: pode-se denominar a consciência desta lei fundamental [lei moral] um factum da razão, porque não se pode sutilmente inferi-la de dados antecedentes da razão, por exemplo, da consciência da liberdade (pois esta consciência não nos é dada previamente), mas porque ela se impõe por si mesma a nós como um proposição sintética a priori, que não é fundada sobre nenhuma intuição (CRPr, V, 031). O último dos três argumentos que fundamentam a possibilidade da virtude produzir felicidade pode ser justificado a partir da quarta antinomia da razão teórica, na medida em que Nesse contexto, “A questão que advém daí naturalmente é se o sumo bem é possível de alcançar através das ações que eu e outros agentes morais bem-intencionados podemos adotar para realizá-lo. Tendo em vista o componente da felicidade do sumo bem, não parece que as leis da causalidade mecânica que governam a natureza possam assegurar que a felicidade dos seres morais será proporcional ao seu merecimento. Nem qualquer outra coisa que conheçamos sobre o mundo natural através da experiência aferece-nos algum fundamento para acreditar que o sumo bem seja possível de alcançar através dos esforços morais. Não podemos mostrar que o sumo bem é impossível, mas também temos razão insuficiente para pensar que seja possível. Ainda assim, como seres morais racionais, devemos considerar o sumo bem como nosso fim” (WOOD, 2008. p. 214). 51 No seu artigo “Kant e o ‘facto da razão’: ‘cognitivismo’ ou decisionismo moral” Guido de Almeida afirma que “a concepção cognitivista do “facto da razão” se oferece como a única alternativa possível. Esta tem uma vantagem manifesta sobre a concepção decisionista: ela explica da maneira mais simples possível o que dá a Kant o direito de apresentar nosso conhecimento da lei moral como um facto da razão, que prescinde de toda prova e, particularmente, desse gênero de prova que Kant chama de “dedução”. Com efeito, nessa concepção o “facto da razão” nada mais é, em última análise, do que a consciência contingente de uma verdade analítica: a consciência, que um agente imperfeitamente racional tem, mas poderia não ter, da necessidade de um determinado modo de agir para todo ser racional enquanto tal” (ALMEIDA, 1998, p. 80). 50 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 314 Kant apresenta a ideia de um ser necessário fora do mundo sensível. Nesse sentido pode-se afirmar que: “[a] quarta antinomia da razão teórica faz possível à ideia de um ser necessário fora do mundo. Mas nada na razão teórica pode provar a impossibilidade desse ser inteligível necessário”52. Frente a esse contexto, entende-se que Kant ao admitir a existência de um autor inteligível da natureza acena que o sumo bem só é possível no mundo na medida em que for admitida uma causa suprema da natureza que contenha uma causalidade adequada à disposição moral. Ora, um ente que é capaz de ações segundo a representação de leis é uma inteligência (um ente racional), e a causalidade de um tal ente segundo esta representação das leis é uma vontade do mesmo. Logo a causa suprema da natureza, na medida em que tem de ser pressuposta para o sumo bem, é um ente em que entendimento e vontade é a causa (consequentemente a Autor) da natureza, isto é, Deus (CRPr, V, 125). Nessa passagem, Kant apresenta a relação entre os postulados e o sumo bem, porque, para resolver a antinomia prática e, consequentemente, a ligação entre virtude e felicidade, afirma a necessidade de admitir um autor inteligível da natureza. Nesse sentido, acena para a admissão dos postulados da razão prática: imortalidade da alma e a existência de Deus, enquanto possibilidades de garantir a conexão da virtude com a felicidade. Referências Bibliográficas: BECK, Lewis White. A Commentary on Kant’s Critique of Pratical Reason. Chicago: University of Chicago Press, 1960. CRAMPE-CASNABET. Michèle. Kant: uma revolução filosófica. Tradução de Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994. ALMEIDA, Guido Antônio de. Kant e o “facto da razão”: “Cognotivismo” ou “decisionismo” moral? In: Studia Kantiana, v. 1, n. 1, p. 51-81, 1998. KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. Tradução, baseada na edição original de 1788, com introdução e notas de Valério Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 52 WIKE, 1982, p. 147. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 315 ___________. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 1995. WALSH, W. H. “Kant’s Concept of Practical Reason”. In: Practical Reason. Ed. S. Körner. New Haven: Yale University Press, p. 189-212., 1974. WIKE, Victoria S. Kant’s Antinomies of Reason. Washington: University Press of America, 1982. WOOD, Allen W. Kant’s Moral Religion. Ithaca: Cornell University Press, 1970. ___________. Kant. Tradução de Delamar José Volpato Dutra. Porto Alegre: Artmed, 2008. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 316 CETICISMO PIRRÔNICO E AS MEDITAÇÕES DE DESCARTES Henrique Zanelato Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE [email protected] Orientador: Prof. Dr. Gilmar Henrique da Conceição RESUMO: Objetivamos estudar algumas questões céticas em uma das mais importantes obras de Descartes, as Meditações. Assim, o que buscamos, no presente trabalho, é mostrar como se dá a relação de Descartes contra o ceticismo, especialmente no tocante a um dos principais argumentos do ceticismo, o modo cético do desacordo, diaphonía. Para isso, será necessária a atenção a obra já citada, especialmente na quarta meditação, onde “prova-se que as coisas que concebemos mui clara e mui distintamente são todas verdadeiras; e, ao mesmo tempo, é explicado em que consiste a razão do erro ou falsidade” (DESCARTES, 2010, p. 133). Ao fim, a intenção será indicar alguns problemas que podem ser levantados contra sua “solução”, entendendo que tais questões são demasiadamente grandes e complexas. Palavras-chave: Ceticismo; Descartes; diaphonia Em sua carta dirigida a alguns teólogos, no início das Meditações, Descartes deixa manifesto que sua intenção na obra é provar pela luz natural que “há um Deus e que a alma humana não morre com o corpo” (DESCARTES, 2010, p. 121), assim como o fato de que é mais fácil conhecer ambos os pontos – Deus e a alma – do que qualquer outra coisa. Deste modo, é possível desfazer a impressão precipitada que poderia causar uma leitura apressada da primeira meditação, onde o autor se propõe a levar a dúvida às suas últimas consequências. Uma atenção especial ao título, “Das coisas que se podem colocar em dúvida”, uma vez que ele sugere que ainda não conhece os limites da dúvida, mas a leitura das próximas meditações desfaria a ideia de que Descartes fora um cético, ou que colocaria todas as coisas em dúvida. Assim, pensamos que a dúvida hiperbólica, desenvolvida até o fim da primeira meditação, tem um caráter totalmente metodológico que visa, somente ou principalmente, o conhecimento da primeira verdade. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 317 Levando em conta os argumentos clássicos do ceticismo, acerca dos dados dos sentidos, Descartes ainda insere outros dois, um deles talvez nunca antes pensados por qualquer um dos grandes nomes do ceticismo: o argumento do Deus enganador. Finda a primeira meditação sem certeza nenhuma alcançada, a segunda inicia-se com a descoberta da primeira verdade: “esta proposição, eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que enuncio ou que a concebo em meu espírito”. Infere-se que a dúvida teve a função de mostrar que, no fim das contas, há algo de que não se pode duvidar de forma nenhuma, “pois não há dúvida alguma de que sou, se ele me engana; e, por mais que me engane, não poderá jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma coisa” (DESCARTES, 2010, p.142). Assim, a existência do eu é garantida por uma contradição: se Deus me engana, devo necessariamente existir. Se me engano, ou penso que me engano, devo necessariamente existir, caso contrário nem sequer poderia pensar ou me enganar. Esta primeira verdade é o lugar desde onde todas as outras verdades podem ser encontradas. Compreendido este ponto e destacadas as qualidades disso que pensa existir, a terceira meditação tem em vista o avanço do conhecimento: o que mais poderia alguém conhecer de modo que seja impossível se enganar? O que mais há de certo? Mesmo assim, como seria de imaginar, Descartes continua com o princípio adotado nas outras meditações, que também é exposto n’O discurso do método, a saber: “o de jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal; isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e de nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão clara e tão distintamente a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida” (DESCARTES, 2010, pág. 76). Portanto, ele se propõe, desde o início das meditações, a encarar sua empresa do modo mais consequente possível, a fim de que nada pudesse passar despercebido, ou que ninguém pudesse lhe objetar qualquer inclinação exterior a coisa alguma. Ocorre, desse modo, que, na terceira meditação, Descartes alude a duas provas da existência de Deus, ambas a posteriori, ou seja, dos efeitos para sua causa. Para isso, necessita investigar a natureza das ideias que lhe são inseridas na mente: “ora, destas ideias, umas me parecem ter nascido comigo, outras, ser estranhas e vir de fora, e as outras, ser feitas e inventadas por mim mesmo” (DESCARTES, 2010, pág. 154). Nessa investigação, ele ainda não pode aludir ao mundo material como causa das ideias que tem, visto que ainda não estabeleceu a prova de que exista qualquer coisa fora de sua mente e, como propôs como método de seu estudo, não ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 318 avançar acerca daquilo que não concebe clara e distintamente em seu espírito, pois, na primeira meditação, percebeu que muitas vezes lhe parecia estar sentado perto do fogo, vestido, mas que realmente estava deitado em sua cama, nu, sonhando. Em razão disso, pode-se concluir que algumas ideias são criadas pela minha mente, sem qualquer necessidade de um representante real, externo, material, a julgar pelos sonhos e por seres fantásticos, constituídos de várias partes, tais como dragões, cavalos alados e toda sorte de criaturas mitológicas. Mesmo assim, qualquer efeito deve ter uma causa, e essa causa deve, no mínimo, ter tanta realidade quanto seu efeito: “agora, é coisa manifesta pela luz natural que deve haver ao menos tanta realidade na causa eficiente e total quanto no seu efeito: pois de onde é que o efeito pode tirar sua realidade senão de sua causa? E como poderia esta causa lha comunicar se não a tivesse em si mesma?” (DESCARTES, 2010, pág. 157). Portanto, não é possível que qualquer ideia de algo perfeito ou infinito se imprima em mim a não ser que exista qualquer ser perfeito ou infinito, capaz de conter tais qualidades. Com efeito, concebendo a ideia de Deus como um ser “soberano, eterno, infinito, imutável, onisciente, onipotente e Criador universal de todas as coisas”, ele deve existir necessariamente. Deus, tendo todas as qualidades supracitadas, tem mais “realidade objetiva”, um “maior número de graus de ser ou de perfeição” do que qualquer outra coisa no mundo, e, por isso, colocando em mim a ideia de algo perfeito e infinito, existe. Então se conclui a primeira prova da existência de Deus, qual seja, que algo que contém maior perfeição deve ser causa do que é menos perfeito. Partindo da primeira prova (de que algo não pode criar algo mais perfeito que si mesmo), Descartes logo descarta a opinião de que poderia ter sido causa de si mesmo, analisando que, se fosse, atribuiria a si como qualidades tudo aquilo de que tem ideia. Então, visto que tem ideias de coisas que não possui, como perfeição ou infinitude, não pode ser causa de si mesmo, entendendo que deve ter uma causa exterior. Assim, a busca parte para a primeira causa, de si e de tudo, Deus. No caso do eu, entende-se que ele não poderia ser causa de si mesmo, visto que não possui todas as qualidades das quais tem a ideia, mas no que respeita a Deus é totalmente válido o argumento, pois Deus possui as qualidades das quais tenho ideia. O recurso à causalidade encontra aquilo que tem, atualmente, todas as qualidades, e é, portanto, causa de si e causa de tudo o que existe. Todavia, poder-se-ia argumentar que a busca pela causa levaria a uma regressão ao infinito, argumento esse que Descartes tenta refutar: “e é muito manifesto que nisto não pode haver progresso até o infinito, posto que não se trata tanto aqui da causa que me ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 319 produziu outrora como da que me conserva presentemente” (DESCARTES, 2010, p. 166). Como a busca, nesse caso, dirige-se àquilo que possa conservar a existência do eu, ou seja, o único cuja existência foi provada, desconsidera-se a primeira prova da existência de Deus. A prova refere-se a conservação do eu instantânea e continuamente, posto que o eu não possui capacidade de manter-se por si mesmo. Eis que chegamos ao ponto em que pretendemos mostrar a resposta de Descartes ao argumento cético do desacordo: a quarta meditação. Todavia, ele não deixa expressa a ideia que discute, pelo menos aqui, com o ceticismo. Mas, visto que o ceticismo propõe que se deva suspender o juízo acerca de qualquer questão pelo fato de nunca poder saber com certeza se o que se diz é verdadeiro ou falso, no plano epistemológico, entendemos que qualquer tentativa de se estabelecer algo como última palavra acerca de uma verdade objetiva caracteriza-se como busca de resposta ao ceticismo. A quarta meditação se propõe à refutação do ceticismo, tentando apontar a causa dos erros nos juízos, mostrando que é possível um conhecimento seguro. A primeira questão levantada por Descartes visa a solução do problema levantado no fim da primeira meditação: Todavia, há muito que tenho no meu espírito certa opinião de que há um Deus que tudo pode e por quem fui criado e produzido tal como sou. Ora, quem me poderá assegurar que esse Deus não tenha feito com que não haja nenhuma terra, nenhum céu, nenhum corpo extenso, nenhuma figura, nenhuma grandeza, nenhum lugar e que, não obstante, eu tenha os sentimentos de todas essas coisas e que isso não me pareça existir de maneira diferente daquela que vejo? E, mesmo, como julgo que algumas vezes os outros se enganam até nas coisas que eles acreditam saber com a maior certeza, pode ocorrer que Deus tenha desejado que eu me engane todas as vezes em que faço a adição de dois mais três, ou em que enumero os lados de um quadrado, ou em que julgo alguma coisa mais fácil, se é que se pode imaginar algo mais fácil do que isso (DESCARTES, 2010, p. 138). O único argumento cético que sobreviveu até aqui foi o do Deus enganador, mas que não podia contradizer a existência do eu e de Deus. Todavia, com as verdades adquiridas nas três meditações precedentes, é possível refutar a ideia de um Deus que empreende sua força em enganar. Descartes encontra, então, uma contradição na ideia de um Deus enganador: se a ideia que tenho de Deus engloba bondade, perfeição e onipotência, só para citar algumas qualidades, fica claro que ele não pode agir de modo a me enganar, pois isso só pode indicar algum tipo de fraqueza. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 320 No entanto, mesmo que Deus seja isento da culpa no erro, é manifesto que erro em certas coisas, e a quarta meditação visa encontrar a causa dos erros. Ao analisar essa questão, notamos que, seguindo os passos de Descartes, a única coisa passível de erro é o juízo, ou seja, o assentimento ou não em relação a qualquer coisa. E o juízo consiste numa operação da vontade acerca de algum dado do entendimento. Encaradas separadamente, vontade e entendimento, não são passíveis de erro, visto que, no que concerne ao entendimento, somente concebo as coisas do modo como é necessário que as conceba, e nisso não posso me enganar, e que, no que respeita à vontade, ela é muito ampla e muito perfeita em sua espécie. Como posso, então, me enganar a respeito de qualquer coisa, se Deus me deu qualidades perfeitas? Experimento em mim mesmo certa capacidade de julgar, que sem dúvida recebi de Deus, do mesmo modo que todas as outras coisas que possuo; e como ele não quereria iludir-me, é certo que ma deu tal que não poderei jamais falhar, quando a utilizar como é necessário (DESCARTES, 2010, pág. 170). Esta capacidade de julgar, formada por estas duas instâncias, entendimento e vontade, só pode ser utilizada corretamente quando o meu assentimento, que se refere à vontade, só é dado ou negado após um conhecimento seguro acerca daquilo a que afirmo ou nego: Ora, se me abstenho de formular meu juízo sobre uma coisa, quando não a concebo com suficiente clareza e distinção, é evidente que o utilizo muito bem e que não estou enganado; mas, se me determino a negá-la ou a assegurá-la, então não me sirvo como devo de meu livre-arbítrio; se garanto o que não é verdadeiro, é evidente que me engano, e até mesmo, ainda que julgue segundo a verdade, isto não ocorre senão por acaso e eu não deixo de falhar e de utilizar mal o meu livre-arbítrio; pois a luz natural nos ensina que o conhecimento do entendimento deve sempre preceder a determinação da vontade (DESCARTES, 2010, pág. 175). Assim, entende-se que clareza e distinção são os critérios escolhidos para que algo possa ser considerado verdadeiro ou falso. A partir do já dito, notamos que, tomando o sistema cartesiano somente encerrado seu campo próprio, o problema cético da diaphonía parece ter-se elucidado. Diaphonía, para os céticos gregos, consiste no desacordo entre as escolas filosóficas e conduz, inevitavelmente à epoché, ou suspensão do juízo. Perplexo, em sua investigação, o cético se vê impossibilitado de fazer sua escolha por qualquer posição, frente a variedade de sistemas filosóficos construídos durante toda ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 321 a história da filosofia, pois não pode escolher um pelo fato de que todas, em maior ou menor grau, são capazes de persuasão, até mesmo sistemas que contradizem uns aos outros. No caso da metafísica cartesiana, descobrimos a causa de todos os erros e, assim, acredita-se ser possível julgar o mundo, de agora em diante, de modo que seja possível o fim do erro. Todo aquele que limitar-se a assentir seu juízo somente acerca daquilo que seu entendimento concebeu clara e distintamente jamais poderá ser enganado e, consequentemente, o juízo de todos que assim agirem será unívoco. Não haverá, portanto, desacordo entre os homens, não haverá discursos opostos acerca do mesmo objeto de discurso, o que extingue a diaphonía cética. Todavia, de um ponto de vista cético, duas objeções podem ser levantadas contra a solução de Descartes: a primeira é de que ele somente introduziu mais uma nota destoante na história da diaphonía, visto que nem todos concordam com a argumentação de sua metafísica; e a segunda refere-se ao poderoso argumento acerca do critério de verdade que, no caso de Descartes, baseiase no julgamento daquilo que se concebe clara e distintamente. Assim, poder-se-ia perguntar o meio pelo qual o critério de clareza e distinção foi adotado como critério de verdade, ou, em termos mais simples, perguntar-se pelo critério do critério. Essa busca conduziria a um progresso ao infinito, visto que cada critério necessitaria de outro, e só há duas opções possíveis: ou aceita o progresso ao infinito ou postula um axioma que seja indemonstrável. Opções estas que são insatisfatórias para qualquer cético. Conclui-se, então, que a solução de Descartes, aos olhos do ceticismo, seria insatisfatória e que, em vez de acabar com a diaphonía, só contribui para aumentála. Referências Bibliográficas DESCARTES, René. Obras escolhidas. J. Guinsburg, Bento Prado Jr., Newton Cunha e Gita K Guinsburg, tradução – São Paulo, Perspectiva, 2010. SEXTO EMPÍRICO. Outlines of Pyrrhonism. Trad. para o inglês R. G. Bury. Cambridge, Massachusetts, London, England: Harvard University Press, 2000. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 322 A CONCEPÇÃO DE NATUREZA HUMANA NOS CADERNOS DO CÁRCERE DE GRAMSCI Jarbas Mauricio Gomes PPGE-UFSCar/CNPq [email protected] RESUMO: O presente trabalho é uma exposição das análises de Antonio Gramsci (1891-1937) sobre a concepção de natureza humana. Gramsci dedicou ao tema algumas notas dos Cadernos do Cárcere (Q). O problema da natureza humana emergiu como parte de sua análise sobre a fundação da filosofia da práxis. Para ele, a indagação sobre o que é o homem e a sua natureza é a primeira e a principal pergunta da filosofia (Q10 §54). Por ser histórica, a natureza humana se realiza na síntese unitária entre pensamento (filosofia) e ação (política). Desconsiderar a historicidade da natureza humana origina uma concepção genérica e anacrônica, concebendo que o homem é sempre o mesmo no tempo e no espaço (Q10 §12). Em Gramsci, a concepção de natureza humana é sempre datada, resultado de uma investigação dialética acerca do Ser e daquilo que o homem é a cada momento histórico. Palavras-chave: Natureza humana; filosofia da práxis; Gramsci O presente texto é uma exposição das análises de Antonio Gramsci (1891-1937) sobre a concepção de natureza humana. O problema da natureza humana emergiu de sua reflexão sobre os fundamentos da filosofia da práxis, enquanto critica e sistematização da concepção de mundo dos grupos sociais subalternos. Gramsci dedicou à investigação da natureza humana algumas poucas notas dos Cadernos do Cárcere (Q), um conjunto de 33 cadernos escolares escritos entre o período de 1929 e 1937 enquanto esteve preso por oposição ao fascismo53. Para facilitar o acesso aos textos dos Cadernos do Cárcere as citações serão feitas a partir da edição brasileira. Mas os textos foram cotejados com a edição crítica dos Quaderni del Carcere, organizada por Valentino Gerratana e publicada na Itália pela primeira vez em 1975. As indicações dos textos serão feitas pelo emprego do número do Caderno (Q) e o número do parágrafo. Ex. Q10 §1. 53 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 323 Gramsci foi um pensador da primeira metade do século XX. Natural do sul da Itália nasceu em 1891 na ilha da Sardenha, uma das regiões mais atrasadas e que junto com o sul continental da Itália formava uma região denominada de mezzogiorno. Com uma economia rural e atrasada, caracterizada por pequenas propriedades e com uma cultura influenciada pelo catolicismo, o mezzogiorno era um dos principais problemas da unificação da italiana, conquistada politicamente em 1861. Gramsci concebia que a história italiana era uma história de luta pela liberdade e que os homens se uniam para lutar contra a dominação de poucos sobre povos inteiros. A polarização política entre liberais e marxistas apresentava caminhos distintos para pensar e agir sobre os problemas da época. Na Universidade se apropriou teoricamente de ambas as posições, da liberal com Benedetto Croce e da marxista com Antonio Labriola. A opção pelo marxismo fundamentou sua adesão ao socialismo e a militância políticopartidária junto aos operários de Turim e está na base de sua reflexão sobre a natureza humana. Engajado na transformação da realidade política, econômica e cultural da Itália, contrapôs-se às tendências de apropriação liberal ou positivista da herança filosófica de Marx pela análise sistemática dos fundamentos da filosofia marxista, atualizando-a a realidade do início do século XX. Pensando na elaboração de uma filosofia genuína e originária das necessidades sociais, políticas e econômicas dos grupos sociais subalternos analisou os fundamentos sobre os quais deveria ser elaborada a “filosofia da práxis”. Para ele a origem da filosofia da práxis estava na crítica à filosofia idealista, hegemônica na Itália, e na iniciativa de apresentar uma filosofia capaz de dar conta das contradições existente na vida dos grupos sociais subalternos. Pois, como indicou no Q11 §12, “Uma filosofia da práxis só pode se apresentar, inicialmente, em atitude polêmica e crítica, como superação da maneira de pensar precedente e do pensamento concreto existente (ou mundo cultural existente)” (GRAMSCI, 1999. p. 101). A discussão sobre a natureza humana emerge no debate sobre a historicidade da filosofia, em outras palavras, retoma-se o debate da natureza humana na medida em que se propõe a mudança no fundamento originário da filosofia: do idealismo presente na filosofia de Hegel ao materialismo constante no pensamento de Marx. Para Gramsci a indagação sobre o que é o homem e a sua natureza é a primeira e a principal pergunta da filosofia, de modo que a fundação da filosofia da práxis deve passar por ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 324 esta investigação. Ele expôs essas considerações no Q10 §54, intitulado Introdução ao estudo da filosofia. O que é o homem? e ponderou: [...] O que é o homem? É esta a primeira e principal pergunta da filosofia. Como respondê-la? A definição pode ser encontrada no próprio homem, isto é, em cada homem singular. Mas é correta? Em cada homem singular, pode-se encontrar o que é cada ‘homem singular’. Mas não nos interessa o que é cada homem singular, o que significa, ademais, o que é cada homem singular em cada momento singular. Se observarmos bem, veremos que, ao colocarmos a pergunta ‘o que é o homem’, queremos dizer: o que é que o homem pode se tornar, isto é, se o homem pode controlar seu próprio destino, se ele pode ‘se fazer’, se pode criar sua própria vida. [...] (GRAMSCI, 1999, p. 410-411). Gramsci estava se contrapondo a filosofia idealista representada na Itália por Benedetto Croce. Tendo como interlocutor Croce, que era considerado o principal representante da filosofia idealista de Hegel, estava se contraponto não só ao idealismo, mas, também, ao pensamento liberal italiano. Para além de sua oposição ao liberalismo e ao idealismo, Gramsci estava se opondo ainda à vulgata marxista que se difundia pela iniciativa de difusão do marxismo entre os membros dos partidos socialista e comunista. Ao propor a filosofia da práxis, no Q10 §54 Gramsci enfatizou a que a historicidade era inerente à natureza humana, e que é pela investigação sobre o que é o homem que se estabelece o que é a natureza humana. Observando ainda melhor, a própria pergunta ‘o que é o homem’ não é uma pergunta abstrata ou ‘objetiva’. Ela nasce do fato de termos refletido sobre nós mesmos e sobre os outros; e de querermos saber, em relação com o que vimos e refletimos, aquilo que somos, aquilo que podemos vir-a-ser, se realmente e dentro de que limites somos ‘criadores de nós mesmos’, da nossa vida, do nosso destino. E nós queremos saber isto ‘hoje’, nas condições de hoje, da vida de ‘de hoje’, e não de uma vida qualquer e de um homem qualquer [...]. (GRAMSCI, 1999, p. 411). A historicidade compreendida na concepção de natureza humana não deixa espaço para previsões de natureza metafísica, pois a natureza humana é resultado daquilo que o homem é em um dado momento histórico. Desse modo, a natureza humana é afetada pelas estruturas sociais dentre elas a cultura e a economia. Entre as categorias analíticas que Gramsci usou para pensar o homem e a sua natureza estão as concepções de bloco histórico e reforma ético-política. Bloco histórico é entendido ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 325 como uma unidade entre natureza e razão, por ela o homem se constitui humano ao dominar racionalmente a sua natureza biológica. Nesse caminho o homem se qualifica eticamente, enquanto grupo social como indicou no Q10 §48: O homem deve ser concebido como um bloco histórico de elementos puramente subjetivos e individuais e de elementos de massa e objetivos ou materiais, com os quais o indivíduo está em relação ativa. Transformar o mundo exterior, as relações gerais, significa fortalecer a si mesmo, desenvolver a si mesmo. É uma ilusão e um erro supor que o ‘melhoramento’ ético seja puramente individual: a síntese dos elementos constitutivos da individualidade é ‘individual’, mas ela não se realiza e desenvolve sem uma atividade para fora, transformadora das relações externas, desde aquelas com a natureza e com s outros homens em vários níveis, nos diversos círculos em que se vive, até a relação máxima, que abarca todo o gênero humano. Por isso, é possível dizer que o homem é essencialmente ‘político’, já que a atividade para dirigir conscientemente os outros homens realiza a sua ‘humanidade’, a sua ‘natureza humana’ (GRAMSCI, 1999, p. 406-407). Por se definir na relação do homem com os outros homens, na vida em sociedade, e no domínio da própria natureza biológica a natureza humana é política. O homem encontra sua natureza ao pensar sobre si e sobre os outros, quando quer saber aquilo que é e aquilo que pode vir-a-ser. Para ele, o devir é uma concepção filosófica e distingue-se de progresso que é uma ideologia. A questão é sempre a mesma: o que é o homem? O que é a natureza humana? Se se define o homem como indivíduo, psicológica e especulativamente, estes problemas do progresso e do devir são insolúveis ou puramente verbais. Se se concebe o homem como o conjunto das relações sociais, entretanto, revela-se que toda comparação no tempo entre homens é impossível, já que se trata de coisas diversas, se não mesmo heterogêneas. Por outro lado, dado que o homem é também o conjunto das suas condições de vida, pode-se medir quantitativamente a diferença entre o passado e o presente, já que é possível medir a medida em que o homem domina a natureza e o acaso. [...] (GRAMSCI, 1999, p. 405-406) - Q 10 § 48 Por isso, ao propor uma filosofia orientada pela materialidade da vida humana, com foco na realidade dos grupos subalternos, o problema que Gramsci enunciou no Q11 §62 como historicidade da filosofia da práxis se torna a base da sua análise. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 326 Em certo sentido, portanto, a filosofia da práxis é uma reforma e um desenvolvimento do hegelianismo, é uma filosofia liberada (ou que busca liberar-se) de qualquer elemento ideológico unilateral e fanático, entendido individualmente ou como grupo social global, não só compreende nas contradições, mas coloca a si mesmo como elemento da contradição, eleva este elemento a princípio de conhecimento e, consequentemente, de ação. O ‘homem em geral’ é negado, qualquer que seja a forma em que se apresente, e todos os conceitos dogmaticamente ‘unitários’ são ridicularizados e destruídos enquanto expressões do conceito de homem em geral ou ‘natureza humana’ imanente em cada homem (GRAMSCI, 1999. p. 204). Para ele, a concepção de natureza humana deve ser deduzida da observação do homem e de sua vida, mas isso não significa na particularidade. Mas, sim, na história coletiva dos homens. Esse raciocínio pode ser lido no Q7 §35. O problema do que seja o homem é sempre, portanto, o chamado problema da ‘natureza humana’, ou também o do chamado ‘homem em geral’, isto é, a tentativa de criar um ciência do homem (uma filosofia) que parte de um conceito inicialmente ‘unitário’, de uma abstração na qual se possa conter todo o ‘humano”, como conceito unitário, é um ponto de partida ou um ponto de chegada? Ou melhor, não será esta investigação um resíduo ‘teológico’ ou ‘metafísico’, na medida em que é colocada como ponto de partida? A filosofia não pode ser reduzida a uma ‘antropologia’ naturalista [...] (GRAMSCI, 1999. p. 244). Na sequência do parágrafo Gramsci considerou: A afirmação de que a ‘natureza humana’ é o ‘conjunto das relações sociais’ é a resposta mais satisfatória porque inclui a ideia do devir: o homem ‘devém’, transforma-se continuamente com as transformações das relações sociais; e, também, porque nega o ‘homem em geral’: de fato, as relações sociais são expressas por diversos grupos de homens que se pressupõem uns aos outros, cuja unidade é dialética e não formal [...]. Também é possível dizer que a natureza do homem é a ‘história’ (e nesse sentido, posta história = espírito, de que a natureza do homem é espírito), contanto que se dê á história o significado de ‘devir’, em uma concórdia discors que não parte da unidade, mas que tem em si as razões de uma unidade possível [...] (GRAMSCI, 1999. p. 245). Para Gramsci, Q7 §35, “[...] a ‘natureza humana’ não pode ser encontrada em nenhum homem particular, mas em toda a história do gênero humano [...] enquanto em cada indivíduo se encontra características postas em relevo pela contradição com as de outros homens [...]” (GRAMSCI, 1999, p. 245). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 327 Análise do Q7 §demonstra a relação entre a análise gramsciana e a questão cultural do mezzogiorno, em especial da influência da religião e coloca o problema nos seguintes termos: A concepção de ‘espírito’ nas filosofias tradicionais, bem como as de ‘natureza humana’ encontrada na biologia, deveriam ser explicados como ‘utopias científicas’ que substituíam a utopia maior da ‘natureza humana’ buscada em Deus (e os homens – filhos de Deus), e servem para indicar o contínuo trabalho da história, uma aspiração racional ou sentimental, etc. [...] (GRAMSCI, 1999, p. 245). No Q7 §38, Gramsci apresentou três caminhos para investigar a natureza humana: a religião, a filosofia e a ciência biológica. Todos partindo do tema da origem do sentimento de igualdade e, como se lê no Q7 §35, tendo como princípio que “[...] a ‘natureza’ humana não residia dentro do indivíduo, mas na unidade do homem e das forças materiais: portanto, a conquista das forças materiais é uma maneira – e a mais importante – de conquistar a personalidade [...]” (GRAMSCI, 1999, p. 245). Focando na historicidade da concepção de natureza humana, apontou que ela era uma realidade historicamente situada acerca da posição dos indivíduos no mundo e na vida social. Conhecer essa realidade é o primeiro passo rumo a emancipação, possível pela análise da realidade realizada quando o homem pensa sobre si e suas relações com os outros, quando produz a filosofia da práxis. Conclusão Há análises de Gramsci sobre a concepção de natureza humana nos seguintes cadernos e parágrafos: Q7 §35; Q7 §38; Q10 §12; Q10 §48; Q10 §54; Q11, §12; Q11 §62; Q15 §29. O mote dessas análises foi à fundamentação da filosofia da práxis e a refutação ao mecanicismo, à metafísica e a filosofia idealista. Na filosofia da práxis a concepção de natureza humana é datada, resultado de uma investigação dialética acerca do Ser e daquilo que o homem é em sua totalidade histórica, sem desconsiderar suas contradições e particularidades (Q10 §48). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 328 Não se pode subtrair da concepção de natureza humana a sua historicidade, isso criaria uma concepção de homem genérica e anacrônica, de que ele é sempre o mesmo no tempo e no espaço (Q10 §12). Por ser histórica, a natureza humana se realiza na síntese unitária entre pensamento (filosofia) e ação (política), mediada pelas relações entre os homens e as forças materiais presentes na direção política e na transformação da natureza (Q10 §48). Referências Bibliográficas: GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere, Volume 1: Introdução ao estudo da filosofia, a filosofia de Benedetto Croce. Edição e Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. ___________. Quaderni del Carcere: Edizione crittica dell’Istituto Gramsci a cura di Valentino Gerratana. Torino: Einaudi, 2007. 4 vol. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 329 FILOSOFIA E DIREITO: A CONTRIBUIÇÃO DE E. PACHUKANIS PARA A CRÍTICA MARXISTA DO DIREITO João Guilherme Alvares de Farias Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP [email protected] RESUMO: A relação entre filosofia e direito tende a ser percebida como uma discussão há muito superada. No entanto, ainda hoje, tanto para juristas como para filósofos, a apropriação de um saber pelo outro é muito deficitária. Acreditamos que somente se apropriando da filosofia é que o jurista compreenderá o direito; do mesmo modo, o filósofo que se apropria do direito enriquece sua análise filosófica. Tal resultado se observa na formulação teórica presente no pensamento de Pachukanis, que partindo do método presente no Capital, de Marx, atingiu a mais elevada crítica filosófica do direito, consubstanciada em sua obra Teoria Geral do Direito e Marxismo (1924). Pachukanis enxerga no direito uma especificidade íntima entre a forma jurídica e a forma mercantil, o que lhe permite desvendar o vínculo entre direito e capitalismo. Palavras-chave: Direito e marxismo; forma jurídica e forma mercantil; sujeito de direito e capitalismo “De todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”. (Honoré de Balzac) Introdução Este breve trabalho é resultado de pouco menos de um ano de pesquisa bibliográfica e exploratória54, iniciada no segundo semestre da faculdade de direito, que se realiza com o objetivo de constituir um projeto de Iniciação Científica e futura monografia no campo da filosofia do 54 GIL, A. Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6ª ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 27; 50. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 330 direito, mais especificamente, da filosofia marxista do direito. Portanto, é absolutamente necessário ressaltar que as primeiras conclusões a que chegamos seguem abertas para futuras pesquisas sobre o tema, a fim de que seja possível sistematizar e complementar os resultados parciais obtidos até aqui. Inicialmente, ao conceber a filosofia como a mais elevada forma de saber humano, buscouse analisar a relação entre filosofia e direito, na tentativa de que o abismo que contrapõem filósofos e juristas seja superado. Afinal, acreditamos que não apenas o jurista será capaz de obter uma compreensão total do direito por meio da filosofia, como o próprio filósofo que se apropria do direito logra realizar uma análise filosófica ainda mais sofisticada. No primeiro caso, tem-se, como exemplo, a reflexão de E. Pachukanis, objeto de estudo deste trabalho. Por sua vez, a segunda hipótese, pode ser verificada nos trabalhos de Jurgen Habermas e Michael Foucault, que ao se apropriarem do saber jurídico, enriqueceram ainda mais suas análises. Nesse sentido, pretende-se, nestas poucas linhas, demonstrar que somente a filosofia, particularmente a filosofia marxista do direito, isto é, a utilização do método da crítica da economia política formulado por Karl Marx, quem já inicia, no Capital, uma elaboração do conceito de direito55, que, mais tarde, será sistematizado por Evgeni Pachukanis para a formulação de sua minuciosa análise do fenômeno jurídico e a especificidade burguesa do direito56, é capaz de alcançar a mais elevada crítica do direito ao desvendar a intrínseca relação existente entre a forma mercantil e a forma jurídica57. Por conseguinte, a importância deste estudo se justifica na medida em que, no Brasil, as análises que partem da filosofia marxista para refletir sobre o direito são ainda muito escassas e restritas. Do pequeno grupo que se dedica à crítica marxista do direito, destacam-se Márcio Bilharinho Naves, Celso Kashiura, Alysson Mascaro, Silvia Alapanian e Vinicius Magalhães Pinheiro. Um elemento que contribui para esse cenário é, além da contundente crítica de Tal afirmação, absolutamente coerente com a obra de Evgeni Pachukanis, é objeto de análise detalhada de Kashiura Jr. em seu artigo Dialética e forma jurídica: considerações acerca do método de Pachukanis. In NAVES, M. (org.). O discreto charme do direito burguês: ensaios sobre Pachukanis. 1ª ed. Campinas: IFCH-UNICAMP, 2009, p. 55 56 NAVES, M. Bilharinho. A questão do direito em Marx. 1ª ed. São Paulo: Outras Expressões; Dobra Universitário, 2014, p. 12. 57 Tal é a afirmação de Pachukanis no prefácio de sua obra: “Na literatura marxista e, em primeiro lugar, no próprio Marx, é possível encontrar elementos suficientes para tal aproximação”. PACHUKNIS, E. Teoria geral do direito e marxismo.1 ed. São Paulo: Acadêmica, 1988 p. 8. 55 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 331 Pachukanis ao direito, o próprio alijamento existente entre o filósofo e o direito, o que vale também para o jurista em relação à filosofia.58 Filosofia e direito A filosofia, como lecionam Bittar e Almeida (2012), remonta o princípio fundador de todo o saber, em direção à busca do conhecimento racional59, daí a correta conclusão segundo a qual a filosofia é a mãe do próprio pensamento jurídico. Mas qual a relação existente entre filosofia e direito? Ora, o direito se constitui como um campo de análise da filosofia. Mas a partir de que momento o direito se torna uma área de reflexão da filosofia, ou seja, seu objeto de estudo? Parece-nos correto dizer que o jurista ao se debruçar sobre as relações sociais que constituem e são ao mesmo tempo constituídas pelo direito, de modo a valorar tais relações e questionar os fundamentos jurídicos (como a norma e o Estado), além de dedicar sua reflexão à justiça, é o que irá permitir o surgimento da crítica filosófica do direito. Neste ponto, deve-se deixar claro que a filosofia do direito não constitui uma outra filosofia, nem tampouco um método. A filosofia do direito, tal como a moral, a religião e a política é apenas um campo ou tema de análise da filosofia, “um objeto específico da filosofia geral” (MASCARO, 2014, p. 12). Igualmente, não se trata de um método novo, uma vez que, como objeto de análise, a filosofia do direito partirá de métodos diversos. Assim, a análise de Pachukanis está situada na filosofia marxista, isto é, Pachukanis parte do materialismo histórico e dialético para analisar o direito na sua totalidade e, desse modo, realizar sua crítica ao fenômeno jurídico. Em outras palavras, tal como fez Marx na sua crítica da economia política, Pachukanis logrará desvendar a especificidade do direito na sociedade capitalista. Direito e capitalismo Para uma leitura detalhada do tema, pode-se consultar a obra de Alysson Mascaro: Filosofia do direito. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2014. Cap. 1 ao 3. 59 BITTAR, Eduardo; ALMEIDA, Guilherme. Curso de filosofia do direito. 10 ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 16/17. 58 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 332 Pachukanis será o grande responsável por demonstrar a relação existente entre capitalismo e direito. É por isso que enfrentará a resistência dos positivistas e dos juristas tradicionais que defendem uma concepção burguesa da história e do direito. Contrário às “formulações que nada nos dizem”, inerentes à filosofia do direito tradicional, Pachukanis constrói sua teoria partindo estritamente das leituras das obras de Karl Marx. Contra a compreensão do direito apenas como um conjunto coercitivo de normas, seu ataque ao positivismo e à tentativa de uma teoria “pura” do direito é contundente: [ [...] toda a teoria geral do direito e toda a jurisprudência “pura” não são outra coisa senão uma descrição unilateral, que abstrai de todas as outras condições das relações dos homens que aparecem no mercado como proprietários de mercadorias. [...] a tarefa da jurisprudência limita-se então exclusivamente a ordenar, lógica e sistematicamente, os diferentes conteúdos normativos. [...] Uma tal teoria geral do direito nada explica, que a priori volta as costas às realidades concretas, ou seja, à vida social, e que se preocupa com as normas sem se importar com sua origem [...] Esta “teoria” não pretende de nenhum modo examinar o direito, a forma jurídica, como forma histórica, porque não visa absolutamente estudar a realidade. Eis por que, para empregar uma expressão vulgar, não podemos tirar dela grandes coisas. (PACHUKANIS, 1988, p. 13;18;19) Do mesmo modo, Pachukanis se posiciona contra o entendimento evolutivo, universal e eterno do direito, uma vez que, segundo Sabadell (2006), tais características resultam do iluminismo para diferenciar o direito “bárbaro e obscurantista” do direito “racional e esclarecido”, tendo apenas como finalidade a legitimação do Estado moderno e do sistema jurídico atual. Sua crítica aponta para a afirmação suscitada pela maioria dos juristas nas faculdades de direito e nos manuais jurídicos, segundo a qual onde há sociedade há direito (ubi societas, ibi ius): Em vez de nos propor o conceito de direito na sua forma mais acabada e mais clara e de, por conseguinte, nos mostrar o valor deste conceito para uma determinada época histórica, [os jusfilósofos burgueses] oferecem-nos apenas um lugar comum, deveras inconsistente, o de “regulamentação autoritária externa” que serve indiferentemente para todas as épocas e para os estágios de desenvolvimento da sociedade humana. (PACHUKANIS, 1988, p. 23) ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 333 Esta crítica de Pachukanis é essencial ao entendimento do direito como forma correspondente apenas ao sistema capitalista: é a necessidade de dar condições à sua reprodução que faz do direito elemento sem o qual não é possível atribuir segurança jurídica às relações obrigacionais, que possuem em última instância o objetivo de garantir uma determinada prestação. Mas qual a relação entre forma jurídica e forma mercantil? Conforme acentua David Harvey (2013), o denominador comum sobre o qual Marx iniciará sua análise é a mercadoria, isto é, sobre a forma social predominante na sociedade capitalista, na qual além do uso, um produto possui valor de troca e, portanto, se realiza no mercado. Assim, Segnini nos demonstra o papel que ocupa a mercadoria no sistema capitalista de produção: [...] De acordo com a análise marxista, a mercadoria constitui a base elementar sobre a qual se desenvolveu o modo de produção capitalista [...] a força de trabalho humano também se transformou em mercadoria [...] a relação social entre os homens se transformou em relação social entre coisas. (SEGNINI, 1984, p. 31) Mas, a mercadoria, que cristaliza as contradições do sistema capitalista, não “se troca” sozinha. Assim, é vinculado à necessidade de permitir a circulação mercantil que o direito assume uma especificidade diferente dos demais períodos históricos. Em outras palavras, no capitalismo, a forma mercantil – relação social pautada na necessidade de troca - exige uma forma jurídica capaz de lhe conceder as devidas condições de manutenção do sistema capitalista de produção, o que implica a própria circulação mercantil. Desse modo, adstrito ao marxismo, Pachukanis chegará à conclusão de que é a “determinação mais simples” ou o elemento abstraído da totalidade imediata é que permitirá uma correta elaboração teórica. Em outras palavras é a categoria mais simples dentro do universo do direito que permitirá uma verdadeira crítica do fenômeno jurídico: daí sua reflexão partir da categoria “sujeito de direito”. É a categoria “sujeito de direito” o átomo da teoria jurídica e a partir do qual se levanta toda a estrutura que compõe o direito como conhecemos hoje. Para chegar à sua conclusão, Pachukanis não partirá de conceitos como “ordenamento jurídico”, isto porque a totalidade concreta não pode ser o ponto de partida, ao contrário, deve o ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 334 pesquisador iniciar sua análise da categoria fundamental, ou seja, partir do conceito mais simples ao mais complexo60. Capitalismo e direito são termos que se complementam mutuamente, de modo que “a persistência do direito implica a persistência do capitalismo e que, assim sendo, o fim deste modo de produção deve ser igualmente o fim da forma jurídica” (org. NAVES; KASHIURA, 2009, p. 54). Conclusão Evgeni Pachukanis logrou demonstrar que o direito é elemento necessário à valorização do capital, isto é, ao permitir que sujeitos livres e iguais (sujeitos de direito) se relacionem no momento da negociação da mercadoria no mercado – e aqui está incluída a venda/compra da força de trabalho – o direito não apenas assume, tal qual a forma-mercantil61, uma forma universal capaz de permitir a circulação da mercadoria, como também garante a produção de mais-valor, e, por conseguinte, a valorização do capital. Em outras palavras, o direito e seus elementos (norma estatal, contrato, sujeito de direito) e instituições (tribunais) é o que permite a polarização entre duas classes distintas, os ricos e os pobres; aqueles que são obrigados a trabalhar por toda uma vida e aqueles que sequer sabem o que é uma carteira de trabalho. Daí sua conclusão, com a qual compartilhamos integralmente, de que uma sociedade sem classes é também uma sociedade sem direito. O aniquilamento das categorias do direito burguês significará nestas condições o aniquilamento do direito em geral, ou seja, o desaparecimento do momento jurídico das relações humanas. [...] a transição para o comunismo evoluído não se apresenta, segundo Marx, como uma passagem para novas formas jurídicas mas como um aniquilamento da forma jurídica enquanto tal, como uma Para uma análise detalhada sobre o método de Marx na crítica da economia política, indicamos a leitura da obra de José Paulo Netto Introdução ao estudo do método de Marx; para uma compreensão do método de Marx, utilizado por Pachukanis na crítica do direito, indicamos a leitura do artigo de Kashiura Jr. Dialética e forma jurídica: considerações acerca do método de Pachukanis. 61 Segundo David Harvey, ao tratar da presença universal da forma-mercadoria, “Marx escolheu o denominador comum a todos nós, sem distinção de classe, raça, gênero, religião, nacionalidade, preferência sexual ou o que for”. In HARVEY, D. Para entender o capital. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2013, pg. 26. 60 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 335 libertação em face desta herança da época burguesa destinada a sobreviver à própria burguesia. (PACHUKANIS, 1988, p. 27/28) Referências bibliográficas: BITTAR, Eduardo; ALMEIDA, Guilherme. Curso de filosofia do direito. 10 ed. São Paulo: Atlas, 2012 GIL, A. Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6 ed. São Paulo: Atlas, 2008. MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. Trad. Florestan Fernandes. São Paulo: Expressão Popular, 2008. MASCARO, Alysson. Filosofia do direito. 4 ed. São Paulo: Atlas, 2014. NETTO, J. P. Introdução ao estudo do método de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2011. NAVES, Marcio. B. A questão do direito em Marx. São Paulo: Outras Expressões; Dobra Universitário, 2014. ___________. (org.). O discreto charme do direito burguês: ensaios sobre Pachukanis. 1ª ed. Campinas: IFCH-UNICAMP, 2009. PACHUKNIS, Evgeni. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Acadêmica, 1988. HARVEY, D. Para entender o capital. São Paulo: Boitempo, 2013. SABADELL, Ana L. Tormenta juris permissione. Rio de Janeiro: Revan, 2006. SEGNINI, Lilian R. O que é mercadoria? São Paulo: Brasiliense, 1984 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 336 WITTGENSTEIN, SUA FILOSOFIA E SEU ‘ENSINO’: DESAFIOS À PRÁTICA FILOSÓFICA DO PROFESSOR-FILÓSOFO NA CONTEMPORANEIDADE José Carlos Mendonça Bolsista UNESP/CAPES/FAPAC [email protected] Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Pelloso Gelamo RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo um ‘novo olhar’ sobre a questão da ‘educabilidade’ da filosofia à luz da definição wittgensteiniana de filosofia como “trabalho sobre si mesmo”. Tal concepção demanda à prática filosófica novas posturas, que traduzem-se em movimentos necessários aos que a ela se propõem interagir (professor, aluno, e filósofo): a) no que se refere ao aspecto pedagógico, uma nova forma de conceber e praticar filosofia; b) no que se refere ao aspecto ético, um novo olhar sobre o aspecto da ‘formação’: do movimento do sujeito sobre si mesmo, na forma como se põe em relação com a filosofia ao filosofar. Dessa forma, a partir do referencial mencionado, propõe-se: 1) Apresentar os principais elementos da noção de filosofia como ‘trabalho sobre si mesmo’ em Wittgenstein; 2) analisar as implicações ético-pedagógicas desta concepção e em que medida as mesmas são um desafio à filosofia e aos envolvidos nesta prática no contexto de ensino e de vida atual. Palavras-chave: Filosofia; ensino; educação filosófica Introdução: O que proponho com a temática tem como objetivo explorar o sentido e as implicações da ideia de Wittgenstein relacionada à sua concepção de filosofia datada de 193162, qual seja: “trabalhar em filosofia é antes de tudo um trabalho sobre si-mesmo”. Intentamos com essa Ideia esta que é uma do conjunto de observações que compõem as Vermischte Bemerkungen. Como consulta utilizarei a versão francesa intitulada Remarques mêlées e a tradução portuguesa intitulada Cultura e Valor (2000), esta última será a fonte das citações. 62 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 337 exploração, analisa-la no contexto da prática wittgensteiniana, e tendo-a como referência apontar para o fato de que a mesma se impõe como que um desafio a toda e qualquer prática filosófica, particularmente aos que tem a filosofia como o objeto de um exercício que visa educar: professorfilósofo. Cabe ressaltar, que o foco ensejado não é o ‘ensino’ em si, principalmente, de o que ensinar e como ensinar, como o tema talvez possa sugerir, mas algo que está em sua raiz condicionando-o a partir deste ponto. O tema está relacionado mais a um exercício de natureza ética, porque é um exercício de subjetividades, ao mesmo tempo que uma atividade necessária a uma prática. Também não se quer pôr em questão o ‘ensino de Wittgenstein’, não obstante o que queremos abordar tenha aí o seu esboço e a sua evidência. A este respeito, pergunta-se: Qual o grande desafio imposto por Wittgenstein à filosofia e sua prática? Esta questão nos remete à uma anterior: Se há um desafio, significa que uma determinada prática está envolta a problemas, em que ele consiste? E, ainda: A partir deste modo de ‘fazer filosofia’, quais são as implicações que recaem sobre a prática filosófica, principalmente quando se a tem como educativa? De pronto, pode-se afirmar que o que se trata em todas as indagações é algo de ordem ética, particularmente quando o foco está relacionado à ‘educabilidade’ da filosofia ao processo de transformação dos sujeitos. Dentro de um movimento que vem provavelmente de Nietzsche (e Wittgenstein também leu Nietzsche), filósofos contemporâneos como Hadot, Foucault e Wittgenstein problematizam o ‘fazer filosófico’ e com isso, ao enfatizarem uma filosofia ascética, cada um à sua maneira querem fazer-se compreender que o problema da filosofia não é somente uma questão teórica, de método ou de conhecimento. Aliás, este é o cerne da problemática: se pratica a filosofia como se se estivesse praticando ciência, a partir do modelo desta última. Além disso, para nós, (pós) modernos, o que dá acesso à verdade passou a ser o conhecimento e tão somente o conhecimento. Assim, crê-se que o sujeito, uma evidência em si na modernidade, é capaz, em si mesmo, e unicamente por seus atos, de obter conhecimento, de reconhecer a verdade e acessá-la. Por fim, com o ‘pensamento’ da modernidade, desenvolvemos a capacidade de ter o domínio sobre as coisas e sobre os outros, mas não mais sobre nós mesmos. Contudo, o que estes filósofos supracitados nos mostram é que, como aponta Foucault em Hermenêutica do sujeito (2010), o que se visa com (e em) o trabalho filosófico trata-se fundamentalmente de uma questão ética: “Constituir uma ética do eu, (...) talvez seja uma tarefa urgente, fundamental, politicamente indispensável, se for verdade afinal de contas de que não há ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 338 outro ponto de resistência ao poder político senão na relação de si para consigo [grifo nosso]” (p.225). Ou seja, faz-se necessário realçar o movimento que se deve fazer sobre si mesmo quando das práticas, quando do uso da linguagem, no qual a constituição do sujeito ético possa emergir da sua condição subjetiva enquanto consequência de sua relação com a verdade, bem como de sua relação com as práticas – em um movimento onde ao imergirmo-nos nelas, ao mesmo tempo elas (com suas verdades imanentes) nos invadem transitando sobre a subjetividade, atravessando-a e transfigurando-a. A filosofia então está desafiada, ou melhor dizendo, uma prática wittgensteiniana e a forma como se a concebe impõe aos que se propõem a este ‘jogo’ -professor e filósofo- um novo modo de vê-la, de usá-la. Aí, nesta prática, ‘pensar a própria relação’, o exercício que se deve fazer de si na atividade é mais que fundamental, torna-se uma necessidade. Há no filosofar a exigência de uma relação há muito adormecida: a relação de si para consigo, mas que denote ‘trabalho’. A este desafio imposto, poder-se-ia dizer então que a função da filosofia, denotando atividade, está relacionada a este papel de “constituição de uma ética do ‘eu’”, demandada por Foucault. Nesta perspectiva, com Wittgenstein a filosofia é transformada e esta transformação desafia a própria filosofia, principalmente quando se a tem por prática educativa. Do trabalho sobre si-mesmo na filosofia Segundo Cometti (1996), a ideia de um trabalho sobre si-mesmo, tal como ela se exprime na citação acima, não é estranha à ideia de uma “maneira de ver”, e está relacionada basicamente com as preocupações que conduzem Wittgenstein em suas reflexões sobre a “fisionomia” nos últimos escritos, e sobretudo à visão sinótica (exposição da visão como um todo). No entanto, para compreender a função sistemática do “trabalho sobre si-mesmo” em Wittgenstein, faz-se necessário tomar por referência também o Tractatus (2001). Aí Wittgenstein delineia a relação existente entre a linguagem e o mundo. Conforme o Tractatus, pode-se somente “falar” daquilo que se encontra no mundo, e os fatos que concernem à nossa relação para com o mundo enquanto totalidade, a exemplo das questões éticas, pode apenas ser “mostrado”. É justamente neste ponto que aflora em Wittgenstein a ideia da filosofia enquanto “trabalho sobre si mesmo”. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 339 A distinção entre “dizer” e “mostrar” é uma distinção que somente pode ser mostrada ao sujeito. Esta evidência é o que procura mostrar a metáfora bem conhecida da escada, que deve ser jogada fora após seu uso (WITTGENSTEIN, 2001: 6.54). Para o Wittgenstein do Tractatus, podemos adquirir uma visão total do mundo, a ‘visão “mística”’, mas ela requer a vontade e a coragem de subir a escada. As argumentações do Tractatus, portanto, somente podem mostrar ao sujeito a via, e é ele mesmo que tem de percorrê-la. Em outras palavras, demanda-se do leitor a participação ativa no processo. Sem ela (a via), as argumentações ficam necessariamente incompletas. Assim, pode-se dizer que o Tractatus ocupa-se do problema do acesso à verdade condicionando-a a uma transformação do sujeito: é um trabalho do sujeito sobre si-mesmo, no modo em que se vê as coisas e sobre o que se espera delas. O trabalho de esclarecimento traz consigo outro ponto importante, qual seja: fixar os limites da linguagem, principal objetivo do Tractatus, quer dizer também determinar o espaço onde a linguagem não pode mais nos ajudar (a vida como um todo, como um corpo que age). Aí, opera-se o deslocamento de atenção do sujeito filosofante com relação a si-mesmo, visto que uma tal filosofia demanda que a linguagem seja ao mesmo tempo uma imagem fiel do mundo e o princípio de projeção que torna o si-mesmo significativo. Já nos últimos escritos, muito próximo à concepção de Hadot63, com sua crítica a “linguagem privada”, Wittgenstein enfatiza que todo “trabalho sobre si-mesmo” é um trabalho sobre a linguagem e, por consequência, sobre um bem comum64. É isso, o uso, o que faz com que se pertença a uma “forma de vida”, bem como a partir do qual se é capacitado a participar ativamente do “jogo de linguagem”. Sem isso, como afirma James C. Edwards (1985) há no indivíduo uma desapropriação de suas próprias experiências. Do desafio ético-pedagógico de uma prática Na concepção deste filósofo, no que se refere ao cuidado de si, o mais importante deste processo não residia no enfoque dado à prática de si, em si-mesma, mas no sentimento de superação de si devido ao pertencimento a um todo: “pertencer ao todo da comunidade humana (...)” (2001, p.221). 64 Este é o ponto de aproximação a Pierre Hadot. E importante ainda destacar nesta questão é que a linguagem não é um objeto cuja essência é ser um instrumental humano. Por este termo Wittgenstein quer demarcar os modos de manifestação da vida e de suas práticas, modos de viver, nos (e com os) quais o sujeito tem sua relação: por imersão ou por marginalização. 63 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 340 Quanto à segunda questão levantada no início, acerca das implicações e da forma pela qual a ideia de “trabalho sobre si-mesmo” traduz-se em desafio à filosofia, particularmente aos envolvidos nesta prática, pode-se afirmar que ela se resume a uma dimensão ético-pedagógica – fato que a aproxima em muito à concepção de “exercícios espirituais” 65 de Pierre Hadot -, segundo a qual o que deve ser destacado é o trabalho que se exerce sobre si mesmo, sobre o modo em que se vê e se vive em detrimento de uma atividade estritamente exterior-funcional à qual geralmente se resume o ensino de filosofia. Este desafio demanda, então, à prática filosófica novas posturas aos que a ela se propõem (professor, aluno, e filósofo) às quais, por sua vez, implicam em dois movimentos necessários: a) pedagógico, uma nova didática e um novo método, ou seja, uma nova forma de conceber e praticar filosofia; e b) ético, deve-se ter um novo olhar sobre o aspecto da ‘formação’, ao movimento do sujeito sobre si mesmo, na forma como se põe em relação com a filosofia. É sobre estes dois movimentos que iremos nos deter a partir de então. E para tal empreita, a escrita e leitura são peças fundamentais. Lendo Wittgenstein pelo ‘olhar hadotiano’, percebe-se alguns elementos dos “exercícios espirituais” desde sua primeira obra. Mas no que se refere à segunda, conforme Hadot (2001, p.103), a obra Investigações filosóficas (1996) de Wittgenstein deve ser considerada uma obra remarcável, porque ela não é um tratado sistemático66, como as obras filosóficas a partir da modernidade a exemplo do Tractatus, e portanto não deve ser lida sob esta perspectiva. Há em Investigações toda uma terapêutica que a distinguiria do viés sistemático da modernidade e que poderia ser resumido, sob a ótica do ‘exercício espiritual’, como uma espécie de diálogo: uma composição de muitos pequenos diálogos que são frequentemente retomados, porque a cada momento deve-se ultrapassar a ‘fascinação’ que o uso da linguagem imprime sobre nós, operando assim a verdadeira terapêutica com vistas à mudança de vida. E como esses diálogos são originariamente resultados de um exercício sobre si mesmo feito pelo próprio Wittgenstein, agora Para Hadot, os exercícios espirituais “querem realizar uma transformação da visão e uma metamorfose do ser (...). Não se trata de um código de boa conduta, mas de uma maneira de ser no sentido mais forte do termo”; “A denominação de exercícios espirituais é então finalmente a melhor, porque ela marca bem que se trata de exercícios que compromete todo o espírito” (2002, p. 77). Ou seja, os exercícios espirituais estão sempre ligados à transformação de si; para conseguir chegar a um estilo de vida filosófico, precisa-se continuamente se transformar. 66 Aos sedentos por uma obra sistematizadora, explicativa, composta por argumentos bem concatenados, entrar em contato com o texto de Wittgenstein é ‘desesperador’. Não há respostas, mas muitas questões e muitas perspectivas sobre o mesmo ponto. Como resultado, se não se põe à proposta do exercício, em movimentos que nos conduz dialogicamente da obviedade à obscuridade da vida humana, e vice-versa, mudando assim a perspectiva ou aberto a perspectivas outras; a desistência de uma continuidade da leitura do texto wittgensteiniano é algo quase como certo. Um dos pontos que deflagra este conflito, do ‘olhar tradicional’ perante à proposta ético-pedagógica wittgensteiniana, é que se tem a sensação de nunca visualizar ‘com segurança’ onde se chegará com o seu texto. 65 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 341 que publicados são também uma operação que visa a mudança dos interlocutores, aos quais cabe mudarem-se a si mesmos pelo processo de leitura, cada um à sua medida. No Tractatus, como mencionamos, já havia este desafio ao exercício filosófico. O percurso ético-pedagógico ali arquiteturado compõe-se de sete principais aforismos que estão lado-a-lado ocupando o espaço total do que se pode dizer. O leitor deve ir captando e aprendendo gradativamente ao mesmo tempo pela totalidade o sentido que a imagem tractatiana quer mostrar. Neste processo, o ‘misticismo’ e a metáfora da escada tractatianos tornam-se as vias alternativas para obter o que a linguagem por si só não pode dar. Destarte, a presença da metáfora da escada teria como papel mostrar o desdobramento do processo a ser percorrido pelo ‘sujeito’: I) é preciso se assegurar do conteúdo da linguagem, qual seja o de esclarecer o que as palavras podem dizer: II) é preciso esclarecer nossa relação para com a linguagem. Quanto às Investigações filosóficas, Wittgenstein as empreende, sob a forma de exercícios práticos, a fim de forçar o leitor a se libertar de sua tendência natural, como ele diz, de fixar o conhecido em uma imagem alienante e assim perder seu lugar no mundo. Por isso o estilo desenvolvido é o autointerrogativo: “(...) os meus escritos são conversas privadas comigo mesmo” (WITTGENSTEIN, 2000, p. 114). Por consequência, a tessitura de seus últimos escritos é uma conversação que arrasta o leitor a explorar o que podemos dizer sobre nós mesmos. Suas questões incessantes, seus erros deliberados, suas fantasias imaginativas, suas ilusões provocantes, etc., impulsionam o leitor a aceitar alguma coisa como admissível até que o trabalho sobre o texto faça nascer suspeitas sobre a sua procedência histórica: “O que eu quero ensinar é: como passar de um absurdo não evidente para um absurdo evidente” (WITTGENSTEIN, 1996: §464). Por isso, é exigido que a filosofia tome a vida por questão, voltando-se para a linguagem em seu uso ordinário. Por outro lado, usar a linguagem como a filosofia tradicional o faz, desconectada da vida ordinária e presa a questões metafísicas, é ultrapassar o limite de uso da linguagem filosófica. Logo, a lição básica do desafio imposto por Wittgenstein é aceitar a vida pelo que ela é, em sua limitação e em seu enraizamento. E ao filosofar, a direção a ser tomada, bem como o seu próprio objeto, é a própria vida tomada como o “real” da filosofia, não para explica-la mas tão somente ressignificá-la. Importante também destacar a intenção didático-pedagógica dos escritos wittgensteinianos, segundo a qual o que se visa é a mudança do interlocutor quando realizada tão somente pelo próprio leitor. A este respeito, como que um conselho a filósofos e professores, Wittgenstein ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 342 observa: “Deixa ao leitor tudo o que ele pode fazer sozinho” (WITTGENSTEIN, 2000, p.114); colocando-se como exemplo: “Quase todos os meus escritos são conversas privadas comigo mesmo. Coisas que a mim próprio digo face a face” (idem). E, ainda: “Eu não devia ser mais do que um espelho em que o meu leitor pudesse ver o seu próprio pensamento com todas as suas disformidades para que, assim auxiliado, o pudesse pôr em ordem” (idem, p.35). Deste modo, quando o leitor toma os seus escritos sua direção é nada mais nada menos do que para si mesmo, pois obrigatoriamente o leitor se põe em questão no ato da leitura. Seus escritos tomam então a forma de ‘exercício espiritual’, pois o leitor como interlocutor, ao pôr-se no movimento acaba por realizar o exercício que Wittgenstein fez: “É importante para mim [e este que lê] ir modificando a minha postura [grifo e acrescento nosso] ao filosofar, não permanecer muito tempo sobre a mesma perna, para não ficar perro” (idem, p. 48). Sua visada ético-pedagógica consistiria, portanto, em criar um estilo de escrita que permitisse aos outros descobrir e reconhecer o poder da mitologia em seu próprio pensamento, porque como ele diz em seu Prefácio de Investigações filosóficas: “Com meu escrito não pretendo poupar aos outros o pensar. Porém, se for possível, incitar alguém aos próprios pensamentos” (p.12). Por isso que o melhor método, o que resta à filosofia pós-Wittgenstein, ao professor e filósofo e aconselhado pelo próprio filósofo é: “Quem hoje em dia ensina filosofia não seleciona o alimento para o seu aluno com o objetivo de lhe adular o gosto, mas para o modificar [grifo nosso]” (WITTGENSTEIN, 2000, p.35). Eis a importância da filosofia no que se refere à sua ‘educabilidade’. Faz-se necessário, portanto, uma ‘nova’ atitude em relação ao filosofar, em relação à compreensão de onde se situa e se deve situar a filosofia, e ao que se deve visar com ela. Referências Bibliográficas: COMETTI, Jean-Pierre. Philosopher avec Wittgenstein. Paris: Presses Universitaires de France, 1996. EDWARDS, James C. Ethics whitout philosophy: Wittgenstein and the moral life. Florida: USF, 1995. FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. HADOT, Pierre. La philosophie comme manière de vivre. Paris: Éd. Albin Michel, 2001. ___________. Exercices spirituels et philosophie antique. Paris: Éd. Albin Michel S.A., 2002. ___________. Cultura e valor. Trad. Jorge Mendes. Lisboa: Ed.70, 1995. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 343 ___________. Investigações Filosóficas. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1996. ___________. Tractatus Logico-Philosophicus. Trad. Luiz H. L. Santos. São Paulo: EDUSP, 2001. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 344 A RELEVÂNCIA DA NOVIDADE E DA ALEGRIA PARA A ECONOMIA, RELIGIÃO E POLÍTICA Josete Rockenbach [email protected] RESUMO: A novidade vinculada à alegria se sobressai porque atrai, estabelece e mantém as relações humanas em diferentes dimensões. Para a economia, religião e política a ‘novidade’ proporciona a alegria, e, apresenta-se de diferentes formas. Respectivamentea‘inovação’, a ‘Boa Nova’ e a ‘iniciativa’são relevantes para promover as relaçõeshumanase a maneira como as atividades serão realizadas, e são evocadas como razões para o crescimento e desenvolvimentoem níveislocal eglobal. Palavras-chave: Alegria; economia; religião; política; novidade A ‘novidade’ se revela o motor que move as pessoas e estabelece a maneira como irão se relacionar e realizar as suas atividades no mundo. Para a economia, religião e política a ‘novidade’está associada à alegria. Neste caso, a alegria contribui por ser uma emoção que agrega as pessoas em torno daquilo que acreditam ser um bem real ou imaginário. A importância atribuída à novidade -épor ser ela o quecertificao desfrute daalegriaa cada indivíduo. Equivale a dizer que, a novidade ao se realizar, ou, a sua possibilidade de se tornar real causa a alegria. Para compreender como a novidade associada à alegria apareceem diferentes domíniosdas atividades humanas, apresento: sob o tema ‘Sociedade Aquisitiva’a abordagem econômica, de acordo coma Teoria do desenvolvimento econômico de Schumpeter;sob o tema ‘Comunidade Missionaria’na perspectiva religiosa - Exortação Apostólica do Papa Francisco, 2013;e, sob o tema ‘República Democrática’ sobre o aspecto dapolíticade acordo comos textos deArendt -A condição humana ea Vida do Espírito. 1 Sociedade aquisitiva ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 345 A Sociedade Aquisitiva67é aquela que tem comoprincípio único a aquisição de bens, sejam eles de qualquer natureza. O que se busca éo poder de comprapela esfera produtiva e consumidora. Para aumentar o poder de compra é necessário que hajacrescimento edesenvolvimento econômico, o que épossível com inovações.O crescimento acontece com o aumento de pessoas incluídas na sociedade aquisitiva, diga-se que éo aumento de pessoas com poder de compra para adquirir os produtos, para atender as necessidades humanas, de acordo com o que é oferecido pela esfera produtiva. O desenvolvimento acontece com a descontinuidade, a quebra do ciclo econômico, com o surgimento de novas combinações para serem adquiridas pela esfera consumidora. Se há desenvolvimento ocorre o aumento do poder de compra, e isso garante a aquisição de coisas e serviços.Essa crença de que o crescimento e desenvolvimento trarão a inclusão e a possibilidade de aquisição de coisasresultando em bem-estar individualse espalha, e as pessoas são convertidas para essa crença, sustentadas pela Lei de Mercado. O Bem para o homem na sociedade aquisitiva está sempre ligadoà inovação, a qual estávinculada ao critério da lei do mínimo esforço (físico e intelectual) e do máximo conforto,condição essa que proporcionaráa alegria. Isso é importante para que o processo se sustente. A necessidade de novidade é criada pela esfera produtiva e absorvida pela esferaconsumidora. Neste caso,a espontaneidade é algo supérfluo, enquanto a necessidade: [...] nascem [sic] da esfera da vida industrial e comercial, não na esfera das necessidades dos consumidores de produtos finais. [...] desprezamos qualquer espontaneidade das necessidades dos consumidores que possa existir de fato, e admitiremos que os gostos são“dados”. (SCHUMPETER, 1997, p.75). [...] restringi-las às necessidades tais que sejam capazes de ser satisfeitas pelo consumo de bens. (SCHUMPETER, 1997, p.97). E o autor conclui que é da esfera produtiva, especialmente do empresário, a iniciativa da mudança de comportamento dos consumidores, para o sucesso danova combinação. [...] entretanto, é o produtor que, via de regra, inicia a mudança econômica, e os consumidores são educados por ele, se necessário, são por assim dizer, ensinados a querer coisas novas, ou coisas que diferem em um aspecto ou outro daquelas que tinham o hábito de usar. (SCHUMPETER, 1997, p.76). 67SCHUMPETER, 1997, p. 98. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 346 Se considerar uma comunidade de homens com necessidades diferentes, na sociedade aquisitiva isso não é válido,pois as diferenças são suprimidas pela necessidade implantada pela esfera produtiva. Então, a liberdadevalorizada é a escolha do que vai ser comprado, restrito ao que é oferecido pela esfera produtiva.Explora os desejos humanos, tem fé na tecnologia que vai atender a todas suas necessidades.Há a confiança de que tudo pode ser adquirido -conforto, juventude, felicidade, saúde, justiça, etc.-, e,alegria é para todo o povo, uma vida nova com melhoria das condições, e o melhor de tudo, semmuito esforço. Os olhos estãosempre voltados para o futuro, pois crescimento e desenvolvimento são palavras que se fixam em uma possibilidade futura. É algo que ainda não se realizou, está para ser realizado, em um futuro que nunca chega. O crescimento e o desenvolvimento econômicodãoagarantia de que algo melhor vai acontecer, neste caso diz-se que a nova combinação permite isso, mas ao se tornar real já há outra possiblidade de ser mais alegre na próxima inovação, e assim segue o processo econômico, ‘nada’ pode ser diferente disso para a Sociedade Aquisitiva. 2 Comunidade missionária A Comunidade Missionaria‘aceita’ comunicar a todos os homens a Boa Nova, cujo núcleo fundamental é o ‘bem’ de acordo com o Reino de Deus. A Boa Nova indica o único caminho para o Reino de Deus. Não se refere a uma ideia de bem, mas, a realização do bem na sua forma concreta. Vivenciar enquanto povo a: Justiça social, dignidade para todos os homens, convivência fraterna, unidade na diversidade, verdadeira liberdade, paz no mundo. E, tal realidade há de chegar a ‘todos’ os homens. Aceitar é tera certeza de que a proposta de Deus, a Boa Nova,é uma realidade possível ao seu povo. Acreditar nessa promessa e cumprir a Lei é um ato de profunda fé no amor de seu Senhor. Consta na Lei do Senhor: “vos ameis uns aos outros como Eu vos amei” (Jo15,12).Convida ao crescimento no amor, e uma convocação a acender e amadurecer na caridade. Deus e seu povo têm um compromisso, e neste pacto a alegria brota, cresce e se expande no coração do crente. O que Ele – Deus - promete ao anunciar a Boa Nova é transformar a tristeza em alegria. Como o sentimento de tristeza vivenciado por uma pessoa faz com que ao encontrar a ternura e o amor do Pai produza no sujeito uma alegria com intensidade ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 347 superior, e que jamais irá se perder. O autorinsiste que esta alegriapermanece no coração após desfrutar tal emoção. [...] Ele promete aos discípulos: “Vos haveis de estar tristes, mas vossa tristeza ha de converter-se em alegria” (Jo16,20) [...]“Eu hei-dever-vos de novo! Então, o vosso coração há de alegrar-se e ninguém poderá tirar a vossa alegria.” (Jo16,22)(FRANCISCO, 2013,p.6/i.5). A alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus. Quantos se deixam salvar por Ele são libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento. Com Jesus Cristo, renasce sem cessar a alegria. (FRANCISCO, 2013,p.3/i.1). [...] “O Senhor, teu Deus, está no meio de ti como poderoso salvador! Ele exulta de alegria por tua causa, pelo seu amor te renovará. Ele dança, grita de alegria por tua causa.” (Zc3,17) (FRANCISCO, 2013,p.5/i. 4). [...]. “Não te prives da felicidade presente” (Sir14,11.14). Quanta ternura paterna se vislumbra por detrás destas palavras! (FRANCISCO, 2013,p.6/ i. 4) A liberdade somente é real e se conquista quando aceita ser povo de Deus e é nesta condição que se usufrui dela. Pois, a liberdade funda-se na caridade, e, é neste aspecto que nada pode impedir suas ações. Afinal, não há na Lei nada que impeça a caridade entre os homens. Realizando o bem aos outros estará livre, somente o mal é limitado. É uma alegria que engloba múltiplos aspectos da vida humana. Não é somente comidao sonho para os homens do futuro, mas dignidade e a possibilidade de explorar os vários dons que os homens receberam do seu Pai. Para issofaz-se necessário reforçar esse compromisso da comunidade missionária de levar a Boa Nova - o reino de Deus - a todo o povo. A alegria da conversão, que é aceitar a proposta de Deus, a Boa Nova, tem um efeito profundo. Aos que aceitaram a proposta de Deus, assumem uma vida de acordo com o Evangelho, ao mesmo tempo, como guardiões do bem e da beleza que há nas Palavras, e indicandoo caminho para o bem que todos desejam. 3 República democrática A República Democrática parte do principio de que cada homem é único. Cada homem que vem ao mundo é um novo homem,um ser que é singular. Esse novo homem ao agir pode iniciar algo imprevisível no mundo que é comum a todos os humanos. Isto é a garantiada ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 348 novidade.Comenta Arendt68 que as atividades humanas,em relação aos que existiram e existem, são para assegurar aos recém-chegados o novo homem, a liberdade para iniciar suas ações no mundo comum. A atenção é para a ação política que é de resguardar esse ‘bem’ precioso às novas gerações. O novo homem ao aparecer no mundo comum nasce com a liberdade, pois não são copias idênticas: não há um modelo de homem que se repita; e,não háum comportamento idêntico a todoscomo acontece com outras espécies animais. O novo homem, ao se apropriar das coisas comuns aos homens pelas percepções e iniciar suas ações, faz da novidade sua realidade. [...] O fato de que o homem é capaz de agir significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável. E isto, por sua vez, só é possível porque cada homem é singular, de sorte que, a cada nascimento, vem ao mundo algo singularmente novo. Desse alguém que é singular pode-se dizer, com certeza, que antes dele não havia ninguém. Se a ação, como início, corresponde ao fato do nascimento, se é a efetivação da condição humana da natalidade, o discurso corresponde ao fato da distinção e é a efetivação da condição humana da pluralidade, isto é, do viver como distinto e singular entre iguais. (ARENDT, 2004, p. 191). A natalidade está vinculada à realidade dos homens,na qual se concentram as suas ações e é um assunto público.Cada homem na sua singularidade faz a avaliação da realidade do mundo, e estabelece o que quereinicia suas ações para que isso seja mantido para os que estão próximos e as futuras gerações. Ao recusar inicia ações para que algo novo seja real a todos, com a mesma razão – manter a liberdade de iniciar algo novo. E, isso acontece quando estão próximas umas as outras, na esfera da aparência, conversando sobre os assuntos humanos – integridade, dignidade, justiça, virtude, etc. -, avaliando e iniciando ações para que o mundo comum aos homens perdure com liberdade. A alegria de ser livre, de iniciar algo novo, é uma alegria distinta daquela que se tem quando se está livre da dor, do desejo e da tristeza. A alegria de iniciar não estácondicionada à satisfação das necessidades vitais e dominada pelo desejo ou apetite. Pode-se dizer que estaalegria é uma sensação da abundância de vida. A alegria, ao que parece, só pode ser experimentada se estivermos inteiramente libertos de dor e desejo [...] A alegria vem da abundância, e é verdade que toda a 68ARENDT,2004, p. 17. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 349 alegria é uma espécie de luxo; ela domina-nos, e só podemos ceder a ela depois de terem sido satisfeitas as necessidades da vida. (ARENDT, 2000, p. 186).[...] Por isso a verdadeira meta da Vontade é a abundância: << Com as palavras ‘liberdade da vontade’ queremos dizer esta sensação de um excedente de força >>, e a sensação é mais do que simples ilusão da consciência porque corresponde à superabundância da própria vida.(ARENDT, 2000, p. 186). A alegria que toma conta da pessoa ao iniciar algo é uma sensação distinta, que se traduz em um sentimento de "superabundância de vida". É a alegria de ousar e ter a coragem de iniciar algo. E, ao iniciar experimenta a vida com uma intensidade que supera a mera manutenção da vida. Ao tomar a iniciativa na esfera pública, em ummundoque é permanente,épara garantir aos recém-chegados um lugar para usufruir da liberdade de iniciar algo. Conclusão “[...]o que une os homens, tanto como amigos privados quanto cidadãos públicos,é‘encontrar alegria nas mesmas coisas.’”69 O que essa investigação buscoufoi identificar quais aspectos são importantes para se estabelecer o vínculo entre as pessoas e a composição de um agrupamento humano seja local ou global.Centramos a atenção nos domínios da economia, religião e política e o que se destacou foi a alegria e a novidade.Arelevância desses aspectos está em fundamentar a maneira como as relações humanas acontecem.A novidade e a alegria estão em estreita conexão, esão exploradas de diferentes modos: pela sociedade aquisitiva no consumo de novas combinações, inovações; pelacomunidade missionária com a Boa Nova, proposta de um novo reino no qual a justiça e a dignidade humana é realizada; pelarepública democráticacom o novo homem, e apossibilidade de iniciar algo novo no mundo. Oque se quer ao centrar as ações humanas na novidadeéencontrar nas mesmas coisas a alegria, e emconsequência se estabelecera união entre as pessoas para conquistar este estado de ânimo. Sendo assim, aemoção da alegriasustentaesta reunião de humanos com a crença de que a novidade,seja ela real ou imaginária,é um “bem” para os homens. 69ARISTÓTELES, p. 1157b-1158a apud POTKAY, 2010,p.252-253. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 350 Diante disso surgem as questões:A novidade desconectada da alegria se mantém como elemento norteador das relações e das atividades humanas?Mas, se esse algo novo não proporcionar a alegria, o que acontece? Sea emoção da alegriaé experimentadanoencontro com aquilo que se considera o ‘Bem’,a falta de alegria seria um indicativo queanovidade não atende ao que sejulgaum Bem pelos homens?E, poderíamos dizer que o que se procura-é a alegria, e encontrar algo novo é um meio, mas não o fim?O que a falta de alegria pode provocar? Para concluir, a pergunta de Potkay (2010):Com que coisas nós devemos nos alegrar? Referências Bibliográficas: ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. de Roberto Raposo; Posfácio de Celso Lafer. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. ___________. A vida do espírito – vol. II: Querer. Trad. João C.S. Duarte. Lisboa: Instituo Piaget, 2000. FRANCISCO, Santo Padre. Exortação apostólica EVANGELII GAUDIUM, ao episcopado, ao clero, às pessoas consagradas e aos fieis leigos sobre o anúncio do Evangelho no mundo actual. Vaticano: Tipografia vaticana,nov. 2013. POTKAY, Adam. A história da alegria: Da Bíblia ao Romantismo tardio. Trad. Eduardo Henrik Aubert. São Paulo: Globo, 2010. SHUMPETER, JosefhAlois. Teoria do desenvolvimento econômico. Trad. Maria Silvia Possas. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1997. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 351 O ASPECTO REPRESENTATIVO DA IDEIA EM DESCARTES Juliana Abuzaglo Elias Martins Bolsista CAPES [email protected] Orientador: Profª. Ethel Rocha RESUMO: Nosso trabalho tem como objetivo apresentar a definição do termo Ideia que Descartes formula na Terceira de suas Seis Meditações Metafísicas. A exposição do que venha a ser uma ideia, ocorre no parágrafo 6 da referida Meditação. Lá, o filósofo nos apresenta uma definição direta e objetiva do que vem a ser uma ideia. Podemos ler nessa passagem: “Entre meus pensamentos, alguns são como as imagens das coisas, e só àqueles convém propriamente o nome de idéia...”. Nosso trabalho visa expor de modo geral essa definição de ideia com o intuito último de para entender melhor a teoria do conhecimento de Descartes, uma vez que se trata de um conceito chave em sua filosofia. Palavras-chave: Ideia; representação; conhecimento; razão Na definição de ideia que Descartes apresenta na 3ª meditação, ele diz que a imagem é “como uma imagem”. Esta definição comporta seu aspecto representativo. Na realidade, o aspecto representativo da ideia diz respeito ao seu conteúdo. O conteúdo da ideia é aquilo que seria representativo nela. Os elementos e características que formam o caráter representativo da ideia, são na realidade, sua realidade objetiva como veremos a seguir. No parágrafo 6 da terceira meditação70, o pensador moderno nos mostra existirem dois gêneros de pensamento que seriam característicos da substância pensante: o primeiro ele apresenta e define diretamente como sendo idéia. O segundo ele identifica como sendo outros distintos da ideia. Grosso modo, pode-se entender que a ideia compreende ao ato mental de apresentar algum conteúdo em nosso intelecto, ou simplesmente, representar. Desta maneira, quando tenho uma ideia, eu estou tendo uma representação em meu pensamento. Quando eu 70 DESCARTES, R. Meditações Metafísicas. São Paulo: Abril Cultural, 3ª ed., 1983. (Col. Os Pensadores). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 352 tenho uma idéia, sempre que isto ocorre, algum conteúdo está se fazendo presente em minha mente. É importante entendermos esta noção básica de ideia pois ela está presente no segundo gênero de pensamento mencionado por Descartes. Como vimos além da ideia, ele admite existir outro gênero de pensamento que caracteriza a substancia pensante. Este seria então formado por uma ideia juntamente com algum ato mental. Por ato mental, devemos entender alguma ação do pensamento. Cito Descartes para explicar melhor: “Outros, além disso (da ideia), têm algumas outras formas: como, no momento em que eu quero, que eu temo, que eu afirmo ou que nego” 71. Os verbos que percebemos na passagem acima, querer, temer, afirmar e negar, seriam então alguns exemplos de algumas das ações mentais que somando-se a ideia, compõem outros gêneros de pensamento aos qual o filósofo determina por vontades, afecções e juízos. Neste cenário, temos então dois gêneros de pensamento: de um lado, a ideia e de outro, vontades, afecções e juízos. Enquanto que nestes, o intelecto assume necessariamente alguma determinada atitude (mental) em relação ao conteúdo exibido pela ideia, nesta, não tomamos nenhuma atitude além da apresentação de um conteúdo ao nosso espírito, à nossa mente. Nesse sentido, a representação, ou a ideia, é considerada o ato mental mais simples, pois se encontra envolvida em todos os demais. Já o contrário, não é verdade; podemos ter uma idéia sem necessariamente ter alguma atitude mental em relação a ela. Posso ter uma ideia sem necessariamente afirmá-la, negá-la ou temê-la, apenas exibindo um determinado conteúdo em meu espírito. Enquanto que para ter qualquer outro ato mental – que não uma representação pressupõe-se a sua presença. Para afirmar, para negar, para lembrar, para odiar, etc., precisa-se fazer presente na mente algum objeto, algum conteúdo, em última instância precisa-se de uma ideia. Daí, podemos concluir a respeito da substância pensante que; ela possui atributos, modos, e estes correspondem aos atos mentais próprios de nossa mente que podem ser denominados ou ideias, ou juízos ou vontades72. Idem. p.101 (grifo nosso). Para esclarecer tal afirmação, vale a pena determo-nos aqui brevemente a respeito de algumas noções da ontologia cartesiana. Esta pode ser considerada, um tanto quanto restrita e econômica, na medida em que diz que tudo que podemos afirmar ser, ou bem é uma substância, ou bem é um modo desta substância. Seriam três as substâncias: uma infinita, Deus, e duas finitas, a pensante e a corpórea. A definição do que venha a ser propriamente uma substancia está no artigo 51 dos Princípios : “ Por “substância” não podemos entender senão a coisa que existe de tal maneira que não precise de nenhuma outra para existir. E de certo, só há uma única substância que se pode entender como absolutamente independente de qualquer outra, a saber, Deus.” É por ser substância que nesse sentido Deus 71 72 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 353 Ainda durante a exposição do que venha a ser uma ideia, na mesma passagem, Descartes então apresenta a definição clássica da mesma. Podemos ler: “Entre meus pensamentos, alguns são como as imagens das coisas, e só àqueles convém propriamente o nome de idéia...” 73. Nos parágrafos seguintes, Descartes estabelece um exame de como a tradição investiga as ideias a partir de suas possíveis origens. No parágrafo 15º, a discussão acerca da teoria da representação é retomada. A ideia é problematizada principalmente a partir de dois aspectos que lhe seriam constituintes: a realidade formal e a realidade objetiva. Tal é a importância deles que alguns dos temas e assuntos que se seguem no texto em diante como o aspecto representativo, a veracidade, e a possibilidade de falsidade das ideias e o princípio de causalidade se darão no entorno destes dois conceitos. Por realidade formal devemos compreender aquilo que alguma coisa é enquanto ato. Todas as coisas que são atualmente o são de determinado modo e este, seria então a sua realidade formal. Desta forma, cada ato mental, cada atributo do pensamento, possui uma realidade formal única, que corresponderá ao seu próprio ato característico. A realidade formal do ato mental de duvidar, por exemplo, seria hesitar diante do conteúdo apresentado ao espírito. No que tange às idéias, sua a realidade formal é simplesmente o ato de apresentar um determinado conteúdo o espírito, ou seja, o próprio ato da representação. Levando-se em consideração este aspecto formal, as idéias são consideradas iguais entre si, pois não importa se tenho ideia de uma pedra ou de um cavalo, o ato em questão que lhes é intrínseco, é sempre o mesmo, a saber, apresentar determinado conteúdo no intelecto. Diz o filósofo, no parágrafo 15 “... caso essas idéias sejam tomadas somente na medida em que são certas formas de pensar, não reconheço nenhuma diferença ou desigualdade...”.74 Além de podermos inferir a igualdade das ideias, este mesmo aspecto nos permite afirmar outra qualidade a respeito das idéias: elas são sempre verdadeiras. Isto porque, independe de todo o resto para existir, ao passo que todo o resto de coisas irá depender dele de algum modo para existir. Seja unicamente ou duplamente. Apesar de afirmar aqui que somente Deus pode ser considerado uma substância ele admite logo após, no artigo 52, que corpo e mente (substâncias corpórea e pensante respectivamente) na medida em que dependem única e exclusivamente de Deus para existir podem igualmente serem denominadas de substância. Já os modos ou atributos, dependem duplamente; por um lado de Deus, da substancia infinita e, por outro, também da própria substância da qual eles são modos. Numa possível hierarquia ontológica, três seriam então os níveis: no primeiro patamar está a substancia infinita, logo abaixo a substancia finita pensante e corpórea e mais abaixo, os modos destas. O pensamento, enquanto substancia, possui então modos que correspondem aos atos mentais do próprio pensamento. Uma ideia, um juízo, uma volição, são atos mentais, são portanto atributos, modos do pensamento. 73 DESCARTES,R. Meditações Metafísicas. São Paulo: Abril Cultural, 3ed.,1983.(Col. Os Pensadores). p101. 74Id. Ibidem p.103. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 354 independentemente de qualquer que seja o conteúdo exibido por uma idéia, do que venha a ser (re) apresentado em nossa mente pela ideia, este ato, (de reapresentar (ter idéia)) é sempre um ato positivo, atual. Algo verdadeiramente, atualmente e positivamente se faz presente na e para, nossa consciência. Em outras palavras, as ideias, enquanto atos são imediatamente percebidas por nós. É nesse sentido que afirmamos as mesmas serem “verdadeiras”. Já a realidade objetiva, equivale ao conteúdo da ideia. Trata-se do conteúdo que se faz presente em nosso entendimento pelo ato da própria representação à consciência, ou seja, o objeto da própria idéia existente objetivamente e positivamente na e para a consciência. O objeto em questão da ideia, ou seja, esta realidade objetiva, não implica em um objeto extenso, no mundo físico, no mundo externo. O domínio objetivo aqui em questão é meramente intelectual, mental. O principio da realidade formal, foi verificado, demarca um princípio de igualdade entre as próprias idéias, na medida em que todas, se consideradas sob a perspectiva de serem somente atos, correspondem a um mesmo ato: o ato de apresentar um conteúdo a mente. Mas e agora? O que será possível afirmarmos da realidade objetiva? Enquanto princípio, esta noção que envolve o ato mental da representação, condicionará as ideias como sendo iguais ou Diferentes? Falsas ou verdadeiras? Em relação à primeira dupla de qualidades, parece-nos óbvio a conclusão de que as ideias são diferentes umas das outras. Se o ato de apresentar é sempre o mesmo nas ideias, o conteúdo, a realidade objetiva precisa ser distinto um do outro, pois se assim não o fosse, todos nós pensaríamos uma única ideia, uma ideia de uma mesma coisa. Em outras palavras, a realidade objetiva parece ser o princípio que distingue as ideias entre si. O que nos permite pensar coisas diferentes apesar de termos o mesmo ato mental. Através dela, conteúdos distintos são apresentados à nossa mente. Diz Descartes: “... considerando-as (as ideias) como imagens, dentre as quais algumas representam uma coisa e as outras uma outra, é evidente que elas são bastantes diferentes entre si”75. Na passagem acima ainda que não fale diretamente sobre a realidade objetiva, parece-nos claro que ao afirmar que as coisas representadas pelas ideias variam que ele está tratando delas enquanto seu objeto. Ademais, cumpre ressaltar, a presença da menção à definição imagética da ideia, anteriormente aqui tratada. O que implica podermos supor, que nesta primeira definição não só a realidade objetiva já estava de algum modo presente, mas que também há, no mínimo, 75 Pag. 103 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 355 uma estreita relação entre o caráter representativo da ideia – que está presente nesta definição – e a realidade objetiva, ou, o conteúdo, objeto da ideia. Isto ratifica a nosso ver nossa observação inicial de que o caráter representativo diz respeito ao conteúdo da ideia, a realidade objetiva. Diante do que exposto, podemos afirmar da definição de ser “como as imagens”: A) A imagem em questão referida pelo filósofo não necessariamente é uma imagem figurativa. Não se trata de uma analogia com qualquer tipo de representação pictórica. A representação aqui em jogo é mental antes de tudo, podendo desse modo termos ideias constituintes de imagens não figurativas. B) O algo a que a imagem se refere, não necessariamente possui uma existência atual no mundo. Contrariando novamente o senso comum que além de pensar na ideia como algo figurativo, normalmente pensa na imagem como imagem de algo que é, Descartes defenderá a possibilidade de nós termos a imagem de coisas que não necessariamente são no mundo. Logo, eu posso ter idéia de uma coisa que não se apresenta atualmente no mundo. O fato de me aparecer um determinado conteúdo na mente não implica que este conteúdo possui alguma contraparte existente no mundo externo. Apenas, como dito acima, que ele remete a alguma coisa distinta e independente da mente, ou do pensamento. C) Ser como uma imagem salienta o aspecto representativo e referencial da idéia, pois uma imagem é sempre imagem de alguma coisa, ou seja, ela visa algo fora dela mesma, ela remete a algo diferente de si própria. Portanto uma re-apresentação de algo. No caso aqui tratado da ideia poderíamos falar até numa dupla referência, pois além da imagem que, em si, naturalmente, já se refere a algo, o “como” usado por Descartes para caracterizar a ideia, pode muito bem indicar que não se trata de uma imagem, mas de algo que se assemelha a ela. Em outras palavras, teríamos uma referência a algo que por si só já faz referência a outro algo. A escolha dos termos usados pra definir a imagem parece assim denotar um peso em dobro a esse aspecto de remeter, de fazer referência da ideia. D) A semelhança que a ideia propõe tendo em vista principalmente A e B não é uma semelhança literal. É simplesmente o fato de fazer uma referência. Não entras em questão se é uma semelhança igual ou desigual, mas algo que parece denotar e estabelecer uma relação entre duas instâncias. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 356 Para Descartes tudo que pode existir - seja no nosso pensamento, seja no mundo físico pode ser definido como real, e tudo que é real pode existir. Logo, coisas reais são coisas que podem existir. Podemos ter tanto representações de coisas existentes no mundo físico, quanto de coisas existentes somente em nosso entendimento. Agora, cumpre afirmar que uma representação para ser considerada verdadeira não necessariamente necessita ser de coisas existentes atualmente no mundo físico, mas simplesmente de coisas que podem existir no mundo, porém existindo apenas positivamente em nossa mente. Elas são representações verdadeiras das coisas, sendo simplesmente “como se” fosse uma imagem, mas não sendo efetivamente uma. Além disso, tal imagem mesmo que não figurativa, ainda deve ser considerada imagem por conta de seu caráter representativo, de se referir a algo. É necessário ter esse algo, ter uma coisa, a ser referido. Assim, elas são representações verdadeiras de coisas, na medida em que apresentam um conteúdo como distinto da idéia e, por isso mesmo, como se fosse algo. Verificamos deste modo que nesta simples definição de idéia, encontra-se essencialmente aquilo que lhe caracteriza, seu aspecto representativo e o fato de algo estar presente no espírito, no intelecto. A idéia possui um objeto, mas este não é um corpo extenso, físico e atual como o termo objeto pode equivocadamente remeter. O objeto da ideia é seu conteúdo, um conteúdo que se apresenta ao intelecto, uma coisa existindo objetivamente no espírito76. Uma coisa que representa! Referências Bibliográficas: DESCARTES, R. Meditações Metafísicas. São Paulo: Abril Cultural, 3ª ed., 1983. (Col. Os Pensadores). 76 Entendemos aqui espírito como sinônimo de intelecto e alma. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 357 O PODER CONSTITUINTE DA MULTIDÃO EM ESPINOSA Juliane Cristina Helanski Cardoso Vania Sandeleia Vaz da Silva [email protected] RESUMO: Michael Hardt e Antonio Negri recuperam o conceito de multidão a partir da obra de Bento Espinosa, para pensar a constituição de um novo sujeito político adaptado às condições pós-modernas de vida e trabalho. Embora a multidão que vislumbram ainda não exista em todas as suas determinações concretas ou em toda a sua positividade, possui a característica fundamental de ser formada pela multiplicidade de todas as diferenças singulares das pessoas que possuem em comum o poder constituinte. Palavras-chave: Multidão; Espinosa; Poder Constituinte. Michael Hardt e Antonio Negri, no iconoclasta Multidão: guerra e democracia na era do Império, publicado em 2004 – como sequência do angustiante Império, publicado em 2000; que anos depois foi completado pelo desconcertante Commonwealth, publicado em 2009, e ainda sem tradução para o português – partem da Anomalia Selvagem espinosana, para afirmar a importância do poder constituinte da multidão, ainda que essa multidão não possua uma existência real, ou empiricamente verificável. Robert Musil (1880-1942) no caleidoscópico O homem sem qualidades conceitua utopia de um modo belo, interessante e muito apropriado, quando escreve que: Vão objetar que isso é utopia! Certamente é. Utopias significam mais ou menos que possibilidades; o fato de a possibilidade não ser realidade significa que as circunstâncias com as quais se entrelaça atualmente a impedem de se tornar real, caso contrário ela seria apenas uma impossibilidade; se a soltarmos dessas amarras, e permitirmos que se desenvolva, surgirá a utopia. É semelhante ao que acontece quando o pesquisador vê a mudança de um elemento num fenômeno complexo, e tira disso suas conclusões; utopia é a experiência na qual se observa a possível modificação de um elemento, e os efeitos que isso causa no fenômeno complexo que chamamos vida (MUSIL, 2006, p. 274, grifos nossos). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 358 Falemos das amarras. As teorias da soberania elaboradas por Thomas Hobbes (1588-1679) no seu Leviatã; John Locke (1632-1704) nos seus Dois Tratados sobre o Governo; e, Jean Jacques Rousseau (1712-1778) no seu Contrato Social; para ficarmos apenas nos principais autores e obras consultados pelos cientistas políticos, não fizeram mais do que justificar as amarras, quer dizer fundamentar teórica e filosoficamente a obediência. O jusnaturalismo e o contratualismo trataram de “fixar a legitimidade do poder” de modo a embasar teoricamente a soberania, e, assim, permitiram fundamentar a obediência e conseguiram ocultar “o problema da dominação e da sujeição”, tal como explica Michel Foucault (1926-1984) na sua aula sobre Soberania e Disciplina, ministrada em 14 de Janeiro de 1976 no curso do Collège de France: [...] nas sociedades ocidentais, desde a Idade Média, a elaboração do pensamento jurídico se fez essencialmente em torno do poder real. É a pedido do poder real, em seu proveito e para servir-lhe de instrumento ou justificação que o edifício jurídico das nossas sociedades foi elaborado. [...] O personagem central de todo edifício jurídico ocidental é o rei, é essencialmente do rei, dos seus direitos, do seu poder e de seus limites eventuais, que se trata na organização geral do sistema jurídico ocidental (FOUCAULT, 1979, p. 180181). Não surpreende que Bento Espinosa (1632-1677) esteja ausente dos currículos de Ciência Política quando os contratualistas estão presentes; sua perspectiva não é a do “rei” mas a da “multidão”. A conclusão mais imediata da leitura de seu Tratado Político é que a multidão é de meter medo a menos que esteja com medo – ideia politicamente perigosa e subversiva, que aparece literalmente no Escólio da Proposição 54, da Parte IV, da sua Ética, como nos lembra Antonio Negri, no livro A anomalia selvagem: poder e potência em Spinoza, publicado originalmente em italiano em 1981. O caso é que a teoria política espinosana salienta o tempo todo que o poder constituinte jamais deixa de pertencer à multidão, embora este sujeito político difícil de delimitar nem sempre reconheça essa atribuição inalienável. Mesmo quando explica o funcionamento da monarquia, que de acordo com as teorias clássicas sobre as formas de governo, corresponde à concentração do poder nas mãos do monarca, ou ao governo de um, Espinosa conclui, na seção 31, do capítulo VII, do inacabado Tratado Político que “o povo pode conservar sob um rei uma ampla liberdade, desde que o poder do rei tenha por medida o próprio poder do povo e não tenha outra proteção senão o povo” (ESPINOSA, 2004, p. 484). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 359 Povo foi a palavra usada para traduzir multitudinem e multitudinis, o que quer dizer que Espinosa optava por variações mais próximas de multitudo. Isso significa que a despeito do que tantos disseram sobre o poder absoluto do governante – seja um, poucos ou muitos – existe um limite intransponível ao exercício do poder: a proporcionalidade entre o poder do governante soberano e o poder dos governados, em outras palavras, o poder da multidão. Tal conclusão decorre da concepção de poder de Espinosa que aplica-se aos três gêneros de governo civil – monarquia, aristocracia e democracia – pois em todos os casos o direito natural é igual à potência, o que quer dizer que tanto os governantes quanto os governados tem direito de fazer tudo aquilo que tiverem poder para realizar, nas suas palavras. Isto ver-se-á mais claramente se considerarmos que, dizendo que cada um pode estatuir sobre um negócio que é da sua competência e decidir como quiser, este poder que temos em vista deve medir-se, não somente pelo poder do agente, mas também pelas facilidades que oferece o paciente. Se, por exemplo, digo que tenho o direito de fazer desta mesa o que quiser, tal não significa que esta mesa pode voar. Assim, também, apesar de dizermos que os homens dependem, não de si mesmos, mas da cidade, não entenderemos por isso que os homens possam perder a sua natureza e revestir-se de outra (ESPINOSA, 2004, p. 456-457). Então, ao contrário do que afirmavam os contratualistas “a política não cria nem elimina os conflitos, como não transforma a natureza humana passional” já que a instituição do campo político apenas permite lidar com os conflitos e com as paixões humanas de maneira nova; assim, a “diferença entre os regimes políticos decorre de sua capacidade ou incapacidade para satisfazer ao desejo que todos os homens têm de governar e de não serem governados” (Chauí, 2006, p. 136). Portanto, se as pessoas permanecem com a mesma natureza depois de instituída a sociedade política e isso independe do regime político, podemos concluir que mais importante do que entender como funciona cada forma de governo é compreender o que é a multidão. Ao explicitar o inalienável poder constituinte da multidão Espinosa compõe, ao lado de Maquiavel (a ética da virtú do povo em armas) e Marx (o trabalho vivo), a via maldita da metafísica política, como define Antonio Negri: a anomalia selvagem, o subversivo por excelência; e as singularidades da multitudo são traduzidas na parceria com Michael Hardt na figura mística do judaísmo: o Golem, a carne monstruosa; um deus vivo democrático, no qual a potência da multidão é definida por diferentes graus de cupiditas – desejo – constitutivas, aquilo que Espinosa chamaria de paixão constituinte da multitudo. Compreender a subversão espinosana e em que medida seu ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 360 pensamento é rebelde a partir da discrepância do caráter constituinte da multidão significa afirmar que o poder constituinte nunca se torna constituído de uma vez por todas: a multidão tem o poder de reinstituir constantemente a política (NEGRI, 1993; HARDT e NEGRI, 2004). Hardt e Negri (2004) utilizam o conceito de “multidão” em dois sentidos diferentes que remetem a diferentes temporalidades. Primeiro, a multidão de Espinosa, sub specie aeternitatis: a multidão do ponto de vista da eternidade, que, como explicava o filósofo, poderia, “através da razão e das paixões, na complexa interação das forças históricas” criar “uma liberdade que ele chama de absoluta”, pois, “ao longo de toda a história, os seres humanos têm recusado a autoridade e o comando, manifestado a irredutível diferença da singularidade e buscado a liberdade em inúmeras revoltas e revoluções” sendo que, portanto, “essa liberdade não é dada pela natureza, naturalmente; ela só se manifesta mediante a constante superação de obstáculos e limites”, pois trata-se de uma multidão que sempre age no presente – um presente perpétuo – porque desenvolveu historicamente “a faculdade de liberdade e a propensão para recusar a autoridade”, e, nesse sentido, “essa primeira multidão é ontológica, e não poderíamos conceber nosso ser social sem ela” (HARDT e NEGRI, 2004, p. 285). No segundo sentido, trata-se da multidão histórica, ou melhor, a não-ainda multidão que nunca existiu até hoje. As análises de Hardt e Negri visam demonstrar que atualmente existem condições culturais, jurídicas, econômicas e políticas que tornam possível essa multidão, mas ela só existirá por meio de um projeto político. Será concebível um sujeito político com as características da multidão? Diferente de povo, massa, classe, a multidão é múltipla; composta de inúmeras diferenças internas que nunca poderão ser reduzidas a uma unidade ou identidade única, já que estamos falando de diferentes culturas, raças, etnias, gêneros e orientações sexuais; diferentes formas de trabalho; diferentes formas de viver; diferentes visões de mundo; e diferentes desejos; pois, em resumo “a multidão é uma multiplicidade de todas essas diferenças singulares” (HARDT e NEGRI, 2004, p. 12). Poderíamos dizer que Hardt e Negri viram a mudança de um elemento num fenômeno complexo e tiraram disso conclusões? No Império perceberam a erosão da soberania nacional; no Multidão, desenvolveram a tese partilhada por Michel Foucault e Gilles Deleuze de que a resistência, que chamam de biopolítica para contrapor ao biopoder do Império, vem primeiro; no Commonwealth, conferem seriedade a tese espinosana do amor (não sensual, nem familiar, nem exclusivista, mas o amor no sentido ético e político). A multidão é “a portadora do trabalho vivo que é fonte de toda ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 361 riqueza, que constitui o mundo social e o próprio capital tal como ele se apresenta hoje no Império” pois “só a multidão cria, constitui, é inteira positividade” o que quer dizer que “só ela é dotada de um poder constituinte”; portanto, “a multidão é o conceito que permite designar a práxis coletiva, mas a efetivação prática desse conceito não se dá senão pela práxis” (SANTIAGO, 2014). Cabe lembrar que: Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram. A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime os cérebros dos vivos. E justamente quando parecem estar empenhados a transformar a si mesmos e as coisas, em criar algo nunca antes visto, exatamente nessas épocas de crise revolucionária eles conjuram temerosamente a ajuda dos espíritos do passado, tomam emprestados os seus nomes, as suas palavras de ordem, o seu figurino, a fim de representar, com essa venerável roupagem tradicional e essa linguagem tomada de empréstimo, as novas cenas da história mundial. [...] Do mesmo modo, uma pessoa que acabou de aprender uma língua nova costuma retraduzi-la o tempo todo para sua língua materna; ela, porém, só conseguirá apropriar-se do espírito da nova língua e só será capaz de expressar-se livremente com a ajuda dela quando passar a se mover em seu âmbito sem reminiscências do passado e quando, em seu uso, esquecer a sua língua nativa (MARX, 2011, p. 25-26). A multidão não é composta apenas pelos homens, nem apenas pelos trabalhadores, nem apenas pelos ocidentais, mas por todos aqueles e aquelas que são de algum modo, explorados pelo capital e que lutam pela construção de um mundo comum, todas as pessoas que, como aparece em Foucault constituem “um conjunto de resistências que engendram uma capacidade de liberação absoluta, longe de qualquer finalismo que não seja expressão da própria vida e da sua reprodução”, ou seja, os seres nos quais “libera-se a vida, que se opõe a tudo que a encerra e aprisiona” (NEGRI, 2002, p. 45). Para tanto valerá o esforço de pagar um copeque em algum sebo pela Ética de Espinosa... Bastará ler algumas páginas para que a magia aconteça, tal como ocorreu como o homem de Kiev de Bernard Malamud, citado por Deleuze: “[...] continuei como se um vento forte me impulsionasse pelas costas. Não compreendi tudo, como lhe falei, mas quando tocamos em tais ideias é como se segurássemos uma vassoura de feiticeira. Eu não era mais o mesmo homem” (2002, p. 144). Não é à toa que Espinosa é o filósofo do coração de tantos homens e tantas mulheres: ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 362 Escritores, poetas, músicos, cineastas e também pintores, inclusive leitores ocasionais podem se tornar espinosistas mas do que filósofos de profissão. É uma questão de concepção prática do “plano”. Não é que se seja espinosista sem sabê-lo. Mas, bem antes, há um curioso privilégio de Espinosa, algo que só ele parece ter alcançado. É um filósofo que dispõe de um extraordinário aparelho conceitual, extremamente avançado, sistemático e sábio; e contudo ele é, no nível mais alto, o objeto de um encontro imediato e sem preparação, tal que um não-filósofo, ou ainda alguém despojado de qualquer cultura, pode receber dele uma súbita iluminação, “um raio”. É como se a gente se descobrisse espinosista, a gente chega no meio de Espinosa, é arrastado, levado ao sistema ou a composição. Quando Nietzsche escreve: “Estou surpreendido, encantado... quase não conhecia Espinosa; se acabo de sentir necessidade dele é o efeito de um ato instintivo...”, ele não fala apenas como filósofo, e sobretudo não, talvez, na qualidade de filósofo (DELEUZE, 2002, p. 134). Referências Bibliográficas: CHAUI, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002. ESPINOSA, Bento. Tratado Político. São Paulo: Abril Cultural, 1973. ___________. Ética. São Paulo: Abril Cultural, 1973. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. São Paulo: Graal, 2012. HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. Rio de Janeiro: Record. 2001. ___________. Multidão: guerra e democracia na era do Império. Rio de Janeiro: Record, 2005. ___________. Commonwealth. Massachusetts: The belknap press of Harvard University Press, 2009. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 363 A LEGITIMIDADE DO DIREITO EM FACE DA LEGITIMIDADE DA LEGALIDADE EM HABERMAS Kátia R. Salomão 77 Cezar Augusto Lazzarotto78 RESUMO: Longe de exaurir toda a temática do problema da falta de legitimidade do direito, o presente estudo visa demonstrar como seria possível a construção de um direito legítimo, uma vez que, a ideia de direito engendrada na modernidade, está atrelada a legalidade ante o surgimento do estado de direito. Sem se desfazer dessa, a luz da teoria habermasiana da legalidade, é que se pretende demonstrar que seria possível a construção da legitimidade do direito, por meio de discursos críticos incumbidos de rediscutir o conteúdo ético-social da própria lei. Através dos desdobramentos sobre o direito em Habermas, buscou-se albergar os motivos que o levaram a repensar as bases do legalismo, ou seja, do direito. Assim, se optou em demonstrar como Habermas acredita ser possível recuperar a legitimidade jurídica, ou (re)construir um direito legítimo, uma vez que os discursos existente na comunidade jurídica, respeitem a própria racionalidade procedimental. Palavras-chave: Legitimidade do direito; legalidade; discurso racional Introdução Por que respeitamos à lei (positiva)? Seria por temor às suas sanções? Ou seria pelo simples fato de que a nossa razão imperativa nos diz aquilo que é certo de tal forma que agiríamos ou saberíamos agir de acordo com os ditames legais? Pois, em uma sociedade complexa, ou seja, ante todas as pluralidades de valores e costumes existentes no bojo social, bem como, em face da multiplicidade de poderes que nela se instauram e controlam a vida do homem (seu modo de agir Mestre em filosofia pela UNESP. Professora de Filosofia e Hermenêutica da UNIVEL— União Educacional de Cascavel. Esse artigo é fruto das discussões do grupo de pesquisa, Habermas: direitos fundamentais e emancipação social, coordenado pela Ms. Kátia R. Salomão. 78 Acadêmico de Direito da Faculdade de Ciências Sociais e Aplicadas de Cascavel- UNIVEL e participante do grupo de estudos: Habermas: direitos fundamentais e emancipação social. 77 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 364 e de pensar), como poderia a legitimidade do direito encontrar seu fundamento em uma lei geral e abstrata guiada por um princípio universal da razão pura? Todas essas questões parecem preocupar Jurgen Habermas fazendo-lhe refletir sobre elas, uma vez que, para ele algumas das principais respostas que foram construídas ao longo da história, são demasiadamente insuficientes para explicar os fenômenos sociais, ante as estruturas complexas das sociedades contemporâneas. Poder-se-ia dizer que as sociedades são complexas, na medida em que os mecanismos de poder nelas existentes começaram a se instaurar por todos os setores e instituições que integram sua estrutura, e por tanto sua base, o que fará Habermas repensar a legitimidade dos dispositivos daí decorrentes, dentre os quais o direito, que estaria cumprindo com a função estratégica de “administrar a vida” em prol da manutenção do status quo. É nesse contexto que Habermas buscará (re)interpretar as bases do direito moderno, ou seja, do legalismo jurídico. Daí que se faz necessário, “olhar o velho com os olhos do novo” 79, pois não seria mais possível repensar os fundamentos que conferem legitimidade ao direito compreendido em sua legalidade, na forma tradicional da teoria contratualista, que ainda em Kant encontra seu fundamento último na liberdade assentada no princípio do imperativo categórico. Neste sentido, poderíamos dizer que Habermas tentará reconstruir as bases do legalismo moderno, e consequentemente do Estado de direito, de tal forma que indubitavelmente fará uso da teoria clássica da filosofia política, ou seja, Habermas tenta (re)formular uma concepção de direito alicerçada na legalidade em contraponto as teorias contratualistas de Hobbes, Rousseau e Kant, sem no entanto, desfazer-se delas. A partir daí, Jurgen Habermas fará uma leitura crítica da democracia e do estado moderno, tentando encontrar em qual posição o direito se encontra na atual conjectura histórica, e principalmente, qual a função que o mesmo desempenha na era moderna para só então buscar sua real função. Deste modo, ao identificar que o direito, a legalidade, carece de legitimidade, pois que, o poder ilegítimo que emerge do sistema se (con)funde à ele, Habermas propõe um método diferente de se produzir a própria legalidade, em que teríamos necessariamente um processo racional que respeita sua própria moralidade (não convencional), capaz de garantir a atuação dos cidadãos receptores da norma e ao mesmo tempo seu legisladores, em uma esfera pública eminentemente crítica. 79 In: STRECK, Lênio Luiz. Compreender Direito: Desvelando as obviedades do discurso jurídico. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 365 Isto por que, a reconstrução habermasiana do direito moderno implica em um resgate da teoria do Estado de direito fundada nos direito subjetivos (principalmente na liberdade), sob um viés eminentemente empírico, factual, em que fatos e valores dialeticamente convergem entre si, para a partir de então se tornarem norma jurídica. Assim sendo, aquilo que conferiria legitimidade a lei, seria a perpetua revisão do seus fundamentos, ou seja, a discussão contínua da própria legalidade por meio da crítica discursiva, uma vez que, a lei não mais poderia ser compreendida como algo acabado, inerte aos efeitos do tempo e do espaço. Por isso, para Habermas qualquer concepção de legalidade que ignore as possibilidades de mudanças e adequações do legalismo as condições historicamente construídas, autorizaria a tomada do direito por um poder ilegítimo imantado de uma legalidade ilegal: a racionalidade desses discursos foi fomentada artificialmente, através dos imperativos do sistema de onde emana a razão estratégica/instrumental, com o foco de avultar sua real intenção. Habermas tentará salvar a teoria clássica contratualista e o positivismo, daí decorrente, dos paradigmas da modernidade em face de uma sociedade em crise. O antídoto para essa poluição da jurisdição pela racionalidade do sistema, ora para o filosofo alemão, estaria conectada a teoria da razão comunicativa que emana da interação dos atores civis, capazes de emitir discursos legitimadores, críticos e dialéticos. 1. Habermas e a legalidade legítima em Kant Prima face, Habermas pretende demonstrar qual é o conceito de legalidade e de direito kantiano que se encontra suspenso na teoria dos direitos subjetivos, do mesmo modo que a teoria contratualista esta alicerçada nestes direitos, como uma resposta ao modelo de estado moderno de direito desenvolvido por Hobbes (FG, 2012, v. I, p. 48). Nesse sentido, a forma de estado moderno almejado por Thomas Hobbes, suprimia os direitos subjetivos do homem, porquanto a sua própria liberdade, no âmago de garantir a paz e a ordem por meio do Estado em Leviatã. Assim, a teoria kantiana do ‘uso da razão’ autônoma representaria o reverso, isto é, uma crítica ao autoritarismo do estado absoluto. Desse modo, para Habermas (2012), em Kant a validade da norma jurídica reside nas tensões internas entre coerção e liberdade, estatuídas no direito em si. Por isso, o direito fomentado pósISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 366 contrato social se legítima na medida em que se reveste da potencialidade de usar a coerção de modo legítimo, opondo-se ao abuso das liberdades individuais: pode-se afirmar que essa é a pretensão intrínseca e legítima do direito, ou seja, a possibilidade de através do direito positivo se estabelecer regras coercitivas que possibilitem uma lei geral para a liberdade dos entes. Portanto, segundo Habermas (2012) Kant busca um fundamento imperativo para o direito, que encontra subterfúgio na ideia última de imperativo categórico, já que: As teorias contratualistas – inclusive as de cunho idealista eram demasiadamente abstratas. Elas não tinham conseguido justificar os pressupostos sociais de seu individualismo possessivo. Além disso, elas recusaram-se a reconhecer que a justiça prometida pelas instituições fundamentais do direito privado (contrato e propriedade) e pelos direitos público-subjetivos de se defender contra o estado burocrático, implicava em contrapartida uma ideia de economia em pequena escala. Ao mesmo tempo, as teorias contratuais – aprioristas ou não – eram por demais concretistas. Elas não tinham conseguido discutir suficientemente a mobilização das condições vitais e subestimado a pressão da adaptação oriunda do crescimento capitalista e da modernização em geral (FG, 2011, v.II, p.241). Diante de tal critica justifica-se a necessidade da pretensão kantiana em possibilitar, sob seu escopo teórico, uma busca pela legitimidade do direito, a partir da coercibilidade da norma ante o imperativo categórico, quando se admite que “Regras do direito estatuem condições do uso da coerção sob as quais o arbítrio de uma pessoa pode ser ligado ao arbítrio de outra, segundo uma lei geral da liberdade”. (FG, grifo nosso, 2012, v. I, p. 49). (...) Kant parte da autonomia moral das pessoas regidas pelo imperativo categórico da qual obtém o princípio do direito como uma versão do princípio liberal que garante a proteção das liberdades subjetivas de ação, por isso, ele afirma que os direitos privados concernentes à propriedade privada podem ser fundamentados a partir do único direito inato à liberdade que o homem possui já no estado de natureza, os quais devem somente ser institucionalizados através do contrato originário, embora ele não entenda que isto constitui uma limitação da vontade soberana do povo porque pensa que o povo reunido jamais legislaria contra os seus direitos fundamentais (DURÃO, 2006, p.106). A lei geral da liberdade seria desse modo, o próprio imperativo categórico. Assim o direito, per si, estaria autorizado a usar de seu poder de coerção. Todavia, caso tenha-se em mente a ideia de que existe uma liberdade natural que fundamenta o pacto social, sendo a partir do momento que o homem passou a viver em sociedade, na qual autoriza o controle de suas liberdades pelo ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 367 estado, que precisa indubitavelmente de normas ou do direito positivo, com o foco em reger eu quero, eu posso e eu devo no convívio interativo das vontades subjetivas de cada cidadão: conclui-se então que há um denominador comum na liberdade, (neste caso, o imperativo categórico kantiano que diz a todo o homem o que é certo), que autoriza per si o poder coercitivo do direito, e que limita a própria conduta ética, e a escolha correta a fazer pelos direitos fundamentais (FG, 2012). A coercibilidade se legitimaria pelo simples fato de que todo o homem é guiado por leis imperativas, sendo que a própria legalidade estaria imantada deste mesmo imperativo que não outro senão o categórico, que autorizaria a aplicação de uma sanção à quem infringisse a lei (norma jurídica). Nesta linha, Habermas conclui que o conceito kantiano de legalidade refere-se às normas do direito que “(...) são, ao mesmo tempo e sob aspectos diferentes, leis da coerção e leis da liberdade” (FG, 2012, v. I, p.49). Portanto, seriam coerção e liberdade dois componentes da efetividade do direito na concepção kantiana de validade e legitimidade, em que por mais pareçam a um olhar desatento elementos indissociáveis, em Kant são complementares. O imperativo do dever é o instrumento utilizado pelo mestre de Königsberg, no sentido de limitar a vontade e impor o dever como regra sui generis para o comportamento humano, e simultaneamente, é o que reveste o direito e sua condição legítima de existência coercitiva, onde todos se submetem ao mesmo por estarem associados numa sociável coletividade, ampliando de tal modo à liberdade a todos os entes. 2. Legalidade e sua facticidade Em que pese às anotações anteriores em relação a Kant, podemos dizer que Habermas não se desfaz totalmente daquelas lições, mas que pelo contrário, as reinterpreta sob outro enfoque. O cerne da proposta habermasiana almeja albergar (dentre outros pontos), a problemática entre a facticidade e validade do direito: essa alteração ocorre precisamente porque em FG o direito tem a ver com uma legitimidade que agora depende dos destinatários do próprio direito. Nessa problemática, Habermas (2012) corrobora com o ideário kantiano de que a coerção e a liberdade integram o direito, com a ressalva de que a validade da legalidade não se esgota tão somente sob estas duas características, vez que, Habermas acredita que a validade do direito e a ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 368 facticidade estão interligadas. Assim o que irá diferenciar a concepção de legalidade para Habermas da concepção kantiana de legalidade, é justamente a possibilidade da dimensão da validade ser suscetível à críticas, ou seja, a legalidade não teria seu fundamento no mundo abstrato da metafísica tradicional kantiana, mas sim, em contornos empíricos, em face a facticidade existente na norma, que possibilitaria sua permanente transformação através do processo critico discursivo. Com isso, Habermas tenta dar uma conotação eminentemente prática, empírica, ôntica, e acima de tudo, dialética à validade do direito, e consequentemente ao direito em sua amplitude, adversamente de Kant que ao separar e o mundo do “ser”, do “dever ser”, buscará um fundamento de validade no direito em si, compreendido a partir de um mandamento categorial emergente da razão pura: ai reside o sentido inovador do entrelaçamento de validade e facticidade para Habermas. Embora a concepção de coercibilidade em si mesma, por assim dizer, desenvolvida por Kant na medida em que o mesmo deposita suas expectativas na coesão do dever e da norma assentada no dever, em Habermas a própria legalidade está umbilicalmente ligada a facticidade. Para Habermas a validade do direito só faria sentido, desde que respeitada a sua concepção empírica de direito, compreendido na esfera da legalidade e consequentemente da validade legítima do mesmo. Em um sentido muito próximo ao das tensões entre facticidade e validade do direito que Habermas desenvolve, e talvez de forma mais simples, não raramente Lênio Luiz Streck (2013) adverte que a linguagem é meio de possibilidade para se conhecer o mundo, desvelá-lo, pois que, em suas lições entre as palavras e as coisas existe uma dupla dimensão, ao ponto de que o sujeito hermeticamente ao tentar descobrir o mundo, deve percorrer o trajeto que se desdobra entre a “realidade da ficção, à ficção da realidade”. Ou seja, poder-se-ia concluir que há mundo no texto e texto no mundo, ao passo que o próprio mundo seria a convergência entre ambas as dimensões. Ora pois, nesse sentido, parece que Habermas tenta chamar a atenção para a distância que existente entre a facticidade dos fatos e a facticidade da norma jurídica que se impõe e regula os fatos existente na sociedade que reclamam por um controle normativo. Logo, se não perdemos de vista esse binômio que parece se complementar, seria muito mais clara a ideia de como poderia uma norma conter em si, a facticidade necessária para se adequar ao caso concreto, ou seja, poderíamos entender o porquê toda norma tem a característica ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 369 de ser genérica, vez que nesse sentido, Habermas no seu desiderato de compreender o direito em Kant, nos presta valioso argumento, Ao contrário da validade convencional dos usos e costumes, o direito normatizado não se apoia sobre a facticidade de formas de vida consuetudinárias e tradicionais, e sim sobre a facticidade artificial de ameaça de sanções definidas conforme o direito e que podem ser impostas pelo tribunal. (FG, 2012, v. I, p. 50). Complementando o raciocínio alhures, é a facticidade artificial contida na norma, que confere a possibilidade de coercibilidade do poder normativo80, vez que a norma não seria uma absoluta construção metafísica sem fundamento empírico. Essa concepção de legalidade em Habermas fica mais clara quando afirma que: A positividade do direito significa que, ao se criar conscientemente uma estrutura de normas, surge um fragmento da realidade social produzida artificialmente, a qual só existe até segunda ordem, por que ela pode ser modificada ou colocada fora de ação em qualquer um de seus componentes singulares. (FG, 2012, v. I, p. 60). Habermas fomenta que a norma, a legalidade, é uma construção abstrata e geral, mas que devido seu caráter eminentemente factual, uma vez que inclinada a reger a vida em sociedade, pode ser revestida de validade, pois “(...) o sentido desta validade do direito somente se explica através da referência simultânea à sua validade social ou fática (Geltunge) e à sua validade ou legitimidade (Gultigkeit)” (FG, 2012, v. I, p. 50). Nesse ínterim, Habermas afirma que se faz necessário uma justiça eticamente guiada por um processo de diferenciação de normas e valores, ou entre respectivamente, legalidade e legitimidade. Todavia, a concordância da regra do discurso está arraigada a ideia da liberdade e igualdade entre a totalidade de seres humanos. O princípio da democracia ocidental atribui aos cidadãos à condição da unanimidade diante da justiça e indica um princípio participativo de todos aqueles dotados da posição de seres racionalmente morais. Com efeito, Habermas deposita suas Logo, seria possível buscar fundamentos para sua validade e legitimidade, vez que aqui Habermas não se desfaz do conceito de legalidade do direito de Kant, mas tenta refazê-lo, pois para Kant, normas de direito são ao mesmo tempo leis da coerção e da liberdade. Portanto, em Kant se uma norma não é coercitiva ela não pode ser válida, pois não cumpriria com a sua função de correção categórica moral, sendo que é justamente esta característica do pensamento kantiano, que Habermas irá tentar repensar sob outro viés, o que será demonstrado mais adiante. 80 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 370 crenças na concepção de democracia deliberativa, onde, toda normatização legal somente atinge a validade e a facticidade quando se torna legítima e reconhecida pelos participantes da sociedade. Habermas afirma que “(...) o sentido desta validade do direito somente se explica através da referência simultânea à sua validade social ou fática (...)”, complementando que “A validade social de normas do direito é determinada pelo grau em que consegue se impor, ou seja, pela sua possível aceitação fática no círculo dos membros do direito” (FG, 2012, v. I, p. 50). Nesse ponto é crucial perceber que Habermas está propondo que a legalidade pode ser válida quando se complementam a sua validade fática e sua legitimidade. Dito de outro modo, para uma norma ser aplicável a comunidade jurídica, ela deve ser faticamente legítima e por isso reconhecida discursivamente. Nessa ceara levanta-se a questão sobre como é possível à legitimidade do sistema jurídico (do direito) por meio da legalidade? 3. A legalidade: Habermas em busca da legitimidade Segundo Habermas (2012) a legitimidade da legalidade não se perfaz por meio de sua potesta coercitiva, sendo que para ele, pouco importa o poder de sanção da lei para que a mesma seja legitima. O direito fora fomentado no decurso de princípios universais e discursivos: o próprio contrato poderia ser entendido através da teoria habermasiana, como o momento no qual seres falantes através de uma vontade geral (rousseauniana), ou um ato interativo comum na esfera pública deliberativa, conferem legitimidade aos próprios princípios universais, que de tal situação são erigidos e que a partir dela norteiam o direito deontologicamente. Assim, seria a legitimidade jurídica um fato que não se desprende ora apenas de uma condição formal, ora através somente de um discurso prático normativo tangível à legalidade e à positivação do direito. O reconhecimento das normas legais necessariamente ocorre porque argumentativamente é constituída uma linha norteadora assentada na moralidade dos discursos práticos legais dos quais são deduzidos argumentos para a sustentação da legitimidade da lei. O ordenamento jurídico tem que estar baseado em princípios fundamentais da dimensão moral. Os discursos requerem ora proferir ora questionar ora negar a legitimidade do direito, já que são dependentes de conteúdos deontológicos compartilhados pelos indivíduos que compõe a sociedade. Portanto, o direito corrobora com as condições normativas para que o fluxo ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 371 comunicacional opere na direção de orientar o plano legal, com o propósito de conferir a esse mesmo a legitimidade desejada (FG, 2011). Por isso, afirma-se veementemente que Habermas nocauteia a perspectiva de que a lei só é legitima se for coercitiva. O curioso é que a validade jurídica significa apenas que está garantida, de um lado, a legalidade do comportamento em geral, no sentido de uma obediência à norma, a qual pode, em certas circunstâncias, ser imposta por meio de sanções e, de outro lado, a legitimidade da própria regra, que torna possível em qualquer momento uma obediência à norma por respeito à lei. Habermas ainda afirma que: “Esta análise do modo de validade do direito obrigatório traz consequências para a normatização jurídica, pois revela que o direito positivo tem que legitimar-se”. (FG, 2012, v. I, p. 52). Assim, é que Habermas (2012) propõe que a legalidade só pode ser legítima no momento em que os sujeitos deixem de ser meros espectadores de seus direitos que ficam à deriva da atividade estatal, para que possam gozar dos mesmos, e passem a atuar ativamente em uma esfera pública para de forma crítica e reivindicá-los, e mesmo, (re)construí-los. Portanto, o sistema torna-se autorreflexivo, por ter a participação dos afetados que promovem a autocorreção e o saneamento dos problemas e crises. Pois, a ideia de uma sociedade justa implica a ideia de emancipação e de dignidade humana e, para que todos tenham acesso a essas condições de justiças sociais, todos irremediavelmente devem ter sua integridade e liberdade garantidas no caráter universalista do direito, que só é realizável com a condição de promover discursos publicamente, isto é, o cidadão somente tem sua dignidade afetada positivamente quando o mesmo a constrói. Nesse aspecto é que Habermas irá fomentar sua crítica à estrutura daquilo que ele chama de ‘paradigma jurídico liberal’, pois no seu sentir o equivoco presente na construção do paradigma jurídico liberal consiste em reduzir a justiça a uma distribuição igual de direitos, isto é, em assimilar direitos a bens que podem ser possuídos e distribuídos. No entanto, os direitos não são bens coletivos consumíveis comunitariamente, pois só podemos “gozá-los” exercitando-os. (FG, 2011, v. II. p.159). Daí o sentido de Habermas afirmar que “No sistema jurídico, o processo de legislação constitui, pois, o lugar propriamente dito da integração social” (FG, 2012, v. I, p. 52.). O mesmo não está a fazer anuência ao processo legislativo convencional por óbvio, mais sim em uma forma de legislar completamente nova, em que o sujeito que é o receptor da norma, passa ao mesmo tempo a ser seu legislador, já que a influencia diretamente. Tais influências são ressoadas no ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 372 plano da esfera pública81 que deve deliberar e pensar possibilidades de problemáticas concretas, mesmo que discursivamente. Por este motivo é que Habermas não se desfaz por assim dizer das teorias contratualistas de Rousseau e Kant: (...) por isso que o conceito do direito moderno – que intensifica e, ao mesmo tempo, operacionaliza a tensão entre facticidade e validade na área do comportamento – absorve o pensamento democrático, desenvolvido por Kant e Rousseau, segundo o qual a pretensão de legitimidade de uma ordem jurídica construída com direitos subjetivos só pode ser resgatada através da força socialmente integradora da vontade unida e coincidente de todos os cidadãos livres e iguais. (FG, 2012, v. I, p 53). Poder-se-ia dizer que esta é uma concepção da democracia pensada sob bases que visão reconstruir de forma crítica a perspectiva do que significa vontade geral, buscando a real vontade de todos, até então resignificada por argumentos dogmáticos e conservadores, que de forma retórica pretendem resguardar os interesses de uma minoria burguesa82, interesse estes, que Tem-se, de acordo com o modelo de uma racionalidade guiada pela comunicação entre entes no mundo, seja o sistema ou o mundo da vida, não mais de uma natureza puramente instrumental como nos frankfurtianos da primeira geração, ou uma natureza concretamente materialista como em Marx e nos marxistas. A herança do marxismo é um mundo da vida produzido na práxis cotidiana, no qual está presente a característica instrumental ou estratégica, além da racionalidade comunicativa. Nesse sentido, o mundo da vida reproduz-se naturalmente mediante as ações orientadas para o entendimento recíproco, que está direcionada inicialmente a objetivos instrumentais, com os quais os falantes movem-se no mundo. As ações instrumentais estão entrelaçadas com as comunicativas, ao passo que se torna observável na execução dos planos dos outros participantes da interação, mediante definições identificáveis entre as pretensões de validade em processos de entendimento recíproco. Assim, a teoria da ação comunicativa considera que a reprodução simbólica do mundo da vida é retroativa e internamente acoplada com sua reprodução material. O mundo da vida reproduz-se pela linguagem que funciona como um mediador da interação entre os seres racionais. Promove a ação orientada para o entendimento recíproco unido aos processos materiais da vida, ou seja, em vista de ações estratégicas entrelaçadas com a racionalidade comunicativa. Apresenta, dessa forma, a execução de planos dos participantes do discurso, em que o outro da razão intervém na ação racional ou na ação direcionada a objetivos. Para tanto, segundo Habermas, qualquer argumento quando ainda não atingiu um consenso fático, encontra no mundo da vida um contra argumento, sendo isso um movimento inerente à racionalidade comunicativa, cujos critérios são estabelecidos pelo conjunto de regras às quais se conformam os agentes comunicativamente competentes. A competência comunicativa nada mais é que o domínio das regras para levantar e sustentar diferentes tipos de pretensões de validade, o que pressupõe que diz respeito tanto ao aspecto cognitivo (domínio das regras de gerações formais, lógicas – Piaget), quanto ao linguístico (a competência linguística de Chomsky, isto é, o domínio das regras para produzir gramaticalmente sentenças bem formadas), e ao aspecto interativo (a capacidade de dominar regras relativas às formas de interação sempre mais complexas – Kohlberg). 82 Neste sentido impõe-se a visão de Marx quanto à legalidade, como sendo um instrumento apto a garantir o sucesso da classe burguesa. (Villey, 2008). Mesmo por que segundo Villey (2008, p.171): “(...) Locke confessava que o contrato social era estabelecido em benefício dos proprietários”. 81 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 373 falsamente era ou são interpretados como a vontade geral83. Neste sentido, Habermas parece dar uma resposta àqueles que veem na legalidade um mero instrumento de dominação de classe, ou do poder instrumental e estratégico da razão, como, a saber, na teorização de Roberto Lyra Filho, segundo quem: A lei sempre emana do Estado e permanece, em última análise, ligada à classe dominante, pois o Estado, como sistema de órgãos que regem a sociedade politicamente organizada, fica sob o controle daqueles que comandam o processo econômico, na qualidade de proprietários dos meios de produção. (Lyra Filho, 1997, p.8). Nessa esteira Habermas pretende que: Na medida em que os direitos de comunicação e de participação política são constitutivos para um processo de legislação eficiente do ponto de vista de legitimação, esse direitos subjetivos não podem ser tidos como os de sujeitos jurídicos privados isolados: eles têm que ser apreendidos no enfoque de participantes orientados pelo entendimento, que se encontram numa prática intersubjetiva de entendimento (FG, v. I, 2012, p. 53). A lei não emanaria propriamente do Estado sem qualquer questionamento, problematização ou conflitos dialéticos discursivos, como no entendimento de Lyra Filho, e tantos outros inundados pela visão do materialismo histórico, da [des]razão niilista, dos discursos dos pós-modernos e dos pensadores frankfurtianos como Adorno e Horkheimer. Segundo Habermas a legalidade não ocorreria ao seu bel prazer largada aos azares do arbítrio de quem à cria, mas necessariamente a positividade resultaria de uma vontade legítima em face da malgrada “(...) autolegislação presumivelmente racional de cidadãos politicamente autônomos” (FG, v. I, 2012, p. 54). Habermas (2012) adverte que em Kant o princípio da democracia era carente de uma de uma participação política consensual dos cidadãos. O mesmo princípio da liberdade invocado pelos revolucionários burgueses da Revolução Francesa para se chegar ao poder, agora é reinterpretado por Habermas, sob um viés emancipatório social, que pode encontrar sustentabilidade na legalidade racionalmente e moralmente desenvolvida que respeite seu próprio processo de formação em uma esfera pública ativa, que faz jus de seus direitos fundamentais no Daí que Engels sedimenta severa crítica a democracia que tem por escopo a teoria do contrato social no sentido de que (...) o moderno Estado representativo é o instrumento da exploração do trabalho assalariado pelo capital”. (2009, p.212). 83 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 374 seio de um Estado Constitucional. Nesse mesmo aspecto, Habermas sustenta que: “A liberdade comunicativa dos cidadãos pode, como vimos, assumir na prática da autodeterminação organizada, uma forma medida através de instituições e processos jurídicos, porém não pode ser substituída inteiramente por um direito coercitivo (FG, 2012, v. I, p. 54). Deste modo, Habermas propõe uma legitimidade à legalidade adversa daquela imposta através do poder coercitivo do direito, que é pouco exposta às críticas, e não raras vezes, encontra justamente por isso, sua legitimidade em um poder simbólico84. Assim, Habermas oferece uma resposta ao poder ilegítimo imposto de fora dos mecanismos do direito, ao passo, que segundo Habermas (2011 v.II, p. 61.): “No Estado de direito a prática da autolegislação dos cidadãos assume uma figura diferenciada institucionalmente”, por que: Sociedades modernas são interligadas não somente através de valores, normas e processo de entendimento, mas também sistematicamente, através de mercados e do poder administrativo. Dinheiro e poder administrativo constituem mecanismos da integração social, formadores de sistema, que coordenam as ações de forma objetiva, como que por trás das costas dos participantes da interação, portanto não necessariamente através de sua consciência intencional ou comunicativa. A “mão invisível” do mercado constitui, desde a época de Adam Smith, o exemplo clássico para esse tipo de argumentação (FG, 2012, v.I, p. 61). Essa problemática emerge segundo Habermas (2011) no momento que a potencialidade da mobilização comunicativa de argumentos racionais, é controlada de forma estratégica para ser inacessível aos cidadãos, gerando normas e valores autoritários que permanecerão imunes ao processo de problematização e discussão para que se alcance o entendimento sobre os mesmos. Portanto, Habermas arremata que: (...) a legitimidade pode ser obtida através da legalidade, na medida em que os processos para a produção de normas jurídicas são racionais no sentido de uma Neste sentido Campello em célebre artigo faz as seguintes observações: “(...) IHERING: [...] a preponderância do poder inclina-se para o lado do direito, e a sociedade pode ser designada, por consequência, como o mecanismo de autorregulação da força conforme o direito.” E mais adiante em analise aos argumentos de Pierre Bourdieu no sentido de que este poder se legitimaria justamente pela falta de questionamento, quanto sua legitimidade e conteúdo. Assim segundo Bourdieu, “O que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da competência das palavras”. Arrematando Campello que “(...) os conteúdos do Direito são controlados pelo próprio estado, ao limitar o campo de debates, os atores deste debate e a duração do debate, com a apresentação, de uma ‘certeza’ pelo Estado-Juiz.” (Grifo Nosso). CAMPELLO, André Emmanuel Batista Barreto. O Poder Simbólico do Direito: Uma Introdução ao Estudo do Direito pela Obra de Pierre Bourdieu. 84 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 375 razão prático-moral procedimental. A legitimidade da legalidade resulta do entrelaçamento entre processos jurídicos e uma argumentação moral que obedece à sua própria racionalidade procedimental (2011, v. II, p. 203). Ora, o que Habermas pretende é uma legalidade que deve ser exposta a um processo crítico quanto suas normas e valores, que possa ser examinada por seus receptores em uma esfera pública, pois só assim seria possível falar em uma legalidade legítima, uma vez que segundo Habermas (2012, v. I, p. 62): “Com muita frequência o direito confere aparência de legitimidade ao poder ilegítimo”. O enfoque habermasiano não despreza que o sistema conta com anomias e crises estratégicas e instrumentais que bloqueiam e impossibilitam o reconhecimento e legitimidade dos conteúdos normativos. Com isto, pode-se dizer que Habermas pretende superar os paradigmas do direito a partir de uma compreensão procedimentalista do fenômeno jurídico em que: No estado de direito delineado pela teoria do discurso, a soberania do povo (...) se retira para os círculos de comunicação de foros e corporações, de certa forma destituídos de sujeito. Somente nessa forma anônima, o seu poder comunicativamente diluído pode ligar o poder administrativo do aparelho estatal à vontade dos cidadãos (FG, 2012, v. I, p. 173). 4. A formação legítima do direito ante a compreensão procedimental do fenômeno jurídico: Habermas contra a legalidade ilegítima O que parece perturbar Habermas é a forma como o moderno sistema de direitos se apresenta ante uma sociedade que se estrutura de forma complexa. Complexa, pois, o Estado do bem estar social, não pode (ou não pôde) dar conta na atual conjectura histórica, de cumprir com seu fim último de garantir uma ‘vida boa’ aos cidadãos, devido à vasta gama de exigências sociais e políticas que lhe foi imposta, e em face sua própria estrutura que se volta para tal fim. Um dos efeitos indesejáveis de tal sorte é a redução da soberania estatal, onde a razão instrumental é utilizada pelas grandes corporações motivando a deliberação política, do próprio Estado, em benefício a finalidades obscuras e estratégicas do sistema. Assim, o poder público contamina-se pela racionalidade que emana do mercado, em que as responsabilidades típicas do estado mínimo, não conseguem atingir o público, contudo realizam o reverso: atingem o privado, que irá ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 376 culminar na fragilidade da lei parlamentar, bem como no crepúsculo pelo qual passa o princípio da separação dos poderes, é justamente a tomada do Estado pelo sistema85. O pivô da atual crítica ao direito, num Estado sobrecarregado com tarefas qualitativamente novas e quantitativamente maiores, resume-se a dois pontos: a lei parlamentar perde de cada vez mais seu efeito impositivo e o princípio da separação dos poderes corre perigo (FG, 2011, v.II, p. 173). Nesse aspecto, Habermas coaduna com Dworkin em relação ao alerta das decisões pautadas em princípios da política, contaminada pela racionalidade meios e fins, em menosprezo pela realização dos direitos fundamentais do cidadão. Segundo Dworkin, a justiça “é uma questão de direito individual, não, isoladamente, uma questão de bem público" (DWORKIN, 2009, p. 39). Desta feita, Habermas está preocupado com o fato de que o poder ilegítimo por intermédio do discurso se institucionaliza, e administra as formas de vida, podendo, inclusive, agir de acordo com o direito. Isto ocorreria ante uma “administração da vida” que por derradeiro, se apossa ou se adequa ao direito, revestindo-lhe de ilegitimidade. Nessa mesma vertente as considerações de Zizek (2008, p.119) esclarecem que para Habermas, “(...) seria o projeto moderno de liberdade (política) uma falsa aparência cuja ‘verdade’ é corporificada por sujeitos que perderam até o último vestígio de autonomia por estarem imersos no ‘mundo administrado’ do capitalismo recente (...).”. Ainda para Habermas (2012, v. I, p.201): “O modo como nós nos apropriamos das tradições e formas de vida nas quais nascemos e como as continuamos seletivamente decide sobre quem nós somos e queremos ser enquanto cidadãos”. Em face de tal problemática, da tomada de poder do Estado pelo sistema (dinheiro e a administração), adverte que a lógica do discurso não pode ser reduzida aos procedimentos institucionalizados no Estado constitucional. Partindo dessa problemática, Habermas irá ver no princípio do discurso uma provável saída desse paradigma, vez que, Habermas (2011) crê que com a guinada analítica da linguagem86 a partir Quanto ao conceito de sistema, Freitag adverte que “Trata-se, neste caso, de dois subsistemas da sociedade que desenvolvem certos mecanismos autorreguladores: o dinheiro e o poder (...)”. (FREITAG, 1995, p. 15 grifo do autor). 86 Neste ponto, Habermas se refere a superação entre a relação sujeito e objeto que não mais pode ser sustentada, vez que o que existe em verdade é uma relação entre sujeito-sujeito, que de forma intersubjetivamente constroem o real. Assim Habermas afirma que “As ideias passam a ser concebidas como incorporadas na linguagem, de tal modo que a facticidade dos signos e expressões linguísticas que surgem no mundo, liga-se inteiramente com a idealidade da universalidade do significado e da validade em termos de verdade.” (FG, 2012, v.I, p.55). Nesse sentido, ver também STRECK, Lênio Luiz. Compreender Direito desvelando as obviedades do discurso jurídico. 85 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 377 das teorias de Frege e Peirce, seria possível romper com o paradigma da deslegitimidade do direito a partir de uma compreensão procedimentalista do fenômeno jurídico. Desse viés, Habermas (2011) afirma que o princípio do discurso tem a incumbência de garantir um consenso não-coercitivo (adversamente da lei compreendida em sua forma convencional), por meio de procedimentos que garantam a imparcialidade no momento deliberativo do entendimento sob determinada norma jurídica. Portanto, para Habermas (2011), a partir de um procedimento democrático com caráter discursivo voltado ao entendimento para a formação da vontade em uma esfera pública política, seria possível fundamentar a legitimidade do direito. Pois adversamente da do discurso moral, o discurso jurídico possuiria segundo Habermas (2012) uma aptidão para deliberar sobre as vontades particulares de cada cidadão em concomitância com sua vontade geral, servindo segundo Habermas como uma ferramenta mediadora. Nesse sentido, com A Crise de Legitimação no Capitalismo Tardio, Habermas (1999) procura demonstrar que questões práticas podem ser tratadas discursivamente, sendo possível observá-las empiricamente, para propor uma avaliação da relação entre sistema e legalidade voltada para a juridificação e legitimação87. Com isso, se materializa a necessidade de conceber o direito ora como um mediador das temáticas que são problematizadas discursivamente, ora como um tradutor da linguagem sistêmica, que desdobra-se nesse movimento contínuo mantenedor da troca de conteúdos entre as esferas sociais. Essa alteração ocorre precisamente porque em FG o direito tem a ver com uma legitimidade que agora depende dos destinatários do próprio direito. Em que pese a aparente discrepância entre vontade geral e particular, se ressalta que Habermas não interpreta esse ponto sob uma ótica de contradição indissolúvel, mas ao reverso, ele compreende que aquilo que for deliberado como sendo de interesse de uma vontade geral, deve necessariamente albergar todas as possibilidades de escolhas frente à pluralidade de vontades emanadas dos membros da comunidade jurídica. Assim sendo, Habermas versa que: Se a negociação de compromissos decorrer conforme procedimentos que garantem a todos os interesses iguais chances de participação nas negociações e na influenciação recíproca, bem como na concretização de todos os interesses envolvidos, pode-se alimentar a suposição plausível de que os pactos a que se chegou são conforme a equidade. (FG, 2012, v. I, p. 208). 87 Habermas, 1999, p.93-94 e 149. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 378 Este método seria segundo Habermas (2011), o que melhor se adaptaria a uma sociedade complexa, que devido a sua pluralidade de interesses e valores, clama por um procedimento que respeite sua racionalidade ético-social capaz de garantir a participação política de todos os cidadãos e fazer frente ao poder ilegítimo que se reveste de forma jurídica por meio da legalidade. Em última análise, o método procedimentalista do direito almejaria: (...) impedir, em última instancia, que um poder ilegítimo se torne independente e coloque em risco a liberdade, não em temos outra coisa a não ser uma esfera pública desconfiada, móvel, desperta e informada, que exerça influência no complexo parlamentar e insiste nas condições da gênese do direito legítimo. (FG, 2011, v. II, p. 185). Data máxima vênia, poderíamos arrematar que Habermas tenta salvar o Estado de direito e própria democracia de sua falta de legitimidade, no âmago de reconstruir de forma crítica as bases de um direito à mercê do poder ilegítimo. Conclusão A forma como se buscou compreender o direito subjetivo, ou seja, a liberdade, que encontra seu ponto máximo na teoria kantiana do livre arbítrio, se tornou no decurso da história insuficiente para fundamentar o direito e garantir-lhe a legitimidade. Uma vez que julgarmos que aonde está a sociedade está o direito, (ubi jus, ibi societas), por derradeiro que todas as complicações que afetam a sociedade indubitavelmente irão afetar o direito. Assim é que o modelo tradicional de estado de direito emergente da revolução francesa, tem seu fundamento nos direitos naturais, subjetivos, do homem, a exemplo da liberdade.Ora pois, Kant comete grave equívoco ao separar o mundo do ser do dever ser, o mundo dos fatos do mundo das normas, pois o direito como no dizer de Villey (2008), é um fenômeno essencialmente dialético que está em permanente transformação. Ademais, Habermas tenta demostrar essa característica do direito, que se torna essencial para uma compreensão do fenômeno jurídico na era moderna, pois em sociedades complexas não é possível fazer uma leitura da legalidade e por consequente do direito, sob uma ótica exclusivamente metafísica. A razão, a lei moral, não gere a si mesma, pelo contrário, ambas estão ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 379 submersas a facticidade do mundo: facticidade que a partir da vidada linguística é concebida discursivamente na interação dos falantes. Assim, uma vez que revestida a norma de conteúdo fático, a sua instrumentalização passa a ser possível. No entanto, o conceito de racionalidade em Habermas abandona a premissa da axiologia, aderindo à condição dialógica: a racionalidade da lei pode ser tanto instrumental/estratégica quanto assentada na razão comunicativa, sendo que com base nesta última, seria possível a construção legítima do direito. Legítima, pois o direito não raras as vezes tem conferido falsa legitimidade a leis, pelo contrário, essa “leis” muitas vezes são conflitantes com o sistema de direitos a ponto de infringi-los. Ora, uma vez que o legalismo surgiu na história com o desiderato foco em garantir os direitos fundamentais do cidadão contra os arbítrios do ‘estado Leviatã’, não faz sentido que a lei seja usada pelo sistema (administração e poder) de modo a lesar gravemente esses mesmos direitos. Em um Estado que se titula democrático de direito, a lei não pode ser uma faca de dois gumes para o cidadão hipossuficiente em relação ao estado e o sistema. Eis aí o a razão da existência do estado: garantir, proteger e efetivar os direitos fundamentais em face dos paradigmas sociais. Nesse aspecto, fica claro que para Habermas o direito cumpre com uma dupla função na modernidade: de um lado, serve de instrumento para quem detêm o monopólio do poder, que usa de seu poder coercitivo e de sua consensualidade (não sou obrigado a fazer nada que a lei não mande, ou deixar de fazer o que ela me autoriza) para garantir a ordem social estabelecida, enquanto que de outro lado, a legalidade tem o fim último de frear os arbítrios do estado para proteger, e materializar o próprio direito. Eis o paradigma do direito. Desta feita, é que as formas de racionalidades existentes nas sociedades passam a ser as peças chave para fundamentar a legitimidade do direito, pois se tivermos em mente que o fim do mesmo reside na manutenção do status quo, então devemos pugnar pelo uso da razão instrumental para tal, vez que sua dimensão é desprovida de críticas, logo imune a processos dialéticos que eclodem em transformações, mas se do contrário, julgarmos que o fim do direito é garantir e “dar vida” as palavras insculpidas na constituição de um Estado Democrático de Direito, então o mesmo deve necessariamente ser guiado por uma racionalidade comunicativamente e discursivamente amoldada, que permite a permanente transformação do direito em uma esfera pública, por processos discursivos críticos emitidos pelos destinatários finais da lei: o povo. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 380 Referências Bibliográficas: CAMPELLO, André Emmanuel Batista Barreto. 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ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 382 O ENSINO DE FILOSOFIA E O ATO DE FILOSOFAR SEGUNDO MARTIN HEIDEGGER Katyana Martins Weyh Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE Programa de Estudos Tutorados – PET, Filosofia [email protected] Orientador: Prof. Dr. Roberto S. Kahlmeyer-Mertens RESUMO: A presente comunicação se empenha em compreender como a filosofia de Martin Heidegger (1889-1976) torna pensável o ensino de filosofia na atualidade. Sabemos que este filósofo alemão é vinculado à escola da fenomenologia e, com base nessa, desenvolve uma análise da realidade humana com nome de analítica existencial. É exatamente a luz desta análise que pretendemos investigar como Heidegger interpretaria o ato de ensinar filosofia. A questão que nos propomos investigar vai ao encontro da ideia de Heidegger segundo a qual o ser-aí já se encontra na filosofia e que é de sua essência que enquanto existimos filosofamos. Ponderamos que, a partir de algumas indicações dadas pelo próprio Heidegger, em textos diversos, possamos investigar também em que medida a fenomenologia heideggeriana se relaciona com o ensino da filosofia e do ato de filosofar. Assim, julgamos poder sustentar a hipótese de que – mesmo que Heidegger não seja considerado um “teórico da educação” – suas contribuições são importantes e influentes na intersecção entre a filosofia e a educação, bem como ao ensino da primeira. Palavras-chave: Heidegger; educação; filosofia contemporânea; fenomenologia Martin Heidegger é reputado como um dos mais reconhecidos filósofos da contemporaneidade, além de ter contribuído consideravelmente como professor na Universidade pública de Freiburg, na Alemanha. Sua carreira como docente começou em 1919, antes da publicação de sua obra mais renomada, a saber: Ser e Tempo. Segundo Hannah Arendt, Heidegger marcou o ensino e o estudo da filosofia de sua época, uma vez que orientou seus seguidores a uma nova forma de pensar, através da derrocada da metafísica, onde enfatizava que o ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 383 pensamento deve ocupar-se de problemas como o do sentido do ser, que estava preso à história da filosofia de maneira inveterada. (ARENDT, 2001) No período em que se ocupou da profissão de professor, Heidegger tinha o intuito de mostrar aos seus discentes que deveriam conhecer minimamente os traços principais da filosofia, para que pudessem ter um conhecimento historiográfico do pensamento até então. Ele reconhecia que “seria um grande equívoco pensar que sempre poderíamos conformar a filosofia a partir de uma recusa completa da tradição filosófica” (HEIDEGGER, 2008, p.5). No entanto, um conhecimento historiográfico não é o suficiente quando tratamos de filosofia, pois o objetivo principal desta disciplina é ocupar-se dos problemas intrínsecos ao âmbito filosófico. Devido a isso, cabe aqui dizer que “Heidegger nunca pensa “sobre” algo, ele pensa algo.” (ARENDT, 2001, p. 133). Assim, notamos que Heidegger tem por objetivo reunir estes aspectos para que seja possível o ensino da filosofia. Através da tradição filosófica, o ser-aí compreende de forma panorâmica e em traços principais, os filósofos e a história da filosofia, o que contribui para um conhecimento historiográfico, porém, não é apenas a história que contribui para o ensino de filosofia. Há a necessidade de um caráter sistemático, que é capaz de revelar os traços mais importantes que devem ser destacados no âmbito histórico, para que seja possível verificar como as disciplinas são coordenadas entre si e como formam um sistema. Portanto, para que seja possível o ensino de filosofia, é necessário que se tenha um aspecto historiográfico e sistemático, e que esses dois aspectos se complementem de forma harmoniosa (HEIDEGGER, 2008). Além disso, o fato de nos atermos à tradição filosófica é necessário para que tenhamos uma précompreensão da filosofia, esta que já nos é necessária e essencial. Sendo assim, Heidegger acredita que todo ser-aí humano tem em si a possibilidade do filosofar, e que embora isso não se dê naturalmente, apenas o ser-aí tem essa possibilidade, uma vez que somente o homem tem consciência de mundo e copreensão de ser. É assim que podemos entender em que medida a filosofia pertence a nós, tanto quanto nós pertencemos a ela: Mesmo que não saibamos expressamente nada sobre filosofia, já estamos na filosofia porque a filosofia está em nós e nos pertence; e, em verdade, no sentido de que já sempre filosofamos. Filosofamos mesmo quando não sabemos nada sobre isso, mesmo que não “façamos filosofia”. (HEIDEGGER, 2008, p. 3) ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 384 À vista disso, podemos compreender que o fato de uma pertencer a outra e vice-versa, se dá, pois a ideia que o filósofo sustenta é de que enquanto existimos, filosofamos, e que o ato de filosofar não se dá de forma intermitente, mas sim, de forma constante e necessária. Entretanto, o que Heidegger nos mostra é que o filosofar é uma possibilidade de todo homem, o que não significa que todo ser-aí tem em si um caráter filosófico. O homem possui a condição de possibilidade para o filosofar, porém, é uma escolha de cada ser-aí, aceitar ou não o exercer do ato filosófico. Heidegger especifica essa ideia através de sua analítica existencial88, onde descreve o homem como um ente privilegiado ontologicamente, como sendo capaz de filosofar, - diferente de todos os demais entes - que estão apenas no domínio ôntico. Devido a isso, Heidegger afirma que nem os animais, nem Deus pode filosofar, apenas o homem, isso porque a filosofia é uma possibilidade de um ente finito que compreende ser. (HEIDEGGER, 2008). É nesse sentido, que a fenomenologia heideggeriana e mais especificamente a analítica existencial vão de encontro com a ideia do filósofo a respeito de um possível ensino de filosofia e do exercer do ato filosófico. Heidegger acredita que o homem, por ser esse ente privilegiado tem a possibilidade de compreender ser, compreender mundo e compreender os problemas filosóficos. Cabe apenas ao homem, que é este ente que abre mundo e que tem consciência, a possibilidade do filosofar e mesmo que não exista uma escolha a fim de colocar em movimento a filosofia, ela já se encontra em cada ser-aí, de forma “adormecida”. No entanto, devemos entender de que forma essa filosofia reside no ser-aí e de que maneira ela acontece, pois assim podemos compreender o percurso do ato de filosofar. Para Heidegger, todo ser-aí tem a possibilidade de filosofar, porém, para que seja possível colocar o filosofar em movimento, o ser-aí precisa de uma introdução à filosofia, a fim de libertar essa filosofia que se encontra adormecida no nosso ser. O filósofo quer dizer com isto, que para colocar a filosofia em curso, ou seja, deixar que o movimento do filosofar aconteça em nós, precisamos, antes de tudo, acolher a liberdade daquilo que deve se tornar algo livre em nosso seraí. Mas de que forma realizar tal tarefa? Heidegger responde: Para elaborar e desenvolver uma ontologia fenomenológica, Heidegger indica uma condição necessária para a recolocação da pergunta pelo sentido do ser, esta condição: uma análise do ente que pode compreender e questionar ser. 88 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 385 Não podemos ser de modo algum transpostos para o estado do filosofar por meio de um truque qualquer, uma técnica ou um passe de mágica. A filosofia deve tornar-se livre em nós, ela deve tornar-se a necessidade interna de nossa essência mais própria, de modo a conferir a essa essência a sua dignidade mais peculiar. No entanto, é preciso que venhamos a acolher em nossa liberdade aquilo que deve se tornar livre em nós dessa maneira: nós mesmos precisamos tomar e despertar livremente o filosofar em nós. (HEIDEGGER, 2008, p. 5) Desse modo, entende-se que enquanto a filosofia não se encontra livre em nós, não há, de fato, o movimento filosófico, o que faz Heidegger investigar de que maneira se dá o essa ação. Embora o ser-aí esteja aberto para a possibilidade do filosofar, e que acolha enquanto uma escolha este movimento, há a necessidade de um modo de pôr o filosofar em curso, de forma que a filosofia aconteça em cada ser-aí. É neste ponto, que o autor coloca a importância de uma “introdução à filosofia”. Porém, há de se tomar cuidado com relação ao termo introdução, uma vez que, o filósofo não tem pretensão alguma de mostrar que há a necessidade de conduzir o seraí para dentro do âmbito filosófico, visto que nenhum ente privilegiado ontologicamente encontra-se fora dele. Isso implica que, quando Heidegger faz menção ao termo introdução à filosofia, quer mostrar que o ser-aí carece desse meio para colocar o filosofar em curso, ou seja, deixar o movimento do filosofar acontecer em nós. Todavia, para que seja possível o filosofar, não basta uma introdução, mas também, uma atenção à história da filosofia em geral. Aqui Heidegger enfatiza que neste período inicial do ensino de filosofia, o que deve ser levado em conta são “os contornos mais salientes” da tradição história, e não os “problemas intrínsecos ao âmbito filosófico” (HEIDEGGER, 2008). Desta forma, é notória a visão do filósofo sobre a importância da tradição filosófica, uma vez que, não é possível filosofar a partir de uma recusa total da historicidade. Além disso, Heidegger mostra que o ensinar é mais difícil do que aprender. Isso acontece, não porque o mestre professor tem que estar a disposição dos aprendizes e ter domínio de um maior conhecimento para assim poder passar o conteúdo filosófico, mas sim porque o mestre é incumbido da tarefa de ensinar o aprendiz a “deixar aprender”. Isso nos mostra que o mestre professor tem o encargo de ensinar o aluno a aprender nada mais do que o aprender. Contudo, Heidegger acredita que mesmo que o professor tenha uma tarefa mais difícil que o aluno, o mestre aprende mais do que o seu próprio aprendiz (QUÉ SIGNIFICA PENSAR? p. 20). Dessa forma, é possível perceber além de mostrar que a partir da abertura e compreensão de mundo, o ser-aí tem a possibilidade do filosofar, o filósofo deixa explícito como se dá esse ato ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 386 e o que é necessário para despertar a filosofia, que em nós se encontra “adormecida”. Além disso, podemos compreender a posição do filósofo também com relação ao momento do ato de filosofar, como ele acontece e por quê. A partir de uma correspondência de Hannah Arendt à Martin Heidegger em setembro de 1969, quando ele havia completado oitenta anos, podemos ter ideia de como o professor Martin tinha alcançado sucesso. Porém, para ele esse fato não era relevante, uma vez que deixa evidente sua ideia a respeito da distinção entre ser mestre e ser um docente afamado. O filósofo recusa a ideia de que o professor deve ter uma influência autoritária, muito pelo contrário, Heidegger acredita que ser mestre é algo sublime, uma vez que o mestre deve ser capaz de ser humilde e ter uma relação autêntica com seus aprendizes. Sendo assim, o papel do professor é necessário para que exista uma introdução à filosofia, porém, todo ser-aí que aceita a liberdade de colocar seu filosofar em curso, carece de uma condição indispensável para este movimento: Originariamente é o próprio espanto que produz e propaga o silêncio, e é por causa do silêncio que o resguardo contra todo o ruído, também contra o ruído da própria voz, torna-se condição indispensável de que um pensamento possa se desdobrar a partir do espanto. (ARENDT, 2001, p. 137) Essa condição indispensável para o movimento do filosofar se dá de forma individual e silenciosa após o espanto. Após aceitar a filosofia e deixar-se aprender, de forma a unir uma introdução historiográfica a uma introdução sistemática, o ser-aí está colocando o filosofar em curso, de modo que coloca em movimento o ato do filosofar. Assim sendo, é notória a contribuição de Heidegger para a educação, principalmente quando falamos em “ensino de filosofia e ato de filosofar”, pois mesmo que ele não seja considerado um teórico da educação, suas contribuições como docente e pensador da filosofia, são de suma importância para a compreensão do papel do professor, da introdução à filosofia e do modo como o filosofar é posto em curso. Portanto, a principal meta deste trabalho foi compreender como a filosofia de Heidegger pensa a questão do ensino de filosofia e do ato de filosofar. Além disso, buscamos entender em que medida a análise da realidade humana, embasada na fenomenologia, contribui para colocar o filosofar em curso. Com isso, nosso artigo se justifica em sua relevância por conter, em seu tema, questões importantes no âmbito da educação que são discutidos na atualidade e que se mostram como temáticas interessantes a se pensar no curso de Licenciatura em Filosofia. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 387 Referências Bibliográficas: ARENDT, Hannah. Hannah Arendt - Martin Heidegger: correspondência 1925/1975. Rio de Janeiro: Ed. Relume Dumará, 2001. HEIDEGGER, Martin. Introdução à Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2008. ___________. Introdução à Metafísica. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1987. ___________. Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo – finitude – solidão. Rio de Janeiro: Foreuse Universitária, 2003. ___________. Qué significa pensar? Trad. Haraldo Kahnemann. Buenos Aires: Nova, s/d. ___________. Ser e tempo. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2002. KAHLMEYER-MERTENS, Roberto S. Heidegger & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 388 A INTUIÇÃO INTELECTUAL EM SCHELLING: A TENTATIVA DE MEDIAÇÃO ENTRE O DOGMATISMO E O CRITICISMO Kayenne Cristine Ferigotti Santos Vosgerau Universidade Estadual do Centro-Oeste – UNICENTRO Programa de Estudos Tutorados – PET, Filosofia [email protected] Orientador: Prof. Dr. Manuel Moreira da Silva RESUMO: Trata-se de uma explicitação da intuição intelectual tal como exposta na oitava carta, das Cartas Filosóficas sobre o Dogmatismo e o Criticismo (1795) de Schelling. Tematiza-se em que medida a concepção inicial da intuição intelectual em Schelling se mostra enquanto uma tentativa de mediação do dogmatismo e do criticismo, na medida em que estes são os dois modos possíveis do conhecimento do Absoluto tematizados nas Cartas. Para isso, Schelling retoma a Doutrina da Ciência de 1794 e confronta-a com a Ética de Espinosa precisamente no que diz respeito à intuição intelectual. A questão que daí emerge se apresenta, pois, a Schelling no âmbito de certa complementaridade dos dois modos da intuição, isso enquanto cada um deles, para o filósofo, exprime um aspecto determinado da estrutura mesma do Absoluto. Palavras-chave: Intuição intelectual; Schelling; dogmatismo; criticismo; Cartas filosóficas Para Schelling neste momento inicial de sua produção filosófica o Absoluto não é senão a unidade originária de sujeito e objeto, pois quanto à estrutura da intuição intelectual do Absoluto esta significa aqui os dois modos de intuição, tanto a intuição de si mesmo, tal como apresentara Fichte em sua Doutrina-da-Ciência de 1794, quanto à chamada intuição objetivada – termo utilizado por Schelling para referir-se à concepção espinosana da intuição intelectual da substância ou de Deus, presente na Ética; nesse sentido, a noção de intuição intelectual nas Cartas é apresentada enquanto tentativa de unificação do dogmatismo por um lado e do criticismo por outro, sendo esses os dois possíveis do conhecimento do Absoluto. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 389 Sobre a influência de Fichte na filosofia do jovem Schelling esta é fundamental, devido à óbvia referencia a este. Mas, se Schelling interpretasse a intuição intelectual apenas pela intuição de si mesmo, afirmando que esta seria a base da intuição intelectual do Absoluto, a qual constituiria o ponto de partida da passagem do finito para o infinito, deveria afirma-se também, que a intuição objetivada mostrar-se-ia como um certo desdobramento da intuição de si mesmo, que não obstante não se elevou à consciência de si mesma. Schelling, até certo ponto reconhecesse que, para Fichte, só pode haver objeto de uma intuição intelectual do eu enquanto este é consciente-de-si, caso em que nunca pode-se abstrair de nossa autoconsciência, que não é, por sua vez, nada mais que a intuição de si mesmo, sendo esta mesma a base da intuição intelectual do Absoluto pelo fato de possuir a mesma estrutura desta. Porém, pretende-se mostrar aqui que não está em jogo apenas a primazia da intuição de si mesmo em relação à intuição objetivada, quanto à intuição intelectual do Absoluto. Na medida em que, Schelling entende esses dois modos de intuição como complementares, ou seja, a concepção de intuição presente na oitava das Cartas Filosóficas não se restringe apenas intuição de si mesmo; pois, tem também como referência uma outra tradição filosófica. Como aponta Durner (apud PUENTE, 1997, p.30): “as declarações de Schelling sobre a ‘intuição intelectual’ são primeiramente proferidas em um espírito totalmente fichteano, entretanto o conceito implica, já em seus primeiros textos, momentos constituintes de um sentido e alcance que ultrapassam os do conceito sugerido por Fichte e provêm de outra tradição intelectual”, a saber, do sistema espinosano. Desse modo é que podemos interpretar a intuição intelectual enquanto tentativa de mediação do criticismo, exposto por Fichte e do dogmatismo, tematizado em Espinosa. Em carta a Hegel, Schelling conta que havia se tornado espinosista (SCHELLING, 2011, p. 307)89, através da obra Sobre a doutrina de Espinosa, de Jacobi. Para Espinosa “todos os conhecimentos adequados, isto é, imediatos, são, segundo Espinosa, intuições de atributos divinos90”. Ou seja, em várias passagens da Ética, por exemplo, Livro V, prop. 25, 27 e 36, mostra-se que só é possível o conhecimento de Deus, através do terceiro gênero de conhecimento, o conhecimento intuitivo. Com efeito, Schelling interpretara tal modo de intuição como uma intuição objetivada, pois o conhecimento não parte de um Eu absoluto, o qual fez Ver em Kant, Fichte, Schelling e Hegel. Correspondências. Trad. Hugo Ochoa Disselkoen; Raúl Gutiérrez. Colombia: Centro Editorial, Facultad de Ciencias Humanas, 2011. 90 Nota de Rubens Rodrigues Torres Filho, p. 197. In: FICHTE, J. G. SCHELLING, J. v. Escritos Filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1973. 89 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 390 Fichte, e sim de um Objeto absoluto, neste caso de Deus, em sentido espinosano. Levando em consideração que a intuição intelectual em Schelling visa comprovar que há um ponto no qual o próprio Absoluto e o conhecimento do Absoluto sejam um, na medida em que este é o mais nobre tipo de conhecimento, pois não é senão pela própria intuição intelectual que conhecemos o Absoluto. Schelling ainda salienta que: Essa intuição intelectual se introduz, então, quando deixamos de ser objetos para nós mesmos e quando, retirado a si mesmo, o eu que intuí é idêntico ao intuído. Nesse momento da intuição, desaparecem para nós tempo e duração: não somos nós que estamos perdidos no tempo, mas o tempo – ou antes, não ele, mas a pura eternidade absoluta – que está em nós. Não somos nós que estamos perdidos na intuição do mundo objetivo, mas é este que está perdido em nossa intuição (SCHELLING, 1978, p. 198). Mostra-se a influência fichteana no desenvolver das Cartas na medida em que há a intuição de um eu [Selbst] que intuí a si mesmo e ao fazer isso deve-se considerar que o Absoluto não é um mero objeto. Não obstante, mostra-se a influência espinosana na medida em que essa intuição é dada sob a forma pura da eternidade, pois, nela dissolve-se tempo e duração. A forma de eternidade pura é a forma da intuição intelectual e esta não se submete a nenhuma duração, sendo diferente do tempo que impregna coisas efetivas e caracterizadas como relativas e transitórias. Esse é o único modo em que é possível o retorno à essência, à liberdade e à bemaventurança absoluta. Quanto à concepção schellinguiana de intuição intelectual apresenta-se que enquanto Fichte compreende o fundamento do conhecimento partindo do Eu absoluto, que é a unidade do sujeito e o objeto, a qual, por conseguinte, é o eu infinito, que se opõe ao eu finito, Schelling vai além ao afirmar que o eu finito já está no eu infinito, isto é, no Eu Absoluto. Portanto, em um dos aspectos do Absoluto, o Eu que intui a si mesmo, enquanto unidade do finito e do infinito, ou, do subjetivo e do objetivo, seria o Eu incondicionado. Segundo Schelling, quanto à intuição, Espinosa objetivou a intuição de si mesmo, ou seja, tomou a intuição intelectual enquanto intuição intelectual objetivada, na medida em que: Enquanto intuía em si o intelectual, o Absoluto não era mais, para ele, um objeto. Isso era uma experiência que permitia duas interpretações: ou ele se havia tornado idêntico ao Absoluto, ou o Absoluto a ele. Neste último caso a intuição intelectual era intuição de si mesmo; no primeiro, intuição de um objeto absoluto. Espinosa preferiu esta última. Acreditou que ele mesmo era ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 391 idêntico ao objeto absoluto e que estava perdido em sua infinitude (SCHELLING, 1973, p. 198). O primeiro modo de interpretação, no qual o sujeito identifica-se com o absoluto é a intuição de si mesmo em sentido fichteano. O segundo modo, no qual é o absoluto, enquanto objeto, se identifica com o sujeito é a intuição objetivada, em sentido espinosano, ou seja, “acreditou que ele mesmo era idêntico ao objeto absoluto e que estava perdido em sua infinitude (SCHELLING, 1973, p. 198). Com efeito, para Espinosa, o homem tem que repetir de modo finito a mesma estrutura que possui a substância infinita, conforme Ética, Livro II, prop. 48: “a alma humana tem um conhecimento adequado da essência eterna e infinita de Deus” e, tudo existe em Deus; pois nada pode ser conhecido sem Ele, na medida em que, todas as ideias existentes no intelecto humano existem igualmente no intelecto divino. Esse conhecimento é intuitivo, conforme Ética, Livro V, demonstração 25. Quanto à intuição de Espinosa, Schelling afirma “este, quando se torna sistema, não provém de nada outro do que da intuição intelectual objetivada, de se tomar a intuição de si mesmo pela intuição de um objeto fora se si, a intuição intelectual do mundo interior pela intuição do mundo suprassensível fora de si” (SCHELLING, 1973, p. 199). Entretanto, é certo que Schelling, pela influência de Fichte, em um primeiro momento, atentando à concepção de intuição de si mesmo, critica Espinosa pelo fato dele ter objetivado a própria intuição de si mesmo. “Não era ele que havia desaparecido na intuição do Absoluto, mas inversamente, para ele tudo aquilo que se chama objetivo desaparecera nessa intuição de si mesmo. Mas aquele pensamento – de estar dissolvido no objeto absoluto” (ibidem) era suportável para ele. Espinosa acreditava que ele se dissolvia na intuição, chegando ao conhecimento de Deus, pelo terceiro gênero. Esse dogmatismo, definido também como delírio místico91. Mas, mesmo assim, há de se considerar a objetivação, na medida em que Schelling entende que ambas se complementam enquanto são a estrutura da intuição intelectual do Absoluto. Quanto à complementaridade do dogmatismo e do criticismo, o filósofo salienta que: Creio que justamente aquela passagem do infinito ao finito é o problema de toda filosofia, não somente de um sistema isolado, e mesmo que a solução de Espinosa é a única possível, mas a interpretação que ela teve 91Schelling afirma que: “Acredito, ao falar do princípio moral do dogmatismo, encontrar-me no centro de todo o delírio possível” (1973, p. 197). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 392 de receber através de seu sistema só pode pertencer à este, e que um outro sistema poderia reservar para ela uma outra interpretação (SCHELLING, 1973, p. 195). A intuição intelectual é a via de acesso ao Absoluto, o qual pode ser concebido levando em consideração duas interpretações, a saber, de Espinosa e de Fichte, ou mãos propriamente, considerando a intuição de si mesmo e a intuição objetivada na medida em que se complementam entre si a fim de resolver o problema fundamental da passagem do infinito ao finito. Tais interpretações da própria intuição intelectual abarcam o mesmo problema, sendo esse o ponto comum de ambas92. O que difere-se em cada sistema, como exposto, é apenas o modo de interpretação desta. A intuição objetivada tem a mesma estrutura da intuição de si mesmo, pois ambas são o próprio Absoluto. Diferentemente da intuição objetivada, o que desaparece na intuição de si mesmo é tudo aquilo que se designa como objetivo. E ainda, ao dissolver tudo o que há de objetivo enquanto intui-se a si mesmo, o Eu que intuí não pode se anular, e isso por não haver mais a limitação objetiva e por ser totalmente um pensamento sem objetividade alguma é totalmente no Absoluto. Na intuição objetivada ou na intuição de si, ha identidade do eu e o objeto, é uma ação de ser no Absoluto, retornando à sua essência – liberdade e bem aventurança. Assim, no retorno ao Absoluto, e em sua unificação, referindo-se à intuição de si mesmo, aquele que intui, intui a si mesmo e assim, o objeto absoluto dissolve-se nessa intuição. Não obstante, nessa passagem ao Incondicionado, toda a passividade – que se encontra no mundo objetivo – cessa na ilimitada atividade perfeita da divindade e este é o momento mais alto, mais sublime, mais elevado do ser, pois o mundo se dissolve na intuição, o que significa, na anulação, ao fim e a cabo, que ao dissolver tudo o que há de objetivo enquanto intui-se a si mesmo, o eu que intui não se anula nesta dissolução, e isso por não haver mais a limitação objetiva; e por ser totalmente um pensamento sem objetividade alguma é totalmente no Absoluto. Quanto à intuição objetivada, ela é um desdobramento da intuição de si mesmo, pois não é senão a objetivação desta. Mostra-se nas Cartas a tentativa de Schelling de relacionar o Eu absoluto de Fichte, o qual é o princípio da infinitude subjetiva, com a substância, objeto absoluto de Espinosa, que é o “O fundamento que me leva a afirmar que esses dois sistemas inteiramente opostos entre si, o dogmatismo e o criticismo, são igualmente possíveis, e que ambos subsistirão um ao lado do outro enquanto todos os seres finitos não tiverem atingido o mesmo grau de liberdade é (...) que ambos têm o mesmo problema” (SCHELLING, 1973, p. 191). 92 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 393 princípio da infinitude objetiva. Contudo, o Absoluto de Schelling, estruturado sobre a filosofia de Espinosa, não pode ser definido por um conceito, pois enquanto uno e infinito, causa de si e causa imanente de tudo, não pode afirmar-se a si próprio senão em um ato de intuição intelectual. Levando em consideração os modos da intuição, do ponto de vista do processo cognitivo, a intuição de si não é a primeira que ocorre, é a intuição objetivada a primeira, enquanto é o sujeito que se dissolve na objetivação e não o mundo objetivo. Contudo, é o sujeito que intui, há uma intuição de si mesmo, sendo que, ao fim e a cabo, ambas se complementam, isto é, a intuição objetivada pressupõe a intuição de si mesmo, porém, não se tem acesso à intuição de si sem a intuição objetivada. Isso é o que constitui, em suma, os dois momentos da intuição. Tal tentativa de tematização da mediação, implica reconhecer já nas Cartas certos elementos fundamentais que possibilitarão a unidade do Dogmatismo e do Criticismo mediante a instauração da auto-intuição do próprio Sujeito-Objeto Absoluto como via de acesso ao Absoluto em textos sobre a filosofia da natureza. O fato de Schelling fazer uma Ética a la Espinosa como mostra o projeto das Cartas, constitui-se pelo fato de que, seu objetivo não era os mesmos que os de Fichte, isto é, não queria provar apenas a existência do Eu pela intuição. Sua própria concepção de intuição intelectual já constitui-se como ponto de chegada, isto é, como fundamento enquanto intuição intelectual, pois, mediante sua estrutura, é a própria unificação do sujeito objeto no Absoluto. Pois, Schelling mesmo em pleno período fichteano busca uma saída que de razão ao real conteúdo do saber. Diante disso, nesse momento inicial de sua produção filosófica, Schelling vai além daqui exposto na Doutrina da Ciência de Fichte, complementando-a com a doutrina de Espinosa, no que tange à intuição intelectual. Referências Bibliográficas: ESPINOSA, B. Ética/ Pensamentos metafísicos. Trad. Marilena de Souza Chauí ... [et al. 3.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1993 (Col. Os Pensadores).. Kant, Fichte, Schelling e Hegel. Correspondências. Trad. Hugo Ochoa Disselkoen; Raúl Gutiérrez. Colombia: Centro Editorial, Facultad de Ciencias Humanas, 2011. PUENTE, F. As concepções antropológicas de Schelling. São Paulo: Loyola, 1997. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 394 SCHELLING, J. Cartas filosóficas sobre o dogmatismo e o criticismo / História da Filosofia Moderna. In: FICHTE, J. G. SCHELLING, J. v. Escritos Filosóficos. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1973. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 395 O MESTRE ANDARILHO EM NIETZSCHE Kelly Scherer Bolsista UFSC/CAPES – DS [email protected] Orientador: Profª. Lúcia Hardt RESUMO: Neste artigo, apresenta-se a dimensão estética do olhar de um dos primeiros escritos de Nietzsche, a conferência “Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino”. Se a maioria de suas obras parece se tratar de uma provocação aos valores filosóficos e morais, nesse escrito, que se encontra inacabado, ele enfrenta as labirínticas instituições de ensino com sua maior arma: a cultura clássica dos gregos. E é a partir da figura de mestre que nos revela a ideia reguladora da educação ou da formação dos estabelecimentos de ensino, elementos que nos permitem discutir sua estética “pessoal”, desde sua percepção da cultura a seu olhar incisivo sobre os aspectos geradores do espírito alemão (Geist). Palavras-chave: Zaratustra, mestre andarilho, labirinto, autossupressão, moral Investigar conceitos ou temas da filosofia nietzschiana é desviar-se de formulações fixas. Ou melhor, é desorientar-se, considerando o número de interpretações, paradoxos e discussões que culminam em teses diversas e investidas contra a filosofia do autor. Além disso, pretender interpretar seus conceitos é como lançar-se no labirinto93 do rei Minos94. Logo, faz-se necessário distinguir esses ensinamentos e o que, efetivamente, vemos, quando adentramos nesse emaranhado de ideias presente nas obras de Nietzsche. Esses ensinamentos, por sua vez, nem sempre se dão em um estilo teórico-conceitual, pois em Assim falou Zaratustra, Nietzsche apresenta uma escrita mais pictórica, que nos permite imprimir, ou mesmo criar com suas Construção que compreende um conjunto de corredores entrecruzados, salas e caminhos sem saída, localizada nas ruínas do Palácio de Creta. Foi construído por Dédalo, sob as ordens de Minos. 94 Filho de Júpiter e Europa. Sucedeu Astério, seu pai adotivo, no trono de Creta. 93 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 396 metáforas e linguagem poética, um cenário, um recorte imagético, pois que, em sua escrita, há cores, paisagens, melodias, um cenário completo para que seus tantos personagens atuem. Assim, o trabalho sugere uma imagem, já que, ao mencionar a entrada no labirinto do pensamento de Nietzsche, seus filosofemas e estilo de escrita, pretende-se também suscitar o cenário arquitetônico do labirinto como o espaço em que os corpos andam e são direcionados conforme os modelos de “verdade” que orientam a humanidade. Já a ideia de desorientação descrita acima sugere, neste caso, pensarmos o “jogo” de linguagem provocado pelo autor e a inversão dos valores que ele realiza ao propor diversos paradigmas com base em sua filosofia. Deste modo, os valores da sociedade, configurados por tantos caminhos em que os humanos são convocados a percorrer — e o que chamamos de uma orientação à cultura — são invertidos pelo filósofo, causando no leitor a velha vertigem do exercício do pensar. Portanto, o labirinto-espaço percorrido pelos viventes é o lugar da exigência de perspectivas, mas Nietzsche, ao desdobrar certos conceitos, dando-lhes novos sentidos ou abrindo espaço ao novo, rebate a orientação vigente, tornando o espaço “temporariamente desorientado” para, enfim, deixar que novas perspectivas possam surgir e guiar suas leituras, ou então, guiar os valores que regem nosso espaço labiríntico (mundo). Segundo Stegmaier, que define a orientação como sendo “a orientação é sempre primeiro. Ela precede todo o pensar e agir”, isso congregaria a questão do tempo. Já a orientação tem a ver com a “medida em que a orientação tem a ver com novas situações, ela tem sempre algo a ver com o tempo” (STEGMAIER, p. 305). Assim, podemos ver o labirinto como esse espaço onde os humanos são orientados e desorientados pelos fios do pensamento, de valores e crenças. Nietzsche, como filho de seu tempo, foi impelido a pensar conforme os valores de verdade de sua época, sendo envolto por seus mestres e heróis, orientado por modelagens ou contornos de sua cultura. E, a meu ver, são esses “mestres” que formam ou conduzem o que chamamos de humano, pois acabam criando, a partir das verdades vividas pelo mestre, valores exemplares que tecem o querer e o agir; são eles os responsáveis pela condução de uma ética no mundo, ética sempre modelada pelo exemplo do herói, guia ou líder que impulsiona o drama existencial fazendo valer desse mesmo impulso a ação legítima ou a veracidade do mestre. A exemplo dos guias da antiguidade, podemos citar os muitos heróis e suas batalhas políticas ou mesmo trajetórias como a de Édipo, rei de Tebas95, os quais se tornaram, com suas histórias, exemplos de 95 Ver mito do Édipo Rei. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 397 conduta ou perspectiva de mundo. No entanto, Nietzsche tornou-se para os séculos XX e XXI uma espécie de mestre, de profeta, produzindo um abalo sísmico no pensamento moderno, o que talvez não sirva de orientação, mas certamente desorienta ao implodir e explodir dogmas e conceitos vigentes. Deleuze, ao sondar esses caminhos e modelos de verdades através do labirinto em “Mistério de Ariadne segundo Nietzsche”, oferece uma interpretação interessante da vertigem provocada pela célebre narrativa poética do filósofo alemão. Nesse artigo, ele relaciona um dos personagens de Assim falou Zaratustra, chamado, entre outros nomes, de “homem superior”, o qual parece representar também o niilismo, à versão do labirinto do antigo mito grego. Nesse texto, o labirinto e o fio condutor do herói Teseu são um disfarce à moral: O homem superior invoca o conhecimento: ele pretende explorar o labirinto ou a floresta do conhecimento. Mas o conhecimento é só disfarce da moralidade; o fio no labirinto é o fio moral. A moral, por sua vez, é um labirinto: disfarce do ideal ascético e religioso (DELEUZE, 2006, p. 9). Partindo dessa visão Deleuze/Nietzsche, percebe-se, desde o labirinto de Minos, outro ângulo da história sobre a versão do herói grego, ou seja, Teseu ansioso por justiça. E é aqui que se observa um disfarce daquilo que significa ser o homem superior para Nietzsche: O homem sublime ou superior vence os monstros, expõe os enigmas, porém ignora o enigma e o monstro que ele próprio é. Ignora que afirmar não é carregar, atrelar-se, assumir o que é, mas, ao contrário, desatrelar, livrar, descarregar o que vive (Idem). Então, o objetivo do herói (“homem superior”) não se reduz a matar monstros encarcerados em seus labirintos. Talvez o homem “sublime” seja mais uma máscara, e sua coragem, um refúgio. No texto, Deleuze afirma que o Minotauro preso no labirinto é o impulso da vida afirmativa, que o liberta, e que isso não é moral. Ou seja, é pulsão da natureza dionisíaca96. E o fio de Ariadne97? A força reativa que odeia o impulso, odeia, por sua vez, Assim como o apolíneo, o dionisíaco é uma noção que aparece desde o começo da obra de Nietzsche, com O nascimento da tragédia. A “pulsão da natureza” é também a fonte das artes não plásticas e, sobretudo, da música. 97 Filha de Minos e Pasífae. Apaixonou-se por Teseu quando este foi a Creta para lutar contra o Minotauro. Entregou ao herói ateniense um novelo de fio que lhe possibilitou sair do labirinto. Para escapar da cólera de Minos, Ariadne acompanhou Teseu em sua fuga, mas este a abandonou na ilha de Naxos, um dos locais favoritos de Baco. Impressionado com a beleza da jovem, o deus esposou-a, levando-a dali. 96 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 398 Dioniso, para desdobrar-se e logo afirmá-lo. Esse odiar de Ariadne, isto é, o fio que conduziu Teseu, o homem “sublime”, deu-lhe técnicas para matar o impulso e sair do labirinto. No entanto, Teseu abandonou Ariadne e ela entendeu. Foi em vão sua afirmação de amor ao conhecimento e sua recusa ao impulso. Ariadne compreende sua decepção: Teseu nem sequer era um verdadeiro grego, mas antes uma espécie de alemão – mesmo que o termo não existisse ainda – quando se pensava que se ia encontrar um grego. Mas Ariadne compreende sua decepção num momento em que já deixou de preocupar-se: Dioniso, que é um verdadeiro grego, se aproxima; a Alma torna-se ativa, ao mesmo tempo em que o Espírito revela a verdadeira natureza da afirmação. A canção de Ariadne adquire então todo o seu sentido: transmutação de Ariadne diante da aproximação de Dioniso, sendo Ariadne a anima que agora corresponde ao Espírito que diz sim. Dioniso acrescenta uma última estrofe à canção de Ariadne, que se torna ditirambo (Idem, p.12). Contudo, ainda segundo Deleuze, o labirinto deveria ser uma espécie de purificação, e quem o habitasse seria renovado pelo espírito do impulso à vida. “O labirinto já não é arquitetônico, tornou-se sonoro e musical” (Idem, p.13). Enquanto na versão grega o herói necessita matar o impulso para vencer e sair do labirinto, a sugestão de Deleuze é deixarmos pousar “leve” no fundo do labirinto o impulso e deter o heroísmo tenso, esse querer da perfeição, de uma humanidade que alcançou com a morte do “instinto” seu acabamento. Pois, como alertou Nietzsche, “o homem superior pretende levar a humanidade à perfeição, ao acabamento” (Idem, p. 8). O texto de Deleuze traz uma visão do modelo de humanidade que se queria atingir em um determinado momento histórico da Grécia Antiga: a moral que exige de seus heróis o aniquilamento dos impulsos; o modelo do herói preparado para defender e matar em nome da polis. Teseu é a encarnação desse modelo, ele figura o peso da gravidade, da seriedade, do herói como exemplo do mestre, pois se sacrifica em nome da cidade, servindo como orientador por ter sido aquele que encontrou a saída do labirinto. O herói e o homem superior em Nietzsche representariam, em Zaratustra, essa maestria que carrega o fardo de orientar ou servir de exemplo ao mundo, pois ambos têm a missão de transmitir a verdade, ou então, ser essa veracidade dos fios que ordena tal mundo. O personagem de Zaratustra, por vezes, parece suscitar a mesma energia, pois pressente que é necessário doar aos humanos uma dádiva, quer perecer em sua missão de anunciar o Além-do-homem. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 399 Mas a ideia do mestre, do herói e de outras figuras análogas em seus escritos não é novidade, já que em suas conferências de juventude buscou ressaltar a importância do mestre como aquele que pudesse levar à juventude o conhecimento autêntico. Esse mestre, no entanto, não saíra do nada, ele é exemplar, especialmente porque a Alemanha de Nietzsche era marcada, por parte de alguns poetas, pelo entusiasmo, pelas odes à cultura clássica grega, e mais precisamente, em Nietzsche, pelo retorno ao mundo arcaico da Grécia. Portanto, para assentar uma cultura autêntica, para a criação de mestres geniais que pudessem servir de exemplo, não apenas para o presente, mas que fossem o legado de uma grande civilização, era necessário o modelo de uma autêntica civilização, como a Grécia Antiga. A figura do mestre como exemplo ou autoridade, modelo ou purificação do espírito alemão (Geist) é, então, esse gênio capaz de absorver o melhor de seu passado e criar para seu povo uma literatura rica e original. Há uma interpretação ilustrativa do professor Viesenteiner98 intitulada “Aprender a ver, aprender a pensar, aprender a falar e escrever: condições integrantes do conceito de Bildung no Crepúsculo dos Ídolos de Nietzsche”. Neste artigo, ele discute as consequências ou os declínios que comprometeram a cultura alemã ao não cultivar esse espírito. Assim, ele também esclarece outro ponto que não pode ser deixado de lado, ou seja, o tema da Bildung, termo que é uma referência ao processo do cultivo desse espírito alemão (Geist). O capítulo ‘O que os alemães estão perdendo’ foi escrito em três horizontes teóricos bem claros, apesar da composição em 7 aforismos: a) os aforismos 1 e 2 nos quais Nietzsche elabora o diagnóstico do declínio da Bildung alemão, cuja formulação se desenvolve a partir de um dos conceitos-chave desse capítulo, vale dizer, a palavra ‘espírito’ (Geist) que, como veremos, tem uma ampla envergadura semântica estreita ligação com a noção de Bildung; b) os aforismos de 3 a 5 onde se encontra a estrita crítica nietzschiana da relação entre Bildung e política, especialmente no que se refere à mudança no ‘pathos’ sobre as ‘coisas do espírito’ e a perda da imprescindível ‘jovialidade’ à cultura, incluindo aí também as considerações sobre ‘todo o sistema de educação superior na Alemanha’ e seus ‘educadores’; e, por fim, c) os aforismos 6 e 7 em que Nietzsche mostra novamente sua maneira ‘afirmativa’ de ser e indica as ‘três tarefas em razão das quais se precisa de educadores’, quais sejam, ‘tem de se aprender a ver, aprender a pensar, aprender a falar e escrever’, de modo que a ‘meta em todas as três é uma cultura nobre’(VIESENTEINER, 2011). Doutor em filosofia pela UNICAMP e professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCPR. É membro do GIRN (Groupe International de Recherches sur Nietzsche) pela Universidade de Greifswald/Alemanha. 98 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 400 Entretanto, ao propor a leitura dos clássicos como um dever ao ginásio, isso não seria economizar tarefa, já que, além de ler, é preciso saber ler, falar e escrever. E para ensinar e educar é necessário, antes, educar os educadores. “Educar os educadores! Mas os primeiros deviam educar-se a si mesmos! E, é para eles que escrevo” (NIETZSCHE, 2012, p. 7). Nietzsche inicia uma de suas conferências provocando os educadores a instruir-se, cultivar-se, antes de ensinar a leitura e, depois, a escrita aos seus alunos; eis o tratamento que, a exemplo de mestre, deveria ser exigido. Em outras palavras, o mestre cultivado, mencionado pelo autor, é aquele que leu e aprendeu com os clássicos da antiguidade. Mas o que é ou quem é o mestre nos primeiros escritos do jovem Nietzsche? Não seria aquele capaz de levar a juventude a emancipar-se? E para que ele pudesse realizar tal empreendimento não seria o mestre um ancião capaz de servir de exemplo não apenas ao jovem, mas a toda uma cultura? São questões sobre as quais, de fato, Nietzsche se preocupava seriamente enquanto professor na Basileia, não apenas com as questões do presente, mas também com futuro e o problema degenerativo que se instalava nas instituições de ensino alemãs de seu tempo. Assim, a primeira Conferência, em Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino, inicia com a reflexão acerca de um problema que se tornava cada vez mais perturbador à época: a perda do espírito alemão (Geist), quando os estabelecimentos de ensino eram os responsáveis pela instrução e emancipação dos jovens. Nietzsche, nessa conferência, utiliza-se de uma narrativa envolvendo o problema do conhecimento filosófico a partir de um diálogo ou experiência sobre um velho mestre e seu discípulo, em meio a um lugar calmo e bucólico, mas carregado de uma atmosfera reflexiva e, como veremos também, explosiva. Logo, ele, o personagem descrito por Nietzsche, avisa a quem está dedicando esta reflexão: De fato, tenho plena consciência do lugar em que agora aconselho a refletir e a meditar a respeito deste diálogo, quer dizer, está cidade que, com o espírito de uma elevação incomparável, procura fazer progredir a formação da educação de seus cidadãos, numa escala que só pode ter algo de humilhante para os estados mais importantes: assim, certamente não estou errado quando suponho que lá onde se faz mais neste domínio se deve também pensar mais. É justamente a tais ouvintes que poderei me fazer compreender quando contar o diálogo a qual me refiro (NIETZSCHE, 2012, p. 57). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 401 Nietzsche definiu a história que se propôs a contar na Conferência como sendo uma “inocente experiência”. A história proporciona não somente a visão do estudante do ginásio da época: alegre, impetuoso, sonhador, despreocupado; características próprias de uma juventude “estranha ao tempo”, mas seu estilo ilustra também uma forma bem singular, isto é, o jogo de figuras antagônicas na relação mestre e discípulo. Um exemplo disso é o encontro dos jovens e suas pistolas afoitas diante do velho tranquilo e seguro de sua sabedoria, mestre-filósofo que acabaria mostrando o caminho solitário da floresta e do pensamento. Segundo Nietzsche, o mestre deve ser emancipado, pois ele compreende a importância dos “clássicos”, podendo semear sobre o jovem uma linguagem apropriada ou menos viciada, barbarizada pela leitura jornalística ou de romances da moda. O mestre terá de ser aquele que leva o mais importante para uma cultura, isto é, o ensinamento da leitura adequada aos alunos do ginásio. Por isso, é o sábio que ousou refletir profundamente e que reconhece nos clássicos uma cultura valiosa; é mestre porque é maduro e já se cultivou, tendo aprendido a refletir, não necessitando mais dos disparos, barulhos frenéticos de pistolas disputando precipitadamente características da juventude. Mas, do que se trata esse amadurecimento do mestre filosófico? Por que ele é apto ao ensinamento dos jovens? Nietzsche narra a história de modo harmoniosamente belo, dando ênfase ao encontro entre o filósofo, um discípulo e os estudantes (incluso Nietzsche, um jovem estudante). Os jovens, que estavam em um passeio para recordar velhos momentos do ginásio e desfrutar de uma vivência prazerosa entre os amigos em um lugar de retorno em boas passagens, decidem fazer algo que gostavam muito: tiro de pistola, uma moda juvenil à época. No entanto, são interrompidos pela fala de um velho que os olhava seriamente exigindo que parassem com aquela vilania sem sentido, já que aquele era um lugar de contemplação, meditação, pensamento. Nossos tiros de pistola, repetido pelo eco, tinha nesta solidão um efeito muito mais impressionante; logo dado o segundo tiro do pentagrama, me senti agarrar violentamente pelo braço e vi ao mesmo tempo em que meu amigo tinha sido surpreendido da mesma maneira enquanto recarregava sua arma. Eu me voltei bruscamente e vi o rosto irritado de um velho, e o mesmo tempo sentia que um cão robusto pulava sobre minhas costas (NIETZSCHE, 2012, p. 62). Verificar-se-á duas posturas distintas que também podem ser interpretadas como o trajeto que se faz do pensamento menos sutil, bruto, ao pensamento mais sutil, que é o pensamento ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 402 filosófico, ou seja, o caminho da ascese ao pensamento mais profundo evocado pelo mestre e seu discípulo. É esse caminho em que, por um lado, está o impulso juvenil, a impossibilidade para a reflexão filosófica, que se torna essencial à emancipação do indivíduo. Por outro lado, está o velho filósofo que surgiu como uma fatalidade aos planos e alegrias dos jovens que pensavam estar cientes de seu futuro, pois ele evoca o pensamento mais profundo deles, indagando sobre os disparos e os alardes. Com uma só palavra, eles se sentem reprimidos pela ousadia do pedido, gerando certo conflito de ideias e opiniões acerca das vontades contrárias que foram postas em discussão: A esta fala grosseira, ainda que verdadeira, respondemos com irritação, cortando constantemente a palavra um do outro: ‘Em primeiro lugar, você comete um erro sobre o fato principal: não estamos aqui para nos bater, mas para fazer exercícios de tiro com a pistola. Em segundo lugar, você parece ignorar totalmente como se realiza um duelo: acredita você que iríamos nos enfrentar numa total solidão, como dois bandidos de estrada, sem padrinhos, sem médicos etc.? Em terceiro lugar, enfim, temos – cada um de nós – nosso ponto de vista sobre a questão do duelo e não queremos nos deixar surpreender nem assustar com lições como as suas (Idem, p. 63). A imagem do filósofo que alcançou sua maestria surge como uma caricatura da representação filosófica, ou seja, a caminhada do mestre é envolta de ações como: o silêncio, a meditação, o olhar a distância sem pressa no andar, que equivale ao sentido do preparo à ascensão do filosofar. O tema do caminho do mestre se dá desde os disparos ao filosofar e demonstra, por um lado, o velho filósofo e seu discípulo, e por outro, o impulso vigoroso dos estudantes ginasiais. Deste modo, a narrativa evocaria, com a presença da figura do velho filósofo, a ruptura entre o pensamento apressado versus o silêncio e a meditação, modos intrínsecos de quem alcançou certo gosto pelo pensar. Segundo a perspectiva nietzschiana sobre o ensino, o mestre é o responsável pelo (cultivo) dos jovens, porque é ele quem saberá conduzir os impulsos ainda inflamados pela juventude e suas pistolas explosivas. E, sobretudo, podemos ver na experiência das pistolas e na ousadia dos jovens uma alusão ao pensamento apressado e/ou irrefletido deles, enquanto alunos. Por isso que o aluno (discípulo) deve, antes de ter uma mera posição ou opinião dos fatos, seguir rigorosamente os passos do mestre, aprender com os clássicos para, futuramente, emancipar-se, ou constituir seu próprio pensamento (autenticidade). E com isso, Nietzsche nos convida a refletir sobre o tema da liberdade dos jovens estudantes que tinham tudo para esbanjar essa ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 403 autonomia. Mas essa autonomia ainda não era emancipatória, não que tivessem que agir passivamente ou tornar-se reprimidos, pois isso, de fato, causaria mais horror ao pensar. Na verdade, Nietzsche quer valorizar ou sugerir a importância do exercício contínuo e vagaroso, oscilante dos pensamentos, que vai dos disparos ao exercício contínuo até o refinamento tanto da linguagem adequada quanto do estilo de escrita que o gênio em potencial adquire ao seguir o exemplo de seus mestres: Enquanto caminhávamos meu amigo expunha francamente seus pensamentos ao filósofo: Como tinha ele temido que hoje, pela primeira vez, o filósofo o impedisse de filosofar. O velho se pôs a rir: ‘Como? Vocês temem que o filósofo a impeça de filosofar’? (Idem, p. 67). Cabe à juventude, que não se propõe a seguir o exemplo do mestre, viver sob o desperdício de uma geração que mal lê, fala, escreve ou pensa. Com isso, Nietzsche estaria denunciando a barbárie causada pelos estabelecimentos de ensino, com seus conceitos e professores, que ignoraram, por exemplo, a autonomia, uma liberdade que deve ser uma trajetória, um caminhar junto ao exemplo do mestre. Ao invés disso, deixaram-se levar pela expansão do mercado, enquanto deveriam exercitar, nos alunos, a leitura dos clássicos, fazendo-os compreender, absorver e reproduzir de modo loquaz. Mas o que se vê nesses estabelecimentos de ensino são alunos comparando-se a um Schiller ou Goethe, sem as condições literárias necessárias para compor como um gênio. O fato é que, para Nietzsche, esses estabelecimentos, na Alemanha, não estavam preocupados em formar homens para a cultura99, pois lhes faltava o mais importante: o fato de não ensinar o princípio da cultura, isto é, o exercício da leitura através dos grandes clássicos e a importância do exemplo do mestre. E é por isso que o filósofo e o artista compõem um pequeno número de homens raros, por terem recebido um ensino mais sutil, um aprendizado mais lento, * Deve-se distinguir a cultura (Cultur) da civilização (Civilisation) e lembrar que, em sentido amplo, o conceito nietzschiano de cultura corresponde ao que o uso francês designaria antes pelo termo “civilisation”. A cultura não visa à formação intelectual nem ao saber, mas engloba o campo constituído pelo conjunto das atividades humanas e de suas produções: moral, religião, arte, filosofia, estrutura política e social, etc. Abarca, portanto, a série de interpretações que caracteriza uma determinada comunidade humana, num estágio preciso da história. ** Nos primeiros anos de sua reflexão, Nietzsche se debruça particularmente sobre o problema da unidade e da harmonia dessas interpretações: “A cultura é, sobretudo, a unidade de estilo artístico que atravessa todas as manifestações da vida de um povo. Mas o fato de saber muito e ter aprendido muito não é nem um instrumento necessário nem um sinal de cultura e, se necessário, combina perfeitamente com seu contrário, a barbárie, ou seja, com a ausência de estilo ou com a mistura caótica de todos os estilos” (Considerações extemporâneas I, “David Strauss: o confessor e o escritor”. 99 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 404 embora mais rigoroso, diferente da “precipitação” (rapidez) ou da “grosseria” (linguagem jornalística), em que o estado colocou à disposição uma série de estabelecimentos de ensino. Daí a crítica, inclusive, ao erudito, homem de saber intelectual (especialista) que, com seus métodos, não garante esse princípio de cultura: Assim, me pareceu que se tratava de distinguir duas orientações principais: duas correntes aparentemente opostas, ambas nefastas nos seus efeitos, mas unidas enfim nos seus resultados, dominam atualmente os estabelecimentos de ensino: a tendência à extensão, a ampliação máxima da cultura, e a tendência à redução, ao enfraquecimento da própria cultura. A cultura, por diversas razões, deve ser estendida a círculos casa vez mais amplos, eis o que exige uma tendência. A outra, ao contrário, exige que a cultura abandone as suas ambições mais elevadas, mais nobres, mais sublimes, e que se ponha humildemente a serviço não importa de que forma de vida, do estado, por exemplo (Idem, p. 72). A crítica aos estabelecimentos de ensino talvez não visasse a alguma transformação “em quadros e horários”, conforme escrevera Nietzsche, ou a uma revolução, uma vez que parece não haver fórmulas. No entanto, o que nos interessa é a provocação que sua reflexão quer apontar, isto é, ao denunciar certo exagero por parte da ampliação e/ou extensão dos estabelecimentos de ensino, que levariam à massificação do ensino. Portanto, ele supunha que, com a ampliação do ensino, a cultura estaria perdendo o mais importante, isto é, o cultivo100 de si. Segundo a perspectiva de Nietzsche, o principal espaço para se propor o cultivo à formação cultural é o ginásio; é no preparatório onde os alunos discutem o que irão assumir diante da cultura. Que cargos estão dispostos, serão técnicos ou especialistas? Se apenas bons especialistas, o filósofo logo avisa: o erudito é um “operário de fábrica que durante toda a sua vida, não faz senão fabricar certo parafuso ou certo cabo para uma ferramenta ou máquina” (“Crítica aos eruditos”, op.cit, p. 75). E assim discorre porque a produção desses eruditos está atrelada à ciência, e para ele, o homem de ciência também é uma redução da cultura, por estar a serviço do Estado. O homem de ciência enquanto tal não tem absolutamente palavra; ao contrário, esta trama de cola viscosa que se infiltra agora nas ciências, o jornalismo, acredita aí cumprir sua tarefa, que ele realiza de acordo com sua Cultivar, em contrapartida, não possui relação com essas técnicas de erradicação de potência: significa, para Nietzsche, favorecer o surgimento e a conservação de um tipo específico de homem, com características pulsionais precisas, ou melhor, lutar contra as grandes variações de um indivíduo para o outro. Esse trabalho pode ser realizado simultaneamente em várias direções numa mesma cultura, como mostra o exemplo de Nietzsche. Continuar etc.] 100 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 405 natureza própria, quer dizer, como o seu nome indica, como uma tarefa de jornalista (Idem, p. 76). Nietzsche também se posiciona contra a linguagem utilizada nos estabelecimentos que objetivam exercitar o mínimo de leituras adequadas. Acredita-se que, por detrás dessa linguagem “grosseira”, a linguagem disseminada pelo jornalismo é o vilão que toma o lugar do “gênio”. Declara também que essa “pseudocultura” é uma perversão porque, no momento em que um aluno toma para si tais leituras, está sendo inserido e iniciado à barbárie, ou à “pseudocultura”: “A leitura de um jornal, um romance da moda, ou um desses livros doutos, cujo estilo já traz consigo os brasões repugnantes da barbárie cultivada que está em curso hoje em dia” (Idem, p.79). Provocativo, aponta a pedagogia como sendo a responsável por essa barbarizarão do ensino, já que ela deveria ser orientada por mãos sutis, sábias (um mestre filósofo?), caracterizando a pedagogia de sua época como uma “brincadeira de roda infantil”. Assim, Nietzsche acusaria os estabelecimentos e os próprios membros do ensino como responsáveis pela grosseria da língua alemã. Falta, segundo ele, a seriedade no ensino da língua e no trato com o ginásio. Sobre o diálogo, proposta experimental de Nietzsche, entre o “filósofo e seu discípulo”, há um momento sublime em que ele apresenta o filósofo como o homem-docultivo e da vivência, capaz de conduzir a juventude à criação do gênio: Eu tenho, disse o Filósofo, uma opinião tão elevada quanto a tua a respeito da importância do ginásio: todas as outras instituições devem medir-se pelo objetivo cultural que é visada pelo ginásio, pois elas sofrem com os desvios de sua tendência, e assim serão também purificadas e renovadas com sua purificação e renovação (Idem, p. 80). Percebe-se, nessa passagem, uma grande esperança depositada na formação (cultivo) do ginásio. Por isso, a preocupação com a língua, de como e por quem ela é conduzida, de modo que, para ensiná-la apropriadamente, isso caberia ao mestre emancipado. A língua é uma das tarefas que os alunos deveriam se apropriar com afinco, para depois se arrogar qualquer pretensão, autonomia do pensar e escrever. No entanto, não é exatamente isso que se exige nos estabelecimentos de ensino, e que Nietzsche pontualmente critica. Deste modo, lemos o seguinte: O próprio mestre deveria logo mostrar, ao analisar a nossa clássica linha por linha, com que cuidado e com que rigor é preciso fazer cada exame, quando se ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 406 tem no coração um verdadeiro sentimento artístico e diante dos olhos a compreensão total do que escreve (Idem, p. 82). O ensino formal, onde se aprende a ler e a escrever, é a prática à qual os professores deveriam mais se deter, mas que não ocorre em tais instituições de ensino. Ao contrário, os alunos do ginásio são estimulados a uma autonomia que não possuem, pelo fato de não estarem aptos à “verdadeira escrita”. Isso porque, no lugar de utilizarem como princípio a instrução formal da língua, os professores utilizam apenas a forma histórica: Em vez desta instrução puramente prática, por intermédio da qual o mestre deve habituar seus alunos a uma severa educação de si no domínio da língua, encontramos em todo lugar a tendência de lidar com a língua materna através da erudição histórica: quer dizer, se usa dela como se fosse uma língua morta e como se não houvesse nenhuma obrigação em relação ao presente e o futuro desta língua (Idem, p. 82). A tarefa maior de um mestre é, justamente, de não ensinar essa prática histórica, e sim, reprimi-la: “Ora, a nossa língua materna é um domínio no qual o aluno deve aprender a operar” (Idem, p. 84). Ao invés de ensinar a escrever, a fim de cultivar, ao menos, certa obediência aos clássicos, de Goethe a Schiller, os alunos são encorajados a escrever a ponto de se comparar ou mesmo superar os autores de grande prestígio. O autor diz: “um riso que provoca cólera no gênio Alemão e do qual se envergonhará uma posteridade melhor” (Idem). Além disso, há também o estímulo para que os alunos escrevam sobre si, antes mesmo de terem entendido os clássicos: Basta apenas imaginar o que passa nesta idade tão jovem, quando se exige do aluno a produção de um semelhante trabalho. Esta é sua primeira produção original; as forças que ainda não se desenvolveram tendem pela primeira vez a uma cristalização; o sentimento embriagador da autonomia reveste estas produções com um encanto primitivo, admirável, que jamais retornará (Idem, p. 85). Nietzsche é contra essa “falsa-autonomia” que os professores exigem de seus alunos e acredita que é preciso refrear essa “originalidade medíocre”, pois não há aí tal maturidade, para isso, falta-lhes ainda ler os clássicos. Portanto, antes desse exercício exaustivo, todo o restante é o resultado de uma escrita de barbárie, longe, de fato, de uma escrita autônoma ou original. A esse falso ensino há uma recomendação que pode vir a restaurá-lo ou purificá-lo como, por exemplo, uma cultura de poetas e sujeitos de pensamento autêntico, artistas e afins: ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 407 Em relação à língua, mais do que em qualquer outro lugar, observa-se que nada restou da influência do modelo clássico: e esta única constatação me permite ver naquilo que é chamado de ‘cultura clássica’, que deveria sair do nosso ginásio, algo de muito duvidoso e equívoco. De fato, bastaria dar uma olhada a este modelo, para constatar a imensa seriedade com a qual os Gregos e os Romanos consideravam a tratavam a língua desde a adolescência (Idem, p. 87). E é pelo fato de se rebelar contra essa “livre personalidade” do aluno que os professores cometem a barbárie (educação linguística), longe de propiciar uma formação à cultura ou ao espírito alemão (Geist), já que é através do bom uso da língua materna que se pode dar início a uma cultura própria. Talvez a resposta nos apareça na Terceira Conferência em que, para demonstrar seriedade quanto à questão das instituições de ensino de sua época, Nietzsche a inicia retratando o filósofo e seu companheiro em um silêncio profundo. Aqui, o “sombrio” é parte da dramatização, em que a importância do filósofo-mestre é reforçada pela caricatura figurativa do homem (mestre). E mesmo que de “boa vontade” de algum modo o homem da ciência viesse para iluminar esse “momento” e o peso sobre seus corações, nada mais importaria. É nesse instante que percebemos como Nietzsche abala, como nos faz refletir acerca de muitas ideias engessadas no mundo, desde o passado, passando pelo presente e também “nosso” futuro, sobretudo porque faz refletir sobre a condição dos processos de individuação: Uma renovação e uma purificação verdadeiras do ginásio só poderão vir de uma renovação e de uma purificação do espírito Alemão que sejam profundas e poderosas. Misterioso e difícil de compreender é o liame que junta verdadeiramente o ‘ser’ profundo da Alemanha e o gênio Grego. Mas, enquanto a necessidade mais nobre do verdadeiro gênio alemão não procurar a mão deste gênio Grego como apoio firme no fluxo da barbárie, enquanto o espírito alemão não expressar aquela nostalgia angustiante pelos Gregos, enquanto a perspectiva da pátria Grega, penosamente atingida, fonte de deleite para Goethe e para Schiller, não tiverem tornado o lugar de peregrinação dos homens melhores e mais dotados, neste caso, o ginásio proporá para si na cultura clássica um objetivo incoerente, que flutua ao sabor dos ventos: e pelo menos não se deve censurar aqueles que desejam introduzir nos ginásio, ainda que com espírito tão limitado, o cientificismo e erudição, para ter diante dos olhos um objetivo real, sólido e ao mesmo tempo ideal, e salvar seus alunos das seduções deste brilhante fantasma que se faz chamar agora de ‘cultura’ e ‘educação’. (Idem, p. 101). A questão do aumento dos estabelecimentos de ensino é retomada junto com outro fator importante, o ensino superior, pois nele se encontra a relação com o aumento das unidades de ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 408 ensino. Observa-se que, conforme se ampliam, há também uma maior demanda de professores sem nenhuma vocação à pedagogia, isto é, gera-se um empecilho para a construção da cultura: Estas pessoas estão sem dúvida exageradamente distanciadas das coisas pedagógicas e acham que a riqueza aparentemente dos nossos ginásios e de mestres, que só consiste no número, poderia, não sei por que leis e regras, ser transformado numa verdadeira riqueza, numa ubertas ingenii, ser sem que, por outro lado, este número fosse reduzido (Idem, p. 103). Por isso, na medida em que cresce o número de instituições de ensino superior, há um número maior de alunos, e com isso, menor seleção. Segundo Nietzsche: “a imensa maioria dos mestres se encontra, nestes estabelecimentos, no seu ambiente próprio porque seus dons se encontram em uma relação harmônica com o baixo nível e com a mediocridade dos seus alunos de ensino” (Idem, p. 104). São essas as vozes que continuam a surgir, isto é, os novos estabelecimentos de ensino. Nessas instâncias, o surgimento do gênio é um processo complicado, pois, a fim de que ele possa emergir, a língua materna (cultura de um povo) é abafada pelo aumento estrondoso desses mesmos espaços. Particularmente, ao debater o tema e refletir acerca da posição do mestre como um fator fundamental para o cultivo do jovem estudante e sua relação com a cultura, lembrei-me de um escritor, espécie de mestre-poeta devido ao seu estilo marcante, Paulo Leminski. Ele nos fornece um verso perfeito para responder a esse pensamento subterrâneo de Nietzsche, quando adverte: “Repara bem no que não digo” (2010, p. 74). O verso nos faz pensar na relação entre o poema e o “futuro dos nossos estabelecimentos” de ensino, visto que o filósofo alemão propõe um mestre cauteloso, meditativo, fadado a uma verdade: a verdade de que o pensar é um exercício sutil e que deve ser tomado com cuidado e delicadeza. Ele certamente aborda algo que era pouco comentado, isto é, a importância do cultivo dos alunos no ginásio, de modo a fortificar a cultura e o espírito alemão. Deste modo, o ginásio é o lugar de preparar a terra, enquanto o mestre aquele que deve semear e sacrificar-se pela terra. Após a unificação da Alemanha, houve uma expansão da cultura por meio dos estabelecimentos de ensino, ocorrendo uma disseminação do conhecimento que não levava em conta a totalidade de uma cultura, ignorando que o pensar é fruto de uma liberdade que leva tempo, que brota profundamente, lentamente. Suspeitar e analisar qualquer coisa de modo ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 409 apressado leva uma cultura à decadência e à banalização do pensar, o qual necessita forma, conteúdo, estilo e tempo para fazer nascer uma (originalidade) ou o gênio de um tempo. A arte de saber ler e escrever. Uma educação que busca esse gênio e, também, a poesia. Enfim, Nietzsche é professor de Filologia, mas, como bem sabemos, é um entusiasta da filosofia, amante do helenismo, fonte inesgotável de formas e expressões artísticas. Se os estabelecimentos de ensino perderam ou estão perdendo o sentido da língua materna, ou então, ignorando o viés das grandes obras, Nietzsche vê no retorno aos clássicos uma renovação, uma purificação, na busca de alcançar o que ele chamou de espírito alemão. Referências Bibliográficas: Dicionário de Mitologia. São Paulo: Nova Cultural, 2000. DELEUZE, Gilles. O mistério de Ariadne segundo Nietzsche. Cadernos Nietzsche, São Paulo, n. 20, 2006, pp. 07-17. ___________. Obras incompletas. 2ª Ed. Tradução e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho; posfácio de Antônio Cândido de Mello e Souza. São Paulo: Victor Civita Ed., 1978. MACHADO, R. Nietzsche e a verdade. Rio de Janeiro: Graal, 1999. VIESENTEINER, Jorge Luiz. “Aprender a Ver”. Aprender a Pensar, Aprender a Falar e Escrever: condições do conceito de Bildung no Crepúsculo dos Ídolos de Nietzsche. Artigo no prelo, disponibilizado em Palestra/UFSC-2011. [Links]. LEMINSKI, Paulo. Catatau: um romance-ideia. São Paulo: Iluminuras, 2010. Vocabulário de Nietzsche/Patrick. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Editora WMF/Martins Fontes, 2011. STEGMAIER, Werner. As linhas fundamentais do pensamento de Nietzsche. Petrópolis: Vozes, 2013. Escritos sobre Educação, Friedrich Nietzsche, Rio de janeiro: Puc- Rio; SP: Ed. Loyola,2012. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 410 MAQUIAVEL: A LIBERDADE COMO EQUILÍBRIO DOS HUMORES ANTAGÔNICOS Lairton Moacir Winter UTFPR/UFPR [email protected] Orientador: Profª. Drª. Maria Isabel Limongi/Prof. Dr. José Luiz Ames RESUMO: O objetivo desta comunicação consiste em analisar a relação que Maquiavel estabelece entre o conflito de grandes e povo com a liberdade política. A hipótese central é a de que a liberdade somente pode ser alcançada mediante um ponto de equilíbrio entre os humores em conflito. A lei republicana, nascida do permanente confronto dos desejos antagônicos, subverte o caráter negativo dos humores de grandes e povo e canaliza sua força para a vida política. A fim de esclarecer isso, partimos da definição das características dos agentes em conflito, de acordo com as quais o desejo dos grandes se confunde com um desejo de poder, enquanto o desejo do povo se associa à liberdade. A liberdade, porém, como à primeira vista parece significar, não reside no desejo popular, mas entre os dois desejos antagônicos, isto é, num equilíbrio tenso. Para Maquiavel, a verdadeira liberdade política somente é possível com a manutenção deste frágil equilíbrio nos modos de desejar de grandes e povo. Palavras-chave: Maquiavel; conflito; equilíbrio dos humores; liberdade É sabido que Maquiavel elogia os conflitos de grandes e povo em função de seu resultado positivo para a vida da cidade por produzirem leis capazes de fazerem livre o corpo político. Contudo, o que determina, no pensamento do secretário florentino, o caráter salutar dos conflitos de grandes e povo? Qual a dinâmica dos conflitos que permite a Maquiavel afirmá-los como positivos à liberdade política? A hipótese que possivelmente responde ao problema reside na ideia de equilíbrio, ainda que momentâneo, dos desejos de grandes e povo, isto é, na manutenção da diferença dos modos de desejar dos dois humores. Esclarecer isso é o intento desta comunicação. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 411 De acordo com Maquiavel, o conflito político resulta do antagonismo no modo de desejar de grandes e povo: enquanto o desejo do povo é um desejo de liberdade, o desejo dos grandes é um desejo de dominação. Para o florentino, o conflito desses dois atores sociais é o fundamento da política. Fugindo de modelos ideais abstratos Maquiavel sustenta que a política é fruto da ação dos homens no tempo, segundo a qual a solução que se dá ao conflito de desejos determina ou a liberdade ou a corrupção do corpo político. Compreender a dinâmica desses conflitos parece ser fundamental para impedir a degenerescência da cidade pela corrupção através de uma ação política que possa opor a ela o regime da liberdade. Para isso, o florentino sublinha que os “os conflitos devem expressar-se através de mecanismos legais, sob a pena de destruírem o tecido social” (BIGNOTTO, 1991, p.95). Ao afirmar a tese segundo a qual os conflitos são positivos para o corpo político porque produzem liberdade, Maquiavel atesta que isto somente é verdade quando os conflitos mantêm o frágil equilíbrio dos humores antagônicos. De acordo com este modelo do conflito político, a liberdade é resultado da diferença originária dos desejos de grandes e povo, isto é, da desigualdade nos modos de desejar de ambos os humores. É disso que fala Maquiavel na História de Florença (III, 1) quando afirma que “em Roma, a igualdade entre os cidadãos levou à grandíssima desigualdade”. Se esta diferença se mantiver, ou seja, se o desejo dos grandes for sempre um desejo de domínio, e o desejo do povo um desejo de liberdade, os efeitos dos conflitos serão sempre positivos. O modelo paradigmático do qual parte Maquiavel para afirmar a existência de conflitos saudáveis ao corpo político são os tumultos entre a nobreza e a plebe que assolaram a república romana e a mantiveram livre e poderosa por mais de quatro séculos. Encontramos nos Discursos (I, 4) a sua descrição: “direi que quem condena os tumultos entre os nobres e a plebe parece censurar as coisas que foram a causa primeira da liberdade de Roma e considerar mais as assuadas e a grita que de tais tumultos nasciam do que os bons efeitos que eles geravam”. Os bons conflitos são, pois, aqueles que produzem bons efeitos. E os bons efeitos são, para Maquiavel, as leis que favorecem a liberdade pública. A liberdade deve ser pensada, está claro, a partir da ação humana. Ao refletir sobre a história romana, Maquiavel parece estar propenso a afirmar que os conflitos podem ser de fato produtivos. O autor reconhece que pode existir uma fisiologia dos conflitos, claramente expressa no título do quarto capítulo do primeiro livro dos Discursos: “a ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 412 desunião entre plebe e senado tornou livre e poderosa a república romana”. Frente a isso, parece prudente compreender melhor que coisa o conflito, a desunião, pode produzir. Assim, quais efeitos podem ser resultado de um conflito como aquele que tomou lugar em Roma por tanto tempo? A reposta de Maquiavel, nos Discursos (I, 4), é enfática: os conflitos entre a plebe e o senado deram origem “a leis e ordenações benéficas à liberdade pública”. Por ordenações pode-se entender as magistraturas – como no caso romano, o cargo de tribuno da plebe – e organizações do tipo constitucional. Além das ordenações, os conflitos em Roma originaram leis, que por se tratarem de acordos, ainda que provisórios, entre dois humores distintos – o senado e a plebe - tratava-se de leis ordinárias. Exatamente por esta razão Maquiavel critica aqueles que condenam sem ponderar os tumultos entre a plebe e o senado porque “todas as leis que se fazem em favor da liberdade nascem da desunião deles” (Discursos, I, 4). É fato, portanto, para Maquiavel, que há razões suficientes para se elogiar os conflitos porque foram eles os responsáveis por produzir leis e ordenações capazes de manter a liberdade em Roma. A liberdade é o resultado das leis e das ordenações nascidas dos tumultos. “E quando tais ordenações são bem observadas, as cidades vivem livres por muito tempo; quando não o são, logo se arruínam” (Discursos, I, 24). Todavia, para o secretário florentino as ordenações e as leis não devem ser consideradas um fim em si mesmo, mas um resultado, uma conquista de um momento logicamente precedente, precisamente aquele das desuniões e dos conflitos. Portanto, as leis e as ordenações são diretamente proporcionais aos conflitos: variando estes, variam os efeitos. Porém, isto não parece poder ser afirmado para as ordenações e as leis de todas as repúblicas. Seguramente, vale para Roma, mas não vale, por exemplo, para Esparta que, de acordo com os Discursos, recebeu o seu corpo de leis inteiramente de Licurgo. Seguindo o exemplo romano, Maquiavel demonstra a importância do papel do povo na criação de um regime livre: “quando o povo queria obter uma lei, ou fazia alguma das coisas acima citadas [gritos, tumultos, a plebe toda a sair da cidade] ou se negava a arrolar seu nome para ir à guerra, de tal modo que, para aplacá-lo, era preciso satisfazê-lo em alguma coisa” (Discursos, I, 4). Ora, estas manifestações do povo, que se opunha ao senado romano, representando o próprio movimento do conflito, produziam leis e ordenações benéficas a todo o corpo político. Não pode espantar, portanto, que quando o florentino se interroga em seguida sobre o problema “onde se deposita com mais segurança a guarda da liberdade: no povo ou nos grandes” (Discursos ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 413 I, 5), onde deve ser colocado um poder de última instância em condições de defender a liberdade, frente à alternativa ou no povo ou nos grandes, a sua resposta seja então unívoca e privilegia a solução romana que, ao seu juízo, colocava a guarda da liberdade no povo. “É ele [o povo] que, com efeito, luta contra o desejo de dominação dos grandes para afirmar seu próprio desejo e fazendo isso, faz nascer leis favoráveis à liberdade” (GAILLE-NIKODIMOV, 2004, p.59). O povo é melhor guardião da liberdade, pois não reivindica uma parte das magistraturas para dominar, e porque a expressão do desejo popular coloca em movimento um processo de construção de uma legislação que introduz a igualdade na distribuição das magistraturas e nos aspectos privados da existência. A avaliação positiva que Maquiavel faz das desuniões e dos conflitos tem sugerido muitas vezes uma clara ruptura em relação a algumas representações compartilhadas pelas tradições do pensamento político antigo e medieval. Sustentar a tese de que os conflitos produzem bons efeitos significa, acima de tudo, tomar à distância a ideia clássica da concórdia (do grego, homonoia), recorrente em toda a reflexão política grega, ideia desenvolvida com maior ênfase tanto em Aristóteles quanto em Políbio. Significa, ainda, contrapor-se conscientemente à ideia de ‘ordem e concórdia’ (do latim, “concordia ordinum”) de Cícero, com sua posição política defensora dos princípios aristocráticos. Do mesmo modo, a tese maquiaveliana dos conflitos como produtores de bons efeitos representa um nítido rompimento também com as elaborações mais próximas a ele. Referimo-nos, em primeiro lugar, à cultura pré-humanística e humanística de matriz retórica que dava grande relevo ao ideal da paz e da concórdia. E, em segundo, à tradição política florentina, a quem Maquiavel está diretamente ligado, que havia destacado a convicção de que as facções e os partidos constituíam uma ameaça mortal à liberdade da cidade e que, portanto, toda discórdia deveria ser descrita como facciosa. As posições de Maquiavel se afastam com determinação desta tese da paz e da concórdia, assim como tomam à distância as posições filovenezianas difundidas por muitos pensadores do humanismo cívico que, no conjunto, formavam o ideal político a ser seguido pelas repúblicas italianas. O secretário florentino, ao avaliar positivamente os conflitos e as discórdias e, mais em geral, ao preferir o modelo romano ao veneziano, defende claramente uma posição filo-popular e anti-aristocrática. É, neste sentido, um ponto de vista radicalmente novo não apenas por sustentar os efeitos positivos dos conflitos, mas ao depositar no povo o papel destacado na criação de um regime da liberdade. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 414 Por esta razão, a tese maquiaveliana dos conflitos como fonte de liberdade parece residir no desejo do povo. Isto não quer dizer que o povo seja o depositário do bom desejo, mas que a liberdade política depende sempre do modo de desejar do povo. Em outras palavras: o que determina ou a liberdade ou a corrupção do corpo político é a maneira pela qual o povo expressa seu desejo. Se o povo desejar apenas não ser dominado, seu desejo engendra a liberdade; se, porém, seu desejo se converter em desejo de domínio, seu desejo engendra a tirania e, consequentemente, a corrupção e a ruína da liberdade. Nesta perspectiva, Maquiavel é enfático: os bons conflitos são aqueles que mantêm o frágil equilíbrio dos desejos antagônicos de grandes e povo. Retomando os efeitos positivos dos conflitos ocorridos em Roma, só podemos chegar a uma conclusão: os conflitos foram positivos naquela cidade por tanto tempo porque se manteve inalterada a correlação de forças dos dois humores antagônicos. Dito de outro modo: foi a manutenção do equilíbrio das forças políticas e, consequentemente, a manutenção da desigualdade originária entre os desejos de grandes e povo, que permitiu aos conflitos produzirem a liberdade em Roma. Retornemos aos Discursos (I, 4). Neste capítulo Maquiavel sublinha que “dos Tarquínios aos Gracos [...] os tumultos de Roma raras vezes redundaram em exílio e raríssimas vezes em sangue”. Esta característica dos tumultos é uma questão central do pensamento do florentino que, além desta passagem dos Discursos, a coloca em destaque em outro momento com afirmação semelhante. Assim, ainda no mesmo capítulo, o autor sustenta que “quem examinar bem o resultado [dos tumultos] não descobrirá que eles deram origem a exílios ou violências em desfavor do bem comum, mas sim a leis e ordenações benéficas à liberdade pública”. Os conflitos, as discórdias, por não fazerem recurso à violência privada, conduziram Roma à liberdade por cerca de quatrocentos anos. Os conflitos produziram liberdade e não violência armada ou exclusão dos cidadãos da vida política. Os conflitos criaram em Roma uma forma de manifestação que não levou nenhum sujeito, fosse individual ou coletivo, a ser excluído da vida cidadã. Na História de Florença (III, 1), Maquiavel retoma o argumento: “porque as inimizades havidas em Roma, no princípio, entre o povo e os nobres eram definidas por disputas, enquanto as de Florença o eram por combates; as de Roma terminavam com leis, enquanto as de Florença terminavam com o exílio e com a morte de muitos cidadãos”. Diferentemente do que ocorrera em Roma, os conflitos praticados em Florença apresentam formas diversas. Analisando os tumultos ocorridos nas duas cidades, Maquiavel coloca em relevo seu conhecido raciocínio opositivo: em Roma o conflito se pratica disputando; em Florença, combatendo. Existe um crivo pelo qual o conflito permanece produtivo na vida política e se organiza como se fosse quase uma disputa e não degenera em guerra civil. É o caso de Roma. Porém, em Florença os conflitos redundaram em violência, assassinatos e exílios dos seus cidadãos. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 415 A disputa é sadia e positiva porque não altera o equilíbrio dos humores. Diferentemente dos combates, que invariavelmente degeneram em violência, em que o opositor é sempre um rival e visto como inimigo e, por esta razão, deve ser eliminado para ocupar-lhe sua posição, a disputa evoca discussão, divergência, que se resolve pela via do acordo, ainda que provisório. Novamente o exemplo romano é crucial. Para a solução dos confrontos entre a plebe e o senado, Roma criou as assembleias e o cargo de tribuno da plebe “porque, além de concederem a parte que cabia ao povo na administração, tais tribunos foram constituídos para guardar a liberdade” (Discursos, I, 4). Em outras palavras, segundo Adverse (2007, p.40), a agitação popular em Roma obrigou os grandes a reconhecer a plebe como sujeito político. A criação dos tribunos da plebe foi a resposta institucional para atender à demanda do povo. Se os conflitos ocorridos em Roma entre grandes e povo confirmam a tese de Maquiavel de que os tumultos podem ser produtores de liberdade, resta compreender como isto foi possível. De acordo com o texto dos Discursos, Roma permaneceu livre enquanto o desejo popular, representado pelos tribunos da plebe, não se alterou. Mas porque o desejo do povo se manteve idêntico ao seu desejo originário? A resposta do florentino é a de que o desejo de não ser dominado do povo – manifestado nos tumultos, na oposição ao senado romano, nas manifestações públicas, na negação do seu nome no alistamento para a guerra - significava não um desejo de poder, de dominação, mas tão somente um desejo de não ser dominado pelos grandes. Quando o povo alcançava seu objetivo, fosse uma lei, fosse uma ordenação favorável à liberdade, o conflito se normalizava, até novo movimento de oposição aos grandes, fruto da necessidade do povo de manter-se livre da dominação. Assim, de acordo com Gaille-Nikodimov, a lei resultante dos conflitos toma lugar central na narrativa maquiaveliana: “a fim de satisfazer seu desejo de não ser dominado, o povo busca, com efeito, obter uma representação institucional e leis que garantam seu estatuto e sua proteção em relação à ambição dos grandes. Com efeito, a lei submete os grandes e limita, até mesmo impede, sua dominação” (GAILLE-NIKODIMOV, 2004, p.56). É, portanto, na manutenção da diferença, da desigualdade no modo de desejar de grandes e povo que reside o aspecto positivo dos conflitos. É disso que fala Maquiavel em Discursos (I, 4) quando afirma que “em Roma, a igualdade entre os cidadãos levou à grandíssima desigualdade”. Porém, como se manifestou em Roma esta desigualdade? Para respondê-lo retornemos aos Discursos (I, 4): “não se pode dizer que tais tumultos sejam nocivos, nem que tal república fosse dividida, se em tanto tempo, em razão de suas diferenças, não mandou para o exílio mais que oito ou dez cidadãos” (grifo nosso). Os tumultos são saudáveis e produzem liberdade porque os desejos de grandes e povo são diferentes. Por fim, é no capítulo 1 do livro três da História de Florença que encontramos a confirmação da tese da manutenção da desigualdade originária dos desejos de grandes e povo como fundamento da ideia de que os conflitos podem ser fator de liberdade. De acordo com o texto, Maquiavel ensina que os efeitos positivos dos conflitos se devem aos fins a que se propõe um povo. Assim, a liberdade foi efeito dos ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 416 confrontos entre grandes e povo “porque o povo de Roma desejava gozar as supremas honras ao lado dos nobres” (grifo nosso), e não sobre ou como os nobres. Desejar com e não como, ou sobre, é a chave para entender porque os conflitos em Roma produziram bons efeitos. Ao desejar dividir com os nobres as supremas honras, o povo mantinha seu desejo originário de não ser dominado, portanto, diferente do desejo dos grandes, que continuava sendo um desejo de dominação. É o equilíbrio dos humores do qual fala Maquiavel, pois os dois desejos não se equiparam, mas, ao contrário, se mantém desiguais. Se, ao contrário, o desejo do povo se igualasse ao desejo dos grandes, os efeitos dos conflitos seriam negativos, pois corromperiam o corpo político. Referências Bibliográficas: ADVERSE, Helton. Maquiavel, a república e o desejo de liberdade. Trans/form/ação. São Paulo, v.30, n.2, p.33-52, nov. 2007. BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano. São Paulo: Loyola, 1991. GAILLE-NIKODIMOV, Marie. Conflit civil et liberté: La politique machiavélienne entre histoire et médiecine. Paris: Honoré Champion, 2004. MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. Tradução MF. São Paulo: Martins Fontes, 2007. ___________. História de Florença. Tradução MF. São Paulo: Martins Fontes, 2007. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 417 UM ESBOÇO PARA UMA A IMANÊNCIA ABSOLUTA E UMA ÉTICA VITALISTA: DELEUZE ENTRE SPINOZA E NIETZSCHE Leandro Nunes Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE Bolsista CAPES/CNPq [email protected] Orientador: Profª. Drª. Ester Maria Dreher Heuser RESUMO: O presente trabalho objetiva pensar e problematizar o que denominamos como uma ética vitalista que desdobra-se na imanência absoluta a partir da filosofia de Gilles Deleuze, mais precisamente, a partir das ressonâncias provenientes de seus encontros com as filosofias de Nietzsche e Spinoza, os quais ele denomina de “filósofos da imanência”. Para tal intento, trabalharemos com conceitos centrais da obra deleuziana concernentes ao problema de uma ética imanente, tais como: imanência, multiplicidade, encontros, diferença, linhas de fuga, devir, vida. Também trabalharemos com a interpretação deleuziana dos conceitos de vontade de potência e de corpo na filosofia de Nietzsche e o conceito de corpo e o problema da expressão na filosofia de Spinoza; sempre procurando evidenciar sua importância e seus desdobramentos para se pensar uma ética no plano imanente a partir da própria obra deleuziana. Palavras-chave: Ética. Imanência. Vitalista. Spinoza e uma imanência imanente a si mesma O plano de imanência para Deleuze é a própria definição do campo transcendental e das imagens do pensamento elaborada em suas obras anteriores a O que é a filosofia? (1992); entendendo o transcendental como sendo “o domínio próprio da filosofia na sua determinação como irredutível ao mesmo tempo à empiricidade e a toda transcendência” (DIAS, 2001, p. 178). Desse modo, o plano de imanência, segundo o autor, não seria um plano transcendente ou sensível do ser, mas um campo das condições imanentes pelo qual a realidade se constitui, pois, “é quando a imanência já não é imanente à outra coisa que não a si mesma que se pode falar de ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 418 um plano de imanência” (DELEUZE, 1995, p. 4). Em suma, o verdadeiro plano de imanência, isto é, a filosofia plenamente efetuada, só é possível quando a imanência é tomada em si mesma e não como atributo de algo, ou seja, trata-se de uma imanência imanente a si mesma e livre de qualquer laço que a torne dependente de “algo”. Tal plano de imanência, que atribui a imanência a si mesmo, segundo Deleuze, foi problematizado apenas uma vez na história da filosofia, sendo Spinoza o responsável por traçálo. Esta incomparável operação do spinozismo consiste no seguinte: “libertar a imanência de toda a transcendência. Subtraí-la a todas as formas do transcendente, e a todas as recriações em si da transcendência, afirmar a imanência como auto-consistente” (DIAS, 2001, p. 180), isso porque, para Deleuze, na filosofia de Spinoza a imanência não advém da substância, uma vez que, não é imanente à mesma. A substância e os modos é que são na imanência, e esta que é em si mesma, devolvida a si, pertencente exclusiva de si. Se tudo se diz da substância, é porque a substância é o nome spinozista do plano de imanência, o continuum intensivo dos atributos, quer dizer, a produtividade ontológica infinita, infinitamente positiva, que se exprime através dos dois poderes do plano, poder de ser e poder de pensar, extensão e pensamento. Por isso seria o spinozismo, para Deleuze, a mais pura das filosofias, e Spinoza o príncipe dos filósofos, porque o único que teria experimentado até ao infinito, até os movimentos próprios do infinito, a vertigem da imanência. O único, em resumo, que teria acendido a uma pura percepção imanente, sem recair no transcendente, sem restituir a ilusão da transcendência [...] (DIAS, 2001, p. 180). Assim, é a partir da influência spinozista que Deleuze pensa a imanência absoluta: pensar “o que não pode ser pensado e que, no entanto, tem que ser pensado, como o impensável do pensamento, e que é o que o pensamento pensa, o que ele não pode se não pensar” (Idem, p. 180). Desse modo, é preciso salientar que nesse plano de imanência há apenas singularidades e acontecimentos. Entendendo que, tais acontecimentos, são como o próprio plano, isto é, são apenas virtualidades. Assim sendo, toda a realidade em ato representa a atualização de formas possíveis. O acontecimento imanente atualiza-se num estado de coisas e num estado vivido que fazem com que aconteça. O próprio plano de imanência atualiza-se num Objeto e num Sujeito aos quais se atribui. Mas, por pouco separáveis que sejam da sua atualização, o plano de imanência é ele próprio virtual, tal como os elementos que o povoam são virtualidades. Os acontecimentos ou ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 419 singularidades dão ao plano toda a sua virtualidade, como o plano de imanência dá aos acontecimentos virtuais uma plena realidade. Ao acontecimento, considerado como não-atualizado (indefinido), não falta nada. Basta pô-lo em relação com os seus concomitantes: um campo transcendental, um plano de imanência, uma vida, singularidades. Uma ferida incarna-se ou atualiza-se num estado de coisas e num vivido; mas é ela mesma um puro virtual sobre o plano de imanência que nos impele numa vida. A minha ferida existia antes de mim... Não uma transcendência da ferida como atualidade superior, mas a sua imanência como virtualidade sempre no seio de um meio (campo ou plano) (DELEUZE, 1995, p. 4). Assim, os acontecimentos e virtualidades constituintes do plano de imanência, segundo Deleuze, são o campo de potencialidades de toda a realidade; e, por conseguinte, o ser passa a ser entendido como o poder do novo, como criação pura; de maneira que, por tal razão, a pura imanência é definida por Deleuze como uma vida e nada mais. Uma vida como imanência da imanência, pois, “não é a imanência que é imanente à vida, é pelo contrário, a vida que é imanência plena, melhor, é uma vida que exprime a imanência que é, não em outra coisa, mas em si mesma” (DIAS, 2001, p. 182-183). Em epítome, trata-se de “imanar” a vida, ou seja, de restituir o poder da criação ao homem. O que significa: uma vida é imanente a si mesma, é poder imanente coexistente com a vida individual mas não determinável por ela, não contido nela, antes afirmando-se por si, de si. A vida como auto-referente, em vez de referível aos sujeitos, de atributo de viventes ou fundamento da atribuição de subjetividades: é isso a vida como imanência, ou a imanência como uma vida. Não é pois a vida que se reduz ao vivido, à apropriação individual e subjetiva, nem é a imanência que se apresenta como imanente ao fluxo do vivido [...] é a vida individual e a subjetividade humana que são expressões de uma vida absolutamente imanente e de uma consciência imediata impessoal coextensiva ao plano de imanência (DIAS, 2001, p. 183). Desse modo, a vida do indivíduo é definida pelos acidentes vividos, sejam eles interiores ou exteriores, isto é, pela subjetividade e objetividade do que acontece. No entanto, uma vida é constituída apenas por virtualidades, ou seja, de acontecimentos não atualizados, “de singularidades pré-individuais que coexistem com os acidentes da vida individual correspondente, mas que se distinguem deles e que definem a imanência, o plano de imanência, dessa vida individualizada” (Idem, p. 183-184). Assim sendo, são os acontecimentos vividos que acabam individualizando a vida do sujeito, compondo de forma sucessiva os momentos de sua vida, o ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 420 que lhe confere uma história e uma determinação ética. Entretanto, os acontecimentos virtuais dessa vida imanente, não formam uma história, mas um devir. Em tese, trata-se de saber retirar possibilidades positivas de todas as situações e contingências vividas, isto é, de ser digno do que acontece. Deleuze propõe assim um conceito de vida como vida indefinida, anônima, nua, destacada de todas as determinações empíricas, do que faz dela uma vida pessoal ou individual. Mas o inindividual ou o impessoal, a neutralização de toda a definibilidade empírica, não equivale em Deleuze à queda na indiferenciação. Corresponde ao invés à emancipação das diferenças, [...] na forma de singularidades como pulsações pré-individuais e pré-pessoais, de acontecimentos virtuais, reais, mas não atuais (Idem, p. 185). Assim, pode-se afirmar que a filosofia deleuziana é guiada por uma preocupação fundamental, qual seja: de criar as condições de possibilidade do novo, de garantir as condições objetivas da produção subjetiva de novidade. Daí decorre as distinções virtualidade/possibilidade, devir/história, como também, um plano de imanência absoluto, o conceito entendido como acontecimento e não como essência. Isso porque o plano de imanência é pensado como criação, já que, a vida, é tratada por Deleuze, como força criadora e toda criação como criação de vida, de saídas para a vida. De modo que, a imanência plena, absoluta, é entendida como o “invivível que, no entanto, é o que se vive, o que define uma vida, e o impensável que é, todavia, o que se pensa, o que não se pode deixar de pensar” (Idem, p. 186). Pois, a vida entendida como imanência da imanência, retira-se de suas determinações tradicionais e restitui para si o poder ontológico absoluto, poder este, imanente da criação. Nietzsche e a interpretação deleuziana da vontade de potência Nesse sentido, com Nietzsche, Deleuze trabalha com o conceito de vontade de potência, entendido por ele como aquilo que faz uma disparação intensiva que independe de sua consciência. Sendo que, sua vontade consciente depende dessa vontade de potência; ou seja, o indivíduo não pensa só a partir daquilo que domina, que tem controle; ele pensa a partir do contato com aquilo que já foi recomeçado, isto é, o indivíduo pensa com aquilo que não mereceu cuidado na tradição filosófica. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 421 Isso acontece pelo fato de que para Deleuze a consciência torna-se pequena frente às forças que atravessam o corpo. Uma vez que, a vontade de potência tem a ver com intensidade, com corpo. Nesse sentido, segundo Deleuze, Nietzsche entendia a vontade de potência como sendo um princípio intensivo, isto é, como princípio de intensidade pura. Não obstante, a vontade de potência, segundo Deleuze, não se trata de um querer viver, pois, não é uma vontade que deseja a potência ou que deseja dominar. Com efeito, uma tal interpretação apresentaria dois inconvenientes. Se a vontade de potência significasse querer a potência, ela, evidentemente, dependeria dos valores estabelecidos, honrarias, dinheiro, poder social, pois esses valores determinam a atribuição e a recognição da potência como objeto de desejo e de vontade. E a vontade que quisesse uma tal potência somente a obteria lançando-se numa luta ou num combate. Ademais, perguntemos: quem quer a potência dessa maneira? quem deseja dominar? Precisamente aqueles que Nietzsche chama de escravos, de fracos. Querer a potência é a imagem que os impotentes constroem para si da vontade de potência (DELEUZE, 2005, p. 149 [grifos do autor]). Deleuze afirma que a vontade de potência em seu mais elevado grau, ou seja, em sua forma intensa ou intensiva, “não consiste em cobiçar e nem mesmo em tomar, mas em dar e em criar” (Idem, p. 149). Em síntese, a potência não é aquilo que a vontade deseja, pelo contrário, é quem quer na vontade. Isso porque a vontade de potência, segundo Deleuze, é “afirmação, afirmação da diferença, jogo, prazer e dom, criação da distância. Mas, de baixo para o alto, tudo se inverte, a afirmação se reflete em negação, a diferença em oposição; somente as coisas em baixo têm inicialmente necessidade de se opor ao que não seja elas próprias” (Idem, p. 149-150). O corpo como multiplicidade É possível afirmar que o encontro provocado por Deleuze com Nietzsche e Spinoza está intimamente relacionado com o corpo. É nesse sentido que em Nietzsche, segundo uma leitura deleuziana, entende-se o corpo como sendo uma estrutura social “de impulsos e afetos que lutam incessantemente para aumentar sua potência, subjugando outros conjuntos afetivos. A seu ver, mesmo a alma deve ser remetida a este registro, já que não se distingue substancialmente do corpo” (MOREIRA, 2011, p. 142). Conquanto que, em Spinoza, Deleuze trabalha com o conceito de corpo ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 422 entendido como “uma estrutura complexa composta de outros corpos, e a mente como “ideia do corpo” e “ideia da ideia do corpo”. Mente e corpo definidos como modos finitos dos atributos de uma única substância, Deus” (Idem, p. 142). Sendo que, estes modos podem atingir variados graus de potência segundo como as contingências apresentam-se. Na ética de Spinoza, o corpo é apresentado como uma coisa singular, uma espécie de indivíduo complexo; já que, é composto por outros corpos que tencionam para uma mesma ação; “se vários indivíduos contribuem para uma única ação, de maneira tal que sejam todos, em conjunto, a causa de um único efeito, considero-os todos, sob este aspecto, como uma única coisa singular” (SPINOZA 15, EII Def. 7, 2011). Em suma, trata-se de um composto singular no qual o conjunto das partes é a única causa de efeito e, por conseguinte, há um equilíbrio “interno na proporção de movimento e repouso das partes que o compõe, já que sua conservação depende desta proporcionalidade” (MOREIRA, 2011, p. 143). Não obstante, a mente é definida por Spinoza como um paralelismo “ideia do corpo” e “ideia da ideia do corpo”, ou seja, “ela é consciência das afecções do corpo, das alterações pelas quais ele passa para conservar seu equilíbrio, além de ser consciência de si mesma” (Idem, p. 143). Todavia, é preciso demarcar que não se trata de uma relação de causa e efeito entre mente e corpo, uma vez que, o corpo não é capaz de determinar que a mente comece a pensar e nem a mente pode determinar que corpo se coloque em movimento ou em repouso; “há uma “simultaneidade” (ou paralelismo) do que ocorre em ambos, de modo que a ordem ou encadeamento do que ocorre no corpo é simultânea à ordem do que ocorre na mente, não significando com isto que haja uma relação causal aí posta” (Idem, p. 143). Trata-se de um esforço simultâneo do corpo e da mente para a preservação. Seria algo como uma potência de persistência: “assim, na medida em que o corpo se esforça para conservar a proporção de movimento e repouso de seus constituintes, a mente também procura perseverar em seu ser, através das ideias que produz” (Idem, p. 144). Disso, pode-se afirmar que Spinoza assegura que todos os indivíduos são dotados de uma potência de agir; e, a partir de sua interação com o mundo encontram-se coisas que aumentam ou diminuem sua potência de agir. Não obstante, assim como em Spinoza, em Nietzsche, o corpo é também entendido e definido como uma multiplicidade. No entanto, para filósofo alemão, segundo Deleuze, trata-se de uma multiplicidade hierárquica e que está em constante luta por potência e não por conservação como em Spinoza. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 423 Uma ética vitalista Em epítome, como posto até aqui, pode-se afirmar que o encontro de Deleuze com as filosofias de Nietzsche e de Spinoza ressoa uma ética vitalista, uma ética imanente. Uma ética que trata da criação de modos de vida, de linhas de fuga. Já que essa ética pensada a partir de Deleuze objetiva levar ao máximo a crítica da razão para que se possa evitar qualquer fragmento de transcendência, isto é, levar a razão até o ponto que ela não dependa de nenhuma substância transcendente. Isso porque uma ética vitalista na imanência absoluta não possui um fim último, pois é livre de qualquer compromisso com algo que lhe seja externo e, por consequência, “a ação esta aberta ao devir, à criação que, por sua vez, forma a razão prática ao invés de serem produto de um “descobrimento da verdade” dos primeiros princípios” (BORGES, 2013, p. 105). Referências Bibliográficas: BORGES, Charles Irapuan Ferreira. Deleuze, ética e imanência. 2013. Dissertação de mestrado apresentada ao programa de Mestrado em Filosofia. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. PUC, Porto alegre – RS. ___________. L'immanence: une vie. Philosophie, n.º47, Paris: Minuit, Setembro 1995. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia?. Tradução Bento Prado Jr e Alberto Alonso Muñoz . Rio de Janeiro: 34, 1992. DIAS, Souza. “Partir, evadir-se, traçar uma linha”: Deleuze e a literatura. Porto Alegre: Educação, 2007. ___________. A Última Fórmula de Deleuze. In. A criação no cruzamento entre arte e filosofia. Lisboa: Grácio Editor, 2001. MOREIRA, Adriana Belmonte. Nietzsche e Espinosa: Fundamentos para uma terapêutica dos afetos; in. Cadernos Espinosanos XXIV. São Paulo, 2011. SPINOZA, Benedictus de. Ética. Trad. Tomaz Tadeu; 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. ZAOUI, Pierre. La “Grande Identité” Nietzsche-Spinoza. In. Philosophie n° 47, spécial Deleuze, éditions de Minuit, Paris, 2000. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 424 APONTAMENTOS SOBRE O CONCEITO ROUSSEAUNIANO DE AMOR-PRÓPRIO Luana Aparecida de Oliveira Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE [email protected] Jean-Jacques Rousseau, em sua obra Emílio ou da educação, dividida em cinco livros, aborda a educação natural e social a partir do processo educativo de Emílio, aluno fictício. Em relação à educação social de Emílio, diz-se que se inicia somente na fase adulta, já que é o tornar-se adulto é indício do ingresso na vida em sociedade; antes disso, o corpo e os sentidos não estariam aptos para o “segundo nascimento”, termo empregado por Rousseau para indicar a educação social. Nesta, serão ensinados os valores morais e a melhor forma de usar a razão, tendo em vista o desenvolvimento da capacidade de dominar-se moralmente. O sucesso da educação social implica na condição da educação natural ser bem sucedida, pois a estrutura cognitiva e moral do educando dependem do seu desenvolvimento sensório-motor. A educação natural, chamada também de educação negativa, abrange desde o nascimento até a idade de 12 anos (segunda infância). Segundo Dalbosco: A ênfase do processo pedagógico dessa fase recai sobre o fortalecimento do corpo e o refinamento dos sentidos e, portanto, deve ser uma educação orientada pelo convívio do educando com as coisas. Trata-se mais de uma educação guiada pelas coisas do que discursiva, baseada na razão (DALBOSCO, 2011b, p. 32). De outro lado, a educação social que é uma educação moral, visa o preparo para o exercício da autonomia, isto é, a promoção da independência do educando para que ele tenha condições de viver em sociedade, de modo que possa desenvolver noções de bem e de mal para agir de forma coerente na comunidade política, “[...] pois isso lhe daria então credencial para criticar os aspectos corruptos e viciados das relações humanas e da ordem social mais ampla” (DALBOSCO, 2011b, p. 36). Para Rousseau a base da República deve ser orientada pela ordem moral, no entanto a formação moral do educando, quando torna-se social, é abalada substancialmente investidas do amor-próprio . ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia pelas 425 Além do Emílio ou da Educação, Rousseau também trata dos conceitos de amor-de-si e de amor-próprio no Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Por meio destes conceitos, o filósofo genebrino busca explicar hipoteticamente a origem da natureza humana e de seu processo de socialização, assim como entender as razões que levam o homem à corrupção. Mas o que significam estes conceitos e quais são suas implicações na moral e na sociabilidade do homem? Para Rousseau ambos são sentimentos que constituem a condição humana, quando criança, o indivíduo possui as características do homem natural que é dominado pelo amor-de-si, sentimento que já nasce com o ser humano. Apesar de sua bondade natural, o amor-de-si tem como característica a neutralidade no sentido moral. Já na fase adulta quando ingressar na sociedade, o sentimento do amor-próprio é que irá fazer parte do processo formativo do indivíduo. Desta forma, o amor-próprio é construído por meio dos contatos externos, ou seja, não nasce com o ser humano e sim se desenvolve nas relações sociais, ou em outros termos no processo civilizatório. No entanto, estes dois sentimentos possuem diferenças mais acentuadas: O amor de si, que só a nós mesmos considera, fica contente quando nossas verdadeiras necessidades são satisfeitas, mas o amor-próprio, que se compara, nunca está contente e nem poderia estar, pois esse sentimento, preferindo-nos aos outros, também exige que os outros prefiram-nos a eles, o que é impossível. Eis como as paixões doces e afetuosas nascem do amor-de-si, e como as paixões odientas e irascíveis nascem do amor-próprio. (ROUSSEAU, 1999b, p. 275). Portanto, conforme esclarece o genebrino, no amor-próprio a preferência é sempre por nós mesmos e os demais ficam em segundo plano, de modo que o privilégio deve ser direcionado para si e não para o outro; devido a isto, é que a bondade natural pertence ao amor-de-si e o egoísmo calculado ao amor-próprio. Rousseau explica que o amor-de-si é a “[...] paixão primitiva, inata, anterior a qualquer outra e da qual todas as outras não são, em certo sentido, senão modificações” (ROUSSEAU, 1999b, p. 273). Muitas destas modificações são nocivas ao homem, pois mudam sua própria natureza e o torna irascível. O amor-de-si, sentimento inato à condição humana, conduz o homem à necessidade de autoconservação, isto é, de cuidar de seu corpo e de pensar em meios de sua própria subsistência. Em meio ao amor-de-si e ao amor-próprio há a piedade natural, enquanto o amor-de-si diz respeito à conservação do indivíduo, por meio da piedade natural o homem preserva a sua ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 426 espécie, pois consegue se colocar no lugar do seu semelhante que sofre e assim se solidarizar com o mesmo, seja da mesma espécie ou simplesmente um ser vivo sensiente. Rousseau escreve no Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens que a piedade natural: [...] é um sentimento natural que, moderando em cada indivíduo a atividade do amor de si mesmo, concorre para a conservação mútua de toda a espécie. É ela que nos leva a socorrer, sem refletir, aqueles que vemos sofrer; é ela que no estado de natureza, substitui leis, costumes e virtude, com a vantagem de ninguém ficar tentado a desobedecer-lhe a doce voz [...] (ROUSSEAU, 1999a, p. 192) A piedade se encontra entre o amor-de-si e o amor-próprio e no estado de natureza está enquanto potência, mas para se desenvolver plenamente precisa do contato com os demais. Ela se dá antes da reflexão e quanto mais afetada e oprimida pelo amor-próprio mais enfraquece e cede lugar às paixões humanas. O amor-próprio enquanto o sentimento do ser social, ao contrário do amor-de-si que desperta a necessidade de autoconservação; está relacionado com as necessidades artificiais e por isso dificilmente o homem conseguirá contentar seus desejos, visto que está constantemente criando novas e falsas necessidades. Além do mais, para a realização de suas necessidades poderá sacrificar as dos outros, já que não é possível que todos ao mesmo tempo satisfaçam seus desejos, desta forma, estando os interesses concorrendo um com o outro e havendo este embate de desejos, surgem então as disputas e as inimizades. O amor-próprio é a morada das paixões prejudiciais que levam o homem à má inclinação, quando em contato com o mundo social o ser comete erros devido a essas más paixões, assim aos poucos seu estado original, ou seja, sua natureza isenta de vícios se modifica. Para Dalbosco: [...] tal sentimento projeta o homem social para uma condição corrupta e perversa [...] trata-se de um amor profundamente egoísta, voltado para si mesmo, que coloca o homem particular no centro de tudo e de todos (DALBOSCO, 2011b, p. 38). As paixões que Rousseau denomina como repugnantes, tais como a inveja e a cobiça se originam do amor-próprio, por isso diferente do amor-de-si este sentimento não é moralmente neutro. Ele também contém em si o desejo de se sobressair em relação aos outros, em querer ser superior aos demais para assim obter reconhecimento, aliás, o amor-de-si se transforma em ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 427 amor-próprio justamente quando o homem começa a se comparar com os outros. É a partir desta comparação que surge o desejo de estar sempre em primeiro lugar. Por isso: Em relação ao Contrato Social, o modelo republicado governado por uma vontade geral deve ser capaz de assegurar, tanto jurídico, como político e moralmente, aos seus membros, uma forma substancial de reconhecimento social que limite a aspiração do homem de querer alcançar obsessivamente uma posição superior em relação aos outros homens. (DALBOSCO, 2011a, p. 20). Esta ambição leva a uma constante disputa de uns contra os outros, pois não há quem aceite estar numa posição inferior, disto decorre, como por exemplo, a insensibilidade diante do sofrimento dos demais. Desta forma, em última instância, os efeitos deste sentimento pode conduzir à destruição das relações sociais. Por isso a necessidade de limitar o desejo em querer uma posição superior aos demais, todavia, será isto possível de ser realizado? Se esta limitação for possível então o amor-próprio é capaz de ser normativo no que se refere à formação do caráter do ser humano. A partir da compreensão do conceito rousseauniano de amor-próprio que deriva o ser social, é possível pensar que a socialização é em si mesma corrupta? Ou em outras palavras, a sociabilidade leva necessariamente a uma sociedade corrompida? Se a formação moral depende da socialização do homem, e se esta se constitui e se desenvolve de forma egoísta, então o ser já está predeterminado à perversão moral e não há nada o que se fazer para mudar seu “destino”? Mesmo sendo o amor-próprio o nascedouro das paixões, não há como transformar ou superar o amor-próprio em amor-de-si e as paixões em moralidade de forma positiva? Não há consenso entre os intérpretes de Rousseau no que se refere a estas questões, muitos se posicionam de forma a destacar apenas o aspecto negativo do amor-próprio, isto é, seu lado destrutivo. Assim, nesta perspectiva, entendendo-o unicamente enquanto lugar onde nascem as paixões, a sociabilidade estaria determinada ao fracasso moral. Já outros comentadores pensam ser possível uma “[...] educação do amor-próprio por meio do retorno do amor-de-si e do sentimento de piedade a ele associado.” (DALBOSCO, 2011a, p. 16). Outros ainda preferem a teoria de que o amor-próprio possui uma ambiguidade e que devido a isto há como educar este sentimento. A interpretação de que o amor-próprio é ambíguo compreende que este sentimento não está voltado somente para o mal, mas também para o bem, ou seja, ele pode ser destrutivo assim ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 428 como pode possuir caráter construtivo. Esta perspectiva parece ser a mais viável, mais coerente, pois ao contrário, se dado enfoque apenas para seu lado negativo, todos os indivíduos estariam absolutamente condenados à depravação moral de maneira irreversível. Também não é plausível a ideia de educar o amor-próprio somente com o auxílio da piedade natural, é necessário que a razão fundamente a piedade natural. Diferente da conotação apenas negativa, o amor-próprio não é fixo, ele possui plasticidade e por isso é capaz de promover aperfeiçoamento do ser humano. A capacidade de mudança é própria deste sentimento, desta forma, assim como ele possui condições de produzir o mal, também tem condições de “curar” o mal produzido. Em Rousseau o processo de socialização do ser humano necessita comportar a dimensão e o significado social do conceito rousseauniano de perfectibilidade, que é um dos atributos especificamente humano responsável pela degeneração ou aperfeiçoamento do homem em sociedade. Uma espécie de flexibilidade em se adaptar a situações diversas, assim como a aptidão a se auto-aperfeiçoar por meio dos aprendizados das experiências que a vida social incita. [...] há outra qualidade muito específica que os distingue, e sobre a qual não ode haver contestação: a faculdade de aperfeiçoar-se, faculdade essa que, com a ajuda das circunstancias, desenvolve sucessivamente todas as outras, e reside, entre nós, tanto na espécie quanto no indivíduo [...] - enquanto o bicho, que nada adquiriu e tampouco tem algo a perder, continua com seu instinto – o homem, tornando a perder pela velhice ou por outros acidente tudo o que sua perfectibilidade o fizera adquirir, recai assim mais baixo que o próprio bicho? (ROUSSEAU, 1999a, p. 173-174). Por meio da perfectibilidade o homem transforma o mundo à sua volta e também se transforma. Assim, é possível que pela da perfectibilidade o amor-próprio assuma uma direção construtiva para o ser humano. Outro atributo necessário para a sociabilidade é a autoconservação, enquanto sentimento primário no homem e no animal, que se manifesta como um instinto natural de preservação e de proteção da própria vida. Neste ponto, para que o amorpróprio seja reeducado com o objetivo de auxiliar o ser humano de forma construtiva, é importante que o “colocar-se na perspectiva do outro” seja de modo positivo, isto é, não egoísta. Por isso é essencial que a piedade natural esteja aliada à perfectibilidade humana, para então considerar o ponto de vista e o sofrimento do outro, conforme esclarece Rousseau: ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 429 Para tornar-se sensível e piedosa, é preciso que a criança saiba que existem seres semelhantes a ela que sofrem o que ela sofreu, que sentem as dores que ela sentiu e outras que deve ter ideia de que também poderá sofrer. De fato, como nos deixaremos comover pela piedade, a não ser saindo de nós mesmos e identificando-nos com o animal que sofre e deixando, por assim dizer, nosso ser para assumir o seu? (ROUSSEAU, 1999b, p. 289). O amor-próprio possui a capacidade da razão reflexiva, com esta capacidade e segundo o Emílio também por meio da contribuição da ação pedagógica do educador, pode-se refletir sobre seu próprio sentimento egoísta e, assim, agir com certa elevação moral na alteridade diante do outro. Portanto, o amor-próprio pode ir além de si e se transformar em virtude, conforme Rousseau: “Estendemos o amor-próprio aos outros seres, transformá-los-emos em virtude, e não existe coração de homem em que essa virtude não tenha raiz.” (ROUSSEAU, 1999b, p. 335). Dalbosco explica que o amor-próprio pode conseguir uma elevação virtuosa, pois “[...] a passagem do amor-de-si para o amor-próprio não significa o desaparecimento por completo do amor-de-si” (DALBOSCO, 2009, p. 16). O amor-próprio possui um caráter aporético, pois ele não é puro egoísmo, corrupção e maldade, visto que este sentimento não elimina por completo sua relação com o amor-de-si. A sociabilidade e a elevação da moral em seu aspecto positivo não significam a anulação do amor-próprio em favor do amor-de-si, isto é, a primazia de um sobre o outro, é possível sim, uma tensão dialética entre um e outro. Para tal, cabe ao homem domar e educar suas paixões, mesmo que para isso viva em um constante confronto consigo. Referências Bibliográficas DALBOSCO, Claudio A. Aspiração por reconhecimento e educação do amor próprio em Jean-jaques Rousseau. Revista Educação e Pesquisa. V 37,Nº 3 set/dez. São Paulo. 2011a. p 481 - 496. ___________. Crítica à cultura, sociabilidade moral e amour de l’ ordre em Rousseau. Revista Contexto & Educação. Ano 24. Nº 82 Jul/Dez. Ijuí: Editora Unijuí, 2009. p 13-33. ___________. (org). Filosofia e educação no Emílio de Rousseau: o papel do educador como governante. Campinas: Alínea, 2011b. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 430 ROUSSEAU, Jean Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos entre a desigualdade entre os homens : precedido de discurso sobre as ciências e as artes. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes. 1999a. ___________. Emílio ou da educação. Tradução Roberto Leal. 2º Edição. São Paulo: Martins Fontes, 1999b. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 431 DA CONCEPÇÃO DE VERDADE NA ONTOLOGIA FUNDAMENTAL DE HEIDEGGER Luana Borges Giacomini Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE Bolsista CNPq [email protected] Orientador: Prof. Dr. Roberto S. Kahlmeyer-Mertens RESUMO: O conceito de verdade, na ontologia fundamental de Martin Heidegger é o tema do presente trabalho. Para tanto, a apresentação de alguns de seus principais pressupostos, conceitos e argumentos serão apontados. A investigação será pautada, basicamente, em como Heidegger compreende o conceito originário de verdade em Ser e tempo; bem como em que termos se constitui a crítica do autor à compreensão tradicional (metafísica) de verdade. Muitas das críticas feitas pelo filósofo ao conceito tradicional de verdade, dizem respeito a uma interpretação que toma a verdade de modo reificado, ou seja, como uma coisa (res) dotada de propriedades verificáveis. Para Heidegger, tal reificação é algo que se mostra apenas a partir de um determinado comportamento do ser-aí (ente que pode compreender o sentido do ser e perguntar pelo mesmo, além de indagar sobre outros pontos que deste derivam, como por exemplo: o conceito de verdade). Palavras-chave: Verdade; ontologia; Heidegger O tema da verdade abordado por nós nesta pesquisa, por estar de algum modo implicado à noção de ser, provoca um fecundo e crucial diálogo da ontologia fundamental de Heidegger com a tradição metafísica. No interior deste projeto filosófico original, Heidegger aposta na fenomenologia como meio de garantir a recolocação da pergunta pelo ser. Para este filósofo, entretanto, a questão ontológica é abordada diferentemente da tradição, isso porque Heidegger não desenvolve uma nova teoria sobre a essência do ser, não examina supostas propriedades de um ser tratado objetivamente, tampouco transige com modelos teóricos usados pela metafísica ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 432 para desse tratar. “A ontologia fundamental irá dissolver fundações ontológicas e revelar que nossa existência não tem nenhuma base senão ela mesma” (RÉE, 2000, p.18). O que está em questão, na ontologia fundamental de Ser e tempo é o sentido de ser. Contudo, esta investigação é possível ao ser-aí (e é o que o caracteriza) pelo fato de possuir uma pré-compreensão de ser. Devido a isso, o ser não o é totalmente velado. É importante grifar que o ser-aí, enquanto figura central na recolocação da pergunta pelo sentido do ser, não constitui uma espécie de sujeito. Segundo o filósofo, não se trata de uma entidade transcendental possuidora de propriedades ou atributos subjetivos. O ente que compreende o ser é marcado pelo caráter ontológico de poderser e se autodeterminar na relação com os outros entes manifestos no horizonte compreensivo que seu mundo constitui. Devido a isso, as possibilidades de ser do ser-aí estão sempre em jogo e este só é o ente que é na medida em que existe no mundo. O ser-aí compreende ser antes de lidar com as coisas, e isto, justifica seu privilégio ontológico. O traço da pré-compreensão de ser é o que o diferencia dos demais entes. O animal, por exemplo, não lida com seu ser, ou seja, é pobre de mundo. “Ele tem menos. Menos o quê? Algo que lhe é acessível, algo com o que ele pode lidar enquanto animal, pelo que ele pode ser afetado enquanto animal, com o que ele pode se encontrar em ligação enquanto vivente” (HEIDEGGER, 2003, p.224). Contudo, deve-se enfatizar, que a “pobreza de mundo” do animal, não implica em sua inferioridade perante o ser-aí, mas tão somente em sua impossibilidade de poder se colocar a questão do ser:. Todo e qualquer animal, toda e qualquer espécie animal é tão plena quanto outra. Por tudo o que foi dito, torna-se evidente, desde o princípio, o discurso da pobreza de mundo e da formação de mundo não deve ser tomado no sentido de uma ordem de valores depreciativa. (HEIDEGGER, 2003, p. 225). O comportamento aludido por Heidegger é aquele que presume o ser-aí distanciado dos entes que o cercam. Tal comportamento toma tanto os entes quanto o próprio ser-aí, como existências dadas e independentes de qualquer circunstancialidade, criando, então, uma espécie de “hipóstase”. Na história da filosofia, a maioria das tentativas de dizer o ser já sempre o tomaram como conceito mais universal. Afirmar que o conceito de ser é o mais universal, não clarifica nada acerca do mesmo, ao contrário, obscurece. Heidegger afirma que a questão do ser pode ter tido alguma relevância em Platão e Aristóteles, mas desde tal época, a questão tem sido deixada de ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 433 lado. Como o filósofo evidencia, isto ocorre justamente por se tornar um conceito universal, como Jonathan Rée afirma: decaiu em “luminosa auto-evidência”. supõe-se que o ser deve ser o mais universal de todos os conceitos, dado que designa o que todas as coisas têm em comum. Em segundo lugar, assume-se que o ser é vago e indefinível, pois como algo tão geral poderia ter alguma característica distintiva? O terceiro pressuposto é o de que todos nós já entendemos o que é o ser, sem ter sequer de pensar sobre ele – afinal, qualquer criança sabe usar o verbo “ser”, e o que mais, além disso, poderia estar envolvido em uma compreensão do significado de ser? (RÈE, 2000, p. 12) Edmund Husserl já havia observado o comportamento hipostasiante em seu livro intitulado: Investigações lógicas (1990). Nele, a fenomenologia toma as coisas do mundo como fenômenos, ou seja, em seu acontecimento. Deste modo, a existência dessas coisas não é independente, como afirmariam as ciências que compartilham do naturalismo, tanto idealista ou racionalista. “Para Husserl, há de se aprender os fenômenos tal como percebidos pelos seus dados imediatos à consciência”. (KAHLMEYER-MERTENS, 2008, p.15). Heidegger, leitor das investigações de Husserl, preserva em suas pesquisas o achado fenomenológico que a intencionalidade constitui. Intencionalidade diz respeito a estrutura que está de base: é aquilo que caracteriza a consciência, e que justifica designar todo o fluxo de vivido como fluxo de consciência. Tal estrutura permanece vigente no principal projeto filosófico heideggeriano. No interior da ontologia fundamental, o ser-no-mundo resguarda a intencionalidade na medida em que este ser-aí transcende ao mundo no qual os entes se mostram de muitos modos. Observemos que, para a fenomenologia, a essência não é algo para além do objeto, não se trata de uma ideia que habita uma dimensão ulterior. A transcendência aqui não é o transportar-se para uma instância supra-sensível, metafísica, mas o ato da consciência sem perceber o que há de mais objetivo e imediato no fenômeno. (KAHLMEYER-MERTENS, 2008, p. 17) Na síntese heideggeriana da fenomenologia, ao invés de tomá-la por uma ciência dos fenômenos, como Husserl afirmava, Heidegger a pensa como um método de investigação, “porque um método se aplica sempre à resolução de problemas, somente após disso teríamos uma disciplina, também a fenomenologia só poderia pretender esse status diante de uma problemática” (KAHLMEYER-MERTENS, 2008, p.18). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 434 Assegurando as cabidas diferenças frente a Husserl, Heidegger observa uma tendência à hipostasia, nos comportamentos do ser-no-mundo cotidiano, a qual Heidegger caracteriza como um traço existencial do ser-aí. Com isso, é necessário enfatizar que a tendência hipostasiante não é observada apenas na existência cotidiana do ser-aí, mas também, pode ser encontrada nas manifestações singulares do mesmo, como é o caso do pensamento filosófico. Nas palavras de Heidegger, Descartes, por exemplo: não retira o modo de ser dos entes intramundanos deles mesmos. Com base numa ideia de ser, velada em sua origem e não demonstrada em sua legitimidade (ser=constância do ser simplesmente dado), ele prescreve ao mundo o seu ser próprio”. (HEIDEGGER, 2012, p.148) Apresentada a hipostasia, e esboçando o aporte fenomenológico que não apenas a detecta, mas que também a qualifica, torna-se possível indicar que o conceito de verdade, tal como na maioria das vezes compreendido no âmbito filosófico tradicional, ou seja, como adequação (neste caso a verdade pensada como a concordância de uma proposição de um sujeito sobre um estado de coisas verificável) também sofre influência das compreensões hipostasiadas da consciência, as quais se consolidam e se perpetuam na maneira com a qual são historicamente legadas. Podemos dizer que um dos projetos essenciais de Ser e tempo, se refere à hermenêutica da facticidade. A facticidade determina quem somos, diz respeito ao modo como já nos colocamos no mundo de fato. O homem lançado no mundo, já conta com o mundo que existe antes dele, ou seja, já conta com um modo, com uma facticidade. Até mesmo a tradição filosófica conta com uma facticidade específica. O esforço heideggeriano consiste em mostrar que na noção tradicional de verdade ainda permanece encoberto o horizonte fenomenal (intencional) do ser-no-mundo. Deste modo, a facticidade do ser-no-mundo, uma vez insuficientemente tematizada, deixa de revelar o horizonte fenomenal no qual a verdade se configura a este ente sempre como acontecimentos de verdade em circunstâncias fáticas específicas. Do contrário, o conceito passa a ser interpretado, como uma propriedade de entes tomados como subsistentes por si só e independentes do ser-nomundo. No livro intitulado Introdução à filosofia, especificamente no §12, Heidegger fala da necessidade de “elucidar a diversidade da verdade do ente nela manifesto se caracterizarmos mais proximamente os diversos modos de ser do ente e demonstrarmos como, por meio desses ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 435 diversos modos, é a cada vez exigido um modo próprio da verdade” (HEIDEGGER, 2009, p.87). O comportamento hipostasiante da metafísica tradicional, tende a interpretar a si e os demais entes como dotados de propriedades (substancialidade, realidade...) e, podemos acrescentar agora, no que concerne ao conceito de verdade, a mesma “mecânica” se aplica. Isso quer dizer que a verdade deixa de se mostrar em seu fenômeno originário, aberto em sua possibilidade no horizonte intencional do ser-aí, para reduzir-se a uma relação de correspondência, a saber: a concordância de um sujeito que efetua proposições acerca de um estado de coisas verificável. Neste caso, a verdade como tradicionalmente compreendida, é o juízo adequado entre dois tipos de coisas (uma res cogitans e uma res extensa). Segundo Heidegger, esta formulação já pode ser encontrada nas leituras tradicionais de Aristóteles. Para essas, o pai da lógica entende que a verdade seria a ligação lógico-judicativa entre os elementos aludidos. Heidegger compreende que a metafisica tradicional, em suas diversas tentativas de determinação da verdade fundamental e todos os entes, incorre na ingenuidade hermenêutica de ao lançar-se neste empreendimento, tomando critérios ônticos para determinar uma instância ontológico-fundamental. O lugar originário da verdade, não é a adequação da proposição à coisa, pois qualquer proposição veritativa não pode prescindir de ser descobridora do que seja a verdade; dito de outro modo, qualquer discurso (logos) que acerca do verdadeiro e que se trasponha para a forma conceitual de verdade de dá “originalmente em seu horizonte intencional”, (HEIDEGGER, 2012, p.31) não podendo deixar de levar em conta o âmbito compreensivo no qual esta verdade é descoberta: o horizonte compreensivo do ser-no-mundo. Afinal, ser-verdadeiro (verdade) diz ser-descobridor e este, por sua vez, é um modo de ser do seraí. Referências Bibliográficas: HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback; posfácio de Emmanuel Carneiro Leão. 7.ed. Petrópolis: Vozes, 2012. ___________. Os conceitos fundamentais da metafísica. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 436 ___________. Introdução à filosofia. Trad. Marco Antonio Casanova 2.ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. KAHLMEYER-MERTENS. Roberto S. Heidegger & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008. RÉE, Jonathan. Heidegger – História e verdade em Ser e tempo. Trad. José Oscar de Almeida Marques, Karen Volobuef. São Paulo: Editora Unesp, 2000. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 437 A TEORIA QUEER E A PRODUÇÃO DE UM CORPO SEM ÓRGÃOS. Lucas Henrique Nunes Batista Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE Bolsista Fundação Araucária. [email protected] Orientador: Profª. Drª. Ester Maria Dreher Heuser. RESUMO: O seguinte trabalho tem como proposta abordar elementos da Teoria Queer e, em conjunto, trabalhar o conceito de corpo sem órgãos de Deleuze e Guattari fazendo uma relação entre eles. Também se tem a intenção de explicitar o que estes dois autores têm a dizer sobre a Teoria Queer trabalhada no pós-estruturalismo francês. Primeiramente se fará uso da interpretação da autora Guacira Lopes Louro para melhor entender o que essa teoria tem a dizer, desde que esta orienta-se pelo pós-estruturalismo e usa de filósofos como Deleuze e Guatarri para elaborar seus estudos nessa área. A Teoria Queer está preocupada em discutir as novas formas de identidades, sexuais e de gênero, bem como teorizar formas de viver o próprio corpo. Segundo Louro, existem muitas formas de fazer-se mulher ou homem, e várias possibilidades de viver prazeres em desejos corporais, porém estas práticas são previamente estabelecidas, anunciadas e promovidas socialmente como formas desviantes de comportamento e vistas como uma anormalidade. O que acaba por determinar os indivíduos “anormais” como seres abjetos, pois a sociedade ainda está pautada numa visão heteronormativa que centra as relações humanas num binarismo Homem-Mulher. Os escritos de Gilles Deleuze e Felix Guattari abordam a questão da sexualidade, gênero e corpo como devir e como processo. A partir de O anti-Édipo e Mil Plâtos, Louro percebe forças para tratar da “queerização”, na medida em que percebe os filósofos criticarem a noção de “normalidade” e o comportamento imposto sobre os modos de vida existentes numa sociedade pautada pela heteronormatividade e pelo capitalismo, sendo assim burguesamente institucionalizada. Com este pano de fundo, se abordará o conceito de Corpo sem Órgãos e um possível diálogo com a Teoria Queer. Palavras-chave: Teoria Queer; corpo sem órgãos; Deleuze; Guattari ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 438 O corpo sem órgãos (CsO) é um conceito desenvolvido por Deuleuze e Guattari a partir de um poema de Artaud, é desenvolvido nas obras o Anti–Édipo e Mil Plâtos, o corpo sem órgãos faz parte de um tipo de vida nômade, segundo eles, é a maneira de pensar com o corpo; o corpo sem órgãos está a caminho quando o corpo se cansou do funcionamento determinado dos próprios órgãos e quer assim licenciá-los, porém isso não quer dizer que o corpo seja contrário aos órgãos. Este conceito não se opõe aos órgãos propriamente ditos, mas a ideia de um organismo, que faz com que cada parte do corpo seja inserida dentro de um contexto, organizando-o, codificando-o e, assim, determinando-lhe uma função para desempenhar, fazendo com que o corpo se feche para outros modos de individuação e para novas experimentações. Quando se começa a desencadear seu devir para a experimentação do corpo sem órgãos, significa que há uma inconformidade do corpo diante do organismo, ou seja, é o mesmo que dizer que o corpo se cansou dos órgãos e quer liberta-los, pois segundo os autores : “O corpo é o corpo” (1996, p.21), ou seja, ele é corpo sem precisar de um organismo, é independente desse organismo, ou seja, dessa organização que fizeram dele. Vejamos uma citação de Deleuze e Guattari sobre isso: O organismo não é corpo, o CsO, mas um estrato sobre CsO, quer dizer um fenômeno de acumulação, de coagulação, de sedimentação que lhe impõe formas, funções, ligações, organizações dominantes e hierarquizadas, transcendências organizadas para extrair um trabalho útil (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p.21). Quando dependemos do organismo, estamos presos a padrões estabelecidos pela e na sociedade, ficamos vulneráveis a censuras, repressões, regras, interpretações e automatismos. O CsO não reprime os impulsos, mas sim pertence a uma conexão de desejos, é a existência enquanto criação contínua, o que torna o CsO não apenas um corpo, mas sim um corpo constituinte. O mesmo tenta superar a padronização e o utilitarismo que fizeram do corpo e, por consequência, de certa maneira fugir da estratificação, mas não a descartando por completo, segundo os autores, como veremos adiante, é preciso guardar um pouco dos estratos que nos perpassam, ou seja, um tanto de organização é importante. Em suma, a intenção é desprender o corpo das amarras que o tornam um organismo e impedem que intensidades e novas sensações passem por ele, porém, Deleuze e Guatarri afirmam ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 439 que, quando se pretende desencadear essa experimentação, é preciso ter prudência, ela que fará toda a diferença nesse processo para que se tenha sucesso nas experimentações com o corpo. Não digo sabedoria, mas prudência como dose, como regra imanente à experimentação: injeções de prudência. Muitos são derrotados nessa batalha. Será tão triste e perigoso não mais suportar os olhos pra ver, os pulmões para respirar, a boca para engolir, a língua para falar, o cérebro para pensar, o ânus e a laringe, a cabeça e as pernas? Por que não caminhar com a cabeça, cantar o sinus, ver com a pele, respirar com o ventre, Coisas Simples, Entidade, Corpo Pleno, Viagem Imóvel, Anorexia, Visão cutânea, Yoga, Krishna, Love, Experimentação (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 11). Criar um corpo sem órgãos, desarticular um organismo, é uma experimentação que tende ao inacabado e visa abrir o corpo para novas conexões; sua intenção é que se possa passar pelo corpo novas intensidades, mas claro, como ressaltam os autores, com uma dose de prudência para que isso não leve à loucura ou até mesmo à morte. O CsO tende a novos devires, libertando-se do que ele foi institucionalizado para ser, que projeta uma finalidade para cada parte do nosso corpo e assim o transforma num organismo. A intenção de um CsO é permitir que o corpo possa se libertar entendendo que quando ele se fecha para a lógica de uma finalidade o mesmo deixa de experimentar suas múltiplas possibilidades. O corpo tem que se libertar da estratificação que o bloqueia ou o rebaixa, Deleuze e Guattari consideram três grandes estratos que estão relacionados a nós, quer dizer, aqueles que nos prendem mais diretamente: o organismo, a significância e a subjetivação. A superfície de organismo, o ângulo de significância e de interpretação, o ponto de subjetivação ou de sujeição, fazem com que o sujeito seja organizado em um organismo que articulará o seu corpo – senão for dentro dessa lógica, você será um depravado. Você será significante e significado, intérprete e interpretado, senão será desviante. Fazendo então com que nos tornemos sujeitos e, como tais, algo fixado, sem movimento de transformação, sujeitos de enunciação rebatidos sobre um sujeito de enunciado. Importante destacar que, criar um CsO não é o mesmo que matar a si mesmo, mas abrir o corpo a conexões que supõem agenciamentos, circuitos, conjunções, superposições e limiares, passagens e distribuições de intensidades, territórios e desterritorializações medidas à maneira de um agrimensor. A intenção é liberar a consciência do sujeito para fazer dela um meio de exploração, arrancar o inconsciente da significância (do valor que o sujeito dá ao objeto), e da interpretação para fazer dele uma verdadeira produção, porém, isso não é de total segurança nem ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 440 mais nem menos difícil do que arrancar o corpo do que o torna um organismo. Vale ainda reafirmar o que Deleuze e Guattari dizem a todo momento sobre o valor da prudência nessa produção: “A prudência é a arte comum dos três; e se acontece que se tangencie a morte ao se desfazer do organismo, tangencie-se o falso, o ilusório, o alucinatório, a morte psíquica ao se furtar à significância e á sujeição” (DELEUZE; GUATTARI, p.22). Segundo os autores, é necessário guardar o suficiente do organismo para que ele se recomponha, ou seja, não é necessário se desfazer completamente da interpretação e da significação, segundo eles, é necessário preserva-las inclusive para opô-las a seu próprio sistema, quando as circunstâncias o exigirem, quando as coisas, as pessoas, inclusive as situações, nos obrigarem. Também pequenas doses de subjetividade são necessárias para que se conserve o suficiente do organismo e para que, assim, se possa responder a realidade dominante. Por isso que a prudência entra como fator inteiramente necessário para esta produção, pois, por mais que se tente fugir do organismo e da estratificação, ainda assim se fará uso delas, para que se possa responder à realidade e não correr o risco de trilhar o caminho da morte. O que se torna claro nessa afirmação dos autores: Liberem-no com um gesto demasiado violento, façam saltar os estratos sem prudência e vocês mesmos se matarão, encravados num buraco negro, ou mesmo envolvidos numa catástrofe, ao invés de traçar o plano. O pior não é permanecer estratificado – organizado significado, sujeitado –, mas precipitar os estratos numa queda suicida ou demente, que os faz recair sobre nós, mais pesados do que nunca. Eis então o que seria necessário fazer: instalar-se sobre um estrato, experimentar as oportunidades que ele nos oferece, buscar aí um lugar favorável, eventuais movimentos de desterritorialização, linhas de fuga possíveis, vivencia-las, assegurar aqui e ali conjunções de fluxos, experimentar segmento por segmento dos contínuos de intensidades, ter sempre um pequeno pedaço de uma nova terra (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 24). Criar um corpo sem órgãos para si mesmo é, antes de tudo, descontruir o corpo tal como as segmentaridades em que nos constituímos nos organizaram, com o intuito de construir outro/s novos corpo/s e não destruí-lo. Segundo Deleuze e Guattari o CsO é um exercício, uma experimentação inevitável já feita no momento em que você a empreende, não ainda efetuada se você não a começou. Porém isso não é tranquilizador, pois sendo o CsO uma experimentação, se está exposto a falhas como as apontadas pelos filósofos, as quais podem conduzir até a morte. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 441 O CsO joga com o desejo e o não-desejo, ele não é uma noção, um conceito – ainda que façamos um esforço de definí-lo, mas antes de tudo é uma prática, ou melhor um conjunto de práticas. Nele nunca se chega, não se pode chegar, ele não tem um ciclo, não tem começo, nem tem um fim, ele é puro devir. O corpo sem órgãos é uma disposição perante ao inacabado, onde não há limites, o limite é imposto pelo próprio sujeito, e as consequências afetam diretamente a ele/ela; implica em usar a subjetividade como uma base para que assim se possa preservar a si mesmo, sem ter que exclui-la completamente, para que possam criar novas singularidades que transpõem padrões e regras. Para a filosofia de Deleuze e Guattari, na ideia de um CsO está contida a de um corpo livre de interpretação e juízos morais previamente determinados. Em poucas palavras, por meio do CsO, os filósofos podem pensar a criação de um corpo aberto a novas experimentações e novas formas de subjetivação. Este conceito será uma importante ferramenta para a Teoria Queer a fim de problematizar as questões de gênero e sexualidade. Pelos estudos de Guacira Lopes, professora e pesquisadora brasileira e teórica Queer, conseguimos perceber esse fluxo quando ela pensa o corpo e os usos que dele podem ser feitos; contudo, essa alteração, esse devir não são levados em conta apenas quando se trata de sexualidade e gênero, como se dependesse exclusivamente da mudança de sexualidade para outra, ou de um gênero a outro, mas sim na forma de vivencia-los, na sua postura política, ética e moral. Em um fragmento do livro Corpo Educado-Pedagogias da Sexualidade, organizado por Guacira Lopes, a autora trata da questão da identidade sexual e de gênero como algo que não é dado por natureza, e muito menos como algo que seja inerente ao ser humano, essas formas de comportamento estão baseadas numa normatividade da sociedade, numa visão heteronormativa. Segundo ela, muitos consideram que a sexualidade é algo que todos nós, mulheres e homens, possuímos "naturalmente". Aceitando essa ideia, fica sem sentido argumentar a respeito de sua dimensão social e política ou a respeito de seu caráter construído. A sexualidade seria algo "dado" pela natureza, inerente ao ser humano. Tal concepção usualmente se ancora no corpo e na suposição de que todos vivemos nossos corpos, universalmente, da mesma forma. No entanto, podemos entender que a sexualidade envolve rituais, linguagens, fantasias, representações, símbolos, convenções... Processos profundamente culturais e plurais. Nessa perspectiva, nada há de exclusivamente "natural" nesse terreno, a começar pela própria concepção de corpo, ou mesmo de natureza. Através de processos culturais, definimos o que é — ou não — natural; produzimos e ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 442 transformamos a natureza e a biologia e, conseqüentemente, as tornamos históricas. Os corpos ganham sentido socialmente. A inscrição dos gêneros — feminino ou masculino — nos corpos é feita, sempre, no contexto de uma determinada cultura e, portanto, com as marcas dessa cultura. As possibilidades da sexualidade — das formas de expressar os desejos e prazeres — também são sempre socialmente estabelecidas e codificadas. As identidades de gênero e sexuais são, portanto, compostas e definidas por relações sociais, elas são moldadas pelas redes de poder de uma sociedade (LOURO, 2010, p.8-9). Pode-se notar que relações de gênero e sexualidade, comportamentos, formas de expressão, maneiras de sentir prazer, são codificadas no seio de nossa sociedade e, assim, recebem valores morais baseados na visão heteronormativa, tornando os indivíduos que praticam relações diversas, seres desviantes das relações normativas imposta pela sociedade, como humanos taxados de “anormais”, de abjetos. Porém, Lobo defende que cada indivíduo tem uma maneira de viver seu próprio corpo, de se experimentar, de sentir prazer; que cada sujeito cria seu próprio modo de vida, alguns vinculados e outros desvinculados do padrão que é imposto pela sociedade. Ou seja, impor um gênero e uma sexualidade antes mesmo que os indivíduos tenham consciência de seu próprio corpo é tentar fechá-lo em uma norma imposta, impedi-lo de novas experimentações; o que torna o sujeito que se desvia dessa normatividade social um transgressor. Visto por esse viés, fica claro que o conceito, ou melhor, a experimentação do CsO, proposta por Deleuze e Guattari, tem relação com a concepção de corpo da autora bem como com os “seres estranhos” que são “objetos” de análise da Teoria Queer, pois eles são desvios dos padrões impostos pela/na sociedade e pela/na cultura, assim como aqueles que desencadeiam movimentos de libertação das estratificações para viverem novos fluxos e criarem para si outras identidades que fujam do que é comumente convencional. Ainda que a Teoria Queer tenha se desenvolvido marcadamente nos EUA a partir do final dos anos 80 e que críticos americanos credenciem a si o fato de terem a inventado, o cerne da temática já havia sido debatido desde 1968. No caso de Deleuze e Guattari, isso se deu na medida em que exploraram a desestabilização de um “si mesmo” e do que hoje chamamos de "sexualidades não-normativas". Filosoficamente é, especialmente, nos escritos de Deleuze e Guattari que a questão da sexualidade e da identidade de gênero como “queer”, ou seja, como devir e como um processo de diferir-se da diferença, é levantado. Podemos notar que nos escritos dos autores do Anti-Édipo, tanto a sexualidade quanto os debates em torno das questões ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 443 de gênero são abordadas como um devir, um processo de transformação e de fluxos contínuos em busca de novas conexões; foram esses estudos que possibilitaram aos filósofos construírem, em 1980, no Mil Platôs, a complexa noção de CsO, como foi visto antes. Desde o Anti-Édipo até Mil Platôs (DELEUZE; GUATTARI, 1977, 1987), a queerização é discutida e realizada no contexto de ataque do filósofo à “normalidade” e aos comportamentos impostos em uma sociedade capitalista e burguesamente institucionalizada. É nesse aspecto que a Teoria Queer se relaciona com o conceito de CsO, primeiro por ter essa concepção de experimentação e de novos afetos, e de fugir da normalidade previamente estabelecida pela sociedade. Ambos visam criar novas formas de vida e experimentação, e encontrar maneiras de se livrar dos julgamentos vigentes na sociedade. Ainda há muito a se pesquisar para que esta ideia de experimentação do CsO fique mais clara para nós e seja abordada mais profundamente em pesquisas futuras; mas consideramos ser possível afirmar que tanto a filosofia de Deleuze e Guattari, quanto os estudos relacionados a Teoria Queer afirmam a potência que há no desvio, na quebra com o que é considerado normal cultural e historicamente na sociedade, bem como mostram que, com prudência, o desvio da heteronormatividade imposta e da codificação dos corpos como meras máquinas que desempenham funções úteis a um determinado tipo de organização visa somente à utilidade e faz com que deixemo-nos de experimentar novas formas de vida e novos mundos possíveis. Referências Bibliográficas: DELEUZE, G; GUATARRI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996. LOURO, G. L.(Org.). O corpo educado. Pedagogias da sexualidade. 3 ed. Belo Horizonte: Autentica Editora, 2010. Conley VA.Trinta e seis mil formas de amor: A queerização de Deleuze e Guattari. Trajetória Queer: Deleuze e a Teoria Queer. (Nigianni C).; 2009. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 444 RACIONALIDADE CRÍTICA E RACIONALIDADE TECNOLÓGICA: CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS SOBRE A TECNOLOGIA NA SOCIEDADE CAPITALISTA A PARTIR DO PENSAMENTO DE MARCUSE Luís Fernando Jacques Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE Bolsista CAPES/Fundação Araucária [email protected] Orientador: Prof. Dr. José Luiz Ames RESUMO: Este artigo apresenta, a partir do pensamento de Marcuse, algumas reflexões sobre a tecnologia no contexto da sociedade capitalista e suas implicações para as relações sociais de produção. As relações sociais de produção mecanizadas perpetuam o controle social exercido pela classe dominante, no que se configura enquanto 'tecnocracia': uma espécie de autoritarismo científico da tecnologia. Nesse contexto, a extração de mais-valia relativa e a racionalidade tecnológica desempenham um papel destacado no processo da produção, como forma velada de encobrir, no interior do ambiente de trabalho, relações sociais de dominação do capital. Em contrapartida, precisamos construir uma nova racionalidade crítica que liberte o homem do processo de mecanização da vida, apontando para a superação do capital em prol da efetivação do reino da necessidade e da liberdade de fato. Palavras-chave: Tecnologia; tecnocracia; mais-valia relativa; racionalidade crítica e racionalidade tecnológica; relações sociais de produção. O filósofo Herbert Marcuse (1898-1979) em um de seus artigos intitulado Algumas implicações sociais da tecnologia moderna101, expõe um conjunto de interessantes reflexões sobre a relação entre a tecnologia no contexto da sociedade capitalista e suas implicações com as relações sociais de produção, sem perder do horizonte da crítica, a relação entre a tecnologia e o fascismo, Tecnologia, guerra e fascismo. Coletânea de artigos de Herbert Marcuse. Edição de Douglas Keller; tradução de Maria Cristina Vidal Borba; revisão de tradução Isabel Maria Loureiro. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999. 101 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 445 mais especificamente sobre o uso da técnica durante o período histórico na Alemanha marcado pela ascensão do nazismo (nacional-socialismo alemão).102 A tecnologia é vista por Marcuse antes de qualquer coisa, enquanto processo social de produção que não se resume somente ao conjunto de dispositivos e instrumentos técnicos que auxiliam a atividade humana, mas para além desta visão parcial e fetichizada da realidade social, a tecnologia é “uma forma de organizar e perpetuar (ou modificar) as relações sociais, uma das manifestações do pensamento e dos padrões de comportamento dominante, um instrumento de controle e dominação” (MARCUSE, 1999, p. 73). A tecnologia enquanto conceito abstrato e progressista, desprovido de determinações sociais e históricas, pode tanto promover a liberdade humana gerada pela abundância produtiva – o fim do trabalho árduo – ou a escravização humana pelo autoritarismo técnico e científico. Marcuse denomina como tecnocracia este autoritarismo científico da tecnologia, que reflete a correlação de forças das relações sociais de dominação e opressão, que foram exemplificadas historicamente pelo uso científico-ideológico da técnica pelos nazistas durante o período que dominaram a Alemanha. Este período histórico foi destacado pela “economia altamente racionalizada e mecanizada, com a máxima eficiência de produção” (MARCUSE, 1999, p. 74) que acabou por perpetuar a escassez e o sistema opressor ideológicototalitário. Estes são momentos históricos marcantes, que exemplificam uma das facetes do totalitarismo tecnológico, em outras palavras, sobre como o terror pode ser não só sustentado pela força física bruta, mas pode ser difundido de maneira sutil e velado por meio da manipulação da tecnologia, gerada pelo aperfeiçoamento do modo de produção burguês-capitalista. A intensificação do trabalho, a propaganda, o treinamento de jovens e operários, a organização da burocracia governamental, industrial e partidária – que juntos constituem os implementos diários do terror – seguem as diretrizes da maior eficiência tecnológica. Essa tecnocracia terrorista não pode ser atribuída aos requisitos excepcionais da “economia de guerra”; a economia de guerra é, antes, o estado normal do ordenamento nacional-socialista do processo social e econômico, e a tecnologia é um dos principais estímulos desse ordenamento (MARCUSE, 1999, p. 74). Período histórico compreendido entre os anos de 1933 até 1945, na qual o partido nazista controlou a Alemanha. Um dos ideais do partido nacional-socialista dos trabalhadores alemães (Partido Nazista) expressos em seu programa proclamado em 1920 que são o antiparlamentarismo, o antissemitismo/antijudaísmo, o anticomunismo, o totalitarismo, entre outros. 102 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 446 Uma das questões de consequências ideológicas que nos deparamos por meio da análise marcusiana se dá no interior do processo de aperfeiçoamento tecnológico, na qual surgem novas concepções e padrões de racionalidade e de individualidade que transcendem a esfera da produção, e acabam por influenciar e determinar a base material e espiritual do pensamento da sociedade civil. Não são somente ideias que partem do aperfeiçoamento da maquinaria e da extração de mais-valia relativa no interior da esfera produtiva, mas que se tornam ideias autorreferentes que determinam por elas mesmas o próprio processo de produção. A extração de mais-valia relativa desempenha um papel destacado neste processo de evolução tecnológica no modo de produção, pois a partir de Marx podemos perceber que esta é mais-valia mais sutil e velada no interior do ambiente de trabalho. O trabalhador acaba por se tornar sutilmente um apêndice103 da máquina, podendo ser substituído a qualquer momento pelos administradores do processo de produção. É a partir do investimento em mais tecnologia e ciência pelo capitalista, que ele consegue reduzir o tempo de trabalho necessário para a produção das mercadorias, embora, sem que com isso, altere os salários e as condições reais de trabalho do proletariado. Nas palavras de Marx: Chamamos mais-valia relativa absoluta a mais-valia produzida pelo simples prolongamento da jornada de trabalho, e a mais-valia relativa a mais-valia que provém ao contrário da abreviação do tempo de trabalho necessário e do correspondente da grandeza relativa das dez partes da qual é composta a jornada (MARX, 1963, p. 852, tradução nossa). Dentro desse processo intenso de mudanças do sistema de produção mecanizado, novos valores individualistas e concepções de mundo vão sendo criados para perpetuar o controle social através da ideologia dominante. O princípio do individualismo acaba por colocar o próprio indivíduo contra a sociedade civil, pois torna gradativamente os interesses imediatos dos indivíduos contrários ao sistema de regras sociais vigentes, guiados pela tecnocracia e pelo modo de produção burguês. Segundo Marcuse, é por causa das imposições tecnocráticas desse modelo de produção que ocorre a perda da espontaneidade e das potencialidades subjetivas dos trabalhadores, culminando na transferência da espontaneidade subjetiva dos indivíduos para uma personalidade objetiva Taylor, o fundador do modo de produção taylorista (processo de produção em série, baseado na divisão social do trabalho), denomina “gentilmente” o trabalhador que opera as máquinas de gorila amestrado. 103 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 447 encarnada na maquinaria de fábrica. Desse modo, podemos afirmar que o capitalismo barra toda a potencialidade crítica das novas invenções científicas, pois subordina a subjetividade criativa dos indivíduos ao processo de produção. A ciência e a tecnologia tornam-se submissas aos ditamos do capital; todas as invenções104 e descobertas inseridas no modo de produção capitalista, ou são arquivadas ou subsumidas dentro do próprio sistema, assim que tais ameacem interferir nas taxas de lucratividade do mercado. Por isso, todo protesto contra a padronização do comportamento dos trabalhadores pela tecnocracia é conceituada como insensata e excêntrica. “[...] o aparato o qual o indivíduo deve ajustar-se e adaptar-se é tão racional que o protesto e a libertação individual parecem, além de inúteis, absolutamente irracionais” (MARCUSE, 1999, p. 82). Neste sentido, todas as potencialidades de manifestação do pensamento crítico e autônomo são interrompidas pela “[...] padronização do pensamento sob o controle da racionalidade tecnológica” (MARCUSE, 1999, p. 85). Ser bem-sucedido dentro desse sistema social é sinônimo de adaptação aos ditames da tecnologia burguesa; não existe espaço para a autonomia e para criticidade. As relações sociais tornam-se cada vez mais mediadas pelo processo da máquina. A máquina é idolatrada deixando de ser apenas matéria, para torna-se algo semelhante ao homem. O homem se torna máquina e a máquina torna-se homem, pois cada vez mais, a eficiência da razão tecnológica torna-se eficiência lucrativa, racionalização vira sinônimo de padronização. Conforme Marcuse, a padronização do sistema de produção e consumo capitalista, cavou um túmulo para a razão. A ideia da eficiência submissa ilustra perfeitamente a estrutura da racionalidade tecnológica. A racionalidade está se transformando de força crítica em força de ajuste e submissão. A autonomia da razão perde seu sentido na mesma medida em que os pensamentos, sentimentos e ações do homem são moldados pelas exigências técnicas do aparato que ele mesmo criou (MARCUSE, 1999, p. 84). Esse processo que denominamos de mecanização da vida, não se restringe somente ao ambiente de trabalho, mas afeta e condiciona também o tempo livre e a esfera do lazer dos trabalhadores. A ordem tecnológica da divisão social do trabalho influencia e condiciona a ordem social e os espaços de socialização dos indivíduos. Os padrões de comportamento cada vez mais mecanizados influenciam as relações humanas, tanto de dentro para fora como de fora para Somente numa sociedade verdadeiramente emancipada a ciência e a tecnologia poderão libertar-se e efetivarem-se enquanto tal, em outras palavras, a ciência e a tecnologia estarão a serviço da humanidade e não mais a serviço do capital. 104 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 448 dentro; a imposição constante das regras da eficiência competitiva aos trabalhadores é tão avassaladora que, cada indivíduo torna-se um déspota de si mesmo e dos outros no ambiente de trabalho. O trabalhador acaba por realizar um processo de “autoconcorrência de si mesmo”, tanto individualmente como socialmente, exigindo cada vez mais de si e dos outros; se não cumpre as metas ou atende as expectativas da eficiência competitiva e tecnocrática, pensa que o problema reside nele e não culpa do sistema de produção competitivo e opressor. Marcuse aponta uma série de fatores que contribuíram ao processo de despotencialização do pensamento crítico em contrapartida ao avanço do pensamento conduzido pela racionalidade tecnológica. “Os homens, seguindo sua própria razão, seguem aqueles que fazem uso lucrativo da razão” (MARCUSE, 1999, p. 86).105 Marcuse também aponta que algumas importantes organizações de oposição ao sistema contribuíram no processo de despotencialização do pensamento crítico ao se incorporarem no aparato ideológico da racionalidade tecnológica. A “Federação americana do trabalho (AFL)” afirmava em 1940 que era uma organização comercial de interesse privado que tinha como missão “manter os preços altos e a oferta baixa, bem de acordo com a moda habitual de gerenciamento de outros interesses particulares” (VEBLEN apud MARCUSE, 1999, p. 87).106 Portanto os valores de verdade e concepções de mundo das organizações sociais, modificam-se na medida em que vão se enquadrando às regras da racionalidade tecnológica. Herbert Marcuse também afirma que nesse processo de incorporação dos grupos de oposição ao pensamento burguês vigente, tais organizações “foram se transformando em partidos de massa e suas lideranças em burocracias de massa” (MARCUSE, 1999, p. 88). Neste sentido, existem diferenças entre o conceito de massa e de indivíduo. Certamente uma multidão é um conjunto de indivíduos unidos pelos mesmos interesses, porém, a multidão une indivíduos “atomizados” buscando por meio da legitimidade da multidão, satisfazer seus interesses individualistas e competitivos. Segundo Marcuse, a especialização e a metodologia de testes vocacionais empregados pela psicologia burguesa atendem a lógica da racionalidade tecnológica, ao individualizar cada vez mais as pessoas no processo produtivo mecanizado e nos espaços coletivos. Nesta citação percebemos uma crítica indireta ao conceito do uso público da razão de Kant em seu conhecido texto “Resposta a pergunta: o que é esclarecimento?”, na qual Kant deposita a responsabilidade da falta de esclarecimento como consequência da preguiça e covardia dos homens. Kant também restringe o uso público da razão apenas pela escrita e pelo uso de pessoas alfabetizadas. Em outras palavras, o trabalhador analfabeto ou semianalfabeto que trabalha na fábrica, não teria o direito de manifestar seu descontentamento frente à ideologia dominante e a imposição da racionalidade tecnológica. 106 Citação de Marcuse do artigo de Veblen intitulado The engineers and the price system, Nem York, 1940, p. 88. 105 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 449 Sob outro aspecto, parecia até que o processo tecnológico iria erradicar o problema da escassez na contemporaneidade, contudo, não somente não conseguiu resolver tal problema, como intensificou a filosofia do individualismo na sociedade civil. Mesmo segundo Marx, as massas não são “bucha de canhão” da liberdade. O proletariado não é uma mera multidão, mas uma classe107 bem definida pelo seu papel fundamental que desempenha no processo produtivo. Neste sentido, em contraposição a influência da racionalidade tecnológica aos moldes do sistema capitalista, se faz necessário construir uma nova racionalidade crítica, que liberte o homem desse processo de mecanização da vida; uma racionalidade crítica enquanto “prérequisito para sua função libertadora” (MARCUSE, 1999, p. 91). Para que então, o progresso tecnológico atinja seu objetivo emancipador de acabar com a escassez e com as desigualdades sociais, por meio de um processo gradual e revolucionário de abolição da filosofia do individualismo e da competitividade. Por meio destas condições, a humanidade terá a possibilidade de superar/transcender o reino das necessidades artificiais e da liberdade fictícia, rumo ao reino da necessidade e da liberdade de fato. Encerramos este artigo com as palavras de Marcuse: [...] cada um poderia pensar e agir por si, falar sua própria língua, ter suas próprias emoções e seguir suas próprias paixões. Já sem estar preso à eficiência competitiva, o eu poderia crescer no reino da satisfação. [...] “Pertenceriam” a ele mais do que nunca e esta propriedade não seria infamante, pois não teria de se defender contra uma sociedade hostil (MARCUSE, 1999, p. 103). Referências Bibliográficas: MARCUSE, Herbert. Tecnologia, guerra e fascismo. Coletânea de artigos de Herbert Marcuse. Edição de Douglas Keller; Trad. Maria Cristina Vidal Borba; revisão de tradução Isabel Maria Loureiro. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999. MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel: Crítica da filosofia do direito de Hegel - Introdução, 1843. Trad. Rubens Enderle e Leonardo de Deus. 2ed. São Paulo: Boitempo, 2010. ___________. Le Capital: livre premier. Oeuvres Economie I. Trad. Joseph Ray. Paris: Gallimard, 1963. Nas palavras de Marx: “Onde se encontra, então, a possibilidade positiva de emancipação alemã? Eis a nossa resposta: na formação de uma classe com grilhões radicais, de uma classe da sociedade civil que não seja uma classe da sociedade civil, de um estamento que seja a dissolução de todos os estamentos, [...] Tal dissolução da sociedade, como um estamento particular, é o proletariado” (MARX, 2010, p. 156). 107 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 450 O ESPAÇO DESCRITO PELA FENOMENOLOGIA DE HEIDEGGER Maria Lucivane de Oliveira Morais Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE Pós-Graduanda Segunda Licenciatura (PARFOR) [email protected] Orientador: Prof. Dr. Roberto S. Kahlmeyer-Mertens Resumo: O tema da presente comunicação se refere ao espaço tratado a partir do paradigma fenomenológico proposto por Martin Heidegger na obra Ser e Tempo onde a espacialidade é pensada a partir do ser-aí. A fenomenologia pode ser descrita como um método de investigação que, nesse caso, tem como principal objeto de interesse o sentido do ser estudado por meio de uma analítica existencial capaz de apontar para a singularidade que permeia o existir humano. Além disso, a análise da realidade, do espaço e a forma como os fenômenos se mostram são preocupações constantes na obra de Heidegger que os descreve a partir de um enfoque ontológico capaz de ilustrar a questão do ser-no-mundo. A aplicação do método fenomenológico permite definir o conceito de espaço e suas características originárias bem como o papel que a dimensão espacial desempenha sobre a existência que é única em cada lugar ou espaço vivido. Dessa forma, objetivo geral proposto nessa comunicação visa: descrever sucintamente como o espaço é tratado na fenomenologia de Heidegger. A metodologia de pesquisa empregada nesse processo fundamentou-se em análises bibliográficas que permitiram a consulta de obras cujos autores se dedicaram ao estudo da fenomenologia Heidegger. Palavras-chave: Fenomenologia; Heidegger; espaço; ser-no-mundo Introdução: Em Ser e Tempo são notadas várias passagens em que Martín Heidegger se dedica a compreender o espaço e o lugar como conceitos distintos, entretanto, inseparáveis a partir de concepções ontológicas e da analítica existencial. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 451 O objetivo geral proposto nessa comunicação se fundamenta na necessidade descrever sucintamente como o espaço, termo amplamente utilizado por outras ciências, como, por exemplo, a Geografia, é tratado na fenomenologia de Heidegger assumindo um sentido diverso, afastado do olhar meramente técnico ou do resultado da apropriação do homem em razão de suas necessidades. A análise fenomenológica do espaço permite perceber sua vinculação com o conceito de lugar no qual o ser-aí existe, se compreende, desenvolve sua linguagem, habita, estabelece relações, age, cria possibilidades, se vincula, dá sentido a sua existência permite a manifestação dos entes e seus desdobramentos dando origem a novos lugares não homogêneos. As considerações apresentados nessa comunicação resultam de meus primeiros esforços para tentar compreender as reflexões de Heidegger sobre o espaço - que se mostram amplas, complexas e atemporais. Como resultado disso, verifica-se que a obra escrita em 1927 contribui significantemente, para que nas primeiras décadas do século XXI, o espaço ainda possa ser repensado bem como os lugares que dele resultam agregando sentidos distintos e únicos a existência do ser-aí que se abre para o mundo. 1. Fundamentação teórica 1.1 Analítica existencial e a fenomenologia de Heidegger Ao longo de sua produção acadêmica Martin Heidegger dedicou-se a realizar uma investigação sobre o sentido do ser e da existência humana a partir de um novo redirecionamento da fenomenologia, enquanto método de investigação, anteriormente elaborada por Edmund Husserl. Para Heidegger, a fenomenologia, interpretada com grande clareza em sua obra Ser e Tempo (1927), constitui-se em um método de investigação108 marcado pela dicotomia entre consciência e fenômeno (aquilo que se mostra em si mesmo, se deixa em evidência, acontece, vem à luz) A fenomenologia é um método de investigação, pois se aplica à resolução de problemas cuja questão mais fundamental é a questão do ser. (Kahlmeyer-Mertens, 2008, p. 19). 108 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 452 misturando-se a aspectos psicológicos e realísticos onde os atos conscientes estão sempre cientes do fenômeno e os fenômenos permeados pela consciência enquanto se mostram. A tarefa que, desde seu início, na escola de Husserl, permeia a fenomenologia concentra-se na compreensão do fenômeno tal como ele aparece no mundo. Para isso, é preciso contar com a consciência fenomenológica que é sempre intencional ao transcender para além de si mesma estando voltada para algo ou alguma coisa, sendo dinâmica, ativa e em movimento atribuindo significados e sentidos ao mundo. A fenomenologia se efetiva por meio da redução fenomenológica, método que pressupõe a suspensão de quaisquer juízos sobre os fenômenos para que sejam compreendidos tal como se mostram. Em relação a isto, Kahlmeyer-Mertens (2008, p. 16) afirma: Ao suspender as idiossincrasias, os conceitos dados pela ciência, as pressuposições do senso comum e os preconceitos arraigados à cultura, a fenomenologia passa a não mais estudar as faculdades transcendentais de um sujeito que trava suas relações representativas com seus objetos em um mundo exterior, e sim a estudar uma consciência para a qual, os fenômenos ocorrem. A consciência transcende intencionalmente sobre os fenômenos confrontando seu modo de ser, contemplando o que neles há de mais essencial ao mesmo tempo em que supera concepções oriundas da metafísica antiga (KAHLMEYER-MERTENS, 2008), permitindo o ser seja visto liberado de seus encobrimentos (NUNES, 2010). Corroborando com tais discussões, Nunes (2010) afirma que na concepção de Heidegger a fenomenologia pode ser definida como: [...] ciência da consciência, [...], como um permitir ver o fenômeno, aquilo que se mostra por si mesmo uma vez liberado de seus encobrimentos. E aquilo que assim se mostra é o ser do ente focalizado, uma vez na fenomenologia reinterpretada, a intencionalidade não é mais, como foi para Husserl, a propriedade fundamental da consciência, mas a direção para o ser compreendido, isto para o ser pré descoberto de que a consciência é o ponto de abertura. (p.11). Assim, a fenomenologia buscará desvincular completamente a “ontologia das motivações teológicas e do privado axiológico da ciência” para reelaborar uma nova concepção sobre a forma como ser-no-mundo integra e constrói o espaço (NUNES, 2010, p.11). O método de análise utilizado tem na intencionalidade o caminho necessário para compreender o ser cuja consciência ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 453 é ponto de abertura na medida em que o ente põe em jogo sua própria essência por meio da investigação da autenticidade ou pela inautenticidade, sobre o prisma da temporalidade. Como exemplo disso, pode-se citar o espaço que permeia a obra de Heidegger se constituindo em um dos fatores que permitem responder ao sentido do ser enquanto habita e constrói lugares. Heidegger, ao ampliar suas análises fenomenológicas sobre o ser-no-mundo, possibilita a construção de um campo fecundo de discussões que apontam para o homem, o modo como existe e promove mudanças. Para isso, a analítica existencial põe em suspensão os preceitos contidos nos conhecimentos dos fenômenos, pensando o sentido do ser e a singularidade de seu existir considerando sua finitude, vivência e experiências que lhe permite conhecer a si próprio. Corroborando com estas discussões em torno do espaço pensado de forma ontológica, foram tecidas as breves considerações seguintes que discorrem sobre o modo como o ser-aí habita e espacializa novos lugares. 4 O espaço na fenomenologia de Heidegger A compreensão sobre a forma como o homem cria significados no mundo, suas relações e circunstâncias, fazem emergir o conceito de “Dasein”, que pode ser traduzido pela Língua Portuguesa como “ser-aí” (termo que, em determinados contextos, possui equivalência a “ser-nomundo”). Para Saramago (2008, p.29): [...] o Dasein representa o existir em cada caso particular, no aí, no “estar sendo” de cada um. Assim, o existir fático determina um modo de compreensão da existência que já se dá no interior e a partir de si mesma, de tal forma que nunca pode ser contemplada “de fora” como um objeto perante o sujeito. O ser-aí experimenta a si mesmo na medida em que sujeito e objeto interpenetram-se em um mesmo fenômeno, fato que diz respeito à espacialidade do Dasein que se compreende como possibilidade, contribui para a configuração de lugares que ele espacializa e desperta os sentidos de pertencimento específicos a cada ser. (SARAMAGO, 2008). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 454 A relação que pauta o desenvolvimento da consciência em relação a um fenômeno permite a criação de um espaço específico, onde o homem e sua existência são submetidos em nível ontológico sendo pensados por meio da analítica existencial. Para Stein (2004, p.213-214): A analítica existencial nos permite pensar o ser humano a partir da compreensão, enquanto esta possui uma estrutura a priori. Mas esse a priori não se separa da existência. Ele é a existência enquanto transcendência. Assim como se afirma que há categorias na metafísica (em Aristóteles, Santo Tomás e Suarez), que são as possibilidades de nosso acesso às coisas e ao ser humano como coisa, assim também os existenciais são os modos de ser do Dasein e então do ser humano, a partir dos quais se constitui o mundo e a relação com as coisas no mundo. O ser-aí torna possível compreender a estrutura fundamental própria do existir humano e de sua atuação no mundo a partir de um viés ontológico. Será a analítica existencial a responsável por compreender as estruturas que concretizam o sentido do existir humano no mundo, logo seraí e mundo109, complementam-se. (BRASIL, 2005). Nesse sentido, a pergunta pelo sentido do ser e também sob a existência humana, marcam uma análise fundamental quando o modo do ser é tomado como fenômeno determinado pela investigação fenomenológica. Portanto, “o ser do homem é um ser-aí, entendendo esse modo de ser como sua essência” (KAHLMEYER-MERTENS, 2008. p.20). O ser-aí existe e se lança no mundo compreensivamente, cumprindo propósitos e delineando relações sociais cujo âmbito é espacial. Saramago (2008) alerta para existência de um laço indissolúvel entre o mundo e o ser-aí, termo que designa tanto o ser do mundo quanto a vida humana, assim, a expressão ser-nomundo designa a unidade entre mundo e vida humana na palavra existência, que nos remete a sua espacialidade. Para Heidegger (2002, p.126), o espaço reflete a essência do ser-aí não lhe sendo exterior e, nem uma vivência interior, sendo na base física em que ocorre uma separação entre o ser e o ente, por isso, define: A palavra do antigo alto-alemão usada para dizer construir, "buan", significa habitar. Diz: permanecer, morar. O significado próprio do verbo bauen A compreensão de espaço na obra de Heidegger perpassa obrigatóriamente pelo conceito de mundo. (BRASIL, 2005). 109 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 455 (construir), a saber, habitar, perdeu-se. Um vestígio encontra-se resguardado ainda na palavra "Nachbar", vizinho. O Nachbar (vizinho) é o "Nachgebur", o "Nachgebauer", aquele que habita a proximidade. Os verbos buri, büren, beuren, beuron significam todos eles o habitar, as estâncias e circunstâncias do habitar. Sem dúvida, a antiga palavra buan não diz apenas que construir é propriamente habitar, mas também nos acena como devemos pensar o habitar que aí se nomeia. Quando se fala em habitar, representa-se costumeiramente um comportamento que o homem cumpre e realiza em meio a vários outros modos de comportamento. Em virtude de sua racionalidade, domínio de técnicas e recursos materiais, será nesse espaço que o homem construirá lugares em que possa habitar, agindo sobre a natureza atendendo as exigências de seu existir e, que se espacializam em âmbitos distintos. Na media em que habita, o homem “espacializa” distintos lugares, compreende sua natureza. Entretanto, Heidegger alerta que a mero habitar em diversos lugares pode afastar o homem de sua essência, seja pelas coisas construídas ou pelos artefatos que o cercam (SARAMAGO, 20082). Cabe mencionar que “[...] Heidegger compreendia como sendo a relação original entre lugar e espaço, ou seja, a relação na qual os espaços são concedidos por lugares [...] Dasein e mundo formam-se mutuamente [...]” (SARAMAGO, 2008, p.67). Apenas com sua ocupação cotidiana o ser-aí terá acesso ao espaço promovendo mudanças. Portanto, o conceito de espaço vincula-se de forma ontológica com o lugar e a construção de lugares no mundo. O espaço, para Heidegger vai muito além de uma mera base física, das definições trazidas por ciências como a Geografia e de seu funcionalismo, devendo ser pensado a partir da temporalidade do ser-aí, o habitar, a produção de novos lugares e a sensação de pertencimento. Serão vários lugares que permitirão a construção do espaço - os termos se diferenciam, entretanto, não podem ser dissociados. Nas palavras de Heidegger (2009, p.166): O espaço nem está no sujeito nem no mundo está no espaço. Ao contrário, o espaço está no mundo à medida em que o ser-no-mundo constitutivo da presença já sempre descobriu um espaço. O espaço não se encontra no sujeito nem o sujeito considera o mundo “como se” estivesse num espaço. É o “sujeito” entendido ontológicamente, a presença, que é espacial em sentido originário. Porque a presença nesse sentido é espacial, o espaço se apresenta como a priori. Este termo não indica a pertinência prévia a um sujeito que de saída seria destituído de mundo e se projetaria de si um espaço. A priori significa aqui precedência do encontro com o espaço (como região) em cada encontro do que está no mundo circundante. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 456 O Espaço é um modo de o Ser-aí experimentar o mundo. De modo cotidiano, ou seja, na decadência própria ao dia a dia, o ser-aí interpreta o fenômeno do espaço como espaço físico. De modo fenomenológico, o espaço é um existencial do Ser-aí. Trata-se da espacialidade (räumlichkeit) dele. No aí do mundo, espaço é sempre espaço de jogo e nunca um espaço previamente dado. (KAHLMEYER-MERTENS, 2008). Para Heidegger, o habitar do ser-no-mundo se constrói em um espaço único e dinâmico marcado pela proximidade direcionada. (FOLTZ, 2000), portanto, não há sujeito sem mundo tampouco homem sem “ser-aí” (Dasein), este, que coexiste em um mundo compartilhado por outros seres-aí em meio aos entes que se mostram. (OLIVEIRA, 2010) Os fenômenos que se manifestam nesse espaço não devem ser analisados de forma desvinculada da consciência, para que as considerações alcançadas não se resumam apenas ao esforço interpretativo do modo de ser, do cotidiano e da conduta que caracterizam um plano contemplativo do espaço que habitam. Corroborando com estas discussões, Nunes (2010, p.16) afirma que o “Dasein compreende esses nexos referenciais, cujo todo é dotado de significação – um entrelaçamento de significações, do qual é inseparável o mundo circundante, cujo âmbito é espacial [...] Na obra Ser e tempo de Heidegger (2013, p.110) os entes estão “dentro do mundo”, portanto, para descrevê-lo seria necessário: [...] elencar tudo o que se dá no mundo: casas, árvores, homens, montes, estrelas. Podemos relatar a “configuração” desses entes e contar o que neles e com eles ocorre. Mas é evidente que tudo isso permanecerá um “ofício” préfenomenológico que, do ponto de vista fenomenológico, não pode ser relevante. A descrição fica presa aos entes, é ôntica. O que, porém se procura é o ser. Em sentido fenomenológico determinou-se a estrutura formal do fenômeno como o que mostra enquanto ser e estrutura do ser. Descrever fenomenológicamente o “mundo” significa: mostrar e fixar numa categoria conceitual o ser dos entes que simplesmente se dão dentro do mundo. Os entes dentro do mundo são as casa, as coisas naturais e as coisas “dotadas de valor”. [...] Heidegger propõe-se a descrever fenomenologicamente o “mundo” mostrando a existência de uma categoria conceitual sobre o ser dos entes e a forma como se dão nesse espaço (dividemse entre coisas naturais e coisas dotadas de valor). A análise relativa à natureza de um ente deve ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 457 estar fundamentada sobre aspectos ontológicos que permitem entender como os fenômenos se mostram no mundo bem como a essência do ser-no-mundo. Diante do que se tem discutido, torna-se propício mencionar a ressalva que Saramago (2008, p.49) efetiva no decorrer de seu livro: Em suma, a idéia de espaço – sempre compreendida como a espacialidade do mundo – está atrelada ao que há de mais imediato e utilitário na existência, ou seja, aos objetos que a tornam “perceptível” como localidade familiar e habitável, não podendo o espaço sequer ser concebido fora do fechamento da referencialidade do mundo, de sua familiaridade e confiabilidade específicas. Mostra-se apenas na forma de localidades que possibilitam a reunião de uma multiplicidade de coisas, não podendo, ele próprio, ser descontextualizado ou “isolado” por qualquer aproximação teórica sobre o risco de que se perda de vista o seu sentido fundamental. A familiaridade mostra-se, nesse sentido, como fundamento, ou condição, para a existência de uma totalidade referencial, e está diretamente, implicada em inúmeras e importantes considerações sobre o espaço ao longo da obra de Heidegger. A familiaridade caracteriza a obviedade característica da realidade humana, delineado pelo caráter de encontro, conhecimento co-mundano mediano, enraizado na cotidianidade e que só se expande até o limite de ser-lhes suficiente, sendo notórios os sinais de ocupações humanas, até mesmo naquilo que é estranho, não-familiar e que marca o mundo “dos-outros”. Heidegger se mantém intrigado pela questão inerente a dicotomia entre o pertencimento a um lugar – o lugar de origem – e a estranheza de se estar fora dele, onde o não habitual se abre para novas interpretações do sentido do ser que se lança sobre o espaço. (SARAMAGO, 2008). É necessário, portanto, que no âmbito da fenomenologia sejam buscados outros sentidos não habituais para o entendimento do mundo e de sua espacialidade, para os motivos que justificam a existência do ser em um dado lugar e que permitem sua habitação, uma vez que o ser-aí está no mundo e tem consciência dele. Para Heidegger (2002, p. 143): O homem está superando as longitudes mais afastadas no menor espaço de tempo. Está deixando para trás de si as maiores distâncias e pondo tudo diante de si na menor distância. E, no entanto, a supressão apressada de todo distanciamento não lhe traz proximidade. Proximidade não é pouca distância. O que, na perspectiva da metragem, está perto de nós, no menor afastamento, como na imagem do filme ou no som do rádio, pode estar longe de nós, numa grande distância. E o que, do ponto de vista da metragem, se acha longe, numa distância inconmensurável, pode-nos estar bem próximo. Pequeno ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 458 distanciamento ainda não é proximidade, como um grande afastamento ainda não é distância. Diante de tal análise, Heidegger chama atenção para o fato de que não é a distância geométrica utilizada para indicar a localização que determina o sentido do ser que se lança sobre o espaço, aproximando ou afastando-o, uma vez que o “aqui” do ser aí envolve “estar junto de”. Ao habitar o mundo o ser-aí espacializa o lugar e se relaciona com outros entes. Ser e ente ocupam o mesmo espaço. O homem é mundano, tece relações com outros entes e, portanto, se torna um ser-com-outro, permitindo que o ser-aí exista no mundo delimitando seu horizonte existencial. Enquanto pre-sença, o ser-aí projeta sua existência sobre o mundo, se espacializa, tece relações, cria utensílios, agrega valores, cria possibilidades, estabelece uma teia relacional denominada como cotidianidade mediana no qual são partilhados costumes, hábitos e cultura intrínsecos ao ser-no-mundo que se abre como possibilidade. Procura reduzir as distâncias e continuamente encontrar o sentido de seu ser. O espaço permite ao homem se descobrir no mundo, pois: [...] o espaço só pode ser concebido recorrendo-se ao mundo. Não se tem acesso ao espaço, de modo exclusivo ou primordial, através da desmundanização do mundo circundante. A espacialidade só pode ser descoberta a partir do mundo e isso de tal maneira que o próprio espaço se mostra também um constitutivo do mundo, de acordo com a espacialidade essencial da presença, no que respeita à sua constituição fundamental de ser-nomundo (HEIDEGGER, 2013, p. 168) Ao se projetar sobre o espaço, o homem descobre os traços fundamentais de sua existência, se faz presença, ocupa um lugar, configura novos lugares e os espacializa – se abre como possibilidade, permite o despertar dos sentidos de pertencimento e também de permanência em lugares não homogêneos compartilhado por outros entes. Heidegger (2002, p.150) busca compreender as especificidades que delineiam o conceito de lugar levando em consideração seu aspecto temporal e espacial, que podem ser descritos da seguinte maneira: A proximidade direcionada ao utensílio significa que ele não ocupa uma posição no espaço, meramente localizada em algum lugar [...] O local e a ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 459 multiplicidade de locais não devem ser interpretados como o onde de qualquer ser simplesmente dado de coisas. O lugar é sempre o ‘aqui’ e ‘ lá’ determinados a que pertence um instrumento. [...] A condição de possibilidade da pertinência localizável de um todo instrumental reside no para onde a que se remete a totalidade de locais de um contexto instrumental. Ao estudar o espaço, Heidegger avalia que este se constrói atrelado a consciência humana, adquirindo distintas especificidades segundo a temporalidade que o caracteriza e permite a elaboração de significados específicos ao habitar que se mostra pleno de relações possibilitando ao homem ser-(estar)-no-mundo. Pereira (2010) afirma que o estudo fenomenológico do espaço evidencia fenômenos construídos e que ultrapassam a mera espacialidade territorial na qual os homens estão inseridos, entretanto, o ser-aí só existe porque partilha com outros o espaço, ao mesmo tempo em que o homem só existe porque está no mundo. O espaço, portanto, emerge associado à concepção de mundo representando o ser-aí e a existência dos entes. Em linhas gerais e pautada em uma definição superficial é possível perceber que a fenomenologia desenvolvida por Heidegger torna possível analisar os fenômenos que se mostram no espaço, a existência de cada ser-aí, sua espacialização e, construção de sentidos na medida em que suas experiências ultrapassam a mera base física do território que residem. Portanto, o “homem está envolto de espaços vividos, está também envolto de outros homens que possuem percebem outros espaços de maneira diferente. Perceber, além de significar é dar valor”. (DUARTE; MATIAS, 2005, p.194). O ser-aí habita porque age e existe, dando origem a novos lugares. Homem e espaço complementam-se diante de múltiplas possibilidades abertas pela existência e pela possibilidade. Conclusão A busca pelo sentido do ser constitui-se na principal preocupação de Heidegger que se utiliza da analítica existencial para descrever como os entes se manifestam no mundo dentro do âmbito do ser-aí que partilha com outros o mesmo espaço, constrói lugares e se espacializa. Dentro do espaço, são construídos diversos lugares, vinculados a concepções interiores e exteriores do sujeito que o habita. A análise do espaço a partir da fenomenologia proposta por ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 460 Heidegger permite repensar diversos conceitos inerentes ao ser-aí, o modo como os entes e os fenômenos se mostram, o habitam, a construção do espaço que faz surgir diferentes lugares, a mera dominação tecnológica de distintos espaços que afastam o homem do reconhecimento de sua essência, dentre inúmeros outros aspectos. Este filósofo elabora críticas significativas para as concepções vazias sobre o espaço e, que são comumente trazidas por ciências como a Geografia, pela tecnologia entre outros estudos que o apontam apenas como uma base física. O ser-aí é o único que consegue promover a espacialização do mundo. A partir de sua existência efetiva diversas formas de ocupação, tece relações, define sua essência, dá sentido a seu ser, compreende o mundo e lhe atribui significados. No espaço, o ser-aí, constitui-se como pre-sença dando origem a lugares onde habita, fazendo surgir à sensação de pertencimento e familiaridade cujas especificidades dependem da temporalidade da qual emergem. Por meio do espaço o ser-aí experimenta o mundo e suas significações, desenvolve sua consciência e convive com outros entes em locais não homogêneos. Essas breves considerações tecidas sobre o espaço tratado por Heidegger deixam claro a necessidade de ampliação dos estudos sobre essa temática, que constitui um campo fecundo de discussões. Compreender o espaço e os lugares nele construídos implica em encontrar respostas ao sentido do ser que se utiliza de diversas formas de ocupação dando origem a novos lugares. Diante de tal contexto, disponho-me a ampliar meus estudos sobre tal temática que muito me intriga e tem estimulado o desenvolvimento destas primeiras análises. Referências Bibliográficas: BRASIL, Luciano de Faria. A Espacialidade do Dasein: Um Estudo sobre o § 24 de Ser e Tempo. Dissertação apresentada à Faculdade de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Filosofia, Área de Concentração em Filosofia do Conhecimento e da Linguagem. Porto Alegre, 2005 DUARTE, Matusalém de Brito; MATIAS, Vandeir Robson da Silva. Reflexões sobre o espaço geográfico a partir da fenomenologia. Caminhos de Geografia 17 (16) 190 - 196, out/2005 FOLTZ, Bruce V. Habitar a terra – Heidegger ética ambiental e a metafísica da natureza. Trad. Jorge Seixas e Sousa. Lisboa: Piaget, 2000 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 461 KAHLMEYER-MERTENS, Roberto S. Heidegger & a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. ___________. Como Heidegger interpreta o começo da metafísica em Ser e tempo?.Ítaca (UFRJ), v. 9, 2008, p. 174-181. HEIDEGGER, Martin. Construir, habitar, pensar. In: Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2002. ___________. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2001. 270 p. ___________. Ser e tempo. Trad. SCHUBACK, Marcia Sá Cavalcante. Petropolis, RJ, 2013 NUNES, Benedito. Heidegger & Ser e tempo. 3ª edição. Rio de Janeior, Zahar, 2010 OLIVEIRA, Lauro Ericksen C. de Oliveira. O ser-com como compartilhamento da verdade do ser-aí. Saberes. Natal – RN, v. 3, número especial, dez. 2010 SARAMAGO, Ligia. A topologia do ser: lugar, espaço e linguagem no pensamento de Martin Heidegger. Rio de Janeiro: ED. Puc-Rio; São Paulo:Loyola, 2008 ___________. Sobre A arte e o espaço, de Martin Heidegger. Rev. Artefilosofia, Ouro Preto, n.5, p. 61-72, jul.2008 2 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 462 JOHN RAWLS: PRINCÍPIOS MORAIS PARA A ESTRUTURA BÁSICA DE UMA SOCIEDADE JUSTA Marilda Pereira dos Santos Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE [email protected] RESUMO: O presente trabalho pretende investigar como se apresentam, na obra do filósofo John Rawls, Uma teoria da justiça, os princípios morais para a estrutura básica de uma sociedade justa. O filósofo político promoveu uma justificação teórica legitimando um Estado justo, promoveu uma experiência de pensamento, extraindo dela uma concepção de justiça que coloca em prática os princípios de justiça escolhidos pelos indivíduos. No conjunto da apresentação, pretendemos investigar qual é a relação da teoria da justiça com a formação moral dos indivíduos, mostrando como John Rawls fundamenta os princípios gerais de justiça e como ele concilia os dois princípios (defesa das liberdades com a garantia das igualdades). A proposta argumentativa do pensador americano traz contribuições importantes através de um novo modelo de teoria da justiça, evidenciando uma teoria da justiça como equidade. Palavras-chave: Equidade; justiça; princípios Rawls objetiva apresentar uma alternativa ao intuicionismo e principalmente ao utilitarismo tradicional, este último tido como a teoria predominante no campo da filosofia moral moderna. Segundo ele, grandes utilitaristas como Hume, Adam Smith, Bentham e Mill construíram doutrinas morais destinadas apenas a dar suporte a suas ideias e propósitos no campo da teoria social e da economia, sendo que seus críticos pecam por não apresentar um conceito moral que possa se opor às suas formulações doutrinárias. Para o autor, o modo como a sociedade está organizada e como os indivíduos agem nela, reflete nas questões sociais de cada um. A desigualdade social pode ser considerada como uma questão fundamental para Rawls, de tal modo que ela será a base para justificar a defesa de sua ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 463 concepção de justiça: a justiça como equidade110 (justice as fairness). O autor está preocupado com as políticas públicas e que rumo elas estão levando no contexto social de sua realidade, pretende resolver os problemas das desigualdades sociais apresentadas no capitalismo, nesse sentido, o autor busca aprofundar a concepção de justiça que está implícita no contratualismo apresentando uma base moral mais apropriada para uma sociedade democrática liberal, e defende, através da teoria da justiça como equidade, a importância do liberalismo político. Os princípios de justiça111 serão estabelecidos a partir de um procedimento de construção, satisfazendo um certo número de exigências razoáveis, isso quer dizer que representa as limitações dos termos equitativos da cooperação social e remete ao justo, de forma que as pessoas caracterizadas como agentes racionais definirão os princípios. Rawls, em sua teoria da justiça como equidade, pretende justificar uma concepção de justiça permitindo que todos os membros da sociedade compreendam porque as instituições e as disposições básicas que compartilham são aceitáveis, fazendo com que todos possam aceitar os argumentos reconhecidos publicamente como sendo válidos. Nesta situação, ensina Rawls, é necessário que os indivíduos saibam quais são as instituições sociais que são aceitáveis e coordenadas em um só sistema, de maneira que os cidadãos as julguem justificadas. Por um lado, se faz a pergunta: como fazer com que as pessoas entrem num acordo, ou reconheçam esse acordo a respeito de uma concepção de justiça que será mais razoável para elas? Por outro lado, é importante que tenhamos em mente que nos lembremos dois últimos séculos, considerando o desenvolvimento do pensamento democrático, vemos que não existe concordância sobre o modo de organizar as instituições sociais básicas de maneira que respeitem a liberdade e igualdade dos cidadãos, considerados como pessoas morais. O problema de Rawls é tentar resolver um conflito fundamental quanto à forma justa que as instituições básicas das democracias modernas deveriam ter. É aqui que se dá uma ideia de chegar a uma concepção de justiça que possa ser colocado em prática, a partir de uma vontade comum de chegar um acordo e que ele seja compartilhado e a solução encontrada não esteja fundamentada no senso comum, segundo Rawls “[…] não no 110A expressão é empregada para designar a doutrina contratualista e deontológica da justiça, seu traço essencial é a afirmação da prioridade do justo sobre o bem e a definição pela eqüidade do processo de escolha dos princípios de justiça (RAWLS, John. Justiça e Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.382). 111 Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao sistema mais extenso de iguais liberdades fundamentais que seja compatível com um sistema similar de liberdades para outras pessoas. Segundo : as desigualdades sociais e econômicas devem estar dispostas de tal modo que tanto (a) se possa razoavelmente esperar que se estabeleçam em benefícios de todos como (b) estejam vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos (RAWLS, 2008, p. 73). ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 464 sentido pejorativo, mas algo ligado a uma concepção da filosofia a partir de Bacon e Hobbes, o saber dos indivíduos emanando da observação e da experiência” (RAWLS, 2000, p.382). Na verdade, diz Rawls, a verdadeira tarefa consiste em descobrir e formular bases mais profundas desse acordo que estejam ligadas ao bom senso. A questão é que estamos à procura de argumentos razoáveis, chegando a um acordo enraizado na nossa própria concepção, como também nossa relação com a sociedade, ou seja, uma concepção moral fixada por uma ordem de objetos. Desse modo, é preciso elaborar uma concepção de justiça que seja aceitável a todos, mesmo que isso implique em resolver dificuldades teóricas, mas a tarefa social e prática continua sendo primordial, é importante que ela esteja de acordo com nossa compreensão como sendo a concepção mais razoável. O alerta que Rawls dá em uma teoria da justiça como equidade é tentar descobrir as ideias fundamentais ocultas do bom senso e relativas à liberdade, à igualdade, à cooperação social e à pessoa. Mas como essa concepção funciona? Bom, uma vez enunciada, a justiça como equidade deve propor uma concepção satisfatória de nós mesmos e da nossa relação com a sociedade vinculando aos princípios de justiça, sendo eles aplicáveis. Explica Rawls, que há três concepções básicas na teoria da justiça como equidade, (1) a ideia de sociedade bem ordenada, “[...] modelo do que é a sociedade democrática quando os princípios de justiça nela operam e a unificam, princípios de justiça derivando de uma doutrina que todos compartilham” (RAWS, 2000, p.382); (2) a ideia de pessoa moral, ou seja, “[…] os membros da sociedade são conhecidos como pessoas morais que podem cooperar tendo em vista a vantagem mútua, e não somente como indivíduos racionais que têm desejos e metas a satisfazer” (RAWS, 2000, p.380). O interesse de Rawls é destacar os aspectos essenciais da nossa concepção de nós mesmos como pessoas morais e da nossa relação com a sociedade enquanto cidadãos livres e iguais. Essas concepções descrevem alguns traços gerais que são característicos de uma sociedade, considerando que os seus membros considerem publicamente a si próprios. A propósito, uma última concepção é destacada: (3) a posição original. De acordo com Rawls, ela “[…] é um procedimento figurativo que permite representar os interesses de cada um de maneira tão eqüitativa que as decisões daí decorrentes serão elas próprias eqüitativas” (RAWLS, 2000, p.380). A terceira concepção é utilizada por Rawls como papel mediador, ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 465 servindo para vincular a concepção de pessoa moral aos princípios de justiça que caracterizam suas relações entre cidadãos na concepção de sociedade bem ordenada. Segundo Rawls, a posição original desempenha um modelo pelo qual os cidadãos de uma sociedade bem ordenada, ou seja, pessoas morais, selecionam idealmente os princípios de justiça aplicáveis à sua sociedade. Nesse caso, os limites impostos aos parceiros 112 em uma posição original representam a liberdade e a igualdade que as pessoas morais devem possuir em tal sociedade. Os parceiros são sujeitos racionais autônomos e participantes de um processo de construção, representam o aspecto da racionalidade que faz parte da concepção da pessoa moral própria dos cidadãos de uma sociedade bem ordenada, sua autonomia racional, (segundo Rawls é aquela dos parceiros na medida em que são agentes de um processo de construção), diferentemente da autonomia completa exercida pelos cidadãos na sociedade. Autonomia completa é aquela dos cidadãos na vida cotidiana, que têm uma visão de si próprios, defendendo e aplicando os princípios de justiça dos quais se puseram de acordo. Desse modo, Rawls identifica traços de uma sociedade bem ordenada. Em primeiro lugar, ela é de fato regida por uma concepção pública da justiça, é uma sociedade na qual cada um aceita, e sabe que os demais também aceitam, os mesmos princípios de justiça e a estrutura básica da sociedade respeita os princípios escolhidos, na medida em que os mesmos estão alicerçados em crenças razoáveis. Em segundo lugar, os membros da sociedade bem ordenada são pessoas morais, livres e iguais, e consideram a si mesmos e aos outros como tais em suas relações políticas e sociais na questão justiça, defendidas por Rawls como a liberdade, a igualdade e a pessoa moral. Rawls ensina, através da primeira característica da sociedade bem ordenada, que os membros dela são pessoas morais. A partir do momento que atingem a idade da razão, todos possuem e reconhecem nos demais um senso de justiça e uma compreensão do que é uma concepção de bem. Portanto, são considerados como iguais na medida em que se consideram uns aos outros como detentores de um direito de determinar e avaliar de maneira ponderada os princípios de justiça que devem reger a estrutura básica da sociedade. São livres na medida em São os atores imaginários desse procedimento artificial que é a posição original e que são incumbidos de escolher e justificar os princípios primeiros de justiça que representam de forma equitativa os interesses de todos os membros da sociedade (RAWLS, John. Justiça e Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.379). 112 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 466 que pensam ter direitos de intervir na elaboração de suas instituições comuns, capazes de revisar e modificar os fins com base em argumento racionais e razoáveis. Uma segunda característica da sociedade bem ordenada é a possibilidade de sua estabilidade no que se refere ao senso de justiça, ou seja, o contexto da justiça que, segundo Rawls, foi descrito por Hume como “[...] um conjunto das condições que obrigam as sociedades humanas a estabelecer regras de justiça, condições objetivas de igualdade e de relativa escassez de recursos, e as condições subjetivas constituídas pelo conflito de interesses” (RAWLS, 2000, p 375), tornando a justiça necessária. Dado que a posição original situa as pessoas livres e iguais de maneira equitativa umas em relação às outras, a concepção de justiça adotada, seja ela qual for, será igualmente equitativa. Daí o nome, segundo Rawls, “teoria da justiça como equidade”. Até aqui parece que Rawls consegue descrever como se dá a escolha dos princípios, no entanto, o autor certifica que na posição original os parceiros ficarão privados de algumas informações, na medida em que são colocados por trás do véu de ignorância113. É necessário excluir todas as informações tais como seu lugar na sociedade, sua concepção de bem, e demais informações particulares, para que ninguém tenha vantagem ou desvantagem, imperando a equidade, no relacionamento entre outro indivíduos, comportando-se como justiça procedimental pura, ou seja, não há critério independente para o resultado correto, existindo um procedimento correto ou justo de modo que o resultado será também correto ou justo. Para Rawls, as pessoas morais possuem uma concepção de bem, devido à nossa racionalidade, e o senso da justiça, capaz de compreender e aplicar princípios de justiça. Há também dois interesses superiores, diz Rawls,“[..] trata-se de interesses ligados a interesses de primeira ordem e que nos impelem a efetivar a nossa personalidade moral” (RAWLS, 2000, p.377). Assim, dado que os parceiros representam pessoas morais, eles são movidos por esses mesmos interesses que buscam garantir o desenvolvimento e o exercício das faculdades morais. Nesse sentido, Rawls pressupõe que os parceiros representam pessoas morais desenvolvidas, pessoas que possuem um sistema determinado de fins últimos, uma concepção particular de bem. Dessa forma, essa concepção produz uma terceira motivação, um interesse que busca proteger e Visando preservar a equidade na escolha dos princípios e não fazer que intervenham as contingências naturais e sociais, “os parceiros ignoram certos tipos de fatos particulares […]. Entretanto eles conhecem todos os fatos gerais que afetam a escolha dos princípios de justiça”. Por isso, a barganha e as relações de força não podem intervir e a imparcialidade é constitutiva da justiça (RAWLS, John. Justiça e Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.383). 113 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 467 efetivar a sua concepção do bem da melhor forma, introduzindo dessa forma, os bens primários114 que são enumerados em Uma teoria da justiça: I – As liberdades básicas ( liberdades de pensamento e liberdade de consciência etc.) são as instituições do contexto social necessárias para o desenvolvimento e o exercício da capacidade de escolher, de revisar e de efetivar racionalmente uma certa concepção do bem. Do mesmo modo, essas liberdades permitem o desenvolvimento e o exercício do senso da justiça em condições sociais caracterizadas pela liberdade. II – A liberdade de movimento e a livre escolha de sua ocupação, num contexto de oportunidades diversas, são necessárias para a consecução de fins últimos e para a eficácia da nossa decisão de revisá-las e modificá-las se desejarmos. III – Os poderes e as prerrogativas das funções e dos pontos de responsabilidade são necessários para desenvolver as diversas capacidades autônomas e sociais do eu (self). IV – A renda e a riqueza, consideradas no sentido amplo, são meios polivalentes (providos de um valor de troca) que permitem concretizar, direta ou indiretamente, quase todos os nossos fins, sejam eles quais forem. V – As bases sociais do respeito por si mesmo são constituídas pelos aspectos das instituições básicas que são, em geral, essenciais para os indivíduos a fim de que eles adquiram uma noção verdadeira de seu próprio valor enquanto pessoas morais e para que sejam capazes de concretizar os seus interesses de ordem mais elevada e de fazer progredirem os seus próprios fins com entusiasmo e autoconfiança (RAWLS, 2000, p. 63). Isso mostra que os bens primários são definidos quando se indaga qual o gênero de condições sociais e de meios polivalentes que permitem aos seres humanos concretizar e exercer suas faculdades morais, considerando as necessidades sociais e as circunstâncias da existência humana na sociedade democrática. Ao que parece, é importante considerar que a concepção que define as pessoas morais como tendo certos interesses superiores bem precisos condiciona a definição dos bens primários no quadro das concepções, de modo que esses bens não devem ser entendidos como meios gerais essenciais à concepção de quaisquer fins últimos. Assim, observamos que como objeto a autonomia racional depende dos interesses que mobilizam os parceiros e não somente pelo fato deles estarem ligados por algum princípio de justiça autônoma e superior. Se os parceiros fossem movidos somente por impulsos de ordem inferior como alimentação, bebida, teríamos que considerá-los como heterônomos, e não como autônomos. São definidos por Rawls como coisas que todo homem racional presumivelmente quer, não importa quais sejam os seus outros desejos, são constituídos pelos direitos, liberdades e oportunidades, renda e riqueza. (RAWLS, John. Justiça e Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.372). 114 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 468 Portanto, na base do desejo pelos bens primários, segundo Rawls, encontram-se interesses superiores da personalidade moral, e a necessidade de garantir nossa concepção de bem, os parceiros nesse caso, asseguram e efetivam as condições necessárias para o exercício das faculdades que os caracterizam enquanto pessoas morais. Espera-se que as pessoas se preocupem com as suas liberdades e oportunidades a fim de efetivar essas faculdades, e ao renunciar a isso elas carecem de respeito por si mesmas e demonstram fraqueza de caráter. Por isso, Rawls propõe que os parceiros são mutuamente desinteressados115. Não há dúvida de que, para Rawls, os parceiros, enquanto agentes racionais de um processo de construção, são descritos na posição original como seres autônomos sob dois pontos de vista. Em um primeiro momento, em suas deliberações eles não precisam aplicar nem seguir princípios de justiça que seriam prévios e anteriores. Em segundo momento, são descritos como não sendo mobilizados por seus interesses superiores, aqueles que têm por objetivo suas faculdades morais, preocupados em efetivar seus fins últimos, determinados, ainda que desconhecidos. Através de uma análise dos bens primários é que se define esse aspecto de autonomia, concluindo assim a noção de autonomia racional aplicada aos parceiros considerados como agentes de um processo de construção. A tese de Rawls diz que na posição original é considerado razoável o resultado que é expresso pelo conjunto dos cerceamentos aos quais estão submetidas as deliberações dos parceiros (enquanto agentes racionais de um processo de construção). Portanto, a maneira de representar o razoável na posição original conduz aos dois princípios de justiça e esses princípios, na teoria da justiça como equidade, têm conteúdo razoável para a estrutura básica de uma sociedade bem ordenada. Referências Bibliográficas: OLIVEIRA, Nythamar de. Rawls. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. 3ed. Trad. Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2008. ___________.O Liberalismo Político. Trad. Álvaro de Vita. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. São conhecidos como pessoas que não têm interesses nos interesses das outras, eles ignoram a inveja, e é assim que se exprime a sua racionalidade (RAWLS, John. Justiça e Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.376). 115 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 469 ___________.Justiça e democracia. Trad. Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2000 SILVA, Sidney Reinaldo da. Formação moral em Rawls. Campinas: Alínea, 2003. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 470 STATUS ARTE NA FALSIFICAÇÃO DE OBRAS Marlon José Alves dos Anjos: Universidade Estadual Paulista – UNESP. [email protected] Orientador: Prof. Dr. Sérgio Mauro Romagnolo RESUMO: A falsificação de obras de arte é um assunto estigmatizado e pouco comentado. Como tema assume riqueza por permitir contextualizar o conceito de arte, sua relação sociocultural e econômica e, por fim, lançar luzes à figura do falsificador. A relevância da falsificação manifesta-se ainda no atual número de obras de arte cuja procedência permanece uma incógnita, nesse ponto cumpre informar que hodiernamente o valor da obra de arte deixa de relacionar-se com o potencial de embevecimento e exaltação para assumir seu papel de acordo e imposição do mercado. Sob um olhar crítico e racional a arte pode assumir sua forma de produto de consumo e o falsificador como um reconstrutor da psique artística e da história cultural de um povo. Nessa senda insere-se o presente trabalho cujo objetivo é propor reflexões a respeito do mérito artístico na falsificação de obras de arte. Palavras-chave: Falsificação; status arte; conceito arte; valor; filosofia da arte A arte é noção sólida e privilegiada, possui também limites imprecisos. A questão que se faz presente constitui em: como saber o que é ou não obra de arte? O que as define, quais conceitos as sustentam e as alimentam? Afirmar que não temos definição para essas questões torna-se hoje ambivalente116. A diplomacia ordena afirmar que não temos uma noção comum 116O filosofo Arthur Danto demonstra com fôlego ao decorrer de alguns de seus livros celebres: A Transfiguração do lugar- comum (1981), Após o Fim da arte (1997). Que hoje, após Wittgeinstein, podemos através de ferramentas da filosofia da linguagem identificar a “essência” da arte, operando distante dos métodos narrativo e progressivo. Visto de outra forma, a arte a partir dos anos 60 gerou questões abstratas que só poderiam ser respondidas pela filosofia, não podendo mais ser explicadas pela historia ou a teoria da estética moderna. Danto afirma a mudança paradigmática nas teorias da arte ao analisar o Brillo Box de Andy Warhol Danto. E, através da filosofia da linguagem poder-se-ia formular respostas satisfatórias para a questão arte. tal afirmação pode ser consultado na Entrevista de Danto concedida a Manrica Rotili e Sante Scardillo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gW_QiTvWA20 acesso em: 10\06\2014. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 471 sobre o tema, que aborde toda a miscelânea de objetos artísticos, pode-se dizer, que todas as épocas, cada uma a sua maneira, formulou respostas à esfinge. Arte é um conceito polissêmico. Por meio de classificação sociocultural e econômica inúmeros artefatos recebem o status de artístico. Nesse sentido todos estão de acordo com o status arte atribuído a Mona Lisa de Leonardo Da Vinci (1452 – 1519), a nona Sinfonia de Beethoven (1770 – 1827), as peças de W. Shakespeare (1564 – 1616), a Guernica de Picasso (1881 – 1973). Cada um desses elementos representa a riqueza de seu período, representantes de estilos, períodos e peculiaridades na história da arte. Cada elemento é amparado por conceitos, teorias e demais definições do mundo da arte que legitimam tal mérito. Todos estão de acordo que os itens citados acima são genuínos. Inobstante, enquanto a autenticidade não for posta em cheque. “uma obra de arte é um artefato, de um tipo, criado para ser apresentado a um público da arte (...). Um artista é uma pessoa que participa conscientemente na produção de obras de arte. Um público é um conjunto de pessoas cujos membros têm suficiente preparação para compreender um objecto que lhe é apresentado. O mundo da arte é a totalidade de todos os sistemas do mundo da arte. (DICKIE, 2008, p. 144). Essa forma de pensar impinge regras da receptação de um sistema particular que compõe a instituição arte, ou se preferirem, o mundo da arte. Os artistas são considerados sujeitos que exercem, isoladamente ou em grupo, atividades reconhecidas como artísticas, consumando-se apenas no olhar do outro, ou seja, dependem da prática sociocultural que a instaura, fecundando o fenômeno artístico, como um artefato criado com discernimento, por alguém, com o objetivo de apresentá-lo ao público. Há uma relação em detrimento da estética, a instituição absorve o que a interessa, a arte que lhe é compatível, destarte, visto desse modo, a exibição é o ato por meio do qual alguém assume a responsabilidade e o poder de dizer o que é arte. O público deve estar preparado em algum grau para compreender este objeto, que por sua vez deve estar enquadrado nas regras de apresentação que compõem os sistemas particulares deste jogo. Uma obra de arte não é uma entidade que tenha existência independente. Em essência o status arte é um conjunto de relações que se sincretizam, criam conexões que são definidas tanto por suas relações quanto por suas possibilidades de conectividade. Essas conexões são ordenações distintas sendo que a ordem agrupa elementos que constroem uma noção de ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 472 familiaridade. Nesse viés ordenar faz com que a obra possa relacionar-se consigo mesma e com o mundo. A ordem permeia a história da arte sendo perceptível sua presença nas definições de períodos, gêneros, estilo, movimentos, manifestação, etc. Cada uma dessas demarcações carrega em si julgamentos probos e réprobos em relação à obra, ao fazer artístico e, porque não dizer, o que é entendido por arte. Cada período contou com pensadores que procuraram definir uma visão particular sobre a arte, história, vida, morte, etc. Zietgeist117, expressão segunda a qual cada período compreendeu o conceito de liberdade, criatividade, possibilidade, entre outras à sua maneira e à sua efetividade. Partindo dessa premissa podemos constatar que a ordem e a regularidade não podem abranger toda a miscelânea de objetos artísticos em seu período de nascença, por este motivo observamos o sucesso das obras póstumas e o agenciamento dos valores das mesmas. Poder-se-ia-dizer que temos como herança os vínculos entre a história, conhecimento e liberdade. Infelizmente estes elos foram desacreditados pelas múltiplas reinvenções de tradições, imposições de identidades nacionais e explicações seculares da história que encobriam políticas voltadas ao atendimento de interesses específicos, deste modo toda a história é um recorte particular que agrupa familiaridade e acaba por gerar obstáculos a elementos singulares. Talvez pela influência fria desses interesses a obra de Vincent Van Gogh (1853-1890) só teve seu talento reconhecido uma década após a sua morte. Fato semelhante se deu com o compositor Franz Schubert (1797-1828) cuja maioria de suas obras nunca foram executadas na vida do autor. Citese ainda Johann Sebastian Bach (1685-1750) e sua obra com mais de 1000 composições que só seriam reconhecidas após a sua morte. Dentre os motivos para esse reconhecimento tardio há a falta de divulgação, as fronteiras ideológicas e até atrito entre os costumes e as tradições de uma dada época. Em todas essas historias a arte, seu reconhecimento e o tempo dos artistas permaneceram dessincronizados. O descompasso manifesto no reconhecimento póstumo corrobora a premissa de que a arte opera com sistemas e conceitos estabelecidos, excluindo ou acolhendo determinados artefatos. É Espírito da época ou espírito do tempo. Termo atribuído ao filósofo Georg Hegel, mas ele nunca realmente usou a palavra. Em suas obras, tais como palestras sobre a filosofia da história , ele usa a frase der Geist seiner Zeit (o espírito de seu tempo), por exemplo, "nenhum homem pode superar seu próprio tempo, para que o espírito de seu tempo também é o seu próprio espírito " MAGEE, Glenn A Alexander, "Zeitgeist" , o dicionário de Hegel, Continuum International Publishing Group, p. 262, (2011). 117 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 473 perceptível que nem todas as obras de arte encontram seu valor adequado no momento em que passam a existir. Nesse sentido é o legado de Wolfflin: Até mesmo o talento mais original não pode prosseguir além de certos limites que são fixados para ele pela data do seu nascimento. Nem tudo é possível em todos os momentos, e certos pensamentos somente podem ser concebidos em certos estágios de desenvolvimentos. (WOLFFLIN: 1950, p. IX) O peso do contemporâneo pode massacrar um artista pois define os contornos da noção de arte que assumem a feição de verdadeiros paradigmas e, como tal, somente o tempo e a evolução e o passar do tempo podem alterar a visão particular sobre os artefatos, revalidando a cultura material, abrindo espaço para novas leituras sobre os artefatos antecessores. Para além desse peso, o status de Arte não é algo sólido e imutável bastando a ameaça de falsificação para que a obra perca seu prestígio. Foi o que ocorreu no caso apontado por Andrey Furlaneto na matéria da folha 07\05\2013 intitulada Sob Suspeita de Falsificação, Christie’s retira dez obras brasileiras de leilão. Segundo o autor, bastaram apenas alguns telefonemas para instigar dúvidas sobre a autenticidade das obras fazendo com que tais itens fossem retirados do catálogo de venda. Abruptamente, símbolos tidos de importância nacional com lances iniciais na casa dos trinta mil dólares, após os telefonemas os artefatos foram exonerados da possibilidade de venda e de qualidades artísticas, evanescendo por completo o status arte. Comumente obras que tenham a autenticidade questionada simplesmente são retiradas das galerias, impossibilitadas de participar de qualquer amostra, desprovidas do valor que um dia as institui. Somente esse fato propiciaria questionar o conceito de arte ou ainda o que havia na obra que a tornava arte. Não é crível ser apenas a assinatura do artista ou o reconhecimento da critica. Talvez a arte seja mais, talvez sejam todos os elementos carreados na obra, o deslumbre, a inquietação, o estranhamento, sentimentos que não podem ser afastados pela simples conveniência e suspeição. Depurando o conceito de arte e despindo nosso olhar de preconceito poderemos, numa releitura, vislumbrar a arte “essencial” e talvez, compreendermos que essa arte reside nas ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 474 falsificações, elas também suportam o peso do julgamento, o mesmo problema de mérito ligado ao reconhecimento118. Essa depuração por óbvio, esbarra na reprobabilidade da conduta ilícita do falsário entretanto, no presente trabalho esse elemento não será foco pois entende-se que a obra, quando findada, aparta-se do seu criador passando a existir por si mesma no mundo. Não por outra razão esse trabalho demanda uma isenção lógica pois se não pudermos ignorar a intenção do autor para compreender a sua obra acabamos por influenciar o entendimento da mesma. Nesse sentido “ se o mundo não se importava com a homossexualidade de Leonardo, a sífilis de Baudelaire, o fato de Gauguin ter abandonado a esposa” (WYNNE, 2008, p. 80) porque deveriam se importar em desvalorizar o ato de um falsário? Se pudermos eliminar a ilicitude do falsário da equação e voltarmos a atenção para o valor da arte, mais especificamente para a arte como atributo poderemos perceber que há a incidência de uma preocupação/solução econômica e não artística. Disso decorre a suspeita de que, na história da arte, a crítica e o mercado - num eterno condicionamento – acabaram por purificar os sistemas da arte estabelecendo conceitos não artísticos a fim de conferir valor às obras. Partindo dessa premissa os julgamentos e valores passados podem ser renovados a fim de servirem de ferramenta para “real” compreensão da arte. Se não for assim, se não se primar pela liberdade teórica e artística fortalecidas pela memória o paradigma termina sendo uma camisa de força. A maior aspiração da arte é revelar a natureza da obra, o discurso que permeia o trabalho e o transcende, passando a existir quando o outro a reconhece e surge um consenso, que convenciona seu valor artístico. É no olhar do outro que surge a afirmação que traduz algo em verdadeiro ou falso, em relação à essência da arte e também daquilo que a cerca, caracteriza e a distingue do restante. Para Jonathon Keats a “essência” artística da falsificação reside na possibilidade que o artefato possui em subverter o seu próprio papel, “arte legítima só consegue simular as violações que falsificações cometem. Neste sentido, falsificações são mais reais que a arte que falsificam”. (2013 p. 35) Filha de Diego Rivera nega autenticidade de 1.200 obras atribuídas a Frida Kahlo. 09\06\2011. Disponível em: http://entretenimento.uol.com.br/ultnot/efe/2011/06/09/ult1817u15004.jhtm acesso em: 22 maio 2014. 118 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 475 As obras possuem um discurso fundante e um objetivo. Este, sem dúvidas, é o reconhecimento. Nas falsificações o maior argumento é o engano, contudo, admite-se que seu principal objetivo seja a “comercialização do engano”. Parte-se da premissa que argumentos legitimados fazem uma obra tornar-se ícone na arte, onde estão inertes, diluídos entre a imagem e a história, esperando serem revelados sem, contudo, perder os valores de arte. Nesse sentido a obra que engana alcança a perfeição e se consuma. Logo, ambicionar despi-la desse mistério é um paradoxo, conforme apontado por Humberto Pereira: Mas quem engana a perfeição, justamente, não engana, pois o engano não pode ser outra coisa senão uma falta. Se alguém realizar algo para enganar, não disser que sua obra tem por artifício enganar e esse artifício não for descoberto, não se pode dizer, sem o risco de se cair num absurdo, que houve o engano. (PEREIRA, 2007, p. 02). Por mais lógico que possa parecer, o argumento transcrito acima não encontra eco no meio artístico. É fato que a falsificação encontra-se em campo ilícito e o falsificador é visto como mero reprodutor ou copiador, despido de criatividade119, em detrimento do potencial artístico quase meta artístico presente em suas obras, que vencem o tempo e prolongam o discurso dos grandes mestres. Talvez, esse não reconhecimento decorre da torpeza do meio artístico, que se vale dos falsificadores para enganar os incautos que vêem na Arte um mero investimento. Para demonstrar a incoerência da Arte hermética em seus conceitos, tomemos como exemplo o trabalho de um falsificador que sai do anonimato e torna-se um ícone da própria arte. Ao ter revelado sua origem, rapidamente sua importância transmuta de parâmetro, passa então de obra de arte para um trabalho de menor valor120. Curioso e contraditório é o caso dos quadros dos Girassóis de “Van Gogh”. Em toda sua vida o artista teria pintado quatorze Girassóis, dos quais, apenas cinco podem ser visitados atualmente. Hoje se discute a possibilidade de algumas destas obras serem, em realidade, falsificações. Alguns especialistas sugerem que seja falso, por exemplo, o quadro comprado pela João Carlos Lopes dos Santos, marchand que trabalha arduamente para desmerecer e exonerar qualidades artísticas a artefatos falsificados ou copiados. Disponível em: http://www.consultarte.com/scripts/apresentacao.asp acesso em: 20 de out. 2013 120 Casa de leilão retira obras falsificadas: disponível em: http://institutovolpi.com.br/midia2.php acesso em: 11\07\2014 às 15:20 119 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 476 companhia de seguros japonesa Yasuda121 que foi a leilão pela Christie’s de Londres. Um caso como esse não poderia ser nada menos que polêmico. Contudo, houve a atribuição da suposta falsificação a Claude Emilie Schuffenecker. Anos de pesquisa não foram suficientes para chegar a uma conclusão comum sobre a autoria da pintura, visto que, dependendo do resultado, poderia abalar os méritos e os valores atribuídos a tal obra e artista. O caso de Hans Van Meegeren122, artista que confessou ter falsificado nove obras de Vermeer, é deveras curioso. Esse pintor recriou uma das obras mais significativas, de notório valor econômico, e ao desejar ter sua obra reconhecida como arte encontrou terrível dificuldade para provar sua autoria. Se Hans Van Meegeren não tivesse decidido confessar, evitando, assim, o envio de grandes números de obras aos laboratórios, os quadros desse falsário imensamente talentoso ainda estariam proporcionando prazer a incontáveis frequentadores de museus em todo mundo. Embora tenha sido um “acidente histórico”, Hans foi obrigado a confessar, fazendo com que ele tenha entrado para a história como um falsário, e, como os todos falsários, tenha recebido a “morte cultural” – a censura. No entanto, falsificou o quê? Apenas assinaturas? Os quadros de Vermeer que Hans confessou ter falsificado não são autênticos? Ora, não carregam assinaturas dos mestres do passado. O que garante, no final das contas, que a assinatura de Hans seja menos qualificada do que a dos mestres que falsificou? Como não reconhecer o gênio Meegeren e não colocá-lo lado a lado com os grandes mestres da pintura holandesa do século XVII? Esse anacronismo causa perplexidade, mas se é possível dizer quais são os critérios para afirmar quem são os mestres da pintura na época de Rembrandt, a ausência de Meegeren é uma falha gritante. (PEREIRA, 2007 p. 3). 121Conteúdo disponível nos seguintes itens: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/10/31/ilustrada/11.html acesso em: 22 Nov. 2013 http://www.artexpertswebsite.com/pages/artists/super_van_gogh_forgeries.php acesso em 22 nov. 2013 122 O livro, Eu Fui Vermeer, e enganei os nazistas, de Frank Wynne, remonta a história do falsário Hans Van Meegeren, que reproduziu várias obras de Johannes Vermeer (1632-1675), além de outros artistas. Aborda a ascensão e queda de um dos mais bem sucedidos falsários do século XX, que transmuta de colaborador do nazismo para herói holandês. E, ao confessar que ao invés de ter vendido o tesouro holandês para o inimigo, Reichsmarschall Hermann Goering o engano vendendo Vermeer falsos em troca de duas centenas de obras holandesas. Tal afirmação não foi creditada pela crítica, nem pelo público. Hans, em um episódio teatral, pinta seu último Vermeer diante do júri. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 477 A mesma ambivalência da critica especializada, ao se utilizar de argumentos para afastá-lo dos grandes mestres, seria consequentemente aproximá-lo de artistas conceituais. Argumentos falhos, utilizados somente para afastá-los dos grandes mestres, seriam, por conseguinte, ambivalentes, pois, os posicionariam ao lado de Duchamp (1887 – 1968) e Andy Warhol (1928 – 1987). A falsificação é elemento indócil para colecionadores, conservadores, historiadores e o mercado da arte. Pois se recusa a utilizar as temáticas atuais de produção artísticas ao representar temas demasiadamente utilizados no passado ou por artistas antecessores, sendo rebelde, também, por se utilizar do próprio sistema da arte para formalizar seu discurso e transferir a sua crítica ao meio. Opera com o limiar dos julgamentos morais e éticos. E, por consequência, mina as verdades dogmáticas que historiadores, colecionadores e o mercado da arte constroem tanto apreço e, por fim, problematiza qualquer definição canônica a respeito da genuinidade, autenticidade, balançando o “imaculado” status arte. Referências Bibliográficas: DANTO, Arthur. Brillo Box and so forth, ( jan. 2010) Project by: Manrica Rotili, Camera Ivan Galietti. Editing. Andrea Marchegiani. Nova Iorque. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gW_QiTvWA20 acesso em: 10\062014. DICKIE, G. Definindo arte: intensão e extensão. Estética: fundamentos e questões de Filosofia da Arte. KIVY, P. (Org.) 1ªEd. São Paulo, 2008. ___________. El circulo Del arte: uma teoría Del arte. Ed. Paidos, Espanha, 2005 ___________. Introdução à estética. Ed. Bizâncio Lisboa, 2008 INWOOD, Michael. O dicionário de Hegel. Editora Jorge Zahar. Rio de Janeiro. 2011 PEREIRA, Humberto. A arte da falsificação. Ensaio, 2007. Disponível em: http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/1519,1.shl Acesso em: 02 maio 2013. SANTOS, João Carlos Lopes dos, Consultoria de arte. Disponível em: http://www.consultarte.com/scripts/apresentacao.asp acesso em: 20 de out. 2013 STREETER, Michael. Van Gogh "falso" pode abalar mercado. 2007. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/10/31/ilustrada/11.html acesso em: 22 Nov. 2013 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 478 VAN Gogh Forgeries and Fakes. Disponível em: http://www.artexpertswebsite.com/pages/artists/super_van_gogh_forgeries.php acesso em: 22 Nov. 2013 WYNNE, Frank Eu Fui Vermeer, A lenda do falsário que enganou os nazistas. São Paulo Companhia das letras, 2008 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 479 DIALÉTICA NEGATIVA: DA INSUFICIÊNCIA À POSSIBILIDADE Michele Borges Heldt Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUC-RS [email protected] Orientador: Prof. Dr. Eduardo Luft Resumo: Mais do que uma crítica ao positivismo lógico e à compulsão ao sistema proveniente da ontologização do ser, a dialética negativa de Theodor Adorno, tema do presente artigo, aponta para o que ele chamou de insuficiência do conceito. Entrementes, isso não significa que Adorno tenha defendido a validade de um pensamento desprovido de conteúdo objetivo. Antes disso, sua obra propõe à filosofia o desenvolvimento acerca de uma consciência da possibilidade, visto que, em Adorno, aquilo que o indivíduo deve ser é formado por aquilo que ele foi e também por aquilo que ele poderia vir a ser. Palavras-chaves: dialética negativa, Adorno, insuficiência, possibilidade. Para Adorno, primeiramente, a dialética deveria se libertar de seu caráter positivo e sistemático, pois a necessidade filosófica de compreensão e sistematização do conhecimento revelaria uma exigência de poder que faria com que a filosofia perdesse o seu real significado, regredindo ao status de uma ciência particular. Esse é o fundamento de sua dialética negativa, cujo desenvolvimento se dá, especialmente, a partir do confronto com o sistema dialético hegeliano. Segundo Adorno, "dificilmente haverá algum pensamento teórico de certo alento, que, sem haver 'armazenado' em si a filosofia hegeliana, pode hoje fazer justiça à experiência da consciência." (ADORNO, 2009, p.27). De acordo com Adorno, o verdadeiro interesse da filosofia deveria voltar-se justamente para aquele âmbito que Hegel rejeitou, ou seja, o âmbito do não conceitual, do individual e do particular. Em parte, Adorno compartilha com Hegel a ideia de que o conhecimento é fundamentado a partir de conceitos, contudo, a forma como isso se dá, na dialética negativa, é totalmente diversa. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 480 Enquanto que, para Hegel, a contradição seria a necessidade de existência de um outro para a consciência, em Adorno, a contradição seria o indício da inverdade da identidade, onde a aparência de identidade seria inerente ao próprio pensamento. Logo, a contradição não seria uma necessidade à parte que deveria ser, nas palavras de Luft, “superada e guardada” (LUFT, 2001, p.32) pela consciência, mas sim, parte constituinte da mesma. Ou seja, enquanto que, na dialética hegeliana a contradição deve ser suprassumida, na dialética negativa ela deve ser assumida como parte integrante da própria consciência. Dessa forma, segundo Adorno, no sistema hegeliano a aparência e a verdade se confundiriam, pois em Hegel a representação mais imediata é tida como um caminho rumo ao conhecimento verdadeiro, enquanto que, para Adorno, o conhecimento fenomenal é apenas uma aparência, onde o princípio da não contradição identificaria aquilo que é diferente sob a ótica do pensamento da unidade, deturpando, desse modo, o próprio conhecimento. O que é diferenciado aparece como divergente, dissonante, negativo, até o momento em que a consciência, segundo a sua própria formação, se vê impelida a impor unidade: até o momento em que ela passa a avaliar o que não lhe é idêntico a partir de sua pretensão de totalidade. Isso é o que a dialética apresenta à consciência como contraditório... A identidade e a contradição do pensamento são fundidas uma à outra. A totalidade da contradição não é outra coisa senão a não-verdade da identificação total, tal como ela se manifesta nessa identificação. Contradição é não-identidade sob o encanto da lei que também afeta o não-idêntico. No entanto, essa lei não é uma lei do pensamento. Ao contrário, ela é uma lei real. Quem se submete à disciplina dialética, tem que pagar sem qualquer questionamento um amargo sacrifício em termos da multiplicidade qualitativa da experiência. (ADORNO, 2009, p.14). A efetividade, que no sistema hegeliano seria fundamental para que a consciência se torne certa de si mesma com base na razão e sua atuação, em Adorno, a consciência já conteria nela mesma a equivocidade de um pensamento voltado para a unificação. Logo, a própria experiência já seria previamente manipulada com base naquilo que o pensamento gostaria de conceber. Essa constituição impositiva da realidade teria sido atribuída à relação “sujeito espírito”, onde o espírito, enquanto universal absoluto, condicionaria os indivíduos, transformando a necessidade de conceitualização em algo positivo. Na medida em que se recusa ao pensamento, ele é o absoluto; na medida em que, bem hegelianamente, ele não pode ser reduzido sem restos nem ao sujeito nem ao objeto, ele está para além de sujeito e objeto, apesar de, ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 481 independentemente deles, ele não ser de maneira alguma. A razão que não o pode pensar é por fim ela mesma difamada, como se o pensamento se deixasse de algum modo dissociar da razão (ADORNO, 2009, p.97). Nesse sentido, enquanto que, em Hegel, o espírito é o universal onde a “consciência-de-si” se efetiva, ou, dito de outro modo, são os conceitos experimentados, compartilhados e aceitos por todos, em Adorno, o espírito seria aquilo que se forma a partir de um pensamento idealista que não aceita nada que não esteja em consonância consigo mesmo, daí a necessidade de sistematização. Já o formato do sistema, seria adequado ao mundo que, de acordo com o seu conteúdo, se adaptaria à hegemonia do pensamento, onde unidade e concordância seriam, ao mesmo tempo, a idealização de um estado pacificado, que não seria mais contraditório mediante as coordenadas do pensamento dominante (o espírito absoluto). Assim, nessa lógica, produz-se não só uma burocracia para a sociedade, mas também, uma sociedade para essa burocracia; não só se produz uma tecnocracia para o povo, mas também se constrói um povo para essa tecnocracia; não só se produz um objeto para o sujeito, mas também, segundo a frase de Marx à qual hoje se podem dar prolongamentos novos e múltiplos, ‘se produz um sujeito para o objeto’ (MORIN, 2002, p.69). Precisamente aí entra a lei, que em Hegel representa o conceito e a experiência universalizados, onde a consciência-de-si se faria em conformidade com a lei justamente em decorrência dessa universalidade por ela assumida. Já em Adorno, a lei representa a ideologia presente no espírito da sociedade vigente, e incitaria o pensamento à positividade. Contudo, a positividade seria contrária ao pensamento, logo, necessitaria de alguma autoridade social para acostumar os indivíduos a ela, uma vez que as formas de pensamento costumam querer ir além daquilo que lhe é simplesmente dado. Na dialética negativa, é nesse contexto que a lei é empregada, a saber, como mecanismo de controle social em prol do pensamento dominante. Segundo Adorno, Hegel só pôde equilibrar essa tensão entre a inflexibilidade das leis morais vigentes e a dinâmica do pensamento singular através da construção do princípio da unidade do espírito absoluto. Desse modo, o princípio fundador dos sistemas teria de ser, necessariamente, embasado na razão, pois assim ele não poderia ser limitado por nada que viesse de fora do seu esquema, uma vez que, tudo aquilo que não se submete ao princípio da unidade, teria a aparência de violação da lógica. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 482 Assim, a sistemática hegeliana teria sido introduzida a tal ponto na consciência dos indivíduos, que teria se tornado ontologia. Daí a necessidade de desenvolvimento de um sistema que fixasse a ideia de que, aquilo que é dado de forma imediata, representaria a verdade da “coisa mesma”. Enquanto que, em Hegel, a cultura representa o lugar onde a consciência-de-si alcançaria a sua vigência, para Adorno, a cultura estaria intimamente ligada com essa ontologia que ele chamou de “ontologia do estado falso”. O ser-aí teria adquirido um sentido ontológico em Hegel graças à tese idealista do primado do sujeito, onde ele teria se aproveitado do fato de que o não idêntico precisaria ser determinado enquanto conceito e, com isso, o ser-aí teria sido transformado em identidade. Na dialética hegeliana, o ser-aí representa o fenômeno, ou seja, aquilo que é dado de modo mais imediato. A consciência se restringiria a esse concreto como sendo algo real, pois para ela, o concreto representaria aquilo que, dentro da razão lógica, seria algo possível. Essa capacidade significa distinguir algo daquilo que é desigual a si mesmo. Esse seria o momento qualitativo da razão, na medida em que reconheceria a separação entre o igual e o desigual. Essa separação levaria à máxima de que a consciência deve, levando em conta a diferença entre natureza e afirmação, ajustar-se à natureza das coisas, e não simplesmente agir de acordo com a sua vontade. Surgiria daí, o modo de comportamento espiritual marcado pelo perpétuo “retorno a”. O absoluto teria se transformado em algo histórico-natural, a partir do qual a norma da auto adaptação pôde ser implementada. Isso, aliado à compulsão ao sistema, que permite que os indivíduos confiem em sua própria consciência e experiência e, somado ao medo daquilo que é novo, teria feito com que a ontologia do estado falso se desenvolvesse de tal modo, que quase mais nada escapasse a ela. A grande filosofia foi acompanhada pelo zelo paranoico de não tolerar nada senão ela mesma. O mais mínimo resto de não-identidade era suficiente para desmentir a identidade, totalmente segundo o seu conceito. As excrescências dos sistemas desde a glândula pineal de Descartes e os axiomas e definições de Spinoza, nos quais já está injetado todo o racionalismo que ele extrai posteriormente de maneira dedutiva, manifestam por meio de sua não-verdade a não-verdade dos próprios sistemas, sua loucura (ADORNO, 2009, p.27). A mediação que estaria contida na aparência da imediatidade do espírito, segundo Adorno, se manifestaria com base no idealismo da unificação. Aí, a visão das essências se aproximaria da ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 483 consciência alegórica. Assim, quanto mais socializado seria o mundo, e quanto mais determinações universais seriam desenvolvidas, mais o estado de coisas singular tenderia a tornarse imediatamente universal. A desumanização começa no ponto em que, graças ao distanciamento, os objetos visados pela operação burocrática podem e são reduzidos a um conjunto de medidas quantitativas… Reduzidos, como todos os outros objetos de gerenciamento burocrático, a meros números desprovidos de qualidade, os objetos humanos perdem sua identidade (BAUMAN, 1998, p.26). Para Adorno, as doutrinas que fogem do sujeito para o cosmo, assim como a filosofia do ser, seriam mais facilmente conciliáveis com essa limitação do espírito àquilo que é acessível às suas experiências e com as chances de sucesso que essa limitação traz consigo, do que a menor parcela de reflexão do indivíduo sobre si mesmo e sobre o seu aprisionamento social. A cultura na qual o pensamento estaria envolvido faria com que o indivíduo perdesse o hábito de se questionar acerca do sentido desse pensamento. E, quanto menos o sentido torna-se evidente para os indivíduos, mais plenamente o funcionamento cultural o substituiria. Mediante o peso da existência, os indivíduos sequer se perguntariam se o sentido que a cultura afirma é realizado, e muito menos sobre a autenticidade desse sentido. O culto do ser, contudo, ou ao menos a atração que essa palavra exerce por meio de seu prestígio, vive do fato de que na própria realidade, tal como outrora na teoria do conhecimento, os conceitos funcionais foram reprimindo cada vez mais os conceitos substanciais. A sociedade transformou-se em contexto funcional total, como antes era pensada pelo liberalismo; aquilo que é, é relativo a um outro, irrelevante em si mesmo. O horror que isso provoca, a consciência crepuscular de que o sujeito está perdendo sua substancialidade, tudo isso predispõe para que se escute a asseveração, faz com que o ser, equiparado de maneira desarticulada àquela substancialidade, sobreviva apesar de tudo a essa estrutura funcional, sem que possa se perder. Todavia, aquilo que o filosofar ontológico buscava como que despertar de maneira evocativa é minado por processos reais, pela produção e reprodução da vida social (ADORNO, 2009, p.63). Nesse esquema, a tentativa de fuga do idealismo seria invalidada de modo automático e a doutrina do ser seria reabsorvida em uma doutrina do pensamento que isentaria o ser de tudo aquilo que seria outra coisa além do pensamento puro. Dessa forma, a formação do espírito da cultura se tornaria proveniente das normas da sociedade vigente, onde o critério daquilo que é ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 484 tomado como verdadeiro ou falso poderia ser facilmente manipulado em prol dos interesses da classe dominante. Em Adorno, a revitalização da ontologia a partir dessa intenção objetivista, se daria pelo fato de os indivíduos terem se tornado demasiadamente idealistas, dissimulando, dessa forma, o contexto funcional e objetivo da sociedade e amenizando, com isso, o sofrimento de seus membros. Assim, sendo o universal absoluto tratado como algo histórico-natural, a liberdade pôde, finalmente, ser vinculada à consciência moral que, de acordo com Hegel, antes já seria parte da própria consciência natural. O fato de a liberdade permanecer em grande medida ideologia; o fato de as pessoas serem impotentes diante do sistema e não conseguirem determinar suas vidas e a vida do todo a partir de sua razão; sim, o fato de não poderem mais nem mesmo pensar essa ideia sem sofrer adicionalmente, proscreve sua conjuração para a figura contrária: elas preferem sardonicamente o que é pior à aparência de algo melhor. As filosofias ligadas ao espírito do tempo trazem consigo as suas contribuições para essa situação. Elas sentem já em ressonância com a ordem alvorecente dos interesses mais poderosos, apesar de, como Hitler, portarem o peso solitário do destino. O fato de se comportarem como metafisicamente desabrigadas e como mantidas no nada provém de uma ideologia apologética da ordem que provoca o desespero e que ameaça os homens com a aniquilação física (ADORNO, 2009, p.83). Nesse contexto, para Adorno, a liberdade somente seria possível mediante uma mudança radical, através do abandono do idealismo em relação à forma de concepção da identidade entre o sujeito e o objeto. A variabilidade seria essencial para a consciência nesse processo, pois ela seria capaz de levar o indivíduo a um comportamento que vem do interior, que seria um modo de comportamento livre, mas oriundo do processo dialético. “Ela não seria outra coisa senão a experiência plena, não reduzida, no medium da reflexão conceitual”. (ADORNO, 2009, p.21). O pensamento sem regulamentação possuiria uma afinidade com a dialética porque, enquanto crítica ao sistema, remeteria a algo que estaria fora dele, onde a força que impulsiona o movimento dialético seria justamente essa que iria contra o processo de sistematização. Dessa forma, a reflexão se daria não sobre o concreto, mais sim, a partir dele. O cumprimento do dever, que em Hegel subjuga totalmente o individual em prol do universal, em Adorno equivale ao objetivo final de toda a dialética hegeliana, onde o esquematismo, aliado à ontologia do ser, penetra até a camada mais profunda da consciência humana, com o propósito de torná-la cativa. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 485 Entretanto, a dialética negativa aponta para a existência de uma falha nesse sistema, que se refere justamente àquele conceito que abrange o simplesmente não conceitual, ou seja, aquilo que não se esgota no conceito. Para exemplificar, Adorno cita a música, que, assim como outros tipos de arte, não seria absorvida já no primeiro instante, mas somente no seu decorrer compartilhado. Por mais que a música seja ela mesma uma aparência enquanto totalidade, ela faria uma crítica à aparência por meio dessa totalidade, como sendo a aparência do conteúdo presente em um determinado tempo e momento. Nesse sentido, em consonância com Adorno, Jimenez faz o seguinte comentário: Paradoxalmente, a função social da arte reside então em sua ausência de função. É diferenciando-se de maneira imanente da realidade, que as obras de arte exprimem negativamente um estado outro daquele que é, dizendo o que este deveria ser em uma sociedade liberada da barbárie (JIMENEZ, 1977, p.138). Para Adorno, a filosofia deveria abrir mão do consolo de acreditar que a verdade não é passível de ser perdida. Uma filosofia que não pode sequer refletir acerca do não conceitual se tornaria analítica e tautologia. Para ele, houve uma inversão do conceito de segurança, onde, o que antes queria ultrapassar o dogmatismo por meio da certeza de si, teria se transformado em um conhecimento engessado e inquestionável. A tentativa da filosofia de não se desviar da negação, mas também de não se deixar abater por ela, precisaria ser desenvolvida. Este é o ponto vital da dialética negativa, o desenvolvimento de uma consciência acerca da insuficiência do conceito, ou, utilizando as palavras do próprio Adorno, o desenvolvimento de uma consciência acerca daquilo que vai além-do-conceito. Daí a sua afirmação de que a dialética precisaria ser caracterizada como um esforço elevado à autoconsciência por se deixar tornar penetrável. A crítica de Adorno não se dá contra a ciência, mas sim pelo fato de que, para a filosofia, a expressão e o seu aperfeiçoamento lógico não deveriam ser possibilidades distintas. Ao contrário, eles necessitariam um do outro, uma vez que a expressão seria liberada de sua contingência por meio do pensamento, e esse, por sua vez, só se tornaria conclusivo enquanto algo expresso, ou seja, somente por meio da apresentação. Nesse sentido, Gagnebin afirma que: ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 486 Adorno não propõe um intuicionismo imediato nem um irracionalismo ingênuo para escapar da lógica identificadora. Propõe, sim, na boa tradição platônica, um demorar e um treinar na linguagem e na ratio, no logos, para enxergar a sua insuficiência e indicar, talvez, o que seria seu outro fundador (GAGNEBIN, 1997, p.120). Assim, quando Adorno afirma que o que se torna problemático não é apenas a atividade, mas o sentido da ciência, ele não está se referindo somente à sistematização em prol de alguma ideologia, mas, mais do que isso, ele refere-se, principalmente, à insuficiência de tais processos frente à complexidade e diversidade humana e, consequentemente, à necessidade filosófica de desenvolvimento de uma consciência da possibilidade e de um olhar para aquilo que não se esgota no conceito, para aquilo que, nas palavras de Adorno, vai “além do conceito”. Referências Bibliográficas: ADORNO, T.W. Dialética Negativa. (Trad: Marco Antônio Casanova) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. ___________. O mal-estar da pós-modernidade, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. GAGNEBIN, Jeanne Marie. Sete Aulas sobre Linguagem, Memória e História. Rio de Janeiro: Imago, 1997. JIMENES, Marc. Para Ler Adorno. Trad: Roberto Ventura. Rio de Janeiro: F. Alves, 1977. LUFT, Eduardo. As sementes da dúvida. São Paulo: Editora Mandarim, 2001. MORIN, Edgar. Ciência com consciência, Trad. Maria D Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória, 6 ed., Rio de Janeiro: Bertrand, 2002. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 487 A EXIGÊNCIA DE TRANSCENDÊNCIA EM GABRIEL MARCEL Nadimir Silveira de Quadros Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE [email protected] Orientador: Prof. Dr. Claudinei Aparecido de Freiras da Silva RESUMO: Segundo Gabriel Marcel, a exigência de transcendência convoca o homem a um aprofundamento na sua própria existência pessoal, proporcionando a ele decidir por não ficar numa atitude meramente espectadora, descomprometida e, portanto, teórica. A oposição entre sujeito e objeto deve ser transcendida, assim como a arte dramatúrgica torna-se o referencial desse movimento de transcendência pelo qual o personagem se lança no mistério do outro. A fidelidade aparece como uma abertura ao transcendente, pois o contrário, no caso da traição, conduz ao afastamento do mistério objetivando, pois, o outro. Palavras-chave: Gabriel Marcel; transcendência; fidelidade; presença; mistério Ainda do início da Primeira Guerra Mundial, Marcel já exercia uma busca sincera e persistente sobre um outro mundo; mundo este transcendente, visto que vivemos num processo civilizatório objetivante e superficial. Tal mundo passa a ocupar o centro de atenção do filósofo, posto como nova exigência ontológica. É em direção a essa perspectiva, por exemplo, que Marcel sustenta na 3ª lição da primeira série da obra Mistério do Ser, a tese da «exigência de transcendência», que, segundo suas próprias palavras, induzem o homem a um aprofundamento na sua própria existência pessoal (MARCEL, 2002, p.45). Este homem que é consciência projetiva, energética, tensitiva, originariamente intencional carece fundamentalmente dessa busca de sentido para encontrar a sua plenitude, que constitui o ponto mais importante de partida em direção ao outro. Escreve o filósofo: Vamos agora perguntar-nos em que consiste precisamente a exigência da transcendência. Parece-me que primeiro devemos situá-la em relação com a vida tal e como é vivida e não mediante uma definição que a colocaria no éter rarefeito do pensamento puro. (MARCEL, 2002, p. 46) ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 488 Esta experiência de transcendência é irredutível a qualquer outra, pois está no cotidiano do homem, encontrando-se, ainda, na sociedade em que está imerso, numa condição humana radicalmente conflitiva. Os valores humanos encontram-se esfacelados. O que a exigência de transcendência pressupõe é que, para além de um mundo cindido, há o reconhecimento ontológico do mistério, da presença, em sentido pleno. Escreve o filósofo: Deveríamos nos perguntar se a totalidade não será a plenitude representada ou figurada, porém, também se não há na plenitude algo que não é figurável, que não pode dar lugar a uma projeção. Não será precisamente a partir da necessidade e plenitude que se explicitam as questões que nos ocupam nesta lição? Uma plenitude que se oponha ao vazio interno de um mundo funcionalizado, assim como a agonizante monotonia de uma sociedade na qual os seres se apresentam cada vez mais como simples espécies e cada vez menos discerníveis uns dos outros. (MARCEL, 2002, p. 232). O homem não pode realizar a sua própria vida se decidir permanecer numa cômoda atitude espectadora, descomprometida, apenas teórética. O homem é um ser participante. Nesse ponto, o pensamento filosófico de Gabriel Marcel se elabora a partir de algumas situações concretas bem como diante de determinadas descrições fenomenológicas, que apresentam a presença do transcendente no coração da experiência vivida. Deve haver uma experiência do transcendente como tal, como afirma, quando diz que, “transcendente” não implica dizer o que transcende a experiência, senão, pelo contrário, que deve ser possível, deve-se fazer uma experiência de transcendência enquanto tal” (MARCEL, 2002, p. 52). O ponto de partida de uma filosofia autêntica, segundo o pensador francês, compreendida como uma experiência transmutada em pensamento é o reconhecimento das afirmações metafísicas em termos de experiência vivida, que adquirem a plenitude de seu significado. É preciso chegar à convicção de que a exigência de transcendência não deve dar vazão à ideia de superação de toda a experiência, pois além de toda experiência não há nada que se deixe ou se queira pressentir. A exigência da transcendência se apresenta, se sente, antes de qualquer coisa, como insatisfação: A insatisfação implica a ausência de algo que, falando com propriedade, é exterior a mim, ainda que eu possa assimilá-lo e, portanto, fazê-lo meu. [...] Talvez precisamente porque o princípio não reside em mim, senão ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 489 fora de mim; é como se outro chamado surgisse de mim mesmo, um chamado que se dirige para dentro. (MARCEL, 2002, p. 49) O sujeito torna-se um experimento de seu próprio sentimento de vazio, de insatisfação. A sua originalidade não está somente em interrogar sobre a natureza das coisas, mas em perguntar pela sua própria essência e, nesse sentido, está além de todas as respostas em que podem desembocar esta pergunta. O homem somente poderá descobrir seu verdadeiro ser no comprometimento e na participação. A dramaturgia de Gabriel Marcel expressa muito bem essa questão da transcendência do sujeito sobre o objeto. Os personagens que aparecem nos dramas não são marionetes construídas conforme um plano abstrato do teatrólogo ou diretor. Pelo contrário, eles são como uma composição musical e vivem numa situação que, por sua vez, como inteiramente implicados ou transcendidos. Isso significa que o grande ator não apenas representa, uma vez que a sua prática estaria objetivando o personagem. O ator vive, respira, se movimenta corporalmente, olha e toda a sua atuação é pelo outro, porque está completamente no ser-com. Sua empresa é movida pela satisfação de se colocar como outro. Escreve o autor: Notemos, em primeiro lugar, que a exigência da transcendência se apresenta, se sente, antes de qualquer coisa, como insatisfação. O contrário não parece ser certo; não parece que tenhamos direito a dizer que [mas, nem] toda insatisfação implica aspirar à transcendência. É conveniente, creio, ser aqui tão concreto quanto se puder, quer dizer, que dramatizemos, que imaginemos, o mais precisamente que sejamos capazes, algum tipo de situação em que eu possa ver-me implicado. (MARCEL, 2002, p. 47). De certa forma, Marcel expressa a exigência de transcendência como uma arte que o ser humano possui. A dramaturgia quando exercida em profundidade torna-se um referencial de como o sujeito pode transcender toda objetivação. Justamente porque o personagem não objetiva, mas vive o sujeito que atua, ele-próprio transcende toda objetivação do personagem quando se joga no mistério do outro. Em um mundo em que a verdadeira vida está ausente de sentido, em que, ainda, a falsidade e o egoísmo desterram a sociedade, Marcel mostra que quem quiser se engajar ao mundo e quiser transcendê-lo precisa atuar com o outro. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 490 Podemos afirmar que para que o sujeito supere toda forma de objetivação são necessárias a presença e a participação. Estas necessitam de fé, uma certeza que não pode ser apenas movida pela razão, mas que se realize no mistério. No reconhecimento do outro se transcende toda forma de objetivação. Entre todos os temas que Marcel trabalha em sua obra, o tema da fidelidade é um dos que aparecem em estado germinal, embora, no contexto da sua dramaturgia, se torne um dos temas mais desenvolvidos. Quando o dramaturgo francês traz o tema da verdade, esta é graça e fidelidade, que em último caso, implica o gesto de fidelidade ou de traição. Pela capacidade que o homem tem de responder a uma delas é que se radica sua essencial liberdade. Uma escolha que segundo Marcel, pode trair o momento presente: Pelo fato de que toda fidelidade pode ser rechaçada ou desenraizada, a traição mesma parece mudar de natureza: é ela quem pretende ser a verdadeira fidelidade e trata, ao que nós designamos com este nome, de traição – traição ao instante presente, ao eu real experimentado em cada instante. (MARCEL, 2003, p. 103). O que seria uma traição do momento? Para o autor, a resposta parece estar numa autenticidade de vida: Imaginemos alguém que decidiu professar em uma ordem, fazer-se monge. Porém nunca teve claras as condições sob as quais tomou tal decisão. Encontra-se em vésperas de pronunciar os votos definitivos, de maneira que, todavia, tem tempo de renunciar ao projeto. Seria, pois, indispensável que se perguntasse se sua vocação é autêntica, se sente, verdadeiramente, que foi chamado por Deus para servir-lhe. De fato, não se atreve a formular-se a pergunta diretamente, pois teme a resposta. Na realidade, tomou esta decisão por causa de decepções puramente terrenas, talvez porque uma mulher a quem amava o enganou ou porque suspendeu um exame difícil ou talvez porque crê vagamente que desta maneira obterá a consideração de uma família que o julga incapaz de chegar a nada. (MARCEL, 2002, p. 67) A fidelidade nos conduz ao mistério. A fidelidade é criadora de uma ordem nova e misteriosa, que rompe os limites das palavras e do conhecer. Agora, como falar de fidelidade frente a um mundo desnaturalizado, alienado e prostituído, em que a traição é constante e que se encontra vazio de significação? Escreve Marcel: ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 491 Não basta dizer que vivemos em um mundo no qual a traição é possível em todo momento e sob todas as formas, traição de todos por todos e de cada um por si mesmo. Repito: esta traição aparece na própria estrutura de nosso mundo que nos encarece. Espetáculo da morte como convite perpétuo à negação. A essência de nosso mundo é talvez traição. (MARCEL, 2003, p. 90). Significa que a fidelidade somente se desvele na presença do tu, ou seja, que acontece no seio de uma metafísica da liberdade, da comunhão e da participação. O homem, nessa perspectiva, poderá experienciar a fidelidade pelo transcender do devir, do trágico mundo do ter, do problemático, indo além da morte, da ausência e do tempo. Desta aproximação pode se afirmar que, além disso, há o desafio da ausência, onde triunfa, em última etapa, a morte. Nesse sentido, a fidelidade em seu sentido metafísico nos aparece como o único meio para triunfar sobre o tempo, caso, é claro, ela seja, de fato, criadora. Marcel expressa tal ideia quando diz que “Amar a um ser é dizer: tu não morrerás”, significando, sobretudo, que há no outro, que amo, como ser, algo que permite franquear o abismo do que ele chama indistintamente de a morte (MARCEL, 2002, p. 249). Para Marcel, a fidelidade encontra-se ameaçada, principalmente quando se pode perceber que “no mundo, sob a opressiva influência da técnica, desaparecem as relações intersubjetivas. Com isso, a morte deixa de ser um mistério para converter-se em um fato brutal, como a destruição de qualquer aparato” (MARCEL, 2002, p. 319). A fidelidade transcende o tempo, ou seja, a fidelidade é a atualização da presença no tempo, não sendo apenas o fato de uma manifestação exterior e muito menos se define objetivamente, mas se faz no sentir que estás comigo. A invasão da técnica, da mecanização e da burocracia contribuem para a progressiva depreciação do mundo do mistério. Escreve o filósofo: Não é incrível que possam encontrar-se homens dispostos a tomar a iniciativa de começar uma guerra, quando, todavia não desapareceram as ruínas da anterior, e quando os acontecimentos demonstraram de forma tão peremptória que a guerra não compensa? [...] Tal erro em imaginar que o filósofo enquanto tal não tem que preocupar-se do curso dos acontecimentos, visto que seu papel consiste em legislar desde o intemporal e considerar os fatos contemporâneos com a indiferença desdenhosa com que o passante olha a agitação de um formigueiro. (MARCEL, 2002, p. 42-43). Marcel alude a um novo realismo, transcendente às categorias meramente espaçotemporais, em que se destacam as realidades transubjetivas, interpessoais e supra individuais, do ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 492 amor, da convivência, liberdade, esperança, fraternidade, etc., que apontam para âmbitos inobjetivos da vida humana. Nessa perspectiva, somente a restituição do sentido do mistério além do mundo do objeto, do problemático e do mensurável é que constitui a etapa prévia para uma possível recuperação do sentido dessa ordem de realidades entitativas e profundas, enquanto que superam o ca mpo do verificável, sujeito às estreitas limitações espaçotemporais empíricas. Trata-se, em última instância, de restaurar uma filosofia da liberdade frente às filosofias da necessidade e da racionalidade científica. Avalia Marcel: Poder-se-ia dizer simplesmente que este poder pressupõe uma estrutura determinada, por demais inacabada, essencialmente inacabada, já que se edifica sobre bases espaço-temporais. Esta estrutura desdobra amplamente a consciência direta que o sujeito possa ter dela apesar de que, como mais tarde veremos detalhadamente, não é nem pode ser monádica. (MARCEL, 2002, p. 70). Marcel, frente à esperança que se apresenta nas possibilidades mundanas, descobre no interior da temporalidade da existência humana a abertura constitutiva para a transcendência como presença indefectível, ainda que inefável. A análise fenomenológica do amor é que irá conduzir a uma “hiperfenomenologia”. O valor transcendente da experiência do amor – assim como as experiências concretas da fidelidade e da esperança – é fruto de um auto reconhecimento, em que o sujeito se faz consciente de sua busca pelo infinito – exigência de transcendência – que implica sempre uma atitude de participação. A presença do outro é uma chamada em que o eu tem necessidade de responder. Uma luz no horizonre em que o eu dirige o olhar. Referências Bibliográficas: CARMONA, F. B. La filosofia de Gabriel Marcel. Madri: Encuentro. 1988. MARCEL, G. Diário metafisico. Trad.Felix Del Hoyo. Madri: Guadarrama, 1964. ___________. Obras seletas de Gabriel Marcel (I): El mistério del ser. Madri: Biblioteca de Autores Cristianos, 2002. ___________. Os homens contra o homem. Trad.Vieira de Almeida. Porto: Educação Nacional, 1953. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 493 ___________. Prolegomenos para uma metafisica de la esperanza. Tradução de Ely Zanetti e Vicente P. Quintero. Buenos Aires: Editorial Nova, 1954. ___________. Revolução da esperança. Rio de Janeiro: José Olympio, 1961. ___________. Ser y tener. Trad. Ana Mará Sánchez. Madri: Caparrós, 2003. ___________. Um homem de Deus. Trad. Eduardo de Castro. Petrópolis (RJ): Vozes, 1964. SILVA, C. A. F. (Org.). Encarnação e transcendência: Gabriel Marcel, 40 anos depois. Cascavel (PR): Edunioeste, 2013. ZILLES, U. Gabriel Marcel e o existencialismo. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 494 O FIM DO MAIS LONGO ERRO: NIETZSCHE E A FILOSOFIA DO MEIO DIA Neomar Sandro Mignoni UNIOESTE/CAPES E-mail: [email protected] Orientador: Prof. Dr. Wilson Antonio Frezzatti Junior RESUMO: O presente estudo visa, frente as fases estabelecidas por Nietzsche em Como o ‘mundo verdadeiro’ se tornou finalmente em fábula, investigar as sentenças finais do referido texto a fim de explicitar alguns significados do meio-dia enquanto momento da mais curta sombra em que chega ao fim o mais longo erro e a humanidade atinge seu apogeu. Por conta disso, pretende-se reconstruir em linhas gerais as fases do texto enfatizando a ultima na qual o filósofo deixa à mostra sua própria proposta filosófica frente à histórica dualidade de mundos. Tal perspectiva pretende assim, encontrar fundamentos a partir dos quais toda a perspectiva ulterior do filósofo se arquiteta e se desenvolve sob a figura de Zaratustra. Palavras-chave: Nietzsche. Meio-dia. Mundo Verdadeiro. “Meio-dia; momento da sombra mais breve; fim do longo erro; apogeu da humanidade; incipit Zaratustra” (CI, IV), assim Nietzsche finaliza Como o ‘mundo verdadeiro’ se tornou finalmente em fábula. Sentença essa que não apenas compreende o resultado da “história de um erro” como também traz em seu bojo a perspectiva nietzschiana segundo a qual uma nova humanidade deverá brotar a partir de uma filosofia autodenominada de transvaloração de todos os valores. Compreendendo sua filosofia como um divisor de águas entre as “antigas e novas tábuas” o referido texto aponta para a perspectiva da criação de novos valores. Nesse sentido, o que de fato significa afirmar o Meio-dia enquanto momento da sombra mais curta em que chega ao fim o mais longo erro e a humanidade atinge seu apogeu? Como o ‘mundo verdadeiro’ se tornou fábula, é composto por seis fases que sintetizam aquilo a que Nietzsche se refere como a “história de um erro”. Nele, ainda que essas etapas configurem-se apenas como uma síntese do diagnóstico nietzschiano acerca da cultura ocidental, é possível ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 495 obter informações essenciais no que diz respeito ao evento descrito pelas sentenças finais do texto. É mediante tais informações que poderemos percorrer as noções nietzschianas em busca de respostas aos problemas levantados. Além do mais, parece-nos prefigurar aqui uma importante chave de leitura no que diz respeito à obra tardia do filósofo, sobretudo no tocante ao seu audacioso e por que não ambicioso plano de uma transvaloração de todos os valores. Na primeira fase, Nietzsche se refere ao pensamento de Platão. A existência de um mundo verdadeiro, suprassensível é aqui postulada. Embora ela seja alcançável pelos sábios, ela ainda não se tornou uma entidade meramente “ideal”, “platônica”. De acordo com Laura Laiseca (2001, p. 33) a afirmação “eu, Platão, sou a verdade”, não se encontra em nenhuma obra de Platão, antes ela possui forte conotação evangélica, uma vez que alude diretamente à passagem do Evangelho de João (14,6) quando Jesus refere-se como sendo o caminho, a verdade e a vida. No entender da autora, tal ressonância não seria casual uma vez que situa Platão como ponte que conduz ao cristianismo. No fundo o importante neste caso, não é a metafísica platônica em si mesma, mas as intenções e os instintos pelos quais Platão é guiado. São elas que permitem um diagnóstico adequado da filosofia platônica, não tanto acerca de seus postulados teóricos, mas antes das consequências históricas imediatas desenvolvidas através do platonismo. Na segunda fase, o mundo verdadeiro torna-se inalcançável por ora, porém é prometido ao sábio, ao virtuoso, ao devoto, ao pecador que faz penitência. Começa aqui a ruptura entre o mundo verdadeiro e o mundo aparente (devir). Com isso, este ultimo passa a ser desvalorizado. A existência terrena passa a ser transitória, constitui-se de mera aparência de modo que passa-se a prever a possibilidade de se alcançar, um dia, o mundo verdadeiro. À medida que a existência humana acontece aqui, mas que tende para o além, o mundo verdadeiro torna-se então objeto de promessa e de fé. Ele torna-se mais cativante, mais impalpável, torna-se um platonismo para o povo, torna-se cristianismo (cf. VOLPI, 1999, p. 57). O pensamento de Kant corresponde à terceira fase da história do niilismo-platonismo. Na historia da filosofia Kant representa, aos olhos de Nietzsche, uma nova fase da crença no mundo verdadeiro. Isso porque ele “busca restaurar novamente a crença em Deus pensado como o bem supremo, combinado com uma justificação do sentido da vida através da ideia de uma ordem moral do mundo” (LAISECA, 2001, p. 39). Nesse sentido o mundo verdadeiro, passa a ser excluído do âmbito da experiência tornando-se indemonstrável nos limites da pura razão teórica. ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 496 Contudo, é recuperado como postulado da razão prática impondo-se como imperativo ainda que reduzido à uma pálida e “desbotada” hipótese (cf. VOLPI, 1999, p. 58). No capítulo seguinte da história do niilismo-platonismo, Nietzsche refere-se à fase do ceticismo e da incredulidade posterior a Kant e ao Idealismo. Esta também pode se denominada segundo Volpi (1999, p. 58) como a fase do positivismo incipiente uma vez que “em decorrência da destruição kantiana das certezas metafísicas desaparece a crença no mundo ideal e em sua cognoscibilidade. Mas isso não significa que o niilismo-platonismo tenha sido já superado”. À medida que o mundo verdadeiro torna-se incognoscível acerca do qual nada podemos saber, torna-se a rigor impossível defendê-lo ou negá-lo. Por conta disso a importância moral-religiosa que possuía enquanto postulado da razão prática se esvai. Mediante esta perspectiva, nos dois últimos capítulos de sua síntese Nietzsche começa a explicitar sua própria perspectiva filosófica. A partir do momento em que o mundo verdadeiro perde seu valor ele começa a ser abolido ele torna-se inútil, supérfluo. Por isso é natural que Nietzsche se refira a ele entre aspas, ou seja, ele deve ser suprimido posto entre aspas. É o começo da fase do pensamento matinal, onde Nietzsche pensa aqui na própria obra de demolição que com A Gaia Ciência alcançou seus primeiros resultados123. Ainda longe do meio dia a abolição do mundo verdadeiro no entender de Franco Volpi, abre espaço para dois problemas: “que é do lugar onde estava o ideal, que, abolido este ultimo, fica vazio agora? E que sentido tem o mundo sensível depois de abolido o mundo ideal?” (VOLPI, 1999, p. 59). A resposta encontra-se na fase seguinte dessa demolição em curso. Em virtude disso a última fase da síntese do texto Como o ‘verdadeiro mundo’ acabou por se tornar uma fábula inclui também a abolição do mundo aparente. Deste modo, Nietzsche não só liberta o devir de seu caráter de aparência como também evita recair numa mera inversão do platonismo. No fragmento póstumo 11[99] Novembro de 1887 – Março de 1888, Nietzsche cita três momentos os quais parecem justificar essa tese: em primeiro lugar ocorre a tomada de consciência de que o mundo não pode mais ser interpretado mediante as categorias da razão, fato que efetiva o colapso dos valores cosmológicos; daqueles valores com os quais se incutia ao mundo um valor. O mundo torna-se então desprovido de valor uma vez que o mundo verdadeiro já não existe mais. Isso permite um segundo momento, momento este em que se investiga a Cabe lembrar aqui que a morte de Deus, o evento que marca o colapso definitivo do mundo verdadeiro é anunciada pela primeira vez no aforismo 125 de A Gaia Ciência. 123 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 497 origem dessa crença. Dado que a origem da crença reside em nós, se ela se configura apenas como uma aparência de perspectiva, diga-se fruto de uma mera necessidade humana, então ela pode ser rescindida. Com isso o mundo é libertado daquela avaliação efetuada via categorias racionais e, portanto torna-se também liberto do ideal, da concepção de mundo verdadeiro. Isso faz com que o terceiro momento venha à tona. Ou seja, quando as categorias são desvalorizadas torna-se demonstrado sua inaplicabilidade ao todo de modo que já não constituem mais nenhum fundamento para que o todo seja desvalorizado. Retomando as palavras do próprio filósofo: “Abolimos o mundo verdadeiro: que restou? O aparente, talvez?... Não! Com o mundo verdadeiro abolimos também o mundo aparente!” (CI, Como o “mundo verdadeiro” se tornou finalmente fábula). Aqui se concretiza o fim do mais longo erro; aqui a humanidade atinge seu ponto mais alto; aqui começa Zaratustra e aqui se dá o Meio-Dia como o instante da mais curta sombra. A realidade do devir, o mundo agora liberto do jugo da aparência, constitui um livre jogo de forças sendo pura e simplesmente vontade de potência. E enquanto vontade de potência constitui o efetivar-se da força sem nenhuma causalidade. Seu efetivar-se emerge de seu constante ‘querer-vir-a-ser-mais-forte’. Tal configuração decorre de seu constante e inevitável conflito com outras forças que lhe oferecem resistência na busca por mais potência. Tal conflito é sempre de caráter agonístico advinda da pluralidade dos beligerantes. É mediante este efetivar-se enquanto impulso de toda força que novas configurações são criadas. Desse modo, nenhum nomós pode ser admitido à vontade de potência uma vez que seria absurdo que as forças fossem coagidas a seguirem sempre um mesmo padrão no relacionamento entre si. Da mesma maneira seria absurdo exigir dela um telos, uma vez que ao superar a si mesma não poderia ter em vista nenhuma configuração específica das forças (cf. MARTON, 2000, p. 70). Assim, o mundo revela-se como um pleno devir em que a cada mudança outra se segue de modo que o mundo não teve um início e não terá fim. Diz o filósofo: “O mundo subsiste; não é nada que vem a ser, nada que perece. Ou antes: vem a ser, perece, mas nunca começou a vir a ser e nunca cessou de perecer, - conserva-se em ambos... Vive de si próprio: seus excrementos são seu alimento” (14 [188] da primavera de 1888)124. Não houve um momento inicial porque não se pode atribuir nenhuma intencionalidade à vontade de potência, da mesma forma que não haverá Sobre isso vale conferir também os fragmentos póstumos 36[15] de Junho – Julho de 1885, 10 [138] do Outono de 1887 e 10 [72] do mesmo período. 124 ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 498 nenhum instante final uma vez que ao mundo não se deve conferir nenhum caráter teleológico. “Esse mundo é a vontade de potência – e nada além disso! E também vós próprios sois essa vontade de potência – e nada além disso!” (38 [12] de Junho – Julho 1885). É assim que o filósofo estabelece um de seus maiores pontos de ruptura com a tradição filosófica, pois como bem ressalta Scarlett Marton, ao conceber o mundo e o homem enquanto pluralidade de forças, pura e simplesmente vontade de potência, Nietzsche encontra-se “mais próximo da arché dos pré-socráticos que da entelechéia de Aristóteles” (MARTON, 2000, p. 72). É nesse contexto que nos deparamos com o evento maior do Meio-dia enquanto o ápice da humanidade. Ora, se tanto o mundo quanto o homem constituem nada mais nada menos que pura e simplesmente vontade de potência, e que devido às suas configurações inexiste qualquer tipo de causalidade e fatos, tudo o que há não passa de mera interpretação. Assim, é somente enquanto interpretante que se pode estar e vir a ser no mundo. A vontade de potência ao exercerse, constitui ao mesmo tempo o intérprete, o interpretante e a interpretação, razão pela qual se torna absurda toda e qualquer tentativa de dualidade, dada a inexistência de um mundo verdadeiro ou aparente. Tudo o que existe são interpretações, perspectivas provisórias destinadas a afirmar e dominar o vir-a-ser. Desse modo, ao compreender que a progressão da ideia tornada Verdade não passa de mera interpretação cujo valor encontra-se na obstrução e negação da vida, sua total abolição permite novas interpretações cujos valores pautam-se pela afirmação da vida enquanto livre jogo de forças. Nesse sentido, o ápice da humanidade, o meio-dia enquanto momento da mais curta sombra passa a ser aquela reconciliação do homem com a natureza, uma vez que marca o retorno do homem à terra, em que novamente pode vivenciar o mundo enquanto vir-a-ser. Se o ideal tornado verdade, o engendramento de um outro mundo é interpretado como negação e distanciamento deste mundo, a filosofia do Meio-dia constitui aqui uma filosofia do vir-a-ser enquanto livre jogo de forças. Ela não apenas encerra o resgate daquilo que fora considerado como mera aparência, como sombra, que desde Platão fora alijadas do conhecimento, como também se projeta para além delas superando toda e qualquer dicotomia. Nesse sentido, é interessante notar que quando Nietzsche escreve o Andarilho e sua Sombra (1879) ele ainda considera a sombra tão necessária tanto quanto a luz. Não é a toa que o andarilho afirma que elas se dão amavelmente, não são rivais até porque quando a luz se vai a sombra vai com ela. Razão pela qual pode o andarilho alegrar-se não somente por ouvir, mas ISSN: 2176-2066 http: www.unioeste.br/filosofia 499 também por vê-la: “Perceberás que eu amo a sombra assim como a luz. Para que haja beleza no rosto, nitidez na fala, bondade e firmeza no caráter, a sombra é tão necessária quanto a luz” (HHII, O andarilho e sua sombra, Introdução). Sombra e luz constituem assim os símbolos significativos da filosofia da manhã. Reconhecer a sombra no mesmo grau de importância da luz significa resgatar as sombras, a aparência negada por Platão, e trazê-la para junto da luz, do verdadeiro conhecimento platônico, com a